cantos de capoeira
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Leonardo Abreu Reis
Cantos de capoeira Fonogramas e etnografias
no dilogo da tradio
TESE DE DOUTORADO
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor pelo Programa de Ps-graduao em Letras, do Departamento de Letras da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Jlio Csar Vallado Diniz
Rio de Janeiro, dezembro de 2009
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 0510609/CA
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Leonardo Abreu Reis
Cantos de capoeira: fonogramas e etnografias no dilogo da tradio
Tese apresentada como requisito
parcial para obteno do grau de Doutor pelo Programa de Ps-Graduao em Letras do Departamento de Letras do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.
Prof. Jlio Cesar Vallado Diniz, orientador Departamento de Letras PUC-Rio
Profa. Marlia Rothier Cardoso
Departamento de Letras PUC-Rio
Profa. Giovanna Ferreira Dealtry Departamento de Comunicao Social - PUC-Rio
Profa. Laura Cavalcante Padilha
UFF
Prof. Frederico Augusto Liberalli de Goes UFRJ
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Cincias Humanas PUC-Rio
Rio de Janeiro, 11 de setembro de 2009.
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Todos os direitos reservados. proibida a
reproduo total ou parcial do trabalho sem autorizao do
autor, do orientador e da universidade.
Leonardo Abreu Reis
Graduado em Comunicao Social Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em
Memria Social pela Universidade do Rio de Janeiro
(Unirio); atualmente professor do Curso de Cinema, do
Centro de Artes Humanidades e Letras (Cahl) da
Universidade Federal do Recncavo da Bahia (UFRB).
Ficha Catalogrfica
CDD: 800
Reis, Leonardo Abreu Cantos de capoeira: fonogramas e
etnografias no dilogo da tradio / Leonardo Abreu Reis; orientador: Jlio Csar Vallado Diniz. 2009.
274 f.: il. (color.); 30 cm Tese (Doutorado em Letras) Pontifcia
Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Inclui bibliografia 1. Letras Teses. 2. Capoeira. 3. Poesia
popular. 4. Cantos. 5. Tradio. 6. Indstria cultural. I. Diniz, Jlio Csar Vallado. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Ttulo.
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Agradecimentos
A todos que de alguma forma contriburam para essa jornada.
Em especial, agradeo a meus pais, Jos Reis Filho e Liana Mrcia Abreu
Reis, ao meu irmo, Paulo Cesar Abreu Reis, e a minha av, Amlia de Paula
Madeira.
Agradeo aos mestres Jos Carlos Gonalves e Pedro Moraes Trindade e
aos grupos de capoeira que eles coordenam: Grupo de Capoeira Angola NGolo
(GCAN) e Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP), bem como a seus
integrantes, que me acolheram e que contriburam com suas experincias e
ensinamentos.
Aos professores que me orientaram, diretamente, Jlio Cesar Valado Diniz,
na PUC Rio de Janeiro, e Carlos Eugnio Lbano Soares, na UFBA Salvador.
queles que contriburam para a elaborao deste trabalho, principalmente
aos integrantes do Departamento de Letras da PUC Rio, a meus colegas de curso
e, tambm, ao pessoal da Secretaria.
Ao Instituto Jair Moura e a Frederico Jos Abreu, pela ateno e pela
disponibilidade no auxlio pesquisa sobre capoeira.
A meus irmos e irms, que estiveram e sempre estaro comigo na
caminhada, especialmente, a Mnica, a Ludmilla, a Barbara, a Paulo Fred
E s minhas gmeas Viviane e Evelyn.
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Resumo
Reis, Leonardo Abreu; Diniz, Jlio Csar Vallado. Cantos de
capoeira: fonogramas e etnografias no dilogo da tradio. Rio de
Janeiro, 2009. 274 p. Tese de Doutorado Departamento de Literatura, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
A presente tese estuda os cantos que se tornaram tradicionais para o
universo da capoeira. Analisa suas relaes com as transformaes sociais do
Brasil, ocorridas nos incio do sculo XX e seu processo de registro por parte da
etnografia e da indstria fonogrfica. Apresenta o processo de aceitao e
adaptao da capoeira diante dos poderes polticos e ideolgicos da sociedade
brasileira em construo e sua relao com as diferentes esferas da sociedade.
Prope a anlise das cantigas como elemento de um discurso da capoeira para si,
para as comunidades onde ela floresce e para a sociedade em geral, diante de
processos histricos globais e especficos.
Palavras-chave
Capoeira, poesia popular, cantos, tradio, indstria cultural.
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Abstract
Reis, Leonardo Abreu; Diniz, Jlio Csar Vallado. Capoeira songs:
phonologies and ethnografies in traditional dialogue. Rio de Janeiro,
2009. 274 p. PhD Dissertation Departamento de Literatura, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
The present thesis studies the songs that became traditional in the capoeira
universe. It analyses their relations to social transformations in Brazil, occurring
in the beginning of the 20th
century, and their recording process by ethnography
and the recording industry. It presents the process of acceptance and adaptation of
capoeira in the face of the construction of political and ideological powers of
Brazilian society and their relation to the different societal spheres. It proposes an
analyses of the songs as an element of a discourse of capoeira for itself, for the
communities where it flourishes, and for society in general, in the face of
historical, global and specific processes.
Key-words
Capoeira, popular poetry, songs, tradition, industrial culture.
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Sumrio
1 Introduo 10
2 Capoeira, capoeiras 16
3 A capoeira em roda 52
4 Fonogramas e etnografias dos cantos da capoeira 85
5 Coletnea de cantos da capoeira 125
5.1 Interjeies 131
5.2 Ladainhas 133
5.3 Louvaes 155
5.4 Corridos 168
6 Ecos poticos dos cantos da capoeira 198
7 Consideraes finais 248
8 Referncias bibliogrficas 251
9 Glossrio 269
10 ndice remissivo 271
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Lista de imagens
Figura 1 Dicionrio de Raphael Bleuteau, fragmento 20
Figura 2 Negroes Fighting Brasilis 29
Figura 3 The battle between Crib and Molineaux 33
Figura 4 Jogar capoeira ou dana de guerra 35
Figura 5 San Salvador 37
Figura 6 Dana dos negros 39
Figura 7 Negros que vo levar aoutes 40
Figura 8 The Sabbath among Slaves 43
Figura 9 Carto de visitas de James Figg 46
Figura 10 Curso de Capoeira Regional 107
Figura 11 Capoeira Documentos folclricos brasileiros 110
Figura 12 Berimbaus da Bahia 114
Figura 13 Elep Camafeu de Oxssi 114
Figura 14 Capoeira angola, mestre Pastinha e sua academia 123
Figura 15 Cadernos de cultura, n 1, fragmento 128
Figuras 16 e 17 A market stall 207-208
Figuras 18 e 19 Ilustraes de Debret 210-211
Figura 20 O vendedor ambulante 212
Figura 21 Peleja de Riacho com o Diabo 227
Figura 22 Vladimir Lenin 228
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Introduo
A histria do que fiz, s eu sei ser contador.
Mestre Moraes
Pedro Moraes Trindade mestre de capoeira desde que chegou ao Rio de
Janeiro, no incio da dcada de 1970, egresso de Salvador. No ano de 2008,
conquistou o titulo de mestre em Histria pela Universidade Federal da Bahia e
caminha para o doutorado. Parece validar com sua ao o prprio dito que nos
serve de epgrafe. Repete, assim, com sofisticao, o gesto de seu ancestral na
capoeira, o mestre Pastinha, um dos primeiros a expressar pela escrita suas vises
e seus conhecimentos sobre a capoeira.
Mestre Pastinha capturou com palavras os seus prprios sentimentos, de
forma que, por eles, a capoeira se revelasse um pouquinho. Por esse gesto, travou
um dilogo com a elite pensante do Brasil, falou ao lado dos intelectuais que
integraram o movimento folclrico na dcada de 1940 e com diversos outros
autores, entre eles Jorge Amado. Pastinha se colocou como mestre na roda da
escrita com esmero na caligrafia. Assumiu a voz da capoeira diante dos
intelectuais que a dissecavam em busca de contribuies para a construo de um
ideal de brasilidade. Era mais um campo de batalha que se abria aos velhos
mestres e, nesse caminho, Pastinha tambm foi seguido por mestre Noronha. A
capoeira exige e os mestres no faltam ao dever. Hoje a capoeira exige mais, e o
modelo a ser seguido tem passagem pelas universidades. Os antigos mestres
recebem seguidos ttulos de doutores honoris causa indicando que as portas da
academia esto abertas aos seus conhecimentos e, cada vez mais, praticantes e no
praticantes levam a capoeira em sua jornada acadmica.
Juca Ferreira, o secretrio da Cultura do ministro Gilberto Gil, em 2006,
durante um encontro preparatrio para a consagrao da capoeira como bem
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imaterial brasileiro, destacou que o ttulo de doutor comumente utilizado na
relao entre patro e empregado, na cultura popular. a distino de uma elite.
Doutor o advogado, o poltico, o mdico, o bacharel. aquele que possui o anel,
indicativo de um saber acadmico, quem o exibe no dedo. Sbio distante das
coisas do povo e insensvel aos sentimentos humanos. Como demonstram os
versos de Catulo da Paixo Cearense.
Qual seria o anel do poeta
Se o poeta fosse doutor?
Uma saudade brilhando
Na cravao de uma dor.1
Doutor um ttulo que o povo entoa com desdm e, jocosamente, diminui
sua importncia diante de outro, o de mestre. Este um igual, possui o
conhecimento prprio e til comunidade, o mestre de obras, o mestre de
bordo, o mestre cantador, o mestre de capoeira. Por esse mestre a voz do povo
entoa com respeito o ttulo e o capoeirista canta: Viva, meu mestre!
como consagrados mestres populares que Pastinha e Moraes so
obrigados a usar da prpria voz para dizer o que capoeira. Como capoeiristas,
gentilmente participam de um debate promovido entre outros, do sua
contribuio e tambm se apresentam. Levam o que s eles podem levar: a alma
do capoeirista. Contrapem o conhecimento racional ao intuitivo, ecoando os
valores de seus pares. Em seus manuscritos, mestre Pastinha claro:
[] se o capoeirista acreditar no raciocnio, ele v uma fora de recalque2, tem funo de escarecer3, d a liberdade de pensamento e a convico da verdade; para
o bem cumprir, pessisa4 ter conhecimento de como agem as foras por meio da
faculdade intuitiva (DECANIO, 1997, p. 73)
E mestre Moraes repete em suas falas: Capoeira sentimento.
Com essas palavras definem o que lhes parece mais importante e irredutvel
na capoeira. O que os olhos no veem e as palavras no conseguem definir.
Como algum pode falar do meu sentimento?! duvida, com espanto,
mestre Moraes. E lana o verbo nas suas ladainhas, utilizando-se da msica como
1 CEARENSE, Catulo da Paixo. Trova. Acessvel no endereo eletrnico:
http://recantodasletras.uol.com.br/trovas/1166969. 2 Motora, de impulso. 3 Esclarecer. 4 Precisa.
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veculo de seus pensamentos. J gravou cinco CDs e concorreu ao Grammy de
msica tradicional de 2004 com o CD Brincando na Roda.
Tive a honra de presenciar a gravao de seu ltimo trabalho graas bolsa
de doutorado sandwiche que o CNPq me concedeu, proporcionando-me um
convvio de seis meses com o mestre e seu grupo: o Grupo de Capoeira Angola
Pelourinho (GCAP). O disco foi gravado em duas horas de trabalho em um
estdio de Salvador, houve apenas um rpido ensaio e a gravao definitiva.
Realizao possvel graas ao entrosamento do grupo, fruto de uma convivncia
quase diria que ocorre em sua sede, dentro do forte Santo Antnio, localizado no
bairro de Santo Antnio Alm do Carmo, no centro histrico de Salvador. Foi
nesse trabalho que o mestre Moraes gravou a Ina, de onde extramos nossa
epgrafe.
A ina mandingueira
quando est no bebedor.
O caf s se separa
quando sai do coador.
A histria do que fiz
s eu sei ser contador.
Cuidado mulher solteira
com a lngua do falador.
Camaradinho5
Se acreditarmos que o caf citado pelo autor o prprio conhecimento, que
na capoeira sentimento, teremos a expresso de outro conceito importante, o de
ancestralidade. Fica dito que apenas por intermdio dos antigos mestres podemos
alcanar esse sentimento nos versos: o caf s se separa/ quando sai do coador.
Seguindo esse princpio, abro este trabalho citando meus mestres. Como
praticante, estou longe de poder falar em nome da capoeira, sou um aluno com
apenas oito anos de prtica e reconheo em mim as dificuldades para assimil-la.
Esta pesquisa movida pelo desejo de me aprofundar nesse conhecimento mais
do que em qualquer outra coisa. No me coloco, portanto, como porta-voz de meu
mestre nem de meu grupo; sou um praticante trazendo uma viso particular.
Tambm no acredito na possibilidade de assumir a iseno cientfica de um
discurso neutro. Minha fala estar na primeira pessoa do plural, no pela
neutralidade, mas pela presena de diferentes discursos que em mim se processam
5 TRINDADE, Pedro Moraes. Revista Praticando Capoeira Especial CD n 11. So Paulo, Editora
D+T. 2008.
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e que tento aqui colocar em palavras, conseguir algum controle sobre eles. Se por
um lado so fruto de uma vida acadmica multidisciplinar (graduao em
Comunicao Social, mestrado em Memria Social e, agora, doutorado em
Letras), por outro, so fruto de uma fidelidade a uma escola de capoeira que tem
no GCAP seu grande representante. Todos os meus mestres um dia pertenceram a
esse grupo (mestre Jos Carlos, um de seus fundadores, no Rio de Janeiro, e
mestre Carlo, meu primeiro professor de capoeira, em Niteri). Por conta disso
sou impregnado por essa forma de viver a capoeira que percebo ser uma forma de
pensar o mundo com paradigmas muito importantes, normalmente apartados do
pensamento de tradio colonial. Sobre esses paradigmas procuro formular meu
texto, buscando uma escrita capaz de articular um discurso coerente entre forma e
contedo. Procurarei confiar na capoeira, como meus mestres me ensinaram.
O presente trabalho possui o intento de falar sobre msica. Expresso
humana associada intimamente aos sentimentos. Veculo capaz de transmitir
tristeza e alegria, de provocar paixes; que est a servio dos enamorados, das
naes, das religies. Expresso coletiva que se individualiza, expresso particular
que se compartilha.
Escrevemos sobre a msica da capoeira, uma arte definida por seus mestres
como sentimento. Portanto, sentimento se multiplica no nosso objeto de estudo. A
tarefa parece mais apropriada a um poeta que a um acadmico, mas possui sua
histria no pensamento humano. Est no conceito de ethos da antropologia, no de
esprito do tempo, em histria, dissecado em vrios conceitos psicolgicos e
no estudo da esttica, em arte. Formas de sistematizar os sentimentos dos outros
assim transformados em objetos de estudos. Entretanto, como objeto de estudos a
capoeira no se entrega facilmente nem para seus prprios praticantes. A estes ela
exige a alma, pois se expressa na totalidade dos corpos: nos gestos, na voz, nos
pensamentos e no indefinvel que une tudo isso e que a prpria capoeira.
Falaremos sobre as msicas, que so inmeras e sempre se renovam.
Seguiremos o conceito de ancestralidade para definir os limites de nosso campo
de estudos. Isto porque percebemos na msicas mais recentes um esforo em
seguir os mestres do passado. Temas, palavras e versos so reapresentados e
rearranjados constantemente nas novas composies como na ladainha Ina que
apresentamos, adaptada por mestre Moraes. Nela, os versos a ina
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mandingueira/ quando est no bebedor e cuidado mulher solteira/ com a lngua
do falador so reconhecidamente tradicionais. O que define essa
tradicionalidade? Em ensaio scio-etnogrfico sobre capoeira angola o
pesquisador baiano Waldeloir Rego deixa claro o perigo de tal definio.
No se pode estabelecer um marco divisrio entre cantigas de capoeira antigas e
atuais, embora alguns capoeiristas tentem faz-lo. Mas se se examinar essa
distino, verifica-se que no procede, uma vez que muitas das cantigas
consideradas atuais so quadras antiqussimas, que remontam aos primrdios da
colonizao, as quais relatam passagens da Donzela Teodora, Decamero, cenas da
vida patriarcal brasileira e motivos outros. Tambm as cantigas que eles
classificam de antigas, em sua maior parte, no o so. Em realidade so quadras de
desafios cujos autores viveram at bem pouco; cantigas de roda infantil e samba de
roda. Portanto por demais perigoso se tentar distinguir cantiga de capoeira antiga
da atual e, de um modo geral, cantiga de capoeira propriamente dita e cantiga de
procedncia outra, cantada no jogo de capoeira. (REGO, 1968, p. 89)
Era o ano de 1968; esse texto foi muito lido entre os capoeiristas e ajudou a
definir o que hoje se reconhece por tradicional. Seguiremos seus passos e
assumiremos as msicas ali registradas como os limites de nosso trabalho.
Acrescentaremos tambm algumas que aparecem em registros fonogrficos do
perodo imediatamente anterior, nos primeiros discos de capoeira gravados e que
hoje so referncia para os adeptos dessa arte; so os discos dos mestres Bimba,
Pastinha, Trara e Cobrinha Verde. Todos os cantos reunidos neste trabalho esto
transcritos no captulo Coletnea de cantos da capoeira; a histria e os
detalhamentos desse material sero apresentados no captulo Fonogramas e
etnografias dos cantos da capoeira. Antes, porm, apresentaremos um pouco da
histria da capoeira a partir da extensa bibliografia. No captulo Capoeira,
capoeiras sero esclarecidas algumas das metamorfoses e das definies que vm
sendo atribudas capoeira ao longo dos anos. Essas definies e significaes
sero importantes para compreendermos algumas das falas e das aes dos antigos
mestres. No captulo A capoeira em roda abordamos a histria da capoeira
relativa ao cancioneiro que iremos estudar, essencialmente baiano, como a
capoeira da atualidade nos indica.
Em nossa anlise buscamos um vislumbre da capoeira como foi
experimentada e imaginada por alguns de seus mais antigos e importantes
representantes. Esse vislumbre ser o filtro com que procuraremos analisar as
msicas por eles selecionadas para compor o discurso da capoeira registrado em
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suas gravaes. No captulo Ecos poticos dos cantos da capoeira traamos um
perfil de alguns de seus cantos, fazendo referncia ao amplo universo de
influncias que pairam sobre eles. Procuramos, na apresentao de nosso
cancioneiro, articular esse discurso multifacetado, que hoje forma importante
paradigma com que os capoeiristas procuram se orientar no desenvolvimento de
sua arte. Nele trazemos muito da experincia dos praticantes em particular e no
coletivo para falar das formas como os diferentes discursos (a palavra falada, a
escrita e a cantada, os gestos e os rituais) se articulam num todo coerente ao seu
modo.
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Capoeira, capoeiras
Contar suas prprias histrias faz parte da capoeira, bem como de todo o
legado afro-descendente. a principal forma de transmisso do conhecimento
dentro das sociedades da oralidade. Por intermdio desse costume fixam-se os
elos com a ancestralidade. Os personagens dessas narrativas operam entre a
mitologia e a histria. Articulam-se assumindo suas mltiplas personalidades.
Trafegam entre espaos distintos sem se fixar absolutamente em nenhum deles.
Esto como os vivos. Enfrentam o presente com a mesma necessidade de
adaptao, mantendo sua identidade presa a um corpo etreo. So os fantasmas,
espritos, eguns que convivem com os homens; to presentes que provocam pavor.
Os mestres de capoeira frequentemente a associam ao culto dos ancestrais,
ao mesmo tempo em que atestam o seu carter laico. Nesse cenrio,
ancestralidade e historicidade articulam-se de forma interreferencial entre o culto
(religioso) e o culto (cientfico) (JUNIOR, 2004). Na tentativa de construir uma
regulamentao como confessam Castro Jnior (2004, p. 144) e outros
pesquisadores cada um desses discursos reconhece no outro uma fonte de
autoridade, e correm, cada um por sua via, na busca pela unificao, pela
possibilidade de validao comum de ambos os conhecimentos. O ideal do mestre
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doutor6 no deixa de ser uma representao do caminho trilhado pela capoeira
tratada aqui em sua entidade na busca pela insero nas mais altas esferas do
conhecimento da sociedade com a qual ela se relaciona. Espao onde a
universidade resplandece como um de seus monumentos mais visveis.
Representativo desse jogo entre conhecimento (cientfico) e ancestralidade
est o tema da presena da capoeira no quilombo de Palmares. O maior smbolo
de resistncia da sociedade escravizada representado como um bero dos
ancestrais da capoeira, liderados pelo mitolgico personagem histrico, Zumbi
dos Palmares, que encarna esses atributos na fala potica e narrativa dos
capoeiristas de diversos perodos (ASSUNO, 1998). Tal relao, desabonada
pela falta de documentos e refutada pela historiografia, tornou-se indicadora da
capacidade que a capoeira tem de articular seus discursos, nas entrelinhas do texto
cientfico, sem contrap-lo. Assim, se inclusive alguns textos acadmicos
identificavam na capoeira a arma de libertao dos escravos contra seus senhores,7
sem maiores explicaes, os prprio capoeiristas passaram a expor tal relao em
outros nveis. Diz em ladainha mestre Moraes:
Zumbi nosso heri
Em Palmares foi senhor
Pela causa do homem negro
Foi ele quem mais lutou8
Se a historiografia e a prpria oralidade no se arriscam e at negam a
possibilidade de Zumbi ter sido praticante da capoeira e at mesmo heri da
liberdade,9 isso no impede o personagem de comungar entre os seus ancestrais.
Se no h provas que atestem a coisa visvel, a sensibilidade, a fidelidade a um
projeto ideolgico, a filiao tnica e a luta por uma causa comum no deixam de
confirmar o invisvel. O grande guerreiro e todos os escravos que representam a
6 Mestres doutores so Joo Grande e Joo Pequeno, honoris causa de diversas instituies de
pesquisa e ensino superior, pblicos e privados, no Brasil e no exterior. Mas a nova velha guarda
da capoeira tem trilhado cada vez mais o caminho acadmico, do bacharelado ao doutorado, caso
de mestre Moraes. 7 Como exemplo, citado por Vieira e Assuno, est a dissertao de mestrado de Letcia Victor de
Souza Reis (1993, p. 1). 8 Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP), CD Capoeira angola from Brazil, Salvador.
1994 USA. 9 A presena de escravos no quilombo dos Palmares, contando inclusive com um sistema de
captura similar ao do colonizador, um tema prprio histria mas no cabe na construo dos
mitos. Sobre esse tema ver MARTINS, Jos de Souza. 2007. O branco da conscincia negra. In
FRY, Peter, et al. (org.). Divises Perigosas, polticas raciais no Brasil contemporneo. Rio de
Janeiro, Record.
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resistncia so incorporados mitologia da capoeira sem que sua presena entre
em conflito com a histria.10
Para a cincia histrica o documento a fonte principal de reconstituio do
passado. a palavra escrita, principalmente elaborada como representao e
organizao explcitas do real, que ir fornecer os dados inevitveis ao seu
discurso. De tal forma, temos nos registros policiais e nos anncios de jornal os
primeiros referentes histricos da capoeira. Documentos que foram produzidos na
nsia dos senhores em capturar seus escravos e na premncia da ordem pblica
em assegurar seus limites. Representam o desejo branco de aprisionar os negros
em seus conceitos pouco elaborados e bastante prticos. Neles, a capoeira
palavra de confronto, ao contrria aos interesses do senhor, perigosa,
representativa de um risco a ser debelado. Entretanto, a capoeira precisa antes ser
definida, pois a indefinio no possibilita uma ao precisa. nesse intento que a
voz do senhor batiza a capoeira. Em terras brasileiras seu significado vincula-se s
atividades perigosas praticadas por escravos insubordinados ao sistema que lhes
afligia, pelo menos, desde o final do sculo XVIII. Nesse perodo a prtica parece
estar bem definida e denominar atividades especficas, reconhecveis pelo corpo
policial e pela imprensa. Aparece no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, do ano
de 1789, a notcia da priso do mulato Ado, escravo de Manoel Cardoso Fontes,
por estar praticando a capoeira junto a outros desordeiros (CAVALCANTI,
2004). Que exerccios estariam eles praticando?
At quando o Marqus de Pombal expulsou os jesutas de Portugal e sua
colnias (21 de julho de 1759) e acabou com a prtica herdada desses religiosos
de se falarem verses atualizadas das lnguas nativas (1758), alm do portugus,
espalhava-se oficialmente o nheengatu e a lngua geral paulista, lnguas de origem
jesutica, adaptadas das lnguas tupi e guarani.
Tanto no portugus quanto nas lnguas indgenas, a palavra capoeira
encontrava seus correspondentes. Data de 1577, o primeiro registro do termo que
pudemos encontrar. Seu escriba o padre jesuta Ferno Cardim, autor de poucos
mas importantes registros sobre as terras do Brasil. Est no texto Do clima e da
Terra do Brasil: Ao lomgo de huma rossa que Frco. Frz., feitor da dita casa tem
10 Acompanhar as formas como esses personagens trafegam na histria da capoeira revelador
quanto aos embates travados nos ltimos anos entre diferentes capoeiristas e pesquisadores. Para
tanto, ver ASSUNO, 1999.
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derrubado, saindo as capoeiras que foram de Anto. Frz..11 Aqui evidencia-se uma
referncia a um espao e no a uma prtica, personagem ou objeto.
Segundo Waldeloir Rego, na segunda metade do sculo XIX, o debate
girava em torno do significado especfico da palavra em sua derivao do tupi. No
captulo segundo de seu ensaio scio etnogrfico, dedicado anlise do termo, o
pesquisador nos conta que Jos de Alencar, nos romances Iracema (1865) 12
e O
Gacho (1870), deu incio a uma polmica entre os intelectuais Antnio Joaquim
de Macedo Soares e Henrique de Beaurepaire Rohan. Resumido o debate, vamos
concluso.
Atualmente so quase unnimes os tupinlogos em aceitarem o timo ca, mato,
floresta virgem, mais pura, pretrito nominal que quer dizer o que foi, o que no
existe mais, timo este proposto em 1880 por Macedo Soares. Portanto, pensando
assim, esto Rodolfo Garcia, Stradelli, Teodoro Sampaio, Tastevin e Friederici
que, alm de reconhecer um mesmo timo para tupi e para lngua geral, define
como Stellen und Streken ehemaligen Urwaldes, die Wieder mit Jungholz-Neuwuchs besidelt sind. Afora Montoya que em 1640 props, cocera, chacara vieja dexada ya, Beaurepaire Rohan props, em 1879 a forma co-puera, roa velha. Em nossos dias, pensa assim Frederico Edelweiss que, em nota ao livro de
Teodoro Sampaio, O Tupi na Geografia Nacional, refutou o timo corrente, para
dizer que essa opinio errnea muito espalhada. Capueira vem de kopuera roa abandonada da qual o mato j tomou conta. A troca do o para a deve-se a
influncia da palavra mais corrente k, mato. Entretanto, o ndio nunca chamaria
ao mato novo de antigo roado ka-pera mato extinto, quando a capoeira , na verdade, um mato renascido. (REGO, 1968, p. 21 e 22)
Se na colnia o termo encontra seu campo de significados ligados s
prticas de ocupao indgena do solo, diferentes eram os significados do timo
nos falares da metrpole. Waldeloir Rego encontra no primeiro dicionrio da
lngua portuguesa de Raphael Bleuteau, datado de 171213
(Figura 1), uma
definio j consolidada, diferente da interpretao jesutica das falas indgenas.
Nele, a palavra define os cestos de carregar galinhas, porm, quando empregada
11 Anais da Biblioteca Nacional, Volume LXXXII. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1962, p.
62. 12 Eles caminharam par a par, como dois jovens cervos que ao por-do-sol atravessam a capoeira recolhendo ao aprisco de onde lhes traz a brisa um faro suspeito. (ALENCAR, 2006, p. 70). Na nota de rodap XLII encontramos a definio dada pelo autor: corruptela de caa-apuam-era, que significa ilha de mato j cortado uma vez (ALENCAR, 1006, p. 70). 13 Waldeloir Rego, ainda cita um texto de 1614, Peregrinao, de Fernan Mendes Pinto, onde se
l: O Capito q a este tepo estava no conves deitado encima de hua capoeyra. Aqui, muito provavelmente correspondendo aos cestos de capes levados pelos navios (in REGO, 1968, p. 23).
Aparece ainda em 1813 no Diccionrio da Lngua Portuguesa, de Antonio Moraes Silva (SILVA,
1813, p. 343 apud REGO, 1968, p. 17).
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com terminao prpria s palavras masculinas, define o indivduo que rouba o
contedo de tais cestos:
Figura 1 Dicionrio de Raphael Bleuteau, fragmento.14
Em ambas as tradues do termo capoeira, seja na sua origem guarani, seja
na sua origem portuguesa, encontramos definies para as prticas do mulato
Ado e seus comparsas na tica daqueles que assim a denominavam. Porm, em
nenhuma est claro qualquer dos significados consolidados no sculo XIX para
14 Edio fac-similar do dicionrio de Raphael Bleuteau, verbetes Capoeiro e Capoeira, 1712, p. 129.
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definir os exerccios de agilidade e as artes prprias do indivduo que nesse
perodo ser conhecido como capoeira.
Pela derivao indgena, os atributos que definem um indivduo como
capoeira esto relacionados ao mato, principalmente aquele que cresceu sobre as
abandonadas atividades agrcolas do homem. Podemos, por esta, aproxim-lo de
marginal, pertencente aos arrabaldes, aquele que habita as capoeiras, terrenos
onde a civilizao apenas passou, mas ainda no grassou se fixar.
O medo provocado pelos habitantes da terra e os negros rebelados foi
grande desde o incio da colonizao, e cresceu com a expanso das cidades e
suas fronteiras. Em abril de 1597 o jesuta Pero Rodrigues dizia ter os
portugueses moradores nestas partes, trs gneros de inimigos por mar e por
terra,
[] Os primeiros inimigos so os negros de Guin levantados que esto em algumas serras, donde vm a fazer [assaltos] e dar algum trabalho, e pode vir
tempo em que se atrevam a cometer e destruir as fazendas, como fazem seus
parentes na ilha de So Tom. (apud MAIA, 1997)
O jesuta ainda indicava como inimigos, em segundo lugar, os gentios por
extremo brbaros e os terceiros inimigos so os franceses.15
Tambm Afonso de Taunay, falando sobre a cidade de So Paulo escreve:
O termo de 24 de novembro de 1635 refere-se com excepcional veemncia s
tropelias dos ndios e negros, gentio da terra e de Guin, pelas estradas da vila e
seu termo (MOURA, 1988).
Durante os primeiros anos de colonizao do novo mundo, os jesutas foram
os responsveis por civilizar os selvagens ncolas. Apesar da facilidade inicial
com que os catequizados aceitavam a f crist, segundo seus catequizadores, era-
lhes difcil manter a constncia. Tais dificuldades foram resumidas pelo padre
Antnio Vieira na clebre metfora do mrmore e da murta, assim explicitada no
Sermo do Esprito Santo, de 1657.
H outras naes, pelo contrrio e estas so as do Brasil que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem
replicar, sem duvidar, sem resistir; mas so esttuas de murta que, em levantando a
mo e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam bruteza antiga
e natural, e a ser mato como dantes eram. (apud CASTRO, 2002, p. 184)
15 Conforme citado em MAIA, 1997: manuscritos publicados nos Anais da Biblioteca Nacional,
vol. 20, 1898, p. 255; citado por Flvio Gomes e Roquinal Ferreira em O milagre da
miscigenao, p. 4.
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Eduardo Viveiros de Castro (2002), parte desse texto para analisar o tema
da inconstncia da alma selvagem, revelando os mecanismos prprios da
resistncia desses povos s ambies civilizatrias dos colonizadores. A
dificuldade jesutica pode ser resumida na incapacidade de encontrar um sistema
de governo e de crenas religiosas centralizados a permitir uma superposio do
deus e do rei cristo. Segundo o autor a dificuldade dos jesutas era cultural, e
para esses padres, se resumia na ausncia de cultura, pr requisito para que a sua
pudesse ser assentada. Para os colonizadores europeus tudo o que se via eram
maus costumes, estes sim, os verdadeiros impedimentos para o desenvolvimento
de sua f e de sua moral. Entre os ndios, Eduardo Viveiros de Castro destaca o
sistema de vingana, motor do ritual antropofgico regado pelo hbito de
consumir cauim.
Como possvel caminho para a converso civilizao estava a educao
das crianas indgenas dentro dos novos moldes. O padre Manuel da Nbrega, em
1553, j definia tal estratgia: y que vivamos com ellos y les criemos los dea
pequeos en doctrina y buenos costumbre (apud CASTRO, 2002, p. 189).
Se a metfora do reino vegetal se destinou quase sempre aos negros da terra,
como eram chamados os ndios, a metfora do reino animal perece ter se
propagado para os negros da frica como nos diz Eduardo Viveiros de Castro: A
antropologia racialista de Gilberto Freyre reservou ao contraste entre o vigor
animal dos africanos e a preguia vegetal dos amerndios um papel de destaque
(CASTRO, 2002, p. 187). Fica porm marcada a ideia de selvagem, arredio,
inculto, incivilizado, sobre os quais o cristianismo deveria avanar, por misso.
Comparado ao empenho jesutico na converso da alma indgena, pouco se fez
nesse perodo inicial, para a converso do escravo africano, principal motor da
economia da colnia. O que no significa que os sacerdotes no procurassem
exercer sobre estes a catequese. O caso de Zumbi retoma o mesmo paradigma de
educao dos povos selvagens. O grande heri do movimento negro do final do
sculo XX teve a vida marcada pelo sequestro de sua infncia, em 1655, na
primeira expedio voltada para o extermnio do Quilombo da Serra da Barriga.
Levado de sua gente por Brs da Rocha Cardoso, com aproximadamente 6 anos
de idade, foi entregue ao padre Antnio Melo que o batizou Francisco. Com o
clrigo aprendeu portugus e latim. Educado na f crist, chegou a auxiliar nos
servios religiosos como coroinha. Porm, aos quinze anos, logrou fugir ao
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encontro das suas origens no Quilombo dos Palmares. Confirmavam-se as
dificuldades dos evangelizadores. Incapazes de tornar indelveis as marcas da f
crist e da civilizao, pois a matria sobre a qual trabalhavam no era como o
nobre mrmore das esttuas gregas, mas brbaros, se assemelhavam murta, de
onde em curto tempo brotavam os ramos de sua origem selvagem.
Vrias referncias do sculo XIX atestam o vnculo do termo capoeira com
a ideia de marginalidade, beira da sociedade. Espao liminar que naquele
momento se configurava em torno das cidades emergentes. Localizamos a a
relao do termo com o perifrico, o que se encontra fora dos limites da
civilizao, o que vive no mato, nos arrabaldes. Muito facilmente vinculado com
as populaes negras, sejam as da terra, os ndios, ou as da Guin, trazidos pelo
trfico de Angola e outros portos da frica. Macedo Soares, escrevendo em 1888,
declara a relao estabelecida pelo termo com o escravo fugido, acoitado nas
matas.
Do negro que fugia dizia-se e diz-se ainda: Foi para a capoeira; caiu na capoeira, meteu-se na capoeira. E no s do negro, mas tambm do recruta e do desertor do exrcito e da armada, que procurava fugir das autoridades policiais empenhadas em
agarr-los. E diz-se tambm do gado que foge do campo. Um capoeira no seria sinnimo de negro fugido, canhambora, quilombola? Este, para se defender precisava atacar; e s vezes inculcava apenas mais malvadez do que tinha. Negro fugido, canhambora, quilombola, ainda hoje so sinnimos de ente perigoso, faquista-assassino, e, ao mesmo tempo, vivo, esperto, ligeiro, corredor, destro em
evitar que os outros o peguem, capoeira enfim. (apud CARNEIRO, 1975)
Muniz Sodr repete a mesma ladainha:
Fujo, quilombola, capoeira, so eptetos recorrentes para o negro na histria do Brasil. Dizia-se escravo fugido: caiu na capoeira. E subtendia-se: era rpido, faquista, mandingueiro, rebelde, resistente, enfim. (SODR, 1983, p. 205)
Tambm Ernani Silva Bruno no texto de Histrias e Tradies da cidade de
So Paulo, volume II, 1828-1872 (1984), fala da pertena negra a esse espao
liminar, cuja proximidade incitava pavores e crticas.
As capoeiras e os capinzais que haviam em trno do Tanque Reno, no Bexiga,
como em outros pontos da baixada em que corriam o Anhangaba e o riacho
Saracura, serviam sempre de esconderijo onde se aquilombavam negros cativos e
desordeiros.16 (apud MAIA, 1997)
16 Citando requerimento de 1831.
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Tais personagens ocupavam o imaginrio europeu a tempos longnquos,
eram os povos que viviam ameaando os limites dos reinos esclarecidos. Povos de
lnguas boais que pouco esboavam o b-a-b e que, por isso, eram conhecidos
como brbaros. Povos sobre os quais receia a misso do cristianismo, por sobre os
quais avanariam com sua f. Essa uma leitura possvel para definir aqueles que
habitavam as cercanias das ilhas de civilizao criadas no Novo Mundo e por isso
se faz apropriada a transferncia do nome de uma rea quase ocupada mas quase
esquecida, uma rea que, se no cultivada recuperava suas caractersticas
selvagens. Interpretaes promovendo a origem indgena do termo capoeira so
perfeitamente compreensveis e tm sido apresentadas com grande regularidade,
principalmente quando, no sculo XX, a capoeira despontava como forte presena
nas tradies folclricas do Brasil, entendidas sempre como sobrevivncias de
uma sociedade rural em um pas em processo de modernizao cujo modelo de
desenvolvimento era baseado no fortalecimento dos centros urbanos aos quais a
periferia rural deveria servir.17
J, no bom portugus de linhagem ibrica, capoeiro era mesmo o ladro, o
desordeiro. Os cestos de carregar galinhas ainda ganhariam outros significados
que se vinculam ideia de marginalidade e, com o tempo, diversos caminhos
foram traados para explicar a relao entre tais cestos e os indivduos conhecidos
pela alcunha de capoeiras.
No dicionrio de Raphael Bleuteau, capoeira tambm um termo militar
que designa fortificao, espcie de fosso ou armadilha (segundo a traduo de
Waldeloir Rego, 1968, p. 27).18
Mais tarde, em 1757, encontramos pelas
pesquisas de Valdemar de Oliveira, um documento onde a palavra designa uma
gaiola grande, priso para ladres, assassinos e outros malfeitores semelhantes.
(OLIVEIRA, 1971, p. 57) Desta forma, o cesto depositrio de cobiada
mercadoria, passa a designar o destino daqueles que, contrrios a ordem pblica,
atentavam contra o direito de propriedade ou praticavam outros crimes contra a
sociedade. Os pequenos galinheiros emprestaram seu sentido priso para ladres
17 Nessas narrativas sobre a origem do termo capoeira o universo rural e arcaico enfatizado. Ela
era a luta com que os escravos defendiam seu espao margem da sociedade, nos quilombos, e
ameaavam a ordem pblica nas cercanias das cidades e fazendas. Era praticada tambm nas
senzalas, sob os olhos do senhor, iludido por seus movimentos de dana. 18 O termo tambm aparece no dicionrio de lngua portuguesa de Antonio de Moraes Silva em
1813 (conforme REGO, 1968, p. 17), mas no sabemos precisar quais significados lhe so
atribudos.
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de galinha. O cesto para capes vira o crcere para capoeiros. Tal crueza de
significados foi bastante amenizado no incio do sculo XX, seguindo um
movimento que culminou com a aceitao social desse indivduo.
O mais antigo eufemismo encontrado para explicar a relao entre o cesto-
priso e o ladro de galinhas vem do nobre fillogo Beaurepaire Rohan, no
dicionrio de vocbulos brasileiros de 1889. Segundo a transcrio de Wadeloir
Rego, assim pondera o Visconde:
Como o exerccio da capoeira, entre dois indivduos que se batem por mero
divertimento, se parece um tanto com a briga de galos, no duvido que este
vocbulo tenha sua origem em Capo, do mesmo modo que damos em portugus o
nome de capoeira a qualquer espcie de cesto em que se metem galinhas. (apud
REGO, 1968, p. 24)
Outras metforas tentaram relacionar o tema do cesto com a mata,
aproveitando para isso a existncia de uma ave com o mesmo nome,
Odontophorus capuera. Antnio Joaquim de Macedo Soares, props uma singela
relao entre o assovio da ave e os moleques ou escravos que assim procediam
para se comunicar e chamar o gado. Est em seu Dicionrio Brasileiro de Lngua
Portuguesa,19
produto tpico do final do sculo XIX e incio do XX, como
podemos conferir nos inmeros dicionrios de falares brasileiros e regionais
citados entre as notas de nmero 71 95 do livro de Waldeloir Rgo. Nestes, o
termo apresenta as trs definies principais, a de origem indgena a de origem
portuguesa e a que tomou forma no Novo Mundo, brasileirismo claramente
definido por Alberto Bessa em A Gria Portuguesa Esbo de um dicionrio de
calo contendo uma longa cpia dos trmos e frases empregados na linguagem
popular de Portugal e do Brasil, com as respectivas significaes colhidas na
tradio oral e em documentos, livros e jornais antigos e modernos, incluindo
muitas palavras ainda no citadas como de gria em dicionrio algum, de 1901
(REGO, 1968, p. 26 [nota 89]), onde encontramos uma descrio clara: jgo de
mos, ps e cabea, praticado por vadios de baixa esfera (gatuno). (REGO, 1968,
p. 26)
Qual ser ento a maneira de compreender a fixao do significado
brasileiro do termo capoeira, j no sculo XVIII, identificando uma forma
19 Como informa o subttulo da obra: Um elucidrio etimolgico crtico das palavras e frases que originrias do Brasil, ou aqui populares, se no encontram nos dicionrios da lngua portugusa ou
nles vm com forma ou significao diferente.
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especfica de ao social e seus atores que, durante todo o sculo XIX, se
confundir com o crime organizado, com aes de guerrilha urbana, atentados
vida e ordem pblica mas que chegar, ao seu trmino, identificada como uma
arte de defesa pessoal originria de uma populao escrava?
A quase totalidade dos registros sobre capoeira at o incio sculo XIX est
contida nos registros policiais ou nos pedidos pela ordem pblica. A situao no
se altera at meados do sculo XX, mas nesse perodo surgem registros mais
interessados que se tornam cada vez mais admirados e elogiosos. Esse movimento
acompanha uma definio do termo em torno das tcnicas marciais de origem
escrava. Se o primeiro olhar civilizado atenta somente para os perigos eminentes
representados pelo indivduo capoeira, um olhar mais cuidadoso procurar os
sinais que o identificam. Assim surgem os registros do universo cultural onde se
insere esse personagem. A preocupao policial identifica as aes sociais
potencialmente perigosas e os sinais diacrticos que definem o indivduo capoeira.
Estes ndices so os ajuntamentos de negros, indgenas ou da Guin, bem como o
porte de instrumentos musicais (tambores) que os promovessem, o porte de
objetos que pudessem servir como arma,20
as correrias, a prtica de exerccios de
agilidade, o uso de insgnias de grupos rivais como barretes e fitas coloridas, bem
como a destreza com os ps e a cabea, marcante no estilo marcial dos negros.
Exerccios de agilidade aparecem relacionados ao combate entre indivduos, mas
dizem respeito tambm aos exerccios acrobticos, como era hbito nas exibies
frente das procisses religiosas, e as demonstraes de coragem, como a
tradio de subir nas torres das igrejas para acordar a cidade badaladas.
Esses atos e costumes se fixaram como principais sinais para definir o
indivduo como capoeira. Mas na ao de combate, muitas vezes definida pela
palavra jogo, facilmente encontrada nos registros policiais, que est o elo de
ligao com os significados estabelecidos no sculo XIX. Encontramos uma lista
desses jogos, que por vezes envolvem armas (navalhas, pedras e cacos de
vidro), no livro de Paulo Coelho Arajo (1997, p. 119), transcrita do Cdice 403,
volume II, no Arquivo Nacional, do livro de Polcia: prises de 1817 a 1819.
20 Preocupaes constantes na vida das cidades brasileiras desde o perodo colonial, como
podemos notar nas transcries de Paulo Coelho Arajo (1997) em seu livro Abordagens scio
antropolgicas da luta/jogo da capoeira, p. 60, 65, 80, 81 e outras.
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Baseados nesses registros podemos acreditar que tais combates so reconhecidos
como prtica de capoeira e principalmente como jogo, j no incio daquele sculo.
Se, no Brasil, tais significados esto naturalizados nesse perodo e a palavra
capoeira empregada em diversos contextos perfeitamente compreensvel, para os
estrangeiros os elementos caractersticos provocam o estranhamento, acendem a
curiosidade e se tornam matria de interesse para seus relatos. A luta dos negros
recebe ateno desses viajantes que comeam a visitar o pas no sculo XIX, com
as expedies cientficas amparadas pela transferncia da corte portuguesa para o
Brasil. Ajuda-nos a compreender esses registros, principalmente iconogrficos, a
contextualizao de sua produo e divulgao. Ambos os lados dessa equao
so europeus, tanto os autores-artistas, que em suas viagens recolheram as
informaes para suas obras, quanto o pblico-consumidor para o qual essas obras
se destinavam.
O sculo XIX inicia com profundas mudanas na vida cultural brasileira
diante do mundo. O primeiro decreto do prncipe regente Dom Joo VI, quando
da transferncia da corte portuguesa para sua colnia, foi a abertura dos portos s
naes amigas, extinguindo o pacto colonial.21
Podemos dizer que se inaugura, no
ano de 1808, a poltica cultural no Brasil. Abrem-se as portas para os
conhecimentos sobre esse novo mundo, at ento explorado apenas
comercialmente por Portugal. Os retratos e paisagens produzidos concentram-se
no extico da natureza e, neles, os ndios figuram como principais personagens
humanos nesse ambiente. Os negros aparecem como parte do processo produtivo,
ligados aos centros de produo rural ou aos centros comerciais urbanos. As
imagens relacionadas com a capoeira aparecem vinculadas ao espao urbano e
apenas alguns comentrios nos remetem a sua existncia no ambiente das
senzalas. Podemos interpretar essa produo pictogrfica como um desvio de
funo, pois as expedies que por aqui passaram estavam voltados para o
conhecimento cientfico e no contemplavam as populaes envolvidas com a
produo e o comrcio. As cidades e os engenhos eram apenas rotas das jornadas
rumo Amrica selvagem. Mas o interesse artstico e cultural dos pintores que
acompanhavam tais expedies, promoveram a produo de imagens sobre o
21 Decreto assinado no dia 24 de janeiro de 1808, na mesma semana em que a Corte portuguesa
chegava Salvador, a caminho do Rio de Janeiro.
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cotidiano desses lugares. Havia tambm uma curiosidade europeia que, para alm
da curiosidade cientfica, estava ansiosa por conhecer os hbitos e os costumes
dos povos. Tais relatos eram percebidos como circunstanciais e recebiam o
tratamento tpico da imprensa; eram comercializados em livros, por uma indstria
que crescia a passos largos, principalmente com o desenvolvimento da litografia,
ocorrido no sculo XIX, que permitia a reproduo de desenhos em larga escala.
Um exemplo desses livros o Journal of a Voyage to Brazil, and Residence there
during the years 1821, 1822, 1823 de Maria Grahan, publicado em Londres, no
ano de 1824. Esse livro foi escrito como um dirio e conta com diversos desenhos
da autora, preceptora da Princesa do Brasil, D. Maria da Glria, entre os anos de
1823 e 1826. Seus desenhos mostram claro interesse e habilidade no retrato das
paisagens. Porm, trs pranchas de Augustos Earle tambm ilustram o livro, que
pela presena humana nos fazem supor uma certa insegurana da autora para esse
tipo de desenho. Na primeira, o mercado de escravos do Valongo no Rio de
Janeiro abre o livro, a segunda um mercado de escravos em Pernambuco e terceira
um retrato de Maria de Jesus, com uniforme militar e carregando uma arma, filha
de um fazendeiro de Cachoeira que participou de batalhas no Recncavo Baiano
para defender suas terras.
Augustos Earle foi um viajante independente22
que esteve no Brasil em
diversas oportunidades. Sua maior estadia foi entre os anos de 1821 e 1824,
perodo de sua convivncia com Maria Grahan. Registrou inmeras cenas do
cotidiano brasileiro e da escravido. Entre estas est aquela que consideramos o
primeiro registro iconogrfico das performances marciais negras em terras
brasileiras (Figura 2), tendo sido apresentada em diversas publicaes atuais:
revistas, ilustraes e capas de livros sobre capoeira.
22 Nas suas viagens ao Brasil, esteve vinculado apenas um expedio cientfica, a do HMS
Beagle, em 1831, que trazia a bordo o jovem naturalista Charles Darwin.
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Figura 2 Negroes Fighting Brasilis, de Augustos Earle.
Essa aquarela de Augustos Earle uma das imagens do perodo em que
esteve no Brasil que no foram selecionadas por Maria Grahan para o seu livro.
Como a maioria de suas imagens, tambm no obteve publicao e foi repousar
junto ao acervo do artista na National Library of Australia.23
Podemos dizer que
nesse perodo o Brasil estava sendo descoberto pelo mundo e inmeras eram as
publicaes, quase todas em tom jornalstico, apresentadas como dirio de
viagem, primando por informaes verdicas resultantes da experincia direta
desses viajantes. Muitas eram as imagens reproduzidas nessas publicaes, a
maioria voltada para a exuberncia da flora e a figura de seus habitantes naturais.
Seguiam o ideal cientfico de catalogar a natureza estimulado pela sistema de
Lineu e pelo mpeto de Humboldt,24
homens que representavam os ideais
iluministas desenvolvidos durante o sculo XVIII.
O carter catalogrfico das imagens sobre a fauna e a flora se estendeu
tambm para a descrio das cidade e seus habitantes. Planos gerais da paisagem
23 Acessvel pelo endereo eletrnico: http://nla.gov.au/nla.gov.au/nla.pic-an2822650. 24 Humboldt no consegui pesquisar no Brasil pois sua viagem, empreendida em 1804, esbarrou
nos impedimentos do pacto colonial, mas foi fundamental o seu estmulo expedio do prncipe
do Reno, Maximilian Wied, voltada para a botnica, a geografia e os ndios.
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urbana e seus principais logradouros, retratos isolados dos tipos humanos e dos
objetos de seu uso eram uma constante. Mas narrativas como caadas, festejos e
rituais antropofgicos indgenas, alm dos costumes das cidades coloniais
portuguesas, o trfico e a vida dos escravos tambm se fizeram presentes,
tornando-se material de interesse para um mercado consumidor em expanso.
Essas imagens procuravam sintetizar acontecimentos em uma narrativa artstica e
ao mesmo tempo jornalstica. Devemos olhar a pintura de Augustos Earle com
essa perspectiva.
Em Negroes Fighting Brasilis (Figura 2), a composio apresenta
claramente um cenrio habitado, ainda que perifrico. Sua localizao parece com
os fundos de uma casa, prximo das reas de servio, das habitaes negras, dos
depsitos. Seria a construo de onde um negro observa pela janela uma casa de
farinha ou um pequeno engenho? Dois grupos de personagens dividem a cena. Na
maior parte do quadro, no interior circunscrito por uma cerca, esto os
personagens principais. So os negros que lutam ao centro e os negros da
audincia direita. No canto esquerdo, invadindo o quadro, um guarda fardado,
representado no instante em que pula a cerca divisria, pouco antes da interrupo
do evento. O fardamento policial nos permite supor que estamos em um centro
urbano, seu gesto de invaso revela a existncia desse mundo ainda inexplorado
mas constantemente reprimido.
Irmanados pela cerca que pode muito bem representar a sua condio
escrava, os negros parecem compartilhar do momento. Assim como os
contentores, a assistncia demonstra um interesse especial pelo confronto. Um
homem parece abrir a janela para observar, assim como a mulher com a criana
no colo parece deter-se de suas atividades. Outro homem, sentado com a mo em
frente boca, parece mais envolvido com a luta. Seu gesto s vezes lembra o
espanto ou o susto de quem acompanha os movimentos com ateno, mas tambm
pode indicar a ao de quem interfere por meio da fala, narrando, orientando ou
simplesmente torcendo.
Tal sntese interpretativa demonstra que o viajante estava inteirado sobre
esses eventos. Provvel que tenha, inclusive, assistido a alguns desses
confrontos ou recebido informaes precisas sobre algumas de suas
caractersticas. Sua narrativa no reconstitui um evento, mas constri uma
reportagem sobre o tema.
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Observando o principal, os dois negros em fighting, podemos perceber
algumas caractersticas reconhecveis sobre uma tcnica marcial extica aos olhos
do pintor. Para percebermos as caractersticas singulares desta e de outras
representaes do sculo XIX que veremos a seguir, devemos reconhecer em que
categoria o viajante procurou inserir o seu relato e as representaes dessa
categoria em sua cartografia ntima.
Augustus Earle nasceu na Inglaterra em 1793, filho de pais americanos.
Estudou e exps na Royal Academy desde muito cedo, onde permaneceu at os 21
anos de idade, quando partiu para uma viagem pelo mediterrneo. Retornou a seu
pas dois anos depois e j, no ano seguinte, iniciou uma viajem ao redor do mundo
que durou at 1829. Esteve na Amrica do Norte entre 1818 e 1820, poca em que
viajou para o Rio de Janeiro. Visitou o Chile, o Per e retornou corte portuguesa
no mesmo ano. Nas pinturas de seu acervo, podemos notar um especial interesse
por tipos humanos e seus hbitos. Sua atuao est entre a do etngrafo e a do
jornalista. Bom exemplo disso o trabalho sobre a coroao de D.Pedro, uma
pequena aquarela retratando apenas o monarca, cujo ttulo Don Pedro as he
appeared on the day of his coronation at Rio de Janeiro, cuja nfase recai sobre
as vestes do imperador. Vrios so os exemplos de um olhar detido sobre os
personagens da cidade do Rio de Janeiro, onde Earle fixou residncia: um
sacerdote, um negro que dorme, Rita: beleza negra carioca, alm de cenas como
os negros lutando, o fandango dos negros, os jogos durante o carnaval, o mercado
do Valongo, a punio de escravos no Calabouo e a extrao de um bicho-de-
p.25
No relato iconogrfico aqui analisado, a narrativa principal recai sobre os
negros lutando. Esse o ttulo da tela. Podemos notar algumas caractersticas
25 As imagens citadas esto disponveis no acervo do autor na National Library off Austrlia no
seguinte endereo eletrnico: http://www.nla.gov.au/apps/picturescatalogue. So elas: Negro
fandango scene, Campo St. Anna, Rio de Janeiro [picture]/1 watercolour; 21 x 34 cm. Negroes fighting, Brazils [picture]/1 watercolour; 16.5 x 25.1 cm. Don Pedro as he appeared on the day of his coronation at Rio de Janeiro [picture]/1 watercolour; 15.5 x 11.2 cm. An ecclesiastic of Rio de Janeiro [picture]/1 watercolour; 31.1 x 17.8 cm. Extracting a jigger, scene in the Brazils [picture]/1 watercolour; 20.3 x 21 cm. A female soldier of South America [picture]/1 watercolour; 17.1 x 14.3 cm. Games during the carnival at Rio de Janeiro [picture]/1 watercolour; 21.6 x 34 cm. Punishing negroes at Cathabouco, [i.e. Calabouco] Rio de Janeiro
[picture]/1 watercolour; 23.6 x 26.3 cm. Rita, a celebrated black beauty at Rio de Janeiro [picture]/1 watercolour; 28.9 x 20 cm. A sleeping negro, Brazils [picture]/1 watercolour; 19.4 x 17.8 cm. A sleeping negro, Brazils [picture]/1 watercolour; 18.1 x 21.3 cm.
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nesse confronto que o diferem de outros exemplares de sua categoria, em especial
com o boxe ingls, com o qual Augustus Earle devia estar bem familiarizado
desde a infncia.
As lutas na Europa possuem uma tradio milenar cujos registros remontam
Ilada, de Homero, no canto XXIII, em que Aquiles prepara um ritual fnebre
para seu criado e amante Ptroclo. Diversos animais e homens so queimados
vivos antes do defunto celebrado ser cremado. Esse ritual encerrado por jogos
tradicionais, entre eles a luta com murros, a luta livre e uma luta de gldios (a
espada romana). Diversos so os registros escritos e iconogrficos dessas lutas no
mundo europeu, esto em paredes e objetos de uso dirio e de decorao por todo
o mundo greco-romano. Na Idade Mdia essas lutas passam a ser consideradas
brbaras, por serem muito difundidas entre a plebe, em oposio s artes
guerreiras cortess baseadas em exerccios militares e de caa.
Em toda a Europa, as lutas se difundiam no modo de vida das populaes,
eram praticadas como defesa pessoal, entretenimento ou jogo de apostas. Essas
ocorriam principalmente nas feiras, onde se reunia grande nmero de pessoas de
procedncias variadas. Grandes lutadores eram aougueiros e ferreiros dessas
feiras. O maior exemplo a Feira de Southwark, em Londres, cuja histria
atravessa os sculos de XV ao XIX. As lutas por apostas atraam grande nmero
de pessoas e contavam com o apoio da aristocracia inglesa, marcadamente nos
sculo XVI e XVII. Nomes como James Figg (1695-1734), John "Jack"
Broughton (1704-1789), Daniel Mendoza (1764 a 1836) e outros, lutaram,
organizaram lutas em que as apostas eram o ingrediente principal e ensinaram sua
tcnica em academias frequentadas por um pblico diversificado. As lutas eram
assunto central entre a juventude corintiana da Inglaterra aristocratas amantes do
esporte que assim se autodenominavam em lembrana da antiga cidade grega de
Korinths, famosa pelo luxo e pelos vcios de seus cidados.
Apesar das inmeras objees ao longo dos sculos, o pugilismo chegou ao
final do sculo XVIII como marca da identidade inglesa. Vrios comentaristas
falam da sua presena no dia-a-dia britnico, em que qualquer conflito instigava
poses de punhos cerrados rodeadas por fortuita audincia.
Grandes lutadores e grandes lutas eram personagens de comentrios,
pessoais e pblicos, eram notcia de jornal e nota literria. Registros iconogrficos
dialogavam com o imaginrio, informando-o e representando-o. Imagens eram
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avidamente consumidas por um grande pblico e sua produo se tornou um
negcio rentvel no sculo XIX. Exemplo disso foi a famosa batalha entre Cribb e
Molineux que escolhemos como imagem exemplar para nossa comparao pela
proximidade dos estilos empregados, que podemos localizar prximo do realismo
voltado para a reproduo grfica que grassava na Europa do sculo XIX.
Figura 3 The battle between Crib and Molineaux.
Essa imagem foi publicada em 3 de outubro de 1811,26
apenas 5 dias aps o
confronto, e foi reproduzida diversas vezes, inclusive como carto, provavelmente
utilizado em jogos infantis.27
26 Image Title: The battle between Crib [Cribb] and Molineaux. Published Date: 3 October 1811.
Depicted Date: 28 September 1811. Medium: Engravings Hand-colored. Specific Material Type: Prints. Item Physical Description: 1 print: 35.3 x 25.4 cm. Notes: Location: 6 A; Accession:
PR.X.256. Source: Print collection./ Sports and recreation. Location: Schomburg Center for
Research in Black Culture/ Photographs and Prints Division. Digital ID: 1240380. Record ID:
592695. Digital Item Published: 10-28-2005; updated 10-5-2007. 27 Conforme ocorria com as imagens de terras distantes citadas por Celeste Zenha (2002), vrias
outras imagens de lutadores circulavam no mercado editorial da poca, algumas em formato de
cartas de baralho, como as fotos do jogo infantil conhecido como Super Trunfo, muito comum nas
ltimas duas dcadas do sculo XX.
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Foram dois confrontos que valeram pelo ttulo ingls, defendido pelo ex-
estivador londrino Tom Cribb (1781-1848) desde 1809, contra o desafiante Tom
Molineux (1784-1818), nascido numa fazenda da Virgnia, que comeou sua
carreira em lutas entre escravos de plantaes vizinhas, arranjadas por seu senhor
Algernon Molineux que o libertou como prmio por uma de suas vitrias.
Antes de chegar em Londres, Tom Molineux trabalhou nas docas de Nova
York de onde saiu em busca de melhores lutas. Na Inglaterra, autoproclamou-se
campeo norte-americano de boxe, ttulo inexistente quela poca. Ganhou duas
lutas antes de conseguir desafiar o campeo ingls, Tom Cribb.28
de se imaginar
o apelo pblico desse evento que teve lugar no Copthall Common, de Londres, em
18 de dezembro de 1810. Tom Cribb venceu mas no convenceu e outra luta foi
arranjada para a cidade mercado de Wymondham, Thistleton Gap, Rutland. Essa
a clssica representao que ainda ganharia cantigas populares narrando os
acontecimentos do combate.
Comparando essa reportagem grfica sobre a grande luta de 1811 com o
registro iconogrfico de Augustos Earle sobre a capoeira no incio da dcada de
1920, vemos nas caractersticas do confronto as diferenas que mais nos
interessam e que parecem ter provocado a curiosidade europeia em outros tempos.
Em tudo ele se diferencia das figuras que representam o boxe e imaginamos a
forte carga extica aqui presente. Entre os boxers, os punhos cerrados, postos a
frente do rosto como proteo e os ps no cho, so a tnica das representaes.
J na luta dos negros temos mos abertas, braos em movimentos laterais, um p
erguido e at um chapu na mo de um dos combatentes. Detalhes captados pelo
olhar do viajante e transmitidos s figuras como representativos dessa
movimentao. Aqui, a caracterizao de um combate, ainda que extico,
permanecer clara atravs do ttulo Negroes fighting Brazilis e seu lugar na
sociedade, sob a represso do aparato policial, ser narrada pela composio.
28 Tom Cribb j havia lutado com outro ex-escravo norte-americano Bill Richmond em 1805,
quando ainda no era detentor do ttulo ingls. Foi o segundo homem enfrentado por Tom
Molineux em sua luta pelo ttulo. O outro homem era uma figura importante no boxe ingls, uma
espcie de treinador que poderia substituir seu pupilo na luta. Aparece em diversos registros
iconogrficos do perodo, atrs dos lutadores principais, gritando no ouvido destes e possivelmente
informado-os sobre o movimento das apostas. Curiosamente est ausente na litografia romntica
de Thodore Gericault.
Bill Richmond (1763-1829) foi o primeiro negro a ganhar fama no boxe ingls, inicialmente lutava
contra insultos em lutas de desagravo, organizadas ao modo tradicional, com apostas. Tornou-se
instrutor de boxe com academia prpria e ensinou tambm na Royal Tennis Court de Londres.
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Entre 1822 e 1825, encontramos outro reprter iconogrfico em visita ao
pas. Johann Moritz Rugendas, pintor alemo, que em 1827, j de volta
Europa, comea a publicao de seu livro ilustrado Viagem pitoresca ao Brasil,
em que narra a luta dos negros com as seguintes palavras.
Muito mais violento outro jogo guerreiro dos negros. Jogar capoeira, que consiste
em procurar se derrubar um ao outro com golpes com a cabea no peito, que se
evitam por meio de hbeis saltos de lado e paradas. Enquanto se lanam um contra
o outro, mais ou menos como bodes, s vezes as cabeas chocam-se terrivelmente.
Assim acontece no raro, que a brincadeira vira briga de verdade e que uma cabea
ou uma faca ensanguentadas fazem o fim do jogo. (RUGENDAS, 1940)
Tal descrio do jogo da capoeira demonstra claramente a ideia de uma
disputa guerreira, com objetivo de atingir o oponente com a cabea. Isso na
interpretao do viajante. Acompanhando seus comentrios est a ilustrao
reproduzida a seguir com o ttulo: Jogar capoeira ou dana de guerra (Figura 4),
em que o termo dana desponta, talvez pela primeira vez, para descrever tal
confronto.
Figura 4 Jogar capoeira ou dana de guerra, de Rugendas.
Alguns detalhes aqui aproximam a imagem das composies europeias
sobre o boxe. A assistncia repleta marcante. Composta somente por negros,
torcendo, conversando, fazendo msica, comprando e vendendo comida.
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observadores casuais ou assistncia cativa? J os lutadores, apesar de manterem a
guarda baixa e o rosto desprotegido, mantm os punhos cerrados. Talvez tal
detalhe seja inspirado naquelas figuras europeias, como sugere o pesquisador
francs Pol Briand,29
a quem devemos agradecer pela sugestiva comparao. Ser
que Rugendas achou que para caracterizar uma luta diante de um pblico europeu
o detalhe seria imprescindvel? Ou ser esta, uma fiel reproduo da postura
observada pelo viajante? O fato que podemos observar os punhos cerrados em
algumas lutas africanas citadas por T. J. Desch Obi em Fighting for honor (2008).
Mesmo que no seja uma caracterstica propriamente encontrada na capoeira mais
tradicional de nossos dias, o que demonstra o complexo universo reunido sob a
alcunha criminosa de capoeira.
Mesmo de punhos cerrados seus corpos indicam uma movimentao
bastante diferente da que caracteriza o boxe. Principalmente por parte do lutador
prximo ao tambor. Talvez, por influncia do ritmo, na composio de Rugendas,
os movimentos paream mais com os de uma dana. Ele parece virar de costas
para o oponente, levantando o p e movendo os braos lateralmente, contrastando
com as litografias de boxe, em que os concorrentes parecem sempre se posicionar
de frente e sobre o mesmo eixo.
Outro elemento marcante o negro que bate palmas no canto esquerdo da
tela, em oposio ao tambor. Ele porta uma faca presa na cintura, sem procurar
escond-la. Objetos assim, como j mencionado, eram a grande fonte de
preocupao dos guardies da ordem pblica com a capoeira. Ao lado deste, outro
negro parece torcer cantando.
Estamos nos fundos de uma grande residncia que supomos localizada nos
arredores de uma cidade, supostamente o Rio de Janeiro.30
Vemos muros altos e,
em cima de um morro, outra construo nos lembra uma capela. A proximidade
de uma propriedade senhorial e a aparente liberdade do evento, sugere uma rara
aceitao por parte da sociedade branca. Talvez Rugendas tivesse entre seus guias
algum simpatizante das manifestaes negras. A mesma impresso nos causa
outra tela do autor em que o tema retomado. Na litografia divulgada com o ttulo
29 BRIAND, Pol. 2004. Em torno da litografia Boxers de Gricault (1818). Publicado em
http://www.capoeira-palmares.fr/histor/boxers.
30 Como supem diversos autores a exemplo de VIEIRA & ASSUNO, 1998.
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de San Salvador, vemos a capital baiana distncia. Assim posicionados,
parecemos estar na pennsula de Itapagipe.
Figura 5 San Salvador, de Rugendas.
Na composio temos a dana guerreira como uma cena paralela, apesar
desta aparecer em primeiro plano. Essa ideia corroborada pelo ttulo da
ilustrao que pe em destaque a cidade de Salvador, ocupando a maior parte da
imagem mais ao fundo, onde no h como perceber detalhes. instigante esse
jogo entre fundo e figura, entre o ttulo e a imagem que vemos. Aqui, Rugendas
parece querer dizer que Salvador esse lugar de populaes negras aquilombadas,
muito mais do que a capital da colnia abandonada pelas mudanas do perodo
pombalino.31
Mais uma vez a ideia de periferia da civilizao, espao habitado por
ela mas abandonado, aparece relacionada a capoeira.
Atentando somente ao agrupamento de negros no canto esquerdo do quadro
vemos uma cena parecida com a que o pintor descreve em seu Jogar capoeira ou
31 Em 1759, o regime de capitanias hereditrias foi definitivamente extinto, com a sua
incorporao aos domnios da Coroa portuguesa. Quatro anos depois, a sede do governo-geral da
colnia foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro, cujo crescimento sinalizava o
deslocamento do eixo econmico do Nordeste para a regio Centro-Sul.
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dana de guerra (Figura 4). Mas aqui a assistncia menor e no se faz evidente
a presena de instrumentos musicais. Os lutadores aparentam uma mobilidade
maior, tornando muito mais evidente os deslocamentos laterais e a posio de
costas, possivelmente o fragmento de um giro de corpo. Na assistncia, outros
dois negros atentos repetem movimentos caractersticos, um parece sambar,
enquanto outro ensaia uma rasteira, outra jogo de corpo reconhecvel na capoeira.
Falando sobre essa gravura, os pesquisadores Matthias Rhring Assuno e
Luis Renato Vieira (1999), diziam que no se pode reconhecer a presena da
capoeira na Bahia antes do final do sculo XIX. Essa litografia seria uma
referncia nica e ainda assim imprecisa, pois o autor no explicita que esteja
retratando essa prtica. Diante do raciocnio que viemos desenvolvendo, a ateno
ao nome e a definio precisa das prticas da capoeira faz parte de um traduo
europeia das atividades dos povos colonizados. Como veremos mais adiante,
capoeira no um nome consensual entre seus praticantes, nem as prticas
envolvidas podem ser definidas em termos precisos. Elas apenas iro ganhar tais
contornos a partir dos envolvimentos e da convivncia com a sociedade livre,
correspondendo a um processo de integrao da sociedade brasileira em
formao. Nessa perspectiva no procuramos definir a capoeira, mas mostrar o
amplo espectro em que surge o termo ao longo do tempo, at assumir algumas
caractersticas mais ou menos reconhecveis na atualidade.
Nos trs desenhos apresentados at aqui, destaca-se a ideia do exerccio
guerreiro e da briga. A violncia da cena est nos ttulos e nas descries de seus
desenhistas. Est na prpria composio: ressaltada pela chegada da polcia
(Figura 2) ou pelos punhos cerrados (Figuras 4 e 5). Mesmo assim possvel
outro olhar. As descries tambm falam da dana e do jogo. As figuras tambm
retratam um encontro social.
Vinte anos depois dessas primeiras imagens, essa cena se repetiu para o
pintor, poeta e romancista dinamarqus Paul Harro-Harring (1798-1870). Mas o
que ele viu foi apenas dana e, por isso, nomeou sua aquarela como Dana dos
Negros (Figura 6).
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Figura 6 Dana dos negros, de Paul Harro-Harring.
Conforme atesta o autor, trata-se de um evento observado no Rio de Janeiro.
As folhas de bananeira, atrs dos danarinos, parecem se projetar por cima de um
muro que sugere os fundos de uma propriedade ou seus limites. Outra vez o
encontro acontece na periferia, mas ainda prximo ao espao urbano.
Essa figura tambm tem aparecido como ilustrao para alguns textos sobre
capoeira, indicando uma identidade reconhecida pelos observadores na atualidade.
Nela h uma sofisticao rtmica e meldica sugerida pelo naipe dos instrumentos
que acompanham o bal. Novamente h uma audincia interessada, sorridente e
alegre. So mulheres e crianas. A pantomima parece bem menos agressiva. Mos
e guardas esto abertas. Nessa verso de Harro-Harring, que esteve no Rio de
Janeiro, em 1840, a cena no evoca a menor animosidade. A ausncia dos
elementos habituais capazes de, positivamente, caracterizar ou descrever o que se
conhece no perodo como capoeira, nos desautoriza a faz-lo. Porm aqui,
encontramos uma similaridade muito grande com os encontros retratados
anteriormente. Para aproximar essas imagens conceitualmente temos que
suspender qualquer limitao. isso que propomos aqui, como interpretao
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daquilo que a prpria capoeira (enquanto entidade) nos prope para si. Essa
realidade indefinvel em padres pr fixados pela cultura ocidental e as
tentativas falham em apreend-la. Seus registros porm, nos chegam por meio de
observadores externos, tradutores do que veem para os termos de suas prprias
experincias. A capoeira compreendida como atitude criminosa, ligada a atos
violentos, correrias e atentados ordem pblica, passou tambm a referir-se s
formas de combate prprias aos escravos e demais indivduos marginalizados. O
carter criminoso de qualquer atividade vinculada ao termo est muito bem
caracterizado da litografia Negros que vo levar aoutes de Frederico Guilherme
Brigs, publicada em 1832 (Figura 7).
Figura 7 Negros que vo levar aoutes, de Frederico Guilherme Brigs.
A tabuleta carregada pelos condenados divulga o crime cometido,
aparentemente sem a necessidade de maiores explicaes. Apenas o nome
CAPOEIRA, parece suficientemente significativo, compreensvel como
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indicativo de suas faltas, no importando os detalhes de suas aes. Porm, como
notamos na sequncia das figuras anteriores, uma maior ateno aos hbitos e
costumes dos escravos se desenvolve. A evoluo dos ttulos das gravuras
relacionadas at aqui, considerando-as como descries da capoeira, indica um
caminho que vai da luta at a dana, como indicativo de uma maior complexidade
no entendimento daquilo que at ento compreendia somente o indivduo
criminoso ou o ato potencialmente perigoso.
As caractersticas que relacionam a capoeira com a dana, para o observador
externo, no encontram as mesmas justificativas entre os indivduos escravizados,
portadores de uma dinmica cultural diversa, para quem canto e dana, mas
principalmente o ritmo, era um elemento de integrao com o universo. Algumas
descries sobre momentos de divertimento dos escravos nos revelam, dentro de
uma classificao do observador, a multiplicidade de elementos presentes nas
manifestaes culturais dessas comunidades.
Em 1859, Charles Ribeyrolles (1812-1860) viaja ao Brasil com a misso de
escrever um livro. No conseguiu complet-la, pois a morte o alcanou, em 1860,
na cidade do Rio de Janeiro. O viajante nos deixou a descrio sobre uma noite de
folga para os negros de uma fazenda do norte fluminense.
Jogos e danas dos negros No sbado noite, depois do ltimo trabalho da semana, e nos dias sacrificados, que trazem folga e repouso, concede-se aos negros
uma ou duas horas para a dana. Renem-se ento no terreiro, chamam-se,
agrupam-se, e a festa comea. Aqui a capoeira, espcie de dana fsica, de
evolues atrevidas e guerreiras, cadenciada pelo tambor do Congo; ali o batuque,
posies frias ou lascivas que o som da viola urucongo aceleram ou demoram;
mais alm tripudia-se dana louca, na qual olhos, seios, quadris, tudo fala, tudo
provoca, espcie de frenesi convulsivo inebriante que chamam lundu. Alegrias
grosseiras, volpias asquerosas, febres libertinas, tudo isso nojento, triste,
porm os negros apreciam esses bacanais, e outros a encontram proveito. No
constituir isto um sistema de embrutecimento? (RIBEYROLLES, s/d)
O encontro festivo e despojado de preocupaes assim descrito por
Ribeyrolles encontra ressonncia em outro relato, referente ao sbado dos negros
no Sul dos Estados Unidos, descrito nas memrias de um escravo que conseguiu
escapar das fazendas do Kentucky para o Canad, na dcada de 1830. Henry Bibb
(1815-1854), aprende a ler e escrever devido ao seu envolvimento com a religio
protestante, assumindo tambm uma postura bastante crtica em relao s
prticas de sua comunidade. O autor relata da seguinte forma a folga dos escravos
que no queriam participar da sabatina bblica.
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The Sabbath is not regarded by a large number of the slaves as a day of rest. They
have no schools to go to; no moral nor religious instruction at all in many localities
where there are hundreds of slaves. Hence they resort to some kind of amusement.
Those who make no profession of religion, resort to the woods in large numbers on
that day to gamble, fight, get drunk, and break the Sabbath. This is often
encouraged by slaveholders. When they wish to have a little sport of that kind, they
go among the slaves and give them whiskey, to see them dance, pat juber, sing and play on the banjo. Then get them to wrestling, fighting, jumping, running foot
races, and butting each other like sheep. This is urged on by giving them whiskey;
making bets on them; laying chips on one slave's head, and daring another to tip it
off with his hand; and if he tipped it off, it be called an insult, and cause a fight.
Before fighting, the parties choose their seconds to stand by them while fighting; a
ring or a circle is formed to fight in, and no one is allowed to enter the ring while
they are fighting, but their seconds, and the white gentlemen. They are not allowed
to fight a duel, nor to use weapons any kind. The blows are made by kicking,
knocking, and butting with their heads; they grab each other by their ears, and jam
their heads together like sheep. If they are likely to hurt each other very bad, their
masters would rap them with their walking canes, and make them stop. After
fighting, they make friends, shake hands, and take a dram together, and there is no
more of it.32 (BIBB, 2000)
Esse relato, publicado em livro no ano de 1849, diz respeito a eventos
ocorridos no ano de 1833, segundo o prprio autor. Acompanha essa descrio
uma ilustrao denominada The Sabbath among Slaves reproduzida a seguir.
32 Grande parte dos escravos no considera o sbado como dia de descanso. Eles no tm escola onde ir; nenhuma instruo moral ou religiosa h nesses locais onde vivem centenas de escravos.
Assim, dedicam-se a algum tipo de divertimento. Aqueles que no tm religio vo para o mato,
em grande nmero, nesse dia, para jogar, brigar, embebedar-se e, assim, passar o sbado. Isso
frequentemente encorajado pelos seus donos. Quando estes senhores desejam assistir uma prtica
como essa, eles vo at os escravos dar-lhes usque, para v-los danar, batucar, cantar e tocar
banjo. Em seguida, so levados a competir, lutar, saltar, correr e dar cabeadas uns nos outros
como carneiros. Isso estimulado pelo usque; pelas apostas; e por moedas atiradas sobre a cabea
de um escravo; ousar delatar, apontar ou derrubar o outro considerado um insulto e provoca uma
briga. Antes da luta, os adversrios escolhem um segundo homem para auxili-los enquanto
disputam; uma roda ou um crculo formado para servir como campo de batalha; e ningum est
autorizado a entrar no ringue enquanto eles esto lutando, apenas seus auxiliares e os senhores
brancos. Estes no so autorizados a interferir no duelo nem a usar armas de qualquer espcie. Os
golpes so chutes, socos e cabeadas, eles se agarram pelas orelhas e juntam suas cabeas, como
fazem os carneiros. Se apreciarem machucar um ao outro gravemente, seus mestres podem bater
neles com suas bengalas e faz-los parar. Depois de lutar, ficam amigos, apertam as mos e
brindam juntos, e nada mais. Em traduo livre, dezembro de 2009.
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Figura 8 The Sabbath among Slaves.
Podemos notar na figura algumas motivos recorrentes: as lutas de cabeadas
e de agarres com rasteiras, as apostas entre os senhores33
e as danas que em
primeiro plano parecem configurar uma disputa entre dois homens por uma
mulher. Analisando essa ilustrao, T. J. Desch Obi em seu livro sobre a difuso
dos estilos africanos de luta pelas Amricas, Fighting for honor (OBI, 2008, p. 85
e 86), reconhece nos confrontos ali representados, referncias exclusivas das
culturas de onde essas se originaram. Um estilo negro, diferenciado. Identificao
corroborada por outros observadores do perodo, como atesta o autor. Esse estilo
envolve caractersticas diversas, provenientes de suas origens dispersas pelo
continente africano. Podemos encontrar esse amontoado de tcnicas de combate
classificadas no Brasil colonial sob a alcunha de capoeira, sem termos, ao certo,
caractersticas nicas, que a identifiquem de forma isolada. Como vimos at aqui,
o nome capoeira deriva da observao externa que reconhece o extico das
habilidades de combate dos escravos.
A realizao desses confrontos em dias de festa nos remete a uma
ritualidade que permeia as lutas no continente africano, muitas delas envolvendo a
disputa por mulheres, como o NGolo, modalidade que ganhou ares de ancestral
33 O lutador Tom Molineux retratado na Figura 3, teria conseguido sua liberdade por ter ganho
muitas lutas para seu patro, fornecendo-lhe grandes lucros em apostas. Molineux era natural da
Virgnia, estado que at 1792 possua as terras do Kentucky, onde viveu Henry Bibb. (ROBERTS
& SKUT, 2006)
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da capoeira quando Albano Neves e Souza (1921-1995) trouxe sua descrio para
o Brasil na dcada de 1960 (ASSUNO, 2005, p. 49). Porm o carter coletivo
e diversificado desses encontros tambm nos remete ao cenrio das feiras, das
festas, dos momentos de folga. Momentos em que disputas, msica e dana se
combinam para alegrar a vida dessa comunidade e para por em prtica a
sociabilidade.
As tcnicas de combate, as msicas e as danas africanas parecem chamar a
ateno fora de seu ncleo original durante todo o sculo XIX. Charles
Ribeyrolles fala em outros que a encontram proveito, se referindo efetivamente
ao interesse de indivduos estranhos comunidade afro-descendente.
Provavelmente outros senhores que, como os norte-americanos descritos por
Henry Bibb, gostavam de observar as msicas, as danas e as lutas entre os
escravos. No podemos dizer se tal divertimento em terras brasileiras envolvia
apostas, como nos domnios das ex-colnias britnicas. Aqui, reconhecemos
outros interesses. Temos muito claramente o envolvimento com o lundu, gnero
musical negro que ganha aceitao entre a populao branca, penetrando no
ambiente da corte portuguesa j no sculo XVIII e tornando-se o ritmo
predominante no ambiente urbano do sculo XIX. a primeira forma definida a
ser distinguida da generalizao dada aos ritmos africanos, atravs da descrio
pejorativa de batuque. Tambm a capoeira comea a ser praticada por indivduos
de fora do grupo identitrio de sua origem. Como reconhece Carlos Eugnio
Libano Soares, a partir da segunda metade do sculo XIX, a capoeira perde a
predominncia negra-escrava e passa a incorporar outros convivas urbanos,
proletrios, lumpen-proletrios e, tambm, indivduos de classes sociais mais
elevadas, como relata Melo Morais Filho em texto de 1893, Capoeiragem e
capoeiras clebres:
geralmente sabido pela tradio que no Senado, na Cmara dos Deputados, no
Exrcito, na Marinha, no funcionalismo pblico, na cena dramtica e mesmo no
claustro havia capoeiras de fama, cujos nomes nos so