caminhos abertos na polinésia baiana
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Reportagem sobre a península de Maraú, no sul da Bahia, onde moradores, empresários e governo não se entendem quando o assunto é a exploração turística da regiãoTRANSCRIPT
Caminhos abertos na
POLINÉSIABAIANA
Cristiano, nativo
de Maraú: moto-
táxi e mergulho
na Pedra Furada
Texto VITOR PAMPLONA [email protected] FERNANDO VIVAS [email protected]
Com praias e ilhas de beleza quase surreal, a Península de Maraú,localizada no litoral sul da Bahia, é considerada um dos destinos
ecoturísticos mais famosos e concorridos do País
Aestrada de barro que corta a Península de Maraú, pedaço de terra quase
desertonolitoralsuldaBahia,nuncaestevetãomovimentadaquantoneste
verão.Desdemeadosdedezembro,carroscomplacasdenorteasuldoBrasil
percorrem a rodovia rumo às praias da região, disputando espaço com ca-
çambas carregadas com cascalho usado em obras de recuperação da pista
sem pavimento, identificada pelos guias rodoviários como um trecho da
BR-030.Aexplicaçãoparaonúmerodemotoristasdispostosaenfrentar60quilômetrosde
terra, pedras e poeira começa nos roteiros turísticos e termina nas máquinas que reparam
a estrada a fim de tornar a viagem menos penosa: apontada pela imprensa especializada
como o destino ecoturístico mais belo do País, a Península de Maraú tem sido descoberta
por cada vez mais visitantes por causa das melhorias no acesso rodoviário, que, partindo
de Salvador, via ferryboat, totaliza cerca de 260 quilômetros.
Há alguns anos, dizem os moradores das redondezas, não era possível completar o
trecho esburacado e arenoso em menos de um dia de viagem, o que tornava a península
quaseumailha.Oacessosóeraaconselhávelpormeiodosbarcosquediariamentecruzam
a Baía de Camamu, que separa a porção de terra do continente.
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«Nosso ideal de vida é trabalhar muito naalta temporada para poder aproveitar estelugar maravilhoso no resto do ano»
Havia praticamente uma única porta de
entrada: Barra Grande. A antiga vila de
pescadoresaindaéoprincipalpontodede-
sembarquedeumlugarquemisturapraias
paradisíacas, uma baía de águas tranqui-
las, ilhas cercadas por bancos de areia, la-
goas e cachoeiras. Mas deixou de ser um
entrepostoobrigatórioparachegaraodes-
tino preferido pelos turistas nos arrabal-
des, fincado na costa oeste da península.
Banhada por águas esverdeadas, a
Praia de Taipu de Fora se estende por mais
de um quilômetro de longos trechos de
areia, grande parte sem sinal de presença
humana. A maré baixa descortina a joia
queinspirouoapelidodePolinésiabaiana:
enormes piscinas naturais, formadas pelo
bloco de corais que costeiam a praia.
Entre a areia e o mar, um único território
demarcado por barracas e cadeiras de sol
concentra os turistas na alta estação. A pai-
sagem é de balneário: pessoas em trajes
debanho,experimentandoequipamentos
de mergulho, jogando frescobol. Mas se-
guir a trilha de areia por alguns minutos le-
va invariavelmente à solidão.
No horizonte, dividido pela linha dos co-
queiros, a curva da praia só traz as primei-
ras silhuetas humanas após centenas de
metros. De mãos dadas, dois adultos e
duas crianças atravessam o deserto à bei-
ra-mar. A imagem leva alguns minutos pa-
ra se transformar numa família: Danielle,
36, e Dênio Moura, 39, conduzem os filhos
Gabriel e Marina para o passeio matinal
que virou rotina nas férias.
Servidores públicos de Brasília, os dois
dizem ter escolhido uma confortável pou-
sada em Taipu de Fora em busca de sosse-
go. “Sempre preferimos lugares isolados e
tranquilos nas férias, como Maraú e Barra
de São Miguel (AL)”, compara Danielle.
O casal se encaixa à perfeição no perfil
maiscomumdequemvisitaaPenínsulade
Maraú. Com promessas de privacidade,
contato com a natureza e simplicidade –
sem dispensar conforto –, as pousadas da
região seduzem pessoas de todo o Brasil e
muitos países, cujo objetivo é descansar.
Tais atributos foram decisivos quando o
mineiro Nestor Maciel, 46, decidiu fechar a
pousadaquepossuíaemPirinópolis(GO)e
abrir um negócio no litoral. A Península de
Maraú foi escolhida depois de examinar
quase mil quilômetros de costa, entre o Es-
pírito Santo e o sul da Bahia. “Foi uma de-
cisão baseada no potencial que acredita-
mos haver aqui. Nem propaganda eu faço,
até para não comprometer a privacidade
dos hóspedes. Recebemos muitos artistas,
quequeremsórelaxar”,delataMaciel,que
comprou uma velha pousada desativada,
reformouasinstalaçõeseconstruiuumres-
taurante na beira da praia para servir fo-
rasteiros dispostos a pagar até R$ 240 por
dia de hospedagem – preço camarada
comparado às diárias do único resort da
península, que chegam a R$ 2.350.
A taxa de ocupação, Maciel reconhece,
só se aproxima dos 100% no verão e feria-
dos prolongados, mas a baixa procura na
maior parte do ano está longe de ser uma
preocupação. “Nosso ideal de vida é este
mesmo: trabalhar muito na alta tempora-
da para também poder aproveitar este lu-
garmaravilhosonorestodoano”,dizoem-
presário,quesemudoucomamulherKelly
e dois filhos para a península.
MOTOTÁXI E SNORKELVizinha da badalada Itacaré, destino tu-
rísticomaisdesejadodaregião,Maraúain-
da atrai poucos baianos da capital se leva-
da em conta a pequena distância para Sal-
vador.Poroutrolado,cidadespróximasco-
mo Camamu, Jequié e Itabuna despejam
cortejos de moradores por terra e mar.
“As pessoas vêm de fora usufruir do nos-
sopatrimônio,e,muitasvezes,agenteque
é daqui não sabe dar valor”, argumenta o
camamuense Cristiano da Hora, 35. Moto-
taxistadesegundaasexta,elepõesnorkel,
máscara de mergulho e pés-de-pato nos
fins de semana. Arpão nas mãos, cai nas
águas da Baía de Camamu à caça de peixes
e lagostasnosarredoresdeilhascomoada
Pedra Furada, um punhado de terra de be-
Os brasilienses
Danielle e Dênio,
com os filhos, em
Taipu de Fora.
Rafael Araújo e
Mariana Sobreira
na Lagoa Azul.
José Bonfim, com
a mulher Maria e
a filha Gabriele,
na Ilha do Goió
O guia Williams de Souza, na Pedra Furada: por R$ 2, ele dá explicações geológicas e conta histórias de pescador
Nestor Maciel, dono de pousada
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leza cenográfica do tamanho de um salão
defestas.“Euviagentemergulhandoaqui,
coisa que eu, que sou nativo, nunca tinha
feito. Aí me deu vontade”, diz Cristiano.
Principalatrativodopasseiodebarcoou
lanchaquepartedeBarraGrandeeperam-
bula pela baía, a Pedra Furada só é aces-
sível a embarcações de grande porte por
meio de um banco de areia próximo, que a
maré baixa transforma em trilha submer-
sa. Após atravessar o caminho de areia e
pedras, o visitante pode ter a sorte de en-
contrar na ilha, uma propriedade privada
lacrada a maior parte do tempo por um
portãodemadeiraencravadonumagruta,
o caseiro Maciel de Souza ou seu irmão de
16 anos, Williams, primeiro imediato na li-
nha de defesa do paraíso particular.
Com a singela contribuição de R$ 2, é
possível entrar na ilha e ouvir dos guias ex-
plicações geológicas para a formação da
pedra que batiza o lugar, além de histórias
literalmente de pescador. Uma expõe o
motivo de um pedregulho de quatro me-
tros de altura ser chamado de “catedral”:
“Os pescadores antigos diziam ver o rosto
de Cristo na pedra. Quando o mar não es-
tava para pesca, aproximavam-se, oravam
e depois conseguiam pegar todo tipo de
peixe”, Williams reproduz a lenda.
Além da Ilha da Pedra Furada, a Baía de
Camamu tem outro ponto de parada obri-
gatório: a Ilha do Goió. Num final de sema-
na, a muvuca provocada por gente toman-
do banho de sol, comendo churrasco e be-
bendo cerveja leva a crer que o nome mais
apropriado seria Ilha do Goró. Para cente-
nasdehabitantes locais,comooconstrutor
naval José Bonfim, 39, a ilha é o oásis dos
sábados, domingos e feriados.
“No fim de semana que eu posso, estou
aqui”, admite o morador do povoado de
Cajaíba, cuja maioria da população traba-
lha em estaleiros, na construção de escu-
nas, saveirosecanoasavela.Bonfimlevaa
famíliaparanavegarnumsaveironovinho,
feito por ele. “Antigamente, os saveiros
eram muito comuns por aqui. Agora estão
voltando, junto com as canoas”, diz. O in-
centivo é a organização de regatas, que
pontilhamomarcomvelasedeixamainda
mais bonita a Baía de Camamu.
QUADRICICLOA terceira maior baía brasileira em vo-
lume de água foi o primeiro cartão-postal
da península visto pelos namorados Ma-
riana Sobreira, 21, e Rafael Araújo, 25. Es-
tudantes de Salvador, os dois chegaram a
Barra Grande depois de cerca de 30 minu-
tos de barco desde a cidade de Camamu.
Pela primeira vez na região, Rafael ex-
plica por que a escolheram: “A gente pre-
tende conhecer mais o sul da Bahia. Como
játínhamosidoaBoipebaeItacaré,viemos
agora para a Península de Maraú”. Após o
conhecimento da área, Mariana faz seu
diagnóstico: “Aqui é mais para quem quer
descansar, é um local ideal para isso. Acho
que ainda não descobriram Barra Grande,
por isso existe essa tranquilidade”.
Montados num quadriciclo alugado,
meio de transporte que facilita andar pelos
caminhosdeterradascercanias,osdoisex-
ploram trilhas que levam a praias isoladas
e lagoas cruciais para o equilíbrio ecológi-
co. As mesmas lagoas, porém, são usadas
como armadilha para turistas: indicada
por placas de sinalização e tratada como
grande atração nos roteiros de passeio, a
visitaviradecepçãodiantedecercasdeara-
mefarpadoqueimpedemoacessoàsmar-
gens. A aventura só vale a pena se preva-
lece o desejo de se embrenhar no mato, o
que pode ser um desafio para quem passa
os dias enfurnado em escritórios e não co-
nhece patavina da “vida selvagem”.
Uma forma de encarar a experiência em
grupo é recorrer às jardineiras de Barra
Grande, veículos com carroceria adaptada
para o transporte coletivo que, diariamen-
te, fazem o roteiro das praias, lagoas, mor-
ros e trilhas ecológicas da península.
OpasseiocustaR$30porpessoa,maso
valor pode ser negociado a depender do
número de aventureiros. Parte integrante
da paisagem do vilarejo, as jardineiras são também o meio de
transporte mais tradicional de Barra Grande. Nos dias que ante-
cedemesucedemoRéveillon,picoanualdevisitaçãodapenínsula,
elas circulam pelas ruas e estradas da manhã à noite. Mas, à me-
dida que o verão se aproxima do fim, cresce a fila de caminhonetes
paradas no ponto de embarque no centro do povoado, à espera de
passageiros,querareiamdesdequeoacessoàpenínsulasetornou
mais fácil pela BR-030.
Mesmo nas primeiras semanas do ano, a paisagem semirrural
de Barra Grande surpreende pela ausência de pedestres nas ruas e
lojas, bares e restaurantes fechados durante o dia. O marasmo só
é quebrado periodicamente, com a chegada de barcos trazendo
passageiros com mochilas nas costas e sacolas nas mãos, numa
romaria que começa no píer e vai minguando à medida que os
visitantes se distribuem pelas pousadas.
Esvaziadas até o final da tarde, as duas pracinhas no centro da
vilasódespertamcomocairdanoite,transformandoumambiente
quase desabitado em ponto de concentração turístico. Espalhadas
por comerciantes, mesas e cadeiras de plástico recebem a gente
bronzeada que passou o dia nas praias da costa oceânica ou a bor-
do de embarcações, circulando pela Baía de Camamu.
Comer e beber torna-se então o esporte preferido de homens e
mulheres, enquanto a madrugada não sugere atividades mais se-
dutoras, como o forró à beira-mar organizado por uma barraca de
Jardineiras que
fazem passeios
em Barra Grande.
O agito etílico na
praça do distrito
de Maraú. E as
barracas da praia
de Taipu de Fora,
repletas de
turistas
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praia da vila. Em Barra Grande ou no res-
tante da Península de Maraú, é o máximo
de gandaia que se pode encontrar depois
da temporada de festas de Réveillon.
MERCADOPara os empresários locais, porém, a
agitação começa no final de novembro,
quando o mercado imobiliário da penínsu-
ladespertaparaosnegócios.Amaioriados
investidores, gente que decide abrir uma
pousada ou bar na expectativa de lucrar
com o crescente movimento turístico, é de
fora da Bahia ou mesmo do Brasil.
Cientes dos riscos embutidos em contra-
tos a longo prazo, eles adotam uma estra-
tégia comum: arrendar casas a serem
transformadas em pousadas ou pontos co-
merciais já estruturados apenas durante o
verão. Há três anos, o paulista Carlos Hen-
rique Mota, 29, muda-se para Barra Gran-
dedenovembroamarço.Trazidosporuma
irmã que arrendou uma pousada, ele e o
pai, Antônio Carlos, 58, tocam uma barra-
ca na Ponta do Mutá, a paradisíaca extre-
midade norte na península. De Dracena, a pequena cidade no in-
terior paulista de onde vieram, trouxeram a esperança de ganhar
dinheirovendendopratossofisticados,preparadossobretudocom
frutos do mar. Aliado às delícias sobre a mesa, o pôr-do-sol no ho-
rizonte da baía, exatamente em frente à barraca, completa o ar-
senal de atrativos capaz de convencer qualquer turista a sentar sob
um sombreiro e gastar alguns tostões.
Aexperiênciadetrêstemporadas,noentanto,nãoestimulaCar-
los Henrique a planejar uma quarta. “Ainda não sei se valeu a pena
investir três verões aqui. Trabalho até 16 horas por dia e o mo-
vimento varia muito, mesmo na alta temporada”, diz o empresá-
rio, que também pilota o fogão do restaurante enquanto o pai cui-
da do caixa. “A verdade é que muita gente que abre pousadas ou
baresaquidesistedepoisdealgumtempoepassaoponto.Equem
é proprietário prefere arrendar para garantir uma renda”.
O ceticismo do empresário e o troca-troca de pontos comerciais
nãotêmevitadoquenovosnegóciossurjamnãosóemBarraGran-
de,masemtodaapenínsula.Aexpansãoeconômicaébemmenor
do que a observada em Itacaré, mas é facilmente percebida inclu-
sive por quem está ali a passeio. Mesmo com acesso complicado,
longos trechos sem rede de telefonia celular e um caixa eletrônico
sequer, a Península de Maraú exibe cada vez mais anúncios imo-
biliários.Adescobertadaregiãopeloscorretores,semdúvida,está
associada à melhoria do acesso rodoviário, que abre para a pe-
nínsula caminhos rejeitados pela maioria dos empresários já ins-
talados e parte da população nativa.
Eles temem que, ao ser asfaltada, a es-
trada que une a localidade ao continente
desoveturistasdemais,quegastempouco
dinheiro e ameacem os bens que mais
atraem visitantes: a natureza em estado
quase bruto e a tranquilidade.
Paraasjardineiras,osprejuízosjácome-
çaram. Presidente da associação de moto-
ristas, Genilson dos Santos, o Careca, diz
que a procura pelo serviço diminuiu em
torno de 50% desde que a rodovia passou
pelas primeiras obras de recuperação, há
dois anos. “Nossa renda caiu”.
O medo de ver a península invadida de
forma desordenada uniu recentemente
motoristas e empresários numa iniciativa,
no mínimo, incomum: um abaixo-assina-
do contrário à recuperação da estrada. A
medida é considerada um equívoco pelo
presidente do Conselho Municipal de Tu-
rismo de Maraú, Juarez Nogueira: “O que
destrói um lugar não é o progresso, mas a
falta de estrutura”, alega Nogueira, dono
de uma pousada próxima à Praia de Sa-
quaíra, um dos povoados da península.
Na prefeitura local, o discurso alia a pro-
messa de preservação à expectativa de in-
vestimentos federais e estaduais. Um pro-
jeto prevê a construção de um portal antes
de Barra Grande, para limitar a entrada de
carros. Há mais de um ano, fontes do Mi-
nistériodosTransportesconfirmamplanos
de asfaltar a BR-030.
De olho na Copa do Mundo de 2014, o
município de Maraú foi eleito pelo gover-
no federal um dos “destinos indutores do
turismo” no Brasil. São 65 cidades com po-
tencial para atrair turistas, mas precisam
melhorar seus serviços. Com praias e ilhas
que disputam qualquer título mundial, a
Polinésia baiana terá antes que encontrar
uma forma de tranquilizar seus próprios
moradores. «
COMO CHEGARBarcos e lanchas saemdas 6h às 17h doporto de Camamu, aR$ 6 e R$ 25. Por viaaérea, o aeroportomais perto é o deIlhéus. Na península,há uma pista de pousoprivada, que atente atáxis aéreos, no KiaroaResort (71 3272-1320)Saiba mais nobarragrande.net epeninsulademarau.com
Nestor e Kelly,
em frente à
pousada
Kaluana. O
empresário
Carlos Henrique,
em sua barraca