caderno seminal digital – vol. 16 – nº 16– (jul /dez ... · ii. universidade do estado do...

215

Upload: trandat

Post on 08-Nov-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

2

Caderno Seminal Digital – Vol. 16 – Nº 16– (Jul /Dez - 2011). Rio de Janeiro: Dialogarts, 2011.

ISSN 1806-9142

Semestral

1. Lingüística Aplicada – Periódicos. 2. Linguagem – Periódicos. 3. Literatura -

Periódicos. I. Título: Caderno Seminal Digital. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

CONSELHO CONSULTIVO

André Valente (UERJ / FACHA)

Aira Suzana Ribeiro Martins (CPII)

Claudio Cezar Henriques (UERJ / UNESA)

Darcilia Marindir Pinto Simões (UERJ / PUC-SP)

Edwiges Guiomar Santos Zaccur (UFF)

Eliane Meneses de Melo (UBC-SP)

Flavio Garcia (UERJ / UNISUAM)

Jayme Célio Furtado dos Santos (SEE-RJ / SME-

Macaé)

José Lemos Monteiro (UFC / UECE / UNIFOR)

José Luís Jobim (UERJ / UFF)

Magnólia B. B. do Nascimento (UFF)

Maria Geralda de Miranda (UNISUAM / UNESA)

Maria Suzatt Biembengut Santad (UMinho-PT /

FMPFM E FIMI -SP / UERJ)

Maria Teresa G. Pereira (UERJ)

Nícia Ribas d’Ávila (Paris VIII)

Regina Michelli (UERJ / UNISUAM)

Sílvio Santana Júnior (UNESP)

Vilson José Le a (UCPel-RS)

EDITORA

Darcilia Simões

CO-EDITOR

Flavio Garcia

ASSESSOR EXECUTIVO

Cláudio Cezar Henriques

DIAGRAMAÇÃO

Elisabete de Jesus Estumano Freire(Bolsista Proatec )

Juliana Vilarinho (Bolsista de Extensão)

PROJETO DE CAPA

Carlos Henrique de Souza Pereira (Bolsista de Extensão)

LOGOTIPO

Gisela Abad

Contato:

[email protected]

publicaçõ[email protected]

3 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Publicações Dialogarts é um Projeto Editorial de Extensão

Universitária da UERJ do qual participam o Instituto de Letras

(Campus Maracanã) e a Faculdade de Formação de Professores

(Campus São Gonçalo). O Objetivo deste projeto é promover a

circulação da produção acadêmica de qualidade, com vistas a facilitar

o relacionamento entre a Universidade e o contexto sociocultural em

que está inserida.

O projeto teve início em 1994 com publicações impressas pela

DIGRAF/UERJ. Em 2004, impulsionado pelas dificuldades encontradas

no momento, surgiram, com recursos e investimentos próprios dos

coordenadores do Projeto, as produções digitais com vista a recuperar

a ritmo de suas publicações e ampliar a divulgação.

Visite nossa página: http://www.dialogarts.uerj.br

4 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 6

Flávio Garcia

O DISCURSO DE BARACK OBAMA NO RIO: FUTEBOL,

DEMOCRACIA E DEMAGOGIA, EM CLIMA DE

“AQUARELA DO BRASIL” 8

Ana Maria Gini Madeira

Ana Lúcia M. R. Poltronieri Martins

PAULINA CHIZIANE E A HISTÓRIA DA POLIGAMIA 42

Jurema Oliveira

PELO OLHAR DA SEMIÓTICA: LEITURA E PRODUÇÃO

DE TEXTO 55

Darcilia Marindir Pinto Simões

Eliana Meneses de Melo

A ÉTICA POLÍTICA NA PRIMEIRA REPÚBLICA NA FICÇÃO DE

LIMA BARRETO 67

Sergio Luiz Monteiro Mesquita

A IRONIA COMO EXPEDIENTE RETÓRICO EM CONTOS

BRASILEIROS 93

Maria Geralda de Miranda

Alex Ribeiro Cerqueira

SENTIDOS DA ATIVIDADE DE AVALIAR: A FORMAÇÃO DE

PROFESSORES EM PERSPECTIVA DISCURSIVA 107

Bruno Deusdará

Maria Cristina Giorgi

5 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

A LIÇÃO DE BARTHES: A ARGUMENTAÇÃO EM

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA: BREVE ANÁLISE. 128

Elisa Tavares Pires

NOVOS REALISMOS NA CONTEMPORANEIDADE:

A ESCRITA DE HISTÓRIA 152

Aline de Almeida Moura

A EXPERIÊNCIA DO REAL: UM LEITURA DE “OS TRÊS NOMES

DE GODOFREDO” SOB A PERSPECTIVA DO INSÓLITO

FICCIONAL 168

Luciana Morais da Silva

O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE ARTHUR ENGRÁCIO,

BENJAMIN SANCHES E CARLOS GOMES 183

Kenedi Santos Azevedo

O HORROR E O FANTÁSTICO NA PROSA DE

MANUEL ANTÔNIO ÁLVARES DE AZEVEDO 198

Karla Menezes Lopes Niels

6 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

APRESENTAÇÃO

Onze diferentes artigos, abordando questões linguísticas e

literárias, escritos por quinze autores, que, em quatro situações,

formam par, compõem este número do Caderno Seminal, referente

ao segundo semestre de 2011.

Sem descuidar da qualidade dos textos submetidos à

publicação, ponto culminante do processo seletivo, levado a cabo por

um Conselho Editorial Consultivo de alto nível acadêmico, a

organização deste número levou em conta, ainda, outras premissas

básicas que deram origem ao projeto editorial do periódico.

O Caderno Seminal, foco gerador do PublicaçõesDialogarts,

hoje, editora extensionista, nasceu como anais de um evento que

reunia, na Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo, no

início da década de 1990, pesquisadores em geral, professores de

diferentes níveis de ensino, alunos e comunidade interessada nos

estudos da linguagem.

Liberto de sua ligação umbilical com o Seminário de

Linguagens, de onde surgiu, o Caderno Seminal assumiu-se como

veículo então alternativo de divulgação da produção científico-

acadêmica que não encontrava veia de desague nas publicações da

época. Nele, publicavam-se trabalhos muito variados, sendo, não

raro, a primeira vitrina para alguns hoje reconhecidos pesquisadores.

O objetivo de manter o periódico, hoje reconhecido como B2,

em boa classificação na tabela Qualis, da CAPES, levou à necessidade

de adequações, que, a despeitoda qualidade, sempre necessária,

punha em risco seus princípios fundadores. Logo, era imperioso afinar

o processo de seleção de artigos e de composição dos números.

O resultado de tal procedimento foi admitir a submissão de

trabalho por parte de Mestrandos ou Doutorandos, em especial

7 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

quando em coautoria com seu orientador de pesquisa. Desde o

número anterior, relativo ao primeiro semestre de 2011, o Caderno

Seminal tornou a abrigar muitos novatos na seara das publicações

acadêmicas, retornando ao seu objetivo propulsor.

Espera-se, contudo, que essa atitude não traga maus frutos, e

que a árvore continue frondosa, de ampla copa folhada, florida e

consequentemente repleta de novos frutos, sabores e cheios de

saberes, espalhando sementes pelo infinito campo dos estudos da

Letras e da Linguística, bem como de demais áreas afins.

Saboreemos com prazer o sumo desses frutos aqui à espera do

deleite leitor.

Prof. Dr. Flávio Garcia

8 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

O DISCURSO DE BARACK OBAMA NO RIO: FUTEBOL, DEMOCRACIA E DEMAGOGIA,

EM CLIMA DE “AQUARELA DO BRASIL”

MADEIRA, Ana Maria Gini1

MARTINS, Ana Lúcia M. R. Poltronieri2

1-CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO

Conforme observou a mídia brasileira, a primeira visita oficial

do presidente Barack Obama ao Brasil coincidiu com outro evento

marcante na política brasileira: a eleição de uma mulher para ocupar

o cargo de presidente do Brasil, país hoje considerado pelos analistas

políticos como a segunda maior democracia do mundo depois dos

Estados Unidos da América. Em razão disso, a imprensa brasileira viu

nesse gesto um apoio ao projeto político de Dilma Rousseff, ligada ao

PT (Partido dos Trabalhadores) e discípula do ex-presidente Luís

Inácio Lula da Silva, eleito duas vezes por vias democráticas (eleição

direta e universal).

No que diz respeito à figura do presidente norte-americano,

Barack Obama tem uma singularidade: é o primeiro presidente negro

dos Estados Unidos. No Brasil e em outros países, o fato de o povo

norte-americano ter elegido um senador negro democrata para o

cargo máximo de uma nação que, há meio século, passou por

inúmeros conflitos raciais, simbolizou uma mudança de paradigma

para o país que, desde o final da Segunda Guerra Mundial em 1945,

dita a ordem sociopolítico-econômica no mundo ocidental.

1 Mestre em Linguística (UFMG), membro do NAD-UFMG (Núcleo de Análise

do Discurso), professora aposentada da SME-BH.

2 Doutoranda em Letras (UERJ) e membro do grupo Semiótica, Leitura e

produção de textos (SELEPROT-UERJ). É bolsista da FAPERJ e, durante o período de setembro a dezembro de 2011, foi bolsista CAPES na UBI

(Universidade da Beira Interior- Portugal).

9 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Além de estratégias e acordos entre os governantes, Barack

Obama marcou em sua agenda de visita ao Brasil um discurso

dirigido especialmente ao povo brasileiro. Intitulado informalmente

pela imprensa de ―Discurso da Cinelândia‖, lugar no centro do Rio de

Janeiro primeiramente escolhido para o discurso em palanque aberto

ao povo. O discurso acabou acontecendo no Theatro Municipal do Rio

de Janeiro, também na Cinelândia, para um seleto grupo de

convidados, representativo, de acordo com a segurança do presidente

americano, de vários setores da sociedade brasileira (políticos,

empresários, artistas, profissionais liberais, funcionários públicos do

primeiro escalão etc). É possível, porém, constatar que o público-alvo

que discursivamente se manifesta é aquele esperado para espaço

anteriormente previsto.

Nesse sentido, a escolha do ―Discurso da Cinelândia‖ como

corpus deste artigo deve-se ao fato de que ele tem como enunciatário

o povo brasileiro. De acordo com Charaudeau (2008, p. 187) ―em

todo o ato de discurso, o propósito é aquilo de que se fala, o projeto

que se tem em mente ao tomar a palavra; o que é, afinal, proposto‖,

que , para ele , reflete a visão do enunciador em relação à realidade

que o rodeia, pois:

Por mais que se fale (ou escreva) com a finalidade essencial de

estabelecer uma relação entre si e o outro e de influenciá-lo, tentando

persuadi-lo ou seduzi-lo, essa relação seria vazia de sentido se não

tivesse por objeto certa visão que trazemos do mundo, isto é, o

conhecimento que se tem da realidade e os julgamentos que dela se

fazem. O homem é tomado tanto por um desejo de inteligibilidade do

mundo quanto de troca com o outro. (CHARAUDEAU, 2008, p. 187)

2-OS IMAGINÁRIOS SOCIODISCURSIVOS

O ―Discurso da Cinelândia‖3 é considerado um discurso político,

porque ―toca à organização da vida em sociedade e ao governo da

coisa pública‖ (CHARAUDEAU, 2008, p. 189). O macrotema

3 Seguimos a diagramação do tradutor brasileiro para o portal G1. Assim, o

texto constitui-se de 34 parágrafos, separados por um espaço de linha.

10 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

(CHARAUDEAU, 2008, p. 188), ou campo temático, proposto pelo

enunciador, apresenta-se nos dois últimos períodos que compõem o

sexto (6º) parágrafo, que revela também a quem se dirige o

discurso:

Ontem tive um encontro com sua maravilhosa

nova presidente, Dilma Rousseff, e conversamos

sobre como fortalecer a parceria entre nossos governos. Mas hoje quero falar diretamente com o

povo brasileiro sobre como podemos fortalecer a

amizade entre nossos países. Vim aqui para compartilhar algumas ideias, pois quero falar sobre

os valores que compartilhamos, as esperanças que

temos em comum e a diferença que podemos fazer

juntos.

Repare que, no sexto (6º) parágrafo, a palavra à qual as

associações se dirigem é ―amizade‖. Evidentemente que a escolha e o

emprego desse léxico ultrapassam o uso comum, pois em se tratando

de um discurso político, a ―amizade‖ entre dois países implica um

jogo de interesses em diferentes campos da vida pública, tais como a

política, a economia, as relações internacionais etc. Desse modo,

tem- se a ―amizade‖ como ―parceria entre nossos governos‖/

―compartilhar algumas ideias‖/ ―valores que compartilhamos‖/ ―as

esperanças que temos em comum‖/ ―a diferença que podemos fazer

juntos‖.

Sempre seguindo Charaudeau (2008), pode-se dividir o

―Discurso da Cinelândia‖ em três partes. Essas partes, de acordo com

Charaudeau (2008, p. 210- 245), compõem os três grandes tipos de

―imaginários sociodiscursivos‖: o ―imaginário da tradição‖, o

―imaginário da modernidade‖ e ―o imaginário da soberania popular‖.

Mas o que são os ―imaginários sociodiscursivos‖? Conforme

Charaudeau (2008, p. 203), os ―imaginários sociodiscursivos‖ advêm

de inúmeras disciplinas (Antropologia Social, Filosofia, Sociologia etc)

que irão compor um quadro interdisciplinar, visto que nenhuma

11 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

disciplina isolada explica os valores demarcados pelos ―imaginários

sociodiscursivos‖, pois:

À medida que esses saberes, enquanto

representações sociais, constroem o real como universo de significação, segundo o princípio de

coerência, falaremos de ―imaginários‖. E tendo em

vista que estes são identificados por enunciados

linguageiros produzidos de diferentes formas, mas semanticamente reagrupáveis, nós os chamaremos

de ―imaginários discursivos‖. Enfim, considerando

que circulam no interior de um grupo social, instituindo- se em normas de referência por seus

membros, falaremos de ―imaginários

sociodiscursivos. (CHARAUDEAU, 2008, p. 203)

É notório que o discurso proferido pelo presidente Barack

Obama foi escrito para o povo brasileiro, mesmo que, no primeiro

(1º) parágrafo, ele evoque o Rio de Janeiro e a sua antonomásia

mundialmente conhecida, ―Cidade Maravilhosa‖. Neste mesmo

parágrafo, encontra-se, em forma de cumprimento, a primeira

referência direta ao povo brasileiro- ―Boa tarde, todo o povo

brasileiro‖, no qual o uso do quantificador ―todo‖ reforça a ênfase

sobre o termo lexical ―povo‖. Outra característica marcante no

discurso é a escolha de termos lexicais de fácil compreensão para

todos os presentes. Quase não há no discurso termos advindos de

terminologias de áreas restritas ao campo político, apesar de o

―Discurso da Cinelândia‖ ser um discurso político, visto que o seu

enunciador não se despiu do seu ―ethos‖ político. Charaudeau (2008,

p. 207) enfatiza que a escolha dos termos faz parte da estratégia de

materialização do imaginário sociodiscursivo e, consequentemente,

de persuasão, pois ―esses textos, ditados, slogans, enunciados

diversos, são apresentados de maneira simples, pois devem ser

compreendidos pela maioria, e desempenham diversos papéis de

apelo, de manifesto, de acusação, de polêmica, de reivindicação‖

(ibidem, p. 207).

12 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Nesse sentido, encontram-se, nos quatro parágrafos seguintes,

os imaginários sociodiscursivos advindos de espaços da

intertextualidade e da interdiscursividade. Charaudeau chama a

atenção para o fato de que os ―imaginários sociodiscursivos‖ ―dão

testemunho das identidades coletivas, da percepção que os indivíduos

e os grupos têm dos acontecimentos, dos julgamentos que fazem de

suas atividades sociais‖ (CHARAUDEAU, ibidem, p.207). No segundo

(2º) parágrafo, os trechos ―o calor e a generosidade do espírito

brasileiro‖ e ―Eu sei que os brasileiros não abrem mão de seu futebol

tão facilmente‖ são percursos temáticos recorrentes no imaginário do

estrangeiro em relação ao Brasil. A figura do Brasil como ―terra de

gente simpática e hospitaleira‖ e ―país do futebol‖ já faz parte de um

estereótipo coletivo estável, reconhecido por brasileiros e

estrangeiros. O recurso à interdiscursividade continua nos quatro

parágrafos seguintes em um percurso temático que liga o Brasil à

ideia de paraíso abaixo da linha do Equador, pois, em suas palavras,

―tinha música e dança‖, ―vi essa beleza nas encostas dos morros, nas

infindáveis milhas de areia e oceano e nas vibrantes e diversificadas

multidões de brasileiros que vieram aqui hoje‖. No quarto (4º)

parágrafo, há de se ressaltar uma intertextualidade explícita, ou seja,

com a citação da fonte, com a música ―País Tropical‖, de Jorge Ben

Jor, no trecho ―um país tropical abençoado por Deus e bonito por

natureza‖.

2.1- O IMAGINÁRIO SOCIODISCURSIVO DA “TRADIÇÃO”

De acordo com Charaudeau (2008, p. 211), a ―tradição‖

constitui-se como um imaginário que ―é sustentado por discursos que

se referem a um mundo longínquo no tempo, no qual os indivíduos

teriam conhecido um estado de pureza‖. É um discurso de ―retorno às

fontes‖, ou seja, de retorno à origem ou às raízes de um povo ou

nação. Assim, comumente, encontra-se, nos discursos dos políticos, a

13 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

história dos seus ascendentes, de sua terra ou de sua origem

linguística. Charaudeau (2008, p. 213) enumera quatro aspectos

ligados ao discurso da ―tradição‖: a natureza, a pureza, a fidelidade e

a responsabilidade.

A ―natureza‖, que, de acordo com Charaudeau (2008),

relembra aos homens que eles são como as espécies animais e,

assim, devem ficar atentos à defesa de seu território, isto é, de sua

terra. A ―pureza‖ se insere no discurso político por meio das marcas

que reafirmam a identidade de uma comunidade ou de um país.

Talvez o caso mais conhecido da presença da ―pureza‖ no discurso

político seja o arianismo de Hitler. A ―fidelidade‖ é, como bem diz

Charaudeau (ibidem, p. 213), um ―valor moral, um dever de assumir

a origem‖ como uma herança que deve ser seguida à risca, sem que

haja mudanças desses valores. Daí advém a ―responsabilidade‖, pois,

ao se assumir a ―fidelidade‖, a comunidade se torna uma espécie de

depositário das vozes daqueles que a precederam. Caberá a cada

geração guardar essa riqueza e transmiti-la às gerações vindouras.

Todos esses quatro aspectos permeiam o ―Discurso da Cinelândia‖ e

estão presentes nos parágrafos que seguem:

Se você parar para pensar, as jornadas dos EUA e do Brasil começaram de formas parecidas. São

duas terras com abundantes recursos naturais, terras natais de povos indígenas antiquíssimos. As

Américas foram descobertas por homens que vieram do outro lado do oceano como um ―novo

mundo‖ e colonizadas pelos pioneiros que

ampliaram os territórios rumo ao Oeste

atravessando imensas fronteiras. Nos tornamos

colônias dominadas por coroas distantes, mas logo

declaramos nossa independência e em seguida

recebemos grandes quantidades de imigrantes em nossas costas e mais tarde, depois de muita luta,

limpamos a mancha da escravidão de nossas

terras.

Os EUA foram a 1ª nação a reconhecer a

independência do Brasil e a 1ª a estabelecer um

14 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

posto diplomático neste país. O primeiro líder de

um país a visitar os EUA foi Dom Pedro II. Na

Segunda Guerra Mundial nossos corajosos homens e mulheres lutaram lado a lado pela liberdade. E

depois da guerra, nossas duas nações lutaram para conseguir as bênçãos plenas da liberdade.

Nas ruas dos EUA, homens e mulheres marcharam

e sangraram e alguns até morreram para que todos os cidadãos pudessem usufruir das mesmas

liberdades e oportunidades, não importa como

fosse sua aparência, não importa de onde você viesse. No Brasil vocês lutaram contra duas

décadas de ditadura, lutando pelo mesmo direito

de serem ouvidos, o direito de serem livres, livres

do medo, livres da necessidade. E mesmo assim, durante anos, a democracia e o desenvolvimento

demoraram a se estabelecer e milhões sofreram

por causa disso.

Nesses três parágrafos, o sétimo (7º), o oitavo (8º) e o nono

(9º), apresenta-se o imaginário da ―tradição‖ dos dois países, Brasil e

Estados Unidos, naquilo que de comum os une em virtude da

―natureza‖ e da ―pureza‖: exaltação à terra de origem e às suas

riquezas, a colonização e a ideia de um ―novo mundo‖, o sacrifício

dos primeiros colonizadores, a abolição da escravatura, a

independência e a coragem dos homens e mulheres em luta pela

liberdade. A nosso ver, esse discurso da ―tradição‖ no ―Discurso da

Cinelândia‖ vem em uma forma de gradação ascendente para a

palavra que irá perpassar todo o discurso- a democracia. Todo o

discurso da ―tradição‖ justifica, de uma forma ou de outra, as razões

pelas quais norte-americanos e brasileiros são fiéis- a ―fidelidade‖- e

responsáveis- a ―responsabilidade‖, pela liberdade e,

consequentemente, pela democracia.

15 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

2.2- O IMAGINÁRIO SOCIODISCURSIVO DA MODERNIDADE

No subtópico anterior, vimos que o ―Discurso da Cinelândia‖

contém trechos que vão ao encontro daquilo que Charaudeau (2008)

designa como ―imaginário da Tradição‖. Agora, veremos que o

discurso do presidente Barack Obama remete também ao ―imaginário

da Modernidade‖, que, segundo Charaudeau (ibidem, p. 214- 215),

ultrapassa o conceito de modernidade como uma época que contraria

dogmas e costumes de uma época precedente, como nos

movimentos artísticos e literários. Assim, o ―imaginário da

Modernidade‖ se caracteriza por:

Um conjunto de representações que os grupos sociais constroem a propósito da maneira como percebem ou julgam seu instante presente, em

comparação com o passado, atribuindo-lhe um valor positivo, mesmo quando o criticam. Pode-se,

portanto, aventar a hipótese de que, a cada

momento presente de sua história, os grupos

sociais se dotariam de um imaginário de modernidade, sempre tomando como base a época

precedente e procurando legitimá-la: a cada vez está em jogo a legitimidade de uma maneira de

ser e de viver, uma visão nova do mundo. (CHARAUDEAU, 2008, p. 215)

No ―Discurso da Cinelândia‖, o passado, um dos traços aos

quais se opõe a modernidade, porque o tempo presente sempre será

melhor, isto é, ―o tempo presente se beneficiaria de um estado de

saber superior, primeira caução dessa modernidade‖ (CHARAUDEAU,

ibidem, p. 216), encontra-se na ideia de um ―Brasil, país do futuro‖,

difundida pelo governo militar na década de 70, época do ―milagre

econômico‖, que fracassou com a crise mundial do petróleo. Nesse

sentido, a modernidade se mostra pelo hoje, o tempo presente, como

se vê no seguinte parágrafo do discurso de Barack Obama:

Por isso pretendo voltar em 2016 para ver o que acontece. O Brasil foi durante muito tempo um

16 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

país cheio de potencial, mas atrasado pela política,

tanto aqui quanto no exterior. Durante muito

tempo o Brasil foi o ―país do futuro‖ e disseram para que ele esperasse pelos dias melhores que

viriam em breve. Meus amigos, este dia finalmente chegou. Este não é mais o ―país do futuro‖, as

pessoas do Brasil devem saber que o futuro já

chegou e está aqui agora. É hora de tomar posse

dele.

Outro traço marcante no ―imaginário da modernidade‖ é a

desconstrução do sonho utópico, considerado um elemento de

desmobilização, pois impede a ação, ou melhor, a ―eficácia da ação‖

humana (CHARAUDEAU, 2008, p. 216). Essa ―eficácia da ação‖

humana surge por meio de uma competência e de uma vontade de

agir, as quais, juntas, sustentam a base da modernidade no discurso

político. Essas características estão presentes no discurso da

Cinelândia, pois, somente por meio da competência e da vontade, os

povos, nesse caso, o norte- americano e brasileiro, podem, segundo

Barack Obama, vencer as adversidades e alcançar o sucesso, que é o

que se mostra nos dois parágrafos, o décimo-quinto (15º) e o

décimo-sexto (16º):

Nossos países nem sempre concordaram em tudo.

E assim como ocorre com muitas nações, teremos

nossas diferenças de opinião ao avançar. Mas estou aqui para lhes dizer que o povo americano

não apenas reconhece o sucesso do Brasil, nós

torcemos pelo sucesso do Brasil enquanto vocês confrontam os muitos desafios que ainda

enfrentam em casa e no exterior, vamos ficar

juntos, não são como parceiros sênior e júnior, mas como parceiros iguais, unidos pelo espírito do

interesse comum e do respeito mútuo,

comprometidos para com o progresso que sei que podermos fazer juntos.

Tenho certeza de que podemos fazer isso. Juntos, podemos aumentar nossa prosperidade em

comum. Sendo duas das maiores economias do

mundo, trabalhamos lado a lado durante a crise

17 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

financeira para restaurar o crescimento e

confiança. E para manter nossas economias

crescendo, sabemos do que é necessário em ambas as nações. Precisamos de uma força de

trabalho capacitada e é por isso que empresas brasileiras e americanas assumiram um

compromisso de aumentar o intercâmbio de

estudantes entre nossas nações.

Outras características presentes no ―imaginário da

modernidade‖ são a tecnologia e a economia. Esta, segundo

Charaudeau (2008, p.218), apresenta-se ―como o modo de uma

sociedade representar para si a legitimidade de gerir a vida coletiva

do ponto de vista da produção e da repartição de riquezas‖; aquela, a

tecnologia, liga-se às ―noções de eficácia, competência e vontade de

agir‖ (ibidem, p.222). Na maioria das vezes, a tecnologia desenvolve-

se no âmbito de um poder econômico, que, por sua vez, gerencia

também a eficácia e a técnica. Não se pode esquecer que, no discurso

político, a economia e a tecnologia trabalham juntas a fim de que

todos os cidadãos possam usufruir do progresso social, tal como se

vê nos parágrafos décimo-sétimo (17º), décimo-oitavo (18º) e

décimo-nono (19º) do ―Discurso da Cinelândia‖:

Precisamos de um compromisso com a inovação e a tecnologia, por isso concordamos em aumentar a

cooperação entre nossos cientistas, pesquisadores

e engenheiros. Precisamos de infra estrutura da mais alta qualidade e por isso as empresas

americanas também querem ajudá-los a construir e preparar a cidade para o sucesso olímpico. Numa

economia globalizada, os EUA e o Brasil deveriam

expandir o comércio, expandir investimentos, de

modo a criar novos empregos e novas

oportunidades em ambas nossas nações por isso

estamos trabalhando para derrubar barreiras para

fazer negócios.

Por isso estamos criando relacionamentos mais próximos entre nossos trabalhadores e nossos

empreendedores. Juntos também podemos

18 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

trabalhar pela segurança da energia e proteger

nosso lindo planeta.

Sendo dois países comprometidos com economias

mais verdes, sabemos que a solução definitiva ao desafio da energia virá da criação de fontes de

energias limpas e renováveis. Por isso a metade

dos carros daqui pode circular com biocombustível

e a maior parte de sua eletricidade vem de hidroelétricas. E por isso também demos início a

uma nova indústria limpa de energia nos EUA. Por

isso os EUA e o Brasil estão criando novas parcerias na área de energia, para compartilhar,

criar novos empregos e deixar para nossos filhos

um mundo mais limpo e mais seguro do que

encontramos.

Charaudeau (ibidem, p.226) destaca o fato de que os discursos

da tecnologia e da economia, principalmente o primeiro, ―tendem a

celebrar os efeitos positivos e a mascarar os negativos‖, para que

haja uma legitimação de suas forças perante a sociedade.

2.3- O IMAGINÁRIO SOCIODISCURSIVO DA “SOBERANIA POPULAR”

Em linhas gerais, o conceito de ―soberania popular‖ refere-se a

um poder que provém da vontade do povo, uma ―entidade abstrata

de razão, representante de uma opinião coletiva consensual

resultante de uma deliberação ao longo da qual foram confrontados

pontos de vista diferentes e tomadas decisões contrárias‖

(CHARAUDEAU, 2008, p. 227). Isso não quer dizer que o povo será o

guia de si mesmo. Desse modo, elegem-se os políticos, que, no

sistema democrático, irão ser os mediadores sociais da vontade do

povo. É interessante notar que, no discurso político, o termo ―nação‖

é substitutivo de ―povo‖ e vice-versa. Essa troca não acontece

deliberadamente, pois, num sentido lato, ―nação‖ refere-se a um

conjunto de pessoas que se reúnem, tendo em vista interesses,

19 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

origem e objetivos comuns, que é o que se estabelece no vigésimo

(20º) parágrafo do ―Discurso da Cinelândia‖:

Juntas, nossas duas nações também podem ajudar

a defender a segurança de nossos cidadãos. Estamos trabalhando juntos para deter o

narcotráfico que destruiu vidas demais neste

hemisfério. Buscamos o objetivo de um mundo

sem armas nucleares. Estamos trabalhando juntos para aumentar nossa segurança ente hemisférios.

Da África ao Haiti, estamos trabalhando lado a lado

para combater a fome, doença e corrupção que podem apodrecer uma sociedade e roubar seres

humanos de sua dignidade e oportunidades.

Conforme Charaudeau (2008, p. 228), o imaginário da

―soberania popular‖ engloba três tipos de discursos: o discurso do

direito à identidade, o do igualitarismo e o da solidariedade.

Para Charaudeau (ibidem) a pergunta essencial do discurso do

direito à identidade é ―de qual grupo se trata?‖. Nesse sentido,

reivindica-se a diferença entre grupos e não a integração, apesar de

ser a integração uma via ―universalista‖ e também uma forma de

―soberania popular‖. Barack Obama não segue nem uma via nem

outra, pois, é claro, no seu ―Discurso da Cinelândia‖, a escolha por

uma terceira via, denominada por Charaudeau (2008, p. 230) de

―valor de tolerância (o melting-pot americano)‖, na qual ―grupos

diferentes coexistem pacificamente em nome de princípios coletivos‖

(ibidem). Encontra-se, assim, no discurso político que segue essa via,

a palavra ―diversidade‖, que engloba um aspecto positivo que se liga

ao multiculturalismo. É o que mostra o vigésimo-quarto (24º)

parágrafo:

Vocês são a prova de que justiça social e inclusão social podem ser melhor conquistadas por meio da

liberdade e que a democracia é a maior parceira do

progresso humano. Também acreditamos que em países tão grandes e diversos quanto os nossos,

moldados por gerações de imigrantes de todas as

raças, fés e culturas, a democracia dá a maior

20 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

esperança de que todos os cidadãos sejam

tratados com dignidade e respeito. E que podemos

resolver nossas diferenças pacificamente e encontrar força em nossa diversidade.

O ―discurso da soberania popular‖ também inclui o discurso do

igualitarismo. Para Charaudeau (2008), o igualitarismo abrange a

igualdade em diferentes instâncias: a do poder econômico, a da

identidade cidadã e a da lei.

O discurso do igualitarismo ligado ao poder econômico prega

que todos devem ter acesso à formação e, consequentemente, ao

trabalho, para que possam satisfazer as suas necessidades materiais

(bens de consumo) e, por fim, assegurem a dignidade humana. A

igualdade do ponto de vista da identidade cidadã é o princípio da não

discriminação por motivos diversos (raça, etnia, religião, idade, sexo,

política etc), que é o assunto tratado no vigésimo- sexto (26º)

parágrafo:

Mas também sabemos que existem certas aspirações compartilhadas por todo ser humano.

Todos queremos ser livres, queremos ser ouvidos, todos ansiamos por viver sem medo ou discriminação. Todos queremos escolher como

seremos governados. Todos querem moldar seu

próprio destino. Esses não são ideais americanos

ou ideais brasileiros, não são ideais ocidentais, são direitos universais. E devemos apoiá-los em toda

parte. Hoje estamos vendo a luta por esses

direitos acontecendo no Oriente Médio e no Norte da África.

Entretanto, Charaudeau (2008) ressalta que a igualdade cidadã

pode desencadear uma neutralização do indíviduo em relação ao

cidadão, na medida em que indivíduo perde a consciência de sua

unicidade diante da igualdade.

O discurso do igualitarismo mais conhecido é o da lei, visto que

é a própria lei quem diz ―Todos são iguais perante a lei‖, ou seja, a

justiça não deve ver a quem ela impõe a lei. Cabe frisar que o

21 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

discurso do igualitarismo ligado à lei também pode promover

discursos de sanção, ou melhor, de repressão, como é o caso do

discurso da segurança, que reivindica que ―todo cidadão tem direito a

uma proteção que preserve seus bens e sua vida‖ (CHARAUDEAU,

2008, p. 236)

Por último, há o discurso da solidariedade. Conforme

Charaudeau (2008), o discurso da solidariedade está intrinsecamente

ligado ao discurso da igualdade. A solidariedade parte do princípio de

que todos têm direito à igualdade e, para isso, justificam-se atos e

engajamentos de diferentes causas por toda a parte. Em nome da

solidariedade, as nações engajam-se em guerras de libertação, fazem

acordos econômicos, promovem ações sociais etc. Em contrapartida,

Charaudeau (2008) evidencia que o discurso da solidariedade pode

também produzir movimentos de insubmissão que afrontam o

discurso da maioria, o povo, mas, por razões diversas, também

acreditam que produz o discurso da soberania popular, como bem se

nota nas guerras civis. É interessante notar que os discursos da

igualdade e da solidariedade fecham o discurso de Barack Obama no

Brasil em diferentes perspectivas: a defesa do movimento ―Primavera

Árabe‖, o ensejo de que a democracia seja um bem de todos os

povos, e que a prosperidade, os direitos humanos e a liberdade

estejam presentes em todas as nações. Os três parágrafos que

seguem são representativos das ideias contidas nesses discursos:

Vimos uma revolução nascer de um anseio por

dignidade humana básica na Tunísia e vimos

manifestantes pacíficos, homens e mulheres,

jovens e velhos, cristão e muçulmanos, ocupando

praça Tahir e vimos o povo da Líbia se defendendo

corajosamente contra um regime determinado a tratar com brutalidade seus próprios cidadãos. Em

toda parte vimos jovens se erguendo. Uma nova

geração exigindo o direito de determinar seu

próprio futuro.

22 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Desde o início deixamos claro que a mudança que

buscam devem ser impulsionadas pelo seu próprio

povo. Mas para nossos dois países, para os EUA e para o Brasil – duas nações que passaram muitas

gerações lutando para aperfeiçoar suas próprias democracias – os EUA e o Brasil sabem que o

futuro de nosso mundo era determinado pelo seu

povo. Ninguém pode dizer ao certo como essa

mudança terminará. Mas eu sei que mudança não é algo que devemos temer.

Quando os jovens insistem que as correntes da História estão se movendo, a carga do passado

pode ser apagada. Quando homens e mulheres

exigem pacificamente seus direitos

humanos nossa humanidade em comum é acentuada. Onde quer que a luz da liberdade seja

acesa, o mundo se torna um mais luminoso.

O ―Discurso da Cinelândia‖, proferido pelo presidente Barack

Obama, não foge à regra de um discurso político tradicional, tendo

em vista o enunciatário que compõe a sua plateia. A utilização de

diferentes ―imaginários sociodiscursivos‖ reflete o saber de crença do

enunciador num determinado aqui (lugar) e agora (tempo), visto que,

para Charaudeau (2008, p.205), ―todo imaginário é um imaginário de

verdade que essencializa a percepção do mundo em um saber

(provisoriamente) absoluto‖.

3- A IMAGEM MOSTRADA - O ETHOS

Discurso (peça de oratória), orador, público ou, neste caso,

plateia. O que concluir de uma visita oficial do atual presidente dos

Estados Unidos ao Brasil? Seria uma visita de cortesia, para

cumprimentar a primeira presidente do Brasil? Terá vindo ele tratar

de negócios, assinar acordos, propor parcerias? Ou, já com vistas às

próximas eleições nos Estados Unidos, viaja a países dos quais se diz

amigo? Seja qual tenha sido a intenção da visita, explicitada por meio

de entrevistas e matérias jornalísticas, a nós importa aqui a sua

23 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

palavra, revelada no discurso proferido no Theatro Municipal do Rio

de Janeiro, por meio da qual buscaremos identificar o ethos, ou

imagem de si que se revela discursivamente.

Ao iniciar a nossa busca pelo estabelecimento do ethos deixado

perceber pelo presidente americano, recorremos ao que nos diz Ruth

Amossy no texto da introdução de Imagens de si no discurso: a

construção do ethos:

Todo ato de tomar a palavra implica a construção

de uma imagem de si. Para tanto, não é necessário que o locutor faça seu auto- retrato, detalhe suas

qualidades nem mesmo que fale explicitamente de

si. Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são

suficientes para construir uma representação de

sua pessoa. (AMOSSY, 2005, p.9)

Ao assumir o lugar do orador, aquele que manifesta suas ideias

e crenças por meio da palavra, Barack Obama se deixa perceber e às

suas intenções. Por retomarem conceitos propostos por Aristóteles,

os estudos atuais sobre a arte de persuadir consideram que orador

lança mão três categorias de meios discursivos para influenciar o seu

auditório: o logos, relativo ao domínio da razão e que visa convencer

por meio das estratégias discursivas escolhidas, o pathos e o ethos,

relativos ao domínio da emoção e que seriam responsáveis por

persuadir o auditório e assim favorecer ou garantir o sucesso do

orador.

Ainda que o discurso de Barack Obama se constitua numa rica

peça de análise com relação aos três aspectos citados anteriormente,

optamos por nos ocupar apenas do ethos, ou a imagem de si,

revelada pelo presidente americano ao se dirigir ao povo brasileiro.

Há duas posições distintas, assumidas pelos atuais estudiosos

da argumentação, que retomam aquelas já presentes na Antiguidade.

Para alguns estudiosos, a construção do ethos é anterior ao discurso

e depende da identidade social do orador. É o dito ethos pré-

24 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

discursivo. Já os que se filiam a Aristóteles consideram ser o ethos

um elemento que se constrói no nível do discurso, assim considerado

ethos discursivo, dependente do exercício da palavra.

Para Charaudeau (2008, p.115), é preciso considerar esses dois

aspectos: o ethos, enquanto imagem que o auditório tem do orador e

imagem que o orador pensa que o auditório tem em relação a ele,

orador. Considera ainda o teórico francês que a imagem prévia é

construída com base em dados preexistentes. Em nosso caso

específico, o público, o povo brasileiro, desde a campanha de Barack

Obama para a presidência, foi colhendo informações sobre ele por

meio da imprensa, das reações dos seus eleitores, dos demais países

em relação à sua eleição. Isso fez com que, ao chegar ao Brasil, ele

já tivesse sua imagem social e política consolidada. Assim pensando,

consideramos necessário tratar aqui, ainda que sem muitos detalhes,

desse aspecto, ou seja, o ethos prévio ou pré-discursivo.

Quem é Barack Obama? Primeiro presidente negro dos Estados

Unidos, de origem humilde, ele se revela como uma pessoa que

preserva os valores de família, apesar da sua vida familiar

conturbada, um representante dos anseios de uma classe média em

crise, uma pessoa simples, apesar do seu status político, excelente

orador, que geralmente não se furta a tratar dos temas os mais

diversos, e comprometido em melhorar a qualidade de vida do povo

americano. De maneira geral, uma imagem positiva, o que fez com

que ele fosse aqui recebido como uma pessoa muito próxima ao povo

brasileiro.

Assim também, não veio o presidente aqui falar sem ter

conhecimento prévio do seu auditório. Já visando ao sucesso, a sua

oratória foi construída de acordo com aquilo que ele supunha que

seria agradável ao seu público. Dessa forma, há um entrecruzamento

de imagens que levam à construção do discurso.

Passamos agora a analisar a imagem que se revela por meio da

palavra, o ethos discursivo, ressaltando aqui que seguimos a versão

25 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

traduzida do discurso, disponível no portal G1, após confrontá-la com

a versão original disponível no site da Casa Branca4.

Para Charaudeau (2008, p.118) o orador do discurso político

―precisa ser crível e suporte da identificação à sua pessoa. Crível,

porque não há político sem que se possa crer em seu poder de fazer;

suporte de identificação, porque para aderir às suas ideias é preciso

aderir a sua pessoa.‖ Daí resultariam, segundo Charaudeau (2008),

as duas figuras identitárias do discurso político, que vêm a ser duas

grandes categorias de ethos: o ethos de credibilidade e o ethos de

identificação.

3.1- A CONSTRUÇÃO DA CREDIBILIDADE

Em relação a essa primeira categoria, os ethé de credibilidade,

Charaudeau (2008, p.119-137) faz referência a uma qualidade

resultante da construção de uma identidade discursiva pelo sujeito

que lhe permita ser visto como possuidor do ethos de sério, de

virtuoso e de competente.

Quanto ao ethos ―de sério‖, este seria construído, ainda

segundo Charaudeau (2008, p.120), por meio índices. Índices

corporais e mímicos, dos quais não trataremos em razão de nos

estarmos atendo à parte verbal do discurso, ainda que ele possa ser

confirmado na versão ―on-line‖, disponível para acesso. Índices

comportamentais, que denotam autocontrole emocional em relação

às críticas, não se deixando tomar por acessos de cólera; sangue-frio

diante da adversidade; ―índices que demonstram grande capacidade

de trabalho, onipresença em todas as linhas de frente da vida política

e social, particularmente diante daqueles que sofrem.‖, de acordo

com Charaudeau (ibidem). Quanto a sua vida privada, esta não deve

4Observou-se que o trecho ―that the future of the Arab World will be‖ foi

traduzido por ―o futuro do nosso mundo era‖ em lugar de ―o futuro do

Mundo Árabe será.‖

26 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

permitir suspeita de infidelidade ou de indiferença quanto a sua

família.

O ethos ―de virtude‖, fundamental à imagem política, de um

representante do povo, exige do político a construção de uma

imagem que demonstre ser ele possuidor de características como

sinceridade, fidelidade e honestidade pessoal. Essa imagem será

construída ao longo de sua vida pública e será ela que dará suporte

ao seu discurso, tornando-o crível ou não.

Quanto ao ethos ―de competência‖, Charaudeau (2008, p.125)

reconhece a necessidade de saber e habilidade por parte do político.

Segundo o teórico, ―os políticos devem, portanto, mostrar que

conhecem todas as engrenagens da vida política e que sabem agir de

maneira eficaz.‖ Assim, ao fazer uso da palavra, o político poderá dar

a perceber a sua competência ao falar sobre seus feitos, as funções

exercidas, a experiência adquirida ao longo de sua carreira política.

No discurso de Barack Obama, o ethos de ―sério‖ começa a ser

construído logo no início da sua fala, nos trechos em que cita a sua

família, mulher e filhas, que o acompanha na viagem e também

quando se refere novamente à família, mas agora na figura de sua

mãe, quando, para demonstrar a sua primeira ligação com o Brasil,

cita o filme brasileiro Orfeu negro, dizendo ―um filme que vi com

minha mãe‖ e ainda afirma que sua mãe jamais o imaginaria

visitando o Brasil como presidente da República. Há ainda presente a

preocupação demonstrada pelo presidente em relação à crise

financeira mundial, com a intenção de ―restaurar o crescimento e a

confiança [...] para manter nossas economias crescendo‖. Quanto à

preocupação com aqueles que sofrem, Barack Obama diz sobre o

Brasil e os Estados Unidos ―estamos trabalhando lado a lado para

combater a fome, doença e corrupção que podem apodrecer uma

sociedade e roubar seus seres humanos‖. É ainda citada a sua

(nossa) preocupação com o meio ambiente e com o futuro do planeta

ao falar sobre ―a criação de fontes de energia limpas e renováveis‖ e

27 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

ainda quanto a ―deixar para os nossos filhos um mundo mais limpo e

mais seguro do que encontramos‖. Todas essas declarações a que

nos referimos podem exemplificar a seriedade do orador.

Quanto ao ethos ―de virtude‖, consideramos que já havia sido

previamente construído de maneira positiva, uma vez que os

aspectos sinceridade, fidelidade e honestidade pessoal não têm sido

questionados na mídia, nem a sua conduta tem deixado margem a

questionamentos. Assim, acreditamos que o auditório tenha recebido

a sua fala com base nesses aspectos de sua personalidade.

Quanto ao ethos ―de competência‖, a sua demonstração não

nos parece ter sido um objetivo do orador, uma vez que não faz

referência ao seu passado ou ao seu período na presidência. Isso

talvez se deva ao fato de, como foi explicitado pelo orador, estar o

Discurso da Cinelândia voltado para o povo brasileiro. O presidente

não teria vindo falar do quanto os Estados Unidos podem fazer pelo

Brasil, mas o quanto o Brasil é importante para os Estados Unidos

neste momento.

3.2- A CONSTRUÇÃO DA IDENTIFICAÇÃO

Trataremos agora da segunda das duas figuras identitárias de

que nos fala Charaudeau em relação ao discurso político: os ethé de

identificação. Se os ethé de credibilidade visam dar confiabilidade à

palavra do orador, os de identificação ligam-se ao aspecto afetivo da

relação orador/auditório. São manifestações de caráter emocional,

portanto, pessoais, que se destinam a promover a adesão do

auditório. Para Charaudeau (2008, p.137), as imagens dos ethé de

identificação ―são extraídas do afeto social: o cidadão, mediante um

processo de identificação irracional, funda sua identidade na do

político.‖ Ainda que essas imagens sejam, segundo o teórico,

―destinadas a tocar o maior número de indivíduos [...] esse maior

número é heterogêneo e vago do ponto de vista dos imaginários.‖

28 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

(ibidem). Dessa forma, o estabelecimento ou a construção dos ethé

de identificação sempre será dependente daquilo que se supõem ou

se tem como verdade acerca do auditório. Para quem vou falar; quais

as características do meu auditório; sobre quais ―imaginários sociais‖

devo alicerçar as minhas palavras? Essas são questões que o orador

se faz ao produzir o seu discurso e não se pode deixar de perceber o

quanto o pathos, ou a mobilização do emocional, será aqui relevante.

Charaudeau (2008, p.137-166) relaciona como imagens que

caracterizam o ethos de identificação: i) o ethos de ―potência‖, ii) o

ethos de ―caráter‖ sobre o qual cita as seguintes figuras: a

vituperação, cujas variantes são a provocação e a polêmica; a força

tranquila, correlacionada ao controle de si; a coragem; o orgulho; a

firmeza e a moderação, iii) o ethos de ―inteligência‖, que se identifica

por meio de duas figuras: a do homem culto que algumas culturas

acreditam só poder ser um homem de bem e a da astúcia ou malícia,

iv) o ethos de ―humanidade‖, por meio da figuras do sentimento, da

confissão, da intimidade, v) o ethos de ―chefe‖, por meio das figuras

de guia, de soberano e de comandante vi) o ethos de ―solidariedade‖,

atitude que se caracteriza por um movimento assimétrico entre um

indivíduo que sofre e outro que, apesar de não sofrer, está, no

entanto, emocionado pelo sofrimento alheio.

No ―Discurso da Cinelândia‖, é bastante clara a opção pela

construção do ethos de identificação. Isso pode ser percebido por

meio das figuras presentes na fala do presidente norte- americano,

ainda que nem todas comprovem com exatidão as diversas

possibilidades anteriormente discriminadas. É o que se percebe

quanto ao ethos de ―potência‖ que, segundo Charaudeau (2008,

p.139), pode se manifestar por meio da figura da virilidade sexual ou

ainda do uso da violência verbal em relação aos adversários políticos.

Não são essas marcas presentes no discurso aqui analisado. Nota-se,

porém, uma forte construção de um ethos de autoridade importante,

ou de superioridade, na frase ―Eu sei que os brasileiros não abrem

29 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

mão do seu futebol tão facilmente‖ em relação ao período anterior

―Quero agradecer a todos por estarem aqui, pois me disseram que há

um jogo do Vasco ou do Botafogo‖, pois implica a ideia de que os

brasileiros preferiram ouvir o presidente Barack Obama a assistir ao

futebol.

Relativas ao ethos de ―caráter‖, podem ser reconhecidas as

figuras força tranquila e controle de si, pois, ainda que não manifeste

verbalmente, o presidente americano conduz a sua fala de forma

assertiva ao se referir ao que já foi pensado pelo seu governo quanto

à necessidade de ampliar a parceria entre o Brasil e os Estados

Unidos. Sem imposições, em tom de conselho, ele diz, no sexto (6º)

parágrafo ―Vim aqui para compartilhar algumas ideias, pois quero

falar sobre os valores que compartilhamos, as esperanças que temos

em comum e a diferença que podemos fazer juntos.‖. Além disso,

reforçando aquilo que já pode ser considerado como uma marca

pessoal, o controle de si foi sempre uma constante, pois em nenhum

momento houve um descontrole, palavras mais carregadas de

emoção, ainda que em seu conteúdo o discurso fizesse apelo ao

emocional, o pathos, do povo brasileiro.

Presente ao longo de toda a fala está o ethos de ―inteligência‖,

por meio da figura do homem culto que se manifesta como um

profundo conhecedor não só da história do Brasil, mas também da

cultura e da política brasileira, como nos trechos que seguem,

respectivamente sétimo (7º), nono (9º), décimo (10º) e quarto (4º)

parágrafos:

São duas terras com abundantes recursos

naturais, terras natais de povos indígenas

antiqüíssimos.[...] Nos tornamos colônias dominadas por coroas distantes, mas logo

declaramos nossa independência e em seguida

recebemos grandes quantidades de imigrantes em

nossas costas e mais tarde, depois de muita luta,

limpamos a mancha da escravidão de nossas

terras.

30 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

No Brasil vocês lutaram contra duas décadas de

ditadura, lutando pelo mesmo direito de ser ouvidos, o direito de ser livres, livres do medo,

livres da necessidade.

Hoje o Brasil é uma democracia desabrochando,

um lugar onde as pessoas são livres para falar o

que pensam e escolher seus líderes e onde um garoto pobre de Pernambuco pode sair de uma

fábrica de cobre e chegar ao gabinete mais

elevado no país.

Vocês são, como cantor Jorge Benjor diz, ―um país

tropical abençoado por Deus e bonito por natureza.

A referência ao escritor Paulo Coelho ―acreditamos nas palavras

de Paulo Coelho, um de seus mais famosos escritores‖ no trigésimo-

segundo (32º) parágrafo, ao encerrar o discurso, além de confirmar a

recorrente intenção do orador de apelar para imagens facilmente

identificáveis por grande parte do povo brasileiro, deixa também

entrever uma realidade irrefutável, que é a da imensa popularidade

que o citado escritor consolidou mundo afora.

O ethos de ―solidariedade‖, diz Charaudeau (2008, p.138), ―faz

do político um ser que não somente está atento às necessidades dos

outros, mas que as partilha e se torna responsável por elas.‖ Em seu

discurso, ainda que não seja uma constante, o presidente lembra

atos de solidariedade praticados pelos governos brasileiro e norte-

americano, no seguinte trecho do vigésimo (20º) parágrafo:

Da África ao Haiti, estamos trabalhando lado a lado

para combater a fome, doença e corrupção que

podem apodrecer uma sociedade e roubar seres

humanos de sua dignidade e oportunidades.

Não nos parece ter havido a intenção no discurso de Barack

Obama de deixar predominar o ethos de ―chefe‖, que lhe conferiria

uma marca de superioridade, dele como presidente, e dos Estados

Unidos, país considerado como superpotência, bem distante do Brasil,

31 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

considerado um país emergente. Há, ao longo da fala do presidente

americano, o uso recorrente do pronome ―nós‖ em referência aos dois

países, marcando identidades históricas, políticas e de

desenvolvimento futuro, como nos trechos a seguir, respectivamente,

décimo-sexto (16º) e vigésimo-terceiro (23º) parágrafos:

Juntos, podemos aumentar nossa prosperidade em comum.

Ambos acreditamos no poder e na promessa da

democracia, acreditamos que nenhuma forma de governo é mais eficaz na promoção do crescimento

e prosperidade que alcança todo ser humano, não

apenas alguns, mas todos.

Assim, o que sobressai são as marcas de igualdade ou de

semelhança entre os dois países.

Mas é possível identificar, ainda que de forma bastante restrita,

a fala que se manifesta do lugar de chefe, daquele que está em

posição acima do outro, o auditório, o povo brasileiro, como neste

trecho do décimo-quinto (15º) parágrafo, em que o uso dos

qualificadores ―sênior‖ e ―júnior‖ e do advérbio ―como‖ revela o

reconhecimento da distância que ainda separa os dois países.

... o povo americano não apenas reconhece o sucesso do Brasil, nós torcemos pelo sucesso do

Brasil enquanto vocês confrontam os muitos

desafios que ainda enfrentam no Brasil e no exterior, vamos ficar juntos, não são como

parceiros sênior e júnior, mas como parceiros iguais, unidos pelo espírito do interesse comum e

do respeito mútuo...

Quanto ao ethos de ―humanidade‖, ele pode ser identificado por

meio das figuras da confissão, presente em ―Vocês sabem que esta

cidade não foi a minha primeira escolha para os jogos olímpicos...‖;

do sentimento, quando o presidente se refere às causas ambientais

em ―..deixar para os nossos filhos um mundo mais limpo e mais

32 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

seguro do que encontramos‖ ou ―Os japoneses são alguns de nossos

amigos mais próximos e ficaremos ao lado deles, rezaremos com eles

e reconstruiremos com eles...‖

É ainda Charaudeau (2008, p.184) quem afirma que ―Há um

tempo para os ethé de credibilidade e outro para os de identificação.‖

Por meio da análise aqui feita, foi possível perceber que, no Discurso

da Cinelândia, um maior tempo foi dedicado aos ethé de

identificação, já que houve um predomínio de manifestações voltadas

para o aspecto afetivo da relação entre o Brasil e os Estados Unidos,

na figura do seu presidente, o orador. Por meio de repetidos elogios

ao povo brasileiro, aos seus feitos, a sua coragem, ao seu

crescimento econômico, a sua luta contra a ditadura e mesmo

atualmente contra a violência, em especial na mesma cidade do Rio

de Janeiro onde o discurso foi proferido, o auditório foi mobilizado

predominantemente pela emoção. Para Charaudeau (2008, p.180) o

ethos assim construído ―teria uma função ofuscante que oculta o

logos, a razão, por seu jeito de evidência que não se discute‖, o que

nos leva a pensar que a identidade intuída entre o ufanismo da

famosa ―Aquarela do Brasil‖, de autoria de Ari Barroso, e o discurso

de Barack Obama nada mais foi do que uma estratégia para nos fazer

tomar conhecimento de ―algumas ideias‖ que o governo americano

tem em relação ao Brasil neste momento.

CONCLUSÃO

No prólogo do seu livro Discurso Político, Charaudeau (2008,

p.8) afirma que ―toda palavra pronunciada no campo político deve ser

tomada ao mesmo tempo pelo que ela diz e não diz‖. O discurso que

Barack Obama proferiu no Theatro Municipal do Rio de Janeiro é um

exemplo dessa afirmação. Coube ao presidente dos Estados Unidos

escolher a máscara, tendo em vista a plateia presente e o interesse

de sua visita ao Brasil. Esse jogo de máscaras, como bem diz

33 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Charaudeau, tem o intuito de persuasão e de sedução, a partir de

inúmeras estratégias que passam pela construção de um ethos,

assim como do uso de imaginários sociodiscursivos aceitos, em geral,

pela sociedade ocidental. Desse modo, a análise do ―Discurso da

Cinelândia‖ nos permite dizer que a mobilização do auditório em seu

favor se deu por meio das inúmeras referências aos imaginários

sociodiscursivos, com base em estereótipos, por meio dos quais o

povo brasileiro é identificado, mas também por meio de estereótipos

que identificam a sociedade norte-americana, como a liberdade, a

igualdade, a tecnologia e, por fim, a democracia. A nossa proposta foi

mostrar que o ―Discurso da Cinelândia‖, um discurso político, é um

jogo de linguagem em que todo o dizer tem um objetivo e,

consequentemente, constitui um efeito de sentido.

REFERÊNCIAS:

AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção

do ethos. São Paulo: Editora Contexto, 2005.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo: Editora Contexto,

2008.

34 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

ANEXO

Discurso de Barack Obama5

Alô, Rio de Janeiro.

Alô, Cidade Maravilhosa. Boa tarde, todo o povo brasileiro.

Desde o momento em que chegamos o povo desta

nação tem gentilmente mostrado à minha família o calor e a generosidade do espírito brasileiro,

obrigado. Quero agradecer a todos por estarem

aqui, pois me disseram que há um jogo do Vasco

ou do Botafogo... Eu sei que os brasileiros não abrem mão de seu futebol tão facilmente.

Uma das primeiras impressões que tive do Brasil veio de um filme que vi com minha mãe quando eu era muito pequeno. Um filme chamado "Orfeu

negro", que se passava nas favelas durante o carnaval. E minha adorava aquele filme, tinha

música e dança e como pano de fundo, os lindos

morros verdes. Esse filme estreou primeiramente

como uma peça bem aqui, no Theatro Municipal.

Minha mãe já faleceu, mas ela jamais imaginaria que a primeira viagem de seu filho ao Brasil seria

como presidente dos EUA. Ela jamais imaginaria isso. E eu jamais imaginaria que este país seria

ainda mais bonito do que no filme. Vocês são, como cantor Jorge Benjor diz, ―um país tropical

abençoado por Deus e bonito por natureza‖.

Vi essa beleza nas encostas dos morros, nas

infindáveis milhas de areia e oceano e nas vibrantes e diversificadas multidões de brasileiros

que vieram aqui hoje. E nós temos um grupo

maravilhosamente misturado: cariocas, paulistas,

baianos, mineiros. Temos homens e mulheres das

cidades até o interior e tanta gente jovem aqui,

que são o grande futuro desta grande nação.

5 Disponível em: <www.g1.globo.com/obama-no-brasil/noticia/2011/03/leia-integra-do-discurso-de-barack-obama-no-theatro-municipal.html.> Acesso em: 25 de outubro

de 2011. Não houve interferências das autoras do artigo em relação ao que

se denomina ―erros‖ de língua portuguesa.

35 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Ontem tive um encontro com sua maravilhosa

nova presidente, Dilma Rousseff, e conversamos

sobre como fortalecer a parceria entre nossos governos. Mas hoje quero falar diretamente com o

povo brasileiro sobre como podemos fortalecer a amizade entre nossos países. Vim aqui para

compartilhar algumas ideias, pois quero falar sobre

os valores que compartilhamos, as esperanças que

temos em comum e a diferença que podemos fazer juntos.

Se você parar para pensar, as jornadas dos EUA e do Brasil começaram de formas parecidas. São

duas terras com abundantes recursos naturais,

terras natais de povos indígenas antiquíssimos. As

Américas foram descobertas por homens que vieram do outro lado do oceano como um ―novo

mundo‖ e colonizadas pelos pioneiros que

ampliaram os territórios rumo ao Oeste atravessando imensas fronteiras. Nos tornamos colônias dominadas por coroas distantes, mas logo

declaramos nossa independência e em seguida recebemos grandes quantidades de imigrantes em

nossas costas e mais tarde, depois de muita luta,

limpamos a mancha da escravidão de nossas terras.

Os EUA foram a 1ª nação a reconhecer a

independência do Brasil e a 1ª a estabelecer um

posto diplomático neste país. O primeiro líder de um país a visitar os EUA foi Dom Pedro II. Na

Segunda Guerra Mundial nossos corajosos homens

e mulheres lutaram lado a lado pela liberdade. E depois da guerra, nossas duas nações lutaram

para conseguir as bênçãos plenas da liberdade.

Nas ruas dos EUA, homens e mulheres marcharam

e sangraram e alguns até morreram para que

todos os cidadãos pudessem usufruir das mesmas liberdades e oportunidades, não importa como

fosse sua aparência, não importa de onde você

viesse. No Brasil vocês lutaram contra duas

décadas de ditadura, lutando pelo mesmo direito

de ser ouvidos, o direito de ser livres, livres do

medo, livres da necessidade. E mesmo assim,

durante anos, a democracia e o desenvolvimento

36 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

demoraram a se estabelecer e milhões sofreram

por causa disso.

Mas venho aqui hoje porque esses dias passaram.

Hoje o Brasil é uma democracia desabrochando, um lugar onde as pessoas são livres para falar o

que pensam e escolher seus líderes e onde um

garoto pobre de Pernambuco pode sair de uma

fábrica de cobre e chegar ao gabinete mais elevado no país. Na última década, o progresso

feito pelo povo brasileiro inspirou o mundo.

Pois hoje metade deste país é considerado classe

média. Milhões foram retirados da pobreza. Pela

primeira vez a esperança está voltando a lugares

onde antes prevalecia o medo. Eu vi isso hoje, quando visitei a Cidade de Deus. Não se trata

apenas dos novos esforços com segurança e

programas sociais. E quero dar os parabéns ao prefeito e ao governador pelo excelente trabalho que estão fazendo. Mas também é uma mudança

de atitude.

Como um jovem morador disse, as pessoas não

devem olhar a favela com pena, mas como uma fonte de presidentes, advogados, médicos, artistas e pessoas com soluções. A cada dia que passa, o

Brasil é um país com mais soluções. Na

comunidade global vocês passaram de contar com

o ajuda de outros países a agora ajudar a lutar contra a pobreza e a doença onde quer que elas

existam.

Vocês desempenham um papel importante nas

instituições globais ao promover nossa segurança

como um todo e nossa prosperidade como um todo. E vocês receberão o mundo em seu país

quando a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos

vierem ao Rio de Janeiro. Vocês sabem que esta cidade não foi minha primeira escolha para os

jogos olímpicos, mas, se os jogos não pudessem

ser realizados em Chicago, não tem lugar em que

eu gostaria mais de vê-los do que aqui no Rio.

Por isso pretendo voltar em 2016 para ver o que

acontece. O Brasil foi durante muito tempo um país cheio de potencial, mas atrasado pela política,

37 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

tanto aqui quanto no exterior. Durante muito

tempo o Brasil foi o ―país do futuro‖ e disseram

para que ele esperasse pelos dias melhores que viriam em breve. Meus amigos, este dia finalmente

chegou. Este não é mais o ―país do futuro‖, as pessoas do Brasil devem saber que o futuro já

chegou e está aqui agora. É hora de tomar posse

dele.

Nossos países nem sempre concordaram em tudo.

E assim como ocorre com muitas nações, teremos

nossas diferenças de opinião ao avançar. Mas estou aqui para lhes dizer que o povo americano

não apenas reconhece o sucesso do Brasil, nós

torcemos pelo sucesso do Brasil enquanto vocês

confrontam os muitos desafios que ainda enfrentam em casa e no exterior, vamos ficar

juntos, não são como parceiros sênior e júnior,

mas como parceiros iguais, unidos pelo espírito do interesse comum e do respeito mútuo, comprometidos para com o progresso que sei que

podermos fazer juntos.

Tenho certeza de que podemos fazer isso. Juntos,

podemos aumentar nossa prosperidade em comum. Sendo duas das maiores economias do mundo, trabalhamos lado a lado durante a crise

financeira para restaurar o crescimento e

confiança. E para manter nossas economias

crescendo, sabemos do que é necessário em ambas as nações. Precisamos de uma força de

trabalho capacitada e é por isso que empresas

brasileiras e americanas assumiram um compromisso de aumentar o intercâmbio de

estudantes entre nossas nações.

Precisamos de um compromisso com a inovação e

a tecnologia, por isso concordamos em aumentar a

cooperação entre nossos cientistas, pesquisadores e engenheiros. Precisamos de infra estrutura da

mais alta qualidade e por isso as empresas

americanas também querem ajudá-los a construir

e preparar a cidade para o sucesso olímpico. Numa

economia globalizada, os EUA e o Brasil deveriam

expandir o comércio, expandir investimentos, de

modo a criar novos empregos e novas oportunidades em ambas nossas nações por isso

38 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

estamos trabalhando para derrubar barreiras para

fazer negócios.

Por isso estamos criando relacionamentos mais

próximos entre nossos trabalhadores e nossos empreendedores. Juntos também podemos

trabalhar pela segurança da energia e proteger

nosso lindo planeta.

Sendo dois países comprometidos com economias

mais verdes, sabemos que a solução definitiva ao

desafio da energia virá da criação de fontes de energias limpas e renováveis. Por isso a metade

dos carros daqui pode circular com biocombustível

e a maior parte de sua eletricidade vem de

hidroelétricas. E por isso também demos início a uma nova indústria limpa de energia nos EUA. Por

isso os EUA e o Brasil estão criando novas

parcerias na área de energia, para compartilhar, criar novos empregos e deixar para nossos filhos um mundo mais limpo e mais seguro do que

encontramos.

Juntas, nossas duas nações também podem ajudar

a defender a segurança de nossos cidadãos. Estamos trabalhando juntos para deter o narcotráfico que destruiu vidas demais neste

hemisfério. Buscamos o objetivo de um mundo

sem armas nucleares. Estamos trabalhando juntos

para aumentar nossa segurança ente hemisférios. Da África ao Haiti, estamos trabalhando lado a lado

para combater a fome, doença e corrupção que

podem apodrecer uma sociedade e roubar seres humanos de sua dignidade e oportunidades.

Sendo dois países que foram tão enriquecidos pela herança africana, é vital que trabalhemos juntos

com o continente africano para ajudá-lo a se

erguer. É algo que devemos nos comprometer a fazer, juntos. Hoje também estamos dando apoio e

ajuda ao povo japonês em sua maior hora de

necessidade. Os laços que unem nossa nação ao

Japão são fortes. O Brasil é o lar da maior

população japonesa fora do Japão. Nos EUA,

solidificamos uma aliança com eles que já tem

mais de 60 anos.

39 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Os japoneses são alguns de nossos amigos mais

próximos e ficaremos ao lado deles, rezaremos

com eles e reconstruiremos com eles até que essa crise esteja terminada. Nestes e em outros

esforços para promover paz e prosperidade no mundo todo, os EUA e o Brasil são parceiros não

apenas porque compartilhamos história ou por

estarmos no mesmo hemisfério, não apenas por

compartilharmos laços de comércio e cultura, mas também porque compartilhamos de valores e

ideais duradouros.

Ambos acreditamos no poder e na promessa da

democracia, acreditamos que nenhuma forma de

governo é mais eficaz na promoção de crescimento

e prosperidade que alcança todo ser humano, não apenas alguns, mas todos. E aqueles que

discordam dizendo que a democracia atrapalha o

crescimento econômico devem argumentar com o exemplo do Brasil. Com os milhões que subiram da pobreza para a classe média não o fizeram numa

economia fechada controlada pelo estado, mas o fizeram como um povo livre, com mercados livres

e um governo que responde a seus cidadãos.

Vocês são a prova de que justiça social e inclusão social podem ser melhor conquistadas por meio da

liberdade e que a democracia é a maior parceira do

progresso humano. Também acreditamos que em

países tão grandes e diversos quanto os nossos, moldados por gerações de imigrantes de todas as

raças, fés e culturas, a democracia dá a maior

esperança de que todos os cidadãos sejam tratados com dignidade e respeito. E que podemos

resolver nossas diferenças pacificamente e

encontrar força em nossa diversidade.

Nós sabemos nos EUA como é importante poder

trabalhar juntos, mesmo quando discordamos. Entendo que a forma de governo que escolhemos

pode ser lenta e confusa. Entendemos que a

democracia precisa ser fortalecida e aperfeiçoada

com o tempo. Sabemos que diferentes países

escolhem caminhos diferentes para atingir a

promessa da democracia. E entendemos que

nenhum país deve impor sua vontade sobre outro.

40 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Mas também sabemos que existem certas

aspirações compartilhadas por todo ser humano.

Todos queremos ser livres, queremos ser ouvidos, todos ansiamos por viver sem medo ou

discriminação. Todos queremos escolher como seremos governados. Todos querem moldar seu

próprio destino. Esses não são ideais americanos

ou ideais brasileiros, não são ideais ocidentais, são

direitos universais. E devemos apoiá-los em toda parte. Hoje estamos vendo a luta por esses

direitos acontecendo no Oriente Médio e no Norte

da África.

Vimos uma revolução nascer de um anseio por

dignidade humana básica na Tunísia e vimos

manifestantes pacíficos, homens e mulheres, jovens e velhos, cristão e muçulmanos, ocupando

praça Tahir e vimos o povo da Líbia se defendendo

corajosamente contra um regime determinado a tratar com brutalidade seus próprios cidadãos. Em toda parte vimos jovens se erguendo. Uma nova

geração exigindo o direito de determinar seu próprio futuro.

Desde o início deixamos claro que a mudança que buscam devem ser impulsionadas pelo seu próprio povo. Mas para nossos dois países, para os EUA e

para o Brasil – duas nações que passaram muitas

gerações lutando para aperfeiçoar suas próprias

democracias – os EUA e o Brasil sabem que o futuro de nosso mundo era determinado pelo seu

povo. Ninguém pode dizer ao certo como essa

mudança terminará. Mas eu sei que mudança não é algo que devemos temer.

Quando os jovens insistem que as correntes da História estão se movendo, a carga do passado

pode ser apagada. Quando homens e mulheres

exigem pacificamente seus direitos humanos nossa humanidade em comum é

acentuada. Onde quer que a luz da liberdade seja

acesa, o mundo se torna um mais luminoso.

Esse é o exemplo do Brasil. Esse é o exemplo do

Brasil. Brasil, um país que prova que uma ditadura

pode se tornar uma próspera democracia. Brasil, um país que mostra que a democracia entrega

41 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

liberdade e oportunidade a seu povo. Brasil, um

país que mostra que um grito por mudanças vindo

das ruas pode mudar uma cidade, mudar um país, mudar o mundo. Há décadas, foi aqui fora, na

praça da Cinelândia, o grito por mudança foi ouvido aqui, estudantes e artistas e políticos de

todas as correntes ergueram faixas que diziam

―abaixo a ditadura‖, as pessoas no poder.

Suas aspirações democráticas não seriam

realizadas ainda por muito tempo. Mas um dos

jovens brasileiros envolvidos naquele movimento iria mudar para sempre a história deste país. A

filha de um imigrante. Sua participação no

movimento fez com que fosse presa e torturada

por seu próprio governo. Ela sabe o que é viver sem seus direitos mais básicos pelos quais tantos

lutam hoje. Mas ela também sabe o que é

perseverar. Ela sabe o que é triunfar. Porque hoje é ela é a presidente de seu país, Dilma Rousseff.

Nossos dois países enfrentam muitos desafios. Na estrada à nossa frente, com certeza

encontraremos muitos obstáculos. Mas no fim, é

nossa história que nos dá esperança para um amanhã melhor. É o conhecimento de que os homens e mulheres que vieram antes de nós

superaram desafios maiores que estes e que

vivemos em lugares em que pessoas comuns

fizeram coisas extraordinárias.

Esse senso de possibilidade e de otimismo que

primeiro atraiu pioneiros a este mundo. E isso une nossas nações como parceiros nesse novo século,

por isso acreditamos nas palavras de Paulo Coelho,

um de seus mais famosos escritores, que "com a força de nosso amor e nossa vontade podemos

mudar nosso destino. E também o destino de

muitos outros‖.

Muito obrigado. E que Deus abençoe nossas duas

nações.

42 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

PAULINA CHIZIANE E A HISTÓRIA DA POLIGAMIA

OLIVEIRA, Jurema

Paulina Chiziane é autora de A balada de amor ao vento (1990),

Ventos do apocalipse (1995), O sétimo juramento (1999) e Niketche:

uma história da poligamia (2002). Estas duas últimas obras criticam

os costumes e a postura patriarcal da sociedade moçambicana, e

também a prática de se obter o poder a qualquer preço. Estas obras

distintas têm em comum a denúncia dos tortuosos meios encontrados

por um sistema social que silencia as vozes femininas em prol de

uma valoração das ações e feitos masculinos.

Em O sétimo juramento, os valores animistas constituem o foco

da narrativa, que traz à tona uma prática recusada pelo sistema

colonial, mas subentendida no comportamento sócio-cultural vigente

durante o processo revolucionário moçambicano. No dizer de Leite:

O mundo do feitiço e dos mitos esteve sempre

ligado ao comportamento sócio-cultural da maior parte dos intervenientes activos na nova política social de Moçambique, embora de forma mais ou

menos latente. O sétimo juramento, através de uma história de família, de que Vera, é uma das

protagonistas, coloca-nos perante o dilema da confrontação com esse mundo mágico-espiritual,

que questiona, entre outras coisas, a assimilação

dos costumes, a cristalização, resultados ainda do tempo colonial. Questiona ainda os primeiros anos

do pós-independência em que foram proibidas as

práticas feiticistas e religiosas. Este ―apagamento‖

das tradições religiosas animistas, e a ocidentalização dos costumes, levou, por um lado,

ao seu recrudescimento clandestino, por outro à

incapacidade de defesa, e compreensão comportamental, por desconhecimento dessas

mesmas práticas e tradições antigas (2003, p. 69).

O choque cultural presente em O sétimo juramento pode ser

percebido nesta passagem:

43 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

- Diz-me avó, pode o meu filho estar possesso,

pode?

- Os espíritos fazem a vítima sofrer. Abrem caminhos, fecham caminhos, transtornam. Dão

cabo da cabeça, enlouquecem. (...) Estou a rever memórias do tempo antigo. (...) As almas não

morrem, Vera, encarnam-se. E este filho nunca foi

teu nunca te pertenceu. Começa por decifrar o

mistério do seu nome (...). No nome está a raiz do problema. Os antepassados sempre disseram A

VITO I MPONDO! (CHIZIANE, 1999, p.59).

Além da fragmentação conceitual acerca dos rituais do passado

– visíveis na fala da personagem que protagoniza a cena de

possessão do filho – constata-se no decorrer da leitura que ela se

torna vítima da ambição de um homem que faz uma ―viagem

iniciática ao mundo dos mortos, não olhando os meios, sacrificando

ritualmente a família para conseguir os seus almejados objetivos‖

(LEITE, 2003, p.70).

Neste cenário de poder masculino, a figura feminina encontra-

se duas vezes violentada pelos códigos sociais estabelecidos: pelo

patriarcado e pela ausência de conhecimento sobre as tradições

religiosas da comunidade a que pertence, e que a ajudariam a

compreender pelo menos os efeitos das ações daquele homem nos

membros da família, quando estabelece um pacto com os ―mundos

infernais‖ para obter rapidamente o poder desejado.

A crítica aos costumes patriarcais destoantes em o sétimo

juramento também será feita pela via da ironia em Niketche: uma

história da poligamia. Segundo Leite, esta obra se inscreve numa

linha narrativa feminina de crítica à poligamia, que se tornou

recorrente no cenário literário de mulheres africanas que buscam

denunciar por meio da paródia a ―forma perversa como a poligamia

foi adulterada na sociedade urbana, não se respeitando os direitos

que as mulheres tinham na sociedade tradicional‖ (LEITE, 2003,

p.70).

44 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Niketche: uma história da poligamia conta a história de Tony,

funcionário da polícia e sua mulher Rami, casados há vinte anos. Em

um determinado momento, Rami descobre que seu marido é

polígamo: tem outras quatro mulheres e vários filhos com cada uma.

As esposas do Tony estão espalhadas pelo país: em Maputo, em

Inhambane, na Zambézia, em Nampula e em Cabo Delgado.

O tratamento dado aos temas sobre a mulher por escritoras

africanas na pós-revolução constitui um ponto de vista diferenciado e

crítico que contribui para a construção de projetos descoloniais. Num

cenário complexo, Paulina Chiziane explicita fundamentos de um

saber africano pautado num:

conhecimento esotérico e oculto, da tradição

religiosa e cultural: práticas de magia, feitiçaria, rituais de morte e de viuvez, rituais de iniciação

sexual, relato das normas e tabus existentes nas

relações familiares e entre homem e mulher

(LEITE, 2003, p.73).

Na qualidade de primeira esposa, Rami sente-se desprezada,

apesar de avaliar o tempo de casamento como uma conquista:

Vinte anos de casamento é um recorde nos tempos que correm. Modéstia à parte, sou a mulher mais

perfeita do mundo. Fiz dele o homem que é. Dei-lhe amor, dei-lhe filhos com que ele se afirmou

nesta vida. Sacrifiquei os meus sonhos pelos

sonhos dele. Dei-lhe a minha juventude, a minha vida. Por isso afirmo e reafirmo, mulher como eu,

na sua vida, não há nenhuma! Mesmo assim, sou a mulher mais infeliz do mundo. Desde que ele subiu

de posto para comandante da polícia e o dinheiro

começou a encher as algibeiras, a infelicidade

entrou nesta casa (CHIZIANE, 2004, p.14).

O descontentamento leva Rami a buscar explicações para a

falta de afeto e descobre que sua vida:

É um rio morto. No meu rio as águas pararam no

tempo e aguardam que o destino traga a força do

45 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

vento. No meu rio, os antepassados não dançam

batuques nas noites de lua. Sou um rio sem alma,

não sei se a perdi e nem sei se alguma vez tive uma. Sou um ser perdido, encerrado na solidão

mortal (CHIZIANE, 2004, p.18).

As águas do rio de Rami precisam ser despertadas. Nesse

sentido, ela pede a Deus a força que no passado – anterior a

colonização - os moçambicanos encontravam nos rituais animistas

típicos da tradição:

Meu Deus ajuda-me a descobrir a alma e a força do meu rio. Para fazer as águas correr, os moinhos

girar, a natureza vibrar. Para trazer ao meu leito a

luz de todas as estrelas do firmamento e deixar o arco-íris mergulhar-me em toda a sua imensidão

(CHIZIANE, 2004, p.18).

Rami, a primeira esposa de Tony vive ao sul de Moçambique,

região que de acordo com uma das amantes teria sofrido maior

influência das práticas eurocêntricas:

- Não tens culpa – comenta a Saly. – Vocês do sul deixaram-se colonizar por essa gente da Europa e

os seus padres que combatiam as nossas práticas. Mas que valor tem esse beijo comparado com o que temos dentro de nós? Depois trouxeram a

pornografia, essa estupidez só para enganar os

incompetentes e entreter os tolos (CHIZIANE, 2004, p.181).

Diante do impasse da experiência de ser uma mulher marcada

por ausências e falta de experiências afetivas mais completas, Rami

interroga a mãe acerca de sua aparência e das lições de amor que

não recebeu:

O que acha do meu peso, mãe? Devo emagrecer

como essa Julieta? Isso também é fácil, posso

corrigir o corpo com massagens e ginástica aeróbica. Mas tenho medo de emagrecer. Os

homens pretos gostam de mulheres rechonchudas,

com almofadas para frente, almofadas para trás,

46 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

assim como eu. É verdade, mãe, essas mulheres

todas prendem o Tony com encantos mágicos que

não tenho. Por que não me fizeste mais bonita do que elas, mãe? Por que não me deste lições de

amor para viver sem dor, minha mãe? (CHIZIANE, 2004, p.99).

A personagem Rami representa uma parcela da mulher

moçambicana sem os encantos das macuas que preparam a alma

para dançar o niketche. Um ritmo tradicional do norte de

Moçambique:

Niketche. A dança do sol e da lua, dança do vento

e da chuva, dança da criação. Uma dança que

mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e

missangas. Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro

toque do tambor, cada um sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se

viveu e se perdeu. As mulheres desamadas

reencontram no espaço o príncipe encantado com quem cavalgam de mãos dadas no dorso da lua.

Nos jovens desperta a urgência de amar, porque o niketche é sensualidade perfeita, rainha de toda sensualidade. Quando a dança termina, podem

ouvir-se entre os assistentes suspiros de quem

desperta de um sonho bom (CHIZIANE, 2004,

p.160-161).

A narrativa se desenvolve num cenário repleto de contrastes e

nos leva a descobrir juntamente com Rami o desconhecido território

do norte de Moçambique:

– A nossa sociedade do norte é mais humana –

explica a Mauá. – A mulher tem direito à felicidade

e à vida. Vivemos com um homem enquanto nos

faz feliz. Se estamos aqui, é porque a harmonia

ainda existe. Se um dia o amor acabar, partimos à

busca de outros mundos, com a mesma liberdade

dos homens. (...) No sul a sociedade é habitada

por mulheres nostálgicas. Dementes. Fantasmas. No sul as mulheres são exiladas no seu próprio

47 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

mundo, condenadas a morrer sem saber o que é

amor e vida. No sul as mulheres são tristes, são

mais escravas. Caminham de cabeça baixa. Inseguras. Não conhecem a alegria de viver. Não

cuidam do corpo, nem fazem massagens ou uma pintura para alegrar o rosto. Somos mais alegres,

lá no norte. Vestimos de cor, de fantasia. Pintamo-

nos, cuidamo-nos, enfeitamo-nos. Pisamos o chão

com segurança. Os homens nos oferecem prendas, ai deles se não nos dão uma prenda. Na hora do

casamento vem construir o lar na nossa casa

materna e quando o amor acaba, é ele quem parte. No norte as mulheres são mais belas

(CHIZIANE, 2004, p. 175).

Niketche: uma história da poligamia coloca o leitor diante de

uma narrativa que cenariza mundos distintos por meio de um

discurso que pontua ora um universo sulista, ora um espaço

nortenho. De um lado, detectamos as experiências de personagens

cuja memória do corpo está inserida nas práticas pregadas pela razão

imperial/colonial como bem define Mignolo em seu texto

―Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de

identidade em política‖.

Rami representa gerações de mulheres que aprenderam com

suas mães como deveriam se comportar para garantir um

casamento, o lugar de esposa. Sendo assim, conectadas aos

princípios eurocêntricos, as mulheres do sul compõem um quadro

social que remonta um patriarcalismo oriundo da ―colonialidade e da

reprodução da matriz colonial do poder‖ (MIGNOLO, 2008, p.313)

que visa inculcar no sujeito colonizado os valores universais abstratos

como os preceitos judaico-cristãos: ―no passado os homens

deixaram-se vencer pelos invasores que impuseram culturas,

religiões e sistemas a seu bel-prazer‖ (CHIZIANE, 2004, p.93).

O descompasso constitui-se na mola mestra que impulsiona a

narrativa de Niketche: uma história da poligamia. Se de um lado, o

discurso colonialista está presente nas práticas das mulheres sulistas,

48 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

por outro lado o discurso descolonial se faz presente nas vozes de

mulheres nortenhas que não querem ser propriedade e abominam a

ideia de que ―Quem investe cobra, porque é preciso que o

investimento renda” (CHIZIANE, 2004, p.212).

Paulina Chiziane constrói uma narrativa marcada por várias

vozes que sinaliza um desvelar a tradição, a colonialidade e a

descolonialidade: De acordo com Macamo (2002), o conhecimento

social em África pode ser dividido em três momentos nomeadamente

o saber tradicional, o saber colonial e o saber africano. Cabe ressaltar

que o sentido de ―saber‖ proposto aqui está vinculado ao conceito de

discurso disseminado pela ciência da literatura.

Nesse sentido, o saber tradicional vincula-se basicamente às

práticas ritualísticas, como aquelas desenvolvidas pelas mulheres

nortenhas que dançam niketche e frequentam uma escola de amor:

Trata-se de um saber que muitas vezes não é verbalizado e encontra expressão em situações

rituais onde se produz e confirma a ordem social.

Os mitos fundadores de linhagens ou legitimidades de poder constituem momentos privilegiados deste tipo de saber (MACAMO, 2002, p. 11).

Em Niketche: uma história da poligamia, as normas e os

preceitos da poligamia tradicional são relatas no capítulo dezessete:

O ciclo do lobolos começou com a Ju. Foi com

dinheiro e não com gado. Lobolou-se a mãe, com

muito dinheiro, num lobolo-casamento. As crianças foram legalmente reconhecidas, mas não tinham

sido apresentadas aos espíritos da família. Era

preciso trazê-las do tecto da mãe para a sombra do patriarcal num acto de lobolo-perfilha, uma

forma de legitimá-las uma vez que nasceram fora

das regras de jogo de uma família polígama. Depois fez-se o lobolo da Lu e dos filhos. As

nortenhas espantaram-se. Essa história de lobolo

era nova para elas. Queriam dizer não por ser contra os seus costumes culturais. Mas envolve

dinheiro e muito dinheiro. Dinheiro para os pais,

dinheiro para elas, e para os filhos.

49 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

– O meu Tony, ao lobolar cinco mulheres, subiu ao

cimo do monte – diz a minha sogra. – Ele é a

estrela que brilha no alto e como tal deve ser tratado. E tu, Rami, és a primeira (CHIZIANE,

2004, p. 124-125 e 126).

A narradora ao situar o leitor em relação a uma prática sulista

tradicional, alimenta um presente repleto de valores típicos, mas

adulterados pelas ações de um projeto implementado pela razão

imperial/colonial. E para ampliar nossas reflexões, recupera-se aqui

um trecho do ritual kutchinga que ocorre oito dias depois da viuvez:

Agora falam do kutchinga, purificação sexual. Os

olhos dos meus cunhados, candidatos ao sagrado

acto, brilham como cristais. Cheira a erotismo no ar. A expectativa cresce. Sobre quem cairá a bendita sorte? Quem irá herdar todas as esposas

do Tony? Fico assustada. Revoltada. Minha pele se encharca de suor e medo. Meu coração bate de

surpresa infinda. Kutchinga! Eu serei tchingada por

qualquer um. E todos aguçam os dentes para me

tchingar a mim. A parede é firme e fria. Ampara-me. O dorso do chão é duro, é seguro. Suporta-me

É tão cruel e tão malvada esta gente... Peço a qualquer Deus qualquer socorro. Ninguém me

ajuda, nem Deus, nem santos. Kutchinga é lavar o nojo com beijos de mel. É inaugurar a viúva na

nova vida, oito dias depois da fatalidade. Kutchinga é carimbo, marca de propriedade.

(CHIZIANE, 2004, p. 212).

Na construção do quadro de práticas tradicionais explicitadas

em Niketche, destaca-se aqui a história da moela na culinária

moçambicana e de quem deve comer esse ingrediente sagrado:

– Aí é que está o grande mal – diz um velho. – Falas de moelas. Eu estou a falar de uma moela. É

preciso começar a compreender a diferença entre

moelas e moela.

– Diferença?

– Moelas de aviário são uma coisa. Moela, daquela

galinha amorosamente depenada e carinhosamente assada para o marido, é outra

50 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

coisa. É dessa moela que estamos a falar. Não

foram educadas pelas vossas mães? A senhora – o

velho dirige-se à minha mãe – não educou a sua filha. Como primeira esposa é a principal

responsável por essa anarquia. Tem que voltar a ensinar que a moela é sagrada. A moela e não as

moelas.

A minha mãe chora em silêncio. O seu choro é um

canto de ausência, de dor e saudade. Pela irmã que morreu na savana distante nas garras de um

leopardo, por causa de uma moela de galinha. Pela

humilhação que sofremos eu e ela, duas gerações distintas seguindo o mesmo trilho. Revolto-me.

Estou disposta a abrir a boca, a soltar todos os

sapos e lagartos, a incendiar tudo e vingar a honra

da minha mãe ultrajada sem sequer olharem para a sua idade. De repente li a mensagem de paz nos

olhos da minha mãe. Ela não quer que eu deixe

falar a voz do silêncio. – Esses matadouros são um atentado aos nossos costumes – vocifera uma outra velha –, a

civilização está contra a nossa cultura (CHIZIANE, 2004, p. 153 e 154).

Na visão de Amadou Hampâté Bâ,

a tradição confere a Kuma, a palavra, não apenas

poder criador, mas também a dupla função de conservar e destruir. Por isso, a palavra é por

excelência o grande agente ativo da magia africana. Mas para que a palavra produza todo o

seu efeito, é preciso que seja acompanhada

ritmicamente, porque o movimento tem necessidade de ritmo, pois ele próprio se baseia no

segredo dos números. É necessário que a palavra reproduza o vaivém que constitui a essência do

ritmo (1993, p. 17).

O ritmo estabelecido pelos rituais tradicionais em certa medida

foram rompidos no estágio de fixação do saber colonial em África.

Ainda de acordo com Macamo (2002), este saber costuma ser

conotado com a disciplina da antropologia. Nos anos setenta, com a

crescente influência da perspectiva marxista nas ciências sociais,

estabeleceu-se o hábito de criticar a antropologia pela sua

51 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

proximidade com o sistema colonial (p. 11). Essa critica fundamenta-

se na prática, ou melhor, no método usado por alguns antropólogos

que direta ou indiretamente serviram aos propósitos dos regimes

coloniais, mas isso não é motivo para se atrelar a disciplina às

práticas coloniais.

O saber colonial consiste na invenção de valores para uma

intervenção direta nas práticas sociais, em especial na formação

familiar exposta por Paulina Chiziane em Niketche: uma história da

poligamia:

Poligamia é o destino de tantas mulheres neste

mundo desde os tempos sem memória. Conheço um povo sem poligamia: o povo macua. Este povo

deixou as suas raízes e apogalimou-se por

influência da religião. Islamizou-se. Os homens deste povo aproveitaram a ocasião e converteram-

se de imediato. Porque poligamia é poder, porque

é bom ser patriarca e dominar. Conheço um povo

com tradição poligâmica: o meu, do sul do meu país. Inspirado no papa, nos padres e nos santos,

disse não à poligamia. Cristalizou-se. Jurou deixar os costumes bárbaros de casar com muitas

mulheres para tornar-se monógamo ou celibatário. Tinha o poder e renunciou. A prática mostrou que

com uma poligamia tipo ilegal, informal sem cumprir os devidos mandamentos. Um dia dizem não aos costumes, sim ao cristianismo e à lei. No

momento seguinte, dizem não onde disseram sim, ou sim onde disseram não (CHIZIANE, 2004,

p.92).

O saber colonial produziu uma sociedade:

africana fictícia, mas real, como artefacto do poder colonial. Portanto, o interesse português pelos

usos e costumes tradicionais em Moçambique,

consubstanciado em profusos estudos realizados principalmente por administradores coloniais foi,

portanto, principalmente motivado pela

necessidade de inventar uma sociedade africana susceptível de intervenção colonial (MACAMO,

2002, p. 14).

52 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Em relação ao saber africano, podemos dizer que é uma

projeção para o futuro:

Este saber africano não se deve confundir com o

saber tradicional. O que se tem em mente é um tipo de saber que consiste na projecção duma ideia

de África no futuro a partir da confrontação entre o

indivíduo e as condições objectivas da sua

existência no momento actual (MACAMO, 2002, p.15).

A projeção de um saber africano nasce com as ideias

disseminadas por Senghor, Aimé Cesaire, Du bois, dentre outros

pensadores de movimentos como o pan-africanismo e a negritude,

que ao definir a África como uma comunidade de saberes e valores

distintos daqueles pregados pelo ocidente idealizaram um futuro

resultante das experiências cotidianas.

No livro Para quando a África? (2006), Ki-Zerbo faz a seguinte

reflexão:

A história anda sobre dois pés: o da liberdade e o da necessidade. Se considerarmos a história na

sua duração e na sua totalidade, compreenderemos que há, simultaneamente, continuidade e ruptura. Há períodos em que as

invenções se atropelam: são as fases da liberdade

criativa. E há momentos em que, porque as

contradições não foram resolvidas, as rupturas se impõem: são as fases da necessidade. Na minha

compreensão da história, os dois aspectos estão

ligados. A liberdade representa a capacidade do ser humano para inventar, para se projetar para

diante rumo a novas opções, adições, descobertas.

E a necessidade representa as estruturas sociais, econômicas e culturais que, pouco a pouco, vão se

instalando, por vezes de forma subterrânea, até se

imporem, desembocando à luz do dia numa configuração nova. De uma certa maneira, a parte

da necessidade da história escapa-nos, mas pode-

se dizer que, mais cedo ou mais tarde, ela há de se impor por si própria (2006, p. 17).

53 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

A ideia de a história caminhar sobre dois pés fortalece

significativamente os preceitos dos sistemas comunitários de ruptura

com um conhecimento construído a partir do ―conhecimento ocidental

e razão imperial/colonial‖ que neutralizou as experiências de povos

fora do eixo eurocêntrico. O despertar desses grupos toma força à

medida que novas estratégias de ruptura são valorizadas. Sendo

assim, quando Ki-Zerbo (2006) diz que ―não podemos separar os dois

pés da história – a historia-necessidade e a historia-invenção‖ (p.

17), porque no momento preciso a primeira se impõe para que o

sujeito invente novos caminhos para romper com um projeto

saturado e excludente como o imperial/colonial, aonde ―as

identidades construídas pelos discursos europeus modernos eram

raciais (isto é, a matriz racial colonial) e patriarcais‖ (MIGNOLO,

2008, 290). Num segundo estágio do processo em que a história-

invenção fixou-se, a projeção do futuro encontra respaldo naquilo

silenciado pelo discurso eurocêntrico, as práticas comunitaristas que

podem e devem ser fortalecidas pela ―identidade em política‖

(MIGNOLO, 2008, p. 290).

REFERÊNCIAS :

ABDALA JUNIOR, Benjamin. De vôos e ilhas: literatura e

comunitarismos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história da poligamia. São

Paulo: Companhia das Letras, 2004.

HAMPÂTÉ – BÁ, Amadou. ―Palavra africana‖. In: O correio da Unesco. Ano 21, número 11, Paris; Rio de Janeiro, novembro de

1993.

KI – ZERBO, Joseph. Para quando a África? Rio de Janeiro, 2006.

LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formações pós-

coloniais. Maputo: Imprensa Universitária, 2003.

MACAMO, Elísio. A constituição de uma sociologia das sociedades africanas. Estudos Moçambicanos, 19: s.l: s.n, 2002,

54 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

pp. 5-26. In: http://www.casadasafricas.org.br/site/img/upload/468250.pdf.

Acesso em 23/05/2011.

MIGNOLO, Walter D. ―Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política‖. Cadernos de Letras.

Niterói – RJ, número 34, p. 287-325, 2008.

55 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

PELO OLHAR DA SEMIÓTICA: LEITURA E

PRODUÇÃO DE TEXTO

SIMÕES, Darcilia Marindir Pinto

MELO, Eliana Meneses de

INTRODUÇÃO

Voltado para o amplo universo da linguagem, este artigo visa

apresentar reflexões em torno dos diferentes olhares que as teorias

da Semiótica e lingüísticas emprestam ao pesquisador cuja

intencionalidade se direciona à análise e interpretação das produções

discursivas engendradas pela sociedade. O mundo das práticas de

vida é o mundo das linguagens, dos muitos discursos que percorrem

as múltiplas ações e reações na vida cotidiana.

Livres e ao mesmo tempo presos nos constantes diálogos

realizados em diferentes esferas da existência social, as linguagens

são reveladoras de marcas culturais e das mudanças empreendidas

no eixo da história. Mergulhada em mudanças originárias nos fatores

tecnológicos e econômicos, esta sociedade tem em seu cerne a

comunicação e o consumo a transitarem o cotidiano, ao mesmo que

abarcam o homem: sujeito e objeto de um percurso que impõe e

sobrepõe valores. São os efeitos das sociedades complexas, nas

quais, em linhas irregulares, produzem e se fazem circular múltiplos

discursos.

Nas dimensões da complexidade contemporânea encontra-se a

uma gama enorme de percursos revestidos por signos em múltiplas

significações. São as linguagens em criação e recriação a percorrerem

os espaços do contraditório. É o verbo e as imagens que se associam

em torno da metrópole em suas variadas formas de consumo cultural

e entretenimento e que ao mesmo tempo em que integram diferentes

sujeitos do corpo social, espelham as diferenças entre o imaginário e

o lúdico a partir do espaço geográfico de residência e circulação. (

MELO: 2008, p. 8)

56 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Sendo os diferentes diálogos sociais dinâmicos, os enunciados

que os materializam são igualmente dinâmicos e passam, no mínimo,

por uma leitura para cada sujeito envolvido no ato de comunicação.

Trata-se de leituras realizadas pelos sujeitos e de suas

multiplicidades, como afirma Bakhtin (1988), ao tratar do aspecto

responsivo do ouvinte. Qual seja, o sujeito que recebe o enunciado,

ao compreendê-lo na prática do discurso, está em colóquio com as

suas experiências. Neste sentido, é um sujeito plural que dialoga com

o autor.

A capacidade e habilidades de leitura constituem elementos

essenciais para o desenvolvimento do intelecto. Através das ações

circunscritas à leitura, o sujeito realiza uma atividade de

interpretação que lhe leva a elaborar concordâncias ou refutações,

incorporando , ou não, novas idéias em suas práticas cotidianas.

Por este entendimento, um dos pontos principais em torno do

qual repousa a questão do entendimento e interpretabilidade se

localiza na escrita, no registro efetivo das linguagens. Segundo

TODOROV (1982), qualquer sistema semiótico visual espacial pode

ser considerado um sistema de notação de linguagem: mitografia,

logografia, morfemografia.

O homem tem registrado seus comunicados, suas

intencionalidades discursivas através dos tempos, estabelecendo um

diálogo entre um povo buscando ao outro: informa, comunica,

tornam comum diferentes níveis de necessidades. Da sintaxe

construída por imagens, representações de objetos, até chegar ao

registro dos signos verbais, à semiótica complexa como hoje, a

compreensão dessas sintaxes pressupõe o conhecimento do sujeito

sobre a forma de representação utilizada, ou o desejo de entendê-las,

de decifrá-las. (MELO: 2008. p.19)

Por certo que compreender enunciações, implica no

reconhecimento das formas utilizadas para a comunicação, da cultura

e dos valores que a gerou. A afirmação nos remete às práticas

57 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

sociais, seus sistemas, sujeitos que apresentam diferentes níveis de

experiências culturais e leitura de seu entorno, sempre gerando

outros enunciados.

Haver humanos implica em existir discursos, sujeitos a

produzirem discursos e leituras. Em tempos de diversidades

tecnológicas, novos veículos de comunicação e maior precisão nos já

existentes, tornam-se mais perceptíveis às complexidades sociais:

dos indivíduos e dos discursos por eles produzidos. Sendo assim, a

leitura vai além da apreensão maquinal de sentidos, deve atingir ao

entendimento das situações humanas e gerar novas leituras.

De certa forma, pode-se compreender a leitura enquanto

atividade social: lê-se o que está escrito, seja qual for o sistema

representação. Reside na vida em comum a necessidade da leitura:

ler o que é comunicado. Lê-se a fala dos sujeitos-leitores dos

diferentes cenários: ler as linguagens em circulação, dentro das

possibilidades que envolvem as próprias experiências humanas. Toda

comunicação para ser apreendida, portanto, para ser lida, passa por

um saber específico em relação à modalidade da linguagem na qual

se manifeste o objeto da leitura. Assim, o nível de conhecimento

incide no nível de apreensão realizado pelo sujeito.

Em síntese, no contexto onde as linguagens circulam,

desenvolvem-se as transformações, traços de sentidos adicionados

aos já existentes constroem, nas dinâmicas das linguagens em

movimento, novos recortes e valores: cultura em movimento. Os

sistemas conceituais fornecidos pela Semiótica emprestam a este

artigo caminhos possíveis para reflexões sobre pesquisa, ensino e

práticas de leitura.

1-A LEITURA EM PERSPECTIVA ICÔNICA

Em primeiro plano, a capacidade e habilidade de leitura são

condições fundamentais para o desenvolvimento do intelecto. Pela

58 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

convivência com textos, os sujeitos ampliam a percepção sobre a

linguagem e, em consequência, suas ideias sobre o mundo em sua

volta. Todavia, para que isso ocorra, se faz necessário um trabalho

sistemático de interação com os diferentes textos que produzimos.

Neste âmbito que estão situadas as investigações icônicas para as

práticas de leitura.

Em conformidade com a Semiótica de inspiração nos estudos

de Peirce (1839-1914), se formula a Teoria da Iconicidade Verbal

(SIMÕES, 2007-2009). Essa construção teórica se propõe a orientar a

leitura e também a produção de textos, baseando-se nas qualidades

e relações sígnicas, a partir da possibilidade em identificar ícones e

índices (função semiótica) na superfície dos textos.

Uma vez compreendidas as funções semióticas, os sujeitos

estarão preparados para enfrentar leituras de textos simples e

complexos, a partir daí poderão enfrentar os sinais que lhes dão

condições de entender a mensagem do texto.

A Teoria da Iconicidade verbal vem suprir a necessidade

crescente de uma base teórica que observasse o signo em sua

materialidade sonora e visual. O interesse pela materialidade do

signo surge ao se considerar a mediação durante a interação

comunicativa. Seja no nível da oralidade, seja no nível da escrita, a

materialidade do signo se evidencia. Nestes termos, acredita-se na

premissa de que qualquer signo é criado a partir da imagem mental

sobre algo. Essa primeira imagem é um ícone. Ela se torna conhecida

por meio de sua representação de um ícone de segunda, ou

hipoícone, o qual tenta re(a)presentar o objeto pensado a partir de

um sinal material ou gráfico.

Disso é possível deduzir que temos por premissa que o ícone é

fonte primária do signo. A prova disso é encontrada na origem da

comunicação humana, já que as primeiras linguagens humanas se

constituíram a partir das imagens.

59 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Segundo SIMÕES (1994i - 2009), ―O iconismo da imagem se

assenta em relações de analogia ou similaridade com seu referente

(ideia-objeto representada).‖ Conforme a Semiótica visual, a imagem

é uma manifestação auto-suficiente, une um texto porque comunica

uma mensagem (SIMÕES, id.).

Existem diversas posições teóricas sobre iconicidade. Ocupamo-

nos da iconicidade do signo verbal, na qual se destaca a iconicidade

diagramática. Diferentemente do construto de Saussure, o enfoque

paradigmático e sintagmático no plano semiótico observa as relações

simbólicas possíveis extraídas da superfície textual, as quais servem

de indutores para a interpretação.

Cumpre esclarecer que, nessa perspectiva, não são

consideradas as relações in praesentia o in absentia – tão relevantes

para o estudioso genebrino. Do ponto de vista semiótico aqui

adotado, os signos produzem sua semiose a partir da relação

imediata emergente de sua participação nos textos. Não se devem

desprezar as inferências, ilações, implicaturas etc., mas a produção

do signo interpretador do signo interpretado nasce da

contextualização do signo, já que tudo pode ser signo de tudo (cf.

SIMÕES, 2007, p.42).

Ademais, signo é tudo o que possa ser conhecido, tudo o que

possa ser reconhecido. Todavia, para que um signo potencial possa

funcionar como signo, deve estar relacionado a um objeto, deve ser

interpretado e produzir um interpretante na mente do sujeito

implicado. Este processo interpretativo é denominado semiose. E a

iconicidade focalizada neste artigo é a potencialidade de materializar

nas mentes interpretadoras signos-referência, os quais deflagrem o

processo interpretativo independentemente do código em uso

(SIMÕES ibidem).

Assim sendo, o edificio da Teoria da Iconicidade Verbal tem por

premissas:

1. O signo verbal é uma imagem. (sonora o visual);

60 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

2. A seleção e a combinação produzem a iconicidade textual no

nível diagramático;

3. O projeto comunicativo se baseia na verossimilhança e visa à

eficácia textual;

4. O texto deve ser analisado em seus atributos plásticos;

2- ACTANTES, ENUNCIADOS E LEITURA

Nos termos apontados por Greimas (1979, p.11), um enunciado

omitido nas manifestações textuais assinala a presença de

enunciados subjacentes que aparecem como uma representação

sintático-semântica e que expressa um nível de estrutura profunda.

As estruturas de superfície manifestam textos ocorrenciais. Assim, o

enunciado elementar é concebido como função que se relaciona por

relações paradigmáticas.

No nível do esquema sintático, compete às unidades

paradigmáticas organizarem a narrativa. Para Greimas (Op cit, p.18

)―é somente o reconhecimento das projeções paradigmáticas que

permite falar da existência das estruturas narrativas‖. Ao reconhecer

as relações pragmáticas, igualmente são reconhecidas a as

sintagmáticas que também podem desempenhar o papel de eixo

condutor das emanações por onde se articulam os elementos de

expressão do sentido.

Nas dimensões do espaço destinado ao enunciado de base é

onde encontramos o sujeito com um actante definido pela função na

qual se inscreve. Nas relações sintagmáticas (presentes na estrutura

narrativa) repousa um sentido, um agente motivador. Situa-se nesse

ponto o que Greimas chamou de conceito operatório e que evidencia

o esquema narrativo, locus de articulação da atividade humana a qual

erige em significação (1979, p.14).

Desta forma, implícita ao sentido produzido nas comunicações

está a sintaxe pela qual circulam actantes de um discurso, no

61 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

contexto da enunciação. A memória dos actantes aparece nos

discursos através do encadeamento de certos elementos que na

enunciação expressam as marcas de espaço, tempo e dos sujeitos

que se situam na enunciação. Cada discurso contém determinantes

para a sua leitura, diretamente implicados aos seus estatutos

discursivos e ao conjunto de signos através dos quais ganham

materialidade.

3 - A LEITURA E O LEITOR

Ao trazermos a este contexto os postulados da Semiótica

narrativa e discursiva, o fazemos por entender que, ao lidarmos com

o leitor contemporâneo nos cenários das práticas pedagógicas, o que

se observa na maioria dos casos, principalmente nos estudantes que

iniciam a graduação - e até mesmo nos já graduados – são relações

de leitura nas quais o sujeito leitor posiciona –se como único. Neste

caso, o diálogo entre sujeito autor e sujeito leitor deixa de existir , ou

se torna frágil.

Necessário se faz termos em mente que a negação do outro

decorre das dificuldades em compreender que ler implica em

desmanchar o percurso elaborado pelo outro, retirando o conteúdo,

o conjunto de idéias emanadas pelo texto. Os índices oficiais sobre o

desempenho de nossos alunos, assinalam o resultado de tal prática.

Por este anglo, a experiência docente nos revela que a leitura se

realiza por transferência, por um desejo de que o outro tenha querido

dizer algo que se ajusta às vivências do leitor.

Inegável é o fato de que somos frutos de nossas experiências e

que nossa visão de mundo se origina do mundo culturalmente

compartilhado. Nossa reflexão caminha para as questões que se

manifestam no cotidiano com a leitura, na percepção de papel

desempenhado pelo leitor frente ao texto acadêmico. Nesta

62 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

modalidade textual, o sujeito –leitor é inserido nos mecanismos de

construção e comunicação do conhecimento.

O sujeito – leitor fica diante, sobretudo, de um universo lexical

e dos procedimentos normativos do grupo comunitário profissional e

científico ao qual pertence o discurso produzido, em um contexto

específico. Trata-se, em termos gerais, de reconhecermos diferenças

motivadoras que circundam a elaboração de um texto acadêmico e a

necessidade de haver uma preparação para a realização da leitura.

De maneira geral, o sujeito-leitor , no caso dos graduandos, não

dispõe de ferramentas que o auxiliem a penetrar na leitura.

Em decorrência, em termos exemplificativos, reportamo-nos

aos textos de TCC (Trabalhos de Conclusão de Curso), nos quais é

comum a presença de produção textual cuja intencionalidade seja

apresentar as idéias de determinados autores ou teorias. Muitas

vezes, o que temos é uma distância acentuada entre os conceitos, ou

proposições de pesquisadores, e o que o sujeito – leitor – aluno trás

em seu texto.

O fenômeno identificado mostra um leitor que lê a si próprio no

outro. Narra uma intencionalidade discursiva atribuída a determinado

autor, fato muita vezes cobrado em bancas examinadoras. A

problemática ganha destaque na medida em que, ao entrarmos nas

dimensões do texto científico, saímos do imaginário subjetivo,

alimentado pela poética, para atingirmos a literatura científica e seu

estatuto: comunicação da produção do conhecimento.

A aplicação de elementos da teoria greimasiana como

ferramenta na formulação de um método para as práticas de leitura

da literatura científico- acadêmica tem se revelado eficaz. Dela

destacamos alguns pontos: a concepção da narração sempre

presente nos níveis mais profundos; os papéis actanciais e o percurso

em torno do objeto- valor.

Em primeiro plano, ao se ter à compreensão segunda a qual

toda produção textual apresenta, independentemente da forma

63 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

manifestada, tem em sua estrutura profunda a intencionalidade

narrativa, permite a formulação de uma primeira base conceitual

sobre a literatura acadêmico-científica e um instrumental para o

sujeito –leitor: o autor tem como intencionalidade contar o

pensamento dele em torno de determinada temática, narrar a idéia e

como chegou a ela e em quais pontos a fundamenta. Neste caso, o

sujeito-leitor deve identificar o caminho elaborado pelo sujeito-autor.

Com relação aos papéis actanciais, temos aí um ponto

fundamental para a leitura do texto científico: a separação entre o

sujeito-leitor e o sujeito – escritor. Separadas essas relações

actanciais, opera-se um fato importante que é a identificação dos

sujeitos com os quais o escritor dialoga para a fundamentação de

suas idéias. Quais os papéis de cada um no contexto do discurso

elaborado? Em relação ás idéias, cumprem o papel de adjuvantes ou

oponentes?

Como define Greimas, no clássico Prefácio à obra de Courtés:

o percurso narrativo de um destinador, possa aparecer não apenas como o lugar de exercício do poder estabelecido, mas também como aquele que

em que esboçam os esquemas de manipulação e

se elaboram ações narrativas auxiliares visando

levar os sujeitos a realizarem um determinado fazer desejado ( COURTES, 1979,p.33 )

Nos termos da literatura acadêmica, o autor é o destinador cujo

objeto valor reside na própria comunicação do conhecimento. Para

tal realiza programa narrativo constituído ações reflexivas e práticas

que nortearam o resultado final. Do tema à sustentação de hipóteses,

portanto, o destinador busca a sedução baseada em mecanismos

operacionais característicos do universo de discurso acadêmico. Seus

pares, referências e fontes de pesquisa, ajudam a configurar a lógica

da sedução.

A conjunção com o objeto de desejo está presente na medida

em que se realiza a leitura, a decomposição do percurso elaborado

64 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

pelo destinador. Compete ao leitor, em seu papel a de sujeito,

caminhar pelo percurso do outro, do autor e identificar cada as

narrativas auxiliares trazidas no texto que dão forma as idéias do

outro, do destinador. Em posse do percurso realizado pelo outro pode

expressar seu saber e conhecimento e trazer o resultado desta leitura

para a elaboração de outro discurso, outro texto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A preocupação com as práticas pedagógicas voltadas à leitura

nos diferentes níveis de ensino está presente em vários seguimentos

de pesquisa. Muitos são os resultados de avaliações que ganham

espaços em diferentes veículos midiáticos revelando resultados

aquém do que se espera do estudo em habilidades de leitura.A

Sociedade do Conhecimento precisa de mais seres envolvidos no

sistema social e com o conhecimento. Na chamada massificação do

ensino superior, esse destinatário é acentuadamente marcado por

todos os fatores .

Estamos falando da comunicação do conhecimento: da leitura

difícil ou da leitura fácil. Reside nesse ponto a problemática: como

formar indivíduos socialmente responsáveis, capazes de identificar

problemas, gerar soluções e comunicá-las em um universo do saber/

conhecimento enquanto objeto de consumo? Na sociedade para a

qual ver se confunde com saber? Longe de esgotarmos a temática,

apresentamos um caminho que trilhamos em busca de instrumentais

para o trabalho com a leitura e o sujeito leitor.

A Semiótica, seja qual for a vertente, oferece base conceitual

para a realização de leituras das diferentes linguagens.Neste sentido,

ter como subsídio um diálogo entre teorias da Semiótica e da

Linguística, com vistas a orientar a análise e a interpretação das

produções discursivas — materializadas em textos na sociedade e nas

salas de aula.nos diferentes níveis de ensino tem revelado resultados

65 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

edificantes,seja qual for a modalidade textual. Levando-se que as

dinâmicas em aulas de linguagem têm por objetivo a eficácia na

comunicação,implícito está a necessidade de dotar o sujeito de um

saber específico em relação à modalidade da linguagem na qual se

manifeste o objeto da leitura.

Por último, o nível de conhecimento remete ao nível de

apreensão realizado pelo sujeito. A partir das bases conceituais de

Peirce, nasceu a Teoria da Iconicidade Verbal, que vem subsidiando

as aulas de gramática e estilística; no mesmo caminho, a utilização

de recursos inspirados na teoria de Greimas, temos desenvolvemos

estudos dos processos de enunciação, sujeito e leitura que dão

suporte à leitura e a produção de textos acadêmicos. Além de

otimizar o ensino dos conteúdos linguístico-gramaticais

indispensáveis ao adequado desempenho verbal nas instâncias

públicas (a norma culta), estamos conseguindo formar sujeitos

leitores plurais.

REFERÊNCIAS :

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 9ª ed. São Paulo: Hucitec, 1999.

COURTÉS, J. Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva.

Coimbra: Almedina, 1979.

MELO. E. ―Leitura, Literatura Científica e as Parábolas do Conhecimento‖. Caderno Seminal,vol.9, nº 9 (jan/jun-2008). Rio de

Janeiro, Dialogarts, 2008. Disponivel em

<http://www.dialogarts.uerj.br/arquivos/seminal09.pdf>

______.PRADOS, R.M.,GARCIA W. Linguagens, tecnologias,

Culturas: discursos contemporâneos. São Paulo: Editora Factach

,2008.

SIMÕES, Darcilia. Iconicidade e verossimilhança. Rio de Janeiro:

Dialogarts. 2007. Disponível em http://www.dialogarts.uerj.br

______. Iconicidade Verbal: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2009. Disponível em: http://www.dialogarts.uerj.br

66 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

TODOROV&DUCROT. Dicionário das. C. da Linguagem. Lisboa:

Publicações Dom Quixote, 1982.

67 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

A ÉTICA POLÍTICA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

NA FICÇÃO DE LIMA BARRETO

MESQUITA, Sergio Luiz Monteiro

Qualquer estudo sobre a obra do escritor Lima Barreto muito

dificilmente poderia deixar de tocar na questão de sua crítica social

contundente e inquietante em relação ao Brasil que conheceu em seu

tempo e que, em linhas gerais, quase não difere do Brasil deste início

do século XXI. Dentro desta crítica, muita vez efetuada sob a forma

de alegoria e sátira, comparece o comentário e a análise dos fatos

políticos contemporâneos à sua atividade literária; comentário e

análise necessariamente indissociáveis de uma avaliação ética,

manifesta ou implícita. Diversos autores têm analisado o conteúdo da

crítica barretiana, entre outras coisas, às práticas políticas brasileiras

e ao caráter dos dirigentes nacionais, incluindo as motivações

pessoais, éticas e estéticas de Lima na produção desta crítica.

Intelectual atento à vida de sua sociedade, Lima Barreto interessou-

se pelo desenrolar dos eventos políticos, no período histórico em que

viveu, a Primeira República, também conhecida como República Velha

(1889-1930). Deixou registradas as suas impressões sobre eles, em

diversas modalidades de escrita, às vezes abordando repetidamente

os mesmos fatos e situações, sob luzes diferentes.

Objetivamos no presente trabalho, a nível geral, abordar a

postura de Lima Barreto sobre a questão da ética na política oficial do

Brasil durante o primeiro período do regime republicano, lembrando

que, morto o escritor em 1922, não chegou a abranger com sua

observação todo o período. De modo específico, entre os momentos

da história dessa república inicial do Brasil, comentados ou

apresentados pela escrita de Lima Barreto, focamos o governo do

presidente Hermes da Fonseca (1910-1918). Este período é

apresentado ficcionalmente em vários escritos do autor; recordamos

principalmente as novelas ―Numa e a ninfa‖ e ―As aventuras do

68 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Doutor Bogóloff‖, e os ―Contos Argelinos‖. Os textos básicos sobre os

quais trabalharemos serão os chamados ―Contos Argelinos‖. A citação

que fizermos de outras obras do autor atenderá basicamente ao

objetivo de ilustrar algumas observações sobre a época, a sociedade

e o regime, que julgamos necessário fazer, a fim de uma melhor

abordagem do nosso objeto específico.

Quanto à escolha dos ―Contos Argelinos‖ para basear nossas

observações sobre esta questão ética, vale colocar algumas palavras.

Há alguns anos atrás, lendo uma coletânea de contos de autoria de

Lima Barreto, deparamo-nos com um conjunto destacado sob o título

―Contos Argelinos‖, formando uma coleção de pequenas sátiras

políticas (LIMA BARRETO: 1990, pp.231-258). Foi justamente seu

tom alegórico que nos chamou a atenção e induziu-nos a relacionar

as indicações do texto com fatos e pessoas da realidade social e

política brasileira da época do autor. Assim, fomos identificando a

cada parágrafo personagens e situações do governo conturbado do

marechal Hermes da Fonseca. Mais tarde, tivemos conhecimento do

lançamento, em 2010, de um livro do pesquisador de literatura Mauro

Rosso, apresentando de forma organizada e comentando os ―contos

argelinos‖ e outros textos recuperados de Lima Barreto, inclusive

textos de teatro (ROSSO: 2010, pp.71-118). Nessa obra, vimos que

Rosso praticou exercício semelhante de identificação de personagens

e situações, o que nos foi bastante útil para corroborar algumas

hipóteses nossas neste exercício e nos dar preciosas indicações.

Relacionando esses textos a outros do autor em que

comparecem referências a esta quadra da era republicana, tivemos o

interesse em observar e analisar como a ficção barretiana tratava

fatos da história da Primeira República deste teor, ou seja, fatos cuja

dramaticidade manifestou-se de forma mais intensa, seja pelos

episódios de violência que envolveram, seja pelos contextos de crise

política nos quais tiveram lugar. Também refletiremos sobre sua

postura em relação a este tipo de atos quando cometidos por

69 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

governos conduzidos por mandatários militares. Lembremos os

conflitos que marcaram o governo de Floriano Peixoto, cuja violência

e os seus componentes ideológicos e sociais receberam uma

descrição magistral em Triste fim de Policarpo Quaresma, tendo como

ápice dramático a crueza dos confrontos e da repressão à Revolta da

Armada. O governo de Hermes, década e meia depois, teve em

comum com o de Floriano a passagem ao primeiro plano das ações

dos setores militares ligados a cada um desses dois presidentes.

Junto a isto, embora não se possa classificar o caráter geral das

administrações de presidentes civis da época como propriamente

pacífico, estes dois governos de presidentes militares chamam a

atenção pelo extenso recurso às armas de que lançaram mão, a fim

de tratarem de seus problemas, sem esquecer da fraude e da

intimidação, por sinal uma constante no modus operandi das práticas

institucionais do período.

Propomo-nos também a refletir sobre a intencionalidade de

Lima Barreto em relação ao efeito que ele pretendia alcançar,

mediante a narrativa em forma alegórica de algumas das peripécias

principais do governo do marechal Hermes da Fonseca; forma bem

diferente da que utilizou para relatar o calvário do patriotismo do

major Quaresma, sob o governo de Floriano. Ligados a isso, os

possíveis motivos para que acontecimentos da gestão Hermes fossem

apresentados sob forma alegórica. Uma possível explicação

consistiria em que a prudência teria pautado as páginas escritas por

Lima Barreto nos ―Contos Argelinos‖, fazendo-o evitar alusões diretas

aos principais responsáveis pelos fatos que apresentou. Eram

membros da camada dirigente, os quais, mesmo com o encerramento

do mandato em que os fatos se deram, ainda ocupavam posições de

poder dentro do sistema político, o que os tornava obviamente

elementos temíveis. Os contos em questão que tratam

especificamente destes acontecimentos foram publicados entre maio

e agosto de 1915, ano seguinte à saída de Hermes da presidência,

70 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

formando uma série na revista Careta, quando a lembrança dos

acontecidos estava obviamente fresca, e passível de incomodar.

Acresce o fato de que, sendo os envolvidos nesses atos de desmando

e violência, na maioria, militares, alguma represália advinda deles

encontraria ainda mais vulnerável o humilde amanuense da

Secretaria da Guerra que ousava criticá-los, e suas ações. Daí, ficaria

explicado o revestimento alegórico que Lima Barreto imprimiu às

narrações desses eventos tempestuosos da presidência Hermes da

Fonseca. É uma das questões que a leitura desses contos suscita.

Outra questão, cujo caráter geral envolve as anteriores, e que

os liga a outros escritos do autor referentes à fase do mandato de

Hermes, constitui-se em torno da caracterização do tipo de regime

republicano brasileiro e do quanto à situação institucional influía nas

posturas éticas – e aéticas – dos seus cidadãos, em especial dos

dirigentes.

O panorama brasileiro do período mediado pela passagem do

século apresentava um novo regime político, cujas bases ainda eram

frágeis e que buscava se consolidar. As dificuldades dos fundadores

da República de impor a nova ordem evidenciavam-se nas lutas

acirradas entre os grupos dirigentes e nos movimentos de protesto e

contestação partidos de vários setores da sociedade, mormente os

menos favorecidos do ponto de vista social. O interrompido governo

do marechal Deodoro, a ditadura de Floriano e os primeiros mandatos

de governo civil que se lhes seguiram transcorreram num esforço de

consolidação do regime, cuja dificuldade mostra, entre outras coisas,

a carência de bases sociais fortes. A camada dirigente republicana, à

falta de mecanismos institucionais mais sólidos, apelava com

desenvoltura para recursos escusos de controle sociopolítico, como a

utilização de elementos ligados ao crime e à marginalidade,

mantendo assim a ordem com componentes da desordem. Numa tal

ambiência, os limites éticos de comportamento político afrouxavam-

se e padeciam de uma enorme imprecisão. A República não

71 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

entusiasmava a imensa maioria da população, na qual avultavam as

classes subalternas, as quais demonstravam por suas atitudes a

contrariedade por não terem seus interesses coletivos levados em

consideração pelos governos, e revelavam a constatação, acertada,

de estarem excluídos do jogo político (CARVALHO: 1987, pp.161-

164). Foi este quadro que Lima Barreto conheceu durante sua

atividade de homem de jornal, cronista, contista e romancista.

A condução dos negócios públicos por uma elite governante

avessa aos interesses populares e composta, na quase totalidade, de

indivíduos e grupos, unidos em solidariedade de classe, apenas para

a manutenção de uma ordem que os favorecia particularmente,

tornou-se alvo da escrita questionadora do intelectual, identificado

com as classes subalternas e uma ética de viés coletivo. Através do

depoimento fictício de um de seus personagens, o Dr. Bogoloff,

golpista russo radicado no Brasil e habitué dos meios políticos

nacionais, Lima Barreto explicita em linhas gerais o teor dessa prática

de poder: ―A política, por esse tempo, mais do que nunca, constituía

um jogo de interesses estritamente pecuniários, representados pelos

proventos dos cargos e o que se arranja com auxílio deles.‖ (LIMA

BARRETO: 2001, pp.130-1). No mesmo sentido, o cronista-narrador

de ―Os Bruzundangas‖, descrevendo a discussão política na sociedade

da República da Bruzundanga (o Brasil), assevera: ―A política não é aí

uma grande cogitação de guiar os nossos destinos; porém, uma

vulgar especulação de cargos e propinas‖ (LIMA BARRETO: 1998,

p.72).

Manifestações análogas dessa opinião, extremamente

desfavorável sobre o regime republicano, tal como se instalara no

país, estão presentes em diversas passagens da produção do escritor,

ao longo dos anos, deixando fora de dúvida que tal ideia constituía

uma das linhas-mestras da mesma produção, e testemunhando a

constância e a solidez que ela adquirira no espírito de seu autor.

Nesse sentido, conforme frisaram diversos outros autores, o interesse

72 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

no enriquecimento particular, a corrupção e a venalidade se encaixam

na cultura do patrimonialismo, que se caracteriza pela frouxidão de

limites entre o que seria público e aquilo que constituiria a esfera do

privado, eis que os agentes da ordem política tendem a considerar,

em última análise, o Estado como uma instância que pode ser

apropriada por particulares e utilizada para seus fins. Nesta

perspectiva entram o uso do monopólio legal da força, conferido pelo

Estado a esses agentes, e o prestígio da autoridade, para a prática de

atos duvidosos do ponto de vista ético, ainda que supostamente sob

a cobertura da lei. O desenrolar do governo Hermes, inclusive em

suas origens, forneceu fartos exemplos que Lima Barreto aproveitou

para estabelecer a confrontação entre a realidade dos fatos e valores

éticos, considerados minimamente necessários para a existência de

uma sociedade equilibrada.

A presença do marechal Hermes na sequência dos presidentes

da chamada República Velha foi um caso algo destoante, em relação

ao critérios de escolha dos candidatos à presidência, que vigoravam

nessa época. A ―política do café com leite‖, que as elites hegemônicas

de São Paulo e Minas Gerais impunham, para orientar a escolha dos

futuros presidentes da República, fazia com que se alternassem na

presidência políticos indicados por um desses estados e políticos

apontados pelo outro. É claro que este esquema, para se realizar,

necessitava do comum acordo dessas duas elites, mesmo à revelia

dos interesses das demais elites estaduais. Estas últimas, em geral

fracas e dependentes do governo federal, não podendo se opor com

eficácia aos desígnios dos estados mais poderosos, buscavam retirar

do esquema o que era possível em termos de benefícios através de

barganhas e favores.

A indicação do marechal sobrinho do ex-presidente Deodoro

resultou de um impasse entre as lideranças com poder decisório na

sucessão presidencial. O presidente Afonso Pena, mineiro, ele mesmo

eleito em função do ―café com leite‖, após tentar infringir a

73 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

combinação dessa ―média‖ oligárquica, indicando por sua própria

conta um sucessor, entrou em séria complicação política, a qual teve,

por desfecho inesperado, a sua própria morte durante o mandato

sem que houvesse candidato oficial definido. Na crise que se seguiu à

morte do presidente, enquanto o vice Nilo Peçanha concluía o

mandato e procedia à realização da eleição para o próximo

quatriênio, os nomes sugeridos para a sucessão esbarravam em

obstáculos, inclusive o de Hermes, ex-ministro da Guerra do falecido

presidente. No entanto, ele superou os seus concorrentes à

candidatura oficial. As razões de sua vitória preliminar na posição de

candidato oficial e da posterior ascensão à cadeira presidencial

derivaram de dois fatores: a dificuldade, não vencida pelas

oligarquias estaduais mais importantes, de se compor em torno de

um nome, e a atuação do senador Pinheiro Machado e aliados. Eles

viam na entrada do poderoso militar na disputa presidencial um meio

de sacudir o esquema de controle do Executivo federal por São Paulo

e Minas, em favor de oligarquias menos poderosas, como era o caso

do Rio Grande do Sul, estado representado pelo senador. À época,

embora não participasse do esquema hegemônico a nível federal,

Pinheiro Machado era considerado como o político mais influente do

país, verdadeiro ―diretor da política nacional‖. Incapaz de obter uma

hegemonia isolada da oligarquia de seu estado, o político gaúcho

seguia a estratégia de tentar reunir em torno de si as oligarquias

descontentes com a política do ―café com leite‖, sem abrir mão de

outros apoios. Como o das lideranças do Exército, com muitas das

quais mantinha um bom relacionamento. Nisto, seguia a tendência da

oligarquia situacionista do Rio Grande do Sul à qual pertencia

chefiada por Júlio de Castilhos e em seguida Borges de Medeiros,

unindo forças com a Arma desde os tempos da ditadura de Floriano.

Desde os tempos do Império, o Exército via desenvolver-se em

suas fileiras um sentimento de classe e a vontade de participação

mais ativa na política brasileira, que se consubstanciaram em

74 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

conflitos com autoridades civis, julgadas hostis e desrespeitosas para

com a Força. Os estimuladores e condutores desse processo de

afirmação acabaram por envolver as tropas numa atitude de

animosidade frente ao regime imperial, habilmente capitalizado pelo

movimento republicano, do que resultou a intervenção militar que

proclamou a República, como se sabe. Num clima ideológico onde

circulavam e ganhavam força as idéias do positivismo, e no qual

admirava-se o exemplo de republicanismo das nações da América,

elaborou-se a representação da ação política levada a cabo pelos

militares como a atitude do ―cidadão fardado‖, figura ideológica

justificadora da tendência intervencionista do soldado, no tocante aos

rumos da vida política nacional. Esse ―militarismo‖, concentrado nas

lideranças do Exército, ao consubstanciar-se em comando político,

atraía a simpatia de setores republicanos postos à margem do poder

pelos desígnios das oligarquias tradicionais dominantes, enquanto

estas, agrupadas mesmo desigualmente em torno da política do ―café

com leite‖ e dos conchavos das ―política dos governadores‖, tendiam

a eternizar os seus representantes no controle dos governos federal e

estaduais. O ―jacobinismo‖ de grupos e indivíduos civis,

principalmente urbanos, refletiu o entusiasmo de alguns dos setores

a que nos referimos, apoiando a intervenção militar para a

manutenção do regime, realizada pelo governo militarista de Floriano.

Todavia, desde a posse do primeiro presidente civil, a influência

militar na política sofrera um refluxo. A classe dos latifundiários,

liderada pela cafeicultura, assumia através de seus representantes o

leme do Estado. A crise sucessória do final do governo Pena

constituiu, então, uma oportunidade de recuperação desse

protagonismo do Exército.

Perante a possibilidade de surgir um governo encabeçado por

elementos do Exército, dos que cercariam o futuro presidente, houve

reação contrária nos meios oficiais. Rui Barbosa incluía-se entre os

políticos cotados para ser o candidato oficial e, participando do

75 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

debate nas instâncias decisórias, levantou-se decidido contra o

crescimento do nome do ex-ministro da Guerra. Assumindo a função

de porta-voz dos descontentes com o advento do ―militarismo‖, o

advogado baiano não se conformou com a decisão das instâncias

federais de apoiar o sobrinho de Deodoro para a sucessão de Pena,

rebatendo com o lançamento de sua própria candidatura para a

disputa eleitoral. Mais do que uma competição renhida, diferindo da

maioria das campanhas presidenciais da época, em que o peso da

ajuda oficial, a fraude e a intimidação eram decisivas para uma

tranquila vitória dos candidatos oficiais, a disputa que definiu nas

urnas e no reconhecimento do Congresso o sucessor de Afonso Pena

foi um acontecimento sem precedentes. Foi a primeira campanha

eleitoral para a presidência digna desse nome; despertou um genuíno

interesse pela escolha do presidente e do vice-presidente, fora dos

círculos do poder, conseguindo entusiasmar multidões,

principalmente nas áreas urbanas. A ―Campanha Civilista‖, como foi

crismada, apelou à opinião pública, com manifestações voltadas para

a população e a criação de um clima de debate através do país. O

tribuno que animava a oposição, dessa vez, era uma voz autorizada e

no auge de seu prestígio. Junto com Rui, comandava a campanha

Albuquerque Lins, presidente de São Paulo e nesse momento seu

companheiro de chapa. No apoio a Rui, três estados: além do estado

bandeirante, a Bahia, área de influência do candidato oposicionista, e

o Rio de Janeiro. A população envolvida no debate nacional pôde ter

a impressão de que lhe era possível, formando maioria, escolher o

vencedor. Contudo, seguindo a praxe do sistema, venceram Hermes

da Fonseca e Venceslau Brás, tanto nas eleições quanto no

reconhecimento dos poderes. Rui ainda tentou obter a impugnação

do marechal, sem êxito. Contagiado de alguma forma pelo esforço

civilista, Lima Barreto apoiou Rui no pleito, incluindo-se entre os

muitos cidadãos que lhe declararam apoio. Apoio menos por simpatia

a Rui do que por aversão ao militarismo, que ameaçava entronizar-se

76 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

com a chegada de Hermes ao posto de supremo mandatário

(BARBOSA: 1981, pp.187-188).

Com efeito, o temor dos civilistas e seus simpatizantes, de ver

retornar o arbítrio e a violência militar, não deixou de se materializar

na gestão do marechal Hermes. A animosidade e a agitação que

haviam caracterizado a recente campanha eleitoral tinham

contribuído para evidenciar com mais contundência a fragilidade

política da posição do marechal, tanto como candidato, quanto como

presidente. Uma providência para sanar esse problema foi a formação

de um novo partido para apoiá-lo durante a gestão, o Partido

Republicano Conservador, iniciativa de Pinheiro Machado. No entanto,

apesar de medidas nesse sentido, Hermes e seus colaboradores mais

íntimos inclinaram-se por atitudes mais drásticas para debelar as

oposições e assegurar o controle do país. Não esqueçamos que, nem

bem tomara posse, ainda no final de 1910, explodira a rebelião dos

marinheiros contra a prática dos castigos corporais na Marinha de

Guerra, conhecida como Revolta da Chibata, episódio que abalou

bastante o prestígio do governo federal. Embora a candidatura do

marechal tivesse sido apoiada por boa parte das oligarquias

dominantes nos estados do norte e nordeste, atreladas à aliança com

o bloco de Pinheiro Machado, o governo central passou a estimular ou

ao menos tolerar tentativas de substituição dessas oligarquias

promovidas por integrantes de seu círculo de colaboradores, no geral

militares. Decisivo para a adoção de tal procedimento foi o fato de

que a ascensão de Hermes representou a elevação de diversos de

seus familiares e amigos pessoais para posições políticas de relevo.

Ao mesmo tempo, excitou a cobiça de vários para a conquista de

postos ainda mais importantes. Entre estes estavam membros de seu

ministério, que se dispuseram a conquistar governos estaduais,

utilizando a simpatia e os favores do presidente. O grande

instrumento dessas tentativas de subverter o status quo dentro de

vários estados foi o Exército, em cujo interior circulava um discurso

77 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

que conferia aos militares a missão de remover as oligarquias ineptas

e opressoras, a fim de ―salvar‖ os estados que estas dominavam

discricionariamente.

Iniciava-se sob o governo Hermes a política das ―salvações‖,

cujo método pode ser resumido no seguinte: o lançamento de uma

candidatura concorrente à da situação de cada estado, normalmente

de um oficial do Exército, em vista da eleição para presidente

(governador); processo que desencadeava durante a campanha um

clima de agitação e violência dentro do estado em questão. O

desfecho seria a deposição da oligarquia dominante, com a eleição do

candidato oposto através do simples sufrágio, ou a sua imposição ao

estado por meio da intervenção de tropas federais e seus aliados.

Essas ―salvações‖ deveriam atingir a maior parte dos estados

brasileiros, e várias só deixaram de ser levadas a cabo devido aos

esforços de Pinheiro Machado e dos grandes estados também

ameaçados. De fato, no grupo palaciano de familiares, amigos e

assessores do marechal e presidente havia interesse em combater a

proeminência do político gaúcho, cujo poder agregava o apoio

umbilical do governo do Rio Grande do Sul, a aliança com boa parte

das oligarquias nortistas e nordestinas e com outros grupos influentes

na política federal. Para evitar que várias das pretendidas

―salvações‖ se efetivassem, agravando o prejuízo que já sofria com a

queda de preciosos aliados, Pinheiro Machado teve que se empenhar

em negociações. Por seu lado, os estados mais poderosos da

federação, menos dependentes dos favores ou dos furores federais,

demoveram o governo central de seus desígnios de intervenção. São

Paulo, após dispor-se à resistência armada, obteve uma negociação e

colocou à testa de seu governo um nome respeitado nacionalmente,

Rodrigues Alves, ex-presidente da República. Já o Rio Grande do Sul

apoiou-se, como de costume, na conhecida força de suas milícias,

dado que desestimulou qualquer intervenção federal, não só naquele

78 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

momento, como durante toda a época de predomínio oligárquico no

país.

Os acontecimentos de maior violência física e terror militar

referidos nas narrativas dos ―Contos Argelinos‖ são alegorias das

―salvações‖, promovidas, como dissemos, pelos partidários e aliados

do marechal-presidente em vários estados, objetivando remover as

situações estaduais incômodas ao governo federal, ou conquistar os

domínios que atraíam a ambição de alguns dos principais

colaboradores de Hermes. No entanto, embora tivessem ocorrido

várias, apenas duas delas são referidas, a de Pernambuco e a da

Bahia. Nos contos, o Brasil ganha o pseudônimo de Al-Patak, império

com ares de Argélia ou qualquer Estado muçulmano, governado pelo

sultão Al-Dhudut (Hermes), usurpador do trono que ocupava, e

composto de principados vassalos (os estados). Nele se sucedem

abusos de poder, traições, casos de corrupção e ações violentas. Tais

atos são praticados não apenas pelos servidores diretos do sultão, ele

mesmo perpetrador de uma sequência de desmandos e indignidades,

mas também por autoridades e elites dos principados.

Lima Barreto começa dizendo que o sultão usurpara o trono que

ocupava da maneira mais inconcebível. A respeito disto, Rosso

lembra que a crítica do autor a Hermes da Fonseca começava pela

forma como fora proclamada a República, que se revestira de um

caráter de usurpação (ROSSO: 2010, p.83). Neste caso, parece-nos

que a referência do conto volta-se mais para a própria eleição desse

marechal, após uma campanha em que a simpatia popular parecera

ter pendido para o lado de seu adversário, Rui Barbosa, sendo criada

até a expectativa de vitória da oposição. A ―Campanha Civilista‖

contara com amplas simpatias, inclusive obtendo de Lima

manifestações de apoio. A derrota do candidato civil no pleito foi alvo

de denúncias do político baiano aos já costumeiros processos viciados

de organização e contagem dos sufrágios – que ele mesmo, aliás, de

forma alguma ignorava, veterano partícipe da política oficial que era.

79 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Como já dissemos, os termos em que a chapa hermista venceu,

trazendo para a posse severas acusações de fraude e intimidação do

eleitorado, foi outro dos fatores de enfraquecimento da autoridade do

novo presidente, cujo alter-ego ficcional, Al-Dhudut, segundo a

narrativa, era consciente de sua impopularidade e da baixa conta em

que o povo o tinha.

O indigno sultão multiplicava os seus desatinos e crueldades, e

enquanto desdenhava a opinião popular, satisfazia-se com as

bajulações de seus servidores e as deferências dos mandatários

estrangeiros. Cumulava seus amigos e parentes de favores e os

nomeava para cargos na administração e nos principados vassalos.

Como o povo de Al-Patak não reagia contra ele, o déspota vivia

sossegado, ―tramando violências com o seu vizir Pkent-Phin, um

homem cruel e violento, que fora na sua mocidade criador e

castrador de cavalos‖ (LIMA BARRETO: 1990, p.232). Informando

que, num Estado muçulmano, a palavra vizir designa um alto

funcionário responsável pela administração política e militar, Rosso

conclui que Pkent-Phin refere-se ao ministro da Guerra do início da

gestão Hermes, general Dantas Barreto (ROSSO: 2010, p.84), mais

adiante o chefe da ―salvação‖ de Pernambuco. Todavia, observando

as características do personagem, identificamos nele o próprio

Pinheiro Machado. Sendo uma espécie de eminência parda do

governo, bem poderia ser caracterizado como ―vizir‖ de Hermes da

Fonseca, ainda mais que a parte final do nome de ―seu‖ personagem

parece insinuar ―Pinheiro‖. Acresce que o político gaúcho, que as

biografias apontam também como pecuarista no Rio Grande do Sul,

tem lugar em outros textos da ficção de Lima Barreto com

características de um homem afeito a lidar tanto com gado como com

gente, a ponto de não encontrar muita diferença entre irracionais e

seres humanos, como quando aparece como o senador Sofonias, ―o

diretor da política nacional‖, de ―Aventuras do Dr. Bogoloff‖ (LIMA

BARRETO: 2001a, pp.132-133). Já Dantas Barreto pode ser

80 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

identificado como o ―agha‖ (comandante militar), que figura mais

adiante, no conto ―O juramento‖, fazendo sua própria usurpação do

poder de um principado vassalo de Al-Patak.

Logo que Abu-Al-Dhudut se apossou do trono de

Al-Patak, todos os seus companheiros e amigos

quiseram também fazer o mesmo nos reinos

vassalos, embora muitos dos soberanos destes tivessem ajudado Abu na sua usurpação.

O primeiro agha (ministro da Guerra) ansiava por

ocupar o governo do canato de Al Súgar, região

rica e vasta, que até ali era governada pelo Cã Ross Al-Xeiroso. Este príncipe não se incomodava

muito com a administração dos seus domínios e

vivia em passeios e festas, fora da sua capital. (LIMA BARRETO, 1990, p.237.)

Al Súgar (Pernambuco) foi alvo da ambição do General Dantas

Barreto, ministro da Guerra de Hermes, o qual logo empenhou-se em

obter o cargo de presidente desse estado. Este era governado pela

oligarquia liderada por Rosa e Silva (Ross Al-Xeiroso), chefe mais

prestigiado, não apenas de Pernambuco mas do Nordeste inteiro, ex-

vice-presidente da República, cujos hábitos correspondiam ao do

personagem que o representa nos contos. Renunciando ao cargo de

ministro, o general embarcou para o estado com uma comitiva de

correligionários. Seus atos seguiram o método já descrito das

―salvações‖, que em Pernambuco provocou uma campanha eleitoral

repleta de incidentes violentos, envolvendo autoridades estaduais,

tropas do Exército, capangas dos oligarcas e povo. Distúrbios que

terminaram pelo reconhecimento do general como novo governador,

a 18 de dezembro de 1911 (SILVA: 1998, pp.149-151).

A outra salvação narrada nos contos em questão foi a que

trouxe a Bahia para as mãos de J. J. Seabra, ministro da Viação e

Obras Públicas. O clima de tensão e ameaça sobre a capital baiana,

manifesta a vontade de Seabra de disputar o governo local, precedeu

à explosão dos ânimos, nos primeiros dias de 1912. A artilharia da

81 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

tropa de intervenção federal atirou sobre a cidade, provocando a

renúncia do governador em exercício, que, mesmo retornando, não

logrou reassumir o controle do estado. Renunciou pela segunda vez,

e Seabra acabou por se eleger governador de seu estado natal

(SILVA: 1998, pp.153-156). Sobre o caso da conquista do canato de

Hbaya (Bahia), Lima Barreto cita, entre outros, um fato que, no

conto, identifica claramente a ―salvação‖ hermista deste estado

nordestino. Relata que o canato resistira aos desígnios de controle do

governo central, diferentemente do que se esperaria, por ser Hbaya

dividido em facções e possuir uma população menos austera e

orgulhosa que a de Al-Bandeirah (São Paulo), que se tornara o núcleo

da resistência ao ―sultão‖. Foi o que se deu realmente com a

―salvação‖ na Bahia, onde, com efeito, o governo local enfrentou

armado as forças federais. E o fato marcante e comprovador da

referência ao caso, citado com vestimentas de fábula por Lima

Barreto, é o fato do bombardeio sofrido pela cidade de Salvador neste

episódio: ―A cousa foi dolorosa e triste, pois a capital de Hbaya foi

bombardeada, as suas casas incendiadas, o príncipe reinante andou

daqui para ali, fugindo (...)‖ (LIMA BARRETO: 1990, p.244).

Malgrado os relatos da truculência militar nas conquistas dos

―canatos‖ efetuadas pelos prepostos do sultão, percebemos que não

são estes os pontos mais ressaltados pela escrita de Lima Barreto. Na

verdade, as peripécias guerreiras que representam as ―salvações‖

aparecem como mero complemento do reprovável comportamento

político dos governantes individuais e da camada dirigente que faz

sua aparição nos contos. Da mesma forma, depreende-se que um

governo militar pode ser considerado uma agravante da opressão

social da República, tal como o autor a vivenciou, tornando o

―militarismo‖ uma tendência a ser combatida na política brasileira.

Porém, esse militarismo representaria tão-somente uma faceta a

mais da estrutura sócio-política nacional, tal como se mostrava no

tempo de Lima Barreto. Estrutura cujo funcionamento aparece na

82 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

sua literatura representado necessariamente por uma dinâmica de

menosprezo aos valores éticos.

Nos ―Contos Argelinos‖, os aspectos sobre os quais o autor-

narrador aponta com mais ênfase constituem-se de atos amorais de

diversos tipos, que geralmente deixam a própria violência do fogo e

do ferro em segundo plano. Indicação eficaz disto são os títulos dos

contos. Assim, o evento da ―salvação‖ de Pernambuco, sob o nome

de Al-Súgar, é contado sob o título ―O juramento‖, que destaca um

detalhe da história: o cã Ross Al-Xeiroso, ao perceber a insistência do

ministro da Guerra em arrebatar-lhe o seu domínio, procura o sultão

e recebe dele todas as promessas, resumidas no juramento de que

até se suicidaria, caso o cã fosse esbulhado de seu governo. Na

sequência, o cã acaba perdendo seus ricos domínios para o general.

Mas Al-Dhudut não cumpre a palavra de se matar; segue vivendo,

indiferente à expectativa de Al-Xeiroso (LIMA BARRETO: 1990,

pp.237-238).

Da mesma forma, as passagens que envolvem o canato de Al-

Bandeirah (São Paulo, terra das bandeiras, dos bandeirantes)

ilustram o comportamento deplorável de suas classes altas e até de

seu povo. Aquelas por sua mesquinhez e egoísmo, e este por seu

orgulho insensato e sua ingenuidade. Com efeito, o canato era o

centro da resistência ao despotismo do sultão não por sua coragem e

lealdade, e sim devido à capacidade de iludir aliados e corromper

adversários, em que eram hábeis suas elites. Nos contos ―A firmeza

de Al-Bandeirah‖, ―O desconto‖ e ―A solidariedade de Al-Bandeirah‖

(LIMA BARRETO: 1990, pp.239-244), são focalizadas as jogadas

políticas dos próceres paulistas diante da ameaça de intervenção

federal. Em contraponto, são ilustradas as transações políticas

vigentes no período entre o governo central e a oligarquia

bandeirante, bem como a atitude corrupta de membros do governo. A

ironia do narrador cria o contraste entre os títulos, sugestivos de

virtudes, e os verdadeiros conteúdos que nomeiam. A ―firmeza‖ de

83 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Al-Bandeirah se revela na história em que, antevendo a intervenção

que o governo de Al-Dhudut preparava, o canato se apresentou

unido. O povo, acostumado a confiar no discurso da elite, cerrara

fileiras com ela, sem notar que aquilo que ela defendia no canato

eram seus próprios privilégios, negócios e riquezas particulares.

Garantindo resistir até o fim, se necessário, os governantes de Al-

Bandeirah promoveram agitações, e acabaram causando o sofrimento

e até a morte dos que neles confiaram e enfrentaram a repressão do

governo central. Contudo, diante da persistência deste em atacar o

principado, aqueles governantes transigiram e negociaram com o

inimigo prestes a combater, subornando um parente do grande

soberano. Assim se livraram da ameaça de ataque. Quanto ao conto

sobre a ―solidariedade‖ do canato, é nele que Lima incluiu o relato da

―salvação‖ de Hbaya, segundo o qual este principado demonstrara

mais firmeza que Al-Bandeirah e resistira de armas na mão, com o

resultado que já sabemos. É útil lembrar que Bahia e São Paulo

haviam estado juntos no lado oposto ao da candidatura de Hermes,

nas eleições para presidente. Lima Barreto acrescenta o detalhe de

que, no mesmo dia em que a capital de Hbaya foi bombardeada, o

irmão do sultão, dignitário subornado para obter a suspensão do

ataque a Al-Bandeirah, recebia sua paga, como contara na historieta

―O desconto‖. Esta foi a solidariedade de Al-Bandeirah para com seu

aliado.

Apresentando os exemplos acima, retirados dos contos,

esperamos ter ilustrado nossa análise destes textos alegóricos sobre

o governo Hermes da Fonseca. Agora, antes de discutir porque Lima

Barreto teria lançado mão dessa forma literária para escrever sobre

os assuntos constantes nos ―Contos Argelinos‖, faremos algumas

observações acerca de aspectos do caráter da sociedade e da política

da Primeira República, os quais suscitaram nele avaliações críticas

contundentes, do ponto de vista ético.

84 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Sabe-se da postura atenta e crítica do escritor carioca diante

das mudanças políticas e sociais que marcaram as décadas da

passagem do século XIX para o XX no Brasil. Praticamente não se

encontra aspecto social ou político brasileiro que ele não tenha

trazido à baila em seus escritos e discutido sem rebuços. A República

como novidade política e o desenvolvimento da sociedade burguesa

estiveram constantemente sob o crivo de sua observação e de suas

opiniões pouco reverentes. As injustiças, as hipocrisias e os

desequilíbrios sociais, e os defeitos da organização política foram

apontados e costumeiramente reprovados por ele. Não é preciso

esforço para se encontrar em suas obras a crítica dos costumes e

convenções sociais, aliás a tônica de sua escrita. Os deslizes éticos de

pessoas e grupos forneceram assim bastante assunto em seus textos,

deslizes que pareciam crescer com a expansão das relações de

produção capitalistas e a intensificação de características sócio-

culturais pautadas pelo individualismo burguês.

A consciência dessas transformações, numa época em que elas

se processavam mais aceleradamente, e a opinião negativa sobre

aspectos básicos delas refletem-se na obra do escritor. Uma das

tendências do seu pensamento foi a formulação, mais ou menos

ligeira, mas repetida, de comparações entre o presente e o passado

da nação. Embora o ambiente de desenvolvimento do mercado de

trabalho livre e os discursos anunciadores de uma cidadania aberta a

todos pudessem inspirar otimismo e sensação de progresso

socioeconômico, o escritor, como qualquer observador minimamente

atento, entendia que a cidadania ampla e o progresso estavam

reservados a poucos, enquanto a marginalização e a miséria

formavam o quinhão da maioria. Ele também percebia a erosão de

valores sociais, éticos e até mesmo estéticos no seu tempo. Esta

erosão ela via mais acentuada nas elites políticas e econômicas do

país, pelas suas descrições já uma verdadeira derrocada moral. Nas

85 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

anotações satíricas que fez acerca da Bruzundanga (outro nome para

o Brasil), ele registra no capítulo ―A sociedade‖:

É deveras difícil dizer qualquer coisa sobre a

sociedade da Bruzundanga. È difícil porque lá não há verdadeiramente sociedade estável. Em geral,

a gente da terra que forma a sociedade, só figura

e aparece nos lugares do tom, durante muito

pouco tempo. Os nomes mudam de trinta em trinta anos, no máximo.

(...)

Pode ser definida a feição geral da sociedade da Bruzundanga com a palavra – medíocre.

Vem-lhe isto não de uma incapacidade nativa, mas

do contínuo tormento de cavar dinheiro, por meio

de empregos e favores governamentais, do sentimento de insegurança de sua própria situação

(LIMA BARRETO: 1998, p.71).

Essa alta sociedade, afluente e carregada dos símbolos da

modernidade capitalista, formava a elite republicana, cada vez mais

identificada com os destinos do novo regime. Lima Barreto via nela

diferenças acentuadas em relação à antiga e dispersa elite imperial,

diferenças nos costumes, nas perspectivas de vida, nas ambições e

provavelmente nas relações com o grosso da população e com as

coisas do país. Em uma das passagens do romance ―Vida e morte de

M. J. Gonzaga de Sá‖, o protagonista leva seu amigo, o narrador da

história Augusto Machado ao Teatro Lírico, ponto de encontro da nova

elite, ―núcleo atual de tantas ilusões‖. Lá, o velho funcionário

Gonzaga passa em revista alguns importantes personagens ali

presentes, indicando-os ao amigo com comentários que denotam a

mediocridade e até a inferioridade moral de um e de outro. Trocam

impressões acerca da inquietude e desconforto aparentados pelo

distinto público presente, e Gonzaga afirma que isto se devia ao fato

de eles temerem o futuro. E acrescenta, provocando um diálogo com

Machado nestes termos:

86 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

- Vocês, os moços, fizeram mal em destronar os

antigos. Apesar de tudo, nós nos entenderíamos

afinal. Vínhamos sofrendo juntos, vínhamos combatendo juntos, às vezes até nos amamos –

entenderíamo-nos por fim. Estes de agora... - Nada impede que nos entendamos afinal com

estes, também!

- Qual! São estrangeiros, novos no país,

ferragistas e agiotas enriquecidos, gente nova... Vocês estão separados deles por quase

quatrocentos anos de história, que eles não

conhecem nem a sentem nas suas células (...) vocês arranjaram novos dominadores, com os

quais vocês não se poderão entender nunca; e

expulsaram os antigos com os quais, certamente,

se viriam a entender um dia. Erraram, e profundamente.

Machado observa e pensa, e sente-se de repente diante de um

―mundo hostil‘. Compara a si próprio com aquela gente e considera

que a posição em que ela estava, afinal de contas, era seu prêmio.

―Tinham saltado por cima de todas as conveniências, por cima de

todos os preceitos morais – tiveram coragem (...)‖. Mais tarde,

Gonzaga volta atrás de considerar aquele público tão diverso dos

―antigos‖, embora afirme que estes ―eram mais nossos parentes‖

(LIMA BARRETO: 1961, pp.156-159).

No catálogo de defeitos dessa ―sociedade‖ que dava o tom no

país, junto àqueles propriamente éticos, análogos aos condenados no

Decálogo, Lima Barreto inclui os defeitos de gosto artístico e cultural,

e a própria falta de sensibilidade para com as belezas, os valores e as

potencialidades do país. Exemplos não faltam, nas obras do escritor.

Tais deficiências são mais ressaltadas quando são estabelecidos

pontos de comparação com os tempos da Monarquia. O autor

manifesta suas simpatias por diversos aspectos desse passado

político e social brasileiro, tomando posição favorável em relação a

tradições, costumes e atitudes que acreditava mais valorizados nessa

época anterior.

87 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Uma citação curiosa do autor, que embora fazendo parte de

uma coleção de textos satíricos, dá um golpe de vista sobre o assunto

aqui tratado, testemunhando ao mesmo tempo sua simpatia por um

passado possivelmente idealizado, e a ojeriza que tinha à

insensibilidade estética, e de forma mais ampla, cultural da elite de

seu tempo. Apesar da extensão, vale transcrevê-la. No capítulo ―As

letras na Bruzundanga‖, o narrador descreve como em todas as

épocas anteriores os homens dedicados às letras tinham em alta

conta o seu ofício, o qual encaravam como uma verdadeira missão

sagrada, ligada ao divino. Esses seres especiais também gozavam de

apreço e até de veneração por parte dos elementos das classes altas

nas sociedades em que viviam. O profundo senso do valor de sua

atividade os impediria de rebaixar a sua arte, a que preço fosse, a

mero passatempo dos ricos e poderosos do tempo. A tarefa de

prover esse passatempo ficaria reservada aos bobos da corte e

assemelhados. Mesmo se um nobre por acaso tivesse um poeta a seu

serviço, a este escritor estava reservada tão-somente a celebração

literária dos grandes acontecimentos da sociedade a que o seu

senhor se ligasse; função estrita que, como outras prerrogativas dos

―homens de pena‖, eram aceitas respeitosamente como decorrência

do orgulho profissional de tais criaturas. Dito isto, o narrador passa a

considerar que também no país da Bruzundanga as coisas ocorriam

assim, ―até bem pouco‖. Nas suas palavras:

A sua nobreza territorial e agrícola estimava muito,

a seu jeito, os homens de inteligência, sobremodo

os poetas, aos quais ela perdoava todos os vícios e

defeitos. Essa fidalguia à roceira daquele país era

assim semelhante aos nossos ―fazendeiros‖, antes

da lei de 13 de maio; e poeta, ou mesmo poetastro, que aportasse nas suas fazendas, que lá

são chamadas – ―ampliúdas‖ – tinha casa, comida,

roupa nova, quando dela precisasse, e lavada toda

a semana, podendo demorar-se no latifúndio o

tempo que quisesse, e fazendo o que bem lhe

parecesse, desde que nada tentasse contra a

88 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

decência e a honra da família. Por agradecimento,

então, em dia festivo da família ou da religião, ao

jantar cerimonioso e votivo, o vate recitava uma poesia inédita, alusiva ou não ao ato, e tomava

uma grande e alegre carraspana. (LIMA BARRETO: 1998, p.116)

Depois de descrever tão idílica situação dos escritores de

outrora, incluindo os da Bruzundanga, que como é sabido é mesmo o

Brasil, o cronista apresenta uma reversão deste quadro, tão radical

quanto ainda próxima no tempo:

Recentemente, na Bruzundanga, uma revolução

social e, logo em seguida, uma política,

deslocaram essa boa gente da fortuna, e muitos deles, até, dos seus domínios, que vieram a cair

nas mãos de aventureiros recentemente chegados à terra ou, quando nascidos nela, eram de primeira

geração, descendendo diretamente de imigrantes recentes cujo único pensamento era fazer fortuna do pé para a mão, cheios de uma avidez monetária

e inescrupulosa que transmitiram decuplicada aos

filhos, e logo os lindos costumes de antiga nobreza agrária se perderam. Os poetas foram postos à

margem e não tiveram mais nem consideração nem desprezo. Era como se não existissem, como se fosse possível isso, seja em sociedade humana,

fora de qualquer grau de civilização que ela

esteja.‖ (LIMA BARRETO: 1998, pp.116-7)

Podemos identificar na ―revolução social‖ a culminância do

processo de extinção da escravatura no nosso país, e na ―revolução

política‖, tão próxima da anterior (1888-1889), a implantação do

regime republicano. Vemos que, nas considerações éticas de Lima

Barreto, a estética revestia-se de um valor decisivo.

Por conseguinte, diante de uma elite pautada pela escassa

sensibilidade ética e até estética, não seria de admirar que ela fosse

capaz de sustentar e gerir um regime político senão feito, pelo menos

adaptado à sua imagem e semelhança. A República oligárquica,

liberal no sentido de não oferecer entraves à acumulação capitalista

89 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

de seus beneficiários e de tutelar a exploração do trabalho e

marginalização das classes subalternas, foi matéria volumosa de

muitas das críticas mais ferinas do autor.

Nas esferas da política, menosprezados os possíveis projetos

partidários para a administração do país e violadas repetidamente as

regras mínimas de lealdade e respeito à coisa pública, tudo se

resumia à luta pelo poder e a riqueza. Opinando sobre o jogo político

oficial, Lima Barreto escrevia, pela pena de Bogoloff:

Mais atroz e feroz esse jogo aparecia à vista da

temporariedade dos cargos e da falta de uma base

fixa e forte em que os detentores atuais se

apoiassem ou pela bajulação, ou pelo talento, ou pelo sangue, como aconteceria se

estivéssemos sob um Império ou numa

monarquia qualquer [grifo nosso] (LIMA BARRETO: 2001, pp.130-1).

Provavelmente o principal fator para esta sofreguidão de obter

o máximo de benefício material e de ascensão social, conforme a

opinião do escritor, seja constituído pela sensação de precariedade

trazida pelas mudanças sociais no Brasil. Vivia-se num quadro

socioeconômico e político sensivelmente móvel, cuja velocidade de

alterações induzia ao ceticismo para com a firmeza dos parâmetros

éticos, entre outros, até então encarados com mais confiança. Talvez

mais que o restante da sociedade, as elites brasileiras percebiam e

vivenciavam isto. Daí o desassossego que Lima Barreto detectava no

agir dessa gente, conforme vista por seus personagens, como no seu

conto ―Uma noite no Lírico‖:

Saímos para o saguão e eu me pus a ver todos

aqueles homens e mulheres tão maldosamente

catalogados pelo meu amigo. Notei-lhes as feições

transtornadas, o tormento do futuro, a certeza da

instabilidade de suas posições. Vi todos eles a

arrombarem portas, arcas, sôfregos, febris, preocupados por não fazer bulha, a correr à menor

que fosse... (LIMA BARRETO: 2001b, p.155)

90 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

A respeito da intencionalidade de Lima Barreto ao utilizar a

linguagem alegórica nos ―Contos Argelinos‖, descartamos a hipótese

referida antes, segundo a qual temores reforçados pela situação

profissional do escritor teriam influído de forma decisiva na escolha

dessa forma literária. Mesmo exercendo o cargo de amanuense

justamente no Ministério da Guerra, o que o tornava alvo mais

próximo e visível para alguma represália das figuras cujos atos

condenáveis abordava, revestir a narrativa crua com as distorções da

caricatura e da alegoria não nos parece um procedimento feito com

intuito de ocultar as fontes do assunto dos contos. Duas

considerações são levadas em conta para sustentar esta opinião: as

alegorias dos contos pouco escondem da verdadeira identidade dos

personagens históricos retratados e da veracidade básica dos fatos

narrados, que podem ser percebidos sem grandes dificuldades, ainda

mais se o objetivo do autor fosse a recepção da mensagem dos

textos fossem os leitores do tempo; fatos e personagens dos ―Contos

Argelinos‖ aparecem na ficção de Lima Barreto em outras obras, na

mesma situação de fácil identificação, às vezes em referências

praticamente explícitas.

Pensamos que, diante da profusão de acontecimentos

merecedores de tratamento literário e reflexão crítica, como foram os

dos quatro anos do turbulento governo Hermes da Fonseca, o

procedimento de recorrer à alegoria e à sátira para descrevê-los terá

parecido ao escritor passível de atingir com mais profundidade o

senso crítico dos leitores. Para Lima, a utilização destas formas não

era estranha ao seu conhecimento nem à sua experiência, leitor que

era de Swift e outros mestres da sátira e da alegoria. Mesmo envolta

em circunstâncias ficcionais alteradas, a projeção de fatos verídicos

em lugares distantes e exóticos, tão distantes no espaço e na

vivência cultural que parecem ao leitor pertencer a um universo

onírico, permite criar um efeito especular. Os fatos próximos e

envolventes que parecem fugidios a um olhar atento e racional,

91 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

quando mostrados a uma distância elaborada artificiosamente pela

ficção, podem ser vistos em uma perspectiva mais abrangente e

objetiva. Numa ponte onde se pode circular entre uma ética abstrata

e uma necessidade concreta de justiça. A busca deste efeito, no

entender de Lima Barreto, era uma tarefa a serviço da arte, cujo

objetivo seria dizer o que os simples fatos não dizem (BARBOSA:

1981, p.237).

Portanto, na falta quase institucionalizada de posturas éticas

que Lima Barreto enxergou na sociedade de seu tempo e na

orientação do regime republicano no Brasil, a eclosão de episódios de

grande violência, tal como aconteceram alguns na gestão do

presidente Hermes, não destoam do desequilíbrio e da precariedade

institucional presentes na sociedade e na política vigente. Embora

trazendo uma carga dramática forte ao ser observada, a violência

militar aparece como uma decorrência da violência congênita de um

regime pautado, entre outras coisas, pelo desrespeito aos interesses

das classes subalternas, como se poderia esperar de qualquer regime

político mantenedor do domínio de uma classe em prejuízo do

restante da sociedade; como qualquer regime sob a égide do

capitalismo. E que ainda não pudera desenvolver, até internamente,

mecanismos de limitação ou disfarce do caráter antiético de sua

dominação.

REFERÊNCIAS :

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 6ª. Ed. Rio

de Janeiro: José Olympio, 1981.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. 3ª. Ed. São Paulo:

Companhia das Letras, 1991.

LIMA BARRETO, A. H. Aventuras do Dr. Bogoloff. Rio de Janeiro:

Expressão e Cultura, 2001a.

______. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1998.

92 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

______. Contos reunidos. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Garnier,

1990.

______. Histórias e sonhos. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2001b.

______. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011.

______. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2ª. Ed. São Paulo:

Brasiliense, 1961.

ROSSO, Mauro. Lima Barreto e a política: os “Contos argelinos” e outros textos recuperados. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São

Paulo: Ed. Loyola, 2010.

SILVA, Hélio e CARNEIRO, Maria C. R. Luta pela democracia. São Paulo: Ed. Três, 1998.

SOUZA, Maria do Carmo C. de. ―O processo político-partidário na

Primeira República‖. In: MOTA, Carlos G. (org.). Brasil em perspectiva. 8ª. Ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1977.

93 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

A IRONIA COMO EXPEDIENTE RETÓRICO

EM CONTOS BRASILEIROS

MIRANDA, Maria Geralda de

CERQUEIRA, Alex Ribeiro

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A RETÓRICA:

A retórica, ou arte de convencer e persuadir surgiu em Atenas,

na Grécia antiga, por volta de 427 a.C., quando os atenienses

estavam vivendo a primeira experiência de democracia de que se tem

notícia na história. Em razão disso, era muito importante que os

cidadãos conseguissem dominar a arte de bem falar e de argumentar,

nas assembleias populares e nos tribunais‖, (ABREU, 2005: 28).

A argumentação, importante não só nos primórdios do que hoje

conhecemos como democracia, vem servindo também como

instrumento de práticas libertadoras e solidificadoras das relações

humanas. Como diz Perelman (1996: 10), ―o objetivo de toda

argumentação é provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às

teses que se apresentam a seu assentimento: uma argumentação

eficaz é a que consegue aumentar essa intensidade de adesão.

A leitura retórica não objetiva dizer que o texto tem razão ou

deixa de ter. Nem por isso é neutra, pois não hesita em fazer juízos

de valor, em mostrar que tal argumento é forte ou fraco, que tal

conclusão é legítima ou errônea. ―Critica e pondera, sem se abster de

admirar, tendo como postulado que o texto, tanto em sua força

quanto em suas fraquezas, pode ensinar alguma coisa. A leitura

retórica é um diálogo‖, (REBOUL, 2004:132).

O ponto de vista para o qual o orador/autor busca a adesão do

auditório pode ser dito clara e diretamente ou, frequentemente,

utilizar-se de técnicas retóricas para atingir objetivos e persuadir.

Para Reboul (2004: 141), o discurso tende a persuadir de algo, mas

esse algo pode ser múltiplo. O texto muitas vezes tem um objetivo

94 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

imediato e outro distante. O distante quase sempre é o mais

importante, posto que é apenas sugerido, pressuposto ou

subentendido na ―capilaridade‖ do discurso.

Em textos irônicos, como os que são objetos deste estudo, o

objetivo real pode ser absolutamente oposto ao objetivo declarado.

Uma visão de mundo pode ser defendida, fundamentada, analisada,

dimensionada, avaliada, a partir da ironia e das construções cômicas.

Alguns artistas da palavra manejam com mestria as técnicas e a arte

de fazer o outro rir, desenvolvendo-as e aperfeiçoando-as através do

tempo, acompanhando as conquistas sociais e políticas da sociedade.

O riso tem um profundo valor de concepção do mundo, é uma das formas capitais pelos quais se

exprime a verdade sobre o mundo na sua

totalidade (...) somente o riso, com efeito, pode ter acesso a certos aspectos extremamente importantes do mundo. (BAKHTIN, 1993:.57).

Segundo Aristóteles, a criança começa a rir no quadragésimo dia depois do nascimento, momento

em que se torna pela primeira vez um ser humano.

Já Plínio afirmava que um único homem no mundo, Zoroastro, começara a rir assim que nascera, o que permitia augurar a respeito da sua sabedoria

divina. (BAKHTIN, 1993: 59).

Dado o objeto de análise deste estudo configurar-se como

contos brasileiros construídos sob o viés da ironia, é oportuno

observar os efeitos de sentido que a ironia produz nos textos

analisados. Mikhail Bakhtin, que investigou o riso na obra de François

Rabelais, aponta importantes facetas das manifestações da cultura

popular, que contribuíram para a visão do escritor francês, como o

riso proporcionado pelo carnaval e por obras cômicas verbais, escritas

em latim ou língua ―vulgar‖ e também pelo vocabulário familiar e

grosseiro, que continha insultos, juramentos e fanfarronices

populares.

Entre as numerosas investigações científicas

consagradas aos ritos, mitos e às obras populares

95 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

líricas e épicas, o riso ocupa apenas um lugar

modesto. O mundo infinito das formas e

manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época... A

literatura cômica chegou à sua apoteose durante o apogeu do Renascimento, com o Elogio da loucura,

de Erasmo. (BAKHTIN, 1993:3).

Contar histórias é algo muito antigo, sendo praticamente

impossível precisar desde quando existe tal prática. Os contos

mágicos egípcios datam de 4.0000 a.C, mas sabe-se que a arte de

contar passa por fases e evoluções. As histórias sempre reuniram

pessoas que contam e que ouvem. Em sociedades tradicionais

(ágrafas ou não) sacerdotes se reuniam e ainda se reúnem com seus

discípulos para transmissão dos mitos e ritos da tribo; em nossos

tempos, em volta da mesa, à hora das refeições, pessoas trazem

notícias, trocam ideias e contam casos. (GOTLIB, 2000:.5).

As histórias, do modo com a tradição as utilizavam, para além

do exercício lúdico, sempre foram aplicadas para fazer transmitir uma

determinada ideia, a partir da qual se mantinha a própria tradição,

porque deixavam uma mensagem. Persuadia os ouvintes de alguma

coisa e para alguma coisa. Segundo Perelman (1996:16), ―quando

somos convencidos, somos vencidos apenas por nós mesmos, pelas

nossas idéias. Quando somos persuadidos, sempre o somos por

outrem‖. As histórias escritas, modernas ou não, não deixaram de

possuir esta função precípua de veicular uma mensagem, um

posicionamento. Ainda quando o autor, ou o narrador, diz não tratar-

se de posicionamento nenhum.

Aristóteles trabalha com três conceitos fundamentais a qualquer

discurso: ―pathos‖, ―ethos‖ e ―logus‖. Simplificando a teorização do

filósofo, o ―ethos‖ tem a ver com a formação da credibilidade do

orador, junto à audiência. O ―pathos‖ é designado por Aristóteles

como a forma de trabalhar as emoções do auditório, os apelos e

ferramentas das quais o orador se servirá para atingir o emocional

96 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

dos seus ouvintes ou leitores. O ―logus‖ se relaciona ao

convencimento do auditório, neste caso o leitor, através de técnicas

que visem tratar do raciocínio lógico, da razão, de provas irrefutáveis.

Para a retórica, o discurso pode ser oral ou escrito, é com ele,

ou a partir dele, que o orador, ou emissor, deseja convencer o

auditório, ou audiência. É em função da tese, ou ponto de vista, que

o orador procura estruturar o seu discurso, ordenar seus argumentos

e elaborar suas estratégias de convencimento.

As teses, ou as idéias que se pretende que o auditório

compartilhe com o orador, precisam ser apresentadas em uma

linguagem clara e objetiva, a fim de facilitar a empatia e consequente

assimilação das propostas. É condição fundamental ao exercício bem

sucedido da condição de orador, ou contista, no caso deste trabalho,

o conhecimento prévio do auditório e o manejo das técnicas retóricas,

ou literárias, neste caso, para a ação dirigida de forma agradável,

sem as quais se torna impossível a conquista da audiência, ou dos

leitores dos contos.

Orador, auditório: é impossível que um se dirija ao outro se não houver entre ambos um acordo

prévio. De fato, não há diálogo, nem mesmo argumentação, sem um entendimento mínimo entre os interlocutores, entendimento referente

tanto aos fatos quanto aos valores. Pode-se até dizer, sem paradoxo, que o desacordo só é

possível no âmbito de um acordo comum. Nas questões em que não haja nenhum acordo inicial,

pode haver violência ou ignorância recíproca, não

controvérsia. (REBOUL, 2004:142).

Cabe ao orador conquistar o seu auditório, provando a validade

de sua proposta. Também pode, através do seu discurso, que acaba

sendo também a sua arte, fornecer e extrair dados que identifiquem

um auditório ou um perfil de auditório de seu tempo, numa relação

de contribuição com outras áreas do saber humano. Seu discurso

pode elevá-lo a uma condição de historiador de sua época,

97 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

registrando aspectos políticos, sociais e morais que prevalecem sobre

determinado tipo de auditório.

Os contos selecionados foram produzidos em épocas diferentes.

A escolha, conforme já se disse, foi pelo fato de todos eles se

valerem da ironia como expediente retórico. Arthur Azevedo e João

do Rio utilizam a literatura e os contos de humor para estabelecerem

convencimento e persuasão ao seu auditório, seus leitores.

DESVENDANDO OS ARGUMENTOS DOS CONTOS:

O conto ―De cima para baixo‖, de Artur Azevedo, escrito em

1870, narra uma história vivenciada no Segundo reinado, época do

imperador Pedro II. Esta década dá início a questões que levarão a

profundas mudanças no Brasil. Inicia-se um período de isolamento

político do Império, até que, no final da década de 1870, diversas

forças políticas passaram a exigir, cada vez mais, o fim do

escravagismo. Nasce, nesta época, a ideia da formação de um partido

republicano, que se desembocará no fim do Império brasileiro e na

proclamação da República, em 1889.

Resumidamente, a história é a seguinte: um decreto de

nomeação é expedido sem constar o nome do beneficiado e chega à

mesa do imperador. Quem é o culpado? Tamanho erro burocrático

desencadeia uma série de reações entre chefes e subordinados nas

repartições públicas brasileiras, revelando detalhes da mecânica das

relações de poder da época.

Vê-se que o jovem país, Brasil, já sofria com a burocratização

da máquina do Estado. O contista revela a mesquinhez do homem

que se acha superior ao seu chefiado, convidando, com recursos da

retórica e da literatura, a pensar no ridículo que se estabelece quando

no lugar da competência entram a vaidade e a lisonja.

A construção de sua credibilidade de autor (o seu ―ethos‖)

perante o leitor começa a se constituir a partir da escolha de um

98 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

narrador onipresente, cuja credibilidade inequívoca baseia-se no fato

de ele ser sabedor das ações e sentimentos das personagens,

dosando o desvendar das ações e dos sentimentos ao longo do conto,

de forma que o leitor/auditório vá tomando ciência e,

consequentemente, descobrindo a trama e suas construções

discursivas. As ações das personagens, que se alternam nas funções

de chefes e subordinados, portanto em contato com os superiores e

inferiores na hierarquização do trabalho, possibilitam o desvendar das

múltiplas relações entre eles.

O modo pelo qual o autor lida com as emoções do

auditório/leitor (o ―pathos‖) leva em conta a mescla de sentimentos e

emoções como a agressividade do superior frente ao seu inferior

hierárquico e a contrapartida da sua subserviência quando trata com

um superior na hierarquia de trabalho. O convencimento do leitor

para uma dada verdade, ou realidade, através do raciocínio lógico

(―logus‖) encontram eco na estrutura burocrática que rege o trabalho

público e, em especial, o documento de nomeação, aproveitando-se

de uma memória do leitor no que se refere às relações lógicas e

costumeiras auferidas às relações de trabalho.

Neste conto, os gêneros discursivos parecem mesclar-se, como

em grande parte das obras literárias, a partir da idade

contemporânea. A retórica clássica considerava que os discursos

estavam ligados a três situações fundamentais: quando o autor

defende ou ataca alguém, tentando provar a sua inocência ou culpa,

o usado é o gênero judiciário. O gênero epidíctico exalta os méritos

ou critica os defeitos de algo ou alguém. O gênero deliberativo, em

que o orador aconselha ou desaconselha sobre uma coisa futura tem

o discurso centrado nas categorias do útil e do nocivo, pretendendo

que o auditório tome uma decisão.

Alguns argumentos, ou lugares do discurso, precisam

convencer e muitas vezes levar a agir. Os lugares firmam a

hierarquização de valores, reforçando a adesão à tese principal. Na

99 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

utilização dos argumentos, o autor utiliza-se do argumento de

autoridade, aquele em que é citado alguém de reconhecida

importância e, portanto, inquestionável em seus saberes e em suas

ações. Veja um exemplo do início do conto: ―– Estou furioso! –

Exclamou o conselheiro. – Por sua causa passei por uma vergonha

diante de Sua Majestade o Imperador!‖ (AZEVEDO, 2001: 293).

Algumas técnicas conhecidas desde a Antigüidade

recebiam o nome de lugares da argumentação.

São premissas de ordem geral utilizadas para reforçar a adesão a determinados valores. O nome

lugares era utilizado pelos gregos, para denominar

locais virtuais facilmente acessíveis, onde o orador

pudesse ter argumentos à disposição, em momento de necessidade. (ABREU, 2006:.80).

O Imperador do Brasil reclama do Ministro, sem narração direta

no conto, mas desencadeia atos seguintes para o conserto de uma

nomeação. A tarefa é narrada, com recursos da tautologia,

mostrando uma sequência de ordens recebidas e emitidas por alguns

chefes. Por analogia, os subalternos vão repetindo as ações,

prestando aos seus subordinados o mesmo tratamento e

posicionamentos que receberam dos seus superiores. Os

subordinados, quando no papel de chefes reproduzem as ações

sofridas. ―E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os

superiores, quão arrogante e autoritário com os subalternos‖.

(AZEVEDO, 2001: 294).

O argumento do ridículo sobrepõe-se ao argumento de justiça,

uma vez que tratamentos idênticos para ações semelhantes são

verificados no intuito de condenar pelo riso, inclusive com o uso da

tautologia. A superioridade do anterior sobre o posterior, presentes

em toda a narrativa reforça o argumento de ordem, assim como o

argumento de qualidade, tratando do melhor sobre o pior. O chefe,

que se acha superior ao chefiado, é o mesmo que acabara de ser

muito humilde com o seu chefe, como os exemplos:

100 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

a) Me considera muito e sabe que a um ministro

ocupado como eu, é fácil escapar um decreto mal

copiado; b) O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; c) Havia tanto

serviço... E todo tão urgente!...; d) Se o Senhor Diretor geral me não tratasse com tanto respeito e

consideração! (AZEVEDO, 2001: 294).

O mesmo personagem que é cordial, gentil e humilde com seu

chefe, é extremamente agressivo com seu subordinado. Os valores

da mesma personagem mudam com a mudança de situação

hierárquica. Sugere-se que há um consenso em que o mais elevado

posto também representa que quem está acima, sempre tem razão,

como vemos:

Apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara;

– É imperdoável esta falta de cuidado!; E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu; O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros,

dizendo: – Bom! Mande reformar essa porcaria! E

atirou-lhe o papel, que caiu no chão; – Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se

e mande reformar essa porcaria!; O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível!; – Cale-se, já lhe disse, e trate de

reformar essa porcaria! (AZEVEDO, 2001: 294).

Os valores não mudam, os personagens, sim. O mais graduado

não admite seu erro e a consequente incompetência. Afirma-se um

ser raro e querido pelo superior, de quem goza de estima e apreço, o

que lhe dá prestígio frente ao subordinado. Prevalecem os valores

hierarquizados do chefe e, na mesma proporção, dos subordinados.

O conto ―O homem da cabeça de papelão”, de João do Rio,

escrito em 1921, narra uma história já temporalmente situada na

República, cujo presidente era Epitácio Pessoa. Após significativas

mudanças, com o fim da primeira Guerra Mundial, o país entra em

um pequeno surto de industrialização. A classe operária cresce em

número e força política, o que resulta na criação do PCB, em 1922. A

101 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

classe média passa a reivindicar mais espaço na sociedade brasileira,

exigindo eleições limpas e o fim da corrupção. Tempos que se

caracterizam por crescimento industrial, greves operárias, motins

militares (Revolta do Forte de Copacabana), e movimentos culturais,

tais como a Semana de Arte Moderna em 1922 e exigências de

reformas na educação brasileira.

O resumo do conto é o seguinte: a história se passa em um

país fictício, chamado país do Sol, onde existe uma personagem,

chamada Antenor, cuja cabeça ―não regulava‘, isto é, seus atos não

eram considerados normais pela sociedade ―solense‖. Em razão disso,

ele, Antenor, recebe o desprezo e a ira dos seus parentes, amigos e

de muitos habitantes etc. Convencido pela sociedade de que o seu

modo de agir não era correto, devido à cabeça que ―não regulava‖,

resolve consertá-la. Entra em uma relojoaria e troca a sua cabeça por

uma de papelão. Com a nova cabeça, muda de comportamento,

passa a falsificar, explorar, mentir e adular. Recebe a admiração de

todos que antes o maldiziam. Ao receber de volta a velha cabeça,

decide guardá-la por achar que a de papelão melhor combina com o

seu país.

Neste conto, João do Rio envolve seu auditório nos seguintes

questionamentos, enquanto expõe de maneira irônica as mazelas do

―pais do Sol‖, que, o leitor, imediatamente, passa a correlacionar com

o Brasil: O que é certo para nós tem que ser certo para os que nos

cercam? Fazer o que achamos errado é certo, para conquistarmos

sucesso, fama, bens materiais e admiração dos que dizem gostar de

nós?

A construção da credibilidade do orador/autor se dá,

inicialmente, na descrição do ambiente em que se passa a narração,

os juízos de valor e seleções lexicais encaminham esta construção e

alternam-se, durante o conto, com a fala de personagens secundários

e do próprio protagonista. O narrador onipresente atua

102 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

significativamente na construção do seu próprio ―ethos‖, sendo,

inclusive, capaz de criticar as ações dos personagens.

À medida que vão sendo narradas as desventuras do

protagonista, o auditório, ou leitor, se identifica com ele (pathos),

com a sua dor de ―desajustado social‖. O mundo que o execra

enquanto portador da cabeça original e o mundo que o idolatra, após

a adoção da cabeça de papelão, são estampados aos leitores e,

obviamente, objetos de crítica destes. Situações concretas de vida

levam, também, o leitor a possíveis identificações vividas pelo

protagonista, configurando a simpatia destes com ele.

Os argumentos atuam no convencimento do auditório, que

passa a concordar com a ideia do orador. Já os lugares são fontes

onde os oradores bebem, a fim de reforçar e tornar mais viva,

prazerosa e persuasiva a sua tese. Trata-se de um conjunto de

valores estabelecidos na sociedade, espécies de acordos coletivos,

construídos culturalmente e que funcionam como ―base ideológica‖ na

formulação de argumentos, visando à adesão do auditório.

João do Rio utiliza, como Arthur Azevedo, o argumento do

ridículo quase na totalidade da narrativa, descrevendo situações do

cotidiano do protagonista Antenor e suas relações com figuras

diversas do ―país do Sol‖, lido como Brasil república, o que convida

sobremaneira ao riso. Logo no primeiro parágrafo, o protagonista é

apresentado: Antenor ―não era nem deputado, nem rico, nem

jornalista, portanto sem importância social‖, pois no país do Sol

‖falava-se francês com convicção, mesmo falando mal‖. (RIO, 1970:

196). ―Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos... Ficou

provado que era doido‖. Dizia o tio de Antenor: ‖vagabundo é um

sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição.

Desde que você não as tem, mesmo trabalhando, é vagabundo.‖

(RIO, 1970: 198).

A importância de figurões, comerciantes, políticos e pessoas de

caráter duvidoso no país do Sol, leva o autor a lançar mão do

103 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

argumento do ridículo, no momento em que confronta as atitudes

consideradas honestas de Antenor com as desonestidades dos

representantes e pessoas influentes daquela sociedade.

Presente, também, em todo conto, o argumento de qualidade,

tratando do melhor sobre o pior. Quando Antenor porta sua cabeça

original, é sempre tido como o pior, pois não pode ser honesto e ter

suas próprias idéias; ao receber a cabeça de papelão, passa,

ironicamente, a ser considerado um dos melhores, senão o melhor, e

convidado ao senado da república do País do Sol. A ―cabeça de

papelão‖, que pode ser lida, como cabeça vazia, destituída de valores

e princípios como honestidade, ética, compromisso com a verdade

etc, permite que Antenor conquiste vários pilares sociais.

Argumentos de causa e efeito para acontecimentos sucessivos,

como mentir, fazer mal, trapacear, explorar, adular e falsificar e, com

isso, enriquecer, ter muitos amigos, ser estimado e ver crescer a

fama, também povoam a narrativa. Um dado fundamental é que os

mesmos valores não são impostos a todo mundo. ―Eles estão ligados

à multiplicidade de grupos e de emoções. Aquele que quer persuadir

deve saber previamente quais são os verdadeiros valores de seu

interlocutor ou do grupo que constitui o seu auditório. (ABREU, 2006:

74).

Pontos de vista antagônicos e valores opostos permeiam todo o

texto. A ironia e os recursos literários humorísticos se contrapõem a

pensamentos lógicos e aparentemente racionais. No primeiro caso,

vejamos alguns exemplos: ―Desde menino, a sua respeitável

progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a

verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade

verdadeira‖; (RIO, 1970: 198). ―A faca serve para cortar o que é

nosso para nós e o que é dos outros também para nós‖; ―sabendo

lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro‖. (RIO, 1970: 199). No

segundo caso, atentamos para o parágrafo, onde o relojoeiro

comenta a cabeça de Antenor:

104 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Senhor, na minha longa vida profissional jamais

encontrei um aparelho igual, como perfeição, como

acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa

sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça

qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma

cabeça de gênio, hors-concours. (RIO, 1970: 201).

O protagonista rende-se ao fato de precisar ser igual aos

outros, diga-se igual à ―elite política‖ do país do Sol, para ser aceito

naquele espaço, em que a competência e a visão de futuro não são

atributos válidos. A verdade é a da classe dominante, como é citado

no penúltimo parágrafo: ―a verdade é a dos outros‖. E a fina ironia

das últimas palavras da obra de João do Rio: ―conseguiu tudo com

uma cabeça de papelão‖.

CONCLUSÃO:

Ensina-nos Perelman (1996: 85) que os valores universais são

meios de persuasão, espécie de ferramentas espirituais totalmente

separáveis da matéria que permitem moldar, anteriores ao momento

de serem utilizadas e que permanecem intactas depois de serem

utilizadas, disponíveis, como antes, para outras ocasiões. Essa

concepção evidencia admiravelmente o papel argumentativo dos

valores, ou lugares, conforme já se disse atrás.

Como diz Abreu (2006: 99), as palavras são como fios, com os

quais tecemos ideias, em forma de texto. Quando usamos uma

palavra, estamos fazendo uma escolha de como representar nossas

ideias, nossos valores. As palavras que escolhemos têm enorme

influência em nossa argumentação.

Se, na antiguidade, o orador precisava dispor de certas técnicas

oratórias para convencer os ouvintes ou cidadãos presentes nas

assembleias da ágora grega, artistas da palavra, como Arthur

Azevedo e João do Rio, não têm tarefa menos ―engenhosa‖. Expor, a

105 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

partir do expediente da ironia, as feridas do Brasil e suas

contradições históricas exige maestria no trato com as palavras.

A habilidade de analisar uma situação sob diferentes pontos de

vista, é importante em qualquer área, pois está ligada ao exercício da

criatividade e, obviamente, da argumentação. Valores como o

verdadeiro, o bem, o justo, o absoluto, o certo, o normal dependem

do que é aceito em uma determinada sociedade, ou em uma

determinada época, ou cultura. O modo como a sociedade ―solense‖

julgava Antenor demonstra o que se está querendo dizer. Os valores

considerados aceitos por tal sociedade são risíveis quando

defrontados com a ―honestidade‖ anterior de Antenor, que acabou

―capitulando‖ diante da pressão social.

No conto de Arthur Azevedo, o mesmo personagem que é

terno, cortês e humilde com seu chefe, é extremamente hostil com

seu subalterno. Os valores da personagem mudam de acordo com a

variação hierárquica. O que provoca o riso no leitor é o fato da

pessoa de posto mais elevado sempre ter razão, mesmo sendo um

comprovado incompetente.

REFERÊNCIAS :

AZEVEDO, Arthur. De cima para baixo. In COSTA, Fábio Moreira da.

Os 100 melhores contos de humor da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, pp. 293-95.

ABREU, Antônio Suarez. A arte de argumentar – Gerenciando

Razão e Emoção. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006

ARISTÓTELES. Arte poética e arte retórica. Rio de Janeiro:

Ediouro, 1969.

BAKHTIN, M.M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. DF,

Universidade de Brasília, 1993.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2000.

PERELMAN, Chaïm. Tratado da argumentação. São Paulo: Martins

Fontes, 2002;

106 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. 2. ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2004.

RIO, João do. O homem da cabeça de papelão. In: MAGLHÃES JUNIOR. R. Antologia de Humorismo e Sátira. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1970, pp. 196-201.

107 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

SENTIDOS DA ATIVIDADE DE AVALIAR:

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM

PERSPECTIVA DISCURSIVA

DEUSDARÁ, Bruno

GIORGI, Maria Cristina

INTRODUÇÃO

Os temas da Educação têm ganhado relevo considerável na

atualidade. O tratamento conferido a esses temas vem colocando em

destaque políticas públicas que, pretensamente, procurariam

favorecer a ―mobilização social‖ em torno da ―melhoria da qualidade‖.

Atravessando desde decretos presidenciais a spots publicitários da

grande imprensa e grupos empresariais, a cena consolidada levaria a

crer que a solução estaria em alcançar ―índices de qualidade‖

desejáveis.

Encontramo-nos diante de um impasse: a mobilização social em

torno da qualidade, segundo indicada nos decretos do Plano de

Desenvolvimento da Educação (PDE), dá-se nos marcos de metas já

elaboradas. Uma vez colocados os patamares a serem alcançados, o

foco recai sobre o trabalho do professor como aquele que agencia

―com sucesso‖ saberes repetidos nas provas com objetivo de aferir

―índices de qualidade‖. Já há expectativas de que aluno se deseja ver

formado, que conteúdos são valorizados, circulando nas avaliações

nacionais.

Bons professores, nesse quadro, são aqueles que multiplicam

as tarefas dos alunos, investem nos reforços e nas listas de repetição

dos conteúdos. Bom aprendiz é aquele que se aplica em repetir e

acertar tudo. O certo é apenas o que corresponde ao esperado nas

avaliações nacionais. Pensar de outra maneira torna-se perda de

tempo e... ousadia frente aos dispositivos de controle!

A temática da formação de professores ganha contornos

rígidos. Segundo esse imperativo do cumprimento das metas, espera-

108 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

se do professor agilidade com cronogramas, identificação de possíveis

deficiências, aplicação de tarefas de reforço. Fala-se muito em cursos

de formação continuada, capacitação para agilizar a aquisição de

conteúdos e identificar mais facilmente o que destoa ao ritmo dos

cronogramas. Enfatiza-se uma dimensão de execução no cotidiano do

trabalho do professor, em detrimento de interrogar a eficácia dos

índices, a precariedade de infraestrutura, a desvalorização salarial

grave. O cotidiano passa a ser apenas o momento de cumprir um já

pensado, sem condições para fazer da própria prática profissional

fonte de saberes para o professor.

No entanto, sabemos que tais propostas não são inovações das

políticas públicas atuais, tais dispositivos de controle compõem a

tradição escolar. Há uma parte disso tudo que atravessa nossas

práticas cotidianas. É essa a contribuição pretendida por este artigo,

quando analisamos dois materiais em que o professor é avaliado /

convocado a avaliar: prova de concurso de seleção de professores

para rede pública de ensino e um formulário-ata de Conselho de

Classe, utilizado em uma escola da rede pública estadual do Rio de

Janeiro.

As ferramentas conceituais provêm da articulação entre a

reflexão acerca dos gêneros do discurso (BAKHTIN, 2000) e a

compreensão do cotidiano como produção permanente, configurando-

se de relações de poder que geram saberes (FOUCAULT, 2004).

Nosso intuito residiria em inverter o fluxo tradicional dos saberes

como unicamente aprendidos antes ou fora da prática profissional,

restringindo-a à sua aplicação.

AS PRÁTICAS DE AVALIAÇÃO EM DISCUSSÃO: CONSTRUINDO EXPECTATIVAS SOBRE O TRABALHO DOCENTE

Ao propor a discussão em torno de dois materiais a partir dos

quais o professor é avaliado / convocado a avaliar, consideramos

109 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

necessário refletir acerca dos sentidos de avaliar. Os sentidos

possivelmente atribuídos ao verbo avaliar, em língua portuguesa,

deslocam-se entre ―determinar o valor de algo‖, ―reconhecer seus

méritos‖, ―calcular sua força, intensidade‖. O ato de avaliar, ou

melhor, de determinar, reconhecer ou calcular o valor, os méritos ou

a intensidade de algo ou alguém, parece estar presente em diversos

momentos de nossas vidas.

Quando assistimos à emergência de avaliações nacionais,

observa-se a apropriação de dispositivos pertencentes aos rituais e às

tradições escolares acentuando concorrências e acelerações próprias

a políticas neoliberalizantes. A esse respeito, Deise Mancebo e Marisa

Rocha (2002) destacam que as práticas de avaliação vêm sendo

reforçadas no Brasil, a partir dos anos oitenta, no Ensino Superior,

atendendo a anseios contraditórios. No entanto, é a dimensão

empresarial que dá o tom das práticas de avaliação nas políticas

públicas.

Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabemos que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou

menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia

e ocupar as pessoas, até a instalação das novas

forças que se anunciam (DELEUZE, 2006, p. 220).

―É preciso salvar a escola‖, dizem os burocratas de plantão! A

―solução‖ oferecida vem sendo experimentada há mais de duas

décadas pelas Universidades brasileiras, cuja insistência favorece o

aparecimento de uma ―cultura da avaliação‖:

A cultura da avaliação na realidade da

universidade brasileira está no bojo das políticas

neoliberais que se farão sentir a partir da década de 90 do último século, constituindo-se em

aprimoramento do racionalismo cientificista

consolidado ao longo da era moderna: conhecimento técnico, objetividade, princípios

ligados a leis naturais, parâmetros neutros e

universais. Tais políticas não estão desvinculadas

110 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

das estratégias governamentais constituídas para

lidar com a crise mundial do capitalismo que, entre

nós, agravará a precariedade de funcionamento das instituições sociais (ROCHA, M.; ROCHA, D.,

2004, p. 20).

A ―solução‖ apontada sustenta-se em uma técnica bastante

enraizada na tradição escolar. Trata-se do exame, que combina

hierarquia e sanção normalizadora, que permite qualificar, classificar

e punir, ou seja, distinguir e sancionar (FOUCAULT, 2005).

Na história dessas instituições, ganha força um ritual em torno

dos dispositivos de avaliação que ―colam‖ os resultados alcançados

aos corpos de cada um. Os alunos designam-se uns aos outros e a si

próprios da seguinte maneira: ―eu sou um aluno sete em Matemática‖

ou ―eu sou cinco em Português‖. Quando se diz ―eu sou sete‖, o

resultado obtido passar a revelar algo que supõe ser sua capacidade,

tomada independente das condições de realização, da parcialidade

dos conteúdos exigidos nessas aferições. Quem é visível então não é

o poder, e sim o sujeito vigiado. Para que o indivíduo seja controlado,

é preciso conhecer seus traços particulares. Cria-se um sistema

comparativo que possibilita a aferição de fenômenos globais. O

observado é induzido a um estado consciente e permanente de

visibilidade, que permite e proporciona o funcionamento do poder.

Colocar em tensionamento as ―avaliações de desempenho‖ que

têm sustentado as políticas públicas para a Educação significa apostar

numa discussão sobre as práticas de avaliação e seus efeitos em nós.

Dessa forma, caberia destacar os seguintes questionamentos:

Para disciplinar e controlar, a escola faz uso do

mecanismo da avaliação, também recoberto de mil

argumentos didático-pedagógicos, mas outra

marca indelével do poder e do controle. Ora, dirão

alguns, como educar se não tivermos um feedback

dos alunos, só possível através dos mais diversos mecanismos de avaliação, para reorganizar

continuamente o processo pedagógico? (GALLO,

2008, p. 82-83).

111 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

O mesmo dirão os administradores públicos: é preciso conhecer

as escolas para administrá-las melhor. As críticas ao fortalecimento

dos dispositivos de avaliação como estratégias de controle do

trabalho do professor, produzindo como efeitos a perda de sentido

dos vínculos e a desvalorização dos encontros sempre únicos que

acontecem nas salas de aula entre professor, aluno e conhecimento,

não pode, por outro lado, deixar de considerar que tais dispositivos

compõem a tradição e os rituais das instituições de formação.

Nessa discussão privilegiamos a constituição de saberes e de

imagens discursivas de trabalhador docente a partir da análise de

textos que remetem à atividade de avaliar, por compreendermos que

esta é constitutiva do trabalho docente, quer quando aplicamos

provas ou nos submetemos a elas, quer quando, em sentido mais

amplo, analisamos percursos e, a partir deles, elaboramos

alternativas.

Para desnaturalização das próprias práticas que lhes dão

sustentação, buscamos associar a proposta de relação poder-saber de

Foucault com as estratégias de exercício de poder observadas nos

textos aqui analisados, visando a colocar em relevo os saberes da

atividade docente que não apenas os da sala de aula.

GÊNEROS DO DISCURSO EM DEBATE: APREENDENDO MANEIRAS DE AGIR ATRAVÉS DA PRODUÇÃO VERBAL

A noção de gênero do discurso em Bakhtin articula as

realizações da língua e as esferas da atividade às quais estão

vinculadas, observando a elaboração de ―tipos relativamente estáveis

de enunciados‖ (BAKHTIN, 2000, p. 280). A relativa estabilidade das

realizações linguísticas é fenômeno situado indissociavelmente às

diversas esferas da atividade humana. ―A utilização da língua efetua-

se em forma de enunciados (orais ou escritos), concretos e únicos,

112 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade

humana‖ (BAKHTIN, 2000, p. 280).

O referido autor oferece ainda três componentes do todo de um

gênero do discurso: o conteúdo temático, o estilo e a construção

composicional. Para Bakhtin, esses tipos relativamente estáveis – os

gêneros do discurso – permitem ao interlocutor assumir posição ativa

na interação. A compreensão do gênero a que pertencem os

enunciados confere às produções de linguagem um acabamento, que

possibilita a troca na interação verbal.

É necessário o acabamento para tornar possível

uma reação ao enunciado. Não basta que o enunciado seja inteligível no nível da língua. Uma

oração totalmente inteligível e acabada, se for uma

oração e não um enunciado – constituído de uma única oração – não poderá suscitar uma reação de

resposta: é inteligível, está certo, mas ainda não é

um todo (BAKHTIN, 2000, p. 299).

O interlocutor, para Bakhtin, assume uma postura de

compreensão responsiva ativa. A compreensão possui uma dimensão

de resposta. Ao concordar, discordar, completar, interromper, retirar-

se, o coenunciador manifesta-se ativamente.

Ressignifica-se a relação entre os interlocutores nas trocas

verbais:

o próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro locutor, que

rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não só a existência do

sistema da língua que utiliza, mas também a

existência dos enunciados anteriores – emanantes

dele mesmo ou do outro – aos quais seu próprio

enunciado está vinculado por algum tipo de relação

(...) (BAKHTIN, 2000, p. 291).

Motivado por insuficiências da oposição entre as tipologias

enunciativas – que não levam em conta a inscrição social da atividade

verbal – as tipologias comunicacionais / situacionais – que não

113 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

consideram o funcionamento linguístico dos textos, Maingueneau

(2001) propõe cinco critérios para conceber um gênero:

uma finalidade reconhecida;

o estatuto de parceiros legítimos;

o lugar e o momento legítimos;

um suporte material;

uma organização textual.

A noção de gênero de discurso assim compreendida possibilita a

apreensão do encontro indissolúvel dos enunciados e de seu contexto

dialógico, superando o problema clássico da relação entre a

linguagem e seu entorno a partir da dicotomia lingüístico /

extralinguístico.

Por contexto dialógico, Bakhtin entende não apenas a situação

concreta imediata, como também o contexto sócio-histórico mais

geral. A título de exemplo, diríamos que, através de um texto

produzido em situação de interação professor-aluno em sala de aula,

apresentam-se conteúdos, explicitam-se suas relações com outros

conceitos, explicam-se possíveis operações em jogo com ele, propõe-

se um exercício de aplicação / utilização desses conteúdos. Isso não

se realiza sem que uma dada qualidade de relação se estabeleça

entre os participantes dessa situação de troca verbal. Já assistimos a

muitas aulas, já sabemos como nos colocar nelas, mas há ainda uma

parte dessas relações que está em jogo cada vez que entramos em

sala, sua condução está em disputa e o texto produzido em aula é

uma das dimensões em que tal disputa ganha materialidade.

Entende-se assim que

(...) a relação dialógica é uma relação (de sentido)

que se estabelece entre enunciados na

comunicação verbal. Dois enunciados quaisquer, se

justapostos no plano do sentido (não como objeto

ou exemplo lingüístico), entabularão uma relação

dialógica (BAKHTIN, 2000, p.346).

114 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Aqui, evidenciamos como as ferramentas de Bakhtin podem ser

úteis na análise de uma dimensão micropolítica das trocas verbais.

Apenas em aparência uma avaliação poria em cena alguém

responsável pela elaboração das perguntas e outro que teria a tarefa

de respondê-las. Entendemos que a análise dos gêneros do discurso

constitutivos do fazer docente é, portanto, uma possibilidade de

apreensão das diversas atividades que atravessam esse fazer. A

partir dos gêneros, podemos indicar os diferentes lugares

institucionalizados previstos para o trabalhador-professor e um

conjunto de expectativas.

Neste artigo, os textos selecionados para análise remetem a

uma esfera da atividade tão marcada como integrante do trabalho

docente: a atividade de avaliar. Passemos à descrição do material

analisado, para, no próximo item, proceder a um levantamento de

pontos de contato e de afastamento entre eles.

a prova de seleção 6,

As provas de seleção indicam, no contexto atual de nossa

realidade educacional, aquilo que os profissionais precisam saber.

Acabam por funcionar como referencial a ser seguido por aqueles que

pretendem ingressar na rede pública de ensino, podendo, inclusive,

influenciar cursos de formação. São, portanto, uma dupla memória

que remete ao passado – reproduzindo e mantendo o que vem ou

não sendo privilegiado – e aponta para o futuro – prescrevendo o que

deve ou não continuar sendo considerado importante, o que é

esperado por um determinado grupo para a prática desse trabalho.

Uma vez que, de acordo com Bakhtin (1929), cada um de nós orienta

suas ações a partir de uma visão de futuro, os conteúdos repetidos

nas provas também indicam uma possibilidade de futuro, pois

refletem o que é, e deverá continuar sendo considerado importante

6 As provas em cujas análises baseamos esse artigo constituem o processo

de seleção realizado em 2004 para provimento de vaga de professor

docente I de Língua Espanhola da rede pública estadual do Rio de Janeiro.

115 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

no contexto da educação. As provas de seleção transformam certas

expectativas sobre o que o professor deveria saber em conteúdos

necessários à sua aprovação na seleção, produzindo uma imagem

daquele com quem se fala – nesse caso, o professor.

Ao refletirem saberes acumulados ao longo do tempo,

apoiando-se em uma memória compartilhada, as provas prescrevem

ainda visões de língua e de ensino valorizadas por determinados

grupos. Os saberes não possuem em si mesmos uma essência que

faça deles elementos fundamentais de figurarem em provas de

seleção, ao contrário, é o próprio fato de figurarem em provas de

seleção que os legitima como inerentes e necessários de serem

―dominados‖ pelos candidatos.

b- o formulário-ata7

Embora este gênero tenha aparentemente finalidade

semelhante à de uma ata, seu funcionamento enunciativo se

distingue do que correntemente se conhece com tal. Pretende-se que,

terminado o preenchimento do formulário, ele se torne o registro de

síntese das discussões travadas em reunião, tal qual uma ata do

conselho de classe.

Habitualmente, uma ata requer de um único participante da

reunião a responsabilidade por redigi-la integralmente. Este deve

formalmente lavrá-la, ao final, com sua assinatura, contando ainda

com a ratificação dos presentes. Devem constar nela a data, o local e

os presentes à reunião. Além disso, o relato das discussões pode vir

registrado atribuindo explicitamente cada uma das falas a seus

enunciadores ou apenas anotando impessoalmente o conteúdo das

discussões.

Em contraposição aos modelos habituais, o formulário-ata aqui

analisado tem sua enunciação desmembrada em dois momentos

7 Trata-se de documento utilizando frequentemente em uma escola da rede

pública estadual do Rio de Janeiro, que se constituiu como cenário de

pesquisa desenvolvida por Deusdará (2006).

116 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

distintos. O primeiro deles caracteriza-se pela confecção de uma

pauta inicial da reunião, seguida de perguntas com espaços

determinados para as respostas. Esse texto, cuja elaboração atribui-

se à direção geral, apresenta-se digitado. É distribuído em todas as

salas em que ocorrem reuniões de conselho de classe. O segundo

momento configura-se durante a própria reunião do conselho de

classe, em que se espera que os professores sigam o roteiro e

respondam ao que se propõe. Esse momento exige de um dos

participantes da reunião o registro de síntese da discussão.

A partir dos gêneros descritos acima, podemos dizer que

captamos espaços em que o professor é avaliado, na situação de

candidato a uma vaga em concurso público, e outro em que ele passa

a avaliador, na situação de membro de uma reunião de conselho de

classe. Ou seja, quando a avaliação não é um poder do professor,

pois incide sobre ele.

São esses os gêneros que constituem o material de base para

reflexão por nós empreendida no presente artigo. Sua seleção deveu-

se ao fato de que ambos remetem a atividades que não se vinculam

diretamente ao contexto de sala de aula, embora façam menção a

ele. Nesse sentido, acreditamos que tal opção apontará para um

conjunto de saberes que se pressupõem necessários à prática

docente e as relações de poder que os constituem, emergindo de

outras coordenadas de espaço-tempo do trabalho do professor.

ATIVIDADE DE AVALIAR E OS SABERES PRESSUPOSTOS

O paradoxo da avaliação residiria em considerá-la como

processo contínuo, articulando temporalidades no espaço escolar,

mas também legitimando certos saberes como válidos e necessários.

Põe em funcionamento toda uma maquinaria que associa práticas

discursivas (a partir de estratégias de fazer dizer) a regimes de

117 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

visibilidade (que fazem ver os resultados produzidos por essa

maquinaria disciplinar).

Iniciamos nossas observações tratando da prova. Ressalte-se

que os documentos que normalizam a seleção abrangem, além da

prova, o edital e o manual do candidato. Não obstante as menções

eventuais aos três documentos, neste artigo, centramos nossas

análises nas provas de seleção.

Conforme Vivoni (2003), nos concursos realizados pela SEE/RJ,

a elaboração das provas insere-se em um processo de diálogo entre

essa Secretaria e a FESP – fundação responsável pelo referido

concurso. Em um primeiro momento, a secretaria fornece o perfil de

docente que deseja selecionar e outras informações relativas ao tipo

de prova e ao grau de dificuldade. O tipo de prova e o grau de

dificuldade, de alguma maneira, têm de prever uma hierarquização,

permitindo dividir os candidatos em aprovados ou eliminados, em

classificados ou não classificados.

É de responsabilidade da banca também confeccionar o

gabarito de respostas e avaliar seu grau de dificuldade no momento

da elaboração. ―O perfil do candidato é delineado, num primeiro

momento, pela SEE e transmitido à FESP, que o repassa à

coordenação acadêmica, que, por sua vez, entra em contato com a

banca‖ (VIVONI, 2003, p. 26).

Na enunciação de uma prova, legitima-se daquele que pode

perguntar e prever as respostas esperadas e de outro que deve

inserir-se nas previsões de respostas. A prova também se apresenta

como dispositivo de fazer ver graus variados de ―domínios‖ dos

conhecimentos requeridos. Trata-se, portanto, de “um saber sobre os

indivíduos que nasce da observação dos indivíduos, da sua

classificação, do registro e da análise dos seus comportamentos, da

sua comparação, etc” (FOUCAULT, 2005, p.121).

Desse modo, indicamos marcas linguístico-discursivas de certos

perfis de candidatos construídos, bem como uma hierarquização dos

118 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

saberes que se julgam necessários à aprovação e classificação do

candidato.

Reproduzimos a seguir uma das questões constante na prova

analisada:

Pregunta 35

―…vendrán ochenta o noventa a cenar, …‖:

(L.12) – ochenta y noventa es la forma escrita de

los numerales 80 y 90. Señale la de los numerales

16 y 28:

a) dieceséis y veinteocho

b) diez y seis y veinte y ocho

c) dieciséis y veintiocho

d) deciséis y ventiocho

Apesar de haver um fragmento de texto no comando da

questão, verificamos que a presença desse enunciado é

completamente desnecessária, uma vez que a questão trata apenas

da identificação da correta ortografia dos números 16 e 28.

Para cada questão há apenas uma única resposta verdadeira,

as outras três são falsas. Tem-se que os saberes necessários à

prática docente já estariam dados previamente, prontos em algum

lugar e a tarefa do candidato nessa prova é identificá-los. Aqueles

que melhor conhecerem o gênero discursivo em questão e forem

capazes de ―encontrar‖ o maior número de ―verdades‖, ou seja, que

demonstrarem não só conhecer, mas saber desviar de ―ciladas‖,

respostas falsas, mostram-se aptos a tornarem-se professores da

rede pública estadual. Esses modos de enunciação próprios às

questões de múltipla escolha aproximam-se de um aperfeiçoamento

autoritário. O que importa não é compreender a injunção, mas

perceber o sinal, reagir logo a ele, de acordo com um código mais ou

119 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

menos artificial, estabelecido previamente, que se traduz na própria

opção pela prova de múltipla escolha (FOUCAULT, 2004).

As provas legitimam o controle, dizem quem pode ou não pode

continuar na escola, quem pode ou não ―passar de ano‖, quem pode

ou não ser professor da rede pública estadual. Punem e

recompensam, levam a ―autorizações‖, como poder entrar de férias,

passar de ano, exercer a profissão etc.

Outrossim, a presença de saberes acadêmicos, sobretudo

gramaticais, em uma prova de seleção constitui movimento circular

de interlegitimação: ao pôr em cena questões de gramática, a prova

atende a uma expectativa prévia, que circula no social, de que um

bom professor de língua (materna ou estrangeira) deve demonstrar

habilidades com saberes gramaticais. Assim sendo, legitima não só

essa expectativa, como esse campo de saberes, ao mesmo tempo em

que também se coloca como instrumento de avaliação. A avaliação

apenas reforça o que já se encontra cristalizado.

As ―luzes‖ que iluminam conhecimentos gramaticais ocultariam

quais outros saberes não enunciados? Que questões do cotidiano

docente deixam de ser problematizadas? Que tensões são ocultadas?

Ainda que não tenhamos respostas para estas questões, se

retomamos a proposta de Foucault, que os campos poder / saber

devem ser compreendidos como resultados de embates políticos e

jogos de força, a análise de tais resultados, é relevante. É possível

destacar algumas concepções de ensino representantes de crenças,

que, dessa forma, se perpetuam no âmbito do ensino de língua em

nosso estado: basta conhecer a gramática da língua ensinada para

que se tenha sucesso em sala de aula.

Em suma, a naturalização do processo seletivo, aqui

representado pelas provas, já é, por si só, um exemplo do vigiar

típico da sociedade disciplinar. A vigilância é fundamental, no sentido

de comprovar se os futuros professores estão se comportando dentro

do esperado para fazer com que o sistema funcione.

120 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

No que se refere ao formulário-ata, observa-se encenação de

um diálogo entre a Coordenação da escola e os professores reunidos

em conselho de classe. Além da pauta da reunião, as perguntas

constituem-se em uma expectativa, ou seja, são uma previsão do

que os professores devem discutir. Uma orientação que torna mais

útil o aproveitamento do tempo. Evita desperdícios.

Não só as perguntas, mas o espaço reservado e limitado,

apresentado em seguida de cada uma das perguntas, também parece

funcionar como mecanismo de controle do tempo. A despeito do que

habitualmente se conhece por ata de reunião, esta não permite o

registro das discussões; anotam-se apenas os resultados,

objetivando-os nas linhas destinadas a cada uma das questões.

Além disso, perguntas como ―11. Alunos que se destacaram

pela participação, independente da nota‖ pressupõem um professor

que vigia e controla a produção de seus alunos, durante todo o

tempo, possui formas de observação e registro situados para além

dos resultados das provas. Com isso, institucionalizam-se práticas de

controle individualizantes mantendo os alunos em constante

vigilância. É preciso identificar, anotar, distinguir, julgar todo o

tempo. A observação não deve cessar. Em relação ao trabalho

docente, é necessário extrair dele o máximo de utilidade. Quanto

mais observa, mais se torna útil, tanto mais é produtor de saberes de

vigilância.

Essa dinâmica de vigilância contínua esperada do professor

pressupõe uma dada organização do seu trabalho. Vejamos as

questões de número 5 e 6:

5. A turma está correspondendo ao que você, professor,

planejou para o 2º bimestre?

6. Há falta de interesse por parte de alguns alunos, ou de

algum grupo em especial?

Haveria assim, em primeiro lugar, um planejamento de suas

ações anterior à interlocução com os alunos e sua execução em sala

121 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

de aula. Nesse modelo, o diálogo que os alunos mantêm com as

expectativas elaboradas pelo professor é interpretado como respostas

deles ao seu planejamento. Na execução do planejamento, a

interlocução dos alunos é compreendida como um ―comportamento‖

que manifestaria interesse ou falta dele em relação ao proposto.

Instituem-se lugares bem definidos, com expectativas bastante

nítidas, para o diálogo professor-aluno: ao professor cabe, na solidão

da elaboração do planejamento, prever e determinar o que será

proposto, aos alunos cabe interessar-se por isso8.

Emerge desse tipo de expectativa um conjunto de saberes

sobre a aprendizagem, o comportamento, sobre os indivíduos. Se o

interesse é observado continuamente no comportamento de cada um

dos alunos, os supostos ―problemas‖ são, portanto, individualizados.

O que se espera do professor é exatamente saber fazer esse tipo de

recorte, ou seja, saber indicar a cada lugar um indivíduo e a cada

indivíduo seu problema.

O formulário-ata, com seu resultado ―objetivado‖ no

funcionamento de perguntas e respostas, garante o aumento do

controle. Não é mais preciso ler atas detalhadas da discussão

realizada na reunião de Conselho de Classe. Este funcionamento

discursivo produz duas imagens do trabalho docente que,

aparentemente, se contradizem, mas que se complementam.

De um lado, uma imagem de professor-detento, que tem o

tempo de sua atividade controlado. Este controle não se exerce por

8 Como observou Rocha (2001), nas escolas ―a luta dos educadores está

prioritariamente situada nas turmas, com cada aluno, buscando

compreender suas faltas ou estabelecer novos dispositivos de contenção‖ (ROCHA, 2001, p. 219). Segundo a autora, esse modo de funcionamento do

cotidiano gera desgaste físico e psíquico nos profissionais, ao passo que as

condições de realização e os modos de gestão do trabalho escolar não

ganham visibilidade. Desse modo, o projeto educacional se institui a partir

de uma visão clínico-assistencial, em que crianças e adolescentes são observados isolados do contexto. Nesse modelo, individualizam-se os

conflitos, atribuindo-se ao profissional a função de diagnosticá-los e propor

tratamentos.

122 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

um poder que impeça a discussão, mas por inúmeras perguntas que

orientam e procuram extrair o máximo de utilidade da reunião.

Além disso, essa detenção do professor se manifesta também

no fato de haver, ao mesmo tempo, nove reuniões de Conselho de

Classe sendo realizadas: para cada um dos três turnos (manhã, tarde

e noite), há uma reunião para cada uma das séries (1ª, 2ª e 3ª do

Ensino Médio). Assim sendo, nenhum dos professores em cada uma

das reuniões sabe do que está sendo discutido nas demais salas. Essa

―não visibilidade‖ mútua entre os professores aproxima-se da

arquitetura do panóptico, cujos detentos não se vêem mutuamente,

nem mesmo àquele que teria como função vigiá-los. Contudo, todos

sabem que estão (ou podem estar) sendo vigiados. Não há

necessidade da presença da Orientação pedagógica ou da

Coordenação da escola, todos preenchem os formulários como se

todos eles viessem a ser lidos por quem os elaborou.

Mesmo que esta leitura não se realize, a vigilância se mantém,

afinal, ―o Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto‖

(FOUCAULT, 2004b, p. 167). A vigilância, portanto, deve sempre

funcionar. A sujeição independe da existência de alguém no anel

central.

―Há uma maquinaria que assegura a dissimetria, o

desequilíbrio, a diferença. Pouco importa, conseqüentemente, quem

exerce o poder. Um indivíduo qualquer, quase tomado ao acaso, pode

fazer funcionar a máquina‖ (FOUCAULT, 2004b, p. 167).

De outro lado, constitui-se a imagem do professor-carcereiro,

aquele que produz um enraizamento do poder. Leva-o ao detalhe, à

observação minuciosa, capaz de anotar cada alteração. Conhece os

alunos pela série, em cada série, sua turma, em cada turma seu

número, a cada número a presença diária, o rendimento nos testes e

123 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

provas, o comportamento cotidiano. Todas essas informações estão

detalhadamente registradas em seu diário de classe9.

Ao professor-carcereiro, é dada a possibilidade de reconhecer

um bom rendimento atribuindo pontos por comportamento, por

exemplo, bem como punir, com retiradas de sala, advertências. É ele

quem registra indisciplinas (cf. com o item ―8 Há problemas de

indisciplina que mereçam ser registrados?‖). Mais do que a punição

propriamente, sua presença deve explicitar toda a maquinaria de

vigilância que controla o movimento mais sutil dos corpos. Individua

comportamentos e rendimentos, gratifica-os e os pune.

Assim, a produção de saberes de vigilância está vinculada a

uma dupla estratégia: o professor exerce a vigilância e,

simultaneamente, funciona como uma engrenagem das técnicas de

disciplinarização.

No formulário-ata, há duas perguntas propondo uma análise da

turma. Vejamos:

4. Conceituação da turma em relação ao 1º. bimestre:

Quanto ao rendimento:

Quanto à freqüência:

Quanto à disciplina:

O que se espera do professor na conceituação da turma quanto

ao rendimento? Habitualmente, o rendimento de que trata a escola se

extrai de avaliações de conteúdo ou de certas habilidades necessárias

ao desenvolvimento de uma tarefa. Codifica-se tal rendimento em

números ou letras. Desse modo, ao solicitar o rendimento da turma,

é provável que se tenha como resposta algo que tome por base a

média dos rendimentos individuais dos alunos da referida turma. Da

9 Aparentemente instrumento de vigilância dos alunos, o diário de classe representa também uma vigilância de si por parte do professor. Assegura,

com registro da presença do aluno, a sua própria permanência em sala no

horário previsto.

124 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

mesma maneira, a frequência controlada no diário refere-se à

presença individual na escola. Uma frequência oscilante ou estável de

uma determinada turma, nos termos propostos, verifica-se pela

média de presenças dos alunos averiguadas em um período

determinado. Isso nos leva a perceber que a noção de turma parece

funcionar habitualmente como sinônimo de somatório de indivíduos.

É preciso ver no grupo o movimento de cada um, vigiá-lo, agir sobre

ele, controlando-o.

Desse modo, os saberes necessários à prática docente que

atravessam tanto as provas como o formulário-ata restringem-se à

vigilância, propõem um profissional que faz ver em cada indivíduo

corpos dóceis, ou problemáticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sobrevalorização dos instrumentos de avaliação na atualidade

moveu-nos a produzir esse encontro entre reflexões sobre prova de

seleção ao magistério e formulário-ata de conselho de classe. Trata-

se de materiais aparentemente muito distintos, no entanto, integram

uma maquinaria que põe em funcionamento controles e distinções no

cotidiano escolar.

A partir do encontro entre os referenciais de autores como

Bakhtin e Foucault, percorremos algumas pistas para a construção de

imagens de professor e observação de um exercício de poder que age

por recompensa e sanção. Uma pista dessa convergência é o

privilégio aos saberes enciclopédicos. No caso dos formulários, esses

saberes não são explicitados, mas é possível pressupor a importância

conferida a eles através do destaque dado aos resultados obtidos

pelos alunos. Outro aspecto importante desse privilégio aos saberes

enciclopédicos é a dinâmica que impõe às experiências concretas. Nas

provas, há um silenciamento de tais experiências. Já no formulário-

ata, estas aparecem secundarizadas, quando se refere aos alunos que

125 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

teriam se destacado ―pela participação, independente da nota‖. A

participação aparece como concessão àqueles que não atenderam à

performance esperada.

Outra questão instigante nas análises refere-se às imagens de

trabalhador-docente que se produzem a partir das relações de poder-

saber que atravessam tais discursos. As imagens de professor-

detento e professor-carcereiro pretendem dar visibilidade a um modo

de operar da disciplina, que nos fala de uma complexa economia de

exercício do poder. Não há como exercer poder sem se submeter às

suas amarras.

Que resposta poderíamos oferecer à sobrevalorização dos

instrumentos de avaliação como ―solução‖ para a melhoria da

qualidade da Educação? Indicamos que a excessiva valorização dos

conhecimentos formais e enciclopédicos dá visibilidade à escola como

instituição de seleção e hierarquização de saberes. Apaga-se a

ancoragem sócio-histórica e o caráter circunstancial próprio a todos

os saberes.

No modelo de educação assentado na performance do aluno (e

do professor), o destaque conferido aos resultados, medidos a partir

de instrumentos que avaliariam o grau de saberes acumulados por

cada um evidencia a aprendizagem como atividade individual,

fazendo das experiências coletivas, inscritas em situações concretas,

realidades descartáveis. Ou seja, o sentido de qualidade assumido

por tais propostas apenas reforça o que já se sabe há muito na

escola. Trata-se de consideração a relação com o conhecimento como

mera transmissão/aquisição de informação. Os índices alcançados

apenas indicam maior quantidade de informações adquiridas,

atingem-se os patamares previstos pelas próprias avaliações. O

movimento gerado é fundamentalmente o de controle e o de

interlegitimação, como vimos sustentando ao longo do artigo.

Nesse cenário, quais seriam os desafios colocados para a

formação de professores? Enfatiza-se a procura por cursos de

126 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

formação continuada, por metodologias de reforço das informações a

serem adquiridas por cada série. Se não é a legitimidade desses

cursos que colocamos em questão, o que nos interessa interrogar é a

compreensão do cotidiano como mero espaço-tempo de aplicação

desses saberes. A nosso ver, trata-se, antes, de confronto,

readequação, criação de outros modos de lidar com esses saberes,

valorizando a prática profissional como momento de

elaboração/criação de um caminho singular com o saber, em vez de

tratar-se apenas de reprodução de um ―já aprendido‖. Desse modo,

nossas reflexões poderiam indicar elementos para formação de

professores priorizando o cotidiano da prática profissional como fonte

de saberes. Se o que ganha destaque com as políticas públicas em

vigor é um concepção de cotidiano como espaço-tempo de execução

de metas e aplicação de conteúdos aprendidos fora dele, o que

pretendemos é ressignificar as fronteiras entre o que precede a

prática profissional e o que se realiza no cotidiano de trabalho.

Apenas cumprir metas pode nos impor uma dinâmica arriscada de

aprisionamento aos dispositivos de controle, em que o que se perde é

exatamente um caminho singular com o conhecimento. A ênfase

conferida às avaliações acaba por desqualificar os saberes oriundos

das experiências concretas, uma vez que, como vimos indicando,

restringe os sentidos de ―qualidade‖ a alcançar os patamares

propostos por esses próprios instrumentos. Pensar a formação de

professores na atualidade passa por questionar a limitação do tom

atribuído às avaliações de desempenho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. de Maria Ermantina

Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

DALBEN, A. I. L. de F. (Org.). Avaliação da implementação do

projeto político pedagógico Escola Plural. Belo Horizonte: UFMG/FAE/GAME, 2000.

127 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

DELEUZE, G. Conversações.Trad. de Peter Pál Pelbart. São Paulo:

Ed. 34, 2006.

______. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1998.

FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Trad. de Roberto

Machado e Eduardo Morais. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2005.

______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. de Raquel

Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2004.

______. Em defesa da sociedade. Trad. de Maria Ermantina

Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GIORGI, M. C. Seleção para a rede pública estadual de ensino: o

que se espera do professor de língua estrangeira? Dissertação

(Mestrado em Letras), Instituto de Letras, UERJ, Rio de Janeiro, 2005.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Trad. de

Cecília Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001.

MANCEBO, D.; ROCHA, M. L. ―Avaliação na Educação Superior e

trabalho docente‖. In: Interações. São Paulo, v. VII, n. 013, 2002, p. 55-75.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.

ROCHA, D; DAHER, M. del C. F. G.; SANT‘ANNA, V. L. de A. ―Produtividade das investigações dos discursos sobre o trabalho‖ In:

FAÏTA, D.; SOUZA-e-SILVA, M. C. P. de. (org.) Linguagem e

Trabalho: construção de objetos de análise no Brasil e na França. São Paulo: Cortez, 2002.

ROCHA, M. L. da. ―Educação e Saúde: coletivização das ações e

gestão participativa‖ In: MACIEL, I. (org.) Psicologia e Educação:

novos caminhos para a formação. São Paulo: Ciência Moderna, 2001

VIVONI, R. 2003. Interlocução seletiva: análise de provas para

seleção de docentes – A construção do perfil do profissional

professor. Dissertação (Mestrado em Letras), Instituto de Letras, Rio

de Janeiro.

128 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

A LIÇÃO DE BARTHES: A ARGUMENTAÇÃO

EM SERMÃO DA SEXAGÉSIMA:

BREVE ANÁLISE.

PIRES, Elisa Tavares 10

INTRODUÇÃO

Um sermão é um texto em prosa, um discurso importante,

objetivando a propaganda e a edificação religiosa e, exatamente por

isso, elaborado de maneira demorada. Conforme Almeida, essa

modalidade literária faz parte da oratória, isto é, a arte do bem dizer

―empreendendo os recursos verbais com o objetivo de ensinar,

persuadir e comover.‖ (ALMEIDA, 2008, p.9)

Alguns teóricos classificam as peças de oratória em quatro

tipos: (1) acadêmico, constituído por agrados ou homenagens,

também chamado de panegírico; (2) judiciário, aquele que acusa ou

defende; (3) político, que trata de questões públicas; e (4) religioso,

cuja função é discutir dogmas com vistas a suscitar nos ouvintes

devoção a estes mesmos dogmas. A oratória de caráter religioso

compõe-se de textos que podem ser subclassificados e acordo com

sua função: a homilia, que é a explicação de um tema ou de uma

passagem evangélica; o panegírico, que é uma oração de louvor; a

oração fúnebre; e, por fim, nosso objeto do estudo, o sermão,

também chamado de prédica. Geralmente o discurso oratório

composto pelas seguintes partes: a) exórdio ou princípio; b)

desenvolvimento; c) peroração; d) conclusão ou epílogo.

Sermão vem do latim, sermone, e originariamente significa

conversação. O significado do termo evoluiu para um discurso

religioso, pregado geralmente no púlpito. Chama-se prédica porque

se desenvolve a partir de um conceito predicável, ou seja, que é

10 Especialista em Língua Portuguesa, formada pela UERJ. Mestranda em

Língua Portuguesa, na UERJ, sob a orientação da professora doutora Vania

Dutra - (UFF-UERJ). Membro do Grupo de Pesquisa SELEPROT.

129 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

possível de ser pregado. Esse conceito predicável é um texto bíblico

que o orador comenta de acordo com o tema e as teses que se

propõe a desenvolver. Ainda de acordo com Almeida,

O discurso de Vieira, normalmente proferido do

púlpito, a partir do texto bíblico, pretende conter a

verdade de uma tradição compartilhada. Exemplo

de sedução e argumentação, de um árduo e incessante trabalho com a linguagem, o sermão -

veículo dotado de regras próprias, com

reconhecida tradição - dirige-se a um auditório

particular, numa circunstância conjuntural precisa, em determinada situação. (ALMEIDA 2009, p.9).

Sob esse ângulo, pautamo-nos na premissa de que é

simplesmente impossível entender a ação de Padre Antonio Vieira se

não estivermos ambientados em seu contexto histórico. Assim, é

preciso estabelecer os vínculos necessários entre o momento em que

o texto foi produzido e a construção de seus sentidos. A escolha d‘Os

Sermões – especificamente o da Sexagésima - se deve ao fato destes

serem considerados as obras primas do estilo de Vieira, além de

serem o melhor exemplo do barroco conceptista, nos quais o autor

trabalha diferentes ideias e conceitos, produzindo uma prosa com

períodos construídos de uma maneira extremamente trabalhada,

como é possível perceber mesmo em uma breve leitura do sermão. É

preciso notar que Vieira era muito seguro de seu discurso e que o

tecia utilizando outros textos - bíblicos e teológicos - para legitimar

sua fala, mesclando-os, em alguns momentos pertinentes, para

validar seus argumentos e garantir que sua intenção fosse cumprida.

Vejamos, então, quem foi Padre Antonio Vieira. Nascido em

Lisboa em 1608, Vieira veio para o Brasil ainda criança, em 1615,

instalando-se com a família em Salvador. Seu destino na Bahia foi o

Colégio dos Padres Jesuítas. De acordo com Clóvis Bulcão em seu

livro Padre Antônio Vieira – um esboço biográfico, nos primeiros anos,

por mais que se dedicasse, era um aluno apenas mediano, sem

130 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

conseguir um bom rendimento (BULCÃO, 2008, p.27). Em

determinado momento, porém, ainda de acordo com o historiador,

após um estalo, seguido de uma forte dor de cabeça, Vieira tornou-se

um dos estudantes mais capazes do colégio. Com o sucesso

acadêmico, veio a vontade de entrar para a Companhia de Jesus.

Toda a obra de Vieira, seus planos e sua visão política se

baseavam na Bíblia. Ainda de acordo com Bulcão, na época da

restauração portuguesa com D. João IV, em 1640, partiu da Bahia

para Portugal e durante 13 anos atuou como uma espécie de ministro

de extrema confiança junto a El-Rei, tendo desempenhado diversas

funções políticas e diplomáticas na Europa.

Quando vai morar em Portugal, em 1641, Vieira torna-se

extremamente popular. As igrejas em que pregava ficavam lotadas, e

as pessoas extasiavam-se com seus sermões. Porém, desgostoso do

rumo político que Portugal havia tomado regressa ao Brasil alguns

anos mais tarde.

O Sermão da Sexagésima, portanto, foi pregado na Capela Real

de Lisboa, em 1655, a um auditório constituído em sua maioria por

pregadores dominicanos, adversários filosóficos dos pregadores

jesuítas. O objetivo principal do sermão era, portanto, atingir os

provisores do Santo Ofício, que tanto perseguiam o próprio Vieira, e

eram pregadores de estilo rebuscado complexo, o que dificultava o

entendimento por parte dos ouvintes.

A referência procede. Sabe-se que o Barroco tinha como missão

expandir a fé cristã católica e repreender todo tipo de heresia. Dessa

forma, esperava-se que os pregadores fossem capazes de ensinar e

converter as pessoas. Entretanto, o que estava acontecendo não era

isso. A verdadeira finalidade a que se destinava a pregação, isto é,

admoestar, ensinar e converter as pessoas, vinha desvirtuando-se do

púlpito para uma manifestação exterior e mais festiva de culto.

É preciso perceber que, na época, em Portugal, em pleno

apogeu do Barroco, o sermão religioso se havia tornado um dos

131 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

maiores espetáculos artísticos e literários, constituindo-se ―uma

atividade especial no quadro das atividades religiosas‖ (CARVALHO,

2000, p.18)

Convivendo com a cultura artística do Barroco, o trabalho de

Vieira não poderia deixar de apresentar marcas deste estilo de época,

embora com traços bastante peculiares. O que é necessário perceber

é que, no Sermão da Sexagésima, Vieira critica os exageros do

Barroco e os culpa pelo insucesso das prédicas, afirmando que a

responsabilidade pela não frutificação da palavra de Deus está

também nos pregadores presos à forma e ao estilo rebuscado e de

difícil compreensão; nos que não pregam com o uso da razão e dos

exemplos; e nos que privilegiam a vaidade ao arrazoamento no uso

da palavra.

Partindo desse fato, objetivamos abordar as questões

argumentativas nos sermões de Padre Antonio Vieira, em específico

no Sermão da Sexagésima, os quais, mais que textos pertencentes à

literatura, têm caráter explicitamente argumentativo, com objetivos

claros de convencimento de seus interlocutores. A motivação inicial

deste trabalho foi um estudo inicial da produção verbal de Vieira, que

permitiu perceber em suas escolhas gramaticais, não apenas

objetivos claros, mas também abundância de estratégias

argumentativas destinadas ao convencimento de seu interlocutor (ou

se seus auditórios). Além disso, intencionamos fazer do texto literário

um objeto de análise linguística na escola. Pensamos ser útil analisar

trechos juntamente aos alunos, para mostrar-lhes como estão

dispostas algumas marcas linguísticas da argumentação e ensinar-

lhes a utilizá-las em seus próprios textos.

Percebendo a riqueza de sua obra e o campo fértil para

estudarmos as premissas da argumentação, analisaremos, pois,

neste trabalho, a prédica de Antonio Vieira pelo esquema proposto

por Ingedore Koch, presente no livro Argumentação e Linguagem

(2002), tendo como objetivo principal o estudo do sermão fora do

132 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

contexto das aulas de literatura, mostrando que um texto – mesmo

literário – com estrutura argumentativa plena, clara, de fácil

decomposição em seus elementos formantes, serve como exemplar

de estratégias de persuasão para os alunos do Ensino Médio.

2. QUADRO TEÓRICO

Trabalhar com a linguagem, cujo estudo exige um horizonte

capaz de produzir sentido e não somente uma simples descrição de

um fenômeno empírico é considerar que essa não é transparente.

Mais que significados, as palavras têm utilizações. O significado de

um signo ―depende das relações entre as diferentes partes dos

enunciados e essas relações são determinadas pela estrutura do

sistema da Língua‖ (Collado 1980: 70).

O texto argumentativo, pela natureza dos fins a que serve, tem

como objetivo conseguir a adesão do enunciatário à tese do

enunciador. A sua eficácia, consequentemente, depende da adoção,

por parte do enunciador, de uma estratégia argumentativa adequada

ao conteúdo selecionado e às características biopsicossociais do

enunciatário.

De acordo com Koch (2002, p.19), ―o ato de argumentar, isto

é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões,

constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer

discurso subjaz uma ideologia‖. A neutralidade não existe de fato,

pois mesmo aquele discurso que se pretende neutro já contém a sua

ideologia.

Assim, conforme Orlandi, compreender um texto não é

simplesmente decodificar frases: é passar de uma sucessividade a

um todo de sentido, coesivo e coerente (1996).

A interação social por intermédio da língua caracteriza-se pela

argumentatividade. Koch, (2002ª, p.10) defende a proposta de

Perelman (1970) de que o ato linguístico fundamental é o ato de

133 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

argumentar. Para a autora, ―o ato de argumentar é visto como o ato

de persuadir que procura atingir a vontade, envolvendo a

subjetividade, os sentimentos, (...) buscando adesão e não criando

certezas‖ (grifo da autora). De acordo com Perelman, enquanto o ato

de convencer se dirige somente à razão por meio de provas

objetivas, o ato de persuadir procura atingir a vontade dos

interlocutores, por meio de argumentos plausíveis, e tem caráter

―ideológico, subjetivo, temporal, dirigindo-se, pois, a um ‗auditório

particular‘‖(KOCH 2002ª, p.20). Enquanto o primeiro leva a certezas,

o segundo conduz o auditório à adesão dos argumentos a partir das

inferências.

2.1 ARGUMENTAÇÃO

A argumentação se desenvolve em função de um destinatário,

que influencia direta ou indiretamente a forma como evoluem os

argumentos propostos. Argumentamos para persuadir alguém que, à

partida, não partilha os mesmos pontos de vista ou as mesmas

convicções que nós possuímos. Sem ferir a atenção do destinatário

da argumentação, isto é, sem fazer com que o interlocutor tenha a

sua atenção voltada para o assunto tratado, a persuasão jamais

poderá ser efetiva.

Segundo Koch, a enunciação faz-se presente no enunciado por

diversas marcas; e seria por meio delas que se chegaria ao alvo para

o qual esse enunciado aponta. Não bastaria conhecer o significado

literal das palavras: seria preciso reconhecer os seus empregos

possíveis, que podem variar de acordo com as intenções do falante e

as condições em que o discurso foi produzido.

A ideologia transita entre os espaços da enunciação e da

interação de modo que, no momento da enunciação, serão impressos

na mensagem os princípios ideológicos que regem determinado

veículo, e, no momento que o interlocutor receber a mensagem, ela

134 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

será interpretada segundo os preceitos por ele aceitos. Assim, ―por

meio do discurso – ação verbal dotada de intencionalidade – tenta

influir sobre o comportamento do outro ou fazer com que compartilhe

determinadas opiniões‖ (KOCH, 2002, p.19).

Partindo então, do postulado de que a argumentação é inerente

ao uso da linguagem, pode-se adotar as ideias de que argumentar

constitui a atividade que estrutura todo e qualquer discurso e de que

toda a atividade de interpretação presente no cotidiano da linguagem

fundamentar-se-ia na suposição de que quem fala tem determinadas

intenções ao comunicar-se (KOCH, 2002ª, p.24). Ora, se está

presente em ―todo e qualquer discurso‖, pode também ser

encontrada em um texto que é supostamente apenas literário.

Entendendo que os sermões do padre Antonio Vieira possuem

objetivos claros de convencimento de um auditório, tomamos como

base para o Sermão da Sexagésima o esquema de análise de textos

também proposto por Koch em seu livro ―Argumentação e

Linguagem‖, no qual a autora faz um sumário das categorias

analíticas utilizadas nas análises textuais. São duas: recursos

argumentativos presentes no nível linguístico fundamental e recursos

retóricos ou estilísticos de segundo nível.

Ao observarmos o Sermão da Sexagésima, pudemos perceber

que este poderia ser analisado por todas as categorias descritas por

Koch, todavia recortamos nossa análise fixando-nos nos operadores

argumentativos. Os operadores argumentativos são, de acordo com

Koch, certos elementos da língua, explícitos na própria estrutura

gramatical da frase, cuja finalidade é a de indicar a

argumentatividade dos enunciados. Introduzem variados tipos de

argumentos. As palavras que funcionam como operadores

argumentativos são os conectivos, os advérbios e outras palavras

que, dependendo do contexto, não se enquadram em nenhuma das

dez categorias conhecidas pela tradição gramatical.

135 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Ocorre que o estudo da obra de Vieira acabou restrito ao

universo acadêmico e, mesmo assim, de forma fragmentada. Seus

textos ficaram aprisionados nos altos estudos de literatura e filosofia,

e nos colégios pouco se explora tão vasto acervo. Quando Pe. Antonio

Vieira é apresentado aos estudantes do Ensino Médio, normalmente

mostram-se um ou dois trechos do Sermão da Sexagésima para

ilustrar a prosa barroca.

Se, porém, por um lado nos é claro que esse Sermão é um

excelente exemplo do conceptismo barroco, por outro, é um grave

reducionismo reduzi-lo a apenas isso. Apesar de ser um texto

analisado apenas literariamente pelas escolas, pode e deve ser

explorado pelo viés das estratégias argumentativas. O tratamento

literário exclusivo dado aos textos parece buscar uma autonomia para

a literatura a qual dispensaria o conhecimento da língua, não se

recordando de que a matéria-prima da literatura é a língua e de que

textos como o de Vieira podem ser fontes de ricos estudos da

potencialidade expressiva do Português. Embora seja necessário

distinguir a estrutura de uma peça oratória, destinada a ser falada,

de um texto argumentativo escrito para ser lido quase sempre

silenciosamente, há uma estrutura de base que se mantém,

organizada dialeticamente em três componentes fundamentais: tese,

antítese e síntese.

No plano geral, de acordo com Guimarães, a argumentação é

vista como a busca da persuasão de um auditório pelo locutor. Ou

seja, o texto é ―um efeito ideológico da posição do autor‖

(GUIMARÃES, 2007, p.14).

Segundo Ducrot, (GUIMARÃES 2007, p.25) os textos são

orientados argumentativamente. Isso quer dizer que orientar

argumentativamente com um enunciado X é apresentar seu conteúdo

A como devendo conduzir o interlocutor a concluir C. Ou seja, é

apresentar A como uma razão para se crer em C. Tal esquema fica

claro se observarmos como são construídas as estratégias

136 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

argumentativas que conduzem o leitor à conclusão esperada por

Vieira no sermão da Sexagésima.

De acordo com Guaranha (2003), Vieira acredita que o texto

bíblico, por ter sido inspirado por Deus, é a prefiguração de todas as

verdades. Para ele, cada fragmento da Bíblia contém um mistério a

ser decifrado. Para isso, o orador desenvolve procedimentos de

análise textual. Por meio desses procedimentos, o orador deveria

levantar os mistérios contidos nessas particularidades com engenho,

partindo dos pressupostos de que há uma relação não convencional

entre a palavra e a coisa significada e que ela contém um mistério

que precisa ser decifrado; a essência de todas as coisas está contida

em sua definição e a reflexão consiste em tornar explícitos os

atributos contidos nessa definição.

Apesar de ser um texto explorado – ainda assim aquém das

possibilidades que oferece – apenas nas aulas de literatura, está claro

que o Sermão da Sexagésima tem como objetivo convencer um

público específico de que a palavra de Deus não frutifica por culpa

dos pregadores. É a partir dessa premissa que pensamos ser profícuo

o trabalho de análise de algumas de suas partes em sala de aula. Ao

explorar o texto, percebendo como foi trilhado o caminho do autor

em direção ao interlocutor por meio das relações linguísticas, o aluno

poderá ver, com mais clareza, como se constrói um texto

argumentativo e, a partir disso, estar mais consciente das estratégias

que ele mesmo utilizará quando for escrever o seu próprio texto.

3. O SERMÃO DA SEXAGÉSIMA

Qualquer ato de enunciação ocorre dentro de um quadro de

condições, tais como: a) é realizado por um enunciador, condicionado

biopsicossocialmente, movido por uma ou mais intenções; b)

acontece em um contexto histórico definido e em determinado lugar;

c) refere-se a um mundo (ou a aspectos do mundo) objetivo ou

137 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

subjetivo, representado por uma língua e pelos elementos da

situação em que se realiza a enunciação; d) dirige-se a um ou mais

enunciatários, igualmente condicionados às condições de produção do

discurso.

A habilidade que um enunciador tiver para explorar as

virtualidades argumentativas desses constituintes da enunciação,

certamente contribuirá para a eficácia de sua produção textual. Ao

lermos os sermões, percebemos que Vieira era exímio conhecedor de

sua língua. Parte disso se deve a sua formação intelectual jesuítica, a

qual fez com que ele percebesse que a palavra pode proporcionar e

conter muito mais do que aquilo que ela expõe. Por meio desse

conhecimento, Vieira tecia seus textos de uma forma magistral,

conduzindo seus ouvintes às conclusões a que queria que chegassem.

O sermão, como texto argumentativo, tem como objetivo levar

seus interlocutores a determinados tipos de comportamento, atuando

sobre eles de maneira incisiva no que concerne à fecundidade das

palavras proferidas. Para tanto, como visto, serve-se o orador da

estrutura da argumentação formal, composta basicamente de quatro

partes: proposição (parte I); análise da proposição (partes II, III,

IV); formulação dos argumentos, ou seja, a evidência (partes V, VI,

VII, VIII); e conclusão (partes IX e X).

Está claro, então, que o Sermão da Sexagésima tem como

objetivo convencer um público específico de que a palavra de Deus

não frutifica por culpa dos pregadores, além de levar seus

interlocutores a determinados tipos de comportamento, atuando

sobre eles de maneira incisiva no que concerne à fecundidade das

palavras proferidas. Nele, o Padre Vieira apresenta sua visão da

pregação religiosa, adaptando a seus propósitos muitas das doutrinas

dos grandes retóricos da Antiguidade Clássica, como Aristóteles e

Cícero, bem como da retórica medieval. A sua concepção de pregação

religiosa está nele articulada com detalhes.

138 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Sexagésima é considerado seu mais importante sermão: uma

crítica monumental ao estilo barroco, sobretudo ao Cultismo. Como

foi pregado na Capela Real, em Portugal, podemos concluir que, o

auditório era particular, composto por católicos da nobreza

portuguesa da época. Vieira procura se aproximar do auditório

dirigindo-lhe perguntas que ele mesmo, o autor, responde. O autor

procurou no sermão a adesão do auditório à sua tese principal de

que, se não havia conversões em massa ao catolicismo na sua época,

isso ocorria por culpa dos pregadores de então. Após a apresentação

da primeira parte do sermão, o exórdio, tem-se o significado do título

e a contextualização da Sexagésima: o domingo no qual foi pregado

era, segundo o calendário litúrgico católico em vigor até o Concílio

Vaticano II, o penúltimo domingo antes da quaresma ou,

aproximadamente, o sexagésimo dia antes da Páscoa.

Ao analisarmos o Sermão da Sexagésima, percebemos Vieira

como grande usuário de seu aparato linguístico, em prol da

conversão, não só dos gentios, mas também dos próprios pregadores

de seu tempo. Ao proferir um sermão metalinguístico, Vieira propõe

que a arte de pregar deve ter como objetivo principal a semeadura e

a colheita, a persuasão, o convencimento, a salvação das almas. A

escolha cuidadosa de termos e a explicação minuciosa de tais

escolhas nos apresentam um exímio orador, de linguagem clara,

porém extremamente fervoroso, que tinha na palavra de Deus sua

matéria prima. Nele, o projeto político não era dissociado do religioso,

e a palavra era o principal instrumento para a concretização desse

propósito. ―A palavra é divina e Deus está na palavra‖ (CARVALHO

2000, p.131).

Vieira serve-se da estrutura da argumentação formal, composta

basicamente de quatro partes: proposição; análise da proposição;

formulação dos argumentos, ou seja, evidência; e conclusão.

Estrutura essa que deve estar presente em todo texto argumentativo,

inclusive nos textos dos alunos, os quais, muitas vezes, não a

139 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

utilizam de maneira correta, muito provavelmente porque não se

familializaram com ela.

O tema do Sermão da Sexagésima é a ―Parábola do

semeador‖, tirada do Evangelho segundo São Lucas: Semen est

verbum Dei. Neste sermão, o Padre Vieira usa de uma metáfora:

pregar é como semear. Traçando paralelos entre a parábola bíblica

sobre o semeador que semeou nas pedras, nos espinhos (onde o

trigo frutificou e morreu), na estrada (onde não frutificou) e na terra

(que deu frutos), Vieira critica o estilo de outros pregadores

contemporâneos seus, que pregavam mal, sobre vários assuntos ao

mesmo tempo (o que, para ele, resultava em pregar sobre nenhum),

ineficazmente e agradavam aos homens ao invés de pregar servindo

a Deus.

Assim se apresenta a parábola do semeador, com suas divisões

em forma de alegorias, conforme foi reproduzido por Vieira no

Sermão:

Lugar onde

caiu a

semente

Tipos de corações Destino da palavra

Pedras Duros, obstinados Seca por não ter raízes

Caminho Inquietos, ansiosos,

perturbados

É pisada, desprezada, não

lhe dão atenção

Espinhos Embaraçados com os

cuidados e os

prazeres do mundo,

riquezas

É sufocada pelos espinhos

Terra boa Bons Frutifica

140 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Vieira estava interessando em saber o motivo de a pregação

católica estar surtindo pouco efeito entre os cristãos. Sendo a palavra

de Deus tão eficaz e tão poderosa, pergunta ele, como vemos tão

pouco fruto da palavra de Deus? Depois de muito argumentar, conclui

que a culpa é dos próprios padres. Eles pregam palavras de Deus,

mas não pregam a palavra de Deus, afirma.

Ao observarmos mais atentamente, iremos perceber a

existência de uma interlocução inerente ao sermão; isso está ligado

ao fato de que ele – como todo texto argumentativo – visa a uma

mudança, aspira a criar ou a aumentar o assentimento da plateia à

tese proposta. O persuadido, ao dar seu assentimento, muda de

atitude, modifica seus valores. E essa mudança está diretamente

relacionada à ação. Todo o discurso do jesuíta português está

centrado no leitor e no auditório e, em última instância, volta-se para

o exercício de convencer o ouvinte a adotar a doutrina pregada. Não

por acaso, o interlocutor é aquele que deve captar uma verdade

absoluta, impessoal, universal, acima de quaisquer circunstâncias. E

mais: para conhecer o mundo, é preciso conhecer o texto divino

porque o mundo profano é um conjunto enigmático e duro. A chave

para a correta decifração do mundo, para ele, está na leitura da

Bíblia, e esta só pode ser efetuada de maneira clara e certeira pelo

sacerdote, apoiado no Magistério da Igreja.

Cabe aqui voltarmos ao objetivo principal: mostrar ao aluno

que um texto literário pode ser argumentativo e, por meio dessa

análise ensiná-lo a construir o seu próprio texto, tomando como

exemplo as estruturas argumentativas utilizadas nos textos

estudados. Dessa forma, a análise de trechos do sermão em sala de

aula seria extremamente proveitosa.

Citemos, por exemplo, o trecho em que Padre Antônio Vieira,

ensina que ―o sermão há de ser duma só cor, há de ter um só objeto,

um só assunto, uma só matéria‖.

141 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Há-de tomar o pregador uma só matéria; há-de

defini-la, para que se conheça; há-de dividi-la,

para que se distinga; há-de prová-la com a Escritura; há-de declará-la com a razão; há-de

confirmá-la com o exemplo; há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as

circunstâncias, com as conveniências que se hão-

de seguir, com os inconvenientes que se devem

evitar; há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades; há-de impugnar e

refutar com toda a força da eloquência os

argumentos contrários; e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de

persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é

pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.

(VIEIRA, 2008, p.15)

É a regra da unidade do discurso persuasivo, presente em todo

texto argumentativo eficaz. Ao fazermos com que nosso aluno

perceba que também o texto dele deve versar um só assunto, o qual

deve ser fundamentado em argumentos consistentes, a coerência de

sua redação teria uma considerável melhora.

4. ANÁLISE DE TRECHOS

No Exórdio (parte I), apoiado em uma proposição bíblica, tida

como inquestionável, o pregador compara o seu trabalho ao do

semeador bíblico, utilizando a metáfora de que a semente lançada é a

palavra de Deus. Ressalte-se aqui que Vieira parte do pressuposto de

que seu auditório compartilha com ele a crença de que a Bíblia é a

Palavra Divina, sendo, portanto, não passível de ser posta em dúvida.

É por isso que o sermão pode ser nela fundamentado:

“Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o

pregador evangélico a semear» a palavra divina. Bem parece este

texto dos livros de Deus.‖ (p.1)

A seguir, ele analisa a proposição. Ele deixa claro que, para

Cristo, tão importante quanto o ato de semear era o ato de sair e que

142 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

os pregadores serão julgados tanto pelos passos que deram quanto

pela semeadura. Observe:

―Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo

que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque

os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e

propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem.‖ (p.2)

Nesse momento, o padre começa a formular a argumentação,

apoiado nos dois verbos – sair e semear – citados na Bíblia. A partir

de então, o orador passa a estabelecer vínculo direto do texto bíblico

com a realidade, por meio de comparações.

―Entre os semeadores do Evangelho, há uns que saem a

semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são

os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem

sair são os que se contentam com pregar na pátria.‖

Servindo-se de um fato de seu tempo, Vieira consegue mostrar

ao seu auditório as palavras de Cristo. Diz ainda que todas as

criaturas se armaram contra a empreitada do semeador – as pedras,

os espinhos, as árvores e os homens – e que ele próprio havia

encontrado a mesma resistência. Entenda-se aqui ―resistência‖ como

a Inquisição e os colonos do Maranhão, tendo Vieira empreendido

uma luta contra ambos. Mais uma vez, ele atesta a validade da

parábola servindo-se de um exemplo concreto, mas que fica

subentendido no sermão. Vieira não explicita sua própria luta, parte

do pressuposto de que seu auditório sabe o que ele enfrentou. E

confirma sua tese utilizando um fato real, acontecido com ele mesmo.

Na primeira parte do sermão, Vieira (2008) compara o pregar

dos dominicanos que ―semeiam sem sair (...) com mais paço‖ com o

dos jesuítas que ―saem a semear (...) com mais passos‖. A utilização

das palavras homófonas ―paço‖ e ―passo‖ cria um efeito estilístico

que deixa clara a opinião do autor sobre os pregadores do estilo

rebuscado. Lembremo-nos aqui que este sermão foi proferido

oralmente, o que deu mais vivacidade ao jogo de palavras. Enquanto

143 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

os dominicanos se fechavam no palácio, os jesuítas saiam pelo

mundo a pregar a palavra, o que condizia com o que Cristo pregou:

―ide e pregai a toda a criatura‖.

Na sentença ―Os (pregadores) de cá (Portugal), achar-vos-ei

com mais passos; os de lá, com mais paços: Exiit seminare‖, além do

conteúdo explícito, os pressupostos são: os Jesuítas se dispunham a

sair de seu país e pregar o evangelho ―a toda criatura‖, e aqueles

que ficavam, os dominicanos, não seriam merecedores, como os

Jesuítas, de maior recompensa por parte de Deus. Note que, no

final, o orador resume a proposição aos dois verbos: sair e semear.

Como verbo indica ação, fica patente o pragmatismo contido no

ideário de Vieira: a maior recompensa caberá a quem praticar mais

ações.

É preciso notar o uso frequente das perguntas retóricas, as

quais encaminham o leitor para a resposta pretendida pelo autor.

Resposta essa que pode ser completamente diferente da expectativa

criada no auditório pelas perguntas do orador. O sermão da

sexagésima questiona o porquê de as palavras dos pregadores não

frutificarem. Ele pergunta ―por que hoje não se converte ninguém‖

(p.19). A pergunta não abre espaço para respostas negativas: é o

pressuposto da afirmação. Poderia ser convertida em ―hoje não se

converte ninguém‖. Parte-se então da afirmação de que a palavra

não frutifica por três possíveis causas, indicadas na terceira parte do

sermão: Deus, o ouvinte e os próprios pregadores. Ao fazer

perguntas supondo que as causas da falha seriam Deus e os

ouvintes, o pregador conduz seu público a uma conclusão, fazendo

com que pensem ser esses verdadeiramente os fatores responsáveis

pela falha dos sermões. Entretanto, ele mesmo prova que tais causas

não seriam os motivadores do não frutificar.

A partir daí, ele trabalha pela exclusão. Deus não falha, isso é

um dogma de fé, uma proposição inquestionável, que tanto ele

quanto seus interlocutores partilham. ―Primeiramente, por parte de

144 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Deus, não falta nem pode faltar‖. Afirmando isso, passa para a

próxima proposição, dizendo que os pregadores deitam a culpa nos

ouvintes. Vieira contra-argumenta e prova seu ponto de vista, mais

uma vez, tomando como base o Evangelho. O trigo caiu entre

espinhos, pedras e no meio do caminho. Nos espinhos, afogou-se;

nas pedras, secou-se; à beira do caminho, foi pisado. ―Isto é o que

diz Cristo; mas notai o que não diz‖. Ao chamar atenção dos ouvintes

para aquilo que Cristo não disse, mas está implícito em sua fala,

Vieira utiliza um recurso argumentativo (manobra argumentativa)

que apresenta como se fosse pressuposto justamente aquilo que se

está querendo veicular como informação nova. Essa informação seria

que o trigo nunca deixou de frutificar por falta de sol ou chuva, ou

seja, por culpa do céu. O trigo não frutifica pela dureza do caminho

ou pela frieza das pedras. Mesmo assim, ele nota que o trigo, apesar

de não frutificar, nasceu. ―Nasceu até nos espinhos (...); nasceu até

nas pedras.‖ Analogamente, a palavra também nascerá em qualquer

coração em que cair. Infere-se, então, que a culpa não pode ser dos

ouvintes, mesmo daqueles que possuem um coração infértil. Perceba-

se aqui o ―até‖, um operador discursivo que seleciona o argumento

mais forte da escala orientada para a conclusão. No caso, para Vieira,

o fato de a palavra nascer sempre, comprovando que a culpa não

pode ser nem do ouvinte nem de Deus.

É interessante notar que, neste ponto do sermão, os ouvintes

chegam à mesma conclusão que Vieira, de forma bastante natural,

consequência da construção primorosa dos argumentos do locutor.

Eliminando Deus e os ouvintes como os responsáveis por essa

falha, o padre conclui que a culpa é, então, dos pregadores e disso,

ele não se exime.

145 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra

de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios

hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por

indisposição dos ouvintes. Supostas estas duas demonstrações; suposto

que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus,

nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por

parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a

palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não

faz fruto a palavra de Deus? -- Por culpa nossa. (p.19)

Como já apontou Fiorin , o uso do nós faz com que o eu se

dilua, evitando o realce da subjetividade do enunciador. A escolha do

pronome seria uma posição ―coletiva e assumida por alguém que se

coloca como seu porta-voz, mas também como seu participante‖.

(FIORIN, 1996, p.97)

O se é um operador de coordenação semântica, que introduz

um novo ato de enunciação. A utilização do ―se‖, em ―se a palavra de

Deus‖, faz com que a proposição possua valor concessivo. Pode-se

entender se é verdade que NEM Deus NEM os ouvintes têm culpa,

então a culpa SÓ pode ser dos pregadores. No caso, o ―se‖ aponta

para a falsidade da proposição antes apresentada, que dizia ser a

culpa dos ouvintes ou de Deus. Note-se no trecho acima a utilização

do ―nem‖, um operador argumentativo que soma argumentos a favor

de uma mesma conclusão. Nesse caso, o fato de que Deus é infalível

e de que não são os ouvintes os culpados. Ao dizer que é uma

―consequência clara‖, e afirmando categoricamente que ―assim é‖,

Vieira não abre espaço para deduções do público, validando de

antemão a conclusão a que chegará o orador.

Concluindo que a culpa é do pregador, em certo ponto de sua

análise, Vieira passa a argumentar tentando encontrar a melhor

resposta para o questionamento sobre o porquê isso aconteceria, pois

os pregadores estavam falando palavras de Deus. Começa então a

examinar as causas dessa culpa, sempre terminando suas indagações

146 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

com a estrutura ―boa razão é também esta‖. Interessante perceber

que a repetição dessa estrutura ao final de cada proposição mostra

que a ineficiência está para além das questões elencadas. Essas

parecem ser uma boa razão, mas não são suficientes para a

conclusão. Mais uma vez o pregador conduz seus ouvintes a

conclusões que serão desmentidas por ele ao longo do texto.

Finalmente, ele conclui: ―Sabeis cristãos, a causa porque se faz

hoje tão pouco fruto das pregações? É porque as palavras dos

pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. (...) Esse é

o mal. Pregam palavras de Deus, não a palavra de Deus‖. Moura

Neves (2000) considera que o uso do artigo definido em sintagmas

nominais pode denotar que a informação tratada é de conhecimento

tanto do falante como do ouvinte. No enunciado do sermão, ―o artigo

tem muito mais importância do que a preposição e, conforme

sabemos pelo próprio aparelho formal da língua, serve para

determinar um sentido‖ (CARVALHO 2000 p.23). Assim, no caso de

Vieira, a palavra de Deus seria aquilo que tem significação maior e

deveria servir de base e tema para o discurso, não sendo passível de

equívocos de sentido. Palavras de Deus, no plural, seriam

interpretações, muitas vezes tendenciosas, da palavra primeira,

aquela que sempre frutifica, segundo o autor. De acordo com o

próprio Vieira, ―as palavras de Deus pregadas no sentido em que

Deus as disse, são palavras de Deus, mas pregadas no sentido que

nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavra

do demônio.‖ (VIEIRA, 2008, p.28).

Em certo ponto, Vieira diz: ―saiu quem semeia a semear‖. Note

aqui que a escolha do verbo pelo substantivo não se dá ao acaso. É,

pois, o próprio Vieira (2008) que explica:

―Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma

coisa é o soldado, outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador

e outra, o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador

e outra, o que semeia; uma coisa é o pregador e outra, o que prega.

147 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é

ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de

pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a

vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo.‖ (p.19)

O que vale aqui é a ação e não o sujeito. De acordo com Julio

Carvalho (2000), o pregar se assemelha ao semear. ―O semeador é,

ao mesmo tempo, palavra e ação (fala e faz), donde se deduz ser

possível pregar falando e pregar agindo‖ (p.20). O nome, por si só,

nem sempre designa uma atividade e, como exemplo disso (exemplo

irônico, é preciso notar), diz que nem sempre o governador é quem

governa. Quando se diz ―quem semeia‖ sempre se terá uma ação. No

entanto, para que alguém se torne verdadeiro semeador, é preciso

que realmente pratique a ação designada pelo verbo.

―Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que

grande exemplo me dá este semeador!‖

Sobre o ponto de exclamação, Dahlet (2006, p.193) afirma ser

este usado com o objetivo de afetar diretamente o interlocutor, pois

cria ―uma força de interpelação, logo, o impacto almejado por ele

reage no sentido previsto pelo escritor‖. Os dois períodos com valor

interjetivo apresentam-se como uma espécie de franca expansão de

sentimentos e pensamentos íntimos do autor, como se tivessem sido

arrancados do locutor pela situação, como uma espécie de grito. Tais

períodos corroboram a tentativa de convencer seus interlocutores da

importância da semeadura.

Já os marcadores da interrogação colocam o leitor na posição

de interlocutor direto daquilo que o autor pretende como resposta, já

que são interativos por natureza. No entanto, devemos notar que,

nesse sermão, o uso recorrente de perguntas não lança para o leitor

a dúvida suscitada. Observe o trecho abaixo:

―E que faria neste caso, ou devia fazer o semeador evangélico,

vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura?

Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque

148 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa à casa

buscar alguns instrumentos com o que alimpar a terra das pedras e

dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? Não por

certo.‖ (p.15)

As perguntas feitas são imediatamente respondidas pelo próprio

Vieira. Ou seja, ele pretende que seu interlocutor formule respostas

para as interrogações propostas e sim, que suas respostas sejam

orientadas pela maneira com que ele mesmo as responde. Desse

modo, a relação estabelecida entre pregador e público torna-se mais

persuasiva e o sermão passa a suscitar uma resposta nos ouvintes, a

partir de uma compreensão ativa de concordância e compromisso.

Vieira também diz que o pregador deve pregar a toda criatura,

pedras, árvores, animais. E que, da mesma maneira que os

apóstolos, aqueles que falam sobre a palavra de Deus haveriam de

achar toda a espécie de homens:

―... homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam

de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras.‖ (p.15).

Nesse ponto, a união de dois substantivos em homens troncos

e homens pedras, dando uma ideia de adjetivação, cria uma metáfora

que retoma o conceito explicitado na parábola do semeador. A

palavra de Deus há de cair em todos esses lugares e, se for

realmente utilizada em seu verdadeiro sentido, há de frutificar.

Ao observarmos mais atentamente o Sermão da Sexagésima,

podemos perceber que o poder expressivo do estilo de Vieira é

manifestado, principalmente, pelas metáforas construídas em seus

apólogos e da seleção lexical clara, mas nem por isso menos

contundente e eficaz. As interrogações e exclamações são outras

marcas importantes do discurso vieiriano.

149 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisar um texto literário de estrutura argumentativa pelo viés

da argumentação é fundamental não apenas para que o aluno

perceba as nuances do texto, mas também para que ele entenda

como as ideias devem ser organizadas com vistas a persuadir o leitor,

transmitindo um ponto de vista.

Isso fará com que ele perceba que, independentemente do

assunto que se está abordando ou do século em que se encontra, a

todo discurso subjaz uma ideologia e uma estrutura argumentativa

que possibilita a veiculação dessa ideologia através de uma

mensagem composta de forma eficientemente clara.

Segundo Guaranha,

toda leitura proposta em sala de aula precisa dar oportunidade ao aluno de criar, dialogar com o

autor. É bom que todo exercício de leitura seja

direcionado para o ato criador. Quando o aluno

descobre que é capaz de interagir com alguém que viveu séculos antes dele, quando percebe que é

possível vincular a realidade da obra com a sua realidade, então ele se interessa pelo texto. Para

isso, é necessário que o professor trabalhe variedade e qualidade, propiciando o acesso a um

repertório tão vasto quanto possível. (GUARANHA, 2003, p.20)

Em sala de aula, tais estratégias podem ser discutidas

juntamente aos alunos, enfatizando que eles também podem utilizá-

las em seus próprios textos. Entendendo que a argumentação é fator

primordial em todas as línguas, um estudo esquematizado pode ser

construído em conjunto, para que a turma retire do sermão os pontos

principais. Além disso, os alunos poderiam pesquisar o momento em

que o sermão foi proferido para entenderem que não se deve

desvincular o texto de sua condição de produção. Dessa forma,

passariam a pensar melhor sobre o que iriam escrever, valendo-se da

150 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

utilização de alguns operadores discursivos, por exemplo, de maneira

mais consciente para a construção de sua própria argumentação.

Não há como esgotar um trabalho com os sermões, visto a

vastidão interpretativa que esses nos oferecem. Nosso objetivo foi

elencar alguns exemplos que demonstrassem a habilidade desse

arguto pregador e os efeitos que essas escolhas produziram no texto.

O que podemos dizer, além de tudo isso, é que Vieira fez um grande

bem à língua portuguesa, deixando como herança uma profícua

produção textual, tanto de caráter retórico quanto religioso, profético,

literário e político, produzindo na nossa língua como se essa fosse a

língua na qual Deus desejava ouvir sua Palavra e ver ação desta

Palavra nos homens.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Marialda de Jesus. A persuasão nas crônicas de Lya Luft escritas na coluna “Ponto de Vista” para a revista Veja.

Santo André, SP: 2009.

ASCOMBRE e DUCROT, Apud GUIMARÃES, Eduardo. Texto e Argumentação. Um estudo das conjunções do português.

Campinas, SP: Pontes, 4 ed. 2007.

BECHARA. E. Moderna gramática portuguesa. 37.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

BULCÃO, C. Padre Antônio Vieira: um esboço biográfico. Rio de

Janeiro: José Olympio, 2008

CARVALHO, J. O tecelão e o tecido. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2000.

COLLADO, J.A. Fundamentos de lingüística geral, tradução de

Isabel Gonçalves. Lisboa: Edições 70, coleção Signos, 33, 1970.

DAHLET, V. As (man)obras da pontuação: usos e significações. São Paulo: Humanitas. 2006.

FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação. 1.e.d São Paulo. Ática.

1996

GUARANHA, Manoel Francisco. O Sermão da Sexagésima e o

processo argumentativo: estratégias de trabalho em classe.

[s.l.]:[s.n.],s/d.

151 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

KOCH, Ingedore. Argumentação e Linguagem. 7ª. ed. São Paulo:

Cortez, 2002.

MOURA NEVES, M.H. Gramática de usos do português. São Paulo: Unesp, 2000.

ORLANDI, E. Análise do discurso: princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes, 1996.

VIEIRA. A. Sermões I. Direção: Pe. Gabriel C. Galanche, SJ e Pe.

Danilo Mondoni. São Paulo: Edições Loyola, 2008

152 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

NOVOS REALISMOS NA CONTEMPORANEIDADE:

A ESCRITA DE HISTÓRIA

MOURA, Aline de Almeida11

―Devemos fazer a história de que o

presente tem necessidade‖

(Le Goff& Nora, 1988)

―Detesto os mortos que voltam.

São tão mais nossas as imagens!‖

(Mário de Andrade, 1924)

1. INTRODUÇÃO:

―Não tente ―começar do começo‖, pois este livro não tem

começo, no sentido em que têm as narrativas e discussões‖

(GUMBRECHT, 1999, p. 9). É assim que Gumbrecht inicia seu texto

Em 1926. Vivendo no limite do tempo (1999), que diferentemente

dos outros textos historiográficos, não quer instruir seus leitores ou

organizar experiências de realidades passadas. Sua intenção é ―fazer

pelo menos alguns leitores esquecerem, durante o processo de

leitura, que eles não estão vivendo em 1926. Em outras palavras:

evocar alguns dos mundos de 1926, re-presentá-los, no sentido de

torná-los novamente presentes‖ (GUMBRECHT, 1999, p. 10).

Sua proposta se insere em um amplo debate sobre o que

também poderia ser chamado de escrita realista da realidade: a

escrita historiográfica. Como afirma Kramer (2001), a História

enquanto disciplina que pretende re-apresentar as realidades

passadas, lida com determinadas convenções de escrita e de

metodologia, mesmo que essas estejam fragilizadas por pressupostos

contemporâneos. As questões sobre o produto final, isto é, a escrita

dos resultados obtidos após o levantamento, seleção, análise de

fontes, têm sido amplamente discutidas e alternativas de escritas

11 Mestranda no programa de Literatura, cultura e contemporaneidade na

Pontifícia Universidade Católica do estado do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

153 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

vêm sendo propostas, enfatizando essa ―grafia‖ da historiografia

como parte integrante e relevante também dessa disciplina. Nesse

sentido, a escrita historiográfica se liga ao realismo seguindo a

proposição de Hamon (1984), que afirma que o foco do realismo está

na forma pela qual se faz crer que um texto copia o real através da

linguagem. A questão sobre a possibilidade ou não de se atingir

proposições verídicas sobre o real 12 é vista como um debate

desgastado. No texto de Gumbrecht, a preocupação sobre a forma

com que o texto será escrito para que atinja o seu objetivo torna a

ideia de realismo conceito chave para se pensar na proposta de uma

reconfiguração do trabalho historiográfico.

No presente artigo, pretendo analisar a escrita de Gumbrecht

como proposta que foge à convencional escrita narrativa da História

como disciplina. Sabendo que sua intenção é enfatizar o aspecto

sensual 13 de re-presentificação do passado, refletindo como essa

nova escrita estaria ligada a uma nova função da História na

sociedade, enfatizando seu aspecto político assim como o aspecto

estético da escrita. Para alcançar tal objetivo, tenho como base as

análises do filósofo francês Jacques Rancière sobre a relação entre

estética e política, assim como suas posições sobre arte e a História.

Como questão tangente, reflito de forma breve a relação entre

literatura e História.

12 ―Já não se trata, portanto, de responder a uma questão do gênero:

como é que a literatura copia a realidade?, questão hoje em dia

desinteressante, e sim de considerar o realismo como e fosse uma espécie

de speech-act (Austin, Searle) definido por uma postura e uma situação especifica de comunicação, é,assim, responder a uma questão do tipo:

como é que a literatura nos faz crer que copia a realidade?, quais são os

meios estilísticos que – conscientemente ou não – utiliza para criar este

estatuto especial de leitor. (HAMON, 1984, p. 143).

13 ―Como um ‗ensaio sobre a simultaneidade histórica, meu livro é uma resposta prática à questão de saber até onde um texto pode ir no sentido

de proporcionar uma ilusão de uma experiência direta do passado‖

(GUMBRECHT, 1999, p. 474).

154 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Ressalto que a preocupação com a escrita do historiador

permite o uso de teorias ligadas aos estudos de textos ficcionais

literários. Contudo, a História não deve ser tratada como ficção no

mesmo sentido da ficção literária, pois embora a escrita tenha papel

primordial, a metodologia da operação historiográfica faz com que a

relação estabelecida pela escrita seja diferente. A proposta não é

ressaltar a dicotomia entre literatura e História, pois esse debate

esmaece a reflexão sobre a necessidade de uma revisão das formas

de se escrever na disciplina História e sua função no contexto

contemporâneo, conforme aponta Rancière 14 . Assim, na primeira

sessão será abordada a relação entre escrita de História e realismo.

Na parte subsequente serão apresentadas algumas ideias de Rancière

e a sua relação com a escrita de História. Em seguida será analisada

a proposta de Gumbrecht levando em consideração a definição de

regime estético de Rancière. Pretendo, a partir dessas análises,

entender a necessidade de se propor novas formas de escrita

historiográfica como fez Gumbrecht no livro Em 1926.

2. A HISTÓRIA COMO REALISMO:

Ao se pensar na escrita de História, logo poderíamos nos

remeter ao acalorado debate sobre a relação entre História e

literatura. No meu caso em questão, com minha formação como

historiadora, fazia parte do grupo dos que defendem a História como

ciência e que por conta disso concebia as ideias de Hayden White –

14 ―O real precisa ser ficcionado para ser pensado. Essa posição deve ser

distinguida de todo discurso – positivo ou negativo – segundo o qual tudo será ―narrativa‖, com alternância entre ―grandes‖ e ―pequenas‖ narrativas.

A noção de ―narrativa‖ nos aprisiona nas oposições de real e do artifício em

que se perdem igualmente positivistas e desconstrucionistas. Não se trata

de dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar que a ficção da era

estética definiu modelos de conexão entre apresentação dos fatos e formas de inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e

da ficção, e que esses modos de conexão foram retomados pelos

historiadores e analistas da realidade social‖ (RANCIÈRE, 2005, p. 58).

155 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

um dos teóricos fundamentais para se pensar a escrita na História –

como, no mínimo, questionáveis. Mas é preciso relativizar. Em seu

conhecido texto Meta-história (1992), White propõe, tendo por corpus

a produção de alguns historiadores e filósofos da história do século

XIX, analisar a História através de seu produto final, da escrita legada

pelos historiadores 15 . Para White, a História é um exercício de

retórica, sendo essa afirmação facilmente questionada por

historiadores como Carlo Ginzburg. A História, para esse pesquisador,

trata-se mais do que retórica, trata-se de um esforço metodológico

que controla o que será apresentado como dado. Como afirma

Ginzburg, a ligação entre história e narrativa vem de indivíduos que

não conhecem a prática historiográfica, ―criando abismo entre essa

prática e a reflexão metodológica‖ (2002, p. 14). No esforço de ser

uma ciência, a História se baseia em todo um aparato metodológico

que busca garantir a veracidade e fidedignidade do que está sendo

narrado.

De certa forma, a escrita em si só torna uma preocupação nas

ultimas décadas, quando o historiador se dá conta que também é um

produtor de texto, além de um pesquisador que se baseia em teorias

e metodologias de pesquisa. Ou seja, essa certeza cientificista que o

historiador tinha a partir de sua metodologia científica vem sendo

posta em questão 16 . A escrita passa a ser uma preocupação por

definir como as conclusões obtidas a partir da pesquisa serão

transmitidas.

A proposição de Rancière sobre a escrita da História é bastante

interessante. Ele afirma não estar interessado na questão da

15 ―Nessa teoria trato o trabalho histórico como o que ele manifestamente

é: uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa‖

(WHITE, 1992, p. 11).

16―os historiadores perderam muito de sua ingenuidade e de sua ilusão. Agora sabem que o respeito às regras e às operações próprias à sua

disciplina é uma condição necessária, mas não suficiente, para estabelecer

a história como um saber específico‖ (CHARTIER, 2002, p. 17).

156 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

instituição histórica, pois essa tarefa já foi feita por Michel de Certeau

ao definir a ―operação historiográfica‖ 17. Ele enfatiza que ―a questão

política do conhecimento histórico passa pela análise de uma relação

específica: a relação entre o discurso que discute a história e as

palavras nas quais ela se escreve‖ (RANCIÉRE, 2010b, p. 36). E nisso

Rancière é mais coerente que White. A questão da operação

historiográfica não é omitida no sentido de parecer não haver

relevância para o que está sendo escrito, mas é preciso ressaltar que

a relação com as palavras também faz parte dessa operação.

Rancière reafirma que seu interesse nessa questão se dá pela relação

que o discurso histórico passa a ter com o discurso ficcional18, nas

discussões suscitadas a partir do momento que a ―grafia‖ torna-se

importante no fazer historiográfico.

O que proponho é que o discurso histórico está entrelaçado com

o modo de pesquisa e a visão de História que o historiador tem.

Nesse sentido, se é utilizado o método quantitativo, com a seleção de

inúmeras fontes que serão quantificadas e classificadas, a

historiografia será mais ligada ao tipo descritivo, com a inserção de

inúmeras tabelas, estatísticas e dados que busquem a comprovar

determinada hipótese. Se, por outro lado, o historiador busca a

análise de um determinado elemento que julgue relevante para

relacionar com o contexto de tal elemento, a escrita será mais ligada

à narração do modo como é feito na micro-história. Assim, o modo

como o texto é escrita está intimamente ligado ao modo como o

17 ―um discurso de poder sobre o qual Michel de Certeau disse tudo o que

havia de interessante para dizer‖ (RANCIÈRE, 2010b, p. 35). Michel de Certeau, no capítulo ―A operação historiográfica‖, discute, a produção da

história como resultado de um processo de pesquisa, análise e escrita. A

sua questão é pensar em ―O que fabrica o historiador quando ‗faz história‘‖

(cf.: CERTEAU, 1988).

18 ―O que me interessa é a relação entre essa apreensão do ser falante e a questão das fronteiras entre os modos do discurso: o que significa quando

dizemos que determinado discurso provem da ciência, e não à literatura, ou

o contrário?‖ (RANCIÈRE, 2010b, p. 35).

157 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

historiador lida com as fontes, a sua visão de História. A partir daí

que se dá a escrita, e não o contrário, o modo de escrita não é a

parte racionalizada anteriormente no trabalho do historiador, como

propôs White.

Entender a História como um discurso realista se deve à ideia

de que 1) o discurso tem extrema relevância para a operação

historiográfica; 2) o realismo é concebido em um sentido amplo de

relação que determinado discurso tem com os fatos e, no caso da

História, por mais que haja discussões sobre métodos de pesquisa,

sobre a possibilidade ou não de se atingir proposições verídicas sobre

a realidade, o fato é que as fontes tem o ―poder de veto‖. Não é

possível afirmar qualquer coisa sobre qualquer período.

Rancière afirma que o modo de fazer História que se pauta

apenas na busca por fontes e dados está condenada a um empirismo,

―renunciando questionar os modos de escrita que dão às palavras da

história e às palavras do historiador a aparência de uma verdade‖

(RANCIÉRE, 2010b, p. 37). Fica-se preso tal como Funes, o

memorioso no conto de Jorge L. Borges, sem capacidade de

abstração. É preciso ter consciência que a História enquanto ciência

transmite suas pesquisas por meia da linguagem escrita, fazendo que

ela também seja parte do trabalho historiográfico. Para Rancière, a

representação ―não é o acto de produzir uma forma visível, é sim o

acto de dar um equivalente (...) É a voz de um corpo que transforma

um acontecimento sensível num outro, esforçando-se por nos fazer

―ver‖ o que esse corpo viu, por nos fazer ver o que ele nos diz‖

(RANCIÈRE, 2010c, p. 139). Nesse trecho, o autor trata da relação

entre palavra e fotografia, como ambas são figuras que substituem o

sensível. E é nesse sentido que a escrita de História deve ser

entendida, como uma construção de imagens que nos possibilita dar

voz aos mortos através de pesquisa e metodologia sim, mas também

através das imagens evocadas pelas palavras.

158 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

3. A PARTILHA DO SENSÍVEL E A ESCRITA DE HISTÓRIA

Jacques Rancière propõe em A partilha do sensível (2005) a

existência de três regimes de identificação da arte, tendo por base a

relação entre referência e signo – a saber, o regime ético, o regime

representativo e o regime estético. Para o autor, essa ―partilha do

sensível‖ se relaciona com a possibilidade de se tomar parte da

palavra comum, havendo um aspecto político dentro da estética, uma

vez que está ligada às formas definidas a priori para se expressar, e

quem pode se expressar dentro dessas formas. No regime ético, a

arte se encontra identificada com as imagens, questionadas sobre o

ponto de vista de sua origem (e, consequentemente, seu teor de

verdade) e o seu destino. Nesse regime, seguindo as proposições de

Platão, ―a arte não existe, apenas existem artes, maneiras de fazer‖

(RANCIÈRE, 2005, p. 28). É o objeto que determina o tipo de

expressão. O segundo regime é o poético ou representativo, em que

a arte se identifica como par poiesis/ mimesis, pois são esses

conceitos que organizam a maneira de fazer, ver e julgar a

visibilidade das artes (cf.: RANCIÈRE, 2005, p. 31). Esse regime se

pauta por mostrar modelos de narratividade, hierarquizando as

formas de se partilhar o sensível, tendo por base as proposições de

Aristóteles. Já o regime estético não está mais ligado às formas de

fazer, ―mas pela distinção de um modo de ser sensível próprio aos

produtos de arte‖ (RANCIÈRE, 2005, p. 32). Assim, a arte faz parte

de um tipo específico de partilha do sensível. Nesse regime não há

mais o domínio da noção mimética na arte, em que predomina a

necessidade de representação da realidade. Pode-se afirmar, nessa

conjuntura, que essa noção de representação não deve mais ser

entendida como categoria chave para se compreender a produção

artística contemporânea, fundando uma autonomia das artes e a

159 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

identificação da arte com a vida em si mesma19. Esse regime estaria

ligado a uma democratização dentro dessa partilha do sensível ao

implodir as regras e hierarquizações do regime representativo.

Rancière também trata de uma interessante discussão sobre os

modos de se escrever na ficção ―modernista‖, propondo um novo

olhar para questões que pareciam básicas e inquestionáveis. Por

exemplo, é clássico o texto de Roland Barthes, ―O efeito de

realidade‖, no qual ele argumenta que a descrição presente na obra

realista, embora pareça desnecessária, tem por utilidade transmitir

um efeito de real para o texto literário. Rancière (2010) argumenta

que na verdade essas descrições têm por sentido não dar realidade à

obra, mas sim dar vida20. Assim, a descrição existente, em vez de

―parar‖ a ação da narrativa, a enche de vida, pois é isso que se faz

cotidianamente, observa-se ao redor. E esse ―cotidiano ocioso‖ de

apreciação da vida presente na descrição pode fazer parte da

narrativa através dessa nova distribuição do sensível21.

As proposições de Rancière têm interessante relevância para se

pensar sobre a alternativa de escrita de Gumbrecht, entendida como

já inserida no que é o regime estético da arte. Sobre a escolha

estilística, no texto de Gumbrecht há, conscientemente, uma

predominância do aspecto descritivo, com claro intuito de se

presentificar o passado, dando mais vida ao que está sendo narrado.

Assim, tanto Rancière por sua exposição teórica, quanto Gumbrecht,

19 ―Funda a uma só vez, a autonomia da arte e a identificação de suas

formas com as formas pelas quais a vida se forma a si mesma‖ (RANCIÈRE,

2005, p. 34).

20―O barômetro não está lá para comprovar que o real é o real. A questão

não é o real, é a vida, é o momento quando a ‗vida nua‘ – a vida

normalmente devotada a olhar, dia após dia, se o tempo será bom ou ruim

– assume a temporalidade de uma cadeia de eventos sensorialmente

apreciáveis para serem relatados. O ocioso barômetro expressa uma poética da vida ainda desconhecida (...)‖ (RANCIÉRE, 2010, p.79).

21 Para mais explicitações sobre o argumento de Rancière, consultar o

texto ―O efeito de realidade e a política da ficção‖ (2010).

160 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

pela forma escolhida para escrever sua História, tratam da forma

descritiva com essa mesma função.

Gumbrecht ressalta ainda que seja uma pretensão acreditar

que escrever História significa ―fazer História‖, uma vez que na

escrita dessa disciplina as fontes têm ―direito ao veto‖. Logo, não se

pode afirmar qualquer coisa sob a pena de ser acusado de

falsificação. Para ele, a questão é como tornar a História real, como

fundir escrita historiográfica com a vida que fora vivida para causar o

efeito de re-presentificação. Rancière assevera que ―os enunciados

literários ou políticos fazem efeito no real‖ (RANCIÈRE, 2005, p. 59),

afirmação que corresponde à proposição de Gumbrecht. E pensando

em um momento de crise, como é descrito por Rancière, em que o

terreno estético tem posição fundamental para se pensar na

democratização e na relação com os referentes 22 , a proposta de

Gumbrecht se torna uma alternativa no mínimo coerente no atual

estado de debate e reconfiguração da arte e da História.

Em suma, pensando na variação dos regimes de arte, como

proposto por Rancière, assim como as mudanças de perspectiva

sobra a escrita modernista, percebe-se que o trabalho de Gumbrecht

se insere nesse campo de reconfiguração e questionamento dos

pressupostos da historiográfica através da proposta de uma

alternativa para a História, para que a disciplina tenha um novo valor

e função dentro desse contexto de questionamentos. Conforme o

autor afirma, a tese ―de que ―se pode aprender com a História‖

perdeu o seu poder de persuasão‖ (GUMBRECHT, 1999, p. 460), as

escritas de História até então canonizadas devem sim ser

questionadas para que consiga corresponder às necessidades

contemporâneas.

22 ―A multiplicação dos discursos denunciando a crise da arte ou sua

captação fatal pelo discurso, a generalização do espetáculo ou a morte da imagem são indicações de que, hoje em dia, é no terreno estético que

prossegue uma batalha ontem centrada nas promessas da emancipação e

nas ilusões e desilusões da história‖ (RANCIÈRE, 2005, p. 11-12).

161 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

4. GUMBRECHT E O REGIME ESTÉTICO

Rancière (2005b) propõe o entrelaçamento entre política e

estética23, segundo o qual há uma dimensão estética na experiência

política, hipótese já presente em sua tese de doutorado La Nuit des

prolétaire. Nesse trabalho, ―showed that the core of the emancipation

of the workers was an aesthetic revolution‖ (RANCIÈRE, 2005b, p.

14), ou seja, demonstra que as mudanças ocorridas no século XIX

também são mudanças de valores poéticos e de partição da esfera da

experiência. A segunda forma de ligação entre as revoluções políticas

e estéticas está na discussão sobre escrita de História, quando os

historiadores da História das mentalidades passam a dar voz àqueles

que eram esquecidos em sua escrita, passando a não se preocupar

apenas com os grandes personagens, mas também com as pessoas

comuns, que podem se apropriar da linguagem. Essa apropriação

teve consequências na metodologia das ciências sociais – que se

postulava como escrita desmistificadora das ilusões presentes na

literatura. Assim, as ciências sociais também fazem parte dessa

revolução estética de tomada da escrita, de possibilidade de se

partilhar o sensível. Rancière ainda define a literariedade como: ―the

power that tears bodies away from their natural destination‖

(RANCIÈRE, 2005b, p. 16). Nessa proposta de entrelaçamento entre

política e estético, a alternativa de escrita de faz parte de uma

tentativa de se conceber a História como fazendo parte tanto de um

questionamento estético quanto político, no sentido de ter efeito nas

sociedades.

Logo, acredito que é profícuo pensar a proposta de Gumbrecht

sobre a História e sua função na contemporaneidade levando em

consideração a reconfiguração na arte tal como é proposto por

23 Rancière analisa estética no sentido kantiano, de formas de

sensibilidade, como matéria de tempo e espaço e não na sua ligação pura e

simples com a arte (RANCIÈRE, 2005b, p. 13).

162 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Rancière. Se a arte muda a sua perspectiva e busca uma relação

mais viva com o real, a disciplina História também deve refletir sobre

novos métodos e escritas passíveis de dar mais vida a sua produção.

Essa disciplina ao ficar restrita ao seu caráter científico acabou por

simplificar as realidades passadas. Além disso, em um contexto em

que, como afirma Gumbrecht, a História já não tem mais aquela

tarefa pedagógica, entender a História e sua reconfiguração no

contexto contemporâneo exigem novas formas de a disciplina se

relacionar coma produção do conhecimento das realidades passadas.

Rancière se refere, a partir da sua análise dos regimes, pensar

sobre conceitos como modernidade, pós-modernidade e vanguarda.

Sobre a modernidade, ele afirma que opera um recorte equívoco no

regime estético da arte, fazendo com que haja um sentido único de

temporalidade em um período que é heterogêneo 24 . Perspectiva

interessante, pois a proposta de Gumbrecht se insere na sua

proposta de simultaneidade do tempo, ou seja, essa heterogeneidade

de que Rancière trata. Gumbrecht acredita que a relação temporal

vem mudando através de uma expansão do presente, tornando

necessária essa experiência direta do passado.

De qualquer forma, Rancière afirma que o ―regime estético de

arte que faz da arte uma forma autônoma de vida‖ (RANCIÈRE, 2005,

p. 37) e é essa a sugestão de Gumbrecht. Uma vez que ―o modelo

teleológico da modernidade tornou-se insustentável‖ (RANCIÈRE,

2005, p. 47), a História, tal como vista por Gumbrecht, tem que levar

os seus leitores a experimentar outras vivências a partir de seus

textos. É interessante que, para Gumbrecht, é o fato de ser um texto

historiográfico que vai fazer com que essa vivência seja mais bem

24 ―A ideia de modernidade é uma noção equivoca que gostaria de produzir

um corte na configuração complexa do regime estético das artes, reter as

formas de ruptura, os gestos iconoclastas etc, separando-os do contexto

que os autoriza: a reprodução generalizada, a interpretação, a história, o museu, o patrimônio... Ela gostaria que houvesse um sentido único, quando

a temporalidade própria do regime estético das artes é o da co-presença de

temporalidades heterogêneas‖ (2005, p. 37).

163 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

sentida 25 . Subvertendo a proposta de Aristóteles sobre a

superioridade da ficção sobre a História26. Seu intuito não é organizar

o caos que a realidade apresenta, ou interpretá-la. Com a nova

função para a História conforme postulado por Gumbrecht, essa

hierarquização é irrelevante, por mais que o trabalho historiográfico

tenha um sentido de alcançar o seu objetivo de presentificação. E o

trabalho se torna historiográfico porque houve uma pesquisa anterior

a elaboração do livro, sendo que tal pesquisa é que definiu o que

pode ou não ser dito sobre o que ocorreu e o que se vivenciou em

1926.

Gumbrecht propõe essa nova escrita por acreditar em uma

nova função da História: satisfazer a necessidade de se viajar para o

passado (cf.: GUMBRECHT, 1999). Para isso, fora necessária

desenvolver essa diversa forma de escrita, mais ligado ao descrever

as realidades passadas. Em seu texto, há51 verbetes que descrevem

a vivência em 1926, sendo que a parte metodológica é escrita apenas

no final do livro, com a explicitação das fontes, seleções e

pressupostos utilizados da elaboração de seu texto. Por exemplo, no

verbete ―Jazz‖, ele descreve através de verbos no presente, falando

do agora como se fosse 1926, das sensações que esse novo ritmo

suscitou no ano de 1926. São usados como referência que

comprovam as suas afirmações outros verbetes, fazendo com que

essa comprovação seja o mergulho cada vez maior nesse ano. Faz-

25―Embora o autor tenha inventado uma forma textual especifica para cada

verbete,sucesso deste livro como um todo depende da afirmação de que ele

não foi ―inventado‖ (isto é, da afirmação de que o seu conteúdo é

totalmente referencial). O efeito de evocar o passado se baseia nessa implicação mais ou menos ―ontológica‖. Um romance histórico (se o autor

fosse capaz de escrever ficção) não teria o mesmo trabalho‖ (GUMBRECHT,

1999, p. 10).

26 ―A soberania da literatura [sobre a história em Aristóteles] não é,

portanto, o reino da ficção. É, ao contrario, um regime de indistinção entre a razão das ordenações descritivas e narrativas da ficção e as ordenações

da descrição e interpretação dos fenômenos do mundo histórico e social‖

(RANCIÈRE, 2005, p. 55).

164 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

se, com isso, uma leitura fragmentada, que não precisa

necessariamente a ordem de início, meio e fim, sendo que olhar cada

aspecto desse ano leva o leitor para outros aspectos desse mesmo

período.

Percebe-se que no texto em si não há uma explicitação das

fontes usadas para propor tais afirmações sobre o ano de 1926. Caso

o leitor não leia a parte final – que Gumbrecht explicita como leitura

dispensável – não saberá quais as fontes, os critérios de seleção, os

métodos empregados para a escrita desse livro. O olhar do

historiador, que já é treinado muitas vezes a procurar esses

elementos do empírico que comprovam o que este sendo afirmado,

surpreende-se com essa proposta de Gumbrecht. Parece, no primeiro

momento, que ele tirou essas afirmações da cabeça, que sonhou que

estava em 1926 e escreveu. Contudo, o autor garante e demonstra

de sua maneira (na parte final do livro) que houve uma pesquisa e

que é essa pesquisa que garantiria o sucesso de seu objetivo de re-

presentificação.

Em suma, insere-se a escrita de Gumbrecht nesse contexto de

ruína da representação como conceito chave até mesmo para se

pensar a História. Tanto que seu intuito não é representar, no sentido

de mimetizar pura e simplesmente as realidades. O autor, a partir de

seu texto que se tornar novamente presente, se possível, as

vivências de 1926. Mais uma vez, seu projeto se insere nessa

reconfiguração das artes proposta por Rancière27. Faz-se necessária

essa reconfiguração para que a História faça sentido nos estudos

atuais e não garanta sua importância pela sua tradicionalidade no

pensamento ocidental.

27 ―O regime estético da arte é, antes de tudo, a ruína do sistema de representação, isto é, de um sistema em que a dignidade dos temas

comandava a hierarquia dos gêneros de representação‖ (RANCIÈRE, 2005,

p. 47).

165 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

5. CONCLUSÃO:

Gumbrecht, diferentemente do discurso cientificista da História,

não faz referência em seu texto aos arquivos consultados,

aproximando-se de uma escrita realista sobre as realidades

passadas28. A sua forma de escrita se deve a sua perspectiva de que

a História tem uma nova função dentro da sociedade frente às

mudanças ocorridas e aos longos questionamentos. Procurei ressaltar

nesse trabalho a profícua relação que pode ser estabelecida entre as

proposições de Rancière e a alternativa historiográfica de Gumbrecht.

Acredito que a História deve sim ter mais vida, e a preocupação

cientificista da História acabou por encobrir esse aspecto,

simplificando as vivências das realidades passadas. Mais uma vez,

não se trata de igualar a História à literatura, pois esse debate não é

o foco. Mas pensar sobre a História enquanto uma escrita que possui

efeitos sobre o real, assim como a literatura, mas esse efeito é

diverso e alcançado a partir de outras estratégias de leitura.

Gumbrecht afirma que Em 1926 o efeito de presença se dará de

forma mais adequada por ser um trabalho historiográfico. E por

trabalho historiográfico subentende-se a pesquisa pela qual

Gumbrecht submeteu a sua escrita, assim como a estrutura de

escrita em si escolhida para se legar as conclusões de sua pesquisa. A

escrita faz parte desse trabalho do historiador. A escrita que deve ser

revista no regime estético das artes, sem ficar restringido apenas à

velha forma representacional que já nem faz tanto sentido nos

debates contemporâneos.

28 ―Contrariamente ao discurso cientifico, que muitas vezes coloca, em

notas de pé de página, em bibliografia no fim do volume, em citações explicitas, referencias destinadas a autenticar o seu dizer, o texto realista

integra-as no seu próprio corpo sob a forma de cenários e de personagens-

tipo‖ (HAMON, 153).

166 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Minha preocupação não foi saber se Gumbrecht alcança ou não

o seu objetivo de re-presentificação dos mundos de 1926, mas

refletir, a partir das referências de Rancière sobre a escrita de

História, tal como proposta por esse teórico. Trata-se de um exercício

estimulante e que supera a discussão que é quase ―chover no

molhado‖ entre literatura e História. É necessário um sopro de vida

na História e se não é possível mais aprender com a História, que os

historiadores não se fechem em suas fontes primárias e que se

arrisquem. Não para serem todos literatos, mas para refletir sobre a

real função de sua disciplina.

6. REFERÊNCIAS:

CHARTIER, Roger. A beira da falésia. A história entre certezas e

inquietudes. Porto Alegre: Editora Universidade/ UFRGS, 2002.

GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926. Vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999.

______. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC-Rio, 2010.

HAMON, Philippe. ―Um discurso determinado‖. In: BARTHES, Roland.

Literatura e realidade. Lisboa: Dom Quixote, 1984, p. 129-193.

KRAMER, Lloyd S. ―Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio

literário de Hayden White e Dominick La Capra‖. In: HUNT, Lynn. A

nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 131-

173.

RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: EXO

experimental, 2005.

______. ―From politics to aesthetics?‖. In: Paragraph. Vol. 28. N. 1. Março de 2005b, p. 13-25.

______. ―O efeito de realidade e a política da ficção‖. In: Novos estudos. Número 86, março de 2010, p. 75-90.

______.―A poética do saber: sobre os nomes da história‖ In:

Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas/Universidade

167 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro.

Florianópolis: UDESC/CEART.Vol1, n.15,Out 2010b, p. 33-43.

______. ―A imagem intolerável‖. In: O espectador emancipado. Trad. José Miranda Justo. Lisboa: Orfeu Negro, 2010c, p. 123-153.

WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.

168 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

A EXPERIÊNCIA DO REAL: UM LEITURA DE

“OS TRÊS NOMES DE GODOFREDO” SOB A PERSPECTIVA DO

INSÓLITO FICCIONAL

SILVA, Luciana Morais da29

Desaparecendo os limites do mundo

ficcional, necessário à ilusão realista, há uma mudança do estatuto da

representação: mais importante do

que narrar alguma coisa é o próprio processo de narrar.

(BELLA JOZEF, 2006, p. 176)

O presente trabalho tem por objeto o conto ―Os três nomes de

Godofredo‖, de Murilo Rubião, texto em que o ―insólito se apresenta

sob as mais diversas formas‖ (COVIZZI, 1978, p. 29). O autor

elabora uma narrativa que se passa em um lugar comum, um espaço

qualquer nas ruas e na vida de uma grande cidade. Entretanto, as

relações que permeiam sua ficção ultrapassam o sólito, com homens

e mulheres aparentemente desconhecidos, mas que interagem por

uma relação conjugal.

A narrativa rubiana apresenta um narrador autodiegético, ou

seja, um edifício de palavras (Cf. BRAIT, 1985, p. 10), que relata

suas próprias experiências, contando-as como personagem central da

narrativa, uma vez que este estrutura o tempo, a distância e a

própria constituição da diégese (Cf. REIS, 2000, p. 259). Consoante

Carlos Reis (2000, p. 257), o narrador, diferente do autor, uma

entidade empírica, é uma entidade fictícia, a quem, cabe a tarefa de

enunciar o discurso, no cenário da ficção.

29Mestranda em Letras – Literatura Portuguesa – pela Universidade do

Estado do Rio de Janeiro, sob orientação do Prof. Dr. Flavio García, e em Letras Vernáculas - Literaturas Africanas d Língua Portuguesa - pela

Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Maria

Teresa Salgado.

169 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

A ficção se desenvolve em torno de um narrador-personagem

denominado Godofredo, esse delineado como um homem que casa

diversas vezes. Tais casamentos são pouco proveitosos,

principalmente quando se observa a forma prematura como

ocorreram seus desfechos, pois o homem após casar logo ceifa as

vidas de suas esposas.A morte talvez seja uma saída para a

infelicidade proveniente de um quotidiano monótono, já que há

sempre uma novidade em suas relações. Todavia, a narrativa não

apresenta indícios da uniformidade da convivência, pois o

esquecimento e a renovação de suas relações tornam o tempo fugidio

e a vida ―alucinada‖.

Cada mínimo elemento desenvolvido na narrativa envolve uma

apropriação do evento insólito e seu aproveitamento, porque a

personagem mesmo que aparentemente transtornada pelas

―novidades‖, que, em geral, fogem as expectativas quotidianas, as

aceita e até mesmo se beneficia delas. Assim, ―não somos lançados

ao caos mas a uma especial ordenação do caos‖ (COVIZZI, 1978, p.

31), com uma história marcado por eventos que transtornam a

realidadeintradiegética.

O insólito, que serve de móvel para o desenvolvimento da

narrativa, carrega uma ―carga de indefinição própria de seu

significado‖ (COVIZZI, 1978, p. 26). A acepção mais comum do

termo refere-se ao ―sentimento do inverossímil, incômodo, infame,

incongruente, impossível, infinito (...), inaudito...‖ (COVIZZI, 1978,

p. 26), ou seja, aquilo que ultrapassa o limite do natural e ordinário.

De acordo com o próprio Rubião, a partir da reprodução de suas

palavras por Sandra Nunes, ―é mais fácil aceitar o onírico que os

absurdos do real, pois o irreal e a fantasia parecem ser mais

verdadeiros que o cotidiano‖ (NUNES,s.n).

O conto apresenta uma diversidade de elementos insólitos, mas

um dos principais acontecimentos que fogem ao natural, ao ordinário,

ao esperado, ocorre no segundo parágrafo, visto que não é comum

170 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

um homem sentar-se por quinze anos em um mesmo lugar para

jantar, e, repentinamente, se dar conta que, a partir de um tempo

indeterminado (não-definido, vago),uma desconhecida tenha se

sentado a sua frente sem que ele nem ao menos tomasse

conhecimento:

De uma data que não poderia precisar, todos os dias, ao jantar e ao almoço, ela sentava-se à

minha frente na mesa onde por quinze anos

seguidos fui o único ocupante.

Ao me certificar da sua constante presença, considerei o fato perfeitamente natural. (RUBIÃO,

2005, p. 87, negritos nossos)

Nota-se uma falta de preocupação da personagem, que

aproveita a companhia da mulher a sua frente sem se incomodar com

esta presença, a qual, em um primeiro momento, parece não ter sido

convidada;porém, posteriormente, ele mostra um interesse

relacionado ao bem estar de sua ―vizinha‖ (RUBIÃO, 2005, p. 87). A

moça poderia se incomodar com o constante comparecimento do

homem e, por isso, ele decide procurar uma nova mesa, declarando:

―notei serem numerosos os lugares vagos‖ (RUBIÃO, 2005, p. 87).

Tanto o não reconhecimento da companheira de refeições quanto

ainusitada vontade de prevenir estar incomodando são marcas do

insólito, pois as reflexões do narrador ocorrem de repente, sem aviso,

instaurando uma aura meta-empírica.

A personagem também de modo ―inverossímil‖ não se preocupa

com a ausência de pessoas, ou o com o número reduzido, sendo

explicada depois, ao contrário, ela apenas se apropria do observado e

se revolta por ter que deixar seu lugar por uma estranha. A moça,

causando um estranhamento na personagem-narrador, o segue até

sua nova mesa e ele enfocando seu ―incômodo‖ a questiona sobre o

convite para o jantar:

― Claro! E não havia necessidade de um convite

formal para me trazer aqui.

171 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

― Como?

― Bolas, desde quando tornou-se obrigatório ao

marido convidar a esposa para as refeições? ― Você é minha mulher?

― Sim, a segunda. (RUBIÃO, 2005, p. 89)

A conversa remete ao caráter insólito da narrativa, pois ela ser

a esposa dele claramente o assusta, visto que ele não a reconhece

como tal, afinal, nem sabe quem ela é. Os elementos se conjugam e

indicam uma narrativa pautada pela irrupção do insólito ficcional.Os

estranhamentos e a denúncia dos eventos inauditos são possibilitados

pela dúvida do narrador, que clareia as irrupções do incomum por

meio de um constante esquecimento, já que se impressiona com a

companheira de refeições, mas sem reconhecê-la como cônjuge.

A mulher, ao invés de reivindicar seu papel de esposa, entra no

diálogo insólito, permitindo uma visualização da misteriosa relação.No

decorrer do conto a companheira de mesa, que é a segunda esposa,

banaliza o assassinato da primeira, tornando o homicídio (fomentado

pelo ciúme, pela busca da fidelidade) – que ele faz questão de não

querer ouvir: ―― Não me fale do crime‖ (RUBIÃO, 2005, p. 89) –,

algo comum, corriqueiro.

Godofredo, já bastante, confuso por não se lembrar nem ao

menos de ser casado, ou que dorme com ela em um mesmo

apartamento e cama, desconhece a companheira, preferindo não

tomar nem consciência do crime que esta descreve o isentando. O

narrador só se apropria de sua relação com a mulher, e da situação,

para poder ter sensações a respeito da nova mulher, de quem nem

ao menos se lembrava:

Já deitado, sentindo o calor daquele corpo, veio-me intensa sensação de posse, de posse definitiva.

Não mais podia duvidar de que ela fora minha.

Baixinho, quase sussurrando, lhe falei longamente, os seus cabelos roçando no meu rosto. (RUBIÃO,

2005, p. 91)

172 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

O desejo ―confirma‖ o casamento e a insegurança inicial se

dissipa diante dos prazeres da morada e da esposa, assim, a curta

passagem de tempo – ―os meses se aligeiravam‖ (RUBIÃO, 2005, p.

92) – indica que, a personagem até mesmo reconhece que sabia o

nome de sua mulher Geralda, desvendando sua casa como um

ambiente acolhedor e aconchegante para viver suas intimidades, isso

ao observar na estranha uma companheira com a qual troca carícias

e divide o leito.

O narrador, aparentemente cheio de cuidados para com seu

cônjuge, percebe a passagem dos dias, e sente a força

desestruturadora da rotina, do tédio e, até mesmo, da

impossibilidade de estar só, acarretando em um ser torturado que

acaba por considerar a saída derradeira. A convivência com a esposa

que inicialmente não conhecia, mas que agora o sacia, é ao mesmo

tempo prazerosa e rotineira, dessa forma, a saída possível é o

assassinato da companheira, uma liberdade possível em uma relação

que estranhamente o angustia.

A personagem Godofredo, ou João de Deus, como é chamado

por Geralda, é um ente insólito, visto que não se lembrava de sua

esposa, e repentinamente se relaciona com ela, sabendo até mesmo

seu nome. O homem, aparentemente feliz por tê-la ali para satisfazer

seus impulsos sexuais, é o que almeja matá-la por se sentir sufocado

pela presença da esposa. Ao perceber a insatisfação do esposo e a

vontade deste de enforcá-la, a estranha esposa, nada objeta, senão

que lhe dá seu pescoço em uma apatia insólito, como se nota:

Enxerguei uma corda dependurada num prego.

Agarrei e disse para Geralda, que se mantinha

abstrata, distante: ― Ela lhe servirá de colar.

Nada objetou (...) Em seguida puxei as pontas (...)

como se estivesse recebendo uma carícia. Apertei

com força o nó e a vi tombar no assoalho.

(RUBIÃO, 2005, p. 92-93)

173 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

O desfecho da relação de João de Deus e Geralda apresenta

traços cruéis, os quais caracterizam a submissão da mulher ao

homem por um viés de insólita impassibilidade. O narrador planeja

um assassinato, vestindo-a antes mesmo do efetivo enforcamento

por um manto soturno de morte e aridez de sentimentos, já que cria

a imagem da corda que ceifaria sua vida como um colar, um

presente.

Há na narrativa o maquinal desejo do narrador em exterminar a

companheira que de certa forma o fazia mal, porém não se sabe a

natureza de tal privação de liberdade, que o levasse a tirar a vida de

outra pessoa. O homem só comete o crime para retroceder ao estado

livre de outrora. Aparentemente culpada por privá-lo da liberdade de

solteiro, a esposa Geralda não discute ser assassinada, aceitamorrer.

E ele, por sua vez, não sente nenhum remorso por colocar a corda no

pescoço da mulher, sendo esta a esposa descoberta e cobiçada de

antes.Aliás, o homem preocupa-se basicamente em rumar para sua

habitual refeição no restaurante quotidiano, pois almejava retornar à

liberdade, buscando a mesa usual.

Pensando-se a respeito da composição do insólito, observa-se

que não é normal ou lógico a ausência de sentimentos de quem

morre e de quem mata, pois tanto o algoz quanto a vítima estão ou

são envolvidos pelo crime, mas na narrativa as mulheres se entregam

irremediavelmente. Ao confrontar os limites entre o sólito e o insólito,

as personagens, principalmente, as esposas serviram como

entrelaçamento entre o passado esquecido e o presente incomum,

visto que o narrador aceita recordações, mas despreza ficar preso em

―casamentos‖.

Outro elemento inaudito na narrativa é o nome João de Deus,

dado ao narrador por sua insólita segunda esposa, que,

posteriormente, se verificará como insólito, pois a personagem afirma

se chamar Godofredo.O homem declara-se como Godofredo frente a

sua primeira esposa Joana, descrita como morta, que volta

174 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

insolitamente, e lhe chama Robério, nome pelo qual ele não se

reconhece e ainda questiona: ― Robério?! (Em tempo algum me

conheceram por esse nome. Havia um erro, um tremendo engano em

tudo aquilo.) (RUBIÃO, 2005, p. 93).

Nem como Robério, nem João de Deus, a personagem deseja

ser reconhecida como Godofredo, pois, é alguém que se apropria dos

acontecimentos insólitos de seu quotidiano, descartando-os diante do

menor infortúnio. O narrador-personagem revela os acontecimentos

narrativos a partir de seu olhar sobre os ―fatos‖, descrevendo seu

quotidiano a partir de sua apropriação ou não das esposas que o

circundam, usando-as como objetos quando necessário.

Estranhamente o encontro com as esposas é tão insólito como a

forma pela qual elas saem de sua vida, já que ele não se incomoda

com suas companheiras desde que não o privem de sua ―liberdade‖

de permanecer em uma mesma mesa, no restaurante de sempre.

O leitor hesita diante de uma ―morta‖ em franco diálogo com

seu marido, o qual não há reconhece, ainda que esta aparentemente

saiba quem ele é, mesmo que o chamando por um nome

desconhecido. Entretanto, o narrador só almeja se livrar da situação,

sem nenhuma reflexão mais detida a respeito do acontecimento, uma

vez que para ele seu nome não é Robério, mas Godofredo. Observa-

se, assim, uma ruptura da lógica, com personagens que demonstram

saber quem é o narrador, porém o reconhecem não como o homem

que tem em sua frente, mas como outro.

Dessa maneira, as relações indicam uma transitoriedade do

mundo reconhecido pelo senso comum como normal, haja vista, a

banalização da morte, dada como um presente, e não percebida pela

cessação da experiência do viver. Os elementos narrativos se

conjugam, indicando o mundo não sólito, em que as relações são

efêmeras e provenientes do esquecimento e do desejo. O narrador

lembra-se das esposas por desejá-las, mas retira-lhes a vida por

considerá-las um empecilho para o pleno gozo da liberdade.

175 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Todavia, não existe no texto uma explicação natural ou

sobrenatural para a reaparição da primeira esposa, sabidamente

morta, ou para a efetiva causa do assassinato da segunda. O

narrador apenas relata seus encontros, sem nem ao menos identificar

como as esposas sabem dos assassinatos cometidos. A primeira

esposa, então, que retorna após a morte da segunda, é ainda mais

misteriosa, uma vez que aparentemente morta, sabe do

enforcamento de Geralda. A narrativa apresenta a morte como saída

para a privação da liberdade e as personagens que convivem com o

narrador como elementos coadjuvantes para a realização de suas

pulsões, tendo uma condição insólita.

Não há, assim, na narrativa uma referência, coerente e real, do

local por onde a primeira esposa esteve, de quanto tempo se passou,

de onde ela veio, de como chegou àquele restaurante e de como tem

tanto acesso a vida de um marido que nem a reconhece. A ficção se

elabora pelas lacunas deixadas pelo escritor, que tornam o narrador

uma personagem insólita, já que presente na vida das mulheres as

confunde perdido em um tempo também incomum, afinal, as idas e

vindas ocorrem sem noção de tempo, ou espaço. Os reencontros têm

como plano de fundo o restaurante, os encontros e o esquecimento,

que se bifurcam por uma efemeridade das relações.

Os crimes, presentes na narrativa, mantêm um padrão no que

diz respeito à motivação. Eles oferecem uma explicação com base no

ciúme desmedido e sem razão, passional ou coerente, sendo

justificados e apoiados pelas mulheres, as quais, ao invés de

temerem, aceitam e confortam o seu possível algoz. As esposas não

se importam com o assassinato por enforcamento, apenas o

constatam, de modo irreal, e se apropriam do ocorrido para

convencer a personagem, dizendo que é o cônjuge delas. Assim, até

mesmo o assassinato é apropriado para se garantir a posse do outro.

O homem atende as esposas pelo desejo despertado e as mulheres

pela sublimação dos aparentes problemas conjugais.

176 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

A falta de respeitoàs relações humanas e ao prematuro

―esquecimento‖ de um assassinato, relatado de forma trivial, enfatiza

um questionamento acerca dos limites entre osólito e o insólito, uma

vez que: ―sentimos que as sólidas formações sociais à nossa volta se

diluíram.‖ (BERMAN, 1987, p. 90). Dessa forma, nota-se que as

formações sociais na maioria das vezes tendem a punir os

criminosos, apesar disso, a morte prematura de uma jovem, ou de

duas, não tem a menor importância, já que a ―narrativa continua‖.

Mostra-se, então, uma dissolução das relações, sem questionamento

o homem almeja liberdade e as esposas apenas tê-lo, seja morrendo,

seja vivendo.

Sendo assim, nota-se uma estruturação do insólito focado na

apropriação da presença feminina por parte do narrador e um

desprezo ao lógico, ao esperado. Afinal, a personagem se deleita com

o carinho dado pela dita ―segunda esposa‖, sem respeitá-la, pois ao

sentir-se entediado, a enforca sem o menor remorso e volta a sua

vida quotidiana. ―Godofredo‖ demonstra se incomodar apenas com

aparência de suas esposas:

Na cadeira defronte à minha acabava de assentar-

se uma jovem senhora que, não fossem os cabelos

louros, juraria ser minha esposa. A semelhança entre elas me assombrava. Os mesmos lábios,

nariz, olhos, o modo de franzir a testa. (RUBIÃO,

2005, p. 93)

Em vista dos comentários elaborados e dos questionamentos

estruturados até aqui, observa-se os pontos de aproximação e

distanciamento da narrativa se comparada às pertencentes aos

diferentes gêneros literários. A curta memória da personagem, que

tem três nomes, ―três vidas‖, remete ao modo como esta diégese se

constrói em torno de eventos insólito, móveis da narrativa, contudo,

é necessário o questionamento a respeito do gênero ao qual o conto

poderia se filiar?

177 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

O fantástico, ou seja, a ―ruptura da ordem reconhecida,

irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade quotidiana‖

(CAILLOIS – apud FURTADO, 1980, p. 19), é um gênero ao qual

Rubião costuma ser vinculado, porém, apesar do traço do narrador

autodiegético, as personagens não hesitam entre a realidade e sonho,

ou entre verdade e ilusão (Cf. TODOROV, 1992, p. 30), os eventos

incomuns ocorrem e não há questionamento sobre sua natureza.

Outro gênero é o Maravilhoso, o qual remete a mirabilia, ou

seja, coisas admiráveis, isto é, que fogem ao curso natural das coisas

e do mundo (Cf. CHIAMPI, 1980, p. 48), no qual fica claro que a

narrativa não pertence, pois apesar de ocorrer um evento insólito,

como não lembrar que cometeu um assassinato, é evidente nesta

criação literária que não há a intervenção de seres sobrenaturais, os

quais interfiram de forma a causar no ouvinte ou leitor surpresa,

arrebatamento, admiração etc. (Cf. CHIAMPI, 1980, p. 49). O insólito

é claramente apropriado e a personagem não se admira, apenas o

aceita, já que também é um ente incomum devido ao seu continuo

esquecimento.

Segundo Todorov (1992), o gênero fantástico está no limite

entre o maravilhoso e o estranho, porém o que ele considera como

estranho, seria uma composição narrativa marcada pelo desfecho

empírico, em que há a ocorrência de um evento insólito, mas tende-

se para uma explicação racional, que consideraria o evento como

estranho, mas perfeitamente normal. A narrativa, ao contrário,

apresenta um leque de eventos insólitos, porém nem se busca

explicações para o inusitado, nem se hesita diante de sua irrupção,

há apenas sua denúncia e, posterior, acomodação.

A forma com que os eventos insólitos pululam na narrativa

remete, ainda, ao gênero do realismo maravilhoso, porém não

existem duas realidades conflitantes, apenas uma, parasitária do

mundo real, rompida por um evento insólito. À semelhança da

realidade empírica, os eventos inauditos, a começar pelo narrador,

178 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

podem ser observados como elementos de uma sociedade em crise,

já que a própria personagem, ao não se lembrar de nada, aproveita-

se da apatia das estranhas esposas para se transformar em vários,

fragmentos de um homem também incompleto.

A irrupção do insólitona narrativa aponta para a constituição de

um texto híbrido, em que o narrador autodiegético constantemente

se apresenta em um enfrentamento com o quotidiano. João de Deus,

Robério e, finalmente, Godofredo, constituem um homem que

encontra o benefício de desconhecer seu passado, além das delícias

de se descobrir ―cercado‖ ou ao menos sempre acompanhado de

belas esposas, isto é, mulheres que o aceitam e o reconhecem como

seu, enquanto ele se aproveita das circunstâncias, sem dar real valor

aos desdobramentos de suas ―decisões‖.

O narrador-personagem mata sem se lembrar, a mulher volta

após o assassinato de uma outra, todas se intitulando esposas, e,

ainda assim, ele se apropria do casamento, aproveitando suas

delícias e desprezando o homicídio. Da mesma maneira que as

demais personagens, ele não se importa, nada acontece, ninguém se

desespera, ou se emociona.

O narrador ainda encontra uma moça, sua suposta ―noiva‖,

começa tendo um pequeno estranhamento, mas, logo, ele se apropria

da ideia de uma nova companhia; afinal, ele poderia descobrir um

novo passado em sua mente, como já ocorrera,isso escolhesse o

caminho das indagações. Então, o homem reflete:

Ocorreu-me formular algumas perguntas,

possivelmente as mesmas que fizera a minha

segunda mulher, naquela noite, no restaurante. Desisti, preocupado em redescobrir uma cidade

que se perdera na minha memória. (RUBIÃO,

2005, p. 95)

Há no conto a consolidação das constantes insólitas, que

confrontam o esperado, e sua acomodação, pois ―Godofredo‖ não tem

179 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

reais lembranças e quando as têm, sabe que matou, torna isso algo

comum, incorporando o fato, assim como a mulher, ao quotidiano.

O insólito, ou meta-empírico, como afirma Furtado (s.a.), em

verbete sobre o fantástico modal, é um traço comum a diversos

gêneros canônicos; porém, é a resposta a irrupção do evento

incomum, que define a pertença ou não de uma narrativa a dado

gênero. O surgimento de um evento insólito e sua aparente

banalização pelas personagens, as quais estranham que algo tenha

acontecido, mas se apropriam dos elementos incomuns, acarreta na

percepção da hibridez narrativa, composta por traços diversos.

Nesse sentido, o homicídio e o adultério não são

problematizados pelas personagens como um elemento conflituoso.

Na atualidade, os atos cruéis, que põe em jogo o direito de ir e vir de

qualquer humano, podem, também, ser considerados insólitos, pois

colidem com os valores sociais. Ainda que a maldade seja

comumente veiculada, é sabido que o assassinato e o adultério são

desvios, rupturas, próprios de uma sociedade em crise. Lenira

Marques Covizzi, ao delimitarnuances da significação do insólito,

declara:

Um mundo em crise é um mundo não sólito (...). Crise de valores porque a realidade

convencionada, seus conceitos e representações não são mais aceitos sem dúvida. Se essa

realidade é transfigurada artisticamente numa irrealidade que a contém, e se as produções

artísticas contemporâneas enfatizam esta última

escamoteando aquela, nada mais necessário que

fazer o estudo da dosagem de ambas para

apreender a significação do objeto analisado.

(COVIZZI, 1978, p. 26-27)

A narrativa escrita numa época de crise de valores reflete o

pensamento a respeito do fazer narrativo, que enfoca tanto os

dilemas sociais quanto a constituição de um texto híbrido e

consciente de seu estatuto questionador.

180 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Segundo Berman (1987), os cenários mundiais sofrem

metamorfose e seus atores observam uma desintegração de seus

papéis com o poder de interferirem apenas por meio da

transcendência (Cf. BERMAN, 1987). No entanto, alguns desejam

como Godofredo, ser ele mesmo, mas as constantes aparições

femininas corroboram para uma perturbação, em que a personagem

se alimenta dos momentos de deleite amoroso e se livra da mulher

ao primeiro sinal de rotina. Assim, percebe-se que a personagem

fragmentada ―alimenta-se‖ do prazer momentâneo, vivendo pelos

instantes da efêmera felicidade encontrada no prazer.

O narrador teme a rotina, matando frente ao menor vestígio de

privação da liberdade, mas suas refeições, no restaurante habitual,

não o deixam entediado?A cada nova ida ao restaurante, ou a cada

refeição, Godofredo tornava-se o marido João de Deus de Geralda,

Robério de Joana, que achava chamar-se Godofredo, e finalmente, já

em sua ―casa‖ o noivo João de Deus. Estranho, insólito, meta-

empírico? A cada novo nome o narrador recebe uma nova

personalidade, mas o restaurante ―habitual‖ não o incomodava, como

se a ida ao restaurante fosse o estopim para sua renovação. Assim, o

sujeito fragmentado, e em crise, ao ir jantar, ou almoçar, tornava-se

outro menos culpado, portanto, livre.

Godofredo como um ser comum convive com uma diversidade

de sentimentos próprios das pessoas, sobrevivendo a sensações

humanas, passando por momentos relativos ao amor, à morte, à

liberdade, ao tédio.Ele evoca a concretização da estruturação dos

diversos episódios insólitos por todo o conto, mas não pretende

encontrar respostas apenas se encontrar, enfocando sua busca no

retorno ao restaurante. A personagemnem questiona, nem tenta

esclarecer os acontecimentos, apenas os aceita de forma cômoda, os

utiliza proveitosamente, tendo oportunidade e quando o aborrece o

despreza e ―naturaliza‖. Dessa forma, o narrador demonstra-se como

181 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

um ser partido infeliz em viver com o outro, mas incompleto na

solidão.

Os eventos insólitos, que irrompem no decorrer da narrativa,

não apresentam provas palpáveis e muito menos que possam ser

esclarecidas com base na razão, ou na lógica. Não há, também,

explicações para a realidade, na qual a personagem se encontra

mergulhada, pois nem o plano ordinário, nem o extraordinário são

capazes de caracterizar o mundo caótico, em que sobrevive a

personagem. O insólito irrompe amenizando a solidão, porém a

personagem inconformada com a convivência prefere o prazer da

efemeridade, aproveitando ao máximo e desprezando depois,

aparentemente, usando a morte como saída, mas nem sobre isso há

certeza, já que a primeira esposa retorna.

Em suma, os eventos insólitos, apesar de denunciados e

percebidos como meta-empíricos, acabam incorporados ao quotidiano

da personagem, sem que realmente necessitem de uma explicação

ou mudança. Uma espécie de neutralização banaliza-os e os faz

parecer próprios, apropriados, ainda que estranhos, àquele universo

constituído no interior da diegese.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRAIT, Beth. A personagem. Série Princípios. São Paulo: Editora

Ática, 1985.

BELLA JOZEF. A Máscara e o Enigma – A modernidade: da

representação à transgressão. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2006.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a

aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das letras, 1987.

CHIAMPI, Irlemar. O Realismo Maravilhoso. São Paulo:

Perspectiva, 1980.

COVIZZI, Lenira Marques. O insólito em Guimarães Rosa e

Borges. São Paulo: Ática, 1978.

182 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa.

Lisboa: Horizonte, 1980.

______. ―Fantástico (modo)‖. In: E – Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e

Humanas (Universidade Nova de Lisboa). Disponível em: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task

=viewlink&link_ id=188&It emid=2, s/n. Consultado em: 01/08/2010

às 21:00.

NUNES, Sandra. Biografia – Vida. Online: disponível na internet via http://www.murilorubiao.com.br. Arquivo consultado em 06 de junho

de 2010.

REIS, Carlos& LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina, 2000.

RUBIÃO, Murilo. ―Os três nomes de Godofredo‖. In: Contos

Reunidos. São Paulo: Ática, 2005, p. 87-95.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São

Paulo: Perspectiva, 1992.

183 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE ARTHUR ENGRÁCIO,

BENJAMIN SANCHES E CARLOS GOMES

AZEVEDO, Kenedi Santos30

1. INTRODUÇÃO

A Literatura escrita no Amazonas é conhecida por ter como

pano de fundo, na maioria dos casos, marcas regionalistas: a

floresta, o caboclo, o rio, as lendas, etc. O objetivo deste trabalho é

fazer uma abordagem onde colocar-se-á a contística amazonense, em

especial as obras A Vingança do Boto, Contos, de 1995, , o outro e

outros contos, de 1998, Mundo mundo vasto mundo, de 1996, de

Arthur Engrácio, Benjamin Sanches e Carlos Gomes respectivamente

em uma perspectiva do Fantástico, sem deixar de lado os topoi

citados anteriormente.

A escolha das obras acima referenciadas deu-se por conterem

em suas narrativas cenas entendidas como insólitas, fora do comum

e às vezes inverossímeis para a realidade humana, fazendo perguntar

o porquê de tais eventos, nascendo uma perturbação no leitor ante

esses acontecimentos considerados absurdos. É o que Todorov chama

de hesitação.

A primeira condição para o Fantástico segundo o teórico, como

ficou dito, é a hesitação, porque ―o fantástico é a hesitação

experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um

acontecimento aparentemente sobrenatural‖ (TODOROV, 2010, p.

31). Irlemar Chiampi complementa essa idéia dizendo que o

Fantástico é:

A vacilação do leitor entre uma explicação racional

dos fatos narrados (o fantasma como alucinação, por exemplo) e uma explicação sobrenatural (os

fantasmas existem), a impossibilidade de optar por

30 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras: Literatura

Portuguesa – UERJ.

184 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

qualquer das alternativas, constitui o dado objetivo

que se projeta no discurso como questionamento

das duas ordens que o leitor conhece: a natural e a sobrenatural. Os limites de ambas as normas, de

ambos os códigos, são relativizados, pela irreconciliação dos fatos narrados, seja com a

razão, seja com a não-razão (CHIAMPI, 1980, p.

55).

E continua:

O Fantástico contenta-se em fabricar hipóteses

falsas (o seu ‗possível‘ é improvável), em desenhar

a arbitrariedade da razão, em sacudir as convenções culturais, mas sem oferecer ao leitor,

nada além da incerteza. A falácia das

probabilidades externas e inadequadas, as explicações impossíveis – tanto no âmbito do mítico – se constroem sobre o artifício lúdico do

verossímil textual, cujo projeto é evitar toda asserção, todo significado fixo (idem. p. 56)

[negrito nosso].

Essa hesitação para Todorov e vacilação para Chiampi, será

comum entre a personagem e o leitor que serão conduzidas pelo

narrador a decidir no final da história narrada, se o fato por eles

experimentado é ou não real, prevalecendo assim, do começo ao fim

do relato, uma ambiguidade, que logo será um dos traços que levam

ao Fantástico. No entanto, se a personagem e/ou o leitor escolherem

uma possibilidade de solução, a empírica ou a sobrenatural, haverá

uma saída do Fantástico, entrando para um dos outros gêneros muito

próximos: o Estranho ou o Maravilhoso. Se optar pela solução

empírica tem-se então um acontecimento Estranho. Agora, se

escolher uma solução em que as leis naturais são deixadas de lado,

estará diante do Maravilhoso, viu-se deste modo que o Fantástico

vive um constante risco de deixar de ser.

Portanto para que um acontecimento possa ser considerado

Fantástico é necessário que o leitor fique sem solução em relação ao

evento insólito, com incerteza em todo o fato narrado. Como diz

185 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Vânia Pimentel (2002), ―[...] tudo que escapa à compreensão

comum, lógica racional, ou, ainda, o que gera hesitação, medo

angústia, conservando-se a dúvida até o final, [é] condição

indispensável ao gênero‖ (p. 20).

Adentrando um pouco mais nesses gêneros, veremos que há

uma relação íntima entre eles, sendo assim, não há como separar o

Fantástico dos demais. Dessa relação passam a existir então, os

subgêneros transitórios: Fantástico-estranho e Fantástico-

maravilhoso. Ambos surgem de um longo tempo de hesitação diante

do sobrenatural por parte do narrador e do leitor no decorrer do

relato, mas se em algum momento esse fenômeno for explicado de

forma natural, chamar-se-á deste modo, Fantástico-estranho; se

houver a hesitação por demorado tempo e o evento sobrenatural for

aceito por parte do narrador e do leitor, dir-se-á que é Fantástico-

maravilhoso. Todos eles serão bem entendidos na análise dos contos

a seguir. Começaremos pelo Fantástico puro, em seguida

abordaremos uma narrativa com tendência ao Fantástico-maravilhoso

e por fim analisaremos um conto considerado Fantástico-estranho.

2. O FANTÁSTICO NO CONTO O ESTROPIADO, DE BENJAMIN SANCHES

Antes de qualquer coisa, algumas considerações sobre o

escritor.

Benjamin Sanches (1915-1978) estreou sua vida literária

escrevendo poemas para o ―Jornal do Comércio‖ com o pseudônimo

Azziz. É um dos participantes ativos do Clube da Madrugada ao lado

de outros nomes da Literatura escrita no Amazonas. Publica seu

primeiro e único livro de poesias pela editora Sergio Cardoso & Cia.

Ltda. no ano de 1957 com o título Argila. A orelha do livro traz a

seguinte declaração, feita pelos editores, sobre a estréia do, então,

poeta:

186 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Benjamin Sanches: é o novo poeta que surge

aproveitando, assim, as vantagens de um

movimento literário cujos elevados propósitos já começam a modificar a fisionomia até pouco

tempo carrancuda – e sem o menor arejamento – das letras amazonenses. Perguntais quem é ele?

Na verdade leitor, temos diante de nós um nome

completamente desconhecido nas rodas

intelectuais da província, e que, pela primeira vez, aparece no frontispício de um livro de versos, se

bem que tenha publicado na imprensa de Manaus

(EDITORES, 1957).

Seis anos depois lança mais um livro, agora de contos,

intitulado o outro e outros contos. O ano é 1963. Foram suas únicas

obras. Faleceu em 1978 e ―Mal passada a primeira década de sua

morte, ninguém mais lhe lembrava sequer o nome. Dificilmente

alguém sabe quem ele foi de fato, onde nasceu e morreu ou como

viveu‖ (GRAÇA, 1998, p. 13). Ironia ou não, a passagem anterior e

as palavras de Antônio Paulo Graça têm algo em comum, sobretudo

se levarmos em consideração duas palavras: desconhecimento e

esquecimento; exatamente isso, Benjamin Sanches ficou por anos

esquecido do mundo das letras amazonenses, e deve-se ressaltar que

ele não foi o único. Benjamin Sanches destaca-se por seus escritos

com tendência modernista, exemplo disso são seus contos, todos

escritos com letras minúsculas e alinhados à direita, sobre isso Nícia

Zucolo discorre:

Benjamin Sanches pode ser lido como um daqueles

que se preocupou em realizar sua obra através da

ficção, ali efetuando a pesquisa formal, voltando-se para o seu ―instrumento de trabalho‖, isto é, a

própria linguagem. O estilo peculiar, alinhando os

parágrafos pela direita, desconsiderando iniciais maiúsculas, por certo causou estranheza na

ocasião de sua publicação, sem mencionar os

contos: um inseto consciente, viagens insólitas, linguagem alegórica, presença do maravilhoso, da

loucura sob diversos aspectos (ZUCOLO, 2005, p.

82).

187 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

E tece considerações desse esquecimento pelo qual o escritor e

suas obras passaram:

Ao se considerar a fase heróica do Modernismo,

deixam-se de fora os estados periféricos ao eixo Rio–São Paulo, por terem-no como centro de

efervescência cultural do país, e até manifestações

que possam ser enquadradas como ―condizentes‖

ao ideal de renovação estética passam despercebidas pelo grande público, muitas vezes

por desconhecimento ou descaso. Com isso,

cometem-se injustiças, deixando de lado obras consideráveis referentes ao projeto modernista, no

sentido de não apenas conferir uma identidade

cultural ao país, mas quanto ao projeto

experimentalista e renovador das letras brasileiras mesmo, caso em que se insere a contística de

Benjamin Sanches (idem.).

A partir do começo do século XXI, surgiu o interesse em

pesquisar as obras desses grandes homens, desde então, surgiram

artigos, ensaios e até dissertações, fazendo justiça a tais escritores.

Apesar de tudo, os intelectuais da região não têm reconhecimento e

prestígio fora do âmbito regional, nem mesmo nas academias das

faculdades de Letras; poucos são os que têm esse privilégio.

Depois dessa apresentação vamos à leitura do conto em

questão.

No conto o estropiado conhecemos Jerônimo, ―um matador de

peixe‖, que diferentemente dos demais pescadores não utilizava as

redes para pescar, dava preferência à bomba ―com ela conseguia

melhor pesca com menos tempo de trabalho‖ (SANCHES, 1998, p.

25). Em umas dessas aventuras pesqueiras acabou perdendo a mão,

contudo, ―apesar de ter perdido as mãos, não abandonaria a pesca

fácil da bomba, pois, habilmente arremessava-a do ângulo formado

pelo braço e antebraço e, disso, se vangloriava constantemente‖

(idem.). Temos até aqui a construção da figura de Jerônimo feita pelo

narrador, a diferença entre ele e os outros homens daquelas

188 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

redondezas. Em primeiro lugar, ele não é chamado de pescador, mas

sim de ―matador de peixe‖, isso mesmo um ―matador‖. Outra

curiosidade é a perda de seus membros. A partir deste ponto, o

estropiado é transformado em um monstrengo, um ser que é

admirado e ao mesmo tempo transmite medo a certas pessoas. A

teimosia, a impaciência e a ira são algumas de suas características.

No entanto na voz da negra Isaura ele era: um pobre-diabo!

Além da figura assustadora em que Jerônimo se tornou com a

perda dos membros, há no conto o espaço que o narrador cria no

decorrer da narrativa, principalmente quando o homem vai à pesca:

remara mais de trinta quilômetros ao longo daquela noite branca de luar, e, no momento,

deveria levar ao máximo a sua faculdade atenção,

no entanto, a lembrança daquelas imprecações traziam-no nervoso. parecia-lhe que aquelas palavras retornavam em forma de unhas desfiando

os seus nervos, enquanto a neblina da madrugada gelava a sua pele (SANCHES, 1998,

p. 26) [negrito nosso].

O narrador constrói uma atmosfera sombria e assustadora,

preparando o leitor para os acontecimentos vindouros; e é nesse

ambiente soturno que Jerônimo e um menino que o acompanha vão a

mais uma caçada aos peixes. Tenta atirar a primeira bomba, mas ela

não funciona, causando assim um início de cólera, o menino

escondido no jereré – espécie de abrigo feito de palha e armado na

canoa em forma arqueada –, fez o sinal-da-cruz, enquanto o matador

de peixes, impaciente, prepara-se para atirar a próxima bomba.

[...] encostou-o na brasa do cigarro que esmagava

entre os lábios, mas antes de arremessá-la, o

petardo, na violência do seu furor cego, espedaça-lhe a cabeça e atira o seu corpo na água, que

depois de mostrar o seu sangue, julgara tê-lo

escondido para sempre. o estampido depois de haver rolado pelo verde da folhagem, espantando

as aves, perdeu-se na crista daquela região quase

deserta (p. 27).

189 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

E a narrativa prossegue:

o imaterial de jerônimo acaçapou-se na proa envolto em maciça fumaça que foi crescendo para

os lados e para cima até se tornar transparente,

tirando-o daquele esconderijo sem o deixar sentir

que não era alguém. mesmo desagregado do corpo

não perdera a sua inatividade. no pensar existir

passou a existir no pensar (idem.).

Está-se neste momento diante de um acontecimento que não é

normal em sua naturalidade, a partir deste ponto surge a dúvida,

aquilo que Todorov chama de hesitação e Chiampi denomina

vacilação: Por que depois de ter a cabeça despedaçada com a

explosão da bomba, Jerônimo, ainda assim não perdera sua

inatividade? Até o momento pode-se dizer que o evento em questão

é Fantástico, já que em nenhum momento há uma explicação para

esse ocorrido com o matador de peixes.

O menino conseguiu salvar-se nadando até a margem do lago,

em seguida foi até as outras pessoas contar o que havia acontecido,

a morte de Jerônimo pela bomba. Muitos já sabiam que isso poderia

acontecer e lembraram-se da teimosia do homem. A negra Isaura

acrescenta ―era o último da família dos martins e nunca quis se

casar. teve uma vida cheia de nada e uma morte que ninguém

perdeu ou tirou proveito dela‖ (p. 27), mais uma vez a descrição do

homem é de alguém fora do normal. Voltando ao local do acidente,

presenciamos o momento em que ―saiu daquele fulcro de trevas,

onde agonizou o seu corpo [...]‖. Aqui, destaca-se mais uma vez o

ambiente que tende para o fantasmagórico, ou seja, um ambiente

das narrativas do Fantástico.

O conto chega a seu final e continua-se sem saber a resposta

para a pergunta feita logo acima, o porquê de tal fenômeno, a

ambigüidade ante o natural e o sobrenatural prevalece sem pender

para uma aceitação ou explicação.

190 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

a frágil embarcação levada pela correnteza, descia

desgovernada. as pesadas gotas da chuva,

acumulando-se em seu bojo, ameaçavam-na soçobrar. jerônimo, não encontrando a cuia

encuiou a mão e esgotou-a. na ilusão do ainda sou, toma o remo e passa a navegar sem cabeça e

sem os braços. acompanha-o agudo assobio de

uma brasa sonora que tenta escapar do seu

pescoço decepado (p. 28).

Portanto, no conto o estropiado há sim um evento Fantástico, e

Fantástico puro, já que em nenhum momento houve uma explicação

empírica ou sobrenatural para tal fato, além dos topoi que ajudam a

classificá-lo como conto Fantástico: noite branca de luar, neblina da

madrugada, região quase deserta, as pesadas gotas de chuva no

final, navegar sem cabeça, o assobio agudo entre outros. O ar

fantasmagórico fica claro no final quando nos deparamos com a cena

em que Jerônimo ―toma o remo e passa a navegar sem cabeça e sem

os braços‖. Sem explicação natural ou sobrenatural, estamos diante

de um conto, afinal, Fantástico. No outro tópico conheceremos um

dos seus subgêneros.

3. O FANTÁSTICO-MARAVILHOSO NO CONTO DO FUNDÃO DAS ÁGUAS: O CASTIGO, DE ARTHUR ENGRÁCIO

Assim como Sanches, Arthur Engrácio também fez parte de um

dos mais atuantes grupos de escritores do Estado do Amazonas, O

Clube da Madrugada. Nasceu em Manicoré no dia 16 de abril de

1927. Começou a vida literária a partir dos anos sessenta, sua estreia

fora com a publicação do livro Histórias do Submundo. Seguido de

outras obras de ficção, entre elas o livro A Vingança do Boto, objeto

de nossa pesquisa, que fora lançado em 1995 pela Rio Fundo Editora,

fazendo parte da Coleção Literatura Regional Brasileira.

O conto em questão começa com o diálogo entre alguns

pescadores em um lago. Os pescadores querem deixar esse lago,

191 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

porque ―os peixes estavam ficando vasqueiros, difíceis‖. Nesse

momento começa a inquietação do leitor em saber o motivo de os

peixes estarem sendo difíceis de caçar. Um deles, por nome

Argemiro, sugeriu o uso da bomba, os outros não gostaram da ideia,

e um deles disse: ―Mas o patrão já proibiu, Argemiro. Dizque a

bomba acaba com os peixes duma vez, e é uma malvadeza!‖

(ENGRÁCIO, 1995, p. 07), mas Argemiro ―lhes ponderou não fossem

na conversa do patrão. Se não pegassem os peixes, não comeriam

nem pagariam o que deviam no barracão. Não viviam daquilo?‖

(idem.). Como os outros não estavam conseguindo persuadi-lo a não

usar a bomba por saberem que ele era ―um cabra ladino e estúrdio,

tem boa conversa e etcétera e tal‖ (p. 08), tentaram outro motivo:

Dizer que o lago era encantado e havia no fundo das águas o rei dos

peixes.

-Tu pode não acreditar, mas nós já vimos ele várias vezes quando vamos pescar no lago. É um

tucunaré disconforme de grande, paidegão, e suas

escamas amarelas, de tão lisas, rebrilham ao reflexo da lua como lâminas de ouro. Em noites enluaradas ele bóia e fica contemplando o céu

talequal um boêmio apaixonado. Vem fardado de

tenente, o bichão e fuma um baita charuto. Nos

seus olhos a gente percebe só bondade e ternura. Pelo visto, não é um peixe mau e a gente não deve

instigar ele (ENGRÁCIO, 1995, p. 08).

Na passagem tem-se a descrição do que seria o monstro do

lago, o protetor desse lugar, apesar de tudo isso, o personagem

principal não acredita na história contada pelos pescadores, fazendo

com que o leitor também deixe de acreditar, se há ou não esse

monstro no lago. O ceticismo é um dos aspectos que mantêm os

fatos no âmbito do Fantástico: ―- Já vi caboco arara, mas como vocês

inda tou por ver! – debochou‖.

Depois de todas essas declarações e ponderações por parte dos

companheiros, Argemiro decidiu ir à sua casa pegar as bombas para

192 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

caçar os peixes, não estava preocupado com aquilo que os colegas

haviam falado nem com a ordem do patrão. No caminho de sua casa,

resmungou: ―Peixe quando está com manha de não morder o anzol

ou cair na tarrafa, só tem mesmo aquele remédio‖ (idem.). Chegou

ao barracão pegou todo material de pesca e voltou.

No meio do lago, parou. Na brasa o cigarro acendeu o primeiro petardo e atirou-o nágua. Não

lhe ouvindo o estampido característico,

arremessou o segundo. Esperou desta vez o tempo

necessário para que produzisse efeito e, não obtendo-o, preparava-se para lançar o terceiro,

quando uma onda gigantesca de peixes estrondou

ao redor da canoa. Sem dar tempo ao caboclo de esboçar qualquer reação, foram saltando dentro da

montaria. Sardinhas, aracu, matrinchão, pacu,

jaraqui, aruanã, curimatá, tambaqui, canela-de-velha, mapará, traíra, branquinha, pescada,

pirapitinga, por fim, foram chegando os maiores,

os surubins, os pirarucus, os capararis e os

dourados. Com o salto de uma pirarara, a canoa começou a afundar (ENGRÁCIO, 1995, p. 09-10).

Nesse momento entramos em contato com um evento insólito.

Isso começa quando as primeiras bombas jogadas por Argemiro não

estouram, seguido pela presença da onda gigantesca de peixes que

saltaram para dentro da canoa do homem. Até aqui há um

acontecimento que pode ser considerado Fantástico, já que em

nenhum momento o personagem acha uma explicação para o

ocorrido. E o conto continua descrevendo o ataque dos peixes ao

caboclo, para além dos saltos e batidas: ―Agora executavam uma

espécie de balé ao som de estranha música cujos acordes emergiam

do âmago escuro das águas‖ (p. 10), nesta passagem confirmamos

nossa hipótese de que o fato pode ser considerado Fantástico. Depois

de tudo isso, Argemiro acorda ás margens do lago, na areia, nu,

pensando que havia tido um pesadelo: ―mas ali não havia casa nem

rede, só rio, os pássaros, a terra, as árvores‖ (idem.). Em seguida

surge o que já fora definido com primordial para que haja o

193 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Fantástico: a hesitação por parte da personagem, ―Onde estava sua

canoa? E aquelas escamas colada em sua pele? E aquele pitiú

intragável que lhe desprendia do corpo?‖ (ibidem.).Sua hesitação é

acompanhada pela do leitor.

No final do conto há a seguinte passagem, importante para

classificação da narrativa na perspectiva do Fantástico: ―Não, não

fora sonho. Longe, no fim do estirão, comandado pelo tucunaré

fardado de tenente, viu ainda o imenso cardume rebrilhando ao sol as

escamas prateadas‖ (p. 11).

Diferentemente do conto o estropiado em que não há uma

explicação para o insólito, neste o personagem aceita a explicação

sobrenatural que fora dita anteriormente pelos seus companheiros.

Filipe Furtado diz:

Mediante esses processos, para além de declarar

admissível a incredulidade perante o teor insólito

da história e de representar o papel de céptico convencido, o narrador [e o personagem] deixa,

expressa ou implicitamente, ao leitor a incumbência de avaliar por si próprio a veracidade

da história (FURTADO, 2011) [negrito nosso].

Argemiro torna-se o cético, convencido segundo Furtado pela

aceitação, no final do conto, daquele fato como a história contada

pelos outros pescadores. Como ficou declarado acima, quando o

personagem e o leitor optam por uma explicação, deixando de lado a

ambigüidade criada pelo natural/ sobrenatural, foge-se do Fantástico.

No entanto, neste conto de Arthur Engrácio, há um personagem que

aceita o fenômeno como sobrenatural, levando-nos a concluir que Do

Fundão das Águas: o Castigo pode ser classificado como Fantástico-

maravilhoso. Se ele tivesse aceitado os fatos como pesadelo ou

sonho seria outra classificação que é o que propomos fazer no conto

seguinte.

194 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

4. O FANTÁSTICO-ESTRANHO NO CONTO PRETO E BRANCO, DE CARLOS GOMES

Nasce em Manaus no dia 15 de junho de 1936, o escritor Carlos

Gomes, fez parte do grupo de artistas amazonenses que compunham

o Clube da Madrugada, lança pela União Brasileira de Escritores a

primeira edição de seu livro de contos Mundo mundo vasto mundo

em 1967, obra envolta por narrativas que fogem, muitas vezes, das

estruturas comuns dos contos. Temas como o folclore, a vida

provinciana, as mazelas do povo, permeiam os relatos que compõem

Mundo mundo vasto mundo, sem falar naquelas narrativas em que o

insólito é o assunto prevalecente. E é um desses contos, Preto e

Branco, que tomaremos como objeto de nossa pesquisa, sobretudo,

no que se refere à realização de eventos sobrenaturais em seu

enredo.

A construção do fantástico está mais estruturada no conto de

Carlos Gomes. Desde o primeiro contato com a narrativa no

parágrafo inicial tomamos conhecimento de que estamos em

presença de um acontecimento fora do comum. Há um narrador que

convida o leitor para adentrar nesse ambiente obscuro onde se passa

a ação que começa assim:

Abriu os olhos na meia escuridão. Não os esfregou, mas foi como se o tivesse feito. Tudo esfumado,

qual filme velho em preto e branco. Vultos

atormentados se movimentam. O homem, mesmo jazendo, bracejava, queria desembaraçar-se da

trama, me larguem. Inútil. Os vultos estavam

entranhados nele e o mais estranho é que o homem não era senão um deles (GOMES, 1996, p.

41.

O ar sombrio é apresentado desde o início. O espaço é descrito

como ―esfumado, qual filme velho em preto branco‖ e com seres que

provocam medo ao personagem, tidos como ―vultos‖, surgem como

entidades fantasmáticas que estão ali para atormentá-lo. Até agora

195 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

esses seres são vistos como vultos, a primeira personagem que surge

é chamada de ―A mulher feia‖.

A mulher feia fazia trejeitos aliciadores. Ela se

chegara imperceptível como a velhice. Escorrera, licorosa, até o homem. Silenciosa, qual um réptil.

E agora, com aquela sua maleabilidade de fêmea,

procurava acomodar-se ao seu lado. Suas mãos

apascentavam os cabelos dele, o homem via que as extremidades dos dedos se alongavam que nem

garras. Dava medo (idem.) [grifo nosso].

Essa mulher é a verdadeira representação de uma personagem

pertencente ao gênero Fantástico. Neste momento temos uma das

características que fazem deste conto uma narrativa desse gênero, a

hesitação e o medo que aqui são sentidos pelo narrador e

transmitidos ao leitor que pode ou não aceitar. E o relato continua

com a perseguição da mulher feia ao personagem que, até agora,

não fora descrito. Sabemos apenas que é um homem. Outra figura do

conto é ―um menino de feições desconhecidas‖ que aparece catando

arroz e depois desaparece sem mais nem menos. A mulher aproxima-

se mais ainda, entretanto, o homem não conseguia ver-lhe o rosto.

Eles tiveram certo contato, trocaram beijos: ―Quando os corpos

estertoraram, o homem [perguntou] cadê a mulher? Desaparecera‖.

Mais uma vez a hesitação perante a ação desses seres que aparecem

e desparecem diante da personagem. Percebe-se que até agora não

há uma explicação para os fatos, ninguém sabe de onde a mulher e o

menino surgiram nem para onde foram. O que se sabe é que ele

abriu os olhos no meio da noite e começou a ver seres em forma de

vultos e em seguida a mulher feia e o menino. Fatos irreais, cenas

incomuns, principalmente quando surge outro menino, só que agora,

é um menino moreno que fala grosso e que tem a fisionomia da

mulher feia. Em dado momento lembra-se do jornal onde leu sobre

uma vigarista que fora presa no dia anterior, de início pensou não

conhecê-la: ―Mas o close-up retificava, conheces sim. Os olhos de

196 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

retina escorrida borrando a íris, a fisionomia tosca da mulher ridícula,

não havia tergiversar. Eram as mesmas!‖(GOMES, 1996, p. 44).

Ficou com raiva da mulher e tentou esbofeteá-la. Nesse trecho

pensa-se que a personagem consegue resolver todo o mistério dos

acontecimentos estranhos, até então narrados,quando na verdade,

tudo será esclarecido no trecho a seguinte: ―Bem que tudo não

passara de um mau sonho‖ (idem. p. 45).

O personagem descobriu que os eventos sobrenaturais que

aconteciam era apenas um sonho, ou seja, há uma explicação

racional para todos os fatos, fazendo com que aquilo que poderia ser

chamado de fantástico passe a ser considerado Fantástico-estranho.

Tudo isso nos faz concluir que o conto Preto e Branco, para além de

ser uma narrativa do Fantástico, é uma narrativa situada na transição

com o estranho, já que desde o início dos relatos a hesitação e a

ambigüidade são mantidas até a personagem e, logo, o leitor

aceitarem a explicação empírica: o sonho.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há outros contos que compõem as obras desses autores que

podem ser considerados Fantásticos, contudo optamos por trabalhar

com os três por terem maior relevância em relação àquilo que fora

proposto no início.

Por isso, os contos dos três escritores amazonenses, Benjamin

Sanches, Arthur Engrácio e Carlos Gomes podem ser enquadrados no

âmbito da Literatura Fantástica, o primeiro como Fantástico-puro, o

segundo como Fantástico-maravilhoso e o último como Fantástico-

estranho.

Claro está que a tentativa de leitura desses escritores não se

restringe apenas a temas regionalistas, nem mesmo do Fantástico

como fizemos, mas a temas que vão além dessas perspectivas,

197 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

passando por assuntos que podem ser entendidos como universais

como a política, o existencialismo, a vida urbana, entre outros.

Fazer o resgate dessas obras é valorizar o que temos de melhor

no cenário literário, não só regional, mas nacional e universal.

REFERÊNCIAS:

CHIAMPI, Irlemar. O Realismo Maravilhoso. São Paulo:

Perspectiva, 1980.

ENGRÁCIO, Arthur. A Vingança do Boto, Contos. Rio de Janeiro:

Rio Fundo Editora, 1995.

FURTADO, Filipe. Fantástico (Gênero). Disponível em: http://www.edtl.com.pt. Acesso: 21/03/2011.

GRAÇA, Antônio Paulo. ―Os mistérios de Benjamin Sanches‖ In:

SANCHES, Benjamin. o outro e outros contos. Organização: Tenório Telles. 2. Ed. rev. Manaus: Editora Valer, 1998.

GOMES, Carlos. Mundo mundo vasto mundo. 2. Ed. rev. aum. Manaus: Ed. da Universidade do Amazonas, 1996.

PIMENTEL, Vânia. Narrativas do além-real. Manaus: Editora Valer, 2002.

SANCHES, Benjamin. o outro e outros contos. Organização: Tenório Telles. 2. Ed. rev. Manaus: Editora Valer, 1998.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2010.

ZUCOLO, Nícia Petreceli. O ignorado Benjamin Sanches e o

Modernismo: uma leitura inicial de sua obra no contexto brasileiro ancorada no conto ―A Gravata‖ In: Somanlu: Revista de Estudos

Amazônicos do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura

na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Ano 5, n. 2.

Manaus: Edua/Ufam, 2005.

198 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

O HORROR E O FANTÁSTICO NA PROSA DE MANUEL ANTÔNIO

ÁLVARES DE AZEVEDO

NIELS, Karla Menezes Lopes 31

INTRODUÇÃO

Em artigo recente, Maria Cristina Batalha traça um percurso de

uma possível literatura fantástica brasileira, em que Manuel Antônio

Álvares de Álvares de Azevedo figura como o primeiro e mais

representativo autor desta vertente literária nacional ainda pouco

estudada. Para a autora ―os contos encadeados de Noite na taverna e

a peça Macário, ambos (…) publicados postumamente, em 1855,

inauguram uma estética da incerteza na ficção brasileira‖ (2010, p.

4).

Afrânio Peixoto parece ter sido o primeiro a claramente afiliar a

prosa alvarozevediana ao gênero fantástico e de horror, ao afirmar

que ―A Noite na Taverna é um conto fantástico e um conto

perverso, gótico‖ e, que ―pode estar e estaria bem, entre as obras

peregrinas desse gênero terrifico, perverso e cruel‖ (PEIXOTO, 1932,

p. 340-5).

Entretanto, embora a crítica e a historiografia literária tenham

nos legado a categorização de narrativa de gênero fantástico para

Noite na Taverna, seus contos não correspondem plenamente à

concepção desenvolvida por Tzvetan Todorov, exposta na sua

Introdução à literatura fantástica. É justamente o que postula

Roberto de Souza Causo ao afirmar que a obra não se encaixaria

estruturalmente neste modelo teórico. Para o autor, ela se amoldaria

melhor ao entendimento de H. P. Lovecraft, para quem a atmosfera,

o medo e a ―intensidade emocional‖ (CAUSO, 2005, p.105)

provocadas são fatores essenciais ao fantástico. Causo argumenta

31 Karla Menezes Lopes Niels, mestranda de literatura brasileira.

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Campus Maracanã.

Bolsista CAPES [email protected]

199 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

que ―apenas (...) ―Solfieri‖, apresenta essa ambiguidade, ou seja, a

―hesitação entre uma explicação natural e uma sobrenatural‖

(CAUSO, 2003, p.104).

O que nos intriga, então, é se as narrativas de Noite na taverna

apresentam ao menos a principal condição necessária à concepção do

fantástico – a hesitação diante de um acontecimento aparentemente

sobrenatural –, levando também em conta que o ―fantástico implica

(...) não apenas a existência de um acontecimento estranho, que

provoca hesitação no leitor e no herói; mas também uma maneira de

ler‖. (TODOROV, 2007, p. 38).

Refletindo sobre tal possibilidade, avaliamos sua adequação à

concepção todoroviana. Num segundo momento, consideramos a

pertinência de classificar as narrativas de Azevedo sob uma outra

perspectiva: como uma narrativa de horror, já que este tem sido por

muito considerado um subgênero do fantástico. Para tal, utilizamos

as reflexões críticas de ficcionistas como Horace Walpole, Edgar Allan

Poe, H. P. Lovecraft e Stephen King, reflexões que têm concebido a

literatura de horror como ―um artefato produtor de uma emoção

específica: o medo e suas variações‖ (FRANÇA, 2008, p. 1).

UMA BREVE INCURSÃO PELO FANTÁSTICO E GÊNEROS VIZINHOS

Segundo o dicionário Caldas Aulete, ―Fantástico‖, no âmbito

literário, refere-se à ―modalidade de narrativa (romance, conto etc.)

em que elementos sobrenaturais se misturam à realidade" (AULETE,

2008). Mas, mesmo dentro dos Estudos Literários, a definição de

literatura fantástica e de horror tem-se mostrado um conceito

inequívoco.

Para Todorov, o fantástico implica a existência de

acontecimentos inexplicáveis, imprecisos; e a ―possibilidade de

fornecer duas explicações ao acontecimento sobrenatural e, em

200 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

consequência, o fato de que alguém devesse escolher entre ambas‖

(idem, p.32). Observa-se, portanto, que o leitor implícito deve

integrar-se à narração, e hesitar junto com o personagem diante de

um fato aparentemente sobrenatural.

A hesitação, portanto, é a essência do fantástico na narrativa

ficcional, e surge como um efeito decorrente de:

(...) um acontecimento que não pode ser explicado

pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele

que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos

sentidos, de um produto da imaginação e nesse

caso as leis do mundo continuam a ser o que são;

ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta

realidade é regida por leis desconhecidas para nós.

(TODOROV, 2007, p.30)

O fantástico ocorre nesse momento de hesitação do

personagem e do leitor em relação ao caráter ―sólito‖ ou ―insólito‖

daquilo que é narrado. Em outras palavras, mais do que a

sobrenaturalidade misturada à realidade, é necessária a dúvida.

O gênero, portanto, só se concretiza se tal hesitação não tiver

solução; se a ambiguidade causada se mantiver até o final da

narrativa. Se produzida somente ―durante uma parte da leitura‖,

temos ―o efeito fantástico‖ (TODOROV, 2007, p. 48), e não a

configuração completa do gênero. A presença desse efeito em partes

da narrativa funciona como um fator que nos leva a considerá-la

como de estatuto oscilante, transitando entre o estranho e o

maravilho.

O estranho, se mais próximo ao fantástico, apresenta

acontecimentos aparentemente sobrenaturais que ao final da

narrativa recebem uma explicação natural, ainda que tenham um

―caráter insólito‖ (TODOROV, 2007, p. 51). Quando puramente

estranho, temos o real colocado sob um espectro que provoca uma

reação de estranhamento ou de repugnância, tanto aos personagens

201 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

quanto aos leitores. No maravilhoso, diferentemente, os

acontecimentos apresentam uma explicação propriamente

sobrenatural, isto é, não podem ser entendidos a partir de leis físico-

naturais, e ainda ―não provocam qualquer reação particular nem nas

personagens, nem no leitor implícito‖ (ibid, p. 60).

Quando, diante da incerteza, personagem ou leitor optam por

uma das duas explicações possíveis, natural ou sobrenatural,

estaremos no âmbito desses dois gêneros vizinhos ao fantástico.

O gênero, portanto, só se concretiza se a hesitação não tiver

solução, se a anfibologia causada por determinado acontecimento se

mantiver até o final; e citando Louiz Vax Todorov ressalta que ―a arte

fantástica ideal sabe se manter na indecisão‖ (TODOROV, 2007,

p.50). Felipe Furtado, em A construção do fantástico na narrativa

(1980) enfatiza que:

Só o fantástico confere sempre uma extrema duplicidade à ocorrência meta-empírica (...). A

ambiguidade resultante de elementos

reciprocamente exclusivos nunca pode ser desfeita até ao termo da intriga, pois, se tal vem a acontecer, o discurso fugirá ao gênero mesmo que

a narração use de todos os artifícios para nele a

conservar (FURTADO, 1980, p. 35-36).

A hesitação ou a ambiguidade, portanto, não é apenas uma

característica desse tipo de literatura, mas sua principal condição.

A NOITE NA TAVERNA SOB O PRISMA TODOROVIANO

Constituída por sete contos correlacionados, como uma

narrativa em moldura, a obra apresenta um ambiência lúgubre e

noturna. O primeiro e o último contos desenrolam-se na própria

taverna onde acontece uma orgia, de que participam os personagens

e os narradores dos outros contos, criando-se assim a atmosfera

ideal para o que virá a seguir: seis homens bêbados relatando

202 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

histórias recheadas de promiscuidade, sexo ilícito, antropofagia,

necrofilia, sequestro, assassinatos bárbaros. Diferentemente dos

demais contos, estes são narrados por um narrador onisciente e

marcados pelo diálogo entre seis personagens: os cinco narradores,

Archibald, que aparece somente no primeiro conto, e Artur, que narra

a conclusão da história de Johann no penúltimo conto.

Mas é sobretudo o primeiro que parece preparar o ambiente

sombrio dos contos subsequentes, quando Archibald sugere aos

convivas que narrem contos fantásticos e sanguinolentos, ―como

Hoffmann os delirava ao clarão dourado de Johannisberg‖ (AZEVEDO,

2000, p. 567).

Cada um dos convivas conta a sua história. Verdade, sonho ou

alucinação, as ações narradas não apresentam quaisquer

acontecimentos inexplicáveis, e os poucos que aparecem são

facilmente naturalizados ao fim de cada narrativa. Por isso, propomos

que somente os contos ―Solfieire‖ e ―Gennaro‖ apresentam um

possível efeito fantástico advindos da ideia de morte e sobrevida.

Em ―Solfieire‖, o narrador relata que, numa noite escura e

chuvosa em Roma, vê uma sombra de mulher, ouve-a chorar e

segue-a pelo

labirinto das ruas (...) Aqui, ali, além eram cruzes

que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-

se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite. Não sei se adormeci, sei apenas que

quando amanheceu achei-me a sós no

cemitério. (AZEVEDO, 2000, p. 568 – o grifo é meu).

Nesse ponto começa a ser criada a atmosfera ideal do

fantástico: a suspeita, a hesitação. O cemitério é um lugar sombrio

que remete à morte. Achar-se a sós e à noite em um lugar como esse

gera desconforto não só ao narrador, mas também aos que o ouvem.

Na sequência de sua narrativa, Solfieire conta que, após uma

orgia, um ano depois do acontecimento supracitado, fora de si

203 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

caminhou pelas ruas até o mesmo cemitério, ao encontro de um

caixão entreaberto. Ao ver a mulher adormecida, retira-a de dentro

do caixão, beija-a, despe-a. Ressalta que ela era como uma estátua.

O que se segue parece uma relação necrófila. A partir desse

momento, o leitor, bem como os ouvintes de Solfieire, têm a

impressão de que a morta revive a partir da volúpia causada pela

―paixão‖ do protagonista.

A cena fantástica é naturalizada quando retoricamente o

protagonista pergunta aos amigos boêmios: ―Nunca ouvistes falar em

catalepsia?‖ (AZEVEDO, 2000, p. 569) 32. É resolvida, portanto, a

questão da hesitação, ao se apresentar uma solução natural para o

fato. E, ao mesmo tempo, a escolha dessa solução ameniza a questão

moral e social da necrofilia. Assinale-se que o trabalho com temas

ligados à morte e à necrofilia são patentes na literatura de caráter

fantástico, pois a ―necrofilia toma pelo general a forma de um amor

com vampiros ou com mortos que voltaram a habitar entre os vivos‖

(TODOROV, 2007, p. 72)

No quarto conto, Gennaro engravida a filha do seu senhorio e

mestre, Godofredo Walsh. Ao se ver grávida, desamparada e não

correspondida por Gennaro, a menina provoca um aborto e adoece

profundamente. Em delírios, no seu leito de morte a jovem confessa

que matou o filho ainda por nascer: ―(...) Fui uma louca... Morrerei...

por tua causa... teu filho... o meu...vou vê-lo ainda... mas no céu...

Meu filho que matei... antes de nascer...‖ (AZEVEDO, 2000, p. 584)

Os dias após a morte de Laura são marcados pela traição de

Gennaro e Nauza, esposa do Walsh, e pela dor e loucura do pai da

moça, até o momento clímax:

(...) um tremor, um calafrio se apoderou de mim.

Ajoelhei-me, e chorei lágrimas ardentes. Confessei

32Essa pergunta subentende o horror que o relato deve ter causado aos

interlocutores de Solfieire, como também demonstra o conhecimento do

autor sobre o impacto que a cena poderia suscitar no seu público alvo.

204 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

tudo: parecia-me que era ela que o mandava,

que era Laura que se erguia de entre os

lençóis de seu leito, e me acendia o remorso, e no remorso me rasgava o peito (ibid, p. 585- o

grifo meu).

Como vemos, há apenas uma sugestão de sobrenatural, ao se

insinuar a influência de Laura sobre seu pai após seu falecimento,

quando o protagonista diz que parecia ―que era ela que o mandava,

que era Laura que se erguia de entre os lençóis de seu leito” para lhe

acender o remorso (ibid, p.585)

O uso do verbo ―parecer‖ no pretérito imperfeito do indicativo

subentende um aspecto indutivo e ―introduz uma distância entre a

personagem e o narrador‖ (TODOROV, 2007, p. 44), mesmo se

tratando de um narrador-personagem. Portanto, a modalização

propicia a sugestão do sobrenatural, constituindo uma modalização

verbal que pede a intervenção do leitor para que preencha a lacuna

ali deixada. O verbo, portanto, introduz uma sugestão que não se

aprofunda no decorrer do conto, fazendo-se necessário que o sujeito

participe na construção do sentido do que é sugerido. Para um leitor

cético a sugestão passa por alto e a leitura encaminha-se para a

solução natural. Já um leitor com determinadas crenças religiosas

direcionaria provavelmente sua leitura para uma solução

sobrenatural. Caberá, portanto, ao leitor preencher esse vazio do

texto como lhe aprouver.

Os acontecimentos subsequentes conduzem o velho ao crime

passional. Tenta assassinar Gennaro e em seguida mata Nauza, sua

esposa, e se suicida; desfecho passional que se repetirá no conto

―Claudius Herman‖. Claudius ministra drogas à Duquesa Eleonora,

por quem se apaixonara, e mantém, noite seguidas, relações sexuais

com ela, até que resolve sequestrá-la. Quando Eleonora acorda num

quarto de estalagem, perplexa e sem saber o que acontecia, Claudius

lhe conta tudo o que havia feito e lhe propõe que abandone seu

205 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

marido. Ela aceita a proposta, o que conduz a narrativa a um duplo

crime passional. O protagonista encontra

o leito ensopado de sangue e num recanto escuro

da alcova um doido abraçado com um cadáver. O cadáver era o de Eleonora, o doido (...) Era o

Duque Maffio (AZEVEDO, p. 600).

A tematização de situações moralmente condenáveis, como

estupro, sequestro e crime passional, configuram aspectos do campo

real, sem nenhuma presença de fatores que provoquem hesitação e

consequentemente o surgimento do efeito fantástico, o mesmo se

constatando nos demais contos; ―Bertram‖ e ―Johann‖.

No conto ―Johann‖, um jogo de bilhar faz com que o narrador e

seu adversário, Artur, se desentendam. É proposto um duelo armado.

Artur é atingido e, ao cair moribundo, aponta para seu bolso, de onde

Joahnn tira dois bilhetes e um anel. No segundo bilhete, havia a hora

e o endereço de um encontro: ―uma hora da noite na rua de... nº 60,

1º andar; acharás a porta abertas. Tua G.‖ (ibid, p. 604). O narrador,

então, resolve se passar pelo ―morto‖ e vai encontrar-se com a noiva

de Artur, passando com ela uma noite de amor. Ao sair do quarto da

moça, envolve-se numa briga e mata um homem, que depois

descobrirá ser seu irmão, o que o faz perceber que acabara de

cometer incesto seguido de fratricídio. A descoberta assombra o

narrador:

aquele homem (...) era do sangue do meu sangue – era filho das entranhas de minha mãe como eu –

era meu irmão: uma idéia passou ante meus olhos

como um anátema (...) abri a janela, levei-a até ali

(...) Era minha irmã! (ibid, p. 605)

As ações deste conto encaminham-nos ao conto final, intitulado

―Último beijo de amor‖. De volta à taverna, onde todos os convivas

estão caídos praticamente em coma alcoólico, uma mulher vestida de

negro adentra o recinto, procurando por um dos presentes. Diante de

206 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Artur, o reconhece como o seu amado, que acreditava estar morto.

Mas, ao ver Johann, seu rosto torna-se mais sombrio. Ela então o

mata. Nesse momento, o leitor descobre que se trata da mesma

mulher do conto anterior – a irmã violada se vinga. Volta-se para

Artur e se despede. Na sequência, Giorgia morre de forma

inexplicada, e Arthur suicida-se, cravando um punhal no peito.

Incesto, fratricídio, vingança, assassinato, suicídio, ações

moralmente condenáveis, mas que se dão no âmbito do mundo

natural. Apesar do estranhamento suscitado pela leitura dessas

narrativas, não há sobrenaturalidade misturada à realidade, e nem

mesmo hesitação diante de um acontecimento aparentemente

inexplicável.

A NOITE NA TAVERNA - FICÇÃO DE HORROR?

Como vimos, no estranho o real é colocado sob um prima que

provoca uma reação de estranhamento ou de repugnância, tanto nos

personagens quanto nos leitores. As obras pertencentes a esse

gênero costumam apresentar acontecimentos puramente explicados

pelas leis naturais, mas que de certa maneira causam impacto

semelhante ao de um texto fantástico. Isso ocorre também com a

literatura de horror, e segundo o próprio Todorov a pura literatura de

horror pertence a esse gênero:

O estranho realiza (...) uma só das condições do

fantástico: a descrição de certas reações, em particular o medo; está ligado unicamente aos

sentimentos das personagens e não a um

acontecimento material que desafie a razão. (TODOROV, 2007, p. 53).

Tendo em vista esse fato, é pertinente a relação estabelecida

entre o estranho e o horror, e assim vale considerar os aspectos de

recepção citados pelo ensaísta: ―(...) as cenas de crueldade, o gozo

no mal, o assassinato (...) provocam o mesmo efeito. O sentimento

207 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

de estranheza parte, pois, dos temas evocados, os quais se ligam a

tabus mais ou menos antigos.‖ (ibid, p. 55). Observamos, com efeito,

que o ―sentimento de estranheza‖ por ele mencionado é o que

justamente parece acontecer em Noite na taverna.

A ―estranheza‖ que emana das narrativas de Noite na taverna é

comparável à dos acontecimentos de ―A queda da casa de Usher‖, de

Edgar Allan Poe. Murilo Gabrielli afirma:

Os acontecimentos narrados por Solfieri, Bertram,

Gennaro, Claudius Herman e Johann (...) são tão racionalmente explicáveis quanto a ressurreição de

Madelaine ou o desmoronamento da mansão

Usher. Contudo tamanhas e tão bizarras são as concidências que, como acontece em Poe, a

impressão resultante é a de um mundo

improvável, regido por uma casualidade estranhamente caprichosa (2004, p.68)

Esse sentimento de estranheza foi posto em evidência por

Antonio Candido, ao afirmar que a atmosfera criada pelo jovem autor

teria conseguido produzir ―(...) um mundo artificial e coerente, um

jogo estranho, mas fascinador, cujas regras aceitamos‖ (CANDIDO,

1981, v2, p. 189). Tal estranheza provoca um desconforto no leitor

que o atrai à leitura, um desconforto que se aproxima do medo, se

visto como um efeito de leitura.

Walpole inaugura uma tradição reflexiva sobre os efeitos

receptivos da literatura de horror, por levar em consideração o medo

como um efeito de leitura. Allan Poe, por sua vez, explicita que a

primeira consideração a ser feita antes da elaboração de uma obra de

tal gênero deve referir-se ao efeito que se deseja produzir no leitor.

Ambos os autores estavam menos preocupados com o enredo ou

outros elementos estruturais da narrativa, e muito mais em entender

como alguns fatores poderiam mobilizar o público alvo,

encaminhando-o a um clímax emocional, chocante ou apavorante.

208 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Davi Roas, teórico contemporâneo do fantástico, vê o medo

como fator essencial aos gêneros que se desdobraram do gótico do

século XVIII, a saber, o fantástico romântico e as posteriores as

narrativas de horror . Diz ele:

El lector, como los personajes de la novela, es

enfrentado a unos fenómenos cuya presencia

excede toda capacidad de comprensión, y ante los cuales no cabe otra reacción que la sorpresa, la

duda y el temor. Y así, todo aquello que

representaban esos seres sobrenaturales (que podemos resumir en el miedo a la muerte ya lo

desconocido) se trasladará al mundo de la ficción ,

para seguir aterrorizando al hombre. Peró éste ya

no será un terror creído, sino un terror, como dije antes, gozado.

Lovecraft, por outro lado, fala-nos do medo do desconhecido

como algo inerente à constituição humana. As ―literaturas de horror‖

estão justamente relacionadas a esse sentimento de medo físico ou

psicológico e ao, desconforto que determinados temas podem

despertar no leitor – o medo do desconhecido ou a ocorrência de

eventos sobrenaturais que chamados pelo ensaísta de ―medo

cósmico‖33.

Quando consideramos Noite na Taverna a partir das premissas

de Lovecraft, observamos que a obra de Azevedo privilegia o que o

ensaísta chama ―medo físico‖ ou ―horrível vulgar‖ 34 (LOVECRAFT,

2007, p. 16), uma produção superficial e inferior à primeira, ou seja,

33 É aquele que está relacionado com os resquícios da primitiva consciência

humana, suscetível a crenças em realidades obscuras e desconhecidas e à

margem do que se entende por natural. Neste, a incerteza e o perigo

seriam os catalisadores do medo e suas variações. ―Uma certa atmosfera inexplicável e empolgante de pavor de forças externas do homem precisa

estar presente‖; ―atmosfera é a coisa mais importante, pois o critério final

de autenticidade não é a harmonização de um enredo, mas a criação de

uma determinada reação.‖ (LOVECRAFT: 2007, p. 17). King, por outro lado,

argumenta que ―o enredo sempre foi a virtude da história de horror‖ (KING: 2003, p. 197-8)

34 O simples assassinato ou apelos violentos em que o maior medo gerado

não é o medo do desconhecido ou do obscuro, mas da morte e da dor física.

209 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

o ―medo cósmico‖, pois valoriza aspectos físicos e não sobrenaturais.

No entanto, o ensaísta afirma haver a possibilidade de somente parte

de uma obra ser capaz de produzir tal tipo elevado de medo:

(...) boa parte da obra fantástica mais seleta é

inconsciente, aparecendo em fragmentos

memoráveis espalhados por material cujo efeito

geral pode ser de molde muito diferente. (ibid, p. 17)

Em consonância com isso, encontramos na obra

alvarozevediana alguns pontos de incerteza em que possivelmente

haveria o dito ―medo cósmico‖. Por exemplo, em ―Solfieiri‖, quando a

jovem, que o leitor supunha morta, desperta, tem-se essa sensação

de sobrenatural, um leve medo cósmico – a incerteza que Todorov

chama ―efeito fantástico‖ (TODOROV, 2007, p. 48), até que o fato é

explicado natural e cientificamente como catalepsia.

Outro conto que suscita a mesma sensação é ―Gennaro‖,

quando o sobrenatural é apenas sugerido ao se insinuar a influência

de Laura sobre seu pai após seu falecimento.

Mas o que dizer dos contos que parecem privilegiar o que o

Lovecraft chama ―medo físico‖ ou ―horrível vulgar‖? Stephen King

apresenta para as narrativas de horror três níveis de medo, ―em

função do caráter mais implícito ou explícito dos elementos que

utilizam para produzir o medo.‖ (FRANÇA, 2008, P.6), a saber:

―terror‖, horror‖ e ―repulsa‖. Este último conceito, que é mais

evidente em Noite na taverna, para nós, se aproxima do que

Lovecraft postulou como ―medo físico‖ ou ―horrível vulgar‖.

Mais do que o trabalho com monstruosidades e anormalidades,

a repulsa refere-se às sensações produzidas por cenas ou aspectos

repugnantes, cujas causas podem ser encontradas em coisas que não

são por convenção entendidas como tal. Trata-se de um nível mais

explícito de medo, que procura provocar no leitor algum tipo de mal-

estar físico ou de indignação moral. Em Noite na taverna, a repulsa

210 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

não é física, mas sobretudo moral. A transgressão da moralidade é

evidente através dos temas tabus com os quais trabalha –

Antropofagia, necrofilia, incesto, fratricídio, crimes passionais, etc. –

que são apresentados sob uma perspectiva social de anormalidade.

Primeiro comentamos aqueles relacionados à morte a

decomposição humana. Para King ―a morte e a decomposição‖

tornam-se inevitavelmente horríveis e inevitavelmente um tabu‖

(KING, 2003, p. 111). Como para a grande maioria da humanidade a

morte é um mistério, constitui-se assim como o perfeito ponto de

pressão ―psicológica‖ (ibid, p. 64).

O trabalho com a ―morte e a decomposição‖ é evidenciado em

―Solfieiri" através da violação sexual do cadáver da moça.

Entretanto, o tema é abordado sob uma ótica romântica. A cena,

ambientada dentro de uma igreja, cria a imagem da donzela

adormecida, da virgem intocada e idealizada:

Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela

assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo os despe a noiva. Era uma

forma puríssima; meus sonhos nunca tinham evocado uma estátua tão perfeita. Era mesmo uma

estátua: tão branca ela era. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. (AZEVEDO, 2000, p. 569)

O autor não só propõe uma brincadeira com ―a morte e a

decomposição‖, através da necrofilia, mas o faz com certo erotismo.

Um erotismo que permite que a cena não chegue a chocar tanto

quanto chocaria se o corpo já estivesse em estado de putrefação e se

não fosse amenizado pela catalepsia da moça, fatores que, no

entanto, não suavizam a tendência necrófila do protagonista, posta

em evidência quando ele a enterra sob seu leito.

Em ―Bertram‖ o medo da morte, o instinto de sobrevivência,

traz à tona outro tema controvertido que surge na última aventura

narrada pelo conviva – a antropofagia. Quando, após um naufrágio,

211 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

restam em uma jangada somente três pessoas – o narrador, o

comandante e a mulher do comandante e amante do protagonista –

sem terem o que comer, decidem que um deles deve morrer: o

comandante. O narrador explica a sua atitude aos seus ouvintes,

alegando ser ―um fato velho e batido, uma prática do mar, uma lei do

naufrágio‖ (AZEVEDO, 2000, p.580), no intuito de justificar a prática

pela necessidade de sobrevivência. No entanto, em uma cena

posterior relata que, depois de alguns dias, as aves baixavam para

partilhar sua ―presa‖ (ibid, p. 581). Ao se referir ao corpo do

comandante como uma presa, o narrador alude à ferocidade humana

diante de situações extremas, ressaltando muito mais a

monstruosidade do ato do que a necessidade da sobrevivência.

Entretanto, o que pode ser considerado tabu: somente os

temas relacionados à ―morte e à decomposição‖? King faz um

comentário que nos permite ampliar as fronteiras das interdições

sociais de Noite na taverna:

Todo escritor de horror tem uma concepção clara – talvez até mesmo morbidamente hipertrofiada – de onde termina o país do socialmente (ou

moralmente, ou psicologicamente) aceitável e

começa o grande vazio demográfico do tabu.

(KING, 2003, p. 216)

Os temas ligados à sexualidade também estão presentes em

muitas questões que envolvem tabus, principalmente quando levam a

comportamentos passionais. Os contos ―Betram‖, ―Claudius Herman‖

e ―Johann‖, comentados anteriormente, exemplificam o trabalho com

o tema do tabu sexual.

Com exemplo vale citar a história de amor entre Bertram e

Ângela, primeira aventura do terceiro conto, por exemplo, expõe com

franqueza a temática passional. Para conseguir ficar junto ao amante,

Ângela mata o marido e o filho cruelmente. O impacto da cena do

assassinato é tão forte que leva o narrador a descrever o

212 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

impressionante caráter frio, sanguinário e monstruoso do ato de uma

maneira que também impressiona o leitor. Vejamos:

Ela foi buscar uma luz, e deixou-me no escuro.

Procurei, tateando, um lugar para assentar-me: toquei numa mesa. Mas ao passar-lhe a mão senti-

a banhada de umidade: além senti uma cabeça fria

como a neve e molhada de um líquido espesso e

meio coagulado. Era sangue... Quando Ângela veio com a luz, eu vi... era

horrível!...O marido estava degolado.

Era uma estátua de gesso lavada de sangue... Sobre o peito do assassinado estava uma criança

de bruços. Ela ergueu-a pelos cabelos... Estava

morta também: o sangue que corria das veias

rotas de seu peito se misturava com o do pai! (AZEVEDO, 2000, p. 573)

A atitude dessa mulher transgride não só o sexto mandamento

bíblico – ―não matarás‖ –, como adentra os limites do socialmente

considerado monstruoso, ao matar o próprio filho para a obtenção do

prazer sexual. Presenteia o seu amante com o crime, com a morte e

o sangue daqueles que constituíam o principal obstáculo à plenitude

daquele amor, antes ―apenas‖ imoral e proibido, e agora,

monstruoso. As reticências entre as frases demonstram a hesitação

do narrador em continuar a narração por não crer no que via, até

que, finalmente, conclui com o detalhe mais horrível da cena: ―o

sangue que corria das veias rotas de seu peito se misturava com o do

pai!‖ (AZEVEDO, 2000, p. 573).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Qual a relação, portanto, que encontramos entre o efeito

fantástico, o medo cósmico e o terror em Noite na taverna? O gênero

fantástico, segundo Todorov, está atrelado à incerteza dos

acontecimentos. Se o narrador opta por uma saída natural ou

sobrenatural para explicar os fenômenos descritos, entramos em

213 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

outros dois gêneros, o estranho ou o maravilho. São gêneros que se

sobrepõem, além de apresentarem estreita relação estrutural no que

tange ao seu caráter insólito, e às diferenças entre ambos só se

configuram mediante a apresentação da explicação dos

acontecimentos.

A hesitação momentânea – o efeito fantástico – não

configuram o gênero, mas constituem um elemento que nos leva a

considerar o fantástico de Noite na Taverna como de existência

oscilante, transitando entre o maravilhoso e o estranho. Todorov

argumenta que poucas são as obras que conseguem manter a

incerteza, como A volta do parafuso, de Henry James (TODOROV,

2007, p. 48-50). No entanto, um grande número de obras consegue

manter essa ambiguidade durante um trecho ou mais do enredo. O

ensaísta cita, por exemplo, os contos ―A queda da casa de Usher‖ e

―O Anjo Bizarro‖, de Edgar Allan Poe, e o romance O caso dos dez

negrinhos, de Agatha Chistie, os quais considera como obras ―metas-

estranhas‖ (ibid, p. 54), em que

(...) as cenas de crueldade, o gozo no mal, o assassinato que provocam o mesmo efeito. O

sentimento de estranheza parte, pois dos temas evocados, os quais se ligam a tabus mais ou menos antigos. (ibid, 2007, p. 55)

A Noite na taverna como um todo se ajusta mais plenamente

ao estranho do que ao fantástico, tendo em vista que somente os

contos ―Solfieiri‖ e ―Gennaro‖ apresentam um possível efeito

fantástico. A ausência de hesitação nos demais contos exclui a

possibilidade de classificar a obra no seu conjunto como uma

narrativa fantástica segundo a visão todoroviana.

Mas se levarmos em conta o fato de que a obra mobiliza o leitor

através de questões sociais, causando-lhe uma sensação de

estranheza e desconforto, que entendemos como repulsa moral,

confirmamos a hipótese levantada no início deste artigo: Noite na

214 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

Taverna pode ser considerada como uma narrativa de horror segundo

as premissas de Stephen King. Assim, concordamos com Cilaine

Alves, umas das maiores estudiosas de Álvares de Azevedo na

atualidade, quando afirma que a obra ―foi a precursora, no Brasil, da

narrativa de horror, ambientada em lugares sombrios.‖ (ALVES,

2004, p. 119).

REFERÊNCIAS:

ALVES, Cilaine. ―A fundação da literatura brasileira em Noite na

Taverna”. In: Intinerários, Araraquara, 22, 2004, pp. 115-133.

AZEVEDO, Álvares de. Obra completa: volume único.Org. Alexei

Bueno; textos críticos, Jaci Monteiro ... et alii – Rio de Janeiro: Nova

Aguilar, 2000.

BATALHA, Maria Cristina. ―A literatura fantástica seu lugar na série

literária brasileira‖. In: Actas del Coloquio Internacional Fanperu. Centro de Estudos Antonio Correjo Polar, Lima, 2010. pp. 39-53.

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura brasileira. Belo

Horizonte: Itatiaia, 1981. 2v

CAUSO, Roberto de Souza. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil; 1875 a 1950. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

ECO, Umberto. ―Sobre algumas funções da literatura‖ (p. 9-21), In: Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Ed Record, 2003

FANTÁSTICO. In: AULETE digital: dicionário contemporâneo da

língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon Ed. Digital, 2008. Disponível em: <www.auletedigital.com.br>

FRANÇA, Julio. ―O horror na ficção literária; reflexão sobre o

"horrível" como uma categoria estética‖. In:___. Anais do XI

Congresso Internacional da Abralic. São Paulo, 2008.

______. ――Terror‖, ―Horror‖ e ―Repulsa‖: Stephen King e o cálculo da

recepção‖. In: Anais do IV Painel “reflexões sobre o insólito na

narrativa ficcional”; tensões entre o sólito e o insólito. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <www.dialogarts.uerj.br>

KING, Stephen. Dança macabra: o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na televisão dissecado pelo mestre do

gênero. Tradução de Louisa Ibañez. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

215 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142

LOVECRAFT, Howard Phillips. O Horror Sobrenatural em

Literatura. Tradução de Celso M. Paciornik. Apresentação de Oscar

Cesarotto. São Paulo: Iluminuras, 2007.

ROAS, Davi. ―El nacimento de lo fantástico‖. In: De la maravilla al

horror : Los inicios delo fantástico en la cultura española (1750-1860). Pontevedra: Mirabel Editorial, 2006.

TABU. In: AULETE digital: dicionário contemporâneo da língua

portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon Ed. Digital, 2008. Disponível

em: <www.auletedigital.com.br>

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad.

Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Pespectiva, 2007.