caderno povos floresta ii

Upload: bibliotecadafloresta

Post on 14-Apr-2018

236 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    1/35

    C Pv F 2

    O Homem da floresta

    Dzmb/2008

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    2/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 3Chico Mendes

    Semente de Mulungu (Erythrina speciosa)

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    3/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 5Chico Mendes

    O Acre celebra em 2008, decretado Ano Chico Mendes pelogovernador Binho Marques (PT), a memria do seringueiroassassinado h 20 anos no quintal de sua casa em Xapuri. Aprogramao tem seu pice entre 15 e 22 de dezembro, semanatrgica para o homem que, em 1988, j se transformara no grandedefensor da Amaznia contra o desmatamento e as queimadas.

    Esta edio de Cadernos da Floresta trata da vida e morte desselder que apresentou um modelo de desenvolvimento para a regiocontrariando os clculos da chamada modernidade.

    Muito se tem falado, escrito e lmado sobre Chico Mendes, no

    Brasil e em vrios pases que hoje reconhecem nele um smbolo doambientalismo global. Para os acreanos, entretanto, a importnciadesse seringueiro, sindicalista e tambm ambientalista transcende ao

    que foi produzido, porque sua histria est intrincada com a histriados Povos da Floresta, expressoque ele ajudou a cunhar.

    Chico nasceu e se criou na oresta,

    o que signica dizer: se educou

    atravs da intuio e da vivnciatornando-se um sbio das cinciasda tradio. Aos 9 anos de idade,

    cortava seringa e andava sozinho pela mata. A partir de 1975, com 31anos, conduziu o movimento de seringueiros, ribeirinhos, posseiros endios do Acre nas discusses avanadas do ambientalismo.

    Ao ser assassinado, em 22 de dezembro de 1988, ele j se tornara umrisco para os agressores da Amaznia.

    Cadernos da Floresta narra sua trajetria usando o testemunhoe a linguagem de quem fez parte dela, e que conhecem detalhesdesconhecidos. Parentes, amigos e companheiros de luta - entreestes alguns acadmicos, militantes polticos e religiosos ajudam adesenhar o perl desse homem incomum. Alguns, como a senadora

    Marina Silva, o arcebispo de Porto Velho D. Moacyr Grechi e a militantedos direitos humanos Raimunda Bezerra zeram relatos comoventes,

    que mereceram destaque.

    Para esses narradores Chico Mendes foi e continua sendo (emesprito) um construtor da paz, um porta-voz da Amaznia que buscao dilogo poltico, econmico, cientco, social e cultural para sal var

    a vida natural no planeta. Sua mensagem aponta para um ambientesaudvel no presente e no futuro.

    CADERNO DA FLORESTA 2

    DEZEMBRO DE 2008 - RIO BRANCO - ACRE

    CHICO MENDES - O HOMEM DA FLORESTA

    Comit Chico Mendes

    Centro dos

    Trabalhadores da

    Amaznia - CTA

    Governo do Estado do Acre

    Secretaria de Comunicao

    Secretrio Jorge Henrique de Queiroz

    Fundao de Cultura Elias MansourDiretor Presidente Daniel Queiroz SantAna

    Biblioteca da Floresta Marina SilvaCoordenador Carlos Edegard de Deus

    Edio e textos: Elson Martins e

    Natlia Jung; Design: Gean Cabral

    Colaboradores: Marina Silva, Dom Moacyr

    Grechi, Thiago de Mello, Mary Allegretti,

    Raimunda Bezerra, Zuenir Ventura

    Organizao: Jlia Feitoza e Andra Zlio

    Fotos: Srgio Valle, Gleison Miranda,

    Elson Martins, Carlos Ruggi, Rafael

    Johann, Olavo Rufno, Acervo Comit

    Chico Mendes, Acervo famlia Mendes,

    Biblioteca, Secom

    Contato: Secretaria Executiva do Comit

    Chico Mendes

    Av. Epaminondas Jcome, 1994,

    Cadeia Velha Caixa Postal 69

    CEP 69908-420 - Rio Branco Acre.

    [email protected]

    C Hmm

    Lu

    M v buu

    Sb f

    Qum Rmu

    C S

    D m uu

    Rz mp Amz

    Dp m m

    O qu f uv mu

    A mu

    Qu fm m

    Lg

    R f

    F: f v u

    A

    Sb m b C

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    4/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes

    co en eVou falar de um brasileiro

    De carter e maior brilho,

    Era o seu nome completo

    Francisco Alves Mendes Filho...

    Quer na poesia ou na crnicaFoi na floresta amaznica

    O mais ilustre andarilho.

    A riqueza da borracha

    Atraiu pra regio,

    Principalmente, pra o Acre,

    Pela sua produo,

    O av de Chico Mendes

    Que aps pensar se rende

    Ao fragor de uma iluso.

    O av de Chico Mendes

    J estivera no Par,

    Foi ali um seringueiro,

    Mas, voltou pra o Cear,

    Onde com pouca riqueza

    Uma linda portuguesa

    Ele veio a se casar.

    O patriarca dos Mendes

    Vivendo ali no serto

    Com a esposa e seis filhos

    Na mais feliz comunho,

    Viu de forma surpreendente

    Mudar tudo de repente,

    Ser forado migrao.

    Por conta de uma seca

    Foi obrigado a partir,

    Vendeu todos seus pertences,

    Deu adeus a tudo ali,

    De burro, carro e navio,

    E por terra, mar e rio

    Foi parar em Xapuri.

    Os Mendes nas estiagensSempre foram precavidos,

    Guardavam em silo alimentos

    Para serem consumidos

    Durante a seca prevista

    Caso no houvesse em vista

    Eram grtis distribudos.

    No entanto, aconteceu

    De ter sua casa invadida,

    Foram seus bens saqueados,

    Arruinaram sua vida

    Tendo o velho como fim

    Que fugir pra Camucim,

    Depois...a grande partida.

    Essa viagem se deu

    No ano ainda de mil

    Novecentos e vinte e seis

    Por sob um cu cor de anil...

    Quando inundava no Norte

    Tudo era seca, era morte,

    No Nordeste do Brasil.

    Faltava o arroz, o feijo,

    Tudo mais o que comer,

    A gua do cacimbo

    J no dava pra beber,

    Animais nos descampados

    Com fome, frgeis, cansados,

    Caiam ali pra morrer.

    Ele, a mulher e seus filhos

    Estiveram no Par,

    Nos seringais algum tempo

    Puderam ali trabalhar,

    Depois, sem qualquer moblia,Pegou toda sua famlia

    E foi no Acre morar.

    O Acre h bem pouco tempo

    J pertencera Bolvia,

    Porm, por ser habitado

    Por brasileiros em via,

    Foi assinado o Tratado

    De Petrpolis e anexado

    Ao Brasil com garantia.

    Embora sua produo

    Gerasse muita riqueza

    Pelos impostos cobrados

    E divisas sobre a mesa

    O governo injusto, rude,

    No investiu em sade

    Nem educao, com firmeza.

    Para se ter uma idia

    Desse descaso geral

    De diarria, malria,

    De tanta causa fatal

    Muitas famlias perdiam

    Os seus filhos que morriam

    Sem assistncia vital.

    Muitos que ali residiam,

    Mesmo sendo precavidos,

    E com toda experincia

    Pelos seus bitos havidos,

    No conseguiam evitar

    Que a tragdia do lar

    Poupasse os entes queridos.

    Teve o pai de Chico MendesDezessete filhos, ento,

    Um morreu acidentado

    Com um tiro no pulmo,

    Nove outros foram mortos

    Por doena e no ter postos

    De sade na regio.

    No havia em Xapuri

    Uma escola ou hospital,

    S contava o povo ali

    Com a planta medicinal

    E as suas experincias

    Que bem longe das cincias

    J combatiam algum mal.

    Apesar das esperanas

    No Seringal Santa F

    Nenhum Mendes conseguiu

    De meia fazer um p,

    Tudo era caro, um horror,

    E tinha o atravessador

    Pra levar todo fil.

    Chico Mendes

    Leituradecordel

    Por Medeiros Braga

    MedeirosBragaEconomista,romancistaepoeta,nasceuemNazarezinho-PB,ondecursouasprimeirasletras.Escreveuvriasobrasdeeconomiapoltica,poesiaeromance.OseumaisrecentelivroOCordeldoManifestoComunistafoilanadoemmaiode2006.Jcompsmaisde50ttulo

    s

    emcordel,amaiorparteversandosobreeducaopoltica.Estetextoapenasotrechoinicialdas185estrofesemestiloCordeldeChicoMendes-AMorte

    Anunciada,aqualnarraatrajetriadafamliaMendesdesdeavindadeseuavparaoAcre,atacriaodasReservasExtrativistascomoresultadodaorganizaodosseringueiros

    lideradaporChicoMendes.

    Mas o pai de Chico Mendes,

    J casado com Irac,

    Condenava a extorso

    Com todo aval do poder

    Em cima dos seringueiros,

    Do produtor castanheiro

    Que era feita pra valer.

    Casados nascia ChicoMendes, em dia febril,

    Em um quinze de dezembro

    Do ano ainda de mil

    Novecentos quarenta quatro

    Balanando o anfiteatro

    Das florestas do Brasil

    No Seringal Porto Rico

    Foi onde Chico nasceu,

    Mas depois aos onze anos

    Sua mudana se deu

    Pra o Seringal Equador

    Sendo j trabalhador

    Cujo ofcio ele aprendeu.

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    5/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 9Chico Mendes

    Menino viobuchudoP

    elos seringais afora e mesmo seus moradoresmigrados na cidade costumam usar a expres-so menino vio buchudo como referncia

    s crianas, especialmente quando esto brincandoe arengando umas com as outras no terreiro, fazen-do as costumeiras artes no permitidas pela me quelogo descobre e solta um esse menino vio buchu-do t bom de peia.

    Sebastio Mendes Teixeira, conhecido por Tio, primo de Chico Mendes, apenas um ano maisnovo. Nos tempos de menino vio buchudo brinca-va com Chico e os demais irmos, que no so pou-cos dezoito do Sebastio e oito do Chico (seriamtambm 18, se no tivessem morrido a metade no

    Menino viobuchudo

    parto, de acidente na mata, ou de doena como amalria).

    Tio conta sobre a lida das crianas no seringal,numa poca em que no existiam escolas e a educa-o era exercida pela prpria famlia, a qual instruaseus lhos desde pequenos ao trabalho, aos valoresfamiliares, sobrevivncia na oresta com suas tc-nicas e cincia prpria, apoiando e incentivando ase tornarem responsveis em seus servios e pelafamlia a ser formada.Desde pequenas, as meninas

    j ajudam a me na cozinha e a cuidar dos irmosmais novos. Os meninos vo para o roado com o

    pai e auxiliam nos trabalhos gerais da casa.Chegando a adolescncia a responsabilidade au-

    Cxpvp m

    AcervoFamliaMendes

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    6/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta

    Eu tinha 7 anos de idade e tinha sado de madrugadaacompanhando o Raimundo que ia cortar seringa pela

    primeira vez. Toda vez ele parava em cima do tronco eestava ensinando a fazer cigarro de tabaco pra mim fu-mar, que meu pai no deixava eu fumar em casa. E a eleabaixou-se pra deixar a espingarda no cho e me pegaraqui com a mo; no que ele abaixou, o armador da es-

    pingarda bateu no tronco e disparou no ouvido dele. Umcalibre 16. No sabe nem de que ele morreu. Ele caiu

    por cima de mim e quei aos gritos chamando por ele:

    Raimundo, Raimundo, Raimundo! E a parei e fui virarele, e reparei que s tinha uma banda da cabea, a outraestava toda...os miolos por todo canto. A no lembro.S sei que eu voltei por onde a gente tinha caminhado edeu sorte de sair no local onde o Chico Mendes ia pas-

    sando com os outros. A o Chico cou louco da cabea.Dispensou o pessoal no rumo de casa, ajuntou mais unsconhecidos e pediram pra me levar at onde estava meu

    pai, e o Chico seguiu pro rumo da rea do acidente queera muito conhecida. E chegando l mandaram buscaruma rede pra trazer o corpo. E Chico num desesperomedonho, porque era o irmo que ele gostava demais,

    porque ele era muito trabalhador... A quando a gentechegou - os outros que chegaram comigo em casa - mi-nha me estava grvida do dito lho que ela no teve,

    que ela morreu de parto; a tem aquela coisa de me,n?! Quando ela soube da notcia, ela se ajoelhou e pe-diu que, se existisse esprito, que viesse buscar ela queela no queria escapar daquele parto. Um negcio in-dito que aconteceu, ela no escapou do parto. Morreu.Trs meses antes ela dizia pra gente que no escapava.

    Dizia pro meu pai, meu pai chorava muito. Chamava oChico Mendes e dava conselho para ele todas as horas.Chico Mendes ia cortar seringa, quando chegava ela di-

    zia: Chico venha c, principalmente de tardezinha! Ela

    dizia: Chico voc vai car, voc o maior e vai car to-mando de conta dos seus irmos junto com seu pai. Noabandone! No abandone por que vai car tudo criana

    e teu pai no vai conseguir criar todos os irmos.-Mame a senhora est delirando, ele dizia.

    -Eu no estou delirando. Estou falando o que certopra voc.

    A meu pai veio e comprou um monte de materialpara parteira assistir com ela, que era a parteira quepegava as crianas l no seringal; a o Chico Mendes,na poca, j convidou uma parteira. Mas a j deu umnegcio errado, porque na vspera que ele foi buscar a

    parteira, a parteira no pde ir porque estava entreva-da de reumatismo. Ela nunca tinha falhado. Todos ns

    fomos nascidos em suas mos, foi ela a me de umbigoque chamavam. A o Chico comeou a car triste porque

    a me j tinha dito que a velha no viria assistir ela.Ela dizia: - Ela no vai vir no porque eu tenho certe-za que ela t sonhando que eu vou morrer. Um negcioestranho. A foi, aconteceu isso, foi indo, foi indo, elano deixou ajeitar nada pra criana. No deixou ajeitaraqueles panos que vinham em fardo do seringal para

    fazer as fraldas.Ela disse: - No corte um pedao de pano desse, que

    pra car pros outros que vo vestir. A o Chico come-ava dizer:

    - Mame a senhora t meio ruim da cabea! A elasofreu um dia e quando foi no outro, o Chico Mendespassou duas noites andando no mato, na colocao dosvizinhos, com um facho de cernambi juntando gente pratirar ela numa rede e levar pra cidade de rede. Porqueainda no existia estrada. Do seringal Cachoeira parao seringal Equador no existia estrada. Eram os burrosque traziam a produo de borracha e castanha, issoaqui at o Pote Seco era um atoleiro s. Ela dizia: No

    adianta, no adianta espernear porque uma coisa queno vai ter jeito, no adianta voc se cansar, Chico. Eele dizia: - Mas eu vou at as ltimas conseqncias.

    A foi interessante. O Chico Mendes saiu quatro ho-ras da tarde pra ltima colocao, colocao chama-da Limoeiro. A quando ele foi saindo ela chamou ele.

    Voc acredita que ela cou abraada com ele assim umameia hora? Dando uns conselhos pra ele e pro meu pai

    tambm. Que ele casse atento s crianas que iam car,

    iam sofrer muito porque ia car uma escadinha. A minha

    irm Gerusa estava com 1 ano, o Assis com 2, Celinacom 4 e a subia, a Mag, a Celisa, aquela escadinha e eue o mais velho, o mais velho estava dentro dos 9 anos. Eutinha 8 anos. Tinha uns sete meses que meu irmo tinhamorrido. A quatro horas da madrugada ela me chamou,chamou o papai, reuniu as parteiras, tava dona Isaura,do Pompeu, Raimundo Monteiro, estavam trs parteiras,

    a ela disse: Gente no adianta vocs terem trabalho co-migo porque daqui s quem me tira a morte.Ela abenoou Chico Mendes e ele em prantos de cho-

    ro que voc precisava ver; e ele saiu chorando, achandoque ela tava certa mesmo porque tudo que ela tava dizen-do tava acontecendo. A s foi ele dar as costas e ela cha-mou a todos ns, mandou o pessoal acordar os pequenose saiu beijando um de cada vez e abraando e abenoan-do. um negcio incrvel, tem muitos momentos que euno gosto nem de pensar. A o ltimo que ela abenoou

    foi eu; a meu pai foi l, me acordou e disse: rapaz se

    acorde que a me de vocs est abenoando vocs! Achoque ela vai morrer mesmo, no tem jeito no. A ela medeu um abrao bem forte mesmo, e ela s disse assim:

    Deus te abenoe! Ai s foi uma queda. Isso no demorouquinze minutos, o Chico chegou e cou louco. Chorava

    que nem um desesperado. L em cima da cama, olhava,botava a mo na cabea e dizia: O que que h de ns

    agora? A ele olhou pro meu pai encostado na parede edisse: Rapaz, agora sepultar minha me e acabar de

    criar os que caram.

    A o Chico Mendes enfrentou uma batalha grande.Todos pequenos, o meu pai pra cuidar da lavoura, o ou-tro que cuidava (Raimundo) morreu. A morreu a outrairm de baque, a morreu a Celina com base de 6 anos.

    Ela morreu na dita colocao tambm, at hoje ningumsabe qual o motivo da doena.

    menta: desde os 12 anos j cortam seringa, com aidade de 15 pra 16 j pode assumir suas trs estra-das de seringa, que o que seringueiro corta (...) Otrabalho comeava na segunda, nesta poca, e ia atsbado cortando. Era sair s 5 da manh e passar odia cortando.

    Chico, com 16 anos de idade, j era responsvelpor suas estradas de seringa, destacando-se comogrande seringueiro. Sua responsabilidade aumentouaps o falecimento de seu irmo Raimundo numacidente com espingarda e em seqncia, de suame durante o parto. (link para o texto abaixo)

    O acidente foi testemunhado por Zuza (Jos Al-ves Mendes), irmo de Chico Mendes, hoje com 53anos, que acompanhava o Raimundo em sua primei-ra madrugada de corte. Veja seu relato

    Sbado no forrMas nem s de trabalho viviam os seringueiros.

    O usual bom humor destes moradores da oresta eratambm alimentado pelos momentos de descontra-o. Nilson Mendes, outro primo de Chico quemfala:

    O lazer pro seringueiro no meio da oresta nodia de domingo brincar uma bola, brincar baralho,

    brincar domin. A gente tambm brincava muitotocando. Chico batia tringulo e eu batia um pan-deiro, a os vizinhos dele tocavam sanfona e assima gente passava o domingo brincando. Futebol? Agente jogava sim. Rapaz, eu no sei dizer qual eraque jogava mais ruim.

    As noites de sbado eram reservadas para os pi-seiros, lugar propcio para encontrar uma namorada- ele no namorava muito, no, mas ele gostava de

    ter a namoradinha dele, desde rapaz novo - e os do-mingos para deixar aorar o menino vio buchudo,que, segundo Tio, Chico nunca deixou de lado.

    Ele era calmo, muito manso, agora brincar elegostava muito, tanto de boca quanto de brincadeira,de qualquer jeito (...) Quem no conheceu ele, euvou lhe dizer. Se voc conhecesse hoje, fazia deconta que conhecia h dez anos. Porque ele come-ava a conversar e a pessoa comeava a achar bome j chegava pra perto. Ele era muito risonho, muito

    brincalho, ndava tirando prosa um com outro.Ele tinha um defeito muito grande: s vezes ele

    tava numa melhor palestra, s vezes numa entrevis-

    ta e ele conseguia parar no meio de uma entrevista edizer uma brincadeira. Ento assim, ningum gostade certo tipo de brincadeira. s vezes ele tava numaconversa sria e soltava uma brincadeira. Eu lem-

    bro de uma que ele fez: a gente estava com o Mil-ton Nascimento e dois americanos acompanhando eo pessoal da Globo, e quando ele tava ali no meio

    de uma caminhada falando de coisa sria, ele ti-rou uma casca de Quina-quina - vocs chamamde canarana, uma coisa amargosa - e deu pra umamericano. Ele botou na boca e no gostou. Entoassim, o excesso de brincadeira uma coisa que agente tem que utilizar pra s vezes passar o tempo,mas no muito bom, ento era uma das coisas que

    Morte e dor A 7 , Zuz fub u u p C, u mm v

    11Chico Mendes

    ele gostava de fazer, certas brin-cadeirinhas, mas ele no tinhamuito defeito no. (Nilson)

    ElsonMartins

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    7/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 13Chico Mendes

    Vera: Quando que voc conheceu o ChicoMendes?

    Ilzamar: A data agora ta difcil de lembrar, maseu era muito, muito jovem, era uma menininha mes-mo n?! Eu conheci o Chico quando ele veio tra-

    balhar com os pais, ele era seringueiro e eu muitocriana, foi quando veio a idia de alfabetizar eu emeus irmos menores. Enm, eu tinha na poca uns

    5 a 7 anos e ele j era rapaz. Causa de que naquelapoca tivesse uns 18 a 19 anos.

    Vera: A vocs voltaram a se encontrar, voc jtinha...

    Ilzamar: eu tinha 14 pra 15 anos. A j foi umoutro olhar. J foi um olhar apaixonado mesmo.

    Vera: ai voc se apaixonou mesmo? E ele couencantadssimo?

    Ilzamar: Ele eu no sei. Depois foi com umtempo, acho que foi com 16 anos que acho que eleme percebeu n; pelo meu olhar. A veio a idia denamorar, a gente namorou pouco tempo, 1 ano a jcasamos.

    CasamentosEntre tantas histrias sobre a vida junto ao irmo

    10 anos mais velho, Zuza conta sobre o primeirocasamento de Chico, o qual gerou sua primeira lha

    ngela Maria.

    Ns fomos crescendo e a comeamos a cortarseringa junto com meu pai e j tinha meieiro juntocom a gente. O meireiro aquele que corta serin-ga por metade. Meu pai cuidando da lavoura e oChico Mendes comeava a trabalhar nas colocaesdos vizinhos de meia tambm, mas toda tarde eleestava em casa, porque as colocaes eram perto.Ele tinha a maior preocupao da gente no passarmal. Ajudava nos ranchos porque tinha essa grande

    preocupao. A ele passou a trabalhar numa colo-cao chamada Ponto, no seringal Cachoeira. Aliele comeou a trabalhar de meia e passou a namo-rar a Eunice, que era lha da Dona Doca e a partir

    Izm, E mu f S 20

    p m C M

    C, Izm S

    Izm S

    C, E Izm gv S

    desse namoro eles noivaram e casaram. Casaram ecasaram no civil. Tm muitos que provam aqui queo casamento dele foi civil e foram testemunhas decasamento.

    Porm, este casamento durou poucos anos e se-gundo D. Ceclia, tia de Chico Mendes, o casal seseparou porignorncia de casal, nada assim sobreoutros assuntos. Chico e Eunice tiveram ainda ou-tra lha, que faleceu aos 11 meses de vida.

    Zuza comenta que um certo dia, Chico pediu-lheum conselho: deveria ou no pedir a Ilzamar em ca-samento? Zuza era casado com a irm mais velha deIlzamar e j conhecia bem a famlia. Chico ensaiou

    por duas vezes pedir a moa em casamento, con-seguindo na terceira vez, tendo sim como resposta.Deste casamento nasceram Elenira e Sandino.

    Ilzamar: olhar apaixonadoTrecho de entrevista de Ilzamar Vera Barroso no documentrio De l pra C (TV Brasil 2008).

    BlogAltinoMachado

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    8/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 15Chico Mendes

    Os netosQuando eu nas-

    ci meu av j haviamorrido mas eu seique ele foi uma pes-soa muito importan-te para a preservaoda oresta e muitasoutras pessoas ten-tam ser igual a ele.S espero que notenham uma morteto dolorosa como adele

    Joo Gabriel Mendescom sua me ngela Mendes

    Eu penso que a luta do meu av no pode nunca aca-

    bar, que cada gerao precisa assumir a responsabilidadepela parte que ainda falta por fazer, para que o legado deChico Mendes sirva sempre de inspirao para as gera-es presentes e futuras. Eu, quando terminar os meusestudos de Biologia na Universidade Federal de MatoGrosso, volto para o Acre para militar pela causa pelaqual meu av lutou, viveu, e ainda vive.

    AnglicaMendes

    Os filhosngela Maria MendesFilha do primeiro casamento

    O destino separou meu pai de mim muito cedo.Ele casou com minha me em 1967 ou 1968, no s eiao certo, e a situao nanceira deles era precria,de extrema pobreza mesmo. Ele j estava envolvidono movimento, e eles no tinham nenhuma renda.Eles s tinham a mim e minha irm, que veio afalecer com 11 meses de vida devido precariedadedo local onde a gente vivia, muito distante da cida-de e sem condio de tratamento mdico, e onde asdoenas aigiam as pessoas que no tinham comorealmente serem socorridas. Depois de algum tem-

    po, tive que vir morar com outros familiares em RioBranco, porque a situao era difcil. A meu paise separou da minha me e o destino separou nstodos. Mas desde pequena eu sempre tive conta-to com o meu pai porque ele sempre vinha me verquando passava por Rio Branco.

    Elenira Mendes

    A recordaco que tenho do meu pai um poucovaga, meio distante. Mas me lembro bem do dia22 de dezembro de 1988. Daquele dia eu me lem-

    bro muito bem. Acho que foi como uma es pcie

    de despedida quando ele levou a mim e ao San-dino naquele caminho novo para passear. Eu melembro daquela noite, por volta das 18 horas, nsestavamos na sala e minha me dava de comer amim e ao Sandino no mesmo prato.

    Lembro-me que meu pai saiu para tomar ba-nho e aconteceu aquela confuso, com os policiaiscorrendo na direo contrria nossa, a gente cor-rendo para a cozinha e, de repente, ele vem e caiali, bem na porta do nosso quarto. Ele tenta, masno consegue falar o meu nome. Me lembro dele,ali, no cho, ensangentado, tentando dizer o meunome. Esta uma pergunta que sempre vai viverdentro de mim o que ele queria me dizer naquelemomento? Cresci com essa cena na minha mentee eu acho que ela jamais vai ser apagada.

    Tambm cresci com uma revolta muito gran-de contra o Movimento Social, porque na minhaconcepo - cuja nica lembrana do meu pai eravendo ele, ali, no cho, morrendo - era de que omovimento tinha causado a perda do meu pai. Osentimento que eu tinha era de que perdi meu pai

    por essa luta dos povos da oresta, e isso me ma -goava muito. Eu era incapaz de compreender comoessa luta foi importante e bonita.

    Esse sentimento perdurou at o dia do meuaniversrio de 19 anos. Nesse dia, minha tia memostrou algumas fotos minhas com dedicatriasdo meu pai. No verso de uma delas estava escri-to: s a vanguarda da esperana. Elenira, dars

    continuidade um dia luta que seu pai no conse-guir vencer. Foi como se aquela bala que tocouno peito dele, que provocou a perda fsica da vidadele, estivesse entrando fundo no meu peito. Foicomo se ele tivesse me dizendo que era a minhahora de acordar, porque eu tinha uma misso paracumprir. Ento, quei pensando que talvez ali esti-vesse pelo menos parte da resposta para o que eletentou e no conseguiu me dizer na hora em queestava morrendo. Isso mexeu muito comigo.

    Sandino Mendes

    Da morte do meu pai para c o Acre passou porum grande processo de desenvolvimento econmi-co e social. Meu pai sempre sonhou em ver umAcre mais desenvolvido mas que tambm respei-tasse os direitos dos trabalhadores rurais, dos n-dios, dos extrativistas, dos povos da oresta. Essefoi o seu objetivo enquanto esteve vivo, mesmoeste objetivo indo contra o projeto poltico daquelapoca. Meu pai nos deixou vrios ensinamentos,entre eles o de que somente unidos poderemos re-alizar os nossos objetivos, e que possivel, sim,Progredir sem Destruir. Infelizmente meu pai no

    pde viver para ver que alguns de seus sonhos fo-ram realizados. Mas se existe uma coisa da qualtenho certeza depois desses 20 anos, de que amorte do meu pai no foi em vo, e de que os seusideais ainda esto vivos.

    no e Elenira Elenira Sandino Chico e Elenira

    Sg V

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    9/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 17Chico Mendes

    Na chegada do ano 2008 teve muita festa para donaCeclia Mendes, madrinha smbolo das boas coi-sas que acontecem no seringal Cachoeira, nasproximidades de Xapuri. Ela recebeu o prmio que levao nome do sobrinho querido, Chico Mendes (assassinadoem dezembro de 1988), e dia 1 de janeiro completou 82anos, alegre, esperanosa, cheia de vida.

    No, no, a vida dela nunca foi fcil. Aos 11 anos deidade, trocou a cidade pela oresta e casou muito jovem.Teve 19 lhos, todos com parteira, criados no peito e semconhecer mdico.

    Viva h 13 anos, a imagem que faz do marido, Jo-aquim Mendes, irmo do pai do Chico, a imagem delamesma: s o pai deles pra trabalhar e criar todos eles!

    Naquele tempo o pobre morria de trabalhar e no pagavaa conta, no sei por qu. O que aquele homem trabalha-va! Cortava seringa o ano todinho. Quando terminava aseringa comeava a quebrar castanha, e quando termina-va tudinho ainda estava devendo um monte. No tinhacastanha, no tinha borracha, no tinha nada que pagassea conta.

    A casa em que vive no seringal, hoje, mais movi-

    mentada que a sede da associao local dos extrativistas. um entra-e-sai o tempo todo, de parentes, amigos ouvisitantes que vo pedir conselho, entrevist-la, tomar a

    bno ou, simplesmente, tomar caf com farofa de ovoe, se tiver sorte, saborear um guisado de paca com fari-nha. A sala o cmodo menor e menos importante: malcabe um sof e uma TV no canto, alem dos quadros dafamlia pendurados na parede. ligada cozinha por umcorredor estreito, com janelas esquerda, e portas de en-trada para dois ou trs quartos direita.

    A cozinha, claro, ampla, com jirau e porta que dopara o quintal. o reinado de dona Ceclia. Tem umamesa grande no centro com bancos corridos laterais etamboretes nas cabeceiras. Sobre ela permanecem pra-tos, xcaras, copos, garrafa de caf, farinheira... o tempotodo. Resumindo: a cozinha um centro de cultura ondese ouve e aprende os segredos da oresta.

    Cidade... s pra batizar menino!

    A senhora acha que o seringal est melhor agoraou antes?

    Agora. Na verdade, nunca foi ruim. O que era ruimno seringal era o patro. Antigamente, aqui era bom por-que no tinha essas derrubadas, essa acabao de mata,a destruio doida que t uma coisa triste. Todo dia eu

    penso nessa destruio da mata, secando gua, se aca-bando tudo. Antigamente era uma beleza. As guas boas,as guas bonitas, um sombrio beleza. Tudo era bom.Muito calmo. Ainda ontem eu tava conversando com asmeninas aqui, lembrando como antigamente era to ani-mado... O pessoal brincava a noite inteira. Botava unstrs paus assim, um saco de carregar borracha, a cachaavinha naquele frasqueiro; a era um caneco dentro e o

    pessoal cantando e danando, e de vez em quando o ca-neco no saco de cachaa, que nem gua. Hoje vai fazerisso que morre gente...

    E no morria ningum antes?No. Nem brigavam.

    Era fcil casar e separar no seringal?No era fcil no. Separar assim uma vez... s por um

    descuido... Pelo menos do meu alcance no existia essadanao! A gente ouve muita histria do que acontecena mata. Fala-se que a pessoa atira num animal e ele caolhando, parado. Acredita nessas coisas? Isso da ver-

    dade. Da mata o senhor no duvide de nada, porque namata tudo tem.

    J passou por alguma situao dessas?No senhor, graas a Deus.

    no podia nem com a gente, ainda mais pagar emprega-da. Agora vim ter ajuda das minhas lhas quando elascaram grandinhas.

    Quantas mulheres e homens a senhora teve?Eu tive 10 mulheres e 9 homens. Uma mulher nasceu

    de sete meses, nasceu morta. Hoje tem 14 vivos.

    muita sorte a senhora ter 14 ainda vivos...O senhor sabe que eu agradeo muito a Deus por ter

    sido uma me feliz. E digo por conscincia: por causados meus lhos. Porque sempre acontece alguma coisacom um ou com outro, mas, Graas a Deus, nunca acon-teceu nada muito grave.

    A senhora ainda teme que a devastao da oresta

    ameace vocs?Eu no acho difcil. Mas at agora ainda no soube.

    Mas tenho medo. Tenho um lho que soldado l em RioBranco, e outro que trabalha l. Com esses eu me preo-cupo e tenho medo, porque na cidade que acontecem as

    coisas. O restante vive aqui em paz.

    E agora j tm escola e sade aqui?J. O Chico quando morreu j deixou escola aqui.

    Sade t meio l, meio c. Volta e meia falta um rem-dio.

    A senhora cuidou da sade de seus 19 flhos com

    que remdios?Remdios da mata. Com ch, lambedor, eu sei que

    tratava dos lhos assim.

    Teve algum contato com ndios?No. Aprendi com minha me. Ela que sabia vrios

    remdios do mato, medicina da mata.

    Quantos netos a senhora tm?Ah, meu lho, a ns no podemos nem conversar.

    Passo o dia todinho e no acabo de contar [risos]. J te-nho trs tataranetos.

    Quando a senhora fala que o seringal antes eramelhor, est se referindo a qu? Segurana?

    Antigamente era melhor nos seringais porque era tudo vontade. No tinha quem mexesse nas matas. Quando agente mexia era pra fazer um roadozinho pra plantarum milho, um arroz. Era muito bom de caa. Cidade eraaquilo em que ningum falava, a no ser pra batizar me-nino. Era uma vida bem tranqila.

    E televiso, rdio e luz, a senhora no gosta?Eu gosto de luz. Televiso coisa que no fao ques-

    to. Mas rdio eu gosto, porque co sabendo as notcias, ese tiver uma famlia minha passando mal eu j sei aqui.

    Sbia senhora da florestaMas tem medo da mata?Todo mundo tem medo, n, seu Elson? Porque na

    mata que moram os bichos. Eu tinha medo, sim, de andarna mata, e nem ando ainda!

    O que a senhora teme?Tenho mais medo da cobra. Mais do que da ona.Viu alguma ona?

    Morta, j, mas viva, no. Com 19 flhos, sobrou

    tempo pra senhora trabalhar na roa, ou algo assim?

    Coitada! Se eu fosse lhe contar minha vida era piorque a vida do Chico Mendes. Eu pra criar esses lhossofri muito. Ainda ontem eu conversava com um delesdizendo: Ah, meu lho, as coisas hoje em dia esto mui -to boas. Sofrer, sofri eu. Que eu no vou contar riqueza

    porque eu no era rica.

    Como era o seu dia-a-dia na oresta, no comeo?

    Minha luta de casa era lavar roupa pra fora, costurarpra fora, cuidar de um bando de menino, cuidar do taba-cal, arrancar feijo, apanhar arroz. Tudo isso eu fazia.

    E cozinhava tambm...Cozinhava. Empregada da onde, n (risos). Se a gente

    Elson Martins

    Entrevista feita em julho de 2005 com a participao de J-lia Feitoza e Marcos Dias e publicada na coluna Almanacre, doJornal Pgina 20 em 20/01/2008.

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    10/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 19Chico Mendes

    ORaimundo acima de tudo um s eringuei-ro, que nasceu e se criou no seringal, numapoca que no tinha escola. O que o Rai-mundo aprendeu foi pelo pai, pela me, leitura mui-to pouca, mas graas a Deus, orientao de ser umcidado, de viver de seu trabalho, de um dia possuirfamlia, ter responsabilidade por sua famlia. No diaque assumisse determinado servio, ser responsveltambm pelo seu servio. E foi uma pessoa que vi-veu com o Chico desde os primeiros momentos, denascimento, de criana, adolescncia e de adulto.Viveu o movimento das comunidades eclesiais de

    base, viveu o movimento sindical, participando dosempates, de seminrios, workshops, encontros mu-nicipais, encontros na oresta, encontros estaduais,nacional e internacional.

    Ento, o Raimundo, mesmo depois de todas asconquistas, isto , da terra e de tantas outras coi-

    sas, ainda no se deu por satisfeito, ainda sonhaque muita coisa pode acontecer: principalmente dosnossos companheiros seringueiros, que foram a ra-zo de existir este Estado, que foi a razo do nosso

    pas viver por muitos e muitos anos de um produtoque quem comeou primeiro a explorar, foram aquios acreanos. Ento o Raimundo herdeiro de todaesta trajetria, e fao questo de nunca negar, at

    porque eu no tenho porque nunca negar, que con-tinuo sendo seringueiro e se Deus quiser vou mor-rer sendo seringueiro, mesmo tendo j convividono parlamento mirim por 16 anos: j fui vereador 4

    vezes, mas isso no me envaidece, isso no me do direito de ter outro status, de querer ser outra ca-tegoria. Acho que cada momento desses contribuiu

    para tudo isso que a gente tem conseguido.

    Relao com o ChicoA nossa relao se deu ainda criana, porque o

    pai do Chico com a minha me eram irmos e a gen-te era primo legtimo assim como a minha me eratia legtima do Chico. Mesmo o Chico sendo maisvelho que eu, era coisa pouca: 7 meses e dias. E nsnascemos e nos criamos no seringal. Eu nasci noseringal Santa F e o Chico no Seringal Porto Rico;eu na colocao Deserto e ele na colocao BomLugar. E minha me com a me do Chico, se en-contrava muitas vezes, com ns ainda nos cueiros.E depois, com 3 anos, 4 anos, nos passeios que sefazia nos nais de semana, tanto os pais do Chico naminha casa, quanto os meus pais na casa do Chico.Eu e o Chico a gente viveu a vida de criana, n?

    E depois, como era praxe a muda dos seringuei-ros, meu pai mudou-se pro seringal Filipina e ns

    passamos alguns anos sem se encontrar e fomos

    nos encontrar novamente com uns 11, 12 anos deidade; e a fomos se encontrando nas festas aqui nacidade (Xapuri). 20 de janeiro era uma das festasmais tradicionais da cidade e ainda , mas na pocaera ainda mais e era onde muitos seringueiros e se-ringueiras se encontravam, porque era a poca quetinha a maior festa e os seringueiros vinham pra ci-dade pra pagar suas promessas. Com a mentalidadeda poca, o seringueiro com toda a explorao faziase pegar com as promessas com So Sebastio pra,se no decorrer do ano conseguisse gozar sade, co-lher muita castanha e no acontecesse nada de gravecom a famlia, nenhum acidente, nem de picada decobra; ento no dia 20 de janeiro, que se venera o

    padroeiro da nossa cidade So Sebastio elesse encontravam pra acompanhar o santo, pagar pro-messa, trazer uma borracha, mil e uma coisas. Ento

    Quem o

    Raimundo?

    Quem o

    Raimundo?

    Um nasceu no Bom Lugar doPorto Rico. O outro, no Deserto do

    Santa F. Alm de primos, foramgrandes amigos e companheirosde luta. No texto a seguir ele faladele mesmo como se fosse outra

    pessoa. Bastou perguntar:

    O

    zu mRmu

    GleilsonMiranda

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    11/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes 21Chico Mendes

    a gente passou a se encontrar de ano em ano. E de-pois voltamos a se encontrar com mais freqnciaquando a gente se juntou atravs do Sindicato praresistir contra a expulso dos nossos companheiros.

    Quem foi o Chico?O Chico, primeiro de tudo, foi um seringueiro

    criado, assim como eu e outros milhares que nas-ceram e foram criados em seringais, comeando atrabalhar ainda criana com sete, oito anos. O Chi-co foi um dos seringueiros que se deu o direito deser um dos maiores sonhadores de que um dia oseu povo seria libertado da explorao dos patres.Seria libertado do abandono da educao, da do-cumentao. E o Chico foi um amigo, o Chico foiuma pessoa que s construiu amizade, s produziu

    o bem. O Chico precisava, se no fosse a maldade,a ganncia do ser humano, o Chico precisava estarvivo com ns, ajudando a construir estas coisas boasque ele sonhou e planejou junto com ns e comeoua fazer algumas coisas. Infelizmente ele no teve a

    possibilidade e a sorte de se beneciar como eu tome beneciando, os meus lhos, os lhos dos nos-sos companheiros, a nossa categoria, n? O Chicomerecia estar vivo pra poder desfrutar de tudo queele construiu junto com ns.

    O dom que ele tinhaO Chico j nasceu com um dom de ser defensor

    de seu povo. Veja bem, com 15, 16 anos, o Chicoleu uma carta bem prximo de ns, numa praa nodia 19 de janeiro que ele fez dirigida ao governo doAcre - eu no me lembro quem era o governador doAcre na poca - pedindo que olhasse para a explora-o que estava vivendo seu povo, o baixo preo da

    borracha, do alto preo das mercadorias. Ento elej comeava a se despontar e comeava a ter o in-teresse de defender a causa de seu povo. Mas, comcerteza, ele comea a ter mais conscincia e comeaa se dispor mais quando comea a conviver com otrabalho das Comunidades Eclesiais de Base, deleter tido a oportunidade de ter vivido com o Eucli-des, que era um refugiado poltico e cou na casadele, junto com o pai dele e que orientou e conver-sou muito com ele. Inclusive a leitura, foi ele quemajudou a fazer com que o Chico avanasse mais,

    porque o Chico tinha aprendido um pouquinho com

    o pai dele mesmo. E o Chico se dispe mesmo atomar a iniciativa de assumir o papel de lideranae aglutinar foras, a partir da participao dele noSindicato de Brasilia, onde ele foi o primeiro se-cretrio do Sindicato e depois ele veio pro Sindicatode Xapuri tornando-se presidente do Sindicato deXapuri, trazido inclusive por ns.

    No assassinato do Wilson Pinheiro em Brasilia(1980), a direo do Sindicato daqui (de Xapuri),a gente sentiu que ela se envolveu num clima demedo e ns tivemos muita preocupao e naquelemomento, tudo o que a gente tava iniciando em de-fesa dos seringueiros, ia pra vala do lixo, ia se aca-

    bar. Ai, como a gente sabia da coragem do Chico, darmeza do Chico, da vontade do Chico, ns zemostudo pra trazer o Chico pra c. (...) A partir destemomento o Chico , no nosso linguajar, se deslancha

    a nvel de Estado, mesmo com todas as diculda -des. Porque era um desejo das autoridades do Es-tado que o Chico no se projetasse, no assumisse,no se reconhecesse a capacidade de liderana doChico, porque isso era um perigo para os interes-ses deles, mas a nvel nacional e internacional ele setorna uma grande liderana.

    Uma boa lembranaUma das lembranas que me bate demais que

    ele nunca comia sentado na mesa, ele semprecomia sentado na tbua com a Elenira e o San-dino sentados ao redor dele. Esta uma passa-gem que deixa uma saudade e uma lembranamuito, muito grande dele. Eu tenho uma lem-

    brana de quando o Chico vivia com a Eunicel no Cachoeira, que ainda agora eu falei praTV Senado, que seria to bom se a gente tivesseuma fotograa daquele dia do Chico. Eu chegueina casa do Chico, na colocao Laguinho, e oChico tinha chegado da estrada de seringa comum saco de leite, tinha arriado no degrau da esca-da, e tava pisando um pilo de arroz. Isso era duashoras da tarde, e ele tava pilando esse arroz queera pra fazer alimentao pra ele almoar, porquea Eunice tava doente. E o meu irmo mais velho, oGildo, disse: Chico, rapaz, se eu tivesse uma mulher

    preguiosa desse jeito - ele no sabia que a mulhertava doente - eu no queria ter mulher, eu cava erasozinho. Ento o Chico ali, pilando arroz e com osaco de leite dentro da estopa no p da escada, a sua

    espingarda de caa, porque todo seringueiro anda naestrada com a sua espingarda pra matar a mistura dofeijo, matar nhambu, matar jacu, cotia, quatipuru,e ele com aquela roupinha suja, rasgada, o sapatinhode seringa, cou foi quieto meio de...

    O que voc sente quandoentra na casa do Chico?Eu sinto um vazio. Por mais que eu entre com

    pessoas que a gente vai num bom papo, estas coi-sas, eu sinto um vazio na casa; aquela criatura queum dia foi o dono dela, que ali vivia com a famlia,que ali recebia a gente, com aquela simpatia, comaquele jeito de amigo, que pedia pra mulher trazerum cafezinho pra gente, hoje no existe mais. E no

    existe no foi porque a velhice, a doena, coisa des-sa natureza o tenha afastado da gente, mas por causade uma covardia. Ento cria um vazio muito grandena gente, por mais que a gente esteja com as pesso-as, mas aquela pessoa da qual a razo, inclusive,de se estar entrando, de estar conversando, no exis-te mais devido a maldade. Ento esse um vaziomuito grande.

    Chico tinhao hbito decomer no chocom os filhos

    CarlosRugg

    i

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    12/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 23Chico MendesFerenando Dias

    DOCECOMO

    URUU*

    Conheci o Chico quando eu tinha 17 anos de ida-de. Uma menina ainda muito tmida, morando numconvento. Ficava ouvindo pessoas mais conserva-doras dizerem que o bispo Dom Moacir Grecchi eraum comunista que, junto com a Contag e aqueletal de Chico Mendes, estimulava as pessoas a fazermovimento contra os fazendeiros. Ouvi isso mui-tas vezes. E me causava certa estranheza porque eusabia que o Chico Mendes era um seringueiro deXapuri e o fato de ser lha de seringueiros e ter vin-do de seringal, me deixava curiosa pra entender porque quem lutava contra a derrubada e a queima dascasas, contra a expulso das pessoas e contra a vio-lncia, que era muita, era considerada uma pessoaruim, comunista e, obviamente, contra Deus.

    Um belo dia estava na missa, com minha Ma-dre Mestra, quando vi na porta da igreja um cartaz

    em cartolina, escrito com pincel atmico: Curso deliderana rural da CPT, sbado e domingo, com a

    presena do Clodovis Boff e Chico Mendes. Fi-quei com aquilo na cabea durante toda a missa. As-sim que terminou, fui at a sacristia e me inscrevi.Falei com minha Madre Mestra, da maneira maisgenrica possvel, do meu desejo de fazer um cursona igreja, sbado e domingo, e coisa e tal. Ela quis

    Frade, como o irmo Leonardo Boff, foi um dosgrandes expoentes da teologia da libertao

    * Abelha sem ferro mui to conhecida na Ama-znia, cujo mel de extraordinrio sabor.

    Marina Silva

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    13/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 25Chico Mendes

    Chico P ol tico

    Pra mim, isso demonstrava enorme sensi-bilidade de uma pessoa que vivia numa situ-ao social e econmica muito difcil, estavao tempo todo, por assim dizer, numa corda

    bamba de presso e de ameaas, mas era deuma extrema leveza. Acho que a forma delese manter jovem era se relacionando com os

    jovens. Eu sentia nele uma mistura de paie irmo. Era paterno quando transmitia armeza da maturidade, dos compromissos,das responsabilidades. E era irmo porquecolocava as coisas de igual para igual. Noimpunha um pensamento, dialogava com asnossas idias.

    Alm do mais, tnhamos a anidade deser gente da oresta. Uma anidade quenem precisava ser dita. A conversa ua

    porque era o mesmo universo, a gente sabiaquem a gente era, qual era a nossa raiz, onosso lugar. Acho que isso me ajudou mui-to a no desconstituir minhas razes. Melembro quando fui fazer minha certido denascimento no cartrio. A moa perguntoulocal de nascimento, eu respondi: seringalBagao. Ela insistiu para colocar Rio Bran-co: No diga que nasceu no seringal, minhalha, isso muito feio, as pessoas vo man-gar de voc. Como eu resisti, ela acabouaceitando, mas muito contrariada.

    Em parte, devo isso ao Chico, que criti-cava as pessoas que vinham para a cidade ecavam escondendo a origem, com vergo-nha de ser considerado feio, analfabeto, ig-norante, mocoronga. Para ele, ser seringuei-ro tinha uma grande dignidade e isso deviaser exibido com orgulho. Para mim, o fatode uma pessoa como ele pensar assim, sreforou o sentimento que sempre tive, denunca esconder minhas origens.

    CHICO POLTICOEm 85 zemos uma reunio para discu-

    tir candidaturas pelo PT, principalmente acandidatura do Chico a deputado estadual.

    No tenho boa recordao desse momentoporque j estava claro na cabea de todomundo que o Chico tinha de sair candida-

    saber que curso era aquele, e eu: um curso que opadre quer que a gente faa.

    Permisso concedida, levantei muito cedo prafazer todos os deveres do convento antes de sair. Ocurso era dado no salo paroquial, nos fundos daigreja. Quando cheguei, havia umas 25 pessoas, v-rias lideranas rurais. Eu era uma das mais jovens.Frei Clodovis foi o primeiro a falar, fazendo umacorrelao entre o sermo da montanha a idia deque a f tinha que produzir frutos, seno era uma fmorta e as lutas sociais que aconteciam no Bra-sil, mais especicamente a resistncia do povo doAcre. Ele explicava como uma f viva tinha que secomprometer com a defesa de quem estava sendoexpulso de sua terra.

    Fiquei encantada com aquela abordagem. E pen-sava: se isso que o Dom Moacir faz, por que

    uma coisa ruim? Comecei a ver que, pelo contr-rio, era muito bom. E a partir desse momento minhaf foi tomando outro rumo, ganhando uma signica-o empolgante, muito viva.

    A segunda parte do curso estava a cargo do Chi-co Mendes. Ele fez um relato sobre como se faziamreunies para organizar sindicatos e explicou comoconseguia, ao mesmo tempo, ajudar a CONTAG e aformao dos sindicatos e liderar uma comunidadede base. Ele dizia, em tom de brincadeira, que faziaum trabalho que eu chamaria de 3 em 1. So asmesmas pessoas. Primeiro a gente rene todo mun-do e diz: agora a reunio da comunidade de base.A termina e a gente esquece tudo pra comear areunio sindical. E depois esquece de novo, que vaicomear a reunio de reexo poltica, pra pensarna criao de um partido.

    Tudo aquilo foi me cativando. E teve tambmum teatrinho. Participei com muito entusiasmo e,no nal, fui escolhida pra fazer um relato. Comotinha a tradio de meu pai e de minha av, de fazercordel, z o relato como histria de cordel. O Chicogostou muito, sentou do meu lado, pegou o telefonedo convento e perguntou se podia me mandar maisinformaes sobre a luta dos trabalhadores. E co-meou a mandar boletins, o jornal Varadouro, outro

    jornal chamado Movimento, que circulava no Brasilinteiro. E cava tudo escondido no meu quartinho.Depois do curso, perdi contato com todos da CPT,menos com o Chico.

    Aquela reunio e a ateno que o Chico me deu,o fato dele me alimentar com aquele mundo dife-

    rente, de lutas e ideais, mudou a minha trajetriade vida. At ali eu imaginava que meu destino eraser freira, mas passei a me fazer um monte de ques-tionamentos. Quando ia para a missa, gostava maisquando era celebrada pelo Dom Moacir ou pelo pa-dre Cludio, enm, pelas pessoas que falavam dife-rente do estilo tradicional.

    Ainda quei um ano e oito meses no convento,at que um dia a Madre Superiora me disse que eume preparasse porque estava na hora de ir para oRio de Janeiro, fazer o pr-noviciado. Quando me virealmente diante da deciso de tomar esse caminho,entrei num conito danado. Depois de uma semanade reexo, pedi pra falar com a Madre Superiora eanunciei que no queria mais ir, que gostaria de sairdo convento para trabalhar com as comunidades de

    base. Ela cou surpresa, mas teve uma atitude aco-

    lhedora. Da fui para o bairro da Estao Experimen-tal, morar na casa do tio Aurlio, irmo de minhame. A primeira coisa que z foi procurar o padreJoo Carlos, na Parquia do Cristo Ressuscitado, ecomecei a trabalhar como monitora da comunidadede base que era a mais ativa de Rio Branco. Depoisde seis meses me colocaram como Coordenadorade Base da parquia e a ento j participava maisdas reunies, entrei na faculdade, me aprofundei nasquestes sociais e a convivncia com o Chico, cadavez mais frequente, se transformou numa forte ami-zade.

    Foi atravs dele que, juntamente com o Binho,entrei no PRC. Perguntei quem eram os tericosdo PRC na Amaznia e ele respondeu: so vrioscompanheiros, todos muito bons! Tem o MarcosBarros... Pensou um pouco e continuou: tem tam-

    bm o... Marcos Barros. O Marcos, que era pro-fessor da Universidade Federal do Amazonas, era ointelectual que ele usava como referncia pra tudo!Eu conheci o Marcos pelo Chico, muito antes de t-lo conhecido de fato.

    Geralmente se tem uma escuta muito intoleran-te e um olhar muito passageiro sobre a ansiedadee a inquietude dos jovens. Minha experincia como Chico foi uma lio, nesse sentido. O olhar deleera genuinamente interessado, paciente, cuidadoso,estimulante. Ele conseguia ver qual era o teu poten-cial. A minha histria, a histria do Binho e de tan-tas pessoas que conviveram com ele, mostra comorespeitava os mais jovens e se preocupava o tempotodo em puxar a juventude para estar junto.

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    14/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 27Chico Mendes

    inspirada pelo contato do Chico com um lder co-munista refugiado na oresta, que o alfabetizou noseringal, com os livros que trouxera.

    Inicialmente a luta era de resistncia contra a ex-pulso da terra. S que no se queria a terra da ma-neira tradicional, apenas para a agricultura. A gentequeria a terra com o mato, com a oresta, com riose igaraps. Quando o Chico, em conversas com as

    pessoas de fora, entendeu que o movimento poderiater outra dimenso, passou a falar de reforma agr-ria especica pra Amaznia, e que na Amaznia nose deveria repetir os modelos usados nas outras re-gies.

    Isso no era muito bem aceito. Comearam con-versas de desvio ideolgico, que o Chico estavaembarcando num discurso pequeno burgus e queambientalismo era coisa de americano. De cer-ta forma, o Binho e eu assumimos a tarefa de no

    permitir que o Chico casse to exposto a isso. Deminha parte, tinha grande curiosidade a respeito da-quela maneira nova de ver as coisas e me esforava

    para acompanhar o raciocnio dele, mesmo ouvin-

    Mmp mg jugm C M

    do, pelo outro lado, que ele estava descambandopara uma coisa meio estranha.

    Mas o Chico, ao mesmo tempo em que buscavaajuda no PT e conversava muito com a gente, con-versava com muitas pessoas, fossem do Acre ou defora. Aos poucos fomos fazendo a mesma inexo,

    junto com ele. Fomos tambm nos descolando da-quela viso puramente sindical. Pra mim foi muito

    bom. Um grande aprendizado sobre a importnciada escuta, da procura de vrios pontos de vista, derespostas diversicadas, da busca de alianas comoutros segmentos, outras pessoas. O nosso proble-ma no era s nosso, se interligava com muita coi-sa e tinha que ter muito dilogo para chegar a umasoluo.

    Quando o Chico foi para os Estados Unidos, pen-samos nisso s como algo que poderia beneciar anossa causa. Ele foi fazer uma denncia sobre os

    prejuzos oresta e aos povos da oresta causadospela ao do Banco Interamericano, que nancia-va estradas feitas sem nenhum cuidado ambiental.Depois disso o banco mudou completamente suametodologia.

    to em 86 por dois motivos principais: ele teria umpapel importante na institucionalizao de nossascausas; e uma vez eleito, poderia contar com maissegurana, j que estava sob constantes ameaasde morte. Achvamos que seria mais difcil matarum deputado. Quando penso nisso agora acho tudomuito triste. Como estava to claro de onde a mortevinha, como era inexorvel e como estvamos des-

    protegidos diante da violncia. E em meio a tudoisso, nossos sonhos de liberdade, de justia, de va-lorizao da vida.

    Decidimos que sairamos em dobradinha. OChico para deputado estadual e eu a federal, paraa Assemblia Nacional Constituinte. No tnhamosexperincia de campanha nem estrutura e nem di-nheiro. O Jorge Viana veio de frias da UnB, pega-va o carro e a gasolina do pai dele e circulava sem

    parar. O Binho tinha um fusca que quase se acabouna campanha. Pichvamos muros, fazamos carta-zes criativos com o nosso slogan: Marina e ChicoMendes, oposio pra valer!. O programa eleitoralera feito ao vivo. Tnhamos um minuto. O Chicofalava 30 segundos e eu os outros 30.

    O Chico tinha um estilo que no era muito depalanque. Ele era muito bom pra conversar, masno era bom de discurso. Discursava como quemconversa. Falava muito com as mos, com gestos.Subia ao palanque, cava conversando com aquelemonte de gente l embaixo. Ele gostava de contarhistrias, causos, tinha umas crenas, umas his-trias de mato.

    Uma vez chegou uma pessoa de fora, uma lide-rana de esquerda, pra conversar com o lder serin-gueiro Chico Mendes. E cou muito decepcionada!O Chico comeou a contar histrias de assombra-o, de uma viagem que fez de noite e de repenteescutou uns barulhos estranhos. Que se arrepiavatodo, e o mato se mexia em redemoinho. Que comcerteza era o caboclo da mata, e ele sem tabaco

    pra aplacar a fria do Caipora. E conforme ele fa-lava, a pessoa ia cando sem-graa, sem entendercomo um comunista, que deveria ser materialista,

    podia ser to mtico e dar importncia quelas coi-sas! Foi muito engraado.

    Tivemos enormes diculdades. No dava prair a todos os locais do estado. Chico nem foi paraCruzeiro do Sul, porque ali chegava muita difama-o proveniente de Manaus, do pessoal do GilbertoMestrinho, que pregava a distribuio de motoser-

    A mbiental ismo

    ras. Diziam, inclusive nas rdios, que o Chico eraum agitador perigoso.

    Mas nossa campanha comeou a ter uma reper-cusso muito boa, tanto que o Chico Mendes qua-se foi eleito. Faltaram cerca de 150 votos. Eu fui a 5mais votada, mas o PT no fez legenda.

    O AMBIENTALISMO

    O Chico tinha contatos no Rio de Janeiro comoo Sirkis, o Minc, a Rosa Roldan, a Luclia Santos, oGabeira: em So Paulo ele conversava com o entosindicalista Lula, o Genuno, o Fbio Feldman e ain-da com a Mary Alegretti, de Curitiba. Essas pessoastrouxeram um novo olhar, um novo signicado paraa luta originada do exemplo das lutas camponesasque aconteciam no sul, no sudeste e no nordeste e

    AcervoP

    T

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    15/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 29Chico Mendes

    de, quem ia para o cho era o Chico e eu cava nacama com a Ilza e uma das crianas.

    Passei uns trs dias naquela mesma casinha ondeele foi assassinado. Quando estava indo embora, elefoi me acompanhar at a rodoviria, que cava na

    praa, em frente igreja. A gente ali parado, con-versando, ele me disse: Nega via que era comocostumava me tratar acho que dessa vez no tem

    jeito no. Eu no gostava desse assunto e z umgesto de contrariedade. Mas ele continuou, muitosrio: No tem jeito, acho que os cabras vo me

    pegar.Samos andando, num silncio perturbador. Mui-

    to angustiada, tentei achar uma sada: Por que vocno fala com o pessoal l de Rio Branco, pra fazeruma denncia?. E ele: No adianta, quando faoisso eles dizem que quero me promover, me fazer de

    mrtir. At os jornalistas fazem piada. Ai eu sentiuma dor muito funda, porque ele estava encurrala-do, sem nenhuma proteo e j desanimando.

    Cheguei em So Paulo, quei na casa de paren-tes do Fbio, meu marido, em Ribeiro Pires, e fuiatrs de um mdico naturopata chamado Adauto Vi-lhena. Fiz a consulta de manh, ele me prescreveuum monte de remdios naturais para a hepatite e sa

    bem animada. Ento, quando foi mais ou menos 10horas da noite, um frio danado, tocou o telefone. Fuiatender, era o Gilson, primo do Fbio. A primeiracoisa que ele me disse foi: Voc ca calma. Eurespondi: Mataram o Chico Mendes?. Ele pergun-tou: Como que voc sabe?. A conversa encerroua, porque eu no tinha mais como falar nada.

    No conseguimos dinheiro de imediato paracomprar passagem de volta para Rio Branco e, as-

    Ex- gu j M Sv ummp m Xpu

    os empatesA morte

    Quando voltou com o Prmio Global 500, todomundo cou orgulhoso e esperanoso, mais umavez, de que aquela honraria ajudaria a proteger avida dele. A ida do Chico aos Estados Unidos foi ar-ticulada pela Mary, o Steve Schwartzman e o AdrianCowell. inegvel que essas pessoas tiveram umagrande importncia para o movimento e para a lutado Chico.

    NOS EMPATESO Chico nunca foi uma pessoa agressiva, mes-

    mos nas situaes mais difceis. Era como se fosseum enfrentamento de mineiro, calmo, falando de-vagar. Ele sempre comeava assim: ns estamosaqui porque queremos explicar pro senhor.... No

    empate da fazenda Bordon, por exemplo, a tensoera muito grande. Fomos ele e eu falar com o gato,que comandava os pees. O Chico, bem manso: eusei que voc no o fazendeiro, e t aqui porquetambm um explorado, ento eu queria que vocentendesse que isso que vocs esto fazendo no uma coisa boa. Queria tambm falar para os com-

    panheiros que esto derrubando, que at um tempodesse eles estavam na colocao e como perderam aterra, agora esto ai ganhando diria pra poder der-rubar...

    Era incrvel, porque eles estavam querendo en-golir o Chico e ele ali, fazendo preleo, puxandoconversa com cada um. Me lembro de uma cena,nesse mesmo empate da Bordon. Os policiais da PMdavam suporte para a derrubada quando chegamose nos espalhamos entre as rvores. O Chico tinhaorientado que, se a PM zesse algum movimentona nossa direo, era pra todo mundo cantar o Hino

    Nacional. E aconteceu exatamente isso. Enquantoo Chico conversava com o gato, a PM avanou.Quando o Hino Nacional se elevou da mata, eles

    pararam. Terminado o hino, j estavam mais dispos-tos a conversar. E nessa hora, seguindo as instruesdo Chico, comeamos a rezar alto o Pai Nosso, demos dadas, inclusive com os policiais.

    A situao para eles era altamente constrangedo-ra e o resultado foi que conseguimos uma trgua naderrubada, para formar uma comisso e ir conver-sar, em Xapuri, e com o pessoal do IBDF.

    Uma caracterstica do Chico era ser, profunda-mente, uma pessoa da paz. Nunca tivemos nenhu-

    ma discusso. Nossas discordncias sempre foramtnues.

    A MORTENo nal de 1988, uma semana antes de ir para

    So Paulo tentar um tratamento para hepatite B,passei uns dias em Xapuri, hospedada na casa doChico, como sempre fazia. Hoje quando penso nis-so co muito emocionada, porque era uma relaode tanta conana, de tanta fraternidade, que naque-la casa pequena, que s tinha um quarto, ele e a Ilzame abrigavam junto cama deles, num colchonete,

    perto das crianas. Na maioria das vezes, na verda-

    A cer vo

    Comit

    C

    hico

    Men

    des

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    16/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes 31

    fal ta queChico faz

    sim, o Fbio e eu s conseguimos chegar para a mis-sa de stimo dia. J tinham se passado sete dias masos telefones do PT, do sindicato, no paravam detocar. Era gente do pas e do mundo inteiro queren-do informaes sobre o Chico. Num desses momen-tos, estvamos no salo paroquial da catedral de RioBranco e chegou um grupo de parlamentares ameri-canos. Um deles era Al Gore. Vieram se solidarizarcom o movimento seringueiro, com a famlia.

    As autoridades locais cavam muito incomoda-das porque, em vez de procurar os palcios e gabi-netes, os visitantes importantes iam para a igreja,onde Dom Moacyr se reunia com os comunidades ecom o sindicato. O clima era meio pesado por isso.

    A postura do Al Gore foi muito marcante paramim. Aquele homem alto, muito branco mas prati-camente roxo de tanto calor, com a camisa toda mo-

    lhada de suor, liderava o grupo. Perguntava, queriasaber como ajudar, mas de maneira muito simples,sem ostentao, respeitando as pessoas e as circuns-tncias. Passava sinceridade. Quando, agora, elefez o documentrio Uma verdade inconvenientee ganhou o prmio N obel, muitas pessoas acharamque ele s estava usando a causa ambiental parase promover. Por questo de justia, sempre dei otestemunho de que ele est nessa estrada h muitotempo. E me parece que o envolvimento com os te-mas ambientais realmente faz parte central do seutrabalho poltico.

    H o ambientalista poltico e o poltico am-bientalista. O poltico ambientalista aquele queusa a bandeira ambiental no seu prprio interesse.O ambientalista poltico usa corretamente a poltica

    para mediar e fazer avanar a causa ambiental. Issofaz uma diferena muito grande porque, no segundocaso, a pessoa se expe em situaes que nem sem-

    pre so as mais vantajosas do ponto de vista eleito-ral tradicional. O Chico foi um exemplo desse tipode pessoa.

    A FALTA QUEO CHICO FAZ

    Hoje, pensando em tudo o que aconteceu depoisda morte do Chico, faz muita falta o olhar e a presen-a de uma pessoa que constitua processos polticos

    ticos e inovadores quando tudo parecia impossvel.Imaginar que um dia o Lula chegaria presidncia daRepblica, que o Jorge seria governador do Acre; e oBinho, que era um menino do Projeto Seringueiro,seria tambm governador; o Nilson Mouro, deputa-do federal e eu, que j seria difcil me imaginar vere-adora de Rio Branco, quanto mais senadora.

    Como seriam as conversas com o Chico, comtanta coisa tendo acontecido? Como ele veria o queestamos fazendo? No governo do Acre, no Minist-rio do Meio Ambiente, nos parlamentos, nas reser-vas extrativistas, no Brasil? Seu grande legado algo que pode parecer bvio: se voc quer construiro futuro, faa isso agora. O Chico ajudou a fazeracontecer uma grande mudana. Ningum mais ga-nha eleio na Amaznia dizendo que vai distribuirmotoserra para destruir a oresta. Hoje, as foras do

    Estado j no do ordem de priso para as pessoasque defendem a oresta e nem podem, impunemen-te, incentivar os desmatadores. O Chico smbolode uma fora que veio de muita gente, como numgrande encontro. Dos povos da oresta, de pesqui-sadores, de pensadores, de ativistas, das comunida-des, dos ndios, dos seringueiros, de muitos lugarese pessoas. Ele teve a coragem de fazer diferente nahora certa. No sei se, o tempo todo, ele tinha cons-cincia da dimenso do que estava acontecendo. Oque sei que precisou ter muita viso e coragem

    para se afastar do destino de lder sindical, dentroda cartilha tradicional da esquerda. Existem deter-minadas causas que parecem tomar conta de ns,

    porque fazem tanto sentido que nada mais te segura,no existem amarras.

    O Chico poderia ter ido passar um tempo fora doAcre para fugir das ameaas de morte. Convites nofaltaram, inclusive vindos de outros pases. Poderia,

    pelo menos, ter passado aquele Natal de 1988 no Riode Janeiro, como os amigos de l insistiam. Mas eleno conseguia se imaginar exilado do Acre, de Xa-

    puri, sobretudo no Natal, porque a Ilza e as crianascariam sozinhas. E tambm teria a missa, a reunio,os companheiros que sempre vinham do mato para acidade nessa poca do ano e seria uma tima opor-tunidade para conversar. Ele poderia ter feito outraescolha, mas existe um lugar de desejo, de vontade,que s vezes to forte que passa por cima at mes-mo da sua prpria condio de sobrevivncia. E seele ouvisse s a pura razo da convenincia ou daauto-preservao, no teria sido o Chico.

    Entre maio de 1977 e maro de 1981 cir-culou em Rio Branco o jornal Varadouro,que encampou a luta dos seringueiros endios do Acre em defesa da oresta e dos po -vos que vivem em suas entranhas. A atitude doseditores implicava em riscos frente aos militares,que impunham censura imprensa nacional, etambm aos fazendeiros do sul que aliados s eli-tes locais tentavam transformar o Acre em pastos

    para o boi.

    Com apoio da Prelazia do Acre e Purus, o jor-nal alternativo fez corajosa co-

    bertura dos conitos exis-tentes na poca, tomando

    partido dos seringueiros,dos ndios, dos posseirose das famlias expulsas dosseringais. O jornal tornou-seimportante aliado de ChicoMendes e do movimento que

    VaradouroA turma do jornal

    este liderava contra o desmatamento e queima-da da oresta acreana. Tambm chamou ateno

    para os valores construdos pelos povos da o-resta em um sculo de extrativismo.

    Passados mais de 30 anos de sua circulao,o jornal continua atraindo pesquisadores e estu-dantes que se interessam pelos acontecimentosdas dcadas setenta e oitenta do sculo XX. A

    publicao gerou uma tese de doutorado e conti-nua sendo citada em estudos acadmicos no Acre

    e em outras regies do pas.Em 1997, portanto 20 anos

    depois do lanamento do jornal,a turma do Varadouro se reuniupara uma conversa sobre a rica

    experincia vivida naquelestempos conituosos. O encon-tro foi registrado pelo fotgra-fo Edson Caetano. (Veja fotoacima)

    Da esquerda para a direita, na frente: Antonio Alves, Suede Chaves, Elson Martins, Slvio Marinelo e Luiz Carvalho.la de trs: Albertu Furtado, Abrahim Farhat e Arquilau de Castro Melo (foto de 1997)

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    17/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 33Chico Mendes

    Cheguei ao Acre em 1971, para cuidar Pre-lazia do Acre e Purus, hoje Diocese de RioBranco, justo no momento em que comea-

    va a reao dos seringueiros e posseiros para carnas suas terras. Sou natural de Santa Catarina, masnessa poca eu era o superior da ordem religiosados Servos de Maria, com sede em So Paulo, e eratambm o provincial responsvel pelo Acre. Com amorte do bispo, o Papa me indicou para ser o novo

    bispo da Prelazia. Sorte minha, porque foi o povodo Acre que me ensinou a ser cristo, a ser bispo, ame comprometer com o lado justo. Esse povo queeu hoje considero como a minha prpria famlia.

    O Acre me quer muito e me honra com muitashomenagens. Tem um instituto do governo com omeu nome, tem tambm um povoado, uma vila, umlugar do povo chamado Vila Dom Moacyr, ondeacontece uma histria engraada, porque na placado nibus que vai para essa vila est escrito s DomMoacyr. Ento o povo ca falando: cad o Dom

    Moacyr? o Dom Moacyr j vem? o Dom Moacyr jpassou? E hoje deve estar diferente, mas no comeomuita gente cava em dvida se era o bispo ou onibus que estava demorando, que estava vindo, ouque estava voltando. Essa apenas uma das muitashistrias da minha amizade e da minha aprendiza-gem com o povo do Acre.

    Lembro-me da vez em que um grupo de mesfoi me pedir para visitar um Seringal perto de RioBranco, o Ipiranga, onde o dono estava sendo de-nunciado por cometer atos de violncia contra osseus lhos e os seus maridos. As mes, os parentes,

    Dom Moacyr Grechi

    A gj Dm My

    f mpp pv

    f

    Rz mp Amz

    vieram trs vezes minha casa pedir socorro, e eununca ia. At que, na terceira visita deles, um doshomens mais velhos, um senhor de mais de 80 anos,olhou bem pra mim e disse: Dom Moacyr, o senhor o bispo, o senhor a autoridade, senhor quemsabe, mas eu sou mais velho, e s e eu fosse o senhoreu j tinha ido l conferir se o que estamos falando verdade ou no. Eu pra no car de frouxo fui, eessa visita mudou muito a minha vida.

    Em Rio Branco, tomei como misso organizar asComunidades Eclesiais de Base por toda a P relazia.As CEBs eram clulas de evangelizao, de oraoe de fraternidade, mas eram tambm onde s e forma-va a conscincia para a organizao sindical e, um

    pouco mais tarde, para a formao do Partido dosTrabalhadores. Foram as CEBs que prepararam as

    bases do movimento social para a construo dossindicatos e do Partido. Com o tempo, em todo lu-gar da Prelazia havia uma CEB. Em Assis Brasil,as CEBs eram to fortes que esse acabou sendo o

    nico lugar onde o Lula nunca perdeu uma eleio.Nos tempos difceis ele perdia no Brasil todo, masem Assis Brasil o Lula sempre ganhou.

    Com tudo isso a Igreja Catlica acabou sendouma espcie de tero materno para a gestao deum sindicalismo independente e lutador, cujos lde-res depois formaram o PT. Alguns me diziam, masDom Moacyr, no pode, o senhor tem que ser um

    bispo de todos, o senhor no pode ser um bispo doPT. Em resposta, eu sempre dizia e digo que apenas

    prestava meu apoio s pessoas generosas que exer-ciam sua f crist lutando por paz e por justia so-

    cial. Eu entendia aquele povo pobre que fazia o PTpara conquistar mais direitos, porque eles j tinhampercebido que o sindicato s vai at certo ponto. Edeu certo, porque at hoje o Acre tem um dos PTsmais bonitos do Brasil, um PT que conseguiu mudaro rosto do Acre, que foi capaz de chegar ao podersem se afastar do povo e das lutas populares.

    Assim que, quando chegou o Joo Maia para

    fundar os Sindicatos, o pessoal j estava preparado.Nesse tempo as reunies do sindicato eram feitassempre em ambiente de igreja, a polcia era corruptaat o osso, os polticos uns incapazes, e o Exrcitoum bando de gente com medo do comunismo e dasubverso, a maioria deles sem saber o que era isso,mas com medo. Era um tempo em que a violnciacontava com a total conivncia das autoridades, emque a polcia era corrupta e vendida, e em que oExrcito vivia apavorado. O Joo Maia uma pes-soa que no pode nunca ser esquecida, porque elefoi um homem corajoso que teve o valor de orga-

    nizar os seringueiros dentro dessa conjuntura total-mente desfavorvel.

    O Joo Maia era um Delegado da CONTAG queveio ao Acre para fundar os sindicatos. Ele era umex-seminarista alegre e brincalho que gostava defalar em Latim comigo. Ele tinha uma marca, queera o dilogo com todos, e ele sempre me dizia:Dom Moacyr, aprende isso o dilogo a chave da

    sobrevivncia nessa terra. Ele lutava por um sindi-calismo independente, mas nem por isso deixava deconversar com o governador, com a polcia, com oExrcito. Ele formou excelentes lideranas, fundoumuitos sindicatos, era destemido e ousado. Foi delea idia criativa de prender os jagunos durante oMutiro que os sindicatos zeram em Boca do Acre.Junto com o Joo Maia estava sempre o Pedro Mar-ques, advogado muito bom de luta, muito didtico,que tinha um jeito muito especial de ensinar o Esta-do da Terra e o Cdigo Civil para os seringueiros.

    Eu me lembro do dia em que o Joo Maia me

    AcervoBibliotecadaFloresta

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    18/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 35Chico Mendes

    pediu para emprestar um salo da Igreja para fazera assemblia de fundao do Sindicato dos Traba-lhadores Rurais de Rio Branco. Como eu sabia quevinham muitos, como de fato chegaram mais de1000 seringueiros e posseiros, eu acabei cedendoa prpria Catedral. Do lado de dentro estavam ostrabalhadores, e do lado de fora estava o Exrcitoarmado com escudos e metralhadoras, cercando ostrabalhadores como se estivessem cercando bandi-dos. Como se os seringueiros no estivessem apenaslutando com compromisso e com f para mudar um

    pouco o rumo das coisas que afetavam suas vidas.Era um tempo muito duro, com o Exrcito encima,sempre tentando intimidar.

    Teve uma reunio na minha casa, do CPT como CIMI, que o Exrcito tentou gravar. Uma freiramuito esperta viu um gravador pequeninho na ja-

    nela, e esse gravador era do Exrcito. Como eu eraPresidente Nacional da CPT passei oito anos daditadura militar como presidente da CPT -- o MinoCarta deu uma nota no jornal A Repblica regis-trando o incidente. Anos depois as denncias deque eu vivia marcado para morrer se conrmaram.Muito doente, o Tuk Assmar, dono da Rede Globono Acre, por uma necessidade de conscincia man-dou me chamar e disse Dom Moacyr, o senhor meu amigo, e eu no posso morrer sem que o senhorsaiba que teve um momento em que um militar mevisitou para informar que estavam se preparando

    para matar o senhor, e eu disse a ele que no, quenem pensar, que se matassem o senhor eu botavaa boca no mundo, eu contava para o Brasil inteiro.E imagina que a Globo comeou l na minha casa,uma emissora muito pobre. Vinha Copa com todomundo querendo ver os jogos e o Assmar, que eraum grande propriedade proprietrio de terras, masque estava comeando no campo da comunicao,me pediu para instalar os seus equipamentos de

    baixa qualidade no quarto da minha casa, que era oponto mais alto da cidade.

    Esse foi um tempo em que cristos e no cristos no Centro de Defesa dos Direitos Humanos tinhaat um ateu confesso, e tinha o Abrahim Farhat, onosso Ll, de origem libanesa, e em Xapuri tinhao Bacurau, um hanseniano que no tinha mo nem

    p, totalmente dedicado, enm, pessoas que se jun-taram aos seringueiros e posseiros para lutar pelamanuteno da terra. Foi o povo da igreja, o NilsonMouro, um menino que depois se tornou muito

    importante porque fazia a ligao da f com o as-pecto poltico, o Padre Paulino e o Padre Pacco,junto com os comunistas e com um advogado doINCRA chamado Juraci que zeram o Catecismoda Terra, um folheto barato e simples, com apenascinco perguntas e cinco respostas, mas que foi o pri-meiro instrumento de resistncia dentro da ores-ta. Quem no sabia ler pregava na parede da casa equando chegava um capataz dizendo o senhor temque sair, porque essa terra agora tem outro dono,a resposta sempre era: no senhor, eu no saio, osenhor veja a o que meu direito est escrito no Ca-tecismo da Terra.

    Ovelha desgarradaQuando conheci o Chico Mendes, ele era um

    participante das CEBS, mas sem grande fervor reli-gioso. Algumas vezes ele acompanhava a mim e sirms nas visitas pastorais, outras vezes ele at reza-va o tero conosco nas comunidades, mas o que elequeria mesmo era falar de poltica e de organizao.Desde a primeira vez que o vi j estava claro queele tinha uma certa formao. Depois ele mesmo mecontou como foi alfabetizado e iniciado na polti-ca por uma certa pessoa que viveu na regio. Mascomo sindicalista era praticamente um desconheci-do at ser eleito secretrio do Sindicato dos Traba-lhadores Rurais de Brasilia, durante a assembliade fundao, em 1973, e ele s se tornou a principalliderana do movimento depois do assassinato doWilson Pinheiro em 1980.

    O Chico Mendes comeou na luta como todoseringueiro, brigando pela posse, para permanecerna terra. Foram um pouco as circunstncias que -zeram dele essa liderana to excepcional. Alm do

    preparo ideolgico, ele tinha aquele jeito natural defalar e de se entender com todo mundo. Em Xapurinessa poca tinham trs padres, o padre Jos, o pa-dre Otvio e o padre Cludio. O padre Jos semprefoi contra ele, mas os padres O tvio e Cludio eramseus amigos, sempre favoreceram o favoreceram.Mesmo assim, ele falava igual com os trs, ele faziaquesto de dialogar tambm com o padre Jos queno se engraava com ele. Mas o Chico Mendes foifruto tambm de um momento de sensibilidade am-

    biental pela qual o mundo estava passando.No comeo nem o Chico Mendes, nem ningum

    falava de defesa da oresta como um todo. Nessa

    evoluo para o aspecto ecolgico, para levar o pen-samento dos seringueiros para as pessoas de forada oresta, o Chico Mendes contou com um apoiomuito importante da Mary Allegretti. Eu nem sem-

    pre concordei com ela, mas para ser justo eu tenhoque reconhecer que a Mary contribuiu muito paraque o Chico Mendes se transformasse nesse smbo-lo de luta pacca em defesa da Amaznia conheci-do no mundo todo. Imediatamente depois da mortedele eu fui convidado para a Europa e na Itlia euquase no dava conta de tanta gente querendo sabermais sobre a luta dele. Em P aris, participei de uma

    grande conferncia pela paz, onde o Chico Mendesfoi colocado junto com Desmond Tutu, Gandhi eMartin Luther King como um dos quatro grandesdefensores da paz no mundo.

    E pensar que o Chico Mendes tantas vezes foime ver, foi na minha casa dizer que estava para mor-rer, que se sentia muito ameaado, que tinha certezaque no ia viver... E eu brincava com ele, dizia mor-re nada, Chico, esses cabras no tem coragem de te

    pegar. Mas ele comeou a fuar fundo, e acabou en-contrando provas contra as pessoas que ameaavamele. Um dia o Chico Mendes chegou l em casa comuma carta precatria de priso preventiva contra oDarli Alves, o mesmo que depois assumiu comomandante do assassinato dele. Dom Moacyr, praquem que a gente entrega isso? Eu fui com eleentregar a tal carta precatria para a Polcia Federalque, em vez de agir rpido, acabou demorando atque a coisa transpirou, chegou nos ouvidos do Darli,e pouco tempo depois o Chico assassinado.

    Hoje sou o Arcebispo da Diocese de Porto Velho,que tem 84.000 km2. Aqui tambm os povos das lu-tas tm muito carinho por mim, mas a organizao

    popular ainda no cresceu tanto quanto cresceu noAcre. Aqui houve uma colonizao heterognea es agora, dez anos depois da minha chegada, vejoas primeiras lideranas nascidas no Estado. Aqui te-mos pela frente uma dura caminhada, porque agoravm as usinas hidreltricas, e a Amaznia continuasendo tratada como colnia pelo resto do Brasil, que menor do que a Amaznia. O resto do Brasil estacostumado a tirar tudo da Amaznia, e a no deixar

    nada.Com as usinas do Madeira, est acontecendo omesmo de sempre. Vo ser feitos 4.000 km de rede

    para levar toda a energia das usinas direto para o suldo Brasil, enquanto que ns aqui vamos continuarusando energia a leo diesel para levar a luz at oAcre. Essa nova gerao que vai ter que lutar muito

    para que a energia vinda da Amaznia ilumine pelomenos um pequeno pedao da oresta. S assim aenergia tirada da gua dos nossos grandes rios pode-r evitar o triste destino da madeira, do boi e da soja,cuja explorao sempre destri e sempre maltrata aAmaznia.

    Dom Moacyr Grechi foi bispo da prelazia do

    Acre e Purus nas dcadas de 70 e 80. As Co-

    munidades Eclesiais de Base que ele organizou

    a partir de 1971 com acessoria dos irmos Boff

    (Leonardo e Clodovis) serviram de base para

    os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais cria-

    dos pela CONTAG a partir de 1975, e tambm

    para a fundao do Partido dos Trabalhadores

    no Acre. A prelazia do Acre e Purus assumiu a

    luta dos seringueiros e ndios da regio contra

    o desmatamento e as queimadas. Atualmente

    arcebispo da Diocese de Porto Velho.

    Um bpm p m

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    19/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 37Chico Mendes

    O que um empate?No dia 9 de dezembro de 1988, Chico Mendes concedeu sua ltima entrevista imprensa.Ele foi entrevistado no Rio de Janeiro pelo jornalista acreano Edlson Martins, que na pocatrabalhava no Jornal do Brasil e j tinha feito um documentrio sobre a luta dos seringueirospara a rede Manchete de televiso. Na ocasio Chico prenunciava a emboscada que iria sofrer13 dias depois. No depoimento, que somente foi publicado aps sua morte, o seringueiroexplica o que um empate.

    uma forma de luta que ns encontramos para impedir o desmatamento. formapacca de resistncia. No incio, no soubemos agir. Comeavam os desmatamentos e

    ns, ingenuamente, amos Justia, ao Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal(IBDF), e aos jornais denunciar. No adiantava nada. No empate, a comunidade se organiza,sob a liderana do sindicato, e, em mutiro, se dirige rea que ser desmatada pelospecuaristas. A gente se coloca diante dos pees e jagunos, com nossas famlias, mulheres,crianas e velhos, e pedimos para eles no desmatarem e se retirarem do local. Eles, comotrabalhadores, a gente explica, esto tambm com o futuro ameaado. E esse discurso,emocionado sempre gera resultados. At porque quem desmata o peo simples, indefeso einconsciente.

    ElsonMartins

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    20/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 39Chico Mendes

    comprometido com as outras dimenses da vida,

    como a de ser pai. A Elenira e o Sandino eram muitopequenos, e a convivncia com eles foi tirada delecom uma grande brutalidade.

    O Chico era muito generoso, todo mundo faladele politicamente, por isso eu gosto de falar delecomo pessoa. Quando o Chico morreu, meu lhocaula um pouco mais novo que o Sandino e elestinham a liberdade de montar cavalinho no Chico.Aquela cena dele sentado no cho dando comida

    para o Sandino muito real, um homem que nomeio da turbulncia da luta poltica, no meio de umenfrentamento no qual no podia dizer onde esta-

    va, encontrava tempo para alimentar o lho e para

    brincar com os lhos dos amigos da mesma formaque fazia com os seus prprios lhos. Matar algumassim, por causa de interesses econmicos foi deuma violncia que no tem justicativa. Passados20 anos eu ainda no consigo esquecer.

    Nos ltimos dias dele, eu estava doente, inclusi-ve no o vi morto. Ele chegou l em casa, creio quefoi dia 19 ou 20, o Paulo no estava e ele precisavair embora, mas no queria me deixar s. Ento pedique fosse buscar meu pai, ele foi. Ele quase nuncase despedia antes de sair. Naquele dia ele se despe-diu, desejou Feliz Natal pra todo mundo e s depois

    que a mulher deve tomar conta dos lhos, da casa

    e ele estar no movimento. Algumas vezes ele vinhapara Rio Branco e trazia a Elenira, que cava co-migo enquanto ele participava de reunies. Nessasocasies at ajudava no servio da casa. Ele estavavivendo essas mudanas, o que era muito interes-sante para o homem do seringal, lho de nordesti-nos, que era homem de trabalho fora, mas no detrabalho domstico.

    Infelizmente no foi permitido ao Chico viverpor mais tempo as experincias de um homem quecompreendia a luta dos trabalhadores, mas tambm

    buscava ser um s er humano mais completo, mais

    D ispl icente

    coma morte

    "O

    Chico quando morreu tinha uma bolsa daASHOKA. Coisa que conseguiu poucoantes de morrer. Assim ele passou a ter

    apoio nanceiro para se manter, porque ele no ti -nha nem renda. Eram os amigos que tinham o com-

    promisso de colaborar, desde o leite para as crianasat o cigarro. Dentre os colaboradores tinha desde

    professores universitrios a militantes. Somente as-sim o Chico tinha condies de continuar o trabalho

    junto aos movimentos sindicais e sociais.Como para qualquer outro militante, isso trazia

    diculdades pessoais e familiares tambm para oChico. Como toda mulher, a esposa dele tinha aspi-raes de ter uma casa, uma televiso. Isso era dif-cil para ele. Ento, o apoio dos amigos ajudava um

    pouco ele a resolver essas questes. O Chico no eraum ser fora da vida. Era um homem que tinha suafamlia, seus lhos, no deixava de ter vida pessoal

    porque tinha uma militncia forte.Tudo muito cruel na morte do Chico. Eu perce-

    bia nele mudanas importantes, aquelas mudanasdo homem meio machista que estava percebendooutras dimenses da vida, deixando o conceito de

    Raimunda Bezerra

    O S mbm

    C M

    AcervoComitChicoMendes

  • 7/30/2019 Caderno Povos Floresta II

    21/35

    Caderno da Floresta Chico Mendes Caderno da Floresta 41Chico Mendes

    pegou a estrada. Essa foi a ltima vez que eu o vi.Uns 20 dias antes do assassinato, ele e o Rai-

    mundo Barros estavam l em casa, quando ele foichamado para ir a Sena Madureira e Raimundo via-

    jou para So Paulo. Contrariando o previsto, nemele e nem Raimundo dormiram l naquela noite.

    Na manh seguinte percebemos que tinham sumidoduas toalhas da rea de servio. Olhando, vimos queas toalhas estavam prximas da cerca e que tinharastros de calado masculino e um mao vazio decigarros.

    O irmo do Chico morava em frente a nossa casa,a cunhada dele mora l at hoje. Quando o Chicodormia l em casa levantava cedo, abria a porta,atravessava a rua para ir tomar caf com o irmo.Provavelmente os pistoleiros sabiam dessa rotina.Se ele tivesse dormido l aquela noite, ele poderiater morrido l em casa. A gente no percebeu queaquilo era uma tocaia, pensamos que era ladro co-mum, s nos demos conta disso depois.

    Nos ltimos tempos o Chico andava acompa-nhado pela polcia, e quando dormia l em casa, oteimoso sempre dormia numa rede perto da jane-la, de forma que se algum atirasse acertava bemna cabea dele. Toda vez eu ou o Paulo pedamos

    para ele mudar a cabea para o outro lado, assim, seatirassem, pegaria no p. O Paulo sempre pegava alanterna, olhava pelo quintal, olhava tudo.

    Uma vez ele deixou um bilhete para a Amine noCTA, dizendo que estava sendo seguido, que estavanum txi e que ia tentar ir para a nossa casa porquel era um lugar seguro. Quando ele chegou, entrou,deixou o porto aberto, a porta aberta e foi ao ba-nheiro, quando saiu, tomou caf, acendeu um ci-garro, a falou que aquele havia sido um dia difcil.Perguntei por que e ele disse que havia sido seguidoat a esquina, quando conseguiu desviar os que oseguiam. Fiquei nervosa, quei braba porque eleno falou quando entrou, estava tudo aberto, faleique poderiam t-lo matado no meu banheiro. Ele eraassim, calmo demais para quem era to perseguido.Eu no sei se ele tinha conscincia disso, ele vivia

    tenso, mas o comportamento dele era de quem sa-bia, mas no acreditava.

    Quando ele fez a carta que dizia quem eram aspessoas que participaram da reunio onde decidirammat-lo, ele deu-me para ler. At hoje me arrependode no ter feito um esforo maior para que aquelacarta no fosse publicada. Eu li a carta e falei: vocacha que deve publicar? Ele disse: eu vou para otudo ou nada, vou dizer o que sei e vou ver o queacontece. Falei que achava que ele no devia publi-car, se estava querendo a minha opinio. Ele disseque no, que era s para conferir os erros de portu-gus. Falei que os erros de portugus, naquela carta,era o de menos, o problema era o contedo dela.

    Nesse mesmo dia sugeri que ele fosse para Goisou qualquer outro lugar. Ele falou que Gois e MatoGrosso era a terra da UDR se fosse para l, tambmno estaria protegido. Conversamos vrias vezes so-

    bre isso e ele sempre dizia: vo dizer que eu fugi,que estou abandonando a luta do povo, os compa-nheiros. Ele tinha esse tipo de preocupao. Nessetempo j existia o Conselho Nacional de Seringuei-ros e o apoio do Professor Cristovam Buarque aomovimento. A UNB apoiou o I Encontro Nacionaldos Seringueiros, falei que ele deveria procurar oCristovam. Mas ele achava muito esquisito, que se-ria uma fuga, no concordava. Ele era muito con-vencido do papel dele na luta social.

    "

    Raimunda Bezerras saiu das Comunidades

    Eclesiais de Base para o Centro de Defesa

    dos Direitos Humanos criado com o apoio daigreja de Dom Moacyr. Ainda hoje permanece

    trabalhando neste setor, no CDDHEP Centro

    de Defesa dos Direitos Humanos e Educao

    Popular.

    A melhor maneira de se entenderum pouco o signicado da luta de ChicoMendes prestar ateno num pequeno

    episdio da nossa, ndios e seringueiros,histria recente. O Acre uma regioda Amaznia onde at a dcada de 70no havia qualquer reconhecimento daexistncia das populaes indgenas. Asantigas reas indgenas das doze tribosdaquela regio tinham se transformadoem seringais sob controle dos coronisda borracha e os ndios em escravos des-tes seringais. Os seringueiros, historica-mente, tinham se constitudo numa es-

    pcie de guarda dos patres no processode domesticao dos ndios e chegarama ser aliciados para fazerem guerras pu-nitivas contra grupos indgenas que seopunham aos patres.

    Nos ltimos dez anos, com a luta domovimento indgena pelo resgate de suacondio e retomada do domnio de seus

    territrios, o movimento dos seringuei-ros, liderado por Chico Mendes, tevea sensibilidade de superar esta histri-ca inimizade manipulada pelos patrese lanar as bases da atual aliana dos

    povos da oresta, que o Chico resumiaassim: Nosso povo o mesmo povo,ns no somos mais brancos. Temosuma cultura diferente da dos brancos

    e pensamos diferente dos civilizados.Aprendemos com os ndios e com a o-resta uma maneira de criarmos os nos-

    sos lhos. Atendemos a todas as nossasnecessidades bsicas e j criamos umacultura prpria, que nos aproxima muitomais da tradio indgena do que da tra-dio dos civilizados. Ns j sabemosdisto, agora o Brasil precisa saber dis-to. Nunca mais um companheiro nossovai derramar o sangue do outro, juntosns podemos proteger a natureza que o lugar onde nossa gente aprendeu aviver, a criar os lhos e a desenvolversuas capaci