caminhos do discurso contra-hegemônico: direito e emancipação

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389 Rio de Janeiro, Vol. 07, N. 4, 2016, p. 389-415. Thiago Ferrare DOI: 10.12957/dep.2016.18362| ISSN: 2179-8966 Caminhos do discurso contra-hegemônico: Direito e emancipação Paths of counterhegemonic discourse: Law and emancipation Thiago Ferrare Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail: [email protected]. Artigo recebido em 27/08/2015 e aceito em 24/02/2016.

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Caminhos do discurso contra-hegemônico: Direito e

emancipação

Pathsofcounterhegemonicdiscourse:Lawandemancipation

ThiagoFerrare

Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail:[email protected].

Artigorecebidoem27/08/2015eaceitoem24/02/2016.

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Resumo

Ospotenciaisemancipatóriosdodireitosomentepodemseracessadosapartir

dacompreensãodofenômenojurídicocomoespaçodearticulaçãopúblicade

demandasporliberdade.Aanálisedascondiçõesdeaberturadetalespaçode

interaçãotrazàluzaproblemáticadatécnica.Enquantomodeloinstrumental

eabstratode justificaçãodeações,a técnicaacabaporobstruiroscaminhos

do discurso contra-hegemônico, fazendo do direito o espaço da indiferença.

Sustenta-sequemesmoasiniciativasatualmentedesenvolvidasemtermosde

pós-positivismo recaem na compreensão do direito como instrumento de

gestãodavidasocial.

Palavras-chave:direito;emancipação;indiferença.

Abstract

The emancipatory potencials of law can only be acessed through the

understanding of law as a space for public articulation of demands for

freedom.Theanalysisoftheopeningconditionstotheconstructionofsucha

space brings to light the techniques’s question. As an instrumental and

abstractmodel for action’s justification, the technique turns out to obstruct

the way of the counter-hegemonic discourse, turning law into a space of

indifference. We maintain that even the iniciatives developed nowadays in

terms of post-positivism relapse in the understanding of law as a social life

managementtool.

Keywords:law;emancipation;indifference.

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Introdução

Omodoatualdesecompreenderodireitopoucoseaproximadaquiloquesefezno

ápice da modernidade. Legitimada a partir das capacidades prático-cognitivas do

sujeito racional, a ordem jurídica moderna constrói-se como expediente de

ordenaçãodocaossocial,comoinstrumentodegestãodavidacompartilhada.Nessa

percepção–edadaapressuposiçãodocaráterautocráticoesolipsistadaformação

da subjetividade -, à conflitualidade da interação entre indivíduos não é dado

nenhum valor positivo; antes, tal conflitualidade apresenta-se como alvo das

pretensões abstratas do direito: uma ordem estável deve inibir a produção de

conflitossociais.

Tão logo se deu a retomada de Aristóteles no ambiente da filosofia pós-

kantiana–retomadaquesefazevidentenafiguradeHegel,emespecial-,osujeito

concreto assume papel central nas reflexões sobre política. A razão autocrática é

lançadanomundo,deondeseseguequeopontodepartidadatematizaçãodoideal

delegitimidadeganhareferênciaaosolodavidacomunitária.Diantedessequadro,o

reconhecimento da estrutura normativa que inevitavelmente conforma o mundo

social traz consigo a possibilidade de se compreender o direito não mais como

maquinárioexternoàspráticas intersubjetivas,mas comoespaçode constituiçãoe

tematização de tais práticas. A emergência de movimentos sociais identitários

corrobora essa tese: a necessidade de uma universalidade que faculta amediação

dosdiversosparticularismosnosincitaapensarodireitocomorazãohistoricamente

possível.

Seodireitotrazemsiapotencialidadeparaefetivar-seenquantoespaçoda

articulação pública de pretensões de liberdade, é importante tomar por objeto de

análise as condições da concretização de tal potencialidade. É nesse contexto que

ganha sentido a referência à técnica. Compreendida como modelo abstrato de

justificação de ações, a técnica pressupõe a incapacidade da vida social para

constituir-se como normatividade espontânea, como fonte de impulsos críticos

imanentes.Pelaabsolutizaçãodoagir técnico,opotencialemancipatóriododireito

dá lugarao formalismo:osubstratomaterialdo fenômeno jurídico–e,portanto,a

historicidade dos discursos contra-hegemônicos - é apagado pelo privilégio da

unidadeabstrata,doconceitovazio.

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No intuito de fundamentar essa tese, começaremos pela compreensão

daquilo que, na linha de Horkheimer (1980, p. 154), se costuma chamar de teoria

crítica da sociedade. Nesse ponto, restará clara a ideia segundo a qual a

compreensão crítica da realidade envolve a tematização das condições para a

articulação pública do sofrimento individual (2). O passo seguinte envolve a

investigação sobreumapossível notadistintivadopadrãooperativododireitonas

sociedadescontemporâneas,oqueimplicaaconstruçãodeumaoposiçãoentreduas

concepções do direito: como instrumento de controle social e como espaço de

tematizaçãodeconflitosdesencadeadospordemandasde liberdade (3).Por fim,a

técnica surge comomeiodeobstruçãodos caminhosdodiscursoemancipatório, à

medidaqueabstraidaforçaconstitutivadosconflitosaxiológicosedirecionaabusca

pelalegitimaçãododireitoparainstânciasestritamenteformais(4).

2.Razãopráticacomoeticidade:Kant,Hegeleateoriacrítica

Afilosofiasocialmodernaseconstróiporoposiçãoacertos ideaisdateoriapolítica

clássica. Naquilo que mais de perto nos interessa, pode-se dizer que tal oposição

toma por objeto duas ideias, ambas formuladas por Aristóteles (1985, p. 15): em

primeirolugar,trata-sedatesedozoonpolitikon,oserpolíticocujaautossuficiência

somentesealcançanacomunidade;emsegundo,daideiacorrelatasegundoaquala

pólistemprecedênciaemrelaçãoaoindivíduoisolado.Veja-sebrevementeosentido

dacontraposiçãomodernaataisideias.

Articulando dimensões filosófico-políticas de sua física – articulação que se

expressa na advertência no sentido de que “o que cada coisa é quando o seu

crescimento se completa nós chamamos de natureza de cada coisa” -, Aristóteles

(1985,p.15-6)põeemrelevoanaturezapolíticadoserhumano.Daíseseguequeo

sujeito isolado não se encontra plenamente constituído enquanto está fora da

comunidade política: o impulso à autossuficiência o leva à interação social. Ao

impulso na direção da autossuficiência a teoria social moderna opõe o impulso à

autoconservação, de modo que não mais se pode supor a existência de atos

voluntáriosquenãoestejamvoltados aobenefício exclusivodaquelequeopratica

(MAQUIAVEL, 1983, p. 70). Da universalização desse ideal egoísta de

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autoconservação se pode extrair o pressuposto liberal que inverte o primeiro dos

postulados aristotélicos: a ideia de que, muitos antes de adentrar a comunidade

política, o sujeito já se encontra plenamente constituído em suas capacidades

prático-cognitivas.

Coroláriodessainversãodepremissasétambémoabandonodasegundadas

teses de Aristóteles referidas acima. Se os processos de constituição e

autorrealização individuais tomam forma a despeito da inserção comunitária do

sujeito,nãohámaissentidoemsefalardeanterioridadedapólis.Assimsevênascer

a ideiaqueconstituioâmagodosprojetos liberaismaisdesenvolvidos:oatomismo

ou, na formulação mais difundida, o individualismo metodológico. A plenitude do

sujeitoisoladodomundopassaaserafontedetodanormatividadesocial,nãomais

seconcebendoumpoderlegítimoquenãoestejajustificadonoforoíntimodecada

umdosindivíduos.

O avanço na direção de nossa construção argumentativa pressupõe o

aprofundamentonaanálisecríticadetalpilardoliberalismopolítico.Àluzdoquefoi

dito,pergunta-se:oquedefineo sujeitoque,noâmagodoprojeto liberal, celebra

contratos constitutivos do poder legítimo, figura na posição original e participa do

leilãovoltadoàdistribuiçãojustadosbenssociais?Define-oafragmentação.

Às voltas com sua cega busca pela autopreservação, o sujeito prático só

reconhece no mundo aquilo que é produto de sua vontade carente de conteúdo

socialmente compartilhado. A instância de validade, portanto, se absolutiza

enquanto moralidade subjetivizada: os critérios da crítica legitimadora são

supostamente acessíveis a todo e qualquer indivíduo que se proponha a agir

racionalmente(HOBBES,1999,p.131;LOCKE,2006,p.88),deondeseseguequea

interação social não constitui padrões normativos objetivos, senão que reproduz

aquelespadrõesqueforamalcançadospelarazãoautocráticadosujeito.Aoobjeto

carente de sentido, portanto, corresponde o sujeito doador de sentido

(HORKHEIMER;ADORNO,1985,p.25).

Sobo pontode vista histórico, tal concepçãode sujeito deita suas raízes a

partirdeumentrelaçamentocomodesenvolvimentodaordemcapitalista.Defato,o

século XIX viu surgir um novo padrão de exercício da liberdade, que é justamente

aquele que se desenrola na forma de “atos isolados e racionais de troca entre

proprietários isolados de mercadorias” (LUKÁCS, 2012, p. 209). Aqui se vê a

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efetivaçãohistóricadoideárioburguêsdapropriedadeprivadacomoesferanegativa

intangível;maisdoque isso,comoesferanegativaàqualcorrespondeosentidoda

realização individual na forma de negação absoluta de determinações sociais.

Naquiloquemaisdepertonos interessa, foiLukácsquemdiagnosticouatendência

patológicadessemodeloliberaldeexercíciodaliberdade:

De um lado, os homens quebram, dissolvem e abandonamconstantemente os elos “naturais”, irracionais e “efetivos”, mas, poroutroeaomesmotempo,erguememtornodesi,nessarealidadecriadapor eles mesmos, “produzida por eles mesmos”, uma espécie desegunda natureza, cujo desdobramento se lhes opõe com a mesmaregularidade impiedosa que o faziam outrora os poderes naturaisirracionais (mais precisamente: as relações sociais que lhes apareciamsobessaforma)(LUKÁCS,2012,p.271-72).

Areferênciaàideiadesegundanaturezasópodesercompreendidaàluzdo

status subalterno com que a filosofiamodernamarcou a natureza: um puro dado

cujosaspectosqualitativossãoirrelevantes.Nessesentido,oreferidotrechoguia-nos

à percepção daquilo em que se converteu a versão liberal do ideal moderno de

autodeterminação. Calcular com a maior antecedência possível a direção da

reprodução imediatadomundosociale“adotarumaposiçãoemqueessesefeitos

ofereçamasmelhores oportunidades para seus fins” (LUKÁCS, 2012, p. 274): eis o

seusentidoprecisonoâmbitodasociedadecapitalista.

Quer issodizer, em resumo, queo grandiosoprojetodeemancipaçãopelo

esclarecimento – o projeto de superar amenoridade (KANT, 1985b, p. 100-17) a

partirdacrençanosujeitoeemsuacapacidadedeorientar-seautonomamenteno

pensamento (KANT,1985a,p.70-99) -acabouporconverteracapacidadecognitiva

doindivíduoemumaespéciedemáquinadefazercálculos;máquinaessaquetoma

por objeto tanto as diretrizes do mundo social quanto os impulsos do sujeito

fragmentado.Nesseúltimosentido,o intelectodominadororientaoagir racionala

sefazervalerdiantedaquiloqueéintuição.Assiméqueostalentosdosujeito–mas

também os seus defeitos -, à medida que são apropriados pelas leis formais da

produção mercantil, tornam-se coisas que assumem, tais quais as mercadorias

comuns, valores positivos ou negativos de acordo com os critérios de reprodução

simbólica e material que dão conteúdo à segunda natureza na ordem capitalista.

Nesses termos,osujeitopassaaestranhar-sedesimesmo,sofrendoaangústiade

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verpartesdesuapersonalidadesendoapropriadasporleisabstratassobreasquais

nãotemcontrole;ditodeoutromodo,osujeitofragmentadopassaacontemplar-se

asimesmo:“apersonalidadetorna-seoespectadorimpotentedetudooqueocorre

com sua própria existência, parcela isolada e integrada a um sistema estranho”

(LUKÁCS,2012,p.205).

Mais caras ao nosso intento, porém, são as consequências do

direcionamento do cálculo ao mundo social. Aqui se torna evidente o limitado

alcance crítico do modelo liberal de vontade livre. De modo geral, se a práxis

permanecevinculadaàsexigênciasdeproteçãoda liberdade individual, tem-seque

suaefetivaçãosedánaformadoreforçodoslimitesformaisdopoderpolítico.Resta

oculto,porém,ocoroláriomaisimportantedetalmodelo:emborapormeiodelase

busqueavançarnocaminhodajustiçaliberal,oexercíciodaliberdade,àmedidaque

está vinculado a pressupostos atomistas, se converte emummodode reprodução

acríticodasegundanaturezaquecaracterizaas sociedadescapitalistas.Apartirdaí

secompreende,portanto,queéocaráterirracionaldomundoquejustificaofatode

queoprincipaldesafiode talcorrente teóricaconsistanaexplicaçãodanaturezae

alcance do meio pelo qual se dá a passagem de um estado desorganizado – ou

potencialmentedesorganizado,comoemLocke(2006,p.84)-decoexistênciasocial

paraumestadocivilcompoderpolíticoformalmenteestruturado.

ÉHegelquempõeemxequetaispremissas,eofazpormeiodaarticulação

teórica de outro ponto de partida: a consciência natural (HEGEL, 2012, p. 74).

Designando o conjunto de normas que espontaneamente regulam as relações

interpessoais, tal ideia dá a direção do desafio a ser enfrentado pelo sistema

hegeliano, afastando-o da necessidade do recurso às figuras externas e

transcendentes que caracterizam as teorias do contrato. De fato, se as estruturas

normativas que regulam a interação social funcionam como pressuposto da

destranscendentalizaçãodaracionalidadecrítica,éprecisopensaromodopeloqual

formas mais rudimentares de interação evoluem na direção de formas mais

complexas; em outras palavras, é preciso pensar a operação da crítica enquanto

processo imanente. Diante desse desafio, ganha relevo a dimensão propriamente

teóricadoprojetodeHegel,emespecialseuconceitodeexperiência.

Na forma como foi exposto na introdução àFenomenologia do Espírito, tal

conceitopodeser compreendidocomouma tentativade superaras consequências

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deletérias do idealismo subjetivo de Kant. Nesse sentido, o ponto fundamental da

oposição de Hegel diz respeito ao abismo instransponível que, nos marcos do

idealismo subjetivo, estrutura as relações entre facticidade e validade: “a

objetividadekantianaéapenassubjetiva,enquantoospensamentos,segundoKant,-

emborasejamdeterminaçõesuniversaisenecessárias-sãocontudosomentenossos

pensamentos,ediferentesdoqueacoisaéemsi"(HEGEL,1995,p.110).Postoisso,

faz-se possível compreender a concepção hegeliana de experiência como uma

exigência de apreensão da figura de consciência historicamente determinada tal

comoelaseapresentaemsieparasi(HEGEL,2012,p.79).

Corolário dessa inversão de pressupostos é o fato de que Hegel retira do

sujeito autocrático a plenitudeda estruturada racionalidade crítica, lançando-ano

mundo;talmovimento–querepresentaabasefundantedesuaconcepçãodecrítica

–temcomopontodepartidaareferida ideiadeconsciêncianatural,enquantopor

estasecompreendeoemaranhadoentrerealidadeeracionalidade,osistemadoem-

si pensado (HEGEL, 1995, p. 110). É com base nessa noção que Hegel pretende

superar as cisões operadas no terreno da filosofia moderna, levando adiante o

exercício genuíno da dialética do esclarecimento. A ser reconhecido e superado,

portanto, encontra-se o fato de que na filosofia critica pré-hegeliana o padrão de

validaçãodoconhecimentoguardaumaincomensurávelexternalidadeemrelaçãoao

próprioconhecimento,deonderesultaqueoobjetoaoqualtalpadrãosedirige–na

terminologiadeHegel,osaberfenomenal–nãodevenecessariamentereconhecê-lo

enquanto padrão (HEGEL, 2012, p. 79); em outros termos, o em-si da consciência,

compreendido como mundo da vida compartilhado, não se vincula de modo

necessárioàcritériosdevalidadequenãoprestemhonraàestruturaconscienteda

realidade,àfacticidade.

Adarmaiorconsistênciaàsuaconcepçãoderacionalidadecrítica,oprojeto

hegelianocontaaindacomumexpedientepormeiodoqualahistoricidadepassaa

serconcebidacomoumelementoconstitutivodaexperiência: trata-sena figurado

nós.NodizerdeHegel(1995,p.109),afilosofiadeveabandonarapretensãoingênua

de“aprenderanadarsementrarnaágua”,oquesignificadizerqueàpretensãode

neutralidadeaxiológicadevesobrepor-seumaperspectivaque,nãosendoexternaà

interação sujeito-objeto, permita a visualização da nova figura de consciência não

como algo causal e extrínseco, mas sim como produto da negação determinada

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daquiloqueaantecede.Aonós,portanto,faz-seevidenteahistóriadeformaçãodo

em-sidaconsciência;históriaque,segundoHegel (2012,p.81), transcorrepor trás

das costas da consciência, visto que esta permanece envolvida no desespero da

experiênciadaperdadesuaverdade.

Posto isso, dá-se que a compreensão da injustiça social como um dado

imutávelnãoresisteà investidahegeliananosentidoda reformulaçãodaestrutura

autocrítica da consciência: “esse fetiche desfaz-se diante da intelecção de que as

coisasnãosimplesmentesãoassimenãodeoutraforma,masdequeelasvierama

ser sob certas condições” (ADORNO, 2009, p. 52). Uma questão importante

permanece,porém,semresposta.TomandodeempréstimoaterminologiadeHegel,

Lukács(2012,p.302)assimaformula:

Nomomentoemqueoconhecimentoreadquirido,o“verdadeiro”,comoodescreveHegelnaFenomenologia,torna-se“aqueledelíriobáquiconoqual nenhummembro escapa à embriaguez”, onde a razão parece terlevantado o véu do santuário de Zeus para descobrir a si mesma –segundoaalegoriadeNovalis–comodesvelamentodoenigma,levanta-se novamente, mas agora demaneira totalmente concreta, a questãodecisivadessepensamento:aquestãodosujeitodaação,dagênese.

Afastando-nosdaidentidadeentresujeitoeobjetoaqueLukácschegacomo

solução dessa questão1, interessa investigar o substratomaterial da experiência, é

dizer,afontemaisprofundadoimpulsocríticoqueapontanadireçãodefigurasde

consciênciamaiscomplexaseestruturadas.

Narealizaçãodetalinvestigação,toma-secomopontodepartidaumaideia

muitocaraàsformulaçõesmaistransformadorasdadialéticamaterialista:ahistória

real, dizem Adorno e Horkheimer (1985, p. 50), constrói-se a partir do sofrimento

real. Na hipótese interpretativa que aqui se sustenta, a leitura da filosofia prática

hegelianapropostaporAxelHonnethdevemuitoàsintuiçõesque,naesteiradaideia

acimareferida,foramdesenvolvidasporAdornonocontextodeumafilosofiacrítica

que “mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização” (ADORNO,

2009, p. 11). Tão somente sob esse pano de fundo, ao que nos parece, se pode

alcançaro sentidodaaçãosocial transformadoracujas raízes remontam,conforme

1 De fato, o autor relaciona o nós hegeliano ao ponto de vista do proletariado, asseverando que “oautoconhecimento do proletariado é, ao mesmo tempo, o conhecimento objetivo da essência dasociedade”.Ver:LUKÁCS(2012,p.308-09).

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se passa a ver, à relação intrínseca entre a injustiça social experimentada como

sofrimentoealiberdadeconcebidacomosuperaçãoimanentedessainjustiça.

Até aqui deixou-se claro a inversão de perspectiva levada a efeito pelo

projeto hegeliano: descentrado o sujeito que a filosofia crítica até então concebia

comooexclusivodoadordesentidoaomundo,pode-secompreenderaatualfigura

de consciência como produto do devir histórico. Uma filosofia política que se

pretendamaterialista2,porém,nãopodecontentar-secomtalideia.Defato,atéaqui

nadasedisseemfavordeumainterpretaçãoqueimpeçaaprogressãodoespíritode

caminhar no sentido de um idealismo mistificante3. É nesse ponto que se faz

relevante o recurso à Adorno: dando vazão ao elemento libertador que orienta

Nietzsche–elementoque remontaà compreensãonietzscheanadoconceito como

igualaçãodonão-igual(NIETZSCHE,2007,p.34)-,oautorasseveraanecessidadede

se deslocar o caráter impositivo da realidade para fora da região do espírito e do

sujeito (ADORNO, 2009, p. 17). As consequências desse direcionamento são tão

complexasquantotransformadoras.

Antesdomais,entreelasseincluiodespertardenossaatençãoparaofato

de que “a imediatidade possui uma história interna” (ADORNO, 2009, p. 52): o

mundodasrelaçõessociaispossuiumahistóriaqueéaqueladoprocessopeloqual,

através da mediação do conceito, certos indivíduos foram incluídos e outros

excluídos;outros,ainda,nãoeramincluídosemaistardeoforam.Aessaperspectiva

deanálisedevesersomadaapercepçãodascondiçõesintersubjetivasdaintegridade

psíquica do sujeito descentrado. Recorrendo a Hegel, Honneth (2003, p. 119-20)

lembra que “a formação do Eu prático está ligada à pressuposição do

reconhecimentorecíprocoentredoissujeitos”,deonderesultaque“sóquandodois

sujeitosseveemconfirmadosemsuaautonomiaporseurespectivodefrontanteeles

podemchegardemaneiracomplementáriaaumacompreensãodesimesmoscomo

um Eu autonomamente agente e individuado”. Assim dispostas essas duas ideias,

percebe-seaforçadaformulaçãodeAdornoeHorkheimeracimareferida:aausência

dereconhecimentoperanteainstânciauniversaldoconceito–ouniversalético-,à

2 Em seu Teoria Tradicional e Teoria Crítica, Horkheimer (1980, p. 154 e p. 134-5) assevera que “oconteúdomaterialistadoconceito idealistadarazão”está ligadoàsupressãodadominaçãodeclasse,ou seja, está ligado à articulação pública dos interesses daqueles que, enquanto “classe diretamenteprodutiva,[...]sofremnacarneoabsurdodacontinuaçãodamisériaedainjustiça”.3ParaLukács,esseseriaodestinodafilosofiadeHegel:“onósquechegaaencontraré,comosesabe,oespíritodomundo,ou antes, suas figuras concretas, o espíritode cadapovo”.Ver: LUKÁCS (2012, p.303).

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medidaquerepresentaumimpedimentoàplenaconstituiçãodaindividualidadedo

sujeito,nãoéexperimentadacomomera insatisfaçãodeuminteressecontingente;

antes, o sujeito a percebe na forma de sentimentos de perda de seu próprio valor

(HONNETH,2003,p.263),ouseja,naformadesofrimento.

Dito sofrimento, dada a pressuposição da formação intersubjetiva da

subjetividade, adquire um papel central enquanto impulso à crítica. Tal ponto,

porém,nãopode ser compreendido semuma rápidadigressão. SegundoNietzsche

(2007,p.40),“apenasporqueohomemseesqueceenquantosujeitoe,comefeito,

enquanto sujeito artisticamente criador, ele vive com certa tranquilidade, com

alguma segurança e consequência”. De fato, vimos que é pela sobreposição do

cálculo racional aos impulsos individuais mais genuínos que o sujeito da filosofia

liberaldispõe-seaadentraroestadopolítico.Diantedisso,éprecisoasseverarquea

apreensãodospotenciaisemancipatóriosdosofrimentopassanecessariamentepela

reabilitação da estrutura pulsional e intuitiva do sujeito: “na coisa, o potencial de

suasqualidadesesperapelosujeitoqualitativo,nãoporseuresíduotranscendental,

aindaqueosujeitosósefortaleçaparatantopormeiodalimitaçãoprópriaàdivisão

dotrabalho”(ADORNO,2009,p.45).

Assim posta a questão, o modelo hegeliano de luta por reconhecimento

assume a forma de uma teoria social de teor de normativo (HONNETH, 2003, p.

119)4, jáquea interaçãoentre indivíduos incorporaopotencialmoralque tendea

expressar-se como exigência de confirmação social de pretensões de autonomia e

individuação. Daqui emerge um sentido transformado de liberdade. Antes

compreendidacomonegaçãoabsolutadasdeterminaçõessociais,elaagoraconsiste

nadeterminaçãodosujeitoapartirdeumconteúdoquenãolheéestranho(HEGEL,

1995, p. 106), ou seja, um conteúdo cuja mediação lhe é indispensável enquanto

requisitoparaaconstituiçãosaudáveldesuapersonalidade.Na leituramaterialista

queHonnethfazdeHegel,essemodelodeliberdadeassumeaformadaresistência

(HONNETH,2003,p.253-68).

Resistirélutarporreconhecimento,ébuscarparaosentimentodeinjustiça

ummodo de expressão. Nesse ponto, é novamente Adorno (2009, p. 23-4) quem

4OAutortambémencontratalmodelodeteoriasocialnosescritossociológicosdeAdorno:HONNETH(2009,p.54-70).

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torna evidente a amplitude da contraposição que tal concepção de liberdade

representaemfacedaaçãoinofensivaquemarcaaliberdadenegativa:

Em contraposição aos fantasmas da profundidade que, na história doespírito, sempre se deram muito bem com aquilo que existe, muitotrivialparaeles,aresistênciaseriaaverdadeiramedidadaprofundidade.O poder do existente erige as fachadas contra as quais se debate aconsciência. Essa deve ousar atravessá-las. Somente isso arrancaria opostulado da profundidade à ideologia. O momento especulativosobrevive em tal resistência: aquilo que não deixa sua lei ser prescritapelosfatosdados,transcende-osaindanocontatomaisestreitocomosobjetos e na recusa à transcendência sacrossanta. Lá onde opensamento se projeta para além daquilo a que, resistindo, ele estáligado, acha-se a sua liberdade. Essa segue o ímpeto expressivo dosujeito. A necessidade de dar voz ao sofrimento é condição de todaverdade.

ReformulandoereiterandoaafirmaçãodeAdorno:anecessidadededarvoz

aosofrimentoécondiçãodetodaliberdade.

3. Do limiar do moderno ao estado constitucional contemporâneo: a

institucionalizaçãodacríticapelamediaçãododireito

CortarascabeçasdaHidra:segundoPlatão(1983,p.174),seriaessaaúnicaeexígua

funçãodasleisdoEstado.Comissosequerdizerquetentarunirocorpopolíticoem

vias de desconstituição é missão tardia, que somente pode cooperar para o

adiamento daquilo que é inexorável, a saber, o dilaceramento dos vínculos éticos.

Tendoganhadonovoscontornosnomedievo,talcompreensãodafunçãododireito

positivo–concepçãoquemarca,demodogeral,ocomunitarismogrego–nãoresiste

aos processos de modernização política. De fato, a filosofia política moderna se

constróiapartirdapressuposiçãododesacoplamentodosujeitoemrelaçãoaoseu

contexto social, algo que corresponde, em termos prático-políticos, à sujeição

absolutadocorpoaointelecto.

Estendidosobreamesa,ocorposeobjetifica;objetificadoocorpo,esvai-se

irrevogavelmentequalquervestígiodealmaenquantofontedevida:

ThatcontraryBothElements,andPassionsliv’datpeaceInher,whocaus’dallCivillwarretocease.

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She,afterwhom,whatformesoe’rewesee,Isdiscord,andrudeincongruitte,Shee,sheeisdead,she’sdead5(DONNE,1991,p.60).

Amortedaalmadomundodáaindicaçãodonovosentidodaaçãopolítica.

Nãomaissevinculandoaofazervalerasnormaséticasdacomunidade,elaassumea

função básica de prover a manutenção e expansão do poder em face da rede

ilimitadadeinteraçõesestratégicasentreosindivíduosisolados(HONNETH,1992,p.

197-217).Seéainclinaçãoàautopreservaçãoquedásentidoàcondutasubjetiva,há

quesedispordeummeioeficazàordenaçãodaquiloqueéessencialmentecaótico;

talmeioéaforça.

Pelaforçasealcançaoserhumanoemsuaessência,emsuanaturezaforjada

ao redor de “um sentimento que não se abandona nunca” (MAQUIAVEL, 1983, p.

70): o receio do castigo ou, na formulação deHobbes (1999, p. 109), “omedo da

morteviolenta”.Algodeveserdito,porém,arespeitodoexpedientetécnicodeque

lançamãoopoderpolíticocomoobjetivodeconferirsentidoàquiloque,semasua

intervenção vertical e determinante, permanece desordenado. Trata-se do direito,

queaquisetomaemsuaroupagemdistintamentemoderna.Assimcompreendido,o

fenômeno jurídico assume a forma de um método astucioso de manejar o

instrumental político; em outras palavras, os padrões oficiais de conduta são

concebidosapartirdesuacisãoemrelaçãoaomundodavidacompartilhado.Seé

assim,à verticalidadeda coação jurídica correspondeodistanciamentoabruptodo

binômio facticidade-validade: o direito moderno se absolutiza enquanto exigência

puramentecontrafactual.

O ponto fundamental aqui diz respeito ao fato de que o direito tende a

ocupar na contemporaneidade uma função que até então lhe era desconhecida.

Habermas(2004,p.222)assimenunciaaquestão:

OEstadoconstitucional tornado reflexivo institucionalizaa constituiçãocomoumprojeto.Pelomediumdodireito,eleinteriorizaatensãoentrea consciência subjetiva dos cidadãos e o espírito objetivo dasinstituições, tensão que Hegel acreditou que devia se dissolver pelasubordinação de ambos ao espírito absoluto. A práxis deautodeterminação democrática não dissolve de modo algum essa

5“[...]mesmocontrárias/Espécies,oupaixões,seconciliavamnela,/Quepunhafimatodaequalquerluta interna./E,depoisdela, toda formaqueexiste/É sódiscórdia, incongruência,anomalia./Ela,elamorreu, é morta. E pensar nisto/ É constatar que o mundo é ummonstro malquisto:/ Dest’arte tuaprendescomnossaanatomia/Quenãohánadaaquiquepossaenamorar-te”.

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tensão,masapenasatransformanadinâmicadacomunicaçãopública–dinâmicacriadapelodireitoconstitucional.[...]Namedidaemqueumasociedadesetornacapazdeaçãopolíticaepodeatuarsobresimesma,uma constituição democrática autoriza os cidadãos à progressivainstitucionalizaçãodedireitoscivisiguais.

AideiadaConstituiçãocomoumprojetolançanovaluzsobreacompreensão

dofuncionamentododireitocomoumtodo.Naquiloquemaisdepertonosinteressa

–evoltandonossaatençãoparaocasodoBrasil-,tomemosaascensãodoSupremo

TribunalFederalcomoumsintomadanovidadenopadrãooperativododireitonas

sociedadescontemporâneas.Apartirdaabordagemcríticadetalsintoma,sepoderá

ver a essência da ameaça representada pela tecnificação do direito para o operar

democráticodosespaçosdeliberativosdemarcadospelodireitoconstitucional.

DesdeapromulgaçãodaConstituiçãoFederalde1988,oSupremoTribunal

Federal tornou-se protagonista no cenário político brasileiro. A essa ascensão

institucional esteve relacionada, juntamente com a ampliação formal das

competências da Corte, a incorporação à atividade dos tribunais daquilo que se

convencionouchamardepós-positivismojurídico.Nessenovoparadigma,oslimites

dedefiniçãododireito sãoalargadosparaalémdasdecisõesoficiais: amoralidade

política,enquantoconjuntodepadrõesdecondutanãoaferíveissomenteapartirde

normaspositivadas,passaa ter relevânciana respostaàpergunta sobreoqueéo

direito.Àsuperaçãodopositivismosesomaoutrodadocorrelato:trata-sedadifusão

daideiadeforçanormativadaConstituição(HESSE,1991,p.14).Aocontráriodoque

pormuitotemposedeu,asnormasconstitucionais–aindaquevagaseabstratas -

não valem mais como meras diretrizes ou programas, mas sim como padrões de

condutaaseremefetivadosdiretamentepelostribunais.

A questão fundamental que emerge nesse contexto diz respeito à

racionalidade das decisões da Corte Constitucional. Uma vez que, como acima

referido, grande parte das cláusulas constitucionais – pode-se dizer, as mais

relevantes–estabelecemdireitosedeveresatravésdeenunciadosnãounívocos,que

critérios estariam disponíveis para o controle de tais decisões? Como evitar que a

argumentação jurídica sirva de meio para encobrir aquilo que, no limite, é mera

arbitrariedade?Desdobramentofundamentaldessemesmoproblemaéaquestãoda

legitimidadedopoder jurisdicional dasCortes Supremas.Não sendo compostosde

agenteseleitos,taisórgãoscarecemdelegitimidaderepresentativadireta,devendo

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justificaroexercíciodeseuspoderesapartirdeoutrosparâmetrosquenãoaqueles

consagradospelateoriaclássicadarepresentação.

Assimdescritasas linhasgeraisdoestadoatualdosproblemasquemaisde

perto nos interessam, é útil que se faça menção ao modo como o senso comum

teórico têm respondido as questões do parágrafo anterior. A racionalidade da

jurisdição constitucional é, na grande parte dos casos, fundamentada a partir da

distinçãoentreconceitoseconcepçõesconstitucionaispropostapeloteóriconorte-

americanoRonaldDworkin(2010,p.211).Osignificadodetaldistinçãoserevelano

seguinte raciocínio: sendo o produto da decisão constituinte tão somente o

estabelecimentodeconceitosabstratos,àscortescumpreafunçãodedensificá-los,

ou seja, dar-lhes concepções. Conjugada com a ideia dworkiniana segundo a qual

cadadecisãojudicialconsisteemumnovocapítulonoempreendimentoaquechama

deromanceemcadeia (DWORKIN,2005,p.217-50)tem-sequeacorreçãodeuma

decisão fixadora de certa concepção deriva de sua coerência articulada com tudo

aquiloqueseproduziunodireitoatéentão(DWORKIN,2007,p.271-332).Talquer

dizer, em outras palavras, que aos padrões normativos vagos enunciados pela

Constituição pode ser atribuído um sentido correto; sentido esse que, no dizer de

Dworkin,jáestádelineadonaordemjurídicavigenteeprecisaapenasserdescoberto

pelohermeneuta.

Outromodocomosetemtratadodajustificaçãodoalcancedaatividadedo

Supremo Tribunal Federal deriva da diferenciação entre judicialização da política e

ativismo judicial (BARROSO, 2009, p. 382-91). Nesta linha, defende-se que a

judicialização seria corolário da distribuição de competências fixada pelo

constituinte, enquanto que o ativismo diria respeito ao modo como os órgãos

jurisdicionais fazem uso dessas competências. Nesses termos, o protagonismo da

CorteConstitucionaldecorreria,emprimeirolugar,doprópriomodeloconstitucional

inaugurado em 1988, não sendo fruto imediato do modo de decidir dos órgãos

jurisdicionais.

A issosesomaomodelohegemônicodetratamentoda járeferidaquestão

atinente à legitimidade da jurisdição constitucional. Nesse particular, parte-se

geralmente de uma compreensão anti-utilitarista6 dos direitos e coloca-se o órgão

6 Para uma introdução às ideias centrais do utilitarismo, ver KYMLICKA,Will. Contemporary politicalphilosophy:anintroduction.Oxford:OxfordUniversityPress,2002,p.10-52.

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judiciáriomáximocomoogarantidordaposição igualitáriadasminorias.Comforte

inspiraçãona filosofiapolíticade JohnRawls (1971,p. 221-27), essaargumentação

derivaa legitimidadeda jurisdiçãoconstitucionaldopressupostodequeosdireitos

fundamentaisnãopodemsersubmetidosaojogodemocráticoilimitado;emtermos

institucionais, à vontade do parlamento. Combinada com a ideia dworkiniana da

disponibilidadedeumarespostacorretaparatodososcasoslevadosaojudiciário,o

caráter anti-utilitário dos direitos erige a Corte Constitucional em um “fórum de

princípio” (DWORKIN, 2005, p. 41-104), ou seja, no guardião máximo dos mais

nobresprincípiosformatadoresdoconvíviosocial.

4.Técnicaedespolitização:aindiferençaaosofrimento

A segunda metade do século XX viu tornar-se mais complexa a organização das

identidadessociais.Aemergênciadosmaisvariadosparticularismos–étnicos,raciais

edegênero–foiacompanhadapelademandapolíticavoltadaàdefesadadiferença.

Nesse sentido, a “democratização nas sociedades contemporâneas pode ser vista

como o aumento das esferas públicas autônomas entre os participantes” 7

(BENHABIB, 1992, p. 87, tradução livre), com a consequente especificação dos

contextosdiscursivosemtornodepautasnãocompletamentegeneralizáveis.

Essa conjuntura política e social coloca um desafio importante para a

compreensão da esfera pública. Em linhas gerais, interessa saber como é possível,

diante dos mais variados ambientes argumentativos particulares, conceber um

espaçodeliberativocujosprodutostenhamumcaráteruniversal,ouseja,sevoltema

toda a sociedade e transcendam os limites de cada um dos nichos produtores de

normatividade. O que está em questão, portanto, é a própria possibilidade de

organizaçãodaesferapúblicadeumaformaque,superandoumaingênuaadesãoàs

demandasporabsolutoisolamentodasdiversasesferas,dêcontadarelaçãoentrea

universalidadeeasdiversasparticularidades.

Habermasindicaocaminhoparaaabordagemdaquestão.Oautordistingue

entre as deliberações voltadas à decisão e os processos informais de formação de

7“Democratizationincontemporarysocietiescanbeviewedastheincreaseandgrowthofautonomouspublicspheresamongparticipants”(BENHABIB,1992,p.87).

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opiniãonoespaçopúblico(HABERMAS,1998,p.307).Essasduasdimensõesdosocial

seriam qualitativamente distintas: enquanto estão direcionadas à tomada de

decisões vinculantes para toda a sociedade, algumas deliberações ocorrem no

espaço organizado através de regras constitucionais (parlamento, tribunais, etc.);

outras deliberações, porém, ocorrem naquilo que o autor chama de contextos de

descoberta, ou seja, os ambientes públicos não regulamentados diretamente

(associaçõescivis,mídia,etc.).Comosepodeperceber,oscontextosorganizadospor

meio dos procedimentos oficiais surgem como a fonte das decisões universais,

enquantoqueosparticularismossearticulamnoscontextosdedescoberta.

Tal distinção, porém, suscita a seguinte pergunta: como se relacionam os

contextos de descoberta e os contextos de justificação? Em outras palavras, que

consequências gera para tal relação a exigência de legitimidade pela participação

característicadademocraciadeliberativa?Taisquestõesserãoaquienfrentadascom

base em dois conceitos que, a nosso ver, estão intrinsecamente relacionados: em

primeiro lugar,oconceitodesubalterncounterpublicpropostoporFraser (1992,p.

123);emseguida,oconceitodehegemoniapropostoporLaclaueMouffe(2001,p.

7).

FraserpartedeumadistinçãosimilaràqueladeHabermas:aoscontextosde

descobertaaautoradáonomedeweakpublics;aosde justificação,strongpublics

(FRASER,1992,p.133-134).Odiferencialdesuateorização,porém,seencontrana

elucidação domodo como se dá a relação entre essas duas dimensões do espaço

público. Tomando por objeto a experiência de alguns movimentos sociais

emancipatórios – e com base no reconhecimento do traço paradigmático da luta

feminista -, Fraser apreende o fluxo comunicativo que se orienta das esferas

discursivasparticularesemdireçãoaoscontextos institucionaisapartirdaquiloque

chamadesubalterncounterpublics.Poressaexpressão faz-semençãoàquelas“[...]

arenasdiscursivasparalelasondemembrosdegrupossociais subordinadoscriame

fazer circular contra-discursos orientados à formulação de interpretações

oposicionistas de suas identidades, interesses e necessidades” 8 (FRASER, 1992, p.

123,traduçãolivre).

8 “[…] parallel discursive arenas where members of subordinated social groups invent and circulatecounterdiscourses to formulate oppositional interpretations of their identities, interests, and needs”(FRASER,1992,p.123).

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É importantenotarcomoessa formulaçãodeFraserpressupõeaatribuição

de um traço subversivo às esferas discursivas particulares. Isso porque compõe a

própriarazãodeserdeumatalidentidadeparticularopropósitodefazercomquea

pautaquelheécaracterísticaassumaummaiorespaçonodebatepúblicogeral.Os

procedimentos democráticos que estruturam a democracia deliberativa passam a

operarnessecontextocomo filtros que regulamoacessodos fluxos comunicativos

dasesferasparticularesaoscontextosdejustificação(FARIA,2000,p.53).Portanto,

o pluralismo característico da dimensão não-oficial do espaço público se converte,

através de regras procedimentais, em discursos aptos à produção de normas

universalmenteobrigatórias.

Aqui entra em cena a ideia de hegemonia. No contexto de antagonismo

social pressupostopela teoria crítica, cadaumadas esferasdiscursivasparticulares

quebuscaaemancipaçãoemfacedopoderpolíticoilegítimopossuiumaidentidade

internamentedividida(LACLAU,2011,p.61).Querissodizer,basicamente,quecada

umadelaspossuiumelementoquecompartilhacomtodasasoutras,queéaprópria

oposiçãoaopoderinjustificado.Nessestermos,portanto,aemergênciadediferentes

lutasporlibertaçãodeveseranalisadacombaseemumaperspectivadupla:háalgo

departicularemcadaumadasdiferentesidentidadespolíticas,mashátambémalgo

quetodaselascompartilhamemdecorrênciadofatodequeseopõemaumamesma

forçaopressora.

É justamente essa ambiguidade que torna possível a hegemonização de

alguma identidade particular através dos procedimentos democráticos. Enquanto

simples oposição ao poder ilegítimo, o universal faz parte de todas as identidades

particularese,portanto,nãotemconteúdonecessário.Éesseoambientepropícioà

efetivação da relação hegemônica como assunção da função universal por uma

identidadeespecíficaehistoricamentesituada:“[...]hegemoniafazreferênciaauma

totalidade ausente, bem como às diversas tentativas de recomposição e

rearticulaçãoque,superandoavaguezaoriginária,tornampossívelqueàslutasseja

dado significadoe as forçashistóricas sejam imbuídasdeuma total positividade” 9

(LACLAU;MOUFFE,2001,p.7,traduçãolivre).

9 “[...]hegemonywill allude to an absent totality, and to the diverse attempts at recomposition andrearticulationwhich, inovercoming thisoriginal absence,made itpossible for struggles tobegivenameaningandforhistoricalforcestobeendowedwithfullpositivity”(LACLAU;MOUFFE,2001,p.7).

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Note-sequeesseraciocínioconduz,porvias ligeiramentediversasdaquelas

queatéaquiforamexploradas,aoreconhecimentodalegitimidadedoprocedimento

comomeioparagerardecisõesvinculantesnoâmbitodeumasociedadepluralista.A

hegemoniaemumEstadodeDireitoseconcretizacombaseemnormasgerais;com

basenodireito,portanto.Tendocomopressupostoaexistênciadeumuniversalque,

àmedidaqueécompostopelaoposiçãoàopressãodirigidaa todasas identidades

embuscadeemancipação,nãotemconteúdonecessário,aarticulaçãohegemônica

pressupõeumprocedimentocujaaberturaefluidezcorrespondaaocarátersempre

contingentedaassunçãodafunçãouniversalporqualqueridentidadepolítica.Torna-

sefundamental,nessesentido,oapeloàrazãoprocedimental;àrazãoque,nodizer

deHabermas(1998,p.xli)assumeparasiafunçãodeautocríticaeautoavaliação.

Aquiganhasentidoareferênciaaocaráterdeletériodatécnica,tomadaem

seu aspecto distintamente jurídico. Antes de aprofundarmos tal ponto, uma breve

incursãosobreosentidogeraldaideiadetécnica.Norecortequeaquinosinteressa,

ela consiste em ummodelo específico de ação social: uma atuação normativa em

facedaquiloquesupostamenteédesprovidodenormatividade.Diantedoquenão

possui vida espontânea, o agir tecnocrático faz valer a estrutura de uma

racionalidade voltada à resolução de problemas, à manutenção da ordem pré-

estruturada.

Emestudosdefilosofiaeteoriadodireito,talmodelodeaçãoestevequase

sempreassociadoaopositivismo jurídico.AssiméqueLukácsvisualizaumarelação

necessáriaentreaconcepçãodo fenômeno jurídicoquederivadeumaTeoriaPura

do Direito10 e a impossibilidade de se acessar aquilo que chama de “substrato

materialdodireito”:

[...]ofundamentorealdaorigemdodireito,amodificaçãodasrelaçõesde poder entre as classes, tornam-se confusos e desaparecem nasciênciasquetratamdodireito,nasquais–deacordocomasformasdepensamentodasociedadeburguesa–nascemosmesmosproblemasdatranscendência do substrato material que na jurisprudência e naeconomiapolítica(LUKÁCS,2012,p.237-38).

À luz daquiloque foi até aqui desenvolvido, pode-se tomar a afirmaçãode

Lukács no seguinte sentido: a compreensão e operação do direito a partir dos

10AreferênciadizrespeitoaKelsen(1998).

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desdobramentos reificantes da técnica tem por corolário a perda de sensibilidade

paraarelaçãoimanenteentreoscontextosdedescobertaejustificação.Assiméque

o caminho que as pautas emancipatórias devem fazer na direção da mediação

universaldesuasaçõesficaobstruído.ODireitoperdesuapotencialidadeenquanto

razãohistoricamentepossível,enquantoespaçodearticulaçãopúblicadosofrimento

social.Numaformulaçãodefinitiva,odireitoseconvertenoespaçodaindiferença.

Tal diagnóstico já foi formulado nosmais variados termos: com ClausOffe

(1975,p.70-84),falou-sedo“dilemadatecnocracia”;comHabermas(1980,p.301-

33),falou-sedajáreferida“colonizaçãodomundodavida”;noconturbadocontexto

daúltimaditadurabrasileira,EderSader(1988)tratoudeevidenciaromodocomoo

poder político ilegítimo valeu-se do recurso à técnica e à ciência como modo de

justificaçãodesuasaçõesautoritárias.Apresenteabordagem,porém,lançaluzsobre

aatualidadedetalmododeanálisenumambientequemuitosedistancioudaqueles

quepelaprimeiravezsuscitaramacríticaàtécnica.

Defato,tudotranscorreemnossosdiascomoseestivesseemoperaçãoum

novomodo de compreender o fenômeno jurídico. Tome-se, por exemplo, as duas

concepçõesque subjazemàs já referidas tentativas de fundamentar a legitimidade

dajurisdiçãoconstitucional:omodelodworkinianodo“direitocomointegridade”ea

difusanoçãode“pós-positivismojurídico”.Auniressasconcepções,encontra-seuma

crença na reaproximação entre exigências jurídicas, éticas e morais; algo que nos

colocariadiantedosmaisinauditosdesafiosemrelaçãoàaplicabilidadedospadrões

jurídicos11. O ponto que aqui se pretende evidenciar é o seguinte: com novas

roupagens,avelhatécnicamantémintocadoseupotencialdespolitizador.

Dois exemplos para fechar provisoriamente nossa argumentação, ambos

tomados da história recente do Supremo Tribunal Federal brasileiro: a Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, que versa sobre a

possibilidade de aborto de fetos anencefálicos; e a Ação de Descumprimento de

PreceitoFundamental (ADPF)13212,ondesedecidiusobreapossibilidadedeunião

civilentrepessoasdomesmosexo.

Aanálisedoprimeirodoscasoscolocaemevidênciaomodocomoaquestão

políticapostaperanteaCortefoi,nosmaisdiversosestágiosprocessuais,vertidana

11Interessanteexemplodaassunçãoteóricadetaisdesafiosencontra-seemBarcellos(2005).12A ação foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal em conjunto com a Ação Direita deInconstitucionalidade(ADI)4277.

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questãocientíficaatinenteàspossibilidadesde fixaçãorigorosadomomento inicial

da vida humana. Assim concebida, a problemática só poderia ter sua decisão

justificada a partir do pressuposto que se pretende questionar: a possibilidade do

judiciário acessar – inclusive com o auxílio da comunidade científica chamada a

participar do processo - um planometafísico de sentidos que dá conteúdo a uma

perspectiva cuja compreensão da realidade fez completa abstração da noção

correntedevidae,principalmente,dosargumentosnão-científicosarticuladospelos

movimentossociaisfeministas.

Noquediz respeitoao segundocaso–odaADPF132 -,énotávelomodo

como o trajeto argumentativo da Corte a todo tempo deixa entrever a intenção

escusadeneutralizaçãopolíticadadecisãojurídicaatravésdaarticulaçãopuramente

técnicadahistóriadodireitoedesuascategoriasdogmáticas.Tambémaqui se faz

presenteopressupostode justificaçãoreferidonoparágrafoanterior,comespecial

ênfase no desprezo quase absoluto pelos argumentos formulados desde hámuito

pelos movimentos sociais envolvidos na luta pela garantia de igualdade entre as

pessoascomdiferentesorientaçõessexuais.

Assim sedelineia, portanto, aprevalênciade certomodode se conceber a

interação entre os espaços de decisão oficial e os fluxos que de modo não

regulamentado emergem no seio da sociedade. A obstrução do acesso de pautas

emancipatórias àmediaçãouniversal dá-sepela absolutizaçãoda técnicaenquanto

meiodedominaçãoeneutralizaçãodaquiloqueéessencialmentepolítico:astensões

sociaisdesencadeadorasdosprocessosintersubjetivosdejustificaçãodenormassão

preteridasemnomedeimperativosdeinterpretaçãoabstratosepuramenteformais.

Assim é que – sob o falsomanto da exigência de racionalidade – ganham espaço

investigações acerca dos mais herméticos métodos de decisão judicial,

especialmentenaquiloquedizrespeitoàinterpretaçãoconstitucional.Técnicascomo

aponderaçãoemesmoadistinçãoentreregraseprincípiostemservidoàocultação

daquilo que aqui se chamou de substrato material do direito, algo que tem sua

gênese na abertura e fluidez dos contextos autônomos de interpretação do

sofrimentocompartilhadoporcertosetordasociedade.

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5.Conclusão

Amodernidade política construiu-se ao redor da figura do sujeito. Não um sujeito

qualquer,masaquelequeseencontraplenamenteconstituídoantesquelhevenhaa

necessidade de adentrar no estado político. Liberado de seus enlaces éticos, o

indivíduo só encontramotivo para agir naquilo que lhe orienta no sentido de sua

própria autopreservação. Diante de tal ambiente, o direito assume a função de

neutralizaratendênciaaocaosinsinuadanocontextosocialproduzidopelainteração

de indivíduos livres.Assimcompreendido,odireitoéum instrumentalque,apartir

daobservaçãodavidasocialcomoalgoquelheexterno,forneceascondiçõesparaa

coexistênciapacíficaentreseresindividualizados.

A realização mundana do ideal moderno de liberdade põe em xeque o

individualismo metodológico. De fato, o desenvolvimento do século XIX tornou

evidente aquilo que já em Hegel se anunciava: a transformação da liberdade em

mero agir adaptativo. A razão subjetivizada deixa para fora de si o mundo; tal

mundo, por sua vez, apresenta-se ao sujeito isolado como realidade inexorável,

como fatalidade: o projeto de autodeterminação colapsa diante da absoluta

incapacidadedosujeitoparadeterminarosdestinosdavidasocialcompartilhada.Tal

diagnóstico traz à luz a necessidade de se pensar outro modo de existência da

subjetividade,ummodoconcretoecondicionadoporestruturasintersubjetivas.

Assume-se como ponto de partida, portanto, a formação intersubjetiva da

subjetividade. De modo geral, tal ideia indica a necessidade de se pensar o

funcionamentodasinstituiçõesqueconformamouniversosocial,umavezqueesse

agoraécompreendidocomoespaçoderealizaçãodaliberdadedosujeitoconcreto.É

assim que o direito ganha nova roupagem. Esvaziado enquanto instrumento

ordenador, o direito assume a forma de uma espécie de jogo de linguagemmoral

que se universaliza: a potencialidade de pautas particulares somente pode se

desenvolvernocaminhode suamediaçãopelagramática jurídicacompartilhada.O

que surge, portanto, é a concepção do direito como espaço de tematização de

demandas, como espaço de articulação pública das exigências de realização

comunitáriadaliberdade.

Assimseencontramdelineadasascondiçõesparaacompreensãodatécnica

enquantopatologia,enquantomeioqueinibearealizaçãodaliberdade.Issoporque

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a percepção do direito como universal racional – como razão historicamente

possível,pode-sedizer–implicaaanálisedasinteraçõespossíveisentreoscontextos

dedescobertaeoscontextosdejustificação.Opontofundamentalaquidizrespeito

ao fato de que a penetração de discursos subalternos nos espaços universais de

justificação exige abertura procedimental à sensibilidade do sofrimento

publicamentearticulável.Tomadacomooconjuntodeimperativosquecondicionam

açõespretensamenteneutrasenãovalorativas,atécnicafazabstraçãodosubstrato

materialdofenômenojurídico,fazabstraçãodarelaçãoimanenteentredescobertae

justificação.

O que daí se segue é a obstrução dos caminhos do discurso contra-

hegemônico. O anseio por emancipação se coagula diante da impossibilidade de

acesso aos ambientes em que tomam forma as decisões sobre o destino da

sociedade. Não mais fazendo valer sua potencialidade enquanto espaço de

tematização de opressões, o direito se converte no espaço da indiferença.

Indiferença diante dos fluxos comunicativos que emergem dos discursos críticos

sobre o sentido da história; indiferença, portanto, diante de qualquer impulso

transformadorquepretendauniversalizar-se.

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Sobreoautor:ThiagoFerrareProfessor substituto do Departamento de Teoria do Direito da FaculdadeNacional de Direito FND/UFRJ. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pelaUniversidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e mestrando em Ética eFilosofia Política pela Universidade de Brasília - UnB. E-mail:[email protected]éoúnicoresponsávelpelaredaçãodoartigo.