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SEU

ÚLTIMO ADEUS

  Arthur Conan Doyle

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Índice

 Vila Glicínia .......................................................................... 3

I – A estranha aventura do sr. John Scott Eccles .............. 3

II – O Tigre de San Pedro................................................ 12

 A caixa de papelão ............................................................. 24

O círculo vermelho ............................................................ 39

I ........................................................................................ 39

II ....................................................................................... 47 

O desaparecimento de lady Frances Carfax ...................... 53

Os planos do Bruce-Partington .......................................... 66

O detetive agonizante ........................................................ 86

O pé-do-diabo .................................................................... 97 Seu último adeus .............................................................. 113

O Autor e Sua Obra ........................................ 125

Compilado por 

Roberto B. Cappelletti

Setembro, 2005

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 VILA GLICÍNIA I – A estranha aventura do sr. John Scott Eccles

Vejo anotado em meu bloco que se tratava de um dia muito frio e ventoso, em fins de março de 189Holmes recebera um telegrama, enquanto almoçávamos, e rabiscara às pressas uma resposta. Apesar dnada ter dito, percebia-se que o assunto ainda o preocupava, pois fora postar-se em seguida diante da lareicom ar pensativo, fumando o cachimbo e lançando ocasionalmente um olhar para o telegrama que tinha namãos. Subitamente, voltou-se para mim com um brilho malévolo no olhar.

– Suponho, Watson, que você pode ser considerado um homem de letras. Como definiria a palav‘grotesco’?

– Ridículo, extravagante... – sugeri.– Há certamente mais alguma coisa além disso – observou Holmes abanando a cabeça. – Uma sugestã

dissimulada do trágico e do terrível. Se procurar recordar-se de algumas dessas narrativas com qutem atormentado um público paciente, verificará como é tênue a fronteira entre o grotesco e criminoso. Lembre-se do incidente dos homens ruivos. Era bastante grotesco na aparência, e todavterminou numa audaciosa tentativa de roubo. Ou então daquele outro, mais grotesco ainda, dacinco sementes de laranja, que terminou numa conspiração homicida. Essa palavra põe-me sempde sobreaviso.

– Tem-na aí? – perguntei.Holmes leu o telegrama em voz alta:

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“Acaba de me suceder algo de terrível e grotesco. Posso consul tá-lo? – Scott Eccles, Repartição dos Correios, Char ing Cross”.

– Homem ou mulher? – indaguei.– Homem, naturalmente. Nenhuma mulher enviaria um telegrama com resposta paga. Teria vindo

pessoalmente.– Vai recebê-lo?– Meu caro Watson, você sabe que vida aborrecida levo desde que conseguimos meter o coronel

Carruthers na prisão. Meu cérebro é uma espécie de máquina veloz, que se reduz a pedaçosquando não é aplicada no trabalho para o qual foi construída. A vida é uma sucessão de fatoscorriqueiros e os jornais andam fastidiosos; parece que a audácia e o espírito de aventuradesapareceram para sempre do mundo do crime. Como, então, você pode me perguntar se estoudisposto a examinar qualquer novo problema, por mais trivial que possa parecer? Mas, se não meengano, aí vem nosso cliente.

Ouviram-se passos cadenciados na escada e, instantes depois, era introduzido na sala um homem alto ecorpulento, de suíças e bigodes grisalhos e ar solene e respeitável. A história de sua vida revelava-se nafisionomia grave e nos modos circunspectos. Das polainas aos óculos de aros de ouro, era a figura típica doconservador, homem religioso, bom cidadão, ortodoxo e intransigente respeitador dos preceitos sociais.Entretanto, algo de extraordinário devia ter-lhe alterado a natural compostura e deixado vestígios nos cabelosrevoltos, no rosto rubro e encolerizado e nos gestos nervosos e agitados. Entrou sem mais delongas noassunto que o preocupava:

– Aconteceu-me algo extremamente esquisito e desagradável, sr. Holmes – principiou. – Jamais meencontrei em situação semelhante. É positivamente indecorosa... ultrajante. Tenho o direito de exigiruma explicação!

Estava de tal modo enraivecido que bufava de cólera e tinha o rosto tumefato.– Queira sentar-se, sr. Scott Eccles – disse Holmes em tom brando. – Antes de

mais nada, permita-me que lhe pergunte por que resolveu procurar

exatamente a mim.– Porque não me pareceu que o caso pudesseinteressar à polícia. Todavia, quando lhe tiverexposto os fatos, verá que eu não poderiadeixar as coisas como estavam. Nuncasimpatizei com a classe dos detetivesparticulares. Não obstante, como ouvi falardo senhor...

– Perfeitamente. Mas, em segundo lugar, porque não veio imediatamente?

– O que quer dizer?Holmes consultou o relógio.

– São duas e um quarto – disse. – Seutelegrama foi-me expedido por volta da umahora. Contudo, quem olhar para o seu aspectoe o seu traje não poderá deixar de notar que asua inquietação data do momento em que selevantou.

Nosso cliente alisou o cabelo despenteado com as mãos e tocou com os

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dedos o rosto, que estava com a barba por fazer.– Tem razão, sr. Holmes. Nem sequer pensei em me arrumar. Nunca mais chegava a hora de deix

aquela casa. Antes de vir para cá, porém, andei por diversos lugares em busca de informações. Facom os agentes do proprietário da casa e eles me disseram que o sr. García tinha pago pontualmeno aluguel e que tudo estava em ordem com relação à Vila Glicínia.

– Calma, calma, meu caro – disse Holmes, rindo. – O senhor até parece o meu amigo, Dr. Watsoque tem o mau hábito de contar as suas histórias começando pelo fim. Queira ordenar as idéias

contar-me, na devida seqüência, quais foram de fato os acontecimentos que o fizeram sair de cadespenteado, com a roupa por escovar, as botinas e o colete mal-abotoados, à procura de conselhe auxílio.

Nosso cliente lançou um compungido olhar à sua própria aparência em desalinho.– Devo ter-lhe causado uma péssima impressão, sr. Holmes, e não me recordo de, em toda a minh

vida, ter-me sucedido tal coisa. Mas vou contar-lhe tudo o que aconteceu, e, quando tiver terminadestou certo de que encontrará razão de sobra para me desculpar.

Não chegou, porém, a iniciar a narrativa. Ouviu-se um ruído do lado de fora e dali a instantes a srHudson abria a porta para fazer entrar dois indivíduos robustos que, pelo aspecto, pareciam pertencerpolícia, um dos quais era, na verdade, nosso bem conhecido inspetor Gregson, da Scotland Yard, funcionárenérgico, brioso e, dentro de suas possibilidades, capaz. Apertou a mão de Holmes e apresentou o secompanheiro, o inspetor Baynes, do comissariado de Surrey.

– Estamos ambos empenhados numa caça, sr. Holmes, e nossa pista trouxe-nos até aqui. – Ao dizisso, voltou para nosso visitante seus olhos de buldogue. – É, por acaso, o sr. John Scott Eccles, dPopham House, Lee?

– Exatamente.– Andamos em seu encalço toda a manhã.– Sem dúvida, foi o telegrama que lhes deu a pista

– interpôs Holmes.

– Precisamente. Farejamos a pista na agênciapostal de Charing Cross, e ela conduziu-nosaté a sua casa.

– Mas por que me seguem? O que os senhoresquerem de mim?

– Queremos ouvi-lo, sr. Scott Eccles, a respeitodos acontecimentos que redundaram na morte,ontem à noite, do sr. Aloysius García, na VilaGlicínia, nos arredores de Esher.

Nosso cliente endireitou-se na cadeira com os olhosesbugalhados, enquanto as cores lhe fugiam do rostoatônito.

– Morto? O senhor diz que ele está morto?– Sim, ele está morto.– Mas como? Um acidente?– Assassinato, sem a menor sombra de dúvida.– Santo Deus! Isso é horrível! O senhor quer

dizer... que eu sou suspeito?– Foi encontrada uma carta no bolso do morto e

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por ela ficamos sabendo que o senhor tencionava passar a noite de ontem em casa dele.– É verdade.– Oh! Deveras?

O inspetor tirou prontamente do bolso seu caderno de notas.– Espere um pouco, Gregson – disse Sherlock Holmes. – Tudo o que você deseja é ouvir-lhes as

declarações, não é verdade?– E é meu dever prevenir o sr. Scott Eccles de que elas podem ser usadas contra ele.

– O sr. Eccles ia contar-nos a sua história quando você entrou. Creio, Watson, que um uísque comsoda não lhe faria mal. E agora, caro sr. Eccles, aconselho-o a que não se importe com esse aumentode auditório e nos conte tudo, exatamente como o faria se não tivesse sido interrompido.

Nosso visitante ingeriu de um trago a bebida e a cor voltou-lhe às faces. Lançando um olhar indeciso aocaderno de notas do inspetor, deu início, sem mais demora, ao seu extraordinário depoimento.

– Sou solteiro – disse – e, como tenho um temperamento sociável, possuo largo círculo de amizades.Entre estas encontra-se a família de um antigo fabricante de cerveja chamado Melville, residente na Albemarle Mansion, em Kensington. Foi à sua mesa que conheci, há algumas semanas, um rapaz denome García. Era, ao que soube, de origem espanhola, e tinha uma ligação qualquer com a embaixada.Falava perfeitamente o inglês e, além de muito afável no trato, era um dos homens mais belos que já vi em toda a minha vida.“Entre mim e esse rapaz manifestou-se imediatamente uma sincera amizade. Ele parecia tersimpatizado comigo desde aquele primeiro encontro, e, dali a dois dias, foi visitar-me em Lee. Umacoisa puxa outra, e acabou por me convidar para passar alguns dias em sua residência – a VilaGlicínia –, situada entre Esher e Oxshott. Ontem à noite dirigi-me a Esher a fim de atender aoconvite.“Antes de minha ida ele me falara sobre o pessoal a seu serviço. Morava com um criado dedicado,seu compatriota, que cuidava de todas as suas necessidades. Esse homem, que sabia falar inglês,tomava conta da casa. Contou-me que tinha também um magnífico cozinheiro, um mestiço que

encontrara em suas viagens, capaz de servir excelentes jantares. Lembro-me de me ter chamado aatenção para a singularidade de tal criadagem em pleno coração de Surrey, e de eu ter concordado,embora viesse a verificar que era muito mais singular do que havia imaginado.“Fui de carro para lá... cerca de três quilômetros ao sul de Esher. A casa era de bom tamanho, umpouco distante da estrada, e tinha-se acesso a ela por uma sinuosa vereda, ladeada de arbustos.Tratava-se de um velho edifício, em péssimo estado de conservação. Quando o carro parou nocaminho coberto de mato, diante da porta manchada e escurecida pelo tempo, tive dúvidas quantoa meu bom senso em visitar um homem que afinal só conhecia superficialmente. Ele próprio veiome abrir a porta e recebeu-me com provas de grande cordialidade. Fui entregue aos cuidados docriado, indivíduo de tez escuríssima e ar melancólico, que me conduziu ao meu quarto, levandominha maleta. Todo o ambiente era desalentador. Jantamos sós, e, apesar de o dono da casa fazero possível por se mostrar amável, o curso de seus pensamentos parecia interromper-se de vez emquando, e sua conversa era tão vaga e desconexa que eu tinha dificuldade em acompanhá-la.Tamborilava constantemente com os dedos na mesa, mordiscava as unhas e dava outros tantossinais de inquietação nervosa. Quanto ao jantar, não foi nem bem servido, nem bem preparado, ea sombria presença do taciturno criado não contribuía decerto para nos alegrar. Afianço-lhes quemuitas vezes, durante aquela noite, desejei poder inventar qualquer desculpa que me permitisseregressar a Lee.“Recordo-me de um fato que talvez tenha certa relação com o caso que esses cavalheiros estão

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investigando. Naquela ocasião, não lhe dei grande importância. Quase no fim do jantar o criadapareceu com um bilhete. Notei que, depois de lê-lo, García tornou-se ainda mais distraído e nervosRenunciando a qualquer pretexto de conversação, recostou-se numa cadeira, fumando cigarroconsecutivos, absorto em seus próprios pensamentos, sem fazer o menor comentário ao conteúddo bilhete. Senti-me satisfeito quando, por volta das onze horas, fomos nos deitar. Algum tempdepois García apareceu à porta do meu quarto (o quarto estava às escuras nessa ocasião) e perguntome se eu tinha tocado a campainha. Disse-lhe que não. Pediu-me desculpas por me incomodar

hora tão avançada, dizendo já ser quase uma da madrugada. Adormeci depois disso e dormprofundamente o resto da noite.“E agora chego à parte mais espantosa de minha história. Quando acordei, já era dia claro. Consulto relógio e verifiquei serem quase nove horas. Insistira na véspera para que me chamassem às oie por isso tal esquecimento surpreendeu-me muitíssimo. Saltei da cama e toquei a campainha pachamar o criado, mas não obtive resposta. Voltei a tocá-la repetidas vezes, com o mesmo resultadCheguei então à conclusão de que estava avariada. Vesti-me às pressas e de péssimo humor desrapidamente a escada, a fim de pedir um pouco de água quente. Poderão imaginar a minha surpresao ver que não havia ninguém. Pus-me a gritar no vestíbulo, sem obter resposta. Percorri, entãtodos os aposentos; não encontrei ninguém. O dono da casa, na véspera, mostrara-me o seu quartBati-lhe à porta. Nada. Dei volta à maçaneta e entrei. O aposento estava vazio e a cama não forocupada. Tinha-se ido com os outros. O patrão estrangeiro, o criado estrangeiro, o cozinheiestrangeiro, todos tinham desaparecido durante a noite! Assim terminou minha visita à Vila Glicínia

Sherlock Holmes esfregou as mãos e sorriu satisfeito, diante da perspectiva de acrescentar mais essestranho incidente à sua coleção de episódios fantásticos.

– Sua aventura, pelo que vejo, é positivamente excepcional. Poderá dizer-me, sr. Eccles, o que fedepois?

– Estava furioso. Minha primeira impressão foi ter sido vítima de qualquer brincadeira de mau gost Arrumei as minhas coisas, bati a porta atrás de mim e pus-me a caminho de Esher, carregando

minha maleta. Dirigi-me ao escritório dos irmãos Allan, os mais importantes corretores de imóveda cidade, e soube que a vila tinha sido alugada por intermédio deles. Parecia-me difícil acreditque aquilo constituísse um simples plano para me fazer passar por tolo, e comecei a pensar queprincipal objetivo fosse fugir ao pagamento do aluguel. Estamos no fim de março, e o vencimentrimestral está próximo. Essa hipótese, porém, logo caiu por terra. O agente agradeceu-me informação, mas disse-me que o aluguel havia sido pago adiantado. Tomei, então, o caminho dLondres, e procurei a embaixada espanhola. Ninguém ali conhecia o homem. Depois disso fui procurMelville, em cuja casa eu fora apresentado a García. No entanto, averiguei que, na realidade, eleconhecia ainda menos do que eu. Finalmente, quando recebi a sua resposta ao meu telegrama, vipara cá, pois sei que o senhor é pessoa capaz de dar bons conselhos em casos difíceis. Entretantinspetor, vejo agora pelo que disse quando entrou que a história não termina aqui e deve ter ocorriduma tragédia. Posso afirmar-lhe que minhas palavras correspondem à pura verdade e que, além drelatado por mim, nada mais sei sobre o destino desse homem. Meu único desejo é auxiliar a justiçem tudo quanto me for possível.

– Estou certo disso, sr. Scott Eccles, estou certo disso – proferiu o inspetor Gregson, em seu tom macordial. – Sinto-me na obrigação de lhe dizer que tudo o que acaba de nos referir está em perfeiacordo com os fatos chegados ao nosso conhecimento. Por exemplo, aquele bilhete entregue durano jantar. Notou, por acaso, o que foi feito dele?

– Sim; García amarrotou-o e atirou-o ao fogo.

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– Que diz a isso, sr. Baynes?O detetive provinciano era um homem gordo,

rubicundo, sempre bufando, e seu rosto de aspectogrosseiro era suavizado por dois olhos de extraor-dinária vivacidade, quase ocultos entre as saliênciasdas bochechas e da testa. Com um lento sorriso,tirou do bolso um pedaço de papel descolorido e

amarrotado.– Havia uma grade diante da lareira, sr.

Holmes, e ele deve ter errado a pontaria. Apanhei-o do lado de fora, sem que aschamas o tivessem atingido.

Holmes sorriu com ar de aprovação.– O senhor deve ter examinado a casa com

muito cuidado para encontrar uma bolade papel como essa.

– De fato, é o meu sistema. Quer que o leia,sr. Gregson?

O inspetor londrino acenou afirmativamente com a cabeça.– O bilhete está escrito em papel pautado comum, sem filigrana.

É a quarta parte de uma folha, e foi cortado em dois sentidos com uma tesoura de lâmina curta. Foidobrado três vezes e selado com lacre vermelho, colocado às pressas e comprimido com um objetochato e oval. Está endereçado ao sr. García, Vila Glicínia, e diz:

“Nossas cores, verde e branco. Verde aberto, branco fechado. Escada principal,pr imeir o corredor, sétima àdireita, estofo verde. Boa sorte. D”.

“ A letra é de mulher e foi escrita com pena de ponta fina, mas o endereço foi feito com outra pena

ou por outra pessoa. Como pode ver, trata-se de uma caligrafia mais grossa e firme.– O bilhete é deveras extraordinário – comentou Holmes, examinando o papel. – Devo cumprimentá-lo, sr. Baynes, pela atenção que dispensou aos pormenores na análise feita. Poderíamos talvezacrescentar algumas minudências sem importância. O sinete oval é, sem dúvida, uma abotoadurade punho; que outro objeto pode ter tal formato? A tesoura usada deve ter sido uma tesourinha deunha, de ponta recurva, pois, apesar de os cortes serem curtos, nota-se distintamente em cada umdeles a mesma ligeira curvatura.

O detetive deu uma risadinha.– Julguei ter espremido todo o suco desse bilhete, mas vejo que ainda sobrou alguma coisa – disse. –

Confesso que não compreendo nada dele, a não ser que nos encontramos diante de um caso grave,cuja figura central, como de costume, é uma mulher.

Durante essa conversa, Scott Eccles estivera em contínua agitação em sua cadeira.– Alegra-me que tenha encontrado o bilhete, pois ele vem corroborar meu depoimento – disse. –

Tomo, porém, a liberdade de observar que ainda não me contaram o que aconteceu ao sr. García ea seus criados.

– Quanto a García – disse Gregson –, é fácil responder. Foi encontrado morto esta manhã em OxshottCommon, a cerca de um quilômetro e meio de distância da sua casa. Reduziram-lhe a cabeça a umamontoado informe de carne sangrenta, mediante golpes violentíssimos desferidos com um sacode areia ou outro objeto semelhante, que, mais do que feri-lo, esmigalhou literalmente o seu crânio.

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O lugar é deserto e a casa mais próxima fica a quatrocentos metros. Aparentemente, recebeu primeiro golpe pelas costas; de qualquer modo, o assaltante continuou a golpeá-lo muito tempdepois de ele já estar morto. Deve ter sido uma agressão inesperada e brutal. Não havia pegadas nlocal, nem o menor indício que nos pudesse pôr na pista dos assassinos.

– Houve roubo?– Não; não se trata de tentativa de roubo.– É muito doloroso... doloroso e terrível – comentou Scott Eccles em voz trêmula. – Mas, para mim

a situação é particularmente trágica. Nada tenho a ver com o fato de meu amigo ter saído para umexcursão noturna que o fez encontrar tão triste fim. Como posso estar implicado neste caso?

– Por um motivo muito simples – respondeu o inspetor Baynes. – O único documento encontrado nbolso do morto era uma carta sua, na qual o senhor dizia que iria fazer-lhe uma visita exatamente nnoite em que ele morreu. Foi o envelope dessa carta que nos revelou o nome e o endereço dvítima. Já passava das nove da manhã quando chegamos à casa dele, onde não encontramos nemsenhor nem mais ninguém. Telegrafei a Gregson para procurá-lo em Londres, enquanto examinava Vila Glicínia. Vim então para a cidade, reuni-me a Gregson, e aqui estamos.

– Creio que agora – disse Gregson, levantando-se – é melhor darmos a esse assunto um carátoficial. Faça o favor de nos acompanhar até o posto policial, sr. Scott Eccles, a fim de tomarmos asuas declarações por escrito.

– Perfeitamente; estou às ordens. Mas ainda necessito de seus serviços, sr. Holmes, e peço-lhe qunão poupe dinheiro nem trabalho para descobrir a verdade.

Meu amigo voltou-se para o detetive de Surrey.– Espero que não se oponha a que lhe dê minha colaboração, sr. Baynes.– Pelo contrário, eu me sentirei muito honrado, sr. Holmes.– O senhor parece ter sido muito pronto e eficiente em tudo o que fez. Poderia informar-me se hav

algum indício quanto à hora em que se deu a morte desse homem?– Ele estava desde uma hora da madrugada no lugar em que o encontramos. Tinha chovido mais o

menos a essa hora, e sua morte deve ter ocorrido antes da chuva.– Mas isso é absolutamente impossível, sr. Baynes – exclamou nosso cliente. – A voz de García einconfundível e posso jurar-lhes que foi ele próprio que falou comigo, em meu quarto, a essmesma hora.

– É esquisito, mas não de todo impossível – comentou Holmes, sorrindo.– O senhor já tem alguma idéia? – perguntou Gregson.– À primeira vista, o caso não me parece muito complexo, se bem que apresente inegavelmen

alguns aspectos novos e interessantes. Todavia, é preciso que eu tenha melhor conhecimento dofatos antes de poder aventurar uma opinião definida. A propósito, sr. Baynes, encontrou algumoutra coisa digna de nota, além do bilhete, quando examinou a casa?

O detetive fixou meu amigo de maneira estranha.– Sim; descobri uma ou duas coisas muito singulares. Talvez, depois de terminado o meu serviço n

posto policial, o senhor possa se encontrar comigo e dar a sua opinião a esse respeito.– Estou inteiramente à sua disposição – disse Sherlock Holmes, tocando a campainha. – Queira acom

panhar estes senhores até a porta, sra. Hudson, e fazer o favor de mandar o rapaz expedir esttelegrama. Deve ser enviado com resposta paga de cinco xelins.

Permanecemos sentados, em silêncio, durante algum tempo, depois de nossos visitantes se retiraremHolmes fumava incessantemente, as sobrancelhas contraídas sobre os olhos penetrantes, a cabeça inclinadpara diante, na atitude de intensa concentração que lhe era característica.

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– Então, Watson – perguntou, voltando-se subitamente para mim –, que pensa de tudo isso?– Não consigo compreender nada dessa trapalhada em que Scott Eccles se meteu.– Mas e o crime?– Bem, se tomarmos em consideração o desaparecimento dos companheiros da vítima, diria que eles

devem estar de algum modo comprometidos com o assassinato, e que fugiram da justiça.– Esta é, sem dúvida, uma hipótese viável. Por outro lado, deve convir que é muito estranho que os

dois criados tivessem conspirado contra García e o tivessem atacado justamente numa noite em

que ele tinha um hóspede. Tinham-no sozinho, à sua mercê, qualquer outra noite da semana.– Então, por que fugiram?– Precisamente. Por que fugiram? É um fato importante; outro fato muito importante é a singular

aventura de nosso cliente Scott Eccles. Ora, meu caro Watson, estará fora dos limites do engenhohumano atinar com uma explicação para esses dois fatos importantes. Se se pudesse com talexplicação desvendar também o mistério daquele bilhete enigmático, com sua extravagantefraseologia, então valeria a pena aceitá-la como hipótese provisória. E se os fatos ulteriores, quechegarem a nosso conhecimento, se adaptarem ao esquema, nossa hipótese, então, pode pouco apouco tornar-se uma solução.

– Mas qual é essa hipótese?Holmes recostou-se na cadeira, os olhos semi-cerrados.

– Como deve concordar, meu caro Watson, a idéia de uma brincadeira é inaceitável. Algo de graveestava para acontecer, como muito bem o demonstra a seqüência dos fatos, e o convite feito a ScottEccles para ir à Vila Glicínia deve ter qualquer relação com isso.

– Mas qual é a possibilidade dessa relação?– Sigamos nossa argumentação ponto por ponto. De início, existe alguma coisa irreal nessa amizade

súbita e estranha entre o jovem espanhol e Scott Eccles. Foi o primeiro que a forçou, visitandoEccles no outro extremo de Londres logo no dia seguinte àquele em que o conheceu, e mantendo-se em estreito contato com ele até conseguir fazê-lo ir a Esher. Ora, o que pretendia esse homem

com relação a Eccles? O que Eccles poderia oferecer-lhe? Não vejo nessa personagem nenhumatrativo; não é particularmente dotado de inteligência, nem possui gênio capaz de agradar ao espíritovivaz de um latino. Então, por que foi escolhido, entre tantos outros que García conheceu, comoespecificamente útil a seu propósito? Terá ele alguma qualidade relevante? Creio que sim. É o protótipoda convencional respeitabilidade britânica, e justamente o homem suscetível de impressionar, como próprio testemunho, um outro britânico. Você próprio acabou de verificar que nenhum dosinspetores sequer sonhou em pôr em dúvida o seu depoimento, por mais extraordinário que pareça.

– Mas o que deveria ele testemunhar?– Nada, como as coisas se deram; tudo, porém, se elas tivessem corrido diversamente. É assim, pelo

menos, que interpreto a situação.– Percebo; ele talvez pudesse servir para provar um álibi.– Exatamente; poderia servir para provar um álibi. Suponhamos, para argumentar, que os ocupantes

da Vila Glicínia estivessem metidos em alguma empresa suspeita. Esta, fosse qual fosse, deveria serexecutada, digamos, antes da uma hora. Adiantando os relógios, é perfeitamente possível que tivessemfeito Scott Eccles recolher-se mais cedo do que pensava; de qualquer modo, é provável que, quandoGarcía se deu ao incômodo de lhe dizer que era uma hora, não fosse realmente mais de meia-noite.Se García pudesse fazer o que pretendia antes da hora mencionada, teria evidentemente uma poderosadefesa contra qualquer acusação. Ele teria sempre esse inglês irrepreensível, pronto a jurar perantequalquer tribunal que o acusado se encontrava em sua residência na ocasião do crime. Era uma

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precaução contra a adversidade.– Sim, sim, compreendo; mas como explica o desaparecimento dos outros?– Ainda não tenho todos os elementos na mão. Entretanto, não creio que existam dificuldad

insuperáveis para a elucidação desse ponto. Todavia, é um grave erro alimentar idéias preconcebidapois, insensivelmente, a pessoa procura torcer os fatos a fim de adaptá-los às próprias teorias.

– E o bilhete?– Quais são seus termos? “Nossas cores, verde e branco”. Parece referir-se a corridas de cavalo

‘Verde aberto, branco fechado’. Trata-se, evidentemente, de um sinal. ‘Escada principal, primeicorredor, sétima à direita, estofo verde’. Isso não pode deixar de ser um encontro marcado. Quesabe se, no fundo de tudo isso, não iremos topar com um marido ciumento? Indubitavelmente,expedição era perigosa, pois, de outro modo, não teria acrescentado ‘Boa sorte. D’. Esta inicial seruma orientação.

– O homem era espanhol. Por isso, talvez “D” signifique Dolores, nome de mulher muito comum nEspanha – sugeri.

– Ótimo, Watson, perfeito... mas absolutamente inadmissível. Uma espanhola escreveria a um espanhem sua própria língua. A autora desse bilhete é certamente inglesa. Mas, por enquanto, nosso únicrecurso é munirmo-nos de paciência até que esse excelente inspetor esteja de volta. Enquanto isspodemos dar graças à nossa boa estrela por nos ter libertado durante algumas horas do insuportávtédio da ociosidade.

 A resposta ao telegrama de Holmes chegou antes do regresso do detetive de Surrey. Meu amigo leu-a e guardá-la entre as páginas de seu bloco quando notou a expressão de curiosidade em meu rosto. Passoua mim por cima da mesa, com uma risada.

– Estamos nos movendo em altas esferas – disse.O telegrama era uma lista de nomes e endereços: ‘Lorde Harringby, The Dingle; sir George Folliot, Oxsho

Towers; sr. Hynes Hynes, J. P., Purdley Place; sr. James Baker Williams, Forton Old Hall; sr. Henderson, HigGable; reverendo Joshua Stone, Nether Walsling’.

– Este é um modo muito simples de limitarnosso campo de operações – comentouHolmes. – Sem dúvida Baynes, com seuespírito metódico, já adotou algumprocesso análogo.

– Não percebo bem o que quer dizer.– Ora, meu caro amigo, já chegamos à

conclusão de que o bilhete recebido porGarcía, durante o jantar, devia servir paramarcar um encontro ou indicar-lhe umlugar. Se a interpretação desse bilhete estácorreta, para se chegar ao lugar indicadoé preciso subir uma escada principal eprocurar a sétima porta de um corredor, eé evidente que a casa deve ser muitogrande. É igualmente certo que essa casanão pode distar mais do que dois ou trêsquilômetros de Oxshott, pois Garcíacaminhava naquela direção e esperava, segundo

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a minha interpretação dos fatos, estar de volta à Vila Glicínia a tempo de se aproveitar de um álibiválido apenas até uma hora da madrugada. Como o número de casas grandes nas proximidades deOxshott deve ser limitado, recorri ao expediente de telegrafar aos agentes mencionados por ScottEccles e obter uma lista dessas residências. Ei-la neste telegrama; a outra ponta de nossa embaraçadameada deve encontrar-se aí.

Eram quase seis horas quando chegamos à graciosa vila de Esher, no Surrey, na companhia do inspetorBaynes.

Holmes e eu tínhamos trazido o necessário para passar a noite e arranjamos aposentos confortáveis noBull Hotel. Partimos finalmente com o detetive para a nossa visita à Vila Glicínia. Era uma escura e frígidanoite de março. Feriam-nos o rosto um vento cortante e uma chuva miúda, moldura condizente com aregião desolada que o trem atravessava, e com a trágica meta a que nos destinávamos.

II – O Tigre de San Pedro

Depois de uma fria e melancólica caminhada de cerca de três quilômetros, alcançamos o portão alto demadeira que dava acesso a uma alameda de castanheiras. Esse caminho sinuoso, envolto em sombras,conduzia a uma casa escura e baixa, cujo vulto negro se destacava no céu cinza. De uma janela da frente, aolado esquerdo da porta de entrada, coava-se uma luz bruxuleante.

– Há um policial de guarda – explicou Baynes. – Vou bater à janela. Atravessou o canteiro de relva e bateu com os nós dos dedos na vidraça. Através do vidro embaciado, vi

vagamente um homem saltar de uma cadeira ao lado do fogo e ouvi um grito agudo vindo do interior da sala.Logo em seguida um policial pálido e ofegante, com uma vela na mão trêmula, abria a porta.

– Que aconteceu, Walters? – perguntou Baynes secamente.O homem enxugou a testa e soltou um suspiro de alívio.

– Alegro-me de vê-lo aqui, chefe. A noite pareceu-me interminável, e creio que já não possuo nervostão bons como antigamente.

– Nervos, Walters? Nunca supus que você

tivesse nervos.– Ah!, sr. Baynes, é esta casa vazia e fúnebree aquela coisa esquisita na cozinha que mepõem assim. Além disso, quando o senhorbateu na janela julguei que fosse ele outravez.

– Ele quem?– O Demônio, chefe, não podia ser outro.

 Apareceu na janela.– Quem apareceu na janela e quando foi isso?– Foi há cerca de duas horas. Principiava a

escurecer. Eu estava lendo sentado nacadeira. Não sei o que me fez levantar acabeça, e, repentinamente, vi uma cara queme fitava através do vidro inferior da janela.E que cara, Deus meu! Estou certo de que a vereisempre em meus sonhos.

– Calma, calma, Walters! Isso é maneira de um policial falar?– Bem sei, chefe, bem sei; todavia, não posso negar que ela me

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assustou. Não era preta nem branca, mas de uma cor que jamais vi; parecia feita de argila, sobrequal tivessem borrifado um pouco de leite. E o tamanho, então, chefe! Era o dobro da sua. E quolhar... dois olhos esbugalhados, fixos, e duas fileiras de dentes brancos como os de uma fefaminta. Garanto-lhe, chefe, que não fui capaz de me mover, nem ao menos de respirar, até edesaparecer. Precipitei-me para fora e dei uma busca entre as moitas, mas, graças a Deus, nãencontrei ninguém.

– Se eu não soubesse que você é um homem como deve ser, Walters, seu nome ficaria marcado p

causa disso. Ainda que fosse o Diabo em pessoa, um policial em serviço nunca deveria dar graçasDeus por não lhe poder pôr as mãos em cima. Tem certeza de que tudo isso não foi apenas umvisão ou produto dos nervos?

– Isso, pelo menos, é fácil verificar – interveio Holmes, acendendo sua lanterna portátil. – De fatoprosseguiu, depois de um rápido exame ao canteiro de relva –, as pegadas são de quem calçnúmero 45, posso quase afirmar. Se o corpo for proporcional ao tamanho do pé, deve por certo sum gigante.

– O que teria sido feito dele?– Parece ter pulado a sebe de arbustos e fugido para a estrada.– Bem – sentenciou o inspetor com ar grave e pensativo –, fosse quem fosse e o que tivesse prete

dido, está por enquanto fora de nosso alcance, e temos coisas mais urgentes a tratar. E agora, sHolmes, se me permite, lhe mostrarei a casa.

 Apesar da cuidadosa pesquisa, os vários quartos e salas não revelaram nada notável. Aparentemente oocupantes da vila tinham trazido muito pouca coisa consigo, e toda a mobília, até as mais insignificantepeças, tinha sido alugada com a casa. Grande quantidade de roupas com a marca Marx & Co., HigHolborn, fora abandonada por eles. Já tinham sido feitasindagações telegráficas, que revelaram que Marx nadasabia de seu freguês, exceto que pagava bem. Diversasmiudezas, como cachimbos, alguns romances, dois dos

quais em espanhol, um revólver de modelo antiquado eum violão, constituíam os poucos objetos de uso pessoalencontrados.

– Até aqui, nada interessante – disse Baynes, pas-sando cautelosamente de quarto em quarto coma vela na mão. – Mas, agora, sr. Holmes, querochamar sua atenção para a cozinha.

Era um compartimento alto e sombrio, nos fundos dacasa, onde se via, num dos cantos, um enxergão de palha,que devia ter servido de cama para o cozinheiro. A mesaestava coberta de pratos sujos e restos do jantar da noiteanterior.

– Veja isto – disse Baynes. – O que lhe parece?Dizendo isso, aproximou a vela de um estranho objeto

que se encontrava atrás do armário. Era uma coisa de talmodo enrugada, murcha e seca, que se tornava difícil dizero que poderia ter sido. Apenas era possível verificar queera preta, e tinha o aspecto de couro, assemelhando-se auma figura humana em miniatura. Ao examiná-la, pensei

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a princípio tratar-se de um negrinho mumificado; depois pareceu-me um macaco muito velho e encarquilhado.Finalmente, fiquei na dúvida, sem saber se era animal ou humano. Tinha pendurada ao redor uma fileira deconchas brancas.

– Muito interessante... realmente, muito interessante! – exclamou Holmes, observando a sinistrarelíquia. – Mais alguma coisa?

Baynes aproximou-se em silêncio da pia e iluminou-a com a vela. Viam-se ali os membros e o corpo deuma ave branca de grandes dimensões, reduzida brutalmente a pedaços, com as penas ainda agarradas à

pele. Holmes indicou com o dedo as barbelas da cabeça cortada.– Um galo branco – disse. – Interessantíssimo! É, de fato, um caso muito curioso.

Baynes, entretanto, reservara para o fim o pormenor mais sinistro. Extraiu da parte de baixo da pia umbalde de zinco contendo uma grande quantidade de sangue. Depois, de cima da mesa, agarrou uma bandejaem que se amontoavam fragmentos de ossos queimados.

– Algo foi morto e queimado. Retiramos tudo isto do fogo. Hoje de manhã esteve aqui um médicoque afirmou não se tratar de restos humanos.

Holmes sorriu e esfregou as mãos.– Devo felicitá-lo, inspetor, pela maneira perspicaz e inteligente

com que está agindo neste caso. Sua capacidade, seme permite dizê-lo sem ofensa, parece-me superioràs suas oportunidades.

Os olhinhos do inspetor Baynes cintilaram de prazer.– Tem razão, sr. Holmes. Vegeta-se aqui no

interior. Um caso como este pode oferecergrandes possibilidades para quem saibaaproveitá-lo, e eu espero não deixar fugir aocasião. O que pensa destes ossos?

– Diria serem de cordeiro ou de cabrito.

– E o galo branco?– Curioso, sr. Baynes, muito curioso; eu diriaquase único.

– Sim; esta casa deve ter sido habitada por pes-soas muito estranhas, com hábitos esquisitís-simos. Uma delas morreu. Terá sido seguida emorta pelos seus companheiros? Se for isso,nós os apanharemos, pois todos os portos estãosendo vigiados. No entanto, minha opinião a esse respeito é diferente. Sim, sr. Holmes, a minhaopinião pessoal é muito diferente.

– Já formulou, então, uma hipótese?– Trabalharei nela por minha conta, sr. Holmes. Se for bem sucedido, isso redundará em crédito para

mim. Seu nome está feito; eu, porém, ainda preciso fazer o meu. Eu me sentiria satisfeito se pudessedizer mais tarde que resolvi este problema sem sua ajuda.

Holmes riu gostosamente.– Está bem, inspetor – disse. – Siga o seu caminho; eu seguirei o meu. Em todo caso, meus resulta-

dos estarão sempre à sua disposição se, por acaso, quiser servir-se deles. Penso ter visto tudo oque desejava ver nesta casa, e meu tempo poderá ser melhor aproveitado em outro lugar. Até avista e boa sorte!

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Percebi por inúmeros pequenos indícios, que poderiam ter escapado a outra pessoa, que Holmes já tinhdescoberto nova pista. Embora pudesse parecer impassível a qualquer observador casual, havia em seuolhos brilhantes e nos gestos vivos uma ansiedade, uma tensão contida que me faziam compreender que epressentira a proximidade de caça grossa. Como de costume, não me disse nada, nem eu lhe fiz perguntaBastava-me participar das emoções da aventura e prestar-lhe o meu insignificante auxílio na captura, seperturbar com inúteis interrupções aquele cérebro em contínua efervescência. Em tempo oportuno eu serinteirado de tudo.

Esperei, portanto, mas, para meu sempre crescente desapontamento, esperei em vão. Sucediam-se odias e o meu amigo não dava o menor passo em frente. Esteve certa manhã na cidade e soube depois, pouma casual alusão de sua parte, que visitara o Museu Britânico. Exceto por essa única ausência, consumiatempo em longas e assíduas caminhadas solitárias, ou tagarelando com certo número de bisbilhoteiros dvila, cuja amizade cultivara.

– Estou certo, Watson – observou um dia –, de que uma semana no campo lhe faria muito bem.agradável ver despontar os primeiros rebentos verdes nas sebes e as aveleiras cobrindo-se de delicadflorzinhas. Com uma pazinha, uma caixinha de lata e um livro elementar de botânica, pode-passar horas muito instrutivas.

Ele próprio fazia suas excursões pelos arredores com esse equipamento, mas era muito escassa a quantidadde plantas que trazia para casa à noite.

 Às vezes, em nossos giros, encontrávamos o inspetor Baynes. Seu rosto corado e rechonchudo desfazise em sorrisos e os olhos miúdos cintilavam ao saudar meu companheiro. Falava pouco sobre o caso, mdesse pouco depreendia-se não estar descontente com o curso dos acontecimentos. Confesso, contudo, tficado algo surpreso quando, cinco dias após o delito, ao abrir o jornal da manhã, deparei com estes dizerem letras garrafais:

SOLUÇÃO DO M ISTÉRIO DE OXSHOTT PRISÃO DO SUPOSTO ASSASSINO 

Quando li em voz alta esse título, Holmes deu um pulo na cadeira como se tivesse sido picado po

uma tarântula.– Com os diabos! – exclamou. – Será possível que Baynes o tenha apanhado?– É o que parece – respondi, passando a ler a seguinte notícia:

“Causou grande sensação em Esher e em toda a zona ci rcunvizinha a notícia de que, às últimas horas da noi te de ontem, foi real izada uma pr isão relacionada com o cr ime de Oxshott. Como todos devem estar lembrados, o sr. García, da Vila Gl icínia,foi encontrado morto na região de Oxshott. O corpo apresentava sinais de violenta agressão, e, na mesma noi te, desapareceram seus dois cr iados, o que faz supor que ambos sejam par ticipantes do delito. Presumiu-se, embora sem provas, que a vítima tivesse em sua casa objetos de grande valor e o moti vo do crime fosse o roubo.Foram despendidos todos os esforços pelo inspetor Baynes, em cujas mãos se encontra este caso, no senti do de descobri r o paradeiro dos fugi tivos, pois ele tinha fundados moti vos para crer que não se havi am afastado mui to do lugar e encontravam-se em qualquer esconderi jo previamente preparado. Todavia, tinha- se como certo, desde o pr incípio, que eles mais cedo ou mais tarde seri am descober tos, porquanto o cozinheir o, segundo o testemunho de um ou doi s fornecedores que o tinham avi stado atr avés da janela, era homem de aparência extraordinária – um mulato gigantesco, de catadura repelente, tez amarelada e acentuado tipo negróide. Esse indi víduo f oi visto depois do cr ime, tendo sido 

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encontrado e perseguido naquela mesma noite pelo agente Walters, ao ter a audácia de voltar àVi la Glicíni a. O inspetor Baynes, considerando que tal visi ta deveria ter algum propósito e que, portanto, podia se repeti r, abandonou a casa e preparou uma emboscada entre as moitas do jardim. O homem caiu na armadilha e foi capturado ontem ànoi te, após violenta luta, durante a qual o agente Downing 

recebeu uma feroz mordida do selvagem. Sabemos que, quando o pr isioneir o comparecer perante os magistrados, a polícia pedirá sua pr isão. Esperam-se grandes 

revelações relaci onadas com essa captura”.– Claro que precisamos ver Baynes o quanto

antes – exclamou Holmes, pegando o chapéu.– Temos o tempo necessário para apanhá-loantes de partir.

Descemos apressadamente a rua do vilarejo e,como havíamos previsto, encontramos o inspetorpronto para sair.

– Já leu o jornal de hoje, sr. Holmes? – indagou,apresentando-lhe um exemplar.

– Sim, Baynes, já o li. Peço-lhe que não se ofenda,mas quero dar-lhe um conselho de amigo.

– Um conselho, sr. Holmes?– Examinei a fundo este caso e não estou

convencido de que o senhor esteja na pistacerta. Não queria que se expusesse demasiado,a não ser que esteja realmente seguro.

– O senhor é muito gentil, sr. Holmes.– Asseguro-lhe que falo unicamente para o seu

próprio bem.Pareceu-me vislumbrar, por um rápido instante, ummalicioso brilho nos minúsculos olhos do inspetorBaynes.

– Concordamos em trabalhar cada um por seulado, sr. Holmes. É o que estou fazendo.

– Oh, muito bem! Não me queira mal por isso.– De forma nenhuma, sr. Holmes; estou certo de que as suas intenções são as melhores possíveis.

Mas todos nós temos o nosso próprio sistema. O senhor tem o seu, e eu talvez tenha o meu.– Não falemos mais nisso.– Terei sempre o maior prazer em informá-lo do que souber. O tal cozinheiro é um perfeito selvagem,

forte como um touro e feroz como o Diabo. Quase arrancou o polegar de Downing com umadentada, antes de conseguirmos subjugá-lo. Não fala praticamente uma palavra de inglês e nãopudemos arrancar-lhe nada, exceto grunhidos.

– E julga ter provas de que foi ele o assassino?– Eu não disse isso, sr. Holmes; não disse isso. Cada um de nós tem os próprios métodos. Siga os

seus, e eu seguirei os meus. Foi essa a combinação.Quando nos afastamos, Holmes disse-me, encolhendo os ombros:

– Não consigo compreender esse homem. Tenho a impressão de que está se precipitando num abismo.

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Bem, como ele próprio diz, cada um de nós deve pôr à prova o seu método e ver o que acontecHá, porém, qualquer coisa na atitude do inspetor Baynes que ainda não consegui entender bem.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .– Sente-se naquela cadeira, Watson – disse Sherlock Holmes quando chegamos a nosso apartamen

no Bull Hotel. – Quero pô-lo a par da situação, pois talvez precise do seu auxílio hoje à noite. Voexpor-lhe a evolução desse problema, tanto quanto me foi dado acompanhá-la. Embora simples nlinhas principais, tem, contudo, apresentado surpreendentes empecilhos com referência à prisã

dos culpados. Existem falhas nesse sentido, as quais precisamos remediar.“Voltemos ao bilhete entregue a García na noite de sua morte. Podemos desprezar a idéia dBaynes de que os criados da vítima estavam implicados no crime. A prova disso está no fato dque o próprio García fez com que Scott Eccles estivesse presente naquela noite na vila, o que spoderia ter o propósito de criar um álibi. Era, portanto, García quem tinha um plano em mente, aparentemente, um plano criminoso, em cuja execução encontrou a morte. Digo criminoso, porqusomente quem nutre um desígnio dessa espécie tem necessidade de estabelecer um álibi. Quempois, lhe tirou a vida? Certamente a pessoa contra a qual fora arquitetado o plano. Até aquparece-me que estamos pisando terreno seguro.“Portanto, agora podemos perceber o motivo do desaparecimento dos criados de García. Estavatodos associados na mesma empresa misteriosa. Se ela fosse coroada de êxito, García então voltare toda a eventual suspeita seria afastada com o testemunho do inglês, o que faria com que tudacabasse bem. Contudo, o empreendimento era perigoso, e, se García não regressasse atdeterminada hora, era muito provável que a sua vida tivesse sido sacrificada. Ficou por isso combinadque, se tal acontecesse, seus subordinados se refugiariam num esconderijo determinado, ondpudessem escapar às investigações e estar depois em condições de renovar o atentado. Não lhparece que isso daria uma cabal explicação dos acontecimentos?”

Como por encanto, todo aquele inexplicável emaranhado de fatos pareceu esclarecer-se diante de meuolhos. Admirei-me, como sempre, de que tal explicação não me tivesse acudido mais cedo.

– Mas por que um dos criados teria voltado?– Podemos supor que, na confusão da fuga, tivesse esquecido qualquer coisa preciosa, da qual nãpudesse separar-se. Isso explicaria sua insistência, não lhe parece?

– Bem, e depois?– Depois temos o bilhete recebido por García à hora do jantar, o que indica a existência de um cúmplic

na outra ponta da meada. Nesse caso, onde se encontra essa outra ponta? Já lhe mostrei que spoderia encontrar-se em qualquer casa grande e que o número de casas grandes nestas redondezaé limitado. Meus primeiros dias aqui neste vilarejo foram dedicados a uma série de passeios, duranos quais, nos intervalos de minhas pesquisas botânicas, fiquei conhecendo as casas grandes doarredores e a história das famílias dos seus respectivos ocupantes. Uma casa, apenas uma, atraiuminha atenção. Trata-se da famosa e antiga granja jacobita de High Gable, a um quilômetro e mede Oxshott e a menos de oitocentos metros do local da tragédia. As outras pertenciam a gentprosaicamente respeitável, que se mantém afastada de toda atmosfera romanesca. O sr. Hendersoda High Gable, porém, é inegavelmente um homem curioso, a quem podem suceder estranhaaventuras. Eis por que concentrei minha atenção sobre ele e seus familiares.“É um grupo de pessoas bastante singular, Watson, e o chefe da casa é, sem dúvida, a mais singulaProcurei vê-lo sob um pretexto plausível, mas pareceu-me ler em seus olhos escuros, profundopensativos, que estava perfeitamente a par do meu verdadeiro objetivo. É um homem de seucinqüenta anos, forte, enérgico, de cabelos grisalhos, sobrancelhas negras e espessas. Possui

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tivessem morto, e provavelmente faria o possível para se vingar deles. Poderíamos, então, ir vê-laprocurar utilizar esse ódio em nosso proveito? Tal foi o meu pensamento. No entanto, apresenta-agora uma circunstância sinistra. Desde a noite do crime, a sra. Burnet desapareceu. Estará aindviva, ou terá encontrado a morte na mesma noite, como o amigo que ela havia chamado? Oencontra-se apenas prisioneira? Este é um ponto que ainda precisamos esclarecer.“Você certamente já percebeu a dificuldade da situação, Watson. Não temos pretexto algum em qunos possamos apoiar para um mandado de prisão. Toda a nossa história parecerá fantástica, expos

a um magistrado. O desaparecimento da mulher nada prova, pois naquela casa é comum que alguéfique invisível por uma semana. Todavia, ela poderá estar neste instante em perigo de vida. Tudoque posso fazer é vigiar a casa e postar Warner de guarda no portão. Mas não podemos deixar qutal situação continue, e, visto que a lei é impotente para agir, devemos correr o risco sozinhos”.

– Que sugere então?– Sei qual é o quarto da sra. Burnet; é acessível do alto de um telhado que fica abaixo de sua janel

Proponho que estejamos lá esta noite para ver se conseguimos penetrar no fundo do mistério.Devo confessar que a perspectiva não me parecera muito tentadora. Aquela velha mansão com atmosfe

de crime, seus habitantes estranhos e temíveis, os perigos desconhecidos que iríamos arrostar e o fato dagindo assim, nos colocarmos em posição legalmente comprometedora, tudo contribuía para esmorecermeu ardor. No entanto, havia algo no frio raciocínio de Holmes que me impedia de recusar qualquer aventua que ele me convidasse. Sabia que assim, e só assim, era possível encontrar uma solução. Apertei-lhe a mãem silêncio e selei a minha sorte.

Estava decidido, porém, que nossa investigação não teria um fim tão rocambolesco. Eram cerca de cinchoras e as sombras daquela tarde de março principiavam a adensar-se, quando irrompeu em nosso quarum aldeão profundamente emocionado.

– Eles se foram, sr. Holmes. Partiram no último trem. A senhora conseguiu fugir deles e eu a trouxcomigo. Está num carro lá embaixo.

– Bravo, Warner! – exclamou Holmes, pondo-se de pé.

– As falhas estão sendo sanadas rapidamente,Watson.No carro encontrava-se uma mulher semi-desfalecida

pela exaustão nervosa. Trazia nas feições aquilinas epálidas os vestígios da recente tragédia. A cabeçapendia-lhe inerte sobre o peito, mas, quando a levantoupara nos fitar com os olhos embaciados, vi que as suaspupilas eram dois pontos negros no centro das enormesíris cinzentas. Estava evidentemente sob a ação de umaforte dose de ópio.

– Fiquei de guarda ao portão, como o senhorme recomendou – explicou nosso emissário,que era na verdade o jardineiro despedido. –Quando a carruagem saiu, segui-a até aestação. Esta senhora parecia sonâmbula.Todavia, quando pretenderam pô-la no trem,voltou a si e lutou com todas as forças. Quiseramempurrá-la para dentro de um vagão; ela, porém,ofereceu resistência e conseguiu escapar-lhes. Tomei-lhe

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a defesa, coloquei-a num carro e aqui estamos. Jamais esquecerei o rosto que me fitou da janela dovagão, quando a trouxe. Poucos dias me restariam de vida se aquele demônio amarelo de olhosnegros me pusesse as mãos em cima.

Levamos a mulher para dentro, colocamo-la no sofá, e em breve duas xícaras de café bem forte lheaclararam o cérebro das névoas do alcalóide. Baynes fora chamado por Holmes, e em breves palavras lheexplicamos a situação.

– Caramba! O senhor obteve justamente a prova de que eu necessitava – gritou o inspetor, apertando

entusiasticamente a mão de meu amigo. – Eu estava na mesma pista desde o princípio.– Como! O senhor também suspeitava de Henderson?– Exatamente, sr. Holmes. Enquanto o senhor se arrastava entre as moitas da High Gable eu estava

em cima de uma das árvores do pomar observando-o. Tratava-se apenas de saber quem obteria aprova primeiro.

– Então, por que prendeu o mulato? Baynes soltou uma gargalhada.– Tinha a certeza de que Henderson, como ele próprio se chama, sabia que desconfiavam dele, e se

manteria quieto em seu esconderijo enquanto se julgasse em perigo. Por isso prendi o pobre-diabopara fazer crer que ninguém se ocupava de sua pessoa. Estava convencido de que ele, com toda acerteza, procuraria afastar-se daqui o mais depressa possível, e nos daria a oportunidade de nosapoderarmos da sra. Burnet.

Holmes pôs a mão no ombro do inspetor.– O senhor irá longe em sua profissão. Tem o instinto e a intuição necessários a um bom policial –

disse.Baynes corou de satisfação.

– Deixei um agente à paisana na estação durante toda a semana. Para onde quer que se dirijam osmoradores da High Gable, ele não os perderá de vista. Mas o que teria ele pensado quando a sra.Burnet fugiu? Seja como for, seu homem apanhou-a e tudo acabou bem. No entanto, não podemosprender ninguém sem o testemunho dela, é claro. Portanto, quanto mais depressa ouvirmos as suas

declarações, melhor.– Ela está readquirindo as forças pouco a pouco – disse Holmes, observando a governanta. – Masdiga-me, Baynes, quem é esse Henderson?

– Henderson – respondeu o inspetor – é dom Murillo, outrora chamado o “Tigre de San Pedro”.O Tigre de San Pedro! Toda a história daquele homem me veio à mente como um relâmpago. Esse

indivíduo celebrizara-se como o tirano mais cruel e sanguinário que jamais havia governado um país com aaparência de civilizado. Forte, destemido e enérgico, possuía uma capacidade que lhe permitiu impor durantedez ou doze anos o seu jugo odioso sobre um povo aterrorizado. Seu nome era temido em toda a AméricaCentral, mas, no fim daquele tempo, houve uma revolta geral contra ele. Entretanto, tão astucioso comocruel, ao pressentir o perigo iminente fez transportar secretamente os seus tesouros para um navio tripuladopor correligionários fiéis. Foi apenas um palácio vazio que os revoltosos assaltaram no dia seguinte. Oditador e suas duas filhas, o secretário e as riquezas, tinham escapado. Desde essa época desapareceramdos olhos do mundo e sua identidade era objeto freqüente de comentários na imprensa européia.

– Sim senhor, dom Murillo, o Tigre de San Pedro – repetiu Baynes. – Se procurar recordar-se, verá queas cores de San Pedro são o verde e o branco, as mesmas citadas no bilhete. Adotara o nome deHenderson, mas consegui seguir-lhe as pegadas, em sentido inverso, através de Paris, Roma eMadri, até Barcelona, onde seu navio aportou em 1886. Seus inimigos procuraram-no durante todoesse tempo com o intuito de se vingarem. No entanto, só agora conseguiram encontrá-lo.

– Descobriram-no há um ano – interveio a sra. Burnet, que se tinha sentado e acompanhava atentamente

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a conversa. – Já uma ocasião haviam atentado contra a sua vida, mas há um espírito demoníaco quparece defendê-lo. E agora, mais uma vez, é o nobre e cavalheiresco García que cai abatido, enquano monstro consegue escapar impune. Mas outro virá, e ainda outro, até um dia ser feita justiça; issé tão certo como o nascer do sol.

Suas mãos finas contraíram-se e o rosto cansado empalideceu sob o domínio do ódio de que se achavpossuída.

– Mas de que maneira a senhora se envolveu neste caso? – perguntou Holmes. – Como poderia um

inglesa tomar parte em semelhante atentado homicida?– Aderi à conspiração porque não havia outro meio no mundo de fazer justiça. Que importa à magi

tratura inglesa os rios de sangue que esse homem fez correr há alguns anos pelas ruas de San Pedrou o navio abarrotado de ouro que ele roubou? Para os senhores, são como crimes cometidos eoutro planeta. Nós, porém, sabemos o que isso representa. Descobrimos a verdade no sofrimene na dor. Para nós, não há no inferno demônio mais perverso que Juan Murillo, e não teremos panesta vida enquanto as suas vítimas clamarem por vingança.

– Inegavelmente – observou Holmes –, ele é tudo quanto a senhora diz. Estou a par de suas atrocidadeMas, que mal esse homem poderia ter-lhe causado?

– Vou explicar-lhe tudo. A política desse bandido era liquidar, sob qualquer pretexto, todo homeque, pelos seus dotes, demonstrasse a possibilidade de um dia vir a transformar-se num rival perigospara ele. Meu marido; sim, meu verdadeiro nome é sra. Victor Durando, exercia as funções dministro de San Pedro em Londres. Ali nos conhecemos e casamos. Jamais existiu sobre a terhomem melhor do que ele. Desgraçadamente, Murillo ouviu falar de sua competência, chamousob uma desculpa qualquer e mandou-o fuzilar. Pressentindo seu destino, recusara-se a levar-mcom ele. Foram-lhe confiscadas as propriedades e eu fiquei na miséria, com o coração despedaçad“Ocorreu, então, a queda do tirano. Ele conseguiu fugir da maneira que o senhor acaba de descreveMas o número infindo de pessoas cujaexistência ele arruinou e cujos parentes mais

caros e mais próximos sofreram atrozestorturas e encontraram a morte em suasmãos, não poderiam deixar a coisa cair noesquecimento. Congregaram-se numasociedade destinada a permanecer indis-solúvel até que a missão estivesse cumprida.Coube a mim, Iogo após termos descobertono falso Henderson o déspota caído, unir-me à sua família e manter os outros informa-dos dos seus passos. Alcancei meu intentotornando-me governanta de suas filhas. Malsabia ele que a mulher que se sentava à suafrente a cada refeição era a mesma cujomarido ele despachara para o outro mundosem a menor piedade. Eu sorria-lhe, cumpriaminha obrigação para com as suas filhas eesperava o momento oportuno. Um atentadofoi levado a efeito contra ele em Paris, masfalhou. Andamos aos ziguezagues por toda a

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trabalho policial: Inicia-se, contudo, o trabalho legal.– Precisamente – disse eu. – Qualquer advogado hábil poderá justificar o fato sob a alegação d

legítima defesa. Ainda que existam centenas de delitos anteriores a reclamar justiça, só por este elepoderão ser julgados.

– Qual!... – exclamou Baynes alegremente. – Faço um conceito melhor de nossos juízes. Uma coisalegítima defesa, outra é atrair um homem a sangue-frio com o intuito de matá-lo, por mais perigosque ele possa ser. Não, não; verão que poderemos provar a boa razão de nosso procediment

quando virmos os habitantes da High Gable no próximo júri de Guilford.Pertence à história o fato de que, apesar de tudo, algum tempo ainda deveria decorrer antes que o Tig

de San Pedro recebesse o merecido castigo. Astutos e audazes, ele e seu companheiro conseguiramdespistar os perseguidores, entrando num prédio de apartamentos pela porta principal da EdmontoStreet e saindo pela porta dos fundos na Curzon Square. Desde esse dia, jamais foram vistos na InglaterrCerca de seis meses mais tarde, o marquês de Montalva e o sr. Rulli, seu secretário, foram encontradoassassinados em seus quartos no Hotel Escorial, em Madri. O delito foi imputado aos niilistas, e ocriminosos jamais foram presos.

O inspetor Baynes foi visitar-nos na Baker Street com um jornal em que vinham descritos o rosto trigueido secretário e os traços dominadores, os olhos negros e magnéticos e as sobrancelhas espessas de sepatrão. Não tivemos dúvidas de que a justiça, embora tardia, chegara finalmente.

– Um caso muito confuso, amigo Watson – comentou Holmes mais tarde, durante a sua cachimbadnoturna. – Não lhe será possível apresentá-lo sob aquele aspecto coerente e compacto, que lhetão caro. Ele abrange dois continentes, atinge dois grupos misteriosos de indivíduos e complica-sulteriormente diante da presença respeitável de nosso amigo Scott Eccles, cuja inclusão nos acontcimentos me vem demonstrar que García possuía uma imaginação fértil e um bem-desenvolvidinstinto de preservação. É notável unicamente pelo fato de que, no meio de um verdadeiro caudde possibilidades, nós, com o nosso digno colaborador Baynes, soubemos cingir-nos aos fatoessenciais, e desse modo orientar-nos em nosso obscuro e tortuoso caminho. Há algum ponto qu

não lhe tenha ficado bem claro?– Qual o motivo do regresso do cozinheiro mulato?– Creio que pode ser atribuído àquele estranho objeto encontrado na cozinha. O homem era u

selvagem primitivo das florestas de San Pedro, e aquilo era seu fetiche. Quando ele e o companheifugiram para algum esconderijo previamente arranjado, sem dúvida já ocupado por outro cúmplico companheiro devia tê-lo persuadido a abandonar um traste tão comprometedor. Todavia, o coraçãdo mulato ficara preso ao fetiche, e por isso voltou no dia seguinte para reavê-lo, ocasião em quespreitando pela janela, viu que o compartimento estava ocupado pelo agente Walters. Aguardodurante mais três dias, mas, depois, sua religiosidade ou superstição o levou a realizar nova tentativO inspetor Baynes, com a astúcia que lhe é peculiar, tinha, em minha presença, fingido dar poucimportância ao incidente, mas, na realidade, percebera-lhe todo o significado, e, por essa razãoarmou uma emboscada na qual o pobre-diabo caiu. Mais alguma coisa, Watson?

– E o galo despedaçado, o balde de sangue, os ossos carbonizados e todo o mistério daquela fantásticozinha?

Holmes sorriu, enquanto procurava uma anotação em seu bloco.– Passei uma manhã no Museu Britânico procurando elucidar esse e outros pontos. Eis uma citaçã

extraída do livro de Eckermann, O vodu e as religiões dos negros:“O verdadeir o praticante do vodu não empreende nada de importante sem efetuar certos sacr i fícios destinados a tornar propícios os seus imundos deuses. Em casos 

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extremos, esses ri tos assumem aspectos de imolação de entes humanos, seguidos de canibal ismo. Contudo, de ordi nár io, a vítima comum éum galo branco,esquar tejado vivo, ou uma cabra preta, cujo pescoço écortado e cujo corpo é queimado”.

– Portanto, como você vê, nosso selvático amigo era muito ortodoxo em seus ritos religiosos. É umcaso grotesco, Watson – acrescentou Holmes, fechando lentamente o bloco –, mas, como já tiveocasião de lhe fazer notar, do grotesco ao horrível vai apenas um passo.

 A CAIXA DE PAPELÃO Ao escolher alguns casos típicos que demonstrassem bem os extraordinários dotes mentais de meu

amigo Sherlock Holmes, esforcei-me o tanto quanto possível por selecionar aqueles que, embora ofereçamvasto campo para a aplicação das suas qualidades, apresentassem o mínimo de sensacionalismo.Infelizmente, porém, não há possibilidade de separar inteiramente o elemento sensacional do criminal, eo cronista fica a braços com o dilema de sacrificar pormenores essenciais à narrativa e dar assim uma falsaimpressão do problema, ou usar o material oferecido pelo acaso e não pela escolha. Com este brevepreâmbulo, volto às minhas anotações sobre o caso que se revelou uma sucessão de acontecimentosestranhos, embora apavorantes.

Era um dia sufocante de agosto. A Baker Street parecia um forno, e o reflexo do sol sobre os azulejosamarelos da fachada da casa fronteira tornava-se intolerável aos olhos. Custava crer que fossem aquelas asmesmas paredes sombrias que mal se distinguiam através da névoa espessa do inverno. Tínhamos atébaixado as cortinas das janelas e Holmes estava recostado no sofá, lendo e relendo uma carta que receberapelo correio da manhã. Quanto a mim, o tempo de serviço na Índia habilitara-me a suportar melhor o calorque o frio, e, assim, o termômetro a trinta e cinco graus não me incomodava. Mas o jornal matutino nadacontinha de interesse. O Parlamento suspendera os seus trabalhos, grande parte da população abandonara

a cidade e eu ansiava pelas clareiras verdejantes de New Forest ou pelas praias recobertas de seixos deSouthsea. A situação precária da minha conta bancária, contudo, havia me obrigado a adiar as férias, e, notocante a meu companheiro, nem o campo nem o mar exerciam sobre ele a menor atração. Deliciava-se empermanecer no meio de cinco milhões de pessoas, qual aranha a desenvolver em torno de si os fios da teia,sempre alerta ao menor rumor ou suspeita de um crime inextricável. A apreciação da natureza não encontravalugar entre os seus inumeráveis predi-cados, e a única mudança que ele podiasuportar era desviar seu espírito domalfeitor da cidade para perseguir ocolega deste na província.

Percebendo que Holmes estavademasiado absorto para conversar, pusde lado o jornal inútil e recostei-me nacadeira, concentrado em melancólicadivagação. De súbito, a voz de meuamigo interrompeu-me o curso dospensamentos.

– Você tem razão, Watson – disse. –É de fato absurda essa maneira de

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resolver contendas.– Incrivelmente absurda! – exclamei. No mesmo instante, porém, compreendendo que ele fizera ec

ao que eu estava pensando naquele momento, endireitei-me na cadeira e fitei-o, atônito.– Como é possível, Holmes? – gritei. – Isso ultrapassa tudo quanto eu poderia imaginar.

Ele riu gostosamente da minha perplexidade.– Deve lembrar-se – disse ele – de que quando há pouco tempo li para você um trecho de um con

de Poe, no qual certa personagem acompanha pelo raciocínio os pensamentos íntimos d

companheiro, você se mostrou inclinado a considerar o assunto simplesmente um tour de force dautor. Como afirmasse que estava habituado a fazer a mesma coisa, mostrou-se incrédulo.

– Oh! Não é verdade!– Talvez não tenha dito nada, meu caro Watson, mas o movimento das suas sobrancelhas deu-o

entender. Assim, quando o vi abandonar o jornal e pôr-se a pensar, aproveitei o ensejo para seguircurso de sua meditação e, eventualmente, interrompê-lo com uma oportuna observação, a fim dlhe provar que o havia feito. – Todavia, eu estava longe de me dar por satisfeito.

– No exemplo que você leu – disse eu –, o raciocinador tira suas conclusões dos atos praticados pehomem que ele observa. Se não me engano, este tropeçou num monte de pedras, olhou para aestrelas, e assim por diante. Eu, porém, deixei-me ficar tranqüilamente em minha cadeira. Portantque indicação poderia ter-lhe proporcionado?

– Você não é justo para consigo mesmo. As feições foram dadas ao homem como meio de exprimir próprias emoções, fato que em si pode muito bem ser absurdo.

– Quer dizer que você seguiu o curso dos meus pensamentos pela expressão do meu rosto?– Do rosto e especialmente dos olhos. Talvez se recorde de como teve início o seu devaneio, não

verdade?– Na verdade, não me lembro.– Então, vou dizer-lhe. Depois de ter atirado o jornal para o chão, gesto esse que me atraiu a atençã

para a sua pessoa, deixou-se ficar durante meio minuto com o rosto inexpressivo. Em seguida, se

olhos fixaram-se no retrato, recentemente emoldurado, do general Gordon, e percebi, pela mudançde sua fisionomia, que este lhe provocara uma série de reflexões. Estas, porém, não o levarammuito longe. Seu olhar voltou-se subitamente para o retrato ainda sem moldura de Henri WarBeecher, que se encontra em cima dos seus livros. Depois disso você olhou para a parede e adivinhelhe claramente o pensamento. Você considerou que, se o retrato estivesse emoldurado, caberexatamente naquele espaço vago e ficaria simétrico com o de Gordon, do outro lado.

– Você me acompanhou maravilhosamente! – exclamei.– Até aí, dificilmente poderia enganar-me. Mas, nesse momento, você voltou a pensar em Beecher

seu olhar tornou-se fixo, como se estivesse estudando através das feições o caráter do homemDepois, seus olhos perderam a firmeza; no entanto, você continuou a mirar o retrato com ar pensativevocando os incidentes da carreira de Beecher. Tinha certeza de que não poderia fazer isso sem lembrar da missão por ele empreendida a favor do norte, durante a guerra civil, pois recordo-me dtê-lo ouvido dar largas à sua indignação pela maneira como foi recebido pelos mais exaltados dnossos compatriotas. Seu ressentimento era tão forte a esse respeito que compreendi não lhe spossível pensar em Beecher sem se recordar disso. Quando, um instante depois, vi seu olhar desviase do retrato, suspeitei que o seu pensamento se voltara para a guerra civil, e, ao observar-lhe olábios cerrados, os olhos cintilantes e os punhos crispados, fiquei absolutamente certo de questava se recordando da admirável bravura demonstrada por ambas as partes naquela ludesesperada. Todavia, seu rosto novamente se carregou, e você sacudiu a cabeça. Refletia sobre

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tristeza e o horror daquele conflito; o inútil desperdício de vidas. Sua mão pousou quaseinadvertidamente sobre o ferimento na perna e um sorriso lhe pairou nos lábios, o que me veiodemonstrar que notara o ridículo desse modo de resolver questões internacionais. Foi então queconcordei com você, afirmando-lhe que era absurda essa situação, e fiquei satisfeito por ver quetodas as minhas deduções eram exatas.

– Exatíssimas! – confirmei. – E agora, depois de me ter explicado tudo, confesso que estou tão perplexocomo antes.

– Asseguro-lhe que foi uma experiência muito superficial, caro Watson. E nem teria chamado a suaatenção para isso se não fosse a incredulidade demonstrada por você outro dia. Entretanto, tenhoaqui entre as mãos um pequeno problema que talvez se mostre de solução bem mais difícil do queo meu modesto ensaio de leitura de pensamento. Leu por acaso no jornal um breve parágraforelativo ao estranho conteúdo de certo pacote enviado pelo correio à srta. Cushing, residente àCross Street, em Croydon?

– Não, não li nada.– Ah! Deve ter-lhe escapado, então. Passe-me o jornal. Cá está ele, sob a coluna financeira. Quer

fazer o favor de lê-lo em voz alta?Tomei o jornal que ele me devolvera e li o parágrafo indicado. Trazia o título ‘Um pacote macabro’ e

rezava o seguinte:“A srta. Susan Cushing, r esidente àCross Street, Croydon, f oi vítima do que se pode considerar uma brincadeira de mau gosto particularmente revoltante, a não ser que se prove que o incidente tenha signi f icado mais trágico. Às duas horas da tarde de ontem, foi -lhe entregue pelo carteir o um pacote envol to em papel pardo.Dentro encontr ava-se uma caixa de papelão cheia de sal grosso. Ao esvaziá-la, a sr ta. Cushing deparou, horrorizada, com duas orelhas humanas, aparentemente recém-cor tadas. A caixa fora despachada de Belfast, como encomenda, na manhãanter ior. Não há a menor indicação quanto àidentidade do remetente e o caso 

torna-se ainda mais misteri oso ao considerar -se que a destinatária ésolteir a, tem cinqüenta anos de idade, sempre levou uma vida muito isolada e possui tão poucos conhecidos ou cor respondentes que, para ela, éacontecimento raro receber qualquer coisa pelo correio. Todavia, há alguns anos, quando morava em Penge, alugou quar tos a três jovens estudantes de medicina, dos quais foi obrigada posteri ormente a desfazer-se devido aos hábitos ir regulares e turbulentos deles. A polícia éde opinião que se trata de obra desses estudantes, que, por vingança, enviaram àsrta. Cushing,com o i ntuito de aterr or izá-la, esses sobejos da sala de anatomia. Essa hipótese apresenta certas probabil idades pelo fato de um dos estudantes ser oriundo do nor te da Ir landa e mesmo, como a srta. Cushing crêpoder af irmar, de Belfast.Entr etanto, o caso está sendo ativamente investigado, sob a di reção do sr. Lestrade,um de nossos mais hábeis agentes pol iciais“.

– Isto é o que diz o Daily Chronicle – disse HoImes, quando terminei a leitura. – Vejamos agora nossoamigo Lestrade. Recebi um bilhete dele hoje de manhã, com os seguintes dizeres:

“Suponho que este caso seja muito a seu gosto. Temos grandes esperanças de esclarecê-lo. No entanto, encontr amos cer ta di f icul dade em obter uma pista concreta. Já telegrafamos, naturalmente, para a agência do correio de Belf ast,mas, como naquele dia foi entregue ali grande número de pacotes, não foi possível ident if icar o que nos interessa, nem a pessoa do remetente. A refer ida caixa éde 

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– Este barbante é extremamente interessante – ponderou, levantando-o contra a luz e cheirando-o. –Que me diz disso, Lestrade?

– Foi besuntado com alcatrão.– Precisamente. Trata-se de barbante alcatroado. Terá notado, sem dúvida, que a srta. Cushing o

cortou com uma tesoura, como se depreende dasduas pontas desfiadas. Isso é importante.

– Não vejo qual a importância de tal

fato – retorquiu Lestrade.– A importância está no fato de o nó

não ter sido tocado. Ora, este nóé característico.

– Foi feito com muita precisão. Jáo notara também – acrescentouLestrade com ar complacente.

– Isso no que diz respeito aobarbante – continuou Holmes,sorrindo. – Vejamos, agora, oinvólucro da caixa. Papel pardocom forte cheiro de café. Como? Nãoo havia notado? Creio não existir dúvidas.Endereço escrito em letra de forma e em caracteres muito irregulares: ‘Srta. S. Cushing, CrossStreet, Croydon’. Escrito com pena de ponta grossa e tinta de qualidade muito ordinária. A palavraCroydon foi a princípio ortografada com i, depois transformado em y. O pacote, portanto, foi enviadopor um homem – a letra é visivelmente masculina – de limitada cultura e que não conhece a cidadede Croydon. Até aqui, muito bem! A caixa é de tabaco para cachimbo, de meia libra, amarela, semnada de especial exceto duas marcas de polegar no ângulo inferior esquerdo. Está cheia de sal

grosso, da qualidade usada para conservar peles e outros produtos comerciais de tipo inferior. E nomeio dele é que se encontram estas singularíssimas remessas.Enquanto falava, retirou as duas orelhas da caixa e, colocando-as sobre uma tábua, em cima dos joelhos,

pôs-se a examiná-las atentamente, ao passo que eu e Lestrade, curvados a seu lado, olhávamos alternada-mente para aqueles despojos horrorosos e para o rosto atento e sagaz de nosso companheiro. Finalmente,repôs as orelhas macabras na caixa e deixou-se ficar algum tempo imerso em profunda meditação.

– Com certeza, já deve ter observado – disse ele por fim – que estas duas orelhas não pertencem a ummesmo indivíduo.

– Sim, já o notara; mas, se isso é brincadeira de mau gosto da parte de alguns estudantes, a estes seriatão fácil subtrair da sala de anatomia duas orelhas diferentes como um par.

– Perfeitamente; mas não se trata aqui de travessura de estudantes.– Tem certeza disso?– As aparências são absolutamente contrárias a tal hipótese. Os cadáveres usados para dissecação

normalmente são injetados com um líquido próprio para conservá-los. Ora, estas orelhas nãoapresentam sinais desse líquido e, além do mais, são frescas. Foram cortadas com um instrumentocortante mal-afiado, o que dificilmente aconteceria se fosse obra de um estudante de medicina. Poroutro lado, não ocorreria por certo a esse estudante escolher sal grosso como elemento preservativo,mas sim o formol ou o álcool retificado. Repito que não existe aqui nenhuma brincadeira de maugosto, mas que nos encontramos em face de um delito gravíssimo.

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Senti um ligeiro arrepio percorrer-me a espinha ao ouvir as palavras do meu amigo e ao ver a gravidade dsua expressão. Aquele prelúdio brutal parecia vaticinar estranha e inexplicável tragédia. Lestrade, porémabanou a cabeça como quem tivesse ainda suas dúvidas.

– Certamente, podem ser levantadas objeções à hipótese de uma travessura – disse. – Todavia, hrazões muito mais fortes contra a sua teoria. Sabemos que esta mulher levou vida tranqüila respeitável durante os últimos vinte anos, tanto em Penge como aqui. Durante esse tempo, quanão se afastou de casa. Por que diabos um criminoso iria enviar-lhe as provas de sua culpabilidad

tanto mais que, salvo tratar-se de atriz consumada, ela parece entender tanto do assunto como nómesmos?

– É esse o problema que nos cumpre solucionar – replicou Holmes –, e por minha parte iniciarei pesquisas na suposição de ser correto o meu raciocínio e de ter sido cometido um duplo assassinatUma dessas orelhas é de mulher: pequena, de contornos delicados e com um orificiozinho parbrincos. A outra é de homem, queimada de sol, descorada e também furada para brincos. Ambas pessoas devem estar mortas; caso contrário, já teríamos sabido alguma coisa. Hoje é sexta-feira. pacote foi posto no correio quinta-feira cedo; a tragédia, portanto, ocorreu quarta ou terça-feira, otalvez antes. Ora, se estas duas pessoas foram assassinadas, quem, senão o assassino, teria enviadà srta. Cushing a prova do delito? Podemos, pois, considerar o remetente do pacote como o homeque nos interessa. Contudo, alguma razão poderosa deveria tê-la feito mandar esta caixa à srtCushing. Qual seria? Teria agido dessa maneira a fim de mostrar-lhe ter sido o crime cometido, otalvez para impressioná-la e afligi-la? Nesse caso, ela sabe de quem se trata. Saberá realmenteDuvido. Se soubesse, por que haveria de chamar a polícia? Poderia ter enterrado as orelhas e ninguéficaria sabendo de nada. É o que teria feito se quisesse proteger o criminoso. No entanto, se nãtivesse a intenção de protegê-lo, teria dado o nome dele. Há aqui uma confusão que precisa seesclarecida.

Holmes falara rapidamente, em voz alta, olhando absorto por sobre a cerca do jardim. De súbito, pôs-de pé e encaminhou-se para a casa.

– Preciso fazer algumas perguntas à srta. Cushing – explicou.– Nesse caso, vou deixá-lo aqui – respondeu Lestrade –, pois tenho que tratar de outro assunto dmenor importância. Creio já ter obtido da srta. Cushing todas as informações que me poderiainteressar. Encontrar-me-á no posto policial.

– Passaremos por lá quando formos para a estação – respondeu Holmes.Momentos após eu e ele encontrávamo-nos de novo na sala da frente, onde a impassível senhora con

nuava trabalhando tranqüilamente em seu bordado. Ao entrarmos, depô-lo no regaço e fitou-nos com oolhos azuis, francos e inquiridores.

– Estou convencida – disse-nos – de que toda essa história não passa de um engano, e que o paconão me era destinado. Já o disse várias vezes àquele senhor da Scotland Yard, o qual, todavilimitou-se a rir de mim. Que eu saiba, não tenho um único inimigo no mundo. Por que iria alguéfazer tal brincadeira comigo?

– Estou propenso a concordar com a sua opinião, srta. Cushing – replicou Holmes, sentando-se a selado. – Creio ser mais que provável.

Ele parou de falar e, olhando-o, fiquei admirado ao notar o singular interesse com que fitava o perfil dsrta. Cushing. Nesse instante foi-me possível ler em seu rosto expressivo surpresa e contentamentembora, quando ela se voltou para averiguar a causa de sua interrupção, ele já houvesse recuperadoimpassibilidade habitual. Pus-me a estudar, por minha vez, seus cabelos lisos e grisalhos, a graciotouca, os pequenos brincos dourados e suas feições serenas; nada, porém, encontrei que justificasse

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evidente emoção de meu amigo.– Há uma ou duas perguntas...– Oh! Já estou farta de perguntas – exclamou a srta. Cushing com impaciência.– A senhorita tem duas irmãs, creio.– Como pode saber isso?– Logo que entrei nesta sala, vi sobre

a prateleira da lareira o retrato de

três moças, uma das quais éindiscutivelmente a senhorita,enquanto as outras se lhe asse-melham de modo a não deixardúvidas acerca do parentesco queas une.

– De fato, tem razão. São minhasirmãs Sara e Mary.

– E aqui a meu lado está outroretrato, tirado em Liverpool, de suairmã mais nova em companhia deum homem que, pelo uniforme, meparece comissário de bordo. Vejoque nessa ocasião ela ainda não eracasada.

– Que grande observador!– É minha profissão.– Realmente, acertou. Todavia, ela casou-se com Browner poucos dias após. Na época dessa fotografia

ele fazia o serviço regular de navegação para a América do Sul, mas amava-a tanto que não se

resignou a passar tanto tempo longe dela, e conseguiu transferência para o serviço costeiro entreLondres e Liverpool.– No Conqueror, por acaso?– Não; no May Day , pelo menos na última vez que dele tive notícias. Em certa ocasião, Jim veio

visitar-me. Foi antes de ele quebrar sua promessa; desde então, porém, sempre que desembarcavapunha-se a beber, e bastavam uns poucos goles para transformá-lo num doido varrido. Ah! Diafatídico aquele em que começou a beber! Primeiro deixou de me procurar, depois brigou comSara, e agora que Mary deixou de me escrever, não sei como andam as coisas entre eles.

Era evidente ter a srta. Cushing tocado em assunto que lhe era de extremo interesse. Como a maioria daspessoas de vida solitária, tinha se mostrado tímida a princípio, mas acabara por tornar-se excessivamenteloquaz. Contou-nos numerosas particularidades a respeito do cunhado marinheiro e depois passou ao assuntodos antigos pensionistas, os estudantes de medicina, de cujas travessuras nos fez longa relação, dando-nosseus nomes e os dos hospitais em que praticavam. Holmes ouvia tudo com atenção, fazendo ocasionalmenteuma ou outra pergunta.

– A propósito de sua segunda irmã, Sara – disse –, não compreendo como, sendo ambas solteiras, nãopensaram em montar casa juntas.

– A h! Se o senhor conhecesse o gênio de Sara, compreenderia. Tentei morar com ela por ocasião deminha mudança para Croydon, e estivemos juntas até há cerca de dois meses, quando fomosforçadas a nos separar. Não quero falar mal de minha própria irmã, mas Sara sempre foi muito

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difícil de aturar.– A senhorita disse que ela se dava mal com seus parentes de Liverpool?– Sim, mas houve tempo em que eles foram ótimos amigos, a ponto de ela se mudar para lá para est

mais perto deles. E, no entanto, agora vive dizendo o pior de Jim Browner. Nos últimos seis mesque passou aqui, não fazia outra coisa senão falar na maneira como ele bebia e do seu macomportamento. Suspeito que Jim a apanhou fazendo algum mexerico, ficou seriamente zangadoaí está como principiou a inimizade entre eles.

– Obrigado, srta. Cushing – disse Holmes, pondo-se de pé e fazendo uma vênia. – Parece haver-mdito que sua irmã Sara mora na New Street, em Wallington, não é? Passe bem, e creia que lastimque tenha sido tão importunada num caso com o qual nada tem que ver.

 Ao sairmos dali, passava um carro, e Holmes fez sinal ao cocheiro.– Qual é a distância daqui a Wallington? – indagou.– Não chega a um quilômetro e meio.– Muito bem. Suba, Watson; precisamos malhar

enquanto o ferro está quente. Emborasimples, este caso oferece algunsaspectos muito interessantes. Pare ummomento na agência telegráfica maispróxima, cocheiro.

Holmes expediu um breve telegrama edurante o resto do trajeto permaneceurecostado no fundo da carruagem, com ochapéu caído sobre os olhos para proteger-se do sol. Nosso veículo parou diante de umacasa não muito diversa da que acabávamosde deixar. Meu companheiro ordenou ao

cocheiro que esperasse e estava para baterà porta quando esta se abriu e um jovemde maneiras circunspectas, vestido de pretoe usando uma cartola muito reluzente, apareceu no limiar.

– A srta. Cushing está em casa?– A srta. Cushing acha-se gravemente enferma – respondeu o jovem. – Apresenta desde ontem distú

bios cerebrais de extrema intensidade. Como seu médico, não posso arcar com a responsabilidadde permitir-lhe visitas. Tomo a liberdade de pedir-lhes para voltarem daqui a uns dez dias.

Dizendo isso, calçou as luvas, fechou a porta e afastou-se a pé, rua abaixo.– Bem, o que não tem remédio, remediado está – observou Holmes em tom gaiato.– Talvez ela não estivesse em condições, ou mesmo não tivesse desejo de lhe dizer grande coisa.– Não pretendia que ela me dissesse nada; queria apenas vê-la. Não obstante, creio ter obtido tud

quanto desejava. Leve-nos a algum hotel decente, cocheiro, onde possamos almoçar; depoipassaremos pelo posto policial para ver nosso amigo Lestrade.

Fizemos juntos uma agradável refeição, durante a qual Holmes não falou de outra coisa senão de violinoexplicando-me com grande satisfação como comprara pela ridícula soma de cinqüenta e cinco xelins, a u judeu vendedor de objetos de segunda mão, na Tottenham Court Road, seu Stradivarius, que valia no mínimquinhentos guinéus. Esse assunto fê-lo divagar sobre Paganini, e ficamos, pelo espaço de uma hora, sentadodiante de uma garrafa de clarete, enquanto desfiava histórias e mais histórias acerca dessa extraordinár

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personalidade. A tarde já declinava e a luz ardente do sol transformara-se em amena claridade quandochegamos ao posto policial. Lestrade esperava-nos à porta.

– Aqui está um telegrama à sua espera, sr. Holmes – disse.– Ah! É a resposta que aguardava. – Holmes abriu-o, leu rapidamente o texto e guardou-o no bolso. –

Vai tudo muito bem – acrescentou.– Conseguiu descobrir alguma coisa?– Descobri tudo!

– Como?! – exclamou Lestrade, assombrado, fitando Holmes. – O senhor está brincando!– Nunca disse nada de mais sério em minha vida. Foi perpetrado um crime espantoso e acredito tê-lo

desvendado em todos os pormenores.– E o criminoso?

Holmes rabiscou algumas palavras no verso de um cartão de visita e estendeu-o a Lestrade.– Eis o nome dele – explicou. – Todavia, não poderá prendê-lo senão amanhã à noite. Gostaria que o

meu nome não fosse mencionado no que diz respeito a este caso, porque prefiro associá-lo unica-mente a crimes cuja solução ofereça reais dificuldades. Vamos, Watson.

Encaminhamo-nos a pé para a estação, enquanto Lestrade fitava, entre atônito e satisfeito, o cartão queHolmes lhe entregara.

– Este caso – declarou Sherlock Holmes enquanto cavaqueávamos naquela noite, saboreando nossoscharutos nos aposentos da Baker Street – assemelha-se aos que você já descreveu sob os títulos deUm estudo em vermelho e O signo dos quatro, nos quais fomos obrigados a raciocinar, seguindo aordem inversa, dos efeitos para as causas. Escrevi a Lestrade pedindo-lhe que nos forneça os detalhesque ainda nos faltam, os quais só poderão ser obtidos depois de ele ter capturado o homem. Issopodemos ter a certeza de que fará, pois, embora desprovido totalmente de inteligência, é dotado deuma tenacidade de buldogue quando compreende o que deve fazer. Aliás, foi justamente essatenacidade a causa de sua ascensão na Scotland Yard.

– Então seus dados ainda não estão completos? – perguntei.

– Estão quase completos no que se refere aos pontos essenciais. Sabemos quem é o autor destecrime revoltante, apesar de ainda ignorarmos a identidade de uma das vítimas. Você, naturalmente, já tirou suas próprias conclusões.

– Imagino ser Jim Browner, o comissário de bordo de um navio de Liverpool, a pessoa de quem vocêsuspeita.

– Oh! É mais do que simples suspeita.– E, ainda assim, nada vejo senão indícios muito vagos.– Pelo contrário, para mim nada poderia ser mais claro. Deixe-me recordar-lhe os pontos principais.

Como deve estar lembrado, enfrentamos o caso com espírito completamente desarmado, o que,nestas circunstâncias, constitui sempre uma vantagem. Não tínhamos formulado nenhuma hipótese. Ali estávamos, simplesmente para observar e tirar conclusões do que nos fosse dado ver. O que senos deparou em primeiro lugar? Uma excelente senhora, calma e respeitável, que pareciacompletamente alheia ao mistério, e um retrato que me revelava possuir ela duas irmãs mais novas.Instantaneamente, surgiu-me no espírito a idéia de que o pacote talvez fosse destinado a uma delas.Deixei de lado essa hipótese, que poderia, em tempo oportuno, ser confirmada ou abandonada.Dirigimo-nos depois, como deve estar lembrado, para o quintal, onde examinamos o singularíssimoconteúdo da caixa amarela.“O barbante do tipo usado no velame de navios, e, de súbito, o ambiente do mar invadiu nossasinvestigações. Quando observei que o nó era característico entre marinheiros, que o pacote fora

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expedido de um porto de mar e que a orelha masculina tinha um orifício para brinco, coisa muimais comum entre marujos do que entre habitantes de terra firme, convenci-me de que os protagnistas da tragédia deviam encontrar-se nos meios marítimos.“Ao examinar o endereço do pacote, notei estar ele dirigido à srta. S. Cushing. Ora, a irmã mavelha seria, naturalmente, também srta. Cushing, mas, embora sua inicial fosse S, essa letra poderpertencer da mesma forma a uma das outras. Nesse caso, deveríamos iniciar nossas pesquisas ebase completamente nova. Entrei, portanto, na casa, com o intuito de esclarecer esse ponto. Talve

se lembre de que, quando eu estava para afirmar à srta. Cushing minha convicção de ter havidalgum engano, calei-me subitamente. O fato é que acabara de observar algo que me encheu dsurpresa e, ao mesmo tempo, restringiu consideravelmente o campo das minhas indagações.“Na qualidade de médico, Watson, você deve saber que não existe parte do corpo humano quapresente tantas variações como a orelha. Cada uma tem características próprias, e difere de todaas demais. Na Revista Antropológica do ano passado você encontrará duas breves monografias dminha lavra sobre o assunto. Examinei, por isso, com olhos de entendido, as orelhas contidas ncaixa, e verifiquei cuidadosamente as suas peculiaridades anatômicas. Imagine, pois, meu espanquando, ao olhar para a srta. Cushing, reparei corresponder sua orelha à orelha feminina que eacabara de inspecionar. Não era possível pensar em coincidência. Ali estava o mesmo encurtamenda aurícula, a mesma curva larga do lobo superior, a mesma circunvolução da cartilagem internEm todos os pontos essenciais, era perfeita a semelhança.“Percebi logo a enorme importância de tal observação. Era evidente ser a vítima uma consangüínee até, provavelmente, parente muito próxima. Comecei a falar-lhe de sua família, e você se lembque ela nos propiciou informações particularmente preciosas.“Em primeiro lugar, o nome da irmã era Sara, e até há poucotempo o endereço de ambas era idêntico, o que tornava patentea causa do engano e a pessoa a quem se destinava o pacote.Falou-nos depois daquele comissário de bordo, casado com sua

irmã mais nova, e ficamos sabendo que as suas relações comSara foram tão íntimas durante algum tempo que esta passara aresidir em Liverpool a fim de ficar mais próxima dos Browners,embora uma desavença os separasse depois. Essa discórdiafizera cessar todas as relações entre eles durante alguns meses,e por isso, se Browner tivesse tido ocasião de remeter um pacoteà srta. Sara, tê-lo-ia feito ao antigo endereço.“O assunto começava, então, a tornar-se extremamente claro.Sabíamos da existência desse marujo, homem impulsivo e depaixões violentas (lembre-se de que, para ficar mais perto daesposa, renunciou a carreira muito superior), sujeito também afreqüentes bebedeiras. Tínhamos razões para crer que a suamulher fora assassinada e que um homem, talvez um marujotambém, havia sido morto na mesma ocasião. De imediato, ociúme se nos apresenta como motivo do crime. Mas por quemandar à srta. Sara Cushing as provas do delito? Possivelmenteporque, durante sua estada em Liverpool, ela teve algumainfluência na sucessão dos acontecimentos que levaram àtragédia. Repare que os navios da linha de Browner fazem escala

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em Belfast, Dublin e Waterford; presumindo, portanto, que Browner tivesse cometido o crime,embarcando logo após no May Day , Belfast teria sido o primeiro porto do qual podia expedir omacabro pacote.“Nessa fase, evidentemente, era possível uma segunda solução, e embora a achasse muito menosprovável, resolvi elucidá-la antes de ir mais além. Um apaixonado repelido talvez pudesse ter matadoo sr. e a sra. Browner, e a orelha masculina seria então do marido. Contra essa hipótese existiammuitas e graves objeções, mas era plausível. Por conseguinte, telegrafei a meu amigo Algar, da

polícia de Liverpool, e pedi-lhe que me informasse se a sra. Browner se encontrava em sua residênciae se Browner partira no May Day . Feito isso, dirigimo-nos a Wallington, a fim de visitar a srta. SaraCushing.“Antes de mais nada, estava curioso por ver até que ponto os traços de família da orelha se tinhamreproduzido nela. Por outro lado, talvez ela pudesse fornecer-nos informações importantes, coisacom que, aliás, eu não contava muito. Já devia ter ouvido falar sobre o assunto no dia anterior, poisem toda Croydon não se comentava outra coisa, e só ela podia ter compreendido a quem se desti-nava o pacote. Se fosse sua intenção ajudar a justiça, decerto já teria se comunicado com a polícia.Em todo caso, era nosso dever procurá-la, e por isso fomos até lá. Verificamos que a notícia dachegada do pacote, pois sua doença datava daquele momento, produzira nela efeito tão violentoque a prostrara de cama com uma febre cerebral. Era mais que evidente ter ela compreendido todoo seu significado e, por outro lado, era igualmente claro que teríamos de esperar algum tempo antesde podermos contar com qualquer ajuda de sua parte.“Na realidade, porém, esse auxílio era-nos desnecessário. As respostas que desejávamos já nosesperavam no posto policial, pois dera a Algar instruções para remetê-las para lá. Não poderiam sermais conclusivas. A casa da sra. Browner encontrava-se fechada havia mais de três dias e os vizinhosacreditavam que ela viajara para o sul, em visita a parentes. Algar certificara-se, na companhia denavegação, da partida de Browner a bordo do May Day , que, calculo, entrará amanhã à noite noTâmisa. Ao chegar, será acolhido pelo obtuso mas resoluto Lestrade, e não tenho dúvidas de que

obteremos então os pormenores que ainda nos faltam”.Sherlock Holmes não viu frustradas suas expectativas. Dois dias mais tarde recebia um envelopevolumoso que continha um bilhete do detetive e um documento datilografado constando de várias páginasde papel de carta.

– Lestrade apanhou-o, como eu esperava – disse Holmes, lançando-me um olhar significativo. – Talvezlhe interesse saber o que ele diz.

“M eu caro sr. Holmes: De acordo com o plano por nós estabelecido a fim de poder provar nossas teorias,dir igi-me ao cais Albert, ontem às dezoito horas, e subi a bordo do May Day,propriedade da Liverpool, Dublin & London Stream Packet Company. Procedendo a indagações, fui inf ormado de que efetivamente se encontrava ali um comissário de nome James Browner, que se portara durante a viagem de maneir a tão estranha que o capi tão se vira forçado a di spensá-l o de suas funções. Descendo àsua cabina,fui encontrá-lo sentado num cai xote, com a cabeça entre as mãos, agitando-se como um demente. É um tipo corpul ento, robusto, de rosto escanhoado e pele tr igueira – meio parecido com Aldrige, que nos auxi l iou no caso da falsa lavanderia.Quando soube do objeti vo de minha visi ta, pôs-se de pénum salto fel ino, e eu já estava com o apito na boca para chamar dois homens da polícia f luvial que me esperavam do lado de fora quando ele, dando mostras de completa falta de ânimo,

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estendeu maquinalmente as mãos às algemas, sem opor a menor resistência.Levamo-lo imediatamente para a prisão, jun tamente com o caixote, que pensávamos pudesse conter algo de acusador; no entanto, além de um facão af iado, como os usados pela maior ia dos marinheiros, nada encontramos que merecesse nosso trabalho. Mas veri f icamos não serem necessárias mais provas, pois, uma vez diante do inspetor de serviço, pediu licença para fazer uma declaração que, como énatural,foi anotada li teralmente pelo nosso taquígrafo. Mandamos ti rar três cópias 

datil ografadas, das quais lhe mando uma. A coisa, como sempre imaginei, r esolveu- se de maneir a extremamente simples. Todavia, f ico-lhe agradecido pela sua gentil assistência na investigação deste caso. Com as melhores saudações, creia-me seu amigo devotado,

G. Lestr ade” – Hum! A investigação era realmente muito simples – comentou Holmes; – no entanto, não creio qu

assim lhe parecesse quando nos procurou pela primeira vez. Vejamos, entretanto, o que diz JiBrowner. Eis a sua declaração, feita diante do inspetor Montgomery, no posto policial de Shadweque tem a vantagem de ter sidoregistrada com as próprias palavras docriminoso:

– Se tenho alguma coisa que dizer? Sim,muitíssimo. Sinto necessidade dealiviar a minha consciência. Se quise-rem, podem enforcar-me ou deixar-me em paz. Pouco me importa. O queposso afirmar é que não preguei oolho desde que fiz aquilo, e não seise conseguirei fazê-lo outra vez.

 Algumas vezes é o rosto dele quevejo, mas com mais freqüência é odela que me surge diante dos olhos.Não consigo fazê-los desaparecer daminha frente. Ele fita-me, carrancudoe ameaçador; ela, porém, olha-me comsurpresa. Ah! Pobrezinha! O que nãoteria sentido ao ver a morte estampadanum rosto onde até então só vira amor!“No entanto, a culpa foi toda de Sara, e possa amaldição de um desgraçado cair sobre a sua cabeça e fazer-lhe apodrecer o sangue nas veias! Nãdigo isso para me inocentar; tinha recomeçado a beber, como um bruto que sou. Mas tudo isso eteria me perdoado; ela continuaria ligada a mim como uma corda à sua caçamba, se a figura daquemulher nunca tivesse escurecido a porta de nosso lar. Pois Sara Cushing amava-me – esta foiorigem da tragédia –, amava-me até sua paixão desvairada transformar-se em ódio venenoso quandpercebeu que para mim tinham mais valor as pegadas de minha mulher na lama do que todo o secorpo e alma juntos.“Eram três irmãs. A mais velha era uma boa criatura; a segunda, um demônio, e a terceira, um anjQuando me casei, Sara tinha trinta e três anos, e Mary, vinte e nove. No início, a felicidade e

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completa em nosso lar, e em toda Liverpool não existia melhor esposa do que minha Mary. Certodia convidamos Sara para passar uma semana conosco, mas a semana converteu-se num mês, osmeses sucederam-se, e ela acabou por tornar-se pessoa da casa.“Minha situação financeira naquela época era boa, tínhamos começado a economizar algum dinheiroe tudo corria às mil maravilhas. Meu Deus, quem poderia supor que iríamos terminar assim? Quempoderia ao menos imaginá-lo?“Freqüentemente eu passava os fins de semana em casa, e algumas vezes, quando o navio ficava

retido à espera de carga, tinha sete dias de licença, o que me proporcionava maior contato com aminha cunhada. Era uma bela mulher, alta, morena e enérgica, de porte altivo e tinha olhos quepareciam lançar chispas de fogo. Todavia, quando a pequenina Mary estava em casa, nem pensavanela, e isso eu juro pela esperança que tenho na misericórdia divina.“Às vezes tinha a impressão de que ela desejava ficar sócomigo ou procurava convencer-me a sair a passeio emsua companhia. No entanto, jamais dei importânciaa isso. Mas certa noite meus olhos abriram-se.Tinha desembarcado e, chegando a casa,encontrei apenas Sara à minha espera.“– Onde está Mary? – perguntei.“– Oh! Saiu para pagar umas contas.“Fiquei impaciente e pus-me a andar de umlado para outro na sala.“– Você não pode ficar sossegado cincominutos sem Mary, Jim? – disse ela. – É bempouco lisonjeiro para mim que não possacontentar-se com a minha companhia por tãopouco tempo.

“– Não fique zangada comigo, minha cara –desculpei-me, estendendo-lhe a mão numgesto carinhoso. Ela, porém, tomou-a desúbito entre as suas, que ardiam como seestivesse com febre. Fitei-a nos olhos ecompreendi tudo num relance. Não tivemosnecessidade de falar, nem ela nem eu. Assumi um ar severo e retirei a mão de entre as suas. Elapermaneceu algum tempo em silêncio, depois levantou o braço e bateu-me no ombro.“– Paciência, meu velho – disse-me e, com uma espécie de risada irônica, saiu da sala.“Pois bem, desse dia em diante Sara passou a odiar-me de todo o coração. E de que ódio é capazaquela mulher! Fui idiota por deixá-la continuar a viver conosco, um rematado idiota; mas nuncadisse nada à minha mulher, pois sabia que a iria desgostar. Tudo ficou como antes; todavia, algumtempo depois, principiei a notar certas mudanças em Mary também. Ela, que sempre se mostraraconfiante e inocente, tornara-se esquisita e suspeitosa. Queria saber onde eu estivera e o que haviafeito, a proveniência de minhas cartas, o conteúdo de meus bolsos e outras tantas tolices.“Dia a dia se tornava mais estranha e irritável, provocando discussões pelos motivos mais fúteis.Tudo isso me deixava francamente perplexo. Sara passou a evitar-me; no entanto, ela e Mary eraminseparáveis. Percebo agora que ela conspirava contra mim e envenenava a alma de minha mulher.Entretanto, eu, cego e cretino, não via nada disso. Foi então que quebrei a promessa e recomecei a

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beber, mas não creio que o tivesse feito se Mary continuasse a ser a mesma de antigamente. Tinhentão, motivos bastantes para se sentir desgostoso comigo, e a cisão entre nós aumentava cada vemais. Entretanto, apareceu em cena esse maldito Alec Fairbairn, e a situação piorou sensivelment“Foi para ver Sara que ele foi pela primeira vez à minha casa, mas logo suas visitas destinavam-setodos nós, pois era um homem de maneiras insinuantes e arranjava amigos aonde quer que fossRapaz agradável, audacioso, elegante, vira meio mundo e sabia falar do que vira. Era sem dúvidbom companheiro e a sua educação excedia a de um marujo. Por isso, julgo que houve uma époc

em que viajava mais como passageiro do que como tripulante. Durante um mês não fez outra coissenão ir à minha casa e nem por um momento me passou pela cabeça a idéia de que qualquer mpudesse resultar de seus modos gentis e suaves. Finalmente, porém, algo me fez suspeitar, e desdentão minha tranqüilidade desapareceu para sempre.“Na essência, o episódio foi insignificante. Eu entrara em casa de improviso e, ao transpor soleira da porta, notei um clarão de alegria no rosto de minha mulher. Contudo, quando viu que stratava de mim, essa luz desapareceu, e ela voltou-se com ar desapontado. Isso bastou-me. Nãexistia ninguém, além de Alec Fairbairn, cujo andar ela pudesse confundir com o meu. Se naquemomento o tivesse ao alcance das mãos, tê-lo-ia morto, pois sempre que fico fora de mim procedcomo um louco. Mary leu nos meus olhos a fúria demoníaca, correu para mim e segurou-me pemanga do casaco.“– Não, Jim, pelo amor de Deus! – suplicou.“– Onde está Sara? – perguntei.“– Na cozinha – respondeu.“– Sara – gritei –, não quero que Fairbairn ponha mais os pés aqui dentro.“– E por quê?“– Porque assim o ordeno.“– Oh! – exclamou –, se meus amigos não são dignos desta casa, eu também não o sou.“– Faça como quiser – repliquei-lhe –, mas se Fairbairn tornar a aparecer por aqui, mandar-lhe-

uma de suas orelhas como lembrança.“Acredito que a tenha assustado com a expressão de meu rosto, pois não disse mais nada, e no dseguinte abandonou nossa casa.”Ora, não sei se essa mulher agia assim por simples maldade ou se pensava poder revoltar-scontra minha mulher, encorajando-a a trilhar o seu caminho. Seja como for, ela arranjou uma casadois quarteirões de distância, onde alugava aposentos a marinheiros. Fairbairn costumava alojar-lá e Mary ia freqüentemente tomar chá com a irmã e ele. Quantas vezes ela foi, não sei dizer. Cerdia, porém, segui-a, e, ao chegar à porta, Fairbairn fugiu covardemente, pulando o muro do quinta Jurei a minha mulher matá-la se a encontrasse novamente na companhia daquele homem e leveipara casa, soluçante e trêmula, branca como uma folha de papel. Já não existia entre nós a mensombra de amor. Percebia o ódio e o temor que ela me votava, e quando, por causa disso, me punha beber, o desprezo juntava-se a esses sentimentos.“Sara, entretanto, compreendeu que não lhe era possível ganhar o suficiente para viver em LiverpooPor isso – pelo menos assim o creio – voltou a viver com a irmã em Croydon, mas a situação eminha casa continuou no mesmo estado vacilante de sempre. Finalmente, chegou esta última semane toda a maldição e ruína que se seguiram.“Foi assim. Tínhamos embarcado no May Day  para uma viagem de sete dias, mas, devido a ceravaria a bordo, fomos obrigados a permanecer no porto durante doze horas. Deixei o navio e fpara casa, pensando na surpresa que iria causar a minha mulher e esperando que ela talvez ficas

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contente por me ver de volta tão cedo. Essa idéia ainda me empolgava quando dobrei a esquina deminha rua, no momento em que passou por mim um carro, em cujo interior vi minha mulhersentada ao lado de Fairbairn, ambos conversando e rindo animadamente, sem notarem a minhapessoa, que os observava imóvel na calçada.“Asseguro-lhes que, daquele momento em diante, já não fui senhor de mim próprio, e tudo meparece um sonho confuso ao recordar os acontecimentos. Nestes últimos tempos andara bebendomuito e as duas coisas juntas uniam-se para me transtornar completamente. Agora sinto qualquer

coisa a bater-me na cabeça como o malho de um britador, mas naquela manhã tinha todo o Niágaraassobiando e zumbindo nos ouvidos.“Corri desabaladamente atrás do carro.Tinha nas mãos um pesado bastão decarvalho e afirmo-lhes que, desde oprincípio, comecei a ver tudo vermelho; noentanto, a corrida tornou-me tambémastuto e, de vez em quando, procurava ficarum pouco para trás, a fim de ver sem servisto. Dentro de pouco tempo eles pararamna estação. Havia muitas pessoas junto àbilheteria, e pude, portanto, aproximar-me delessem ser notado. Compraram bilhetes para NewBrighton; fiz o mesmo, mas instalei-metrês vagões atrás. Chegados a seudestino, desceram e dirigiram-se àpraia. Eu os acompanhava semprea uma distância de cerca de cemmetros. Vi-os, por fim, alugar um barco e sair

remando, pois fazia muito calor e eles sem dúvida julgavam que sobre a água o ar estaria mais fresco.“Na verdade, era como se estivessem em minhas mãos. O dia estava algo enevoado e nada se viaalém de uma certa distância. Aluguei também um barco e fui no encalço deles. Conseguia distin-guir-lhes o contorno do barco, mas iam quase tão depressa como eu e já deviam estar a um quilô-metro e meio da praia quando os alcancei. A neblina formava como que uma cortina à nossa volta,e dentro dela estávamos os três. Deus meu! Jamais poderei esquecer a expressão de seus rostosquando viram quem estava no barco que se aproximava! Ela soltou um grito de pavor, ele pôs-se apraguejar como um alucinado e atirou um remo em minha direção, pois deve ter lido nos meusolhos um presságio de morte. Eu esquivei-me ao golpe e atingi-o com meu bastão, que lhe espati-fou a cabeça como se fosse um ovo. É possível que a tivesse poupado, apesar de toda a minhaloucura; ela, porém, lançou os braços em torno dele, gritando desesperadamente e chamando-o‘Alec’. Desferi, então, novo golpe, e prostrei-a a seu lado. Sentia-me qual besta feroz que houvesseprovado sangue. Se Sara estivesse presente, por Deus, ter-se-ia juntado a eles. Puxei de minha facae... bem, chega! Já disse o bastante. Experimentava certa alegria selvagem ao pensar no que Sarasentiria diante daqueles dois testemunhos do resultado de suas intrigas. Amarrei então os corpos aobarco, quebrei uma tábua do fundo e fiquei ali perto até submergirem de todo. Sabia muito bem queo proprietário da embarcação julgaria que ambos tinham perdido o rumo na névoa, sendo impeli-dos para o alto-mar. Limpei-me bem; depois regressei a terra e reembarquei em meu navio, sem

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que pessoa alguma suspeitasse de tudoquanto se passara. Naquela noite, pre-parei o pacote para enviá-lo a SaraCushing, e no dia seguinte remeti-ode Belfast.“E aqui têm toda a verdade.Podem enforcar-me ou fazer o

que quiserem de mim, pois nãopoderão punir-me mais do que jáfui punido. Não consigo fechar osolhos sem ver aqueles rostos afitar-me... como o fizeram quandoviram meu barco surgir ao ladodo deles dentre a névoa. Matei-os rapidamente, mas eles estãome matando devagarinho; sei que,se isso durar mais uma noite, ficareilouco ou morrerei antes do amanhecer.O senhor não me porá sozinho numa cela,não é verdade? Pelo amor de Deus, não o faça. Oxalá seja tratado no dia de sua agonia como mtratar agora!”

– Qual é o significado disso tudo, Watson? – proferiu Holmes, em tom solene, ao terminar a leitur– Que propósito anima este círculo de desgraça, violência e terror? Tudo deve tender para um fimde outro modo, nosso universo seria governado pelo acaso, o que é inadmissível. Mas qual seesse fim? Eis o imenso, imutável e eterno problema, de cuja solução a mente humana se encontmais longe do que nunca.

O CÍRCULO VERMELHOI

– Francamente, sra. Warren, não vejo qualquer motivo para estar inquieta, nem vejo por que edeveria intervir neste assunto. O meu tempo é precioso e tenho outras coisas em que me ocupa

 Assim se exprimiu Sherlock Holmes, e voltou a absorver-se em seu enorme álbum de recortes, no questava incluindo e classificando novo material.

Mas a senhoria tinha a pertinácia e também a astúcia característica de seu sexo, e não se deu povencida.

– No ano passado o senhor resolveu uma dificuldade para um pensionista meu, o sr. Fairdale Hob– insistiu ela.

– Ah, sim!... Coisa muito simples.– Todavia, ele não se cansa de falar nisso... sua gentileza e a maneira como o senhor esclareceu tã

obscuro assunto. Lembrei-me das palavras dele, quando eu própria me vi envolvida na dúvida e nescuridão. Estou certa de que, se quisesse, poderia ajudar-me.

Holmes era acessível pelo lado da lisonja e também, façamos-lhe justiça, pelo da cortesia. Essas dua

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forças conjugadas fizeram-no pôr de lado o pincel de goma arábica, com um suspiro de resignação, erecostar-se na cadeira.

– Está bem, sra. Warren, ouçamos o caso. O fumo não a incomoda? Obrigado, Watson... Os fósforos,por favor! Se não me engano, a senhora está preocupada porque seu novo inquilino se fecha noquarto e a senhora não consegue vê-lo. Ora, se eu fosse seu pensionista, garanto-lhe que não meveria durante semanas a fio.

– Não duvido, sr. Holmes; mas o caso aqui é diferente! Ando apavorada, não consigo pregar o olho,

tal é o meu medo. Ouvir o ruído de passos nervosos, de um lado para outro, desde manhã cedo atéaltas horas da noite, e não avistá-lo um momento sequer... está além de minhas forças. Meu maridoestá tão impressionado como eu; mas ele trabalha fora o dia todo, ao passo que eu não tenho uminstante de sossego. Por que vive escondido? Que terá feito? Com exceção da criada, fico todo osanto dia sozinha com ele em casa, e sinto que meus nervos não poderão suportar por muito tempotal situação.

Holmes inclinou-se para a frente e pousou os dedos longos e finos sobre os ombros da mulher. Quandodesejava, possuía um poder quase hipnótico de acalmar o próximo. Toda expressão de temor desapareceudos olhos dela, e as feições agitadas tranqüilizaram-se e readquiriram a aparência normal. Ela sentou-se nacadeira que ele lhe indicara.

– Se me encarregar deste caso, será preciso pôr-me a par de todos os pormenores – advertiu. – Reflitacom calma. A mais simples minúcia pode ser essencial. A senhora disse que esse homem apareceuhá dez dias e pagou duas semanas adiantadas de quarto e comida?

– Perguntou-me quais eram as condições, e eu lhe respondi: ‘Cinqüenta xelins por semana’. No sótãoda casa existe uma salinha e um quarto de dormir, ambos mobiliados.

– E então?– Ele afirmou que pagaria cinco libras por semana se eu aceitasse as suas condições. Que havia de

fazer? Sou pobre, sr. Holmes; meu marido ganha pouco e esse dinheiro significava muito paramim. Tirou uma nota de dez libras do bolso e mostrou-a. ‘Terá outro tanto de quinze em quinze

dias, durante muito tempo, se atender às minhas condições’, disse-me. ‘Se não quiser, nada maisteremos a conversar’.– E quais eram essas condições?– Bem, ele queria ter a chave da casa. Até aí, nada de extraordinário, pois os pensionistas habitual-

mente a têm. Além disso, devia deixá-lo inteiramente só, e nunca perturbá-la sob nenhum pretexto.– Nada vejo de extravagante nisso.– Parece razoável, sr. Holmes. Entretanto, isso excede todos os limites do bom senso. Há dez dias ele

vive ali e nem meu marido, nem eu, nem a criada, conseguimos pôr-lhe os olhos em cima umaúnica vez. Ouvimos o seu andar rápido, de um lado para outro, noite e dia, sem cessar, pois nuncamais saiu de casa, exceto na primeira noite.

– Ah! Então saiu na primeira noite?– Sim, senhor, e voltou muito tarde, depois de todos nos encontrarmos já deitados. Avisou-me disso

depois de ter alugado o apartamento, e pediu-me que não trancasse a porta. Ouvi-o subir as escadasquando já passava da meia-noite.

– E as refeições?– Recomendou-me expressamente que, quando tocasse a campainha, deveríamos colocar a refeição

sobre uma cadeira do lado de fora da porta. Quando terminasse, tocaria de novo e nós retiraríamosos pratos da mesma cadeira. Se tem necessidade de alguma coisa, escreve em letra de forma numpedaço de papel e coloca-o do lado de fora.

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– Em letra de forma?– Sim, senhor. Escreve em letra de forma e a lápis a coisa que deseja, e nada mais. Aqui está u

desses pedacinhos de papel que eu trouxe para lhe mostrar: SABÃO. Eis outro: FÓSFORO. Esele deixou na primeira manhã: DAILY GAZETTE. Entrego-lhe esse jornal todas as manhãs, comprimeira refeição.

– Caramba, Watson! – exclamou Holmes,fitando com grande curiosidade os pedaci-

nhos de papel que a sra. Warren lheentregara. – Este é na verdade um caso muitoestranho. A reclusão eu compreendo, maspor que escrever em letra de forma? Dá maistrabalho. Por que não escrever, simples-mente, em caracteres normais? Que significaisso, Watson?

– Ele não quer revelar a própria letra.– Mas qual será o motivo? Que importância

pode ter para ele que sua senhoria veja umapalavra escrita com a sua caligrafia? Épossível, contudo, que seja como você diz.Mas qual a possível razão para mensagenstão lacônicas?

– Não consigo entender.– Isso abre um agradável campo à especulação

inteligente. As palavras foram escritas comlápis grosso, de tipo comum. Repare que opapel foi rasgado nesse ponto, depois de a

palavra ter sido escrita, de modo que o S  de SABÃO está cortado ao meio. Sugestivo, não lhe parece, Watson?– Ele o teria feito por precaução?– Exatamente. Havia provavelmente qualquer sinal, qualquer impressão digital, qualquer coisa, enfim

que poderia trair-lhe a identidade. Escute, sra. Warren, a senhora afirma que esse homem é destatura mediana, moreno e usa barba. Que idade terá ele?

– Deve ser ainda novo... não deve ter mais de trinta anos.– Muito bem, pode dar-me outras indicações?– Fala inglês corretamente, porém pelo sotaque parece-me estrangeiro.– E estava bem vestido?– Elegantemente vestido... um perfeito cavalheiro. Usava roupa escura... nada que desse na vista.– Não deu o nome?– Não.– E não tem recebido cartas ou visitas?– Absolutamente nada.– Mas, naturalmente, a senhora ou a criada entram no quarto pela manhã, não é verdade?– Não; ele próprio cuida de tudo.– Santo Deus! É sem dúvida extraordinário. E quanto à bagagem?– Trazia apenas uma enorme mala castanha... nada mais.

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– Bem, parece que não contamos com muito material. Tem certeza de não ter saído nada do aposento...absolutamente nada?

 A sra. Warren extraiu da bolsa um envelope, do qual fez cair sobre a mesa dois fósforos queimados e umaponta de cigarro.

– Estavam na bandeja hoje de manhã. Trouxe-os porque ouvi dizer que o senhor é capaz de descobrirgrandes coisas através de simples ninharias.

Holmes encolheu os ombros.

– Não vejo nada de significativo nisso – observou. – Esses fósforos foram evidentemente usadospara acender cigarros, o que se pode verificar pelo pequeno tamanho da parte queimada. Paraacender um cachimbo ou um charuto, consome-se metade do fósforo. Mas, por Deus, esta pontade cigarro é muito interessante! Se não me engano, a senhora disse que seu pensionista usa barbae bigode, não é?

– Sim.– É estranho! Eu diria que este cigarro só podia ter sido fumado por uma pessoa de rosto barbeado.

Caramba, Watson! Até o seu modesto bigode se teria chamuscado.– Talvez tivesse usado boquilha – sugeri.– Não, não; a extremidade indica o contrário, não é possível haver duas pessoas no quarto, sra.

Warren?– Não, sr. Holmes. Ele come tão pouco que às vezes me pergunto como consegue manter-se em pé.– Está bem; creio que vamos ter de esperar até possuirmos outro elemento. Afinal de contas, a senhora

não tem do que se queixar. O aluguel está pago e não se pode dizer que ele seja um inquilinoincômodo, apesar de estranho. Ele lhe paga regiamente, e, se deseja manter-se oculto, a senhoranão tem o direito de interferir. Não temos o menor pretexto para violar a sua clausura, até que surjaqualquer razão para pensarmos que existe no fato um propósito criminoso. Aceito a investigaçãodeste caso, e pode ficar descansada que farei o possível para resolvê-lo. Comunique-me se aconteceralgo de novo e conte com o meu auxílio, se dele tiver necessidade.

Depois de a senhoria ter saído, Holmes declarou:– Incontestavelmente, Watson, este caso oferece aspectos interessantes. Pode, é claro, não tersignificado nenhum, e tratar-se apenas de mera extravagância individual, mas pode também sermuito mais profundo do que parece à primeira vista. A idéia que de imediato nos acode ao espíritoé certamente a possibilidade de que naquele quarto esteja morando uma pessoa inteiramentediversa da que o alugou.

– Por que supõe tal coisa?– Ora, pondo de parte a ponta de cigarro, não é curioso que a única vez que o pensionista saiu fosse

logo depois de ter alugado o quarto? Ele voltou... ou melhor, alguém voltou, quando todos estavamdormindo. Não possuímos prova alguma de que a pessoa que regressou tenha sido a mesma quesaiu. Além disso o pensionista falava bem inglês; todavia, este outro escreve ‘fósforo’, quando deviater escrito ‘fósforos’. Suponho que a palavra tenha sido tirada de um dicionário, onde os vocábulosaparecem apenas no singular. O estilo lacônico talvez esconda a ignorância da língua inglesa. Sim,Watson, há bons motivos para suspeitar de que tenha havido uma troca de inquilinos.

– Mas com que intenção?– Ah! Eis o problema. Sem dúvida, a linha de investigação a seguir apresenta-se bastante clara – disse

meu amigo, retirando da estante um grosso álbum, no qual colava, diariamente, a seção dos principais jornais londrinos reservada a avisos de pessoas desaparecidas.“Deus meu!”, exclamou, folheando-lhe as páginas. “Que coro de gemidos, choros e lamentações!

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Que amontoado de acontecimentos estranhos! Todavia, este é sem dúvida o campo mais preciosque jamais houve para quem se dedica ao estudo dos fatos extraordinários! A pessoa que nointeressa encontra-se só, e não pode receber cartas sem quebra do absoluto sigilo que acircunstâncias lhe impõem. Como pode chegar até ela uma notícia ou qualquer recado do mundexterior? Ao certo, por meio de anúncios publicados num jornal. Não parece haver outra solução,felizmente já sabemos qual é esse jornal. Aqui estão os recortes do Daily Gazette dos últimoquinze dias: ‘Senhora com uma estola preta no Prince’s Shating Club...’ podemos passar adiant

‘Certamente Jimmy não quererá despedaçar o coração de sua mãe’... isso parece não ter importânc‘Se a dama que desfaleceu no ônibus de Brixton’... não me interessa. ‘Todo dia meu coração anseia.Lamentações, Watson, lamentações infindáveis. Ah!, eis algo mais provável. Ouça isto: ‘Tenhpaciência. Encontrarei qualquer meio seguro de comunicação. Por enquanto, esta coluna. – G.’ Esanúncio foi publicado dois dias depois da chegada do inquilino da sra. Warren. Não parece plausíveO nosso ente misterioso podia entender inglês, apesar de só saber escrever em letra de fôrmVamos ver se encontramos mais alguma coisa. Sim, aqui está... três dias mais tarde: ‘Estou tomandprovidências. Paciência e cautela. As nuvens passarão. – G.’ Uma semana em branco depois desaviso. Vem em seguida algo mais definido: ‘o caminho está se tornando mais claro. Se me fpossível escrever em código, lembre-se do combinado: um, A; dois, B; e assim por diante. Tenotícias em breve. – G.’ Isso veio no jornal de ontem; o de hoje não traz nada. Parece-me muiapropriado ao pensionista da sra. Warren. Se esperarmos um pouco, Watson, creio que o caso stornará mais inteligível”.

E, de fato, assim sucedeu, pois na manhã seguinte encontrei meu amigo em pé, junto à lareira, com acostas voltadas para o fogo e um sorriso radioso de satisfação que lhe iluminava o rosto.

– Que pensa disto, Watson? – gritou, apanhando o jornal de cima da mesa. – ‘Casa alta, de tijolovermelhos, com remates de pedra branca. Terceiro andar. Segunda janela à esquerda. Depois dcrepúsculo. – G’. Parece-me bastante claro. Acho que depois do almoço devemos fazer um pequenreconhecimento pelos arredores da casa da sra. Warren. Ah, minha cara senhora, que notícia

nos traz?Nossa cliente entrara de improviso nasala, com uma energia tão explosiva, quenos indicava ter ocorrido um fato novoe inesperado.

– É caso de polícia, sr. Holmes! –berrou. – Não quero saber demais nada! Ele terá de sair delá! Imediatamente, com baga-gem e tudo. Ia falar com ele di-retamente, mas achei melhorouvir primeiro a sua opinião.Minha paciência está esgotadae quando penso que chegarama agredir o meu marido...

– Bateram em seu marido?– Maltrataram-no.– Mas quem o maltratou?– Ah! É isso que gostaríamos de saber! Aconteceu hoje muito cedo. Meu marido é encarregado d

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livro de ponto da firma Morton & Waylight, na Tottenham Court Road. Costuma chegar à fábricaantes das sete. Ora, hoje de manhã, não dera ainda dez passos pela rua quando dois homens oatacaram pelas costas, lhe puseram um pano sobre a cabeça e o jogaram dentro de um carro parado junto à calçada. Depois de rodarem com ele durante uma hora, abriram a porta e empurraram-nopara fora. Ele ficou tão tonto com a queda que nem chegou a ver o destino do carro. Ao voltar a si,verificou que estava em Hampestead Heath; então, tomou um ônibus e foi para casa, e lá o deixei,deitado no sofá, para vir imediatamente procurá-lo a fim de lhe contar o sucedido.

– Muito interessante – comentou Holmes. – Ele chegou a observar a aparência desses homens...Ouviu-os falar?

– Não; está completamente aturdido. Sabe apenas que se sentiu levantado do chão como num passede mágica e devolvido à terra como por encanto. Os atacantes eram pelo menos dois ou três.

– E a senhora relaciona essa agressão com o seu pensionista?– Ora, nós moramos lá há quinze anos e nunca nos sucederam tais coisas. Já estou farta dele. Afinal,

o dinheiro não é tudo. Farei com que saia da minha casa antes do anoitecer.– Um momento, sra. Warren. Não aja precipitadamente. Começo a suspeitar de que essa história

é mais importante do que parecia à primeira vista. É evidente, agora, que algum perigo ameaça oseu inquilino. E é igualmente evidente que seus inimigos, que se encontravam à espera dele nasproximidades da casa, confundiram seu marido com ele, devido ao nevoeiro matinal. Aoperceberem o engano, soltaram-no. Quanto ao que teriam feito se não tivessem se enganado, sónos resta conjeturar.

– Diga-me então o que devo fazer, sr. Holmes.– Desejaria muito ver seu pensionista, sra. Warren.– Não sei como poderá fazê-lo, a menos que arrombe a porta. Ouço-o sempre abrindo-a, quando

desço a escada depois de deixar a bandeja sobre a cadeira.– Ele precisa recolher a bandeja. Certamente podemos esconder-nos e vê-la nessa ocasião.

 A senhoria refletiu um instante.

– Há um pequeno quarto em frente. Poderia talvez colocar um espelho, de forma que, se o senhorestivesse atrás da porta...– Ótimo! – exclamou Holmes. – A que horas ele almoça?– Por volta da uma.– Então o Dr. Watson e eu estaremos lá a tempo. Passe bem.

 Ao meio-dia e meia subíamos as escadas da casa da sra. Warren – um prédio de tijolos amarelos, alto eesguio, na Great Orme Street, uma viela estreita situada a noroeste do Museu Britânico. Como fica naesquina, esse edifício permite uma boa visão da Howe Street, com suas casas mais requintadas. Holmesapontou-me, sorrindo, uma delas, que se salientava pela altura numa fileira de prédios de apartamentos.

– Veja, Watson! – observou. – ‘Casa alta, de tijolos vermelhos, com remates de pedra branca’. Éaquele, sem dúvida, o posto de sinalização. Já conhecemos a casa e o código; o resto é simples. Háum cartaz com ‘Aluga-se’ naquela janela. Trata-se evidentemente de um apartamento vazio, ao qualo cúmplice tem acesso. Então, sra. Warren, quais são as novidades?

– Está tudo pronto. Se quiserem subir agora, eu os conduzirei até lá. É melhor deixarem os sapatosaqui embaixo.

Ela arranjara um excelente esconderijo. O espelho fora colocado de tal modo que, sentados no escuro,podíamos ver distintamente a porta em frente. Mal nos tínhamos instalado ali, depois de a sra. Warren ter seretirado, um tinir distante anunciou que nosso misterioso vizinho tocara a campainha. Logo em seguida asenhoria apareceu com a bandeja, colocou-a sobre a cadeira junto da porta fechada e retirou-se a passos

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firmes. Acocorados um ao lado do outro, no ângulo da porta, não perdíamos de vista o espelho. Subitamentenquanto o ruído dos passos da sra. Warren se extinguia no andar inferior, ouvimos o ranger de uma chavgirando na fechadura, vimos a porta entreabrir-se e duas mãos finas introduziram-se velozes na frestalevantaram a bandeja da cadeira. Quase no mesmo instante, porém, largaram-na precipitadamente e evislumbrei, numa visão fugidia, um lindo rosto moreno, horrorizado, fitando a estreita abertura da porta dquarto onde nos encontrávamos. Em seguida a porta fechou-se com estrondo, a chave girou novamente nfechadura e tudo ficou em silêncio. Holmes puxou-me pela manga do casaco e juntos descemo

sorrateiramente a escada.– Voltarei à noitinha – disse ele para a sra. Warren, que nos esperava, ansiosa. – Creio, Watson, qu

poderemos discutir melhor a situação em nossa casa.“Minha hipótese, como vê, provou estar certa”, observou-me, falando das profundezas de sua cômodpoltrona“. Houve uma substituição de inquilinos. O que não previ, Watson, era que fôssemoencontrar uma dama e, por sinal, uma dama invulgar”.

– Ela nos viu.– De qualquer modo, viu algo que a alarmou; isso é evidente. A seqüência dos acontecimentos pare

agora bastante clara, não acha? Um casal procura refúgio em Londres devido a um perigo terríveiminente. Podemos avaliar esse perigo pelo rigor de suas precauções. O homem tem um trabalhqualquer que precisa executar e deseja conservar a mulher rodeada de segurança, enquandesempenha sua missão. O problema não era fácil, e no entanto ele o resolveu de maneira originae com tanta eficiência, que a presença da mulher é desconhecida até da dona da casa, encarregadde lhe levar as refeições. Explicam-se, assim, as mensagens em letra de fôrma: serviam para impedque lhe descobrissem o sexo pela caligrafia. O homem não podia aproximar-se da mulher, podesse modo a deixaria à mercê de seus inimigos. Sem possibilidade de se comunicar diretamencom ela, recorreu à coluna especial de um diário. Até aqui, tudo está claro.

– Mas o que há por trás disso tudo?

– Ah! Muito bem, Watson! Você, como sempre, semostra essencialmente prático! O que há por trásdisso tudo? O problema da sra. Warren, extrava-gante e algo cômico na aparência, aumenta deproporções e assume um aspecto mais sinistro àmedida que avançamos em nossas pesquisas.Uma coisa podemos afirmar: não se trata de umsimples caso de fuga amorosa. Você viu aexpressão no rosto daquela mulher diante dopossível perigo. Por outro lado, sabemos daagressão contra o dono da casa, a qual, semdúvida, destinava-se ao pensionista. Tais pormeno-res, e o impenetrável segredo de que procuramrodear-se, fazem-nos acreditar que estamos diantede um caso de vida ou morte. O ataque contra osr. Warren demonstra ainda que os própriosinimigos, sejam quem forem, não deram pela trocade inquilinos. O caso é muito curioso e complexo,Watson.

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– Que razão tem você para levar avante a investigação? Que terá a ganhar com isso?– Ora essa! E o amor à arte, Watson? Suponho que, quando você se formou, teve ocasião de estudar

casos sem pensar na parte pecuniária.– Tratava-se de enriquecer a minha cultura, Holmes.– Não há limite para a cultura, Watson. Ela constitui uma série de lições, das quais a maior é sempre

a última. Esse é um caso instrutivo. Ainda que não me traga dinheiro nem fama, vale a pena resolvê-lo. Ao anoitecer teremos dado mais um passo para a sua completa elucidação.

Quando regressamos à casa da sra. Warren, a vaga tristeza de uma noite hibernal adensara-se numacortina cinzenta, que envolvia tudo na monotonia de sua cor mortiça, quebrada aqui e ali pelos nítidosretângulos amarelos das janelas iluminadas e pela claridade baça dos lampiões de gás. Ao espreitarmospela janela do interior sombrio da sala de estar da pensão, uma luz mais tênue tremeluziu alta na escuridãoda noite.

– Alguém se move naquele quarto – murmurou Holmes, encostando o rosto magro e atento à vidraça.– Sim, vejo sua sombra. Ei-lo de novo! Tem uma vela acesa na mão. Está olhando para cá. Quer tera certeza de que ela está alerta. Agora começa a fazer sinais com a luz. Tome nota também damensagem, Watson, a fim de que possamos comparar depois os resultados. Um lampejo apenas –é um A certamente. Atenção, agora! Quantos contou? Vinte. Exatamente, deve significar T . E agora?Outro T . Provavelmente, vai iniciar uma segunda palavra. Adiante... TENTA. Parou. Não pode teracabado! ATTENTA não tem sentido em inglês. Nem dividindo em três palavras... AT.TEN.TA, salvose T.A. corresponde às iniciais de alguém. Lá está ele de novo! Mas o que é isso?  ATTE... Com osdiabos! Trata-se ainda da mesma mensagem. Estranho, Watson, muito estranho! Ei-lo que recomeça! AT... ora, está repetindo a mesma coisa pela terceira vez.  ATTENTA, três vezes! Quantas mais irárepetir? Não, parece ter terminado. Retirou-se da janela. Que pensa disso, Watson?

– Parece-me uma mensagem cifrada, Holmes.O meu companheiro soltou de súbito uma gargalhada.

– E não muito obscura, Watson – observou. – Foi transmitida em italiano, é claro! O A final significa

que era dirigida a uma mulher. “Cuidado! Cuidado! Cuidado!” Que lhe parece, Watson?– Creio que você acertou.– Não pode ser outra coisa. É uma mensagem urgentíssima, repetida três vezes para chamar a atenção.

Mas cuidado com quê? Espere um pouco; ele se aproxima novamente da janela. Avistamos outra vez o perfil indistinto de um homem agachado, e o tremeluzir da chamazinha através da

 janela, dando início aos sinais. Seguiam-se mais rápidos do que antes – tão rápidos que se tornava difícilcontá-los.

– PERICOLO... PERICOLO... Ei, o que quer dizer isso, Watson? ‘Perigo’, não é? Sim, por Deus! A coisaé grave. Lá está de novo! PERI... Ora essa, que diabo...

 A luz se extinguira repentinamente, o quadrilátero brilhante da janela desaparecera, e o terceiro andarformava uma faixa escura ao redor do alto edifício, em contraste com as demais fileiras de vidraças cintilantes. Aquele último grito de alarme fora cortado de modo imprevisto. Como e por quem? Idêntico pensamentoocorreu-nos a ambos no mesmo instante. Holmes pôs-se subitamente de pé, como que impulsionado poruma mola.

– Isto é sério, Watson – gritou. – Algo anormal está acontecendo ali! Por que motivo semelhantemensagem seria interrompida? Eu devia avisar a Scotland Yard... mas não temos tempo a perder.

– Quer que chame a polícia?– Primeiro precisamos definir melhor a situação. Talvez ofereça uma interpretação mais inocente.

Vamos, Watson, atravessemos a rua e vejamos se conseguimos resolvê-la sozinhos.

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II

Enquanto nos apressávamos ao longo da Howe Street, lancei um olhar por cima do ombro para o prédque tínhamos deixado e ali avistei, vagamente recortada contra a janela do andar superior, a sombra de umcabeça, uma cabeça feminina, em atitude tensa, rígida, esperando ansiosamente, na escuridão da noite, peprosseguimento daquela mensagem interrompida. À porta do prédio de apartamentos da Howe Street estavencostado um homem embuçado num grosso sobretudo. Quando a luz do vestíbulo iluminou nossos rosto

ele estremeceu.– Holmes! – exclamou.– Você aqui, Gregson? – bradou meu companheiro, apertando a mão do policial da Scotland Yard.

Os namorados voltam sempre a encontrar-se! Que motivo o traz aqui?– Suponho ser o mesmo que o trouxe – respondeu Gregson –, embora não consiga compreender o qu

o colocou nesta pista.– Fios diferentes da mesma meada. Estive interceptando sinais.– Sinais?

– Sim, daquela janela. Interromperam-se repentinamente, e aqui viemos para saber a causa. No entantdesde que o caso está em suas mãos, não vejo razão para continuar as minhas pesquisas.

– Espere um pouco! – disse Gregson com ansiedade. – Devo fazer-lhe justiça, sr. Holmes, ao afirmalhe que sempre me senti mais capaz quando o tinha ao meu lado. Esta casa tem apenas uma saídele não pode escapar.

– Ele, quem?– Ah! Vejo que pelo menos por uma vez nos adiantamos. Não pode deixar de reconhecer que estamo

na pista certa. Ao dizer isso, bateu fortemente com a bengala no chão. No mesmo instante um cocheiro, empunhand

um chicote, saltou de uma carruagem estacionada do lado oposto da rua e aproximou-se de nós.– Permita-me que lhe apresente o sr. Sherlock Holmes – disse, dirigindo-se ao novo personagem.

Este é o sr. Leverton, da Agência Americana Pinkerton.– O herói do mistério da caverna de Long Island? – indagou Holmes. – Tenho imenso prazer econhecê-lo.

O americano, jovem calmo e prático, de rosto anguloso e bem-escanhoado, corou a essas palavras elogiosa– Estou empenhado no caso mais importante de minha carreira, sr. Holmes. Se conseguir prend

Gorgiano...– Como! O Gorgiano do Círculo Vermelho?– Oh! Pelo que vejo, sua fama já chegou à Europa! Bem, soubemos de tudo a respeito dele na Améric

Sabemos com segurança que é responsável por mais de cinqüenta assassinatos, mas não temoainda em mãos nada de positivo que permita prendê-lo. Tenho-o seguido desde Nova York e há umsemana que não o perco de vista em Londres, à espera do mais leve pretexto para agarrá-lo. O sGregson e eu acompanhamos os seus passos até aqui, e, como há somente uma saída nesta casele não poderá nos escapar. Desde que entrou já saíram três pessoas, mas poderia jurar que ele nãera nenhuma delas.

– O sr. Holmes referiu-se a sinais – observou Gregson. – Espero que, como de costume, esteja a pde muita coisa por nós ignorada.

Em rápidas e precisas palavras, Holmes explicou a situação tal como se nos apresentava. O americanbateu com os punhos fechados um no outro, sem poder conter seu desapontamento.

– Ele notou a nossa presença! – exclamou.

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– Por que diz isso?– Ora, a situação é clara, não lhe parece? Ele estava enviando mensagens a um cúmplice: há vários

deles em Londres. Subitamente, como o senhor acaba de afirmar, quando o avisava de que haviaperigo, interrompeu-se. Isso só pode significar que nos avistou na rua ou compreendeu a iminênciado risco, e portanto devia agir sem demora a fim de evitá-lo. Qual é sua opinião, sr. Holmes?

– Que subamos já para nos inteirarmos pessoalmente de tudo quanto aconteceu.– Mas não temos mandado de prisão contra ele!

– Ele se encontra num apartamento desocupado, em circunstâncias suspeitas – lembrou Gregson. –De momento, é o suficiente. Depois de lhe termos posto a mão em cima, veremos se Nova York nãopode ajudar-nos a metê-lo na cadeia. Por ora, assumo a responsabilidade de sua prisão.

 Aos nossos investigadores pode faltar inteligência; nunca, porém, coragem. Gregson subiu as escadaspara prender aquele temível assassino com a mesma calma e naturalidade de movimentos com que teriasubido a escadaria principal da Scotland Yard. O homem da Pinkerton tentou tomar-lhe a dianteira, masGregson manteve-o com firmeza atrás de si. Os perigos de Londres eram privilégio da polícia londrina.

 A porta do apartamento da ala esquerda do terceiro andar estava entreaberta. Gregson escancarou-a.Dentro, tudo era silêncio e trevas. Risquei um fósforo e acendi a lanterna do policial. Ao fazê-lo, e nomomento em que a luzinha trêmula se transformou numa boa chama, todos soltamos uma exclamaçãosufocada de surpresa. Sobre as tábuas nuas do soalho havia um rasto de sangue fresco. As pegadas rubrasestavam voltadas para nós e provinham de outra sala interior, cuja porta se encontrava fechada. Gregsonescancarou-a com um empurrão e iluminou o local com a luz clara da lanterna, enquanto nós todos olhávamosansiosos por cima dos seus ombros.

No meio do pavimento da sala vazia encontrava-se, emdesalinho, o corpo de um homem de estatura avantajada,cujo rosto moreno, irrepreensivelmente barbeado, se contraíanum esgar terrível e grotesco. Sua cabeça estava no meio deuma enorme poça de sangue, que se estendia, num amplo

círculo úmido, pelas tábuas de madeira clara. Tinha os joelhosencolhidos, as mãos espalmadas num gesto de agonia, e domeio de seu pescoço largo e trigueiro, inclinado para trás,surgia o cabo branco de um punhal, profundamente enterradona carne. Apesar da compleição gigantesca, o homem deviater caído fulminado, como um boi no matadouro, sob aqueletremendo golpe. No soalho, junto à sua mão direita, via-seuma enorme adaga de dois gumes e cabo de chifre, e, aolado dela, uma luva preta de pelica.

– Santo Deus! É Black Gorgiano em pessoa! – gritou oagente americano. – Desta vez alguém se antecipoua nós.

–  Aqui está a vela, sr. Holmes, no parapeito da janela– disse Gregson. – Mas que diabo o senhor estáfazendo?

Holmes atravessara o quarto, acendera a vela e movia-ade um lado para o outro por trás da vidraça. Depois, esprei-tou para fora, através da escuridão, apagou a vela e atirou-aao chão.

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– Fui eu quem a chamou – explicou Holmes.– O senhor! Como?– Seu código não era muito difícil. Sua presença aqui tornava-se necessária, e sabia que bastava

dizer-lhe ‘Vieni’ para fazê-la vir imediatamente. A formosa italiana olhou estupefata para o meu companheiro.

– Não compreendo como pôde saber disso. Como foi então que Giuseppe Gorgiano...Ela estacou de repente e o seu rosto se iluminou de orgulho e satisfação.

– Ah! Agora compreendo! Meu Gennaro! Meu incomparável, meu esplêndido Gennaro, que metem protegido de todos os perigos; foi ele quem, com sua mão vigorosa, abateu o monstro! Oh!Gennaro, como você é maravilhoso! Que mulher poderá jamais ser digna de tal homem?

– Ouça, sra. Lucca – disse o prosaico Gregson, segurando-a pela manga do vestido, com amesma falta de consideração com que o faria a um vagabundo qualquer de Notting Hill. –

 Ainda não compreendi bem quem é e o que faz aqui, mas entendi o suficiente para saber quetemos necessidade de sua presença na Scotland Yard.

– Um momento, Gregson – interpôs Holmes. – Calculo que esta senhora esteja tão ansiosa porprestar-nos informações como nós estamos por ouvi-la. A senhora já percebeu que o seu maridoserá preso e processado pela morte desse homem? Tudo quanto disser poderá ser usado comotestemunho contra ele. No entanto, se julga que seu marido agiu por motivos não criminosos,não lhe será possível prestar melhor serviço do que contar-nos os fatos com todas as minúcias.

–  Agora que Gorgiano está morto, não tememos mais nada – replicou. – Ele era um demônio,um verdadeiro monstro, e não haverá juiz no mundo que ouse punir meu marido por tê-loliquidado.

– Nesse caso – observou Holmes –, parece-me aconselhável fecharmos esta porta à chave,deixarmos as coisas como as encontramos e acompanharmos esta senhora até o seu quarto,a fim de tirarmos nossas conclusões do que ela tem a dizer.

Meia hora mais tarde estávamos todos sentados na saleta da sra. Lucca, ouvindo a emocionante

narrativa dos sinistros acontecimentos de cujo desfecho fôramos testemunhas fortuitas. Ela falava numinglês rápido e fluente, mas muito desajeitado, ao qual, por amor à clareza, procurarei dar uma formagramatical.

– Nasci em Posilippo, perto de Nápoles – principiou –, sou filha de Augusto Barelli, que foi decanodos advogados napolitanos e, em certa ocasião, deputado por aquela região. Gennaro eraempregado de meu pai, e eu me enamorei dele, como acontece a qualquer mulher. Ele nãotinha dinheiro nem posição... unicamente sua beleza, força e energia, e por isso meu pai foicontrário ao nosso casamento. Fugimos juntos, casamo-nos em Bari e vendemos minhas jóias,a fim de obtermos o dinheiro necessário para ir à América. Isso sucedeu há quatro anos, e desdeentão temos vivido sempre em Nova York.“A princípio a sorte nos foi favorável. Gennaro teve a oportunidade de prestar um favor a umsenhor italiano, salvando-o das garras de malfeitores num lugar chamado Bowery. Conseguiuassim um amigo poderoso, que se chamava Tito Castalotte e era o sócio mais importante dagrande firma Castalotte & Zamba, a principal importadora de frutas de Nova York. O sr. Zambaé doente e nosso novo amigo Castalotte exerce plenos poderes na firma, que tem a seu serviçomais de trezentos funcionários. Contratou meu marido, nomeou-o chefe de seção e demonstrou-lhe de todas as maneiras a sua benevolência. Castalotte era solteirão, e creio que consideravaGennaro como seu filho, do mesmo modo que eu e meu marido lhe queríamos como a um pai.Tínhamos alugado e mobiliado uma casinha no Brooklyn e o futuro nos parecia assegurado,

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quando surgiu a nuvem negra que em breve haveria de toldar completamente o céu.“Certa noite, ao voltar do trabalho, Gennaro trouxe consigo um compatriota nosso, cujo nomera Gorgiano e que também viera de Posilippo. Possuía um físico avantajado, como viram peseu cadáver. Mas não tinha somente o corpo agigantado; tudo nele era grotesco, imensoterrífico. Sua voz ressoava em nossa casa como o fragor do trovão. Mal havia espaço paragesticulação de seus enormes braços, enquanto falava. Todas as idéias, sentimentos e paixõedaquele homem eram exagerados e monstruosos. Falava, ou melhor, rugia com tal força qu

os seus interlocutores não podiam fazer outra coisa senão ouvi-lo, calados, esmagados poaquela tremenda torrente de palavras. Flamejavam-lhe os olhos ao fitar alguém, fazendo coque se ficasse completamente à sua mercê. Era ao mesmo tempo extraordinário e assustadoDou graças a Deus por ele estar morto!“Visitava-nos com freqüência e eu percebia que Gennaro não se sentia mais feliz do que eem sua presença. Meu pobre marido ficava sentado, pálido e abstraído, ouvindo suas infindávedivagações insensatas sobre política e questões sociais. Gennaro não dizia nada, mas eu, quo conhecia muito bem, podia ler-lhe no rosto certa angústia que jamais lhe notara antes. princípio julguei tratar-se de simples aversão; depois, gradualmente, compreendi que era algmuito mais forte. Era medo – um medo profundo, secreto, incontrolável. Naquela noite –noite na qual me compenetrei do terror que o devorava –, pus-lhe os braços em redor dpescoço e supliquei-lhe, em nome do amor que me devotava e de tudo o que lhe era caro, qunão me ocultasse o motivo pelo qual a presença daquele brutamontes tanto o transtornava“Ele me contou, e, ao ouvi-lo, senti um frio intenso invadir-me o coração. Nos primeirotempos de sua juventude atormentada e infeliz, quando o mundo inteiro parecia voltar-scontra ele e as injustiças da vida quase o enlouqueciam, meu pobre Gennaro filiara-se a umsociedade napolitana denominada Círculo Vermelho, ligada à dos antigos carbonários. O

 juramentos e os segredos dessa fraternidade eram espantosos, e, uma vez admitido em seseio, nenhum homem podia evadir-se. Quando fugimos para a América, Gennaro penso

que se desligara dela para sempre. Qual não foi, pois, seu horror, quando deparou cernoite, na rua, com o próprio homem que o iniciara em Nápoles, o gigante Gorgiano, conhecidno sul da Itália pelo cognome ‘Morte’, pois tinha os braços tintos do sangue de incontáveassassinatos. Transferira-se para Nova York a fim de evitar a polícia italiana e estabeleceuma filial daquela terrível sociedade na terra que o acolhera. Tudo isso Gennaro me contoe chegou a mostrar-me um convite que recebera naquele mesmo dia, encabeçado por ucírculo vermelho, para uma reunião em determinado dia, à qual a sua presença não esimplesmente solicitada, mas imposta.“Isso já era bastante mau, mas o pior ainda estava por vir. Tinha notado, há algum tempo, ququando Gorgiano ia visitar-nos, o que fazia quase todas as noites, se dirigia constantementemim; e, mesmo ao falar com meu marido, aqueles olhos flamejantes, aterradores, bestiaiestavam sempre voltados para a minha pessoa. Uma noite, finalmente, seu segredo desvendose. Eu despertara em seu íntimo o que ele chamava ‘amor’ – amor de bruto, de selvagemGennaro ainda não voltara para casa quando ele chegou. Entrou de modo arrebatado, apertome nos seus braços de gorila contra o peito, cobriu-me de beijos e implorou-me que fugisscom ele. Eu me debatia e gritava, quando Gennaro apareceu e se atirou ao monstro. Mas Gorgiancom um murro, prostrou-o sem sentidos e fugiu de nossa casa, aonde nunca mais voltou. Fum inimigo mortal que arranjamos naquela noite.“Poucos dias mais tarde, efetuou-se a reunião. Gennaro voltou com uma fisionomia que suger

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ter ocorrido algo terrível. A coisa ia muito além do que poderíamos imaginar. Os fundos daorganização provinham do dinheiro extorquido a italianos ricos, os quais eram ameaçados deviolência se se recusassem a contribuir. Parece que tinham feito isso com Castalotte, nosso amigoe benfeitor... Este não só se recusara a ceder às ameaças, mas levara o caso ao conhecimento dapolícia. Os bandidos resolveram por isso castigá-lo, de modo a fazer dele um exemplo capaz deintimidar qualquer outra vítima. De fato, na reunião decidira-se fazer com que sua casa fosse pelosares com uma explosão de dinamite. Foi tirada a sorte para saber quem se incumbiria de pôr em

prática o atentado. Quando enfiava a mão na sacola, Gennaro viu delinear-se no rosto de nossoinimigo um sorriso cruel. Certamente tudo fora preparado, pois foi o disco com o círculo vermelho,o mandato do crime, que ele encontrou ao abrir a mão. Devia matar o melhor amigo ou expor-se,e a mim também, à vingança dos companheiros. Fazia parte dos seus métodos infernais punir todoaquele que temiam ou odiavam, não só prejudicando sua própria pessoa, como também as quelhe eram caras, e a certeza disso enchia de terror o espírito do meu infeliz Gennaro e punha-oquase louco de apreensão.“Passamos toda a noite nos braços um do outro, tentando encorajar-nos mutuamente, a fim deenfrentar os perigos que se nos deparavam. O atentado fora fixado para a noite seguinte. Aomeio-dia, meu marido e eu estávamos a caminho de Londres, não sem avisar nosso benfeitor daameaça que pairava sobre sua cabeça, e enviar informações também à polícia, a fim de lhe salva-guardar a vida no futuro.“O resto os senhores já sabem. Tínhamos a certeza de que os inimigos nos acompanhariamcomo nossas próprias sombras. Gorgiano tinha razões particulares para se vingar, e de restosabíamos perfeitamente como era capaz de ser desapiedado, astuto e incansável. Tanto a Itáliacomo a América estão cheias de histórias do seu poder espantoso, e nunca, como nesta ocasião,ele deixaria de usá-lo. Meu querido marido aproveitou os poucos dias de calma e segurança quenossa partida repentina nos concedera para me arranjar um esconderijo onde nenhum perigo meameaçasse. Do seu lado, desejava estar livre para poder manter-se em contato com a polícia

americana e com a italiana. Eu própria ignoro onde ou como vivia. O pouco que sabia era atravésdas colunas de um jornal. Certo dia, porém, ao olhar pela janela, notei dois italianos observandoa casa e compreendi que de algum modo Gorgiano descobrira o nosso esconderijo. Finalmente,Gennaro disse-me – sempre por intermédio do jornal – que me transmitiria uma mensagem, pormeio de sinais, de certa janela. No entanto, quando esses sinais vieram, verifiquei não passaremde advertências, as quais subitamente se interromperam. É evidente para mim, agora, que elepercebeu estar sendo seguido de perto por Gorgiano e que, graças a Deus, se encontrava preparadopara enfrentá-lo quando chegasse o momento. E agora, senhores, desejaria saber se temos algoa recear da justiça, e se algum juiz do mundo poderia condenar meu Gennaro pelo que fez!”

– Bem, sr. Gregson – disse o policial americano, dirigindo-se ao agente da Scotland Yard –, não seiqual é o ponto de vista britânico neste caso; julgo, porém, que em Nova York o marido destasenhora receberá um voto unânime de louvor e agradecimento.

– Ela terá de ir comigo à presença do chefe – respondeu Gregson. – Se suas declarações foremconfirmadas, não creio que ela ou o marido tenham muito o que temer. Mas, que diabo, o quenão consigo atinar, sr. Holmes, é como o senhor se viu metido neste assunto.

– Cultura, Gregson, cultura. Procuro ainda novos conhecimentos na velha universidade. Aí tem,Watson, mais um exemplo trágico e grotesco para juntar à sua coleção. A propósito, que tal umanoitada de Wagner, no Covent Garden? Ainda não são oito horas e, se nos apressarmos,chegaremos a tempo para o segundo ato.

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O DESAPARECIMENTO DE  LADY  FRANCES CARFAX – Mas por que turco? – perguntou Sherlock Holmes, olhando fixamente para minhas botinas.

Nesse momento eu estava estirado numa poltrona de vime e, certamente, meus pés estendidos tinhaatraído sua sempre vigilante atenção.

– É inglês! – respondi-lhe, algo surpreendido. – Comprei este calçado de Latimer, na Oxford StreetHolmes sorriu com ar de entediada paciência.

– Refiro-me ao banho! – replicou. – Ao banho! Por que fazer uso do banho turco, dispendiosodebilitante, em vez do revigorante banho doméstico?

– Porque, nestes últimos dias, tenho me sentido velho e reumático. O banho turco é o que nós emedicina chamamos um purificador do sistema. A propósito, Holmes, não duvido de que a relaçãentre minhas botinas e um banho turco se apresente evidente para um espírito lógico; entretanteu lhe ficaria muito grato se a quisesse explicar.

– O raciocínio não é muito obscuro, Watson – respondeu Holmes, piscando-me o olho com ar macioso. – Pertence à classe de dedução elementar que eu mesmo usaria como ilustração se lhperguntasse quem lhe fez companhia no passeio de carro desta manhã.

– Não concordo que um novo exemplo seja uma explicação – respondi-lhe com certa aspereza.– Bravo, Watson! Admoestação muito digna e coerente. Examinemos os pontos do meu raciocíni

Comecemos pelo último: o passeio de carro. Repare que tem a manga e o ombro esquerdo dcasaco salpicados de lama. Se se tivesse sentado no meio do banco do carro, provavelmente nãostentaria esses salpicos, e, se tal acontecesse, por certo seriam simétricos. É evidente, portantque ficou a um canto, e por isso é também evidente que estava na companhia de alguém.

– Tudo isso é muito claro.– Absurdamente corriqueiro, não acha?– Sim, bem vistas as coisas...– E igualmente pueril. Você costuma atar os cordões das botinas de uma certa maneira. Vejo-os ago

atados com um complicado nó duplo, diferente do habitual. Logo, descalçou-as. E quem as atonovamente? Um sapateiro... ou o empregado da casa de banhos. É pouco provável que se trate dum sapateiro, pois seu calçado é quase novo. Que resta então? O banho. Facílimo, não lhe pareceMas, com tudo isso, o banho turco serviu para alguma coisa.

– Qual?– Disse-me há pouco que o tinha tomado por sentir necessidade de retemperar as forças. Permita-m

que lhe sugira que o faça de maneira completa. Que pensa de uma estada em Lausanne, meu caropassagens de primeira classe e todas as despesas pagas regiamente?

– Seria esplêndido! Mas por quê?Holmes recostou-se na poltrona e tirou do bolso o seu inseparável livro de notas.

– Uma das classes mais perigosas da sociedade – disse – é a da mulher nômade e sem amigos. Émais inofensivo e, freqüentemente, o mais útil dos mortais; no entanto, constitui para os outros uinevitável incentivo ao crime. Não conta com a ajuda de ninguém, é migratória; tem meios suficientepara se transferir de um país a outro e de hotel para hotel. Perde-se, muitas vezes, num labirinto dpensões obscuras. É como uma galinha perdida num mundo de raposas. Quando desaparece, quaninguém lhe sente a falta. Eis por que receio que tenha acontecido alguma desgraça a lady  FrancCarfax.

Senti-me aliviado com essa repentina mudança do geral para o particular. Holmes consultou os seuapontamentos.

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– Lady  Frances – continuou – é a única descendente direta do falecido conde de Rufton. Como talvezse lembre, os bens de raiz couberam à descendência masculina, de forma que ela possui havereslimitados. Herdou, entretanto, grande variedade de antigas jóias espanholas, de prata e brilhantes,que se recusa a deixar aos cuidados de seu banqueiro, levando-os sempre consigo. É uma figuraverdadeiramente patética, essa lady  Frances, uma bela mulher, que conserva ainda um certo viçoapesar da idade, mas, por estranho acaso, é a última remanescente do que, há apenas vinte anos,constituía uma ilustre linhagem.

– Mas afinal, o que lhe aconteceu?– Ah! Isso pergunto eu. Está viva ou morta? Eis nosso problema. Lady  Frances é uma senhora metódica

e há quatro anos, invariavelmente, de duas em duas semanas costuma escrever à srta. Dobney, suavelha governanta, há muito aposentada, que mora em Camberwell. Pois foi a srta. Dobney quemveio procurar-me. Há quase cinco semanas não recebe a menor notícia de lady  Frances. A últimacarta foi escrita do Hotel National, em Lausanne. Ao que parece, lady  Frances deixou esse hotel semdar o novo endereço. Os parentes estão preocupados, e, como são riquíssimos, não pouparãodespesas a fim de esclarecer esse mistério.

– A srta. Dobney é a única fonte de informações que possuímos? Será possível que ela não tivesseoutros correspondentes?

– Existe um correspondente que constitui sempre boa fonte de informações, Watson. É o banco. Assenhoras solteiras também precisam viver, e seus talões de cheques são verdadeiros diárioscondensados. Os haveres de lady  Carfax estão depositados no Silvester. Já estive lá examinando asua conta corrente. O penúltimo cheque foi sacado em Lausanne para pagar as despesas do hotel;era, porém, de quantia elevada, e com certeza lhe sobrou muito dinheiro. Apenas um cheque foisacado depois desse.

– A favor de quem e onde?– A favor da srta. Marie Devine. Não há nada que indique onde o cheque foi emitido. Foi descontado

no Crédit Lyonnais, em Montpellier, há menos de três semanas. Importava em cinqüenta libras.

– E quem é essa srta. Devine?– Consegui também descobrir isso. A srta. Marie Devine era criada de lady  Frances Carfax. Por quemotivo ela lhe deu esse cheque, ainda não fomos capazes de saber; no entanto, tenho certeza deque suas pesquisas esclarecerão essa particularidade.

– Minhas pesquisas?– É esse justamente o motivo de sua estada em Lausanne. Você sabe que não posso deixar Londres de

forma nenhuma enquanto o velho Abrahams estiver com tanto medo de perder a vida. Além disso,por princípio geral, é melhor que eu não saia do país. A Scotland Yard sente-se abandonada semmim, e minha ausência provoca sempre uma indesejável agitação nas classes criminais. Vá, pois,meu caro Watson, e se achar que os meus humildes conselhos valem a ninharia de dois pence porpalavra, eles estarão a seu dispor, dia e noite, nesta extremidade do telégrafo continental.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Dois dias depois encontrava-me no Hotel National, em Lausanne, onde fui acolhido com as maiores

atenções por parte do sr. Moser, seu afamado gerente, o qual me informou que lady  Frances ali estiverahospedada durante várias semanas. Todos os que a haviam conhecido eram unânimes em reconhecer quedela irradiava grande simpatia. Não devia contar mais de quarenta anos. Era ainda bonita e parecia ter sidomuito linda quando jovem. O sr. Moser nada sabia a respeito das jóias, mas as criadas do hotel tinhamreparado que uma pesada mala, existente no quarto dessa senhora, se encontrava sempre cuidadosamentefechada à chave. Marie Devine, sua criada, era tão estimada como ela. Ficara noiva de um dos chefes de

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empregados do hotel, e não havia dificuldade em fornecer o seu endereço: Rue de Trajan, número 11Montpellier. Tomei nota de tudo isso e tive a sensação de que nem Holmes, em pessoa, teria sido capaz dobter esses dados com maior presteza do que eu.

Todavia, restava ainda um ponto obscuro. Ninguém sabia explicar a razão da partida súbita de lady  FranceSentia-se muito satisfeita em Lausanne. Tudo fazia crer que estava decidida a permanecer durante todaestação em seu luxuoso apartamento à beira do lago. No entanto, partira com aviso de apenas um diperdendo uma semana de hospedagem paga adiantadamente. Só Jules Vibart, o noivo da criada, oferece

uma sugestão. Relacionava a partida repentina com a visita feita ao hotel, um ou dois dias antes, por uhomem alto, moreno e barbudo. ‘Un sauvage... un véritable sauvage!’, exclamou Jules Vibart. Esse homehospedara-se num lugar ignorado da cidade. Fora visto conversando animadamente com lady  Frances navenida marginal do lago. Depois fora visitá-la no hotel, mas ela se recusara a recebê-lo. Era inglês, sedúvida, mas ninguém soube dizer-lhe o nome. A dama partira logo em seguida. Jules Vibart – e, o que emais importante, sua noiva – pensavam que entre a visita e a partida havia uma relação de causa e efeit Apenas um ponto Jules Vibart não desejava discutir: o motivo pelo qual Marie deixara a patroa. Sobre isnão podia ou não queria dizer nada. Se eu o quisesse saber, teria de ir a Montpellier e perguntar a ela.

 Assim terminou o primeiro capítulo de minhas investigações; o segundo foi dedicado ao lugar para ondse dirigira lady  Frances ao sair de Lausanne. A esse respeito houve um certo segredo, o que vinha confirma hipótese de ela ter partido com o propósito de despistar alguém. Caso contrário, por que motivo subagagem não fora abertamente endereçada a Baden? Tanto a bagagem como ela própria tinham chegadoestação terminal renana por vias indiretas, segundo informações do gerente local da Agência Cook. Segupor conseguinte, para Baden, depois de transmitir a Holmes um resumo de minhas diligências, e rececomo resposta um telegrama de congratulações semi-irônico.

Em Baden não me foi difícil acompanhar a pista da desaparecida. Lady  Frances estivera hospedada nEnglischer Hof por uns quinze dias. Durante sua permanência ali, travara relações com o Dr. Schlessingemissionário que acabara de regressar da América do Sul, e sua esposa. Como acontece à maioria das senhorasolitárias, lady  Frances encontrou lenitivo e trabalho na religião. A personalidade extraordinária do D

Schlessinger, sua profunda devoção e o fato de estar convalescente de uma moléstia contraída no exercícdo seu apostolado, impressionaram-na vivamente. Lady  Frances ajudara a sra. Schlessinger a tratar do piedosenfermo, o qual passava o dia, consoante me contou o gerente do hotel, no alpendre, deitado numa poltronsob os olhares vigilantes das duas dedicadas enfermeiras. Estava preparando um mapa da Terra Santa, coreferências especiais ao reino dos medianitas, a respeito do qual estava escrevendo uma monografia. Pfim, como sua saúde melhorara, ele e a mulher haviam regressado a Londres na companhia de lady  FranceIsso acontecera exatamente três semanas antes, e desdeentão o gerente de nada mais soubera. Quantoà criada, Marie, partira alguns dias antes,num dilúvio de lágrimas, depois de terinformado às outras criadas que deixavapara sempre o serviço de lady  Frances.O Dr. Schlessinger, antes de partir, pagaraa conta de todos.

– A propósito – concluiu o hoteleiro –, o senhornão é o único amigo de lady  Frances Carfaxque se interessa pelo paradeiro dela. Há cerca deuma semana, esteve aqui outra pessoa com omesmo fim.

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– Deixou o nome? – indaguei.– Não; mas era evidentemente inglês, embora de um tipo pouco comum.– Um selvagem? – perguntei, relacionando meus dados à maneira de meu ilustre amigo.– Precisamente. Essa palavra descreve-o à maravilha. É um indivíduo corpulento, barbudo, queimado

de sol, que parece achar-se muito mais à vontade numa pensão de província do que num hotel deluxo. Pareceu-me um homem rude, impulsivo, com o qual, por nada no mundo, eu desejaria entrarem conflito.

O mistério já começava a aclarar-se, assim como as figuras se apresentam mais distintas à medida que anévoa se dissipa. Eu me deparava com uma boa e piedosa senhora, perseguida sem descanso por um tiposinistro, inexorável. Ela o temia, pois do contrário não teria fugido de Lausanne. Ele seguira-a. Cedo ou tardeela cairia em seu poder. Talvez já a tivesse nas mãos. Seria esse o motivo do prolongado silêncio? Poderiamseus bondosos companheiros de viagem protegê-la contra a violência ou possível extorsão por parte dessechantagista? Que horrível objetivo, que intenção tenebrosa se ocultaria atrás dessa infindável perseguição?Eis o problema que me competia resolver.

Escrevi a Holmes explicando-lhe a rapidez e a segurança com que atingira o âmago da questão. Recebi,em resposta, um telegrama no qual ele me pedia que descrevesse a orelha esquerda de Schlessinger. Oconceito de humor de Holmes é estranho, e às vezes injurioso, por isso não dei atenção ao inoportunogracejo... Por outro lado, eu já chegara a Montpellier à procura da criada Marie, antes de receber o telegrama.

Não tive dificuldade em encontrar a ex-criada e em ouvir dos seus próprios lábios tudo o que ela sabia.Era muito devotada a lady  Frances, e só a deixara por estar certa de que ficara em boas mãos e tambémporque, de qualquer modo, seu casamento iminente iria tornar essa separação inevitável. A patroa, conformeme confessou, angustiada, tinha-se mostrado um tanto irritada com ela durante a permanência em Baden,chegando uma vez a interrogá-la, como se duvidasse da sua honestidade, fato esse que tornara a separaçãomais fácil. Lady  Frances dera-lhe cinqüenta libras como presente de núpcias. Como eu, Marie tambémdesconfiava do estranho que fizera a ama abandonar Lausanne. Com seus próprios olhos vira-o agarrarviolentamente a senhora pelos pulsos na avenida que circundava o lago. Era um homem selvagem e de

aspecto terrível. Acreditava que lady  Frances tivesse concordado em acompanhar os Schlessinger até Londresunicamente de medo dele. Jamais falara com Marie a respeito disso; não obstante, numerosos e pequenosindícios tinham-na convencido de que a pobre mulher vivia em estado de permanente apreensão. Ao chegara esse ponto da narrativa, ergueu-se subitamente da cadeira onde estava sentada, com o rosto contraídonum esgar de surpresa e pavor.

– Olhe! – exclamou. – Aquele canalha ainda está aqui! Lá vai a pessoa de quem estou falando. Através da janela aberta da sala de estar, avistei um homem gigantesco, moreno, com uma hirsuta barba

negra, caminhando a passo lento pelo meio da rua e olhando com atenção os números das casas. Eraevidente que, como eu, também ele viera em busca da criada. Agindo impulsivamente, corri para a rua eaproximei-me dele.

– O senhor é inglês – disse-lhe.– E o que tem isso? – perguntou-me, franzindo o sobrolho.– Posso saber seu nome?– Não, não pode – respondeu-me secamente.

 A situação era embaraçosa; mas o método direto, porém, é muitas vezes o melhor.– Onde está lady  Frances Carfax? – perguntei.

Ele fitou-me, aturdido.– O que fez dela? Por que a segue dessa maneira? Exijo uma resposta! – insisti.

O homem lançou um rugido de cólera e atirou-se a mim como um tigre. Tenho demonstrado minha força

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em mais de uma luta, mas o desconhecido possuía um pulsode ferro e a fúria de um demônio. Sua mão já me comprimiaa garganta e eu me sentia desfalecer, quando um operáriofrancês, de barba por fazer e com uma blusa azul, surgiu deum botequim à nossa frente, brandindo um cassetete, como qual aplicou um violento golpe no antebraço de meuagressor, obrigando-o a largar a presa. Durante alguns

instantes o homem permaneceu arquejante de cólera,indeciso sobre se deveria ou não recomeçar o ataque.Finalmente, com um grunhido feroz, abandonou-me eentrou na casa que eu acabava de deixar. Voltei-me paraagradecer ao meu salvador, que ficara no meio da rua.

– Bravo, Watson! – disse-me ele. – Bela trapalhadavocê fez! Acho melhor voltar comigo a Londres,no trem de hoje à noite.

Uma hora mais tarde, Sherlock Holmes, em sua elegânciahabitual, estava sentado em meu quarto de hotel. A explicação do seu aparecimento inesperado e providencialera simplicíssima. Verificando ser-lhe possível afastar-se deLondres, decidira preceder-me na segunda etapa de minhaviagem, e, disfarçado de operário, ficara no botequim àminha espera.

– Bela investigação você fez, e de consistênciaverdadeiramente notável, meu caro Watson. Comfranqueza: neste momento, não consigo recordar-me de nenhum disparate que possa ter omitidO resultado completo de suas pesquisas foi alarmar meio mundo e não descobrir coisa nenhum

– Você provavelmente não teria feito melhor – repliquei, despeitado.– Não se trata aqui de ‘provavelmente’. Eu fiz melhor. Eis ali o sr. Philip Green, seu companheiro dhotel, junto de quem talvez se possa encontrar o ponto de partida para uma investigação maconstrutiva.

Tinham trazido numa salva um cartão de visita, seguido imediatamente do mesmo velhaco barbudo qume agredira pouco antes na rua. Ao ver-me, estremeceu.

– O que significa isso, sr. Holmes? – indagou. – Recebi o seu recado e apressei-me a vir. Mas o qutem este homem a ver com o assunto?

– Este é meu velho amigo e sócio, o Dr. Watson, que nos ajuda em nossas pesquisas.O desconhecido estendeu-me a mão enorme e bronzeada, acompanhando o gesto de breves palavras d

desculpa.– Espero não lhe ter causado nenhum mal. Quando me acusou daquela maneira, perdi a cabeça. N

verdade, não respondo por mim nestes dias. Tenho os nervos à flor da pele, e esta situação põe-mmaluco. Contudo, desejo que me diga, antes de mais nada, como, com todos os diabos, consegusaber de minha existência.

– Estou em contato com a srta. Dobney, governanta de lady  Frances.– Ah! A velha Susan Dobney, com sua touca! Lembro-me muito bem dela.– E ela também se recorda do senhor. Foi um pouco antes... antes de o senhor se convencer de qu

devia partir para o sul da África.

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– Oh! Vejo que sabe de tudo. Não preciso ocultar-lhe nada. Juro-lhe, sr. Holmes, que não havia nomundo homem que amasse tanto uma mulher como eu amava lady  Frances. Era um doidivanas,bem sei... mas não era pior do que os outros jovens da minha condição social. Todavia, sua alma erapura como a neve. Não podia suportar a mais leve sombra de grosseria. Desse modo, quandodescobriu tudo quanto eu fizera, já não quis saber de mim. No entanto, ela me amava... e, o que émais estranho, amava-me a ponto de se conservar solteira, durante toda a sua longa e santa vida,unicamente por minha causa. Agora, passados tantos anos, e depois que fiz fortuna em Barberton,

 julguei que talvez pudesse procurá-la e enternecê-la. Soube que ainda não havia se casado. Encontrei-a em Lausanne e fiz tudo para persuadi-la. Creio tê-la comovido, mas, dotada de um espírito forte,abandonou a cidade antes que a procurasse pela segunda vez. Descobri que partira para Baden e,depois de algum tempo, soube que a sua criada ficara aqui. Sou um tipo rude, recém-saído de umaexistência de lutas, e, quando o Dr. Watson me dirigiu a palavra daquele modo, fiquei fora de mim.Mas, pelo amor de Deus, diga-me o que aconteceu a lady  Frances.

– É o que nos cumpre averiguar – respondeu Sherlock Holmes com particular gravidade. – Qual é seuendereço em Londres, sr. Green?

– O senhor me encontrará no Langham Hotel.– Então permita-me aconselhá-lo a ir para lá e ficar à minha disposição até que eu precise de seu

auxílio. Não desejo alimentar falsas esperanças, mas pode ficar certo de que farei todo o possível nosentido de salvar lady  Frances. Por ora, não posso dizer mais nada. Deixo-lhe este cartão a fim deque possa manter-se em contato conosco. E agora, Watson, se quiser arrumar a mala, telegrafarei àsra. Hudson para que faça tudo o que lhe estiver ao alcance, amanhã às sete e meia, por doisviajantes famintos.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ao entrarmos em nosso apartamento da Baker Street, encontramos um telegrama à nossa espera. Holmes

leu-o com uma exclamação de interesse e atirou-o a mim. ‘Cortada ou arrancada’, dizia a curiosa mensagem,cujo lugar de origem era Baden.

– O que isso quer dizer? – perguntei.– Quer dizer tudo – respondeu Holmes. – Deve lembrar-se de minha pergunta, aparentemente fútil,a respeito da orelha esquerda do Dr. Schlessinger, e à qual você não se dignou responder.

– Já tinha deixado Baden, e não me foi possível obter informações.– Exato. Por esse motivo expedi um segundo telegrama ao gerente do Englischer Hof, e aí está a

resposta.– E o que significa?– Significa, meu caro Watson, que estamos tratando com um homem excepcionalmente astuto e

perigoso. O reverendíssimo Dr. Schlessinger, missionário de regresso da América do Sul, não éoutro senão Holy Peters, um dos mais perigosos patifes que a Austrália já produziu... e vale a penalembrar que, como país jovem, tem apresentado exemplares dos mais perfeitos. A sua especialidadeé insinuar-se junto a senhoras solitárias, explorando-lhes o sentimento religioso. A mulher quepassa por sua esposa é uma inglesa, de nome Fraser, e é sua digna companheira. A tática empregada,que lhe é característica, sugeriu-me a sua identidade; o defeito físico (foi mordido na orelha numaluta de botequim, em Adelaide, em 1889) confirmou-me a suspeita. Essa pobre senhora está nasmãos de um casal satânico, capaz de tudo, Watson. A hipótese de que já esteja morta é muito viável.Caso contrário, deve estar, sem dúvida, prisioneira e impossibilitada de escrever, seja à srta. Dobney,seja a qualquer outro dos seus amigos. É muito provável que nem tenha chegado a Londres ou quetenha apenas atravessado a cidade; contudo, a primeira suposição é improvável, pois, dado o sistema

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de registro, não é fácil a estrangeiros burlar a vigilância da polícia continental. Por outro lado, segunda hipótese é igualmente inverossímil, porque esses patifes não podiam encontrar um lugmelhor do que Londres para manter alguém cativo. Tudo me leva a afirmar que ela se encontra eLondres, mas, como não possuímos de momento nenhum meio de saber o local, nada nos ressenão tomar as providências necessárias, jantar calmamente e munir-nos de paciência. À noitinhdarei um pulo até a Scotland Yard, a fim de trocar idéias com nosso amigo Lestrade.

No entanto, nem a polícia oficial, nem a pequena mas eficaz organização de Holmes conseguiram lanç

mais luz sobre o mistério. Entre os milhões de habitantes que se agitam em Londres, os três que procurávamoeram tão invisíveis como se jamais tivessem existido. Foram feitas tentativas através de anúncios nos jornasem resultado. Foram seguidas pistas que falharam completamente. Todos os lugares escusos ondSchlessinger pudesse ser encontrado foram vasculhados em vão. Todos os seus antigos companheiros foraseguidos; estes, porém, não foram vistos com ele. Finalmente, depois de uma semana de pesquisas inútebrilhou um raio de luz. Na casa de penhores Bevington, na Westminster Road, foi empenhado um pingende prata e brilhantes lavrado em antigo estilo espanhol. O homem que o empenhara era corpulento, calvode aparência eclesiástica. Verificou-se que tanto o nome como o endereço eram falsos. A orelha escaparaatenção do empregado, mas a descrição correspondia, sem sombra de dúvida, a Schlessinger.

Nosso barbudo amigo do Langham Hotel viera três vezes em busca de notícias – a terceira, uma hodepois de recebermos a inesperada informação. Suas roupas, pouco a pouco, ficaram folgadas para o corpemagrecido. Definhava de ansiedade a olhos vistos. ‘Se ao menos me dessem alguma coisa para fazer!’, eseu lamento habitual. Holmes, finalmente, estava em condições de lhe satisfazer a vontade.

– Começou a empenhar as jóias; talvez, agora, consigamos apanhá-lo.– Mas isso significa que aconteceu alguma desgraça a lady  Frances?

Holmes acenou gravemente com a cabeça.– Suponho que a tenham mantido prisioneira até agora; é evidente que não poderão libertá-la se

comprometerem a própria segurança. Devemos estar preparados para o pior.– Que devo fazer?

– Essa gente não o conhece de vista?– Não.– É possível que no futuro eles procurem

outra casa de penhores. Nesse caso,precisamos começar tudo de novo. Poroutro lado, adiantaram-lhe um bomdinheiro pela jóia, sem lhe fazer perguntas;portanto, se ele necessitar de dinheiro comurgência, voltará provavelmente à Beving-ton. Com uma apresentação minha ser-lhe-á permitido ficar à espreita na loja. Seo homem aparecer, siga-o até a sua casa.Nada de indiscrições, porém, e principal-mente, nada de violência. Dê-me a suapalavra de honra de que não dará umpasso sem que eu o saiba e sem o meuconsentimento.

Durante dois dias, o nobre barão Philip Green(devo mencionar que ele era filho do famoso

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almirante do mesmo nome, que comandou a esquadra do mar de Azof, na Guerra da Criméia) não nostrouxe a menor notícia. Na noite do terceiro dia, irrompeu pela nossa sala de estar, pálido, trêmulo, cadamúsculo vibrante de emoção.

– Nós o descobrimos! Nós o descobrimos! – berrou. A agitação tornava-o incoerente. Holmes tratou de acalmá-lo e fê-lo sentar-se numa poltrona.

– Vamos, conte-nos por ordem tudo o que aconteceu.– Apareceu há apenas uma hora; desta vez foi a mulher, mas o pingente que tinha nas mãos era

igualzinho ao outro. É uma mulher alta, descorada, com olhos de furão.– Sim, é ela – confirmou Holmes.– Quando saiu, pus-me a segui-la. Dirigiu-se para a Kennington Road e eu a acompanhei de perto.

Pouco adiante, entrou numa loja. Uma empresa funerária, sr. Holmes! Meu companheiro estremeceu.– E então? – perguntou com aquela voz vibrante que revela, por trás da máscara impassível, a alma

em tumulto.– Começou a conversar com uma mulher que se encontrava atrás do balcão. Entrei. ‘Está

demorando’, ouvi-a dizer. A mulher do balcão desculpou-se: ‘Já devia ter sido entregue. Levoumais tempo por ser de tamanho invulgar’. Ambas pararam de falar e olharam para mim. Fiz umapergunta qualquer e saí.

– O senhor portou-se de maneira brilhante. Que aconteceu depois?– A mulher abandonou a loja, mas eu me ocultara na entrada de uma casa vizinha. Acredito que lhe

despertei suspeitas, pois lançou um olhar em redor. Em seguida, chamou um carro e partiu. Tive asorte de encontrar outro e a segui. Desceu por fim em frente à casa número 36 da Poultney Square,em Brixton. Continuei até a esquina, onde deixei o carro, e pus-me à espreita.

– Viu alguém?–  As janelas estavam às escuras, exceto uma no andar térreo. A cortina, porém, estava abaixada, e

não me foi possível distinguir nada lá dentro. Encontrava-me ali, sem saber o que fazer, quando viparar uma carroça coberta, com dois homens na boléia. Estes apearam, tiraram alguma coisa do

interior do veículo e transportaram-na até os degraus da porta de entrada. Sr. Holmes, era umcaixão de defunto.– Oh!– Por um instante, estive a ponto de me atirar para dentro da casa. A porta fora aberta a fim de dar

passagem aos dois homens e à sua carga. Enquanto me encontrava ali, a mulher que os fizera entraravistou-me e desconfio que me reconheceu. Vi-a estremecer e fechar rapidamente a porta. Lembrei-me, então, do que prometera ao senhor, e aqui estou.

– Seu trabalho foi excelente – disse Holmes, rabiscando algumas palavras numa folha de papel. – Nãopodemos empreender nenhuma ação legal sem um mandado, e o senhor não poderá prestar melhorajuda do que levar este bilhete às autoridades e conseguir-nos um. Talvez encontre certa dificuldadeem obtê-lo, mas creio que a venda das jóias é motivo suficiente. Lestrade cuidará dos pormenores.

– Mas eles podem assassiná-la enquanto isso. O que poderia significar o caixão, e para quem seria elesenão para lady  Frances?

– Tentaremos tudo o que for possível, sr. Green. Não perderemos tempo. Deixe o caso em nossasmãos. E agora, Watson – acrescentou Holmes, enquanto nosso cliente se afastava apressado –, eleporá em ação a polícia regular. Nós, como de costume, somos os irregulares, e devemos escolhernosso próprio modo de agir. A meu ver, a situação é de tal forma desesperadora que justifica oemprego de medidas extremas. Precisamos ir à Poultney Square sem perda de tempo.“Procuremos reconstituir a série de ocorrências”, continuou, enquanto nosso carro passava

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velozmente defronte ao edifício do Parlamento, em direção à Ponte de Westminster. “Aqueles patifinduziram a pobre senhora a acompanhá-los a Londres, depois de a terem separado de sua ficriada. Ainda que tivesse escrito algumas cartas, teriam sido interceptadas. Por intermédio de ude seus sequazes, alugaram uma casa mobiliada. Uma vez instalados, fizeram-na prisioneiraapossaram-se de suas jóias, as quais, desde o início, constituíram o seu objetivo. Já começaramvender parte delas, e devem sentir-se seguros, pois não têm motivos para pensar que alguém posinteressar-se pela sorte de lady  Frances. Se a libertassem, ela certamente os denunciaria; portant

torna-se para eles questão de vida ou morte mantê-la aprisionada. Mas, por outro lado, não podeconservá-la eternamente fechada à chave. Logo, seu assassinato é a única saída que lhes resta”.

– Isso me parece perfeitamente claro.– Façamos, agora, outro raciocínio. Quando seguimos duas seqüências distintas de idéias, Watso

encontramos sempre algum ponto de intersecção que pode nos aproximar da verdade. Comecemonão por lady  Frances, mas pelo caixão, e raciocinemos na ordem inversa. O incidente indica coevidência, creio eu, que ela está morta. Isso também vem demonstrar-nos que será sepultada coatestado de óbito e os demais documentos exigidos por lei. Se eles a tivessem assassinado, tê-liam, sem dúvida, enterrado num buraco feito nos fundos da casa. No entanto, esse caso está sendrealizado às claras, regularmente. O que isso quer dizer? Evidentemente, mataram-na de modosimular morte natural e enganar o médico... envenenando-a, talvez. Todavia, acho estranho o fade deixarem um médico aproximar-se dela, a não ser que faça também parte da quadrilha, hipóteque não me parece plausível.

– Não poderiam ter arranjado um falso atestado de óbito?– Seria perigoso, Watson, muito perigoso. Não, não creio que o tenham tentado. Pare, cocheiro. Dev

ser aqui a empresa funerária, pois acabamos de passar pela casa de penhores. Quer ir até lá, WatsonSeu aspecto inspira confiança. Pergunte a que horas é o enterro da Poultney Square, amanhã.

 A mulher da loja respondeu-me sem hesitar que o serviço fúnebre estava marcado para as oito da manh– Como vê, Watson, nada de mistério; tudo claro, límpido, irrepreensível! De qualquer modo,

exigências legais foram preenchidas e eles, evidentemente, nada têm a temer. Bem, temos de tentum ataque frontal. Está armado?– Tenho minha bengala.– Paciência. Havemos de nos sair bem. ‘Quem peleja por causa justa é três vezes mais forte’. Nã

podemos de forma nenhuma aguardar a chegada da polícia, nem conservar-nos estritamendentro da lei. Pode andar, cocheiro. Agora, Watson, confiemos em nossa boa estrela, que já noprotegeu tanto.

Holmes bateu com força na porta de uma casa grande e escura, localizada no centro da Poultney Squara qual se abriu imediatamente, deixando entrever na penumbra do vestíbulo o vulto alto de uma mulher.

– Que desejam? – perguntou de modo incisivo, olhando-nos com firmeza através das sombras.– Queremos falar com o Dr. Schlessinger – respondeu Holmes.– Aqui não mora ninguém com esse nome – retrucou a mulher, procurando fechar a porta, no que f

impedida por Holmes, que introduzira o pé entre o batente e a porta.– Nesse caso, quero falar com a pessoa que mora aqui, seja qual for seu nome – insistiu Holme

inabalável. A mulher hesitou um pouco, depois abriu a porta.

– Está bem; podem entrar – disse. – Meu marido não teme ninguém.Fechou a porta, depois de termos entrado; introduziu-nos numa saleta à direita do vestíbulo e acendeu

gás, antes de se retirar, dizendo-nos:

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– O sr. Peters já virá recebê-los.Dissera a verdade, pois, mal tivéramos tempo de observar a sala poeirenta e cheia de vestígios de traças

em que nos encontrávamos, quando a porta se abriu e um homenzarrão calvo, de rosto cuidadosamenteescanhoado, entrou a passos leves. Tinha as faces vermelhas, as bochechas caídas e um certo ar benevolen-te, que contrastava, porém, com uma boca cruel e implacável.

– Aqui deve haver algum engano, cavalheiros – disse com voz untuosa e acomodatícia. – Devem estarno endereço errado. Talvez na casa ao lado...

– Basta! Não temos tempo a perder – interrompeu com decisão o meu companheiro. – O senhor éHenry Peters, de Adelaide, que se fez passar em Baden pelo reverendo Dr. Schlessinger, missionáriorecém-chegado da América do Sul. Tenho tanta certeza disso como de que me chamo SherlockHolmes.

Peters, como o chamarei daqui em diante, estremeceu e encarou fixamente o seu extraordinário adversário.– Creia, sr. Holmes, seu nome não me

atemoriza – replicou com frieza. –Quando um homem tem a consciênciaem paz, nada pode amedrontá-lo. Queveio fazer em minha casa?

– Desejo saber do destino de lady  FrancesCarfax, que o senhor trouxe de Baden emsua companhia.

– Eu lhe ficarei muito grato se puder dizeronde ela se encontra – redargüiu Peterssem titubear. – Emprestei-lhe cerca decem libras, recebendo como garantia ape-nas um par de brincos falsos pelos quaisninguém dá nada. Ela contraiu amizade

com a minha mulher e comigo em Baden(de fato, nessa ocasião, usava outronome), e não nos abandonou até virmospara Londres. Paguei-lhe a conta do hotele a passagem. Uma vez aqui, afastou-sede nós e, como já disse, deixou-nos em pagamento de seu débito essas jóias completamente semvalor. Se conseguir encontrá-la, sr. Holmes, eu lhe ficarei devendo um favor.

– É minha intenção encontrá-la – respondeu Holmes. – Darei busca a esta casa até descobri-la.– Tem em seu poder algum mandado?

Holmes tirou do bolso o revólver.– Por ora, basta este.– Então o senhor é um ladrão vulgar.– Pode pensar o que quiser – replicou Holmes em tom jovial. – Meu amigo é também um bandido

perigoso, e juntos pretendemos revirar-lhe a casa pelo avesso.Peters abriu a porta da sala.

– Chame um policial, Annie! – gritou.Ouvimos um ruge-ruge de vestido feminino no corredor e o abrir e fechar da porta de entrada.

– Nosso tempo é limitado, Watson. Se tentar deter-nos, Peters, na melhor das hipóteses, ficará ferido.Onde está o caixão de defunto que foi entregue aqui?

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– Que quer fazer com ele? Está ocupado; há um defunto dentro.– Preciso ver esse defunto.– Jamais o consentirei.– Então será sem o seu consentimento.

Com um movimento rápido, Holmes empurrou-o para um lado e passou para o vestíbulo. Diante dnós havia uma porta entreaberta. Entramos. Era a sala de jantar. Em cima da mesa, sob a luz tênue de ucandelabro, jazia o caixão. Holmes acendeu o gás e levantou a tampa do esquife. Quase desaparecida n

fundo deste encontrava-se estendida uma figura emaciada. O forte clarão produzido pela luz de cimiluminava-lhe a face idosa e enrugada. Nem o tratamento mais cruel, nem a fome, nem a gravidade ddoença poderiam ter alterado tanto o rosto ainda jovem e belo de lady  Frances. A fisionomia de Holmetraía-lhe o espanto e também o alívio.

– Graças a Deus! É outra pessoa.– Ah! Desta vez saiu-se mal, meu caro sr. Holmes – disse Peters, que nos seguira.– Quem é essa morta?– Pois bem! Se quer sabê-lo, trata-se de uma antiga ama de minha mulher. Chamava-se Rose Spend

e fomos encontrá-la no Hospital de Pobres, em Brixton. Trouxemo-la para cá, chamamos o DHorsom, residente em Firbank Villas, número 13 – não se esqueça de anotar o endereço, sr. Holme–, e cuidamos dela com carinho, como é dever de todo bom cristão. Ao cabo de três dias, faleceu;atestado de óbito indicou como causa mortis depauperamento senil. Isso, entretanto, é apenasopinião do médico, e o senhor, naturalmente, saberá melhor. Encomendamos o funeral à firmespecializada Stimson & Co., da Kennington Road, que fará o enterro amanhã de manhã, às oihoras. Haverá algo de extraordinário em tudo isso? Enganou-se redondamente desta vez, sr. Holmee a culpa cabe-lhe por inteiro. Daria tudo na vida por uma fotografia de sua cara de idiota ao levanta tampa do caixão na expectativa de ver lady  Frances Carfax, e ao deparar apenas com uma pobvelha de noventa anos.

 A expressão de Holmes mantinha-se impassível diante do sarcasmo de seu antagonista, mas os punh

fechados revelavam-lhe o intenso aborrecimento.– Vou dar uma busca pela casa – insistiu.– Ah! Chegaram! – gritou Peters, ao ouvir uma voz de mulher e passos ressoando no corredor. – Iss

é o que vamos ver agora. Por aqui, inspetor, façam o favor. Estes homens entraram à força em minhcasa e não consigo fazê-los sair. Auxiliem-me a pô-los na rua.

Na soleira da porta surgiram um sargento e um guarda. Holmes apresentou-lhes seu cartão.– Aí está meu nome e endereço. Este é o Dr. Watson, um velho amigo.– Por Deus, sr. Holmes! Nós o conhecemos muito bem – respondeu o sargento. – Mas o senhor nã

pode permanecer aqui sem um mandado oficial.– É claro que não posso. Compreendo-o perfeitamente.– Prenda-o! – berrou Peters.– Sabemos onde encontrar esse cavalheiro se houver necessidade de prendê-lo – replicou o sargen

em tom solene. – Contudo, precisa se retirar, sr. Holmes.– Vamos, Watson, temos de sair.

Um minuto depois achávamo-nos de novo na rua. Holmes apresentava-se calmo, como sempre; eporém, estava rubro de cólera e humilhação. O sargento nos havia seguido.

– Sinto muito, sr. Holmes, mas é a lei.– Fez muito bem, sargento; não poderia agir de outra forma.– Acredito que tenha havido um motivo justo para a sua presença naquela casa. Se lhe puder ser útil

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– Procuramos uma senhora desaparecida que supusemos estar ali. Esperamos um mandado de ummomento para outro.

– Nesse caso, ficarei de olhos abertos, e, se suceder alguma coisa, eu lhe comunicarei imediatamente.Como eram apenas nove horas, continuamos nossas investigações. Dirigimo-nos em primeiro lugar ao

Hospital de Pobres de Brixton, onde fomos informados de que efetivamente um casal caridoso ali se apre-sentara poucos dias antes reclamando uma velha caduca, que diziam ter sido sua antiga criada, e obtiverampermissão de levá-la para casa. Ninguém demonstrou a menor surpresa com a notícia de sua morte.

Fomos, em seguida, à casa do médico. Confirmou ter sido chamado para assistir uma mulher prestes amorrer de pura senilidade. Assistira-lhe ao falecimento e passara o atestado de óbito na mais perfeita forma.“Asseguro-lhes ter decorrido tudo normalmente e não é possível suspeitar de qualquer deslize”, afirmou.Não tinha notado nada de estranho na casa, se bem que achasse curioso gente daquela classe não possuirnenhum criado. Foi tudo quanto ele pôde informar.

Seguimos por fim para a Scotland Yard. Com relação ao mandado, haviam surgido algumas dificuldadesprocessuais. Era inevitável certa demora, pois não seria possível conseguir a assinatura do juiz antes damanhã seguinte. Se Holmes comparecesse lá às nove horas, poderia ir pedi-la, juntamente com Lestrade. Assim terminou o dia. Entretanto, por volta da meia-noite, nosso amigo sargento procurou-nos, a fim de nosavisar que avistara luzes nas janelas da casa; no entanto, não vira ninguém sair ou entrar. Só nos restavamunir-nos de paciência e aguardar o dia seguinte.

Sherlock Holmes estava por demais irritado para conversar, e excessivamente inquieto para dormir.Deixei-o fumando como uma chaminé, as densas sobrancelhas negras contraídas, e com os dedos finos enervosos tamborilando nos braços da poltrona, enquanto em seu cérebro deviam certamente agitar-setodas as possíveis soluções do mistério. Várias vezes durante a noite ouvi o rumor de seus passos de umlado para outro, através da casa. Por fim, já de manhã, logo depois de eu ter sido despertado, entrou emmeu quarto como um raio. Estava de pijama, mas o rosto pálido com olheiras profundas revelava quepassara a noite em claro.

– Para que horas está marcado o funeral? Às oito,

não é? – perguntou ansiosamente. – Pois bem! Agora são sete e vinte. Oh!, céus, Watson,onde eu estava com a cabeça? Depressa,homem, depressa! É questão de vida oumorte... noventa e nove possibilidades demorte para uma de vida. Jamais me perdoareise chegarmos demasiado tarde!

 Ainda não tinham decorrido cinco minutos e já nosencontrávamos num fiacre, a todo o galope, através daBaker Street. Mesmo assim, faltavam vinte e cincominutos para as oito quando passamos pelo Big Ben, eao soar das oito irrompemos pela Brixton Road.Entretanto, os outros também estavam atrasados. Dezminutos depois da hora fixada para o enterro o carrofúnebre ainda se encontrava postado diante da portada casa, e, somente quando nosso cavalo se detevearquejante, o caixão assomou na soleira, transportadopor três homens. Holmes atirou-se como um raio aoencontro dos carregadores e barrou-lhes a passagem.

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– Para trás! – exclamou, pondo a mão no peito do que vinha à frente. – Voltem imediatamente comcaixão!

– Que diabo pretende fazer? Mais uma vez lhe pergunto onde está o mandado – gritou Peters, furiossurgindo com o rosto vermelho do outro lado do ataúde.

– O mandado está a caminho. O caixão ficará retido até ele chegar.O tom autoritário da voz de Holmes produziu efeito nos carregadores. Peters desaparecera subitamen

no interior da casa e os homens obedeceram à ordem do recém-chegado.

– Depressa, Watson, depressa! Tome esta chave de parafusos! – bradou, enquanto o féretro erecolocado sobre a mesa. – E aqui está outra para você, meu amigo! Dou-lhe um soberano sconseguir retirar a tampa em um minuto! Não faça perguntas... mãos à obra! Muito bem! OutrMais outro! Agora façamos força todos juntos! Está cedendo! Ah! Finalmente.

Graças a nossos esforços reunidos, conseguimos retirar a tampa do caixão, e, no mesmo instante, uodor estonteante e insuportável de clorofórmio invadiu a sala. Dentro do ataúde jazia um corpo comcabeça inteiramente envolta em algodão embebido nesse narcótico. Holmes retirou-o com presteza e decobriu o rosto marmóreo e espiritual de uma mulher de meia-idade. Rapidamente, passou o braço em tornda figura inerte e fê-la sentar-se.

– Estará morta, Watson? Ainda há esperanças? Não é possível que tenhamos chegado tarde demaiDurante meia hora, pareceu-me que não restava nada a fazer. Sufocada pela falta de ar e intoxicada pelo

vapores venenosos do clorofórmio, lady  Frances parecia irremediavelmente perdida. Mas, por fim, graçasrespiração artificial, a injeções de éter e a todos os recursos que a ciência sugeria, um certo vislumbre dvida, um tênue vibrar de pestanas, um leve embaciar do espelho indicaram que a vida voltava lentamenteParara um carro diante da casa, e Holmes, afastando a cortina, olhou para a rua.

– Aí vem Lestrade com o mandado – observou. – Vai ficar desapontado quando souber que a supresa fugiu. E eis alguém – acrescentou, ao ouvir passos pesados no corredor – que mais do que nótem direito de cuidar desta senhora. Bom dia, sr. Green; creio que, quanto mais depressa levarmolady  Frances daqui, tanto melhor. Entretanto, podem continuar o enterro. A pobre velha que aind

 jaz neste caixão poderá ir para seu eterno repouso sozinha.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .– Se lhe interessa acrescentar este caso a seus anais, meu caro Watson – disse-me Holmes na tard

daquele dia –, ele servirá apenas como exemplo do eclipse temporário ao qual mesmo os cérebromais equilibrados podem estar sujeitos. Tais deslizes são comuns a todos os mortais, e maioportanto, é o mérito dos que são capazes de reconhecê-los e repará-los. A esse mérito eu julgo talgum direito. Passei a noite acossado pela idéia de que um indício, uma frase estranha, umobservação curiosa, me fora apresentado e eu desprezara logo de início. E, de súbito, já no rompda madrugada, as palavras exatas acorreram-me à mente. Tratava-se da justificação apresentadpela empresa funerária, tal como me foi referida por Philip Green. Ela tinha dito: ‘Já devia ter sidentregue. Levou mais tempo por ser de um tamanho invulgar’. Aludia ao caixão. Suas medidas erafora do normal. Isso só podia significar que tinha sido feito segundo dimensões especiais. Mas poquê? Por quê? Lembrei-me repentinamente do tamanho do ataúde e do corpo franzino da velhinhsumido lá no fundo. Por que um féretro tão grande para um cadáver tão pequeno? Para deixaespaço para outro corpo. Ambos seriam enterrados com um único atestado de óbito. Estaria tudmuito claro, se não fosse a momentânea obscuridade mental a que eu estava entregue. Às oithoras lady  Frances seria sepultada; nossa única esperança era chegar a tempo de impedir quecortejo fúnebre saísse da casa.“Era remota a probabilidade de encontrá-la ainda com vida, mas era sempre uma probabilidad

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como o resultado demonstrou. Essa gente, que eu saiba, jamais havia cometido um assassinato;provavelmente evitariam até o fim lançar mão de violência. Poderiam enterrá-la sem deixar o menorvestígio da causa de sua morte e, mesmo em caso de exumação, lhes seria possível escapar à açãoda justiça. Esperava que tais considerações prevalecessem sobre o modo de agir deles. Agora lheserá fácil reconstituir toda a cena com perfeição. Você viu o horrível cubículo onde a pobre mulheresteve tanto tempo seqüestrada. Eles atiraram-se a ela, narcotizaram-na com clorofórmio,transportaram-na para baixo, despejaram o anestésico no interior do caixão, a fim de impedir que

ela despertasse, e cerraram a tampa com parafusos. Um plano astucioso, Watson. Este fato, paramim, é novo nos anais do crime. Se nossos ex-missionários lograrem escapar às garras de Lestrade,nutro esperanças de que ouviremos falar em breve de outros casos brilhantes em sua futura carreira”.

OS PLANOS DO BRUCE-PARTINGTON Na terceira semana de novembro de 1895, um denso e escuro nevoeiro abateu-se sobre a cidade de

Londres. De segunda a quinta-feira, duvido que se pudesse avistar de nossas janelas da Baker Street o perfildas casas fronteiras.

Holmes passara o primeiro dia conferindo o índice do seu enorme livro de referência. No segundo eterceiro, ocupara-se do assunto que se transformara, nos últimos tempos, em seu passatempo favorito: amúsica medieval. Porém, no quarto dia, depois de termos afastado nossas cadeiras da mesa onde tomamosa refeição matinal, vimos a untuosa e espessa névoa passar ainda em pesada massa compacta diante denossos olhos e condensar-se em gotas oleosas nas vidraças, e o temperamento impaciente e enérgico demeu amigo começou a dar sinais de já não poder suportar aquela existência monótona. Pôs-se a andar deum lado para outro em nossa sala de estar, invadido por uma febre de energia sufocada, mordiscando asunhas, tamborilando nos móveis, enfurecido com aquela inação.

– Nada interessante no jornal, Watson? – perguntou-me por fim.

Sabia perfeitamente que, para Holmes, algo interessante significava acontecimento ou fato ligado àcriminologia. Havia notícias de revolução, falava-se numa eventualidade de guerra e na iminência da mudançade governo, mas nada disso entrava na esfera de interesse do meu companheiro. Não via coisa alguma quenão fosse vulgar e fútil nas colunas dedicadas à crônica criminal. Holmes resmungou, desapontado, erecomeçou seu incessante peregrinar entre as quatro paredes da sala.

– O criminoso londrino é incontestavelmente desprovido de imaginação – observou, com a vozlamentosa do caçador que vê fugir-lhe a caça. – Espreite por essa janela, Watson. Repare comosurgem os vultos dos transeuntes, quase invisíveis, para desaparecerem novamente no aluvião denévoa. Como o tigre pela brenha, o ladrão ou o assassino pode vaguear livremente por Londres,num dia como este, sem ser pressentido, até o momento de dar o golpe, perceptível apenas para asua vítima.

– Houve somente alguns furtos sem importância – comentei.Holmes teve um gesto de desprezo.

– Este cenário vasto e sombrio está reservado para algo muito mais importante – replicou. – É umaverdadeira ventura para a comunidade que eu não seja um criminoso.

– De fato! – exclamei, convicto.– Suponhamos que eu fosse Brooks ou Woodhouse, ou qualquer um dos cinqüenta homens que

possuem justificados motivos para me tirar a vida; por quanto tempo conseguiria sobreviver à minhaprópria perseguição? Um chamamento, uma emboscada, e tudo estaria acabado. Ainda bem que

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nos países latinos, onde há tantos assassinatos, não há dias de nevoeiro como este. Salve! Efinalmente uma coisa que pode quebrar esta insipidez mortal.

Era a criada com um telegrama. Holmes abriu-o e caiu na gargalhada.– Ora, ora! Qual será a última? – exclamou. – Meu irmão Mycroft vem por aí.– E o que há de extraordinário nisso? – perguntei.– É como se víssemos um bonde numa estradazinha rural. Mycroft tem os seus caminhos habitua

por onde corre inexoravelmente. O apartamento na Pall Mall, o Clube Diógenes, Whitehall... eis su

esfera. Aqui só apareceu uma única vez. Que cataclismo o terá feito sair dos trilhos?– Ele não o explica?

Holmes passou-me o telegrama do irmão.“Preciso falar com vocêacerca de Cadogan West.Sigo imediatamente para sua casa.

Mycroft”.– Cadogan West? Já ouvi esse nome.– A mim não ocorre nada, mas para fazer Mycroft sair assim de seus hábitos... É o mesmo que u

planeta desviar-se de sua órbita. E por falar em Mycroft, sabe o que ele é?Lembrava-me vagamente de ter ouvido falar dele por ocasião da aventura do intérprete grego.

– Você me disse que ele desempenhava uma pequena função a serviço do governo britânico.Holmes deu uma risadinha.

– Nessa época ainda não conhecia bem você, Watson, e é necessária uma certa discrição quando trata de altos assuntos de Estado. Tem razão em pensar que Mycroft trabalha para o governbritânico. E em certo sentido ainda teria mais razão se dissesse que ele às vezes é o próprgoverno britânico.

– Meu caro Holmes!– Já esperava seu assombro. Mycroft embolsa quatrocentas e cinqüenta libras por ano, permane

em posição subalterna, não nutre ambições de espécie alguma, recusa-se a receber honrarias o

títulos, mas nem por isso deixa de ser o homem mais indispensável do país.– Mas como?– Ora, a posição dele é única; criou-a especialmente para si. Nunca houve coisa parecida, ne

 jamais haverá. Possui o cérebro mais metódico e preciso deste mundo, com insuperável capacidadde registrar fatos. Os mesmos dotes poderosos que dediquei à elucidação de crimes ele teutilizado em seu trabalho especial. Vão ter-lhe às mãos as conclusões de cada departamento, e eé o centro polarizador, a caixa de compensação que contribui para o nosso equilíbrio políticTodos os outros funcionários são especialistas; sua especialidade, porém, é a onisciênciSuponhamos, por exemplo, que certo ministro necessite de uma informação sobre uma questãque envolva a marinha, a Índia, o Canadá e o bimetalismo. Poderá obter pareceres isolados dvários departamentos sobre cada assunto; no entanto, somente Mycroft estará em condições dfocalizá-los ao mesmo tempo e dizer com facilidade como cada um deles pode exercer influêncsobre o outro. Começaram por utilizá-lo a fim de facilitar o serviço, por comodidade; hoje, tornose indispensável. Naquele grande cérebro tudo está classificado, pronto para ser usado a qualqumomento. Em muitíssimos casos, sua palavra decidiu a política nacional. Vive exclusivamenpara isso e não pensa em mais nada, exceto quando, a título de exercício intelectual, se dignatender-me quando vou procurá-lo, a fim de lhe pedir a opinião a respeito de alguns dos meumodestos problemas. Contudo, Júpiter hoje resolveu descer à terra. Que diabo terá acontecidoQuem será Cadogan West, e o que ele significa para Mycroft?

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– Heureca! – gritei, mergulhando na pilha de jornais sobre o sofá. – Sim, sim, cá está ele, não hádúvida! Cadogan West é o jovem encontrado morto, terça-feira de manhã, na estação de metrô.

Holmes endireitou-se na poltrona, subitamente interessado, o cachimbo a meio caminho dos lábios.– Isso deve ser grave, Watson, para fazer meu irmão desviar-se de seus hábitos. Tem de ser algo

extraordinário. Que motivo o ligará a este incidente? Se bem me lembro, o caso nada tinha deespecial. A impressão era a de um jovem que cometera suicídio, atirando-se do trem. Não houveroubo, nem existia o menor fundamento para se pensar em violência. Não é assim?

– Foi aberto um inquérito – respondi –, no qual surgiram muitos detalhes novos. Examinando-os maisatentamente, diria tratar-se com toda a certeza de um caso suspeito.

– A julgar pelo efeito produzido em meu irmão, estou propenso a acreditar que se trata mesmo dosmais estranhos – comentou Holmes, acomodando-se melhor na poltrona. – Vejamos então os fatos,Watson.

– O jovem chamava-se Arthur Cadogan West, tinha vinte e sete anos de idade, era solteiro e funcio-nário do Arsenal de Woolwich.

– Emprego público. Note a relação com o meu irmão Mycroft!– Desapareceu de Woolwich repentinamente, segunda-feira à noite. Foi visto pela última vez por sua

noiva, srta. Violet Westbury, a quem deixou de súbito, no meio do nevoeiro, às sete e meia daquelanoite. Não houve nenhuma discussão entre eles e a jovem não sabe explicar o motivo de sua atitude.Depois disso, a única notícia a seu respeito foi o encontro do cadáver por um operário de nomeMason, encarregado da conservação da linha, pouco depois da estação de Aldgate, ao longo da redesubterrânea de Londres.

– Quando?– O corpo foi descoberto às seis horas da manhã de terça-feira. Estava atravessado sobre os trilhos,

do lado esquerdo da linha que vai para o leste, num ponto próximo da estação, à saída do túnel. A cabeça estava esmigalhada, o que poderia ser atribuído à queda do trem. Só podia ter atingido alinha dessa maneira. Se tivesse sido transportado de alguma rua das vizinhanças, deveria ter passado

pelas cancelas da estação, onde fica sempre um cobrador de bilhetes. Quanto a isso, parece nãohaver dúvida.– Muito bem. O caso parece-me bastante definido. O homem, morto ou vivo, caiu ou foi atirado do

trem. Até aí está tudo muito claro. Continue.– Os trens que atravessam as linhas ao lado das quais o corpo foi encontrado correm de oeste para

leste; alguns exclusivamente metropolitanos, e outros de Willesden e ramais adjacentes. Não hádúvida de que aquele jovem, quando encontrou a morte, viajava nessa direção, a uma hora avançadada noite, apesar de ser impossível determinar o lugar do seu embarque.

– O bilhete naturalmente deveria indicá-lo.– Não havia nenhum bilhete em seus bolsos.– Nenhum bilhete! Caramba! Isso é realmente estranho, Watson. Se a minha experiência pessoal não

falha, não é possível chegar à plataforma do trem subterrâneo sem exibir a respectiva passagem. Éde presumir, portanto, que o jovem a tivesse. Será que ela lhe foi tirada do bolso a fim de ocultar onome da estação de onde provinha? É provável. Ou a teria deixado cair no vagão? Também é possível.De qualquer modo, é um pormenor muito interessante. Você disse que não houve roubo?

–  Aparentemente, não. Eis aqui uma lista do que foi encontrado no corpo. A carteira continha duaslibras e quinze  xelins. Tinha, também no bolso um talão de cheques da filial de Woolwich dobanco Capital and Counties, devido ao qual se pôde estabelecer a sua identidade. Havia ainda doisbilhetes para o Teatro Woolwich, datados daquela mesma noite, e, além disso, um pequeno rolo

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de documentos técnicos.Holmes soltou uma exclamação de júbilo.

– Aí está finalmente, Watson! Governo britânico... Arsenal de Woolwich... documentos técnicosmeu irmão Mycroft... tudo se encadeia com perfeição. Mas, se não me engano, ele está chegandpara nos contar tudo de viva voz.

Dali a um momento a figura alta e corpulentade Mycroft Holmes era introduzida na sala. De

compleição robusta e maciça, havia nele algoque sugeria uma incrível inércia física. Contudo,sobre o corpo desajeitado surgia uma cabeçatão autoritária na vastidão da fronte, tão viva naexpressão dos olhos profundos de um cinzentode aço, tão firme no contorno dos lábios e tãosutil no conjunto da fisionomia, que, após aprimeira impressão, nos esquecíamos do corpovolumoso para nos lembrarmos apenas damente dominadora.

 Acompanhava-o nosso velho amigo Lestrade,da Scotland Yard, magro e austero. A gravidadeemanada do rosto de ambos pressagiava um assuntode alta relevância. O policial apertou-nos a mão sem dizerpalavra. Mycroft Holmes desvencilhou-se do sobretudo edeixou-se cair pesadamente numa poltrona.

– Um caso desagradabilíssimo, Sherlock – disse. – Detesto profundamente ter de alterar meus hábitomas as altas esferas não quiseram ouvir desculpas. Na situação atual em que se encontra o Sião,desairoso para mim ter de me ausentar do ministério. Todavia, trata-se de verdadeira cris

governamental. Nunca vi o primeiro-ministro tão transtornado. Quanto ao Almirantado... parecme uma colméia alvoroçada. Já leu as notícias a respeito do caso?– Acabamos de lê-las. Quais eram os documentos técnicos de que fala o jornal?– Ah! Eis a questão! Felizmente, nada transpirou, do contrário a imprensa faria um escarcéu do

diabos. Os papéis que aquele desgraçado rapaz levava no bolso eram os planos do submarinBruce-Partington.

Mycroft Holmes expressara-se com uma solenidade que bem demonstrava a importância que atribuía afato. Seu irmão e eu permanecemos sentados, em ansiosa expectativa.

– Você já ouviu falar nisso, não? Pensei que toda gente o soubesse.– Apenas de maneira vaga.– Seu enorme valor mal pode ser exagerado se eu disser ter sido esse, dos segredos de Estado,

mais ciosamente guardado. Posso até assegurar-lhe que se torna impossível uma batalha navdentro do raio de ação de um Bruce-Partington. Há dois anos conseguimos introduzir às escondiduma avultada soma na previsão orçamentária, a qual foi despendida na aquisição do monopólda invenção. Envidaram-se todos os esforços no sentido de manter o segredo. Os planoextremamente complicados, compreendem cerca de trinta patentes autônomas (cada uma daquais essencial para a execução do todo), que são conservadas na caixa-forte especial de umdepartamento secreto, perto do Arsenal, com portas e janelas à prova de arrombamento. Sonenhum pretexto os planos deveriam ser retirados dali. Se o construtor-chefe da marinha quisess

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consultá-las, precisaria dirigir-se ao Departamento de Woolwich para esse fim. Contudo, eis queos encontramos nos bolsos de um jovem funcionário subalterno morto no coração de Londres. A nosso ver, é simplesmente espantoso.

– Mas recuperaram-nos, então?– Não, Sherlock, não! Aí está a tragédia. Não conseguimos reavê-los. Dez documentos foram subtraídos

de Woolwich. Nos bolsos de Cadogan West só havia sete. Os três mais importantes estãodesaparecidos... roubados, evaporados. Você tem de abandonar tudo o que tiver em mãos, Sherlock.

Não vêm ao caso, nesta altura, seus pequenos quebra-cabeças policiais de sempre. Cabe resolveragora um problema de magna influência internacional. Por que Cadogan West teria se apoderadodos documentos, onde estão os que faltam, como morreu ele, como veio ter o seu cadáver ao lugaronde foi descoberto, de que maneira poderá remediar-se essa desgraça? Procure dar a resposta atodas essas perguntas e você terá prestado ao país um inestimável serviço.

– Por que não lhes responde você mesmo, Mycroft? É tão inteligente como eu.– É provável, Sherlock; mas trata-se de obter pormenores. Consiga-os, e, da minha poltrona, fornecerei

uma excelente opinião de perito. Você sabe, pôr-me a correr daqui para ali para interrogar guardasdo metrô e deitar-me de bruços com uma lente encaixada no olho... não, não é essa minhaespecialidade. Você é a única pessoa capaz de esclarecer tal mistério. E se lhe interessa ver seunome na próxima lista de honrarias...

Meu amigo sorriu e sacudiu a cabeça.– Meu interesse é meramente esportivo – retrucou. – No entanto, o problema apresenta certos aspectos

interessantes, e terei muito prazer em estudá-lo. Preciso, porém, de mais alguns dados.– Anotei nesta folha de papel os mais necessários, bem como alguns endereços que lhe serão úteis.

Presentemente, o guarda oficial dos documentos é o famoso perito do Estado, sir James Walter,cujos títulos e condecorações enchem duas linhas do anuário de referência. Envelheceu a serviço dapátria, é um perfeito cavalheiro, hóspede favorito das famílias mais eminentes e, sobretudo, umhomem cujo patriotismo paira acima de qualquer suspeita. É uma das duas pessoas que possuem a

chave da caixa-forte. Posso ainda afirmar que os documentos se encontravam no departamento nasegunda-feira, nas horas do expediente, e que  sir James partiu para Londres, por volta das trêshoras, levando a chave consigo. Quando se verificou o incidente ele estava na Barclay Square, emcasa do almirante Sinclair, e ali ficou até tarde.

– Esse pormenor foi averiguado?– Sim; seu irmão, o coronel Valentine Walter, comprovou a partida de Woolwich, e o almirante Sinclair,

a chegada a Londres. Sir James, por conseguinte, deixa de constituir um fator direto no problema.– Quem possui a segunda chave?– O sr. Sidney Johnson, funcionário de categoria e desenhista do Arsenal, homem de quarenta anos,

casado e pai de cinco filhos. É taciturno e rabugento, mas empregado exemplar. Não goza depopularidade entre os colegas, não obstante ser um trabalhador incansável. Segundo suas própriasdeclarações, corroboradas unicamente pela mulher, ele permaneceu em casa durante toda a noitede segunda-feira, após o trabalho, e a sua chave não deixou nem um momento a corrente dorelógio, na qual se encontra pendurada.

– Fale-nos a respeito de Cadogan West.– Trabalhava há dez anos nesse departamento, ao qual vinha prestando bons serviços. Tinha fama

de irascível e violento, mas era considerado um rapaz honesto e de caráter. Nada temos contraele. No departamento, estava subordinado diretamente a Sidney Johnson. Suas funções punham-no diariamente em contato pessoal com os planos. Ninguém mais tocava neles.

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– Quem os guardou na caixa-forte aquela noite?– Sidney Johnson.– Bem, torna-se evidente quem os tirou de lá. Foram encontrados no corpo de Cadogan West. Nã

lhe parece que é bastante claro?– A primeira vista parece, Sherlock; no entanto, muitos pontos continuam inexplicáveis. Para começa

por que razão ele faria isso?– Presumo tratar-se de documentos de grande valor – insistiu Holmes.

– Poderia obter facilmente com eles alguns milhares de libras.– Você consegue imaginar outro motivo plausível que o induzisse a levar os documentos a Londres

não ser o intuito de vendê-los?– Não, francamente não.– Temos então de tomar essa hipótese como ponto de partida. O jovem West subtraiu os documento

o que, entretanto, só seria possível mediante uma chave falsa...– Várias chaves falsas, pois precisaria abrir também a porta do prédio e a da sala.– Suponhamos, portanto, que possuísse diversas chaves falsas. Levou os documentos a Londres a fi

de vender o segredo, certamente com a intenção de repô-los no lugar, na manhã seguinte, antes qudessem pela falta. Todavia, em Londres, no decurso de sua desprezível missão, encontrou o próprdestino.

– De que maneira?– Podemos supor que regressava a Woolwich quando foi morto e atirado para fora do vagão.– Aldgate, onde o corpo foi encontrado, fica muito distante da estação da Ponte de Londres, lugar e

que deveria descer a fim de seguir para Woolwich.– Poderíamos imaginar inúmeras circunstâncias que o tivessem feito ultrapassar a Ponte de Londre

Talvez houvesse no carro uma pessoa com quem se tivesse entretido em animada palestra, qudegenerou em cena violenta, na qual veio a perder a vida. Ou talvez, ao tentar saltar do metrcaísse na linha e assim morresse. A tal pessoa fechou a porta; o nevoeiro estava muito espesso

nada foi visto.– Em face dos nossos atuais conhecimentos sobre o assunto, não é possível melhor explicação; nentanto, Sherlock, veja quanta coisa você deixou de considerar. Suponhamos, para argumentar, quCadogan West tivesse de fato resolvido levar esses documentos a Londres. Naturalmente, tercombinado um encontro com o agente estrangeiro, a quem deveriam ser vendidos, e ficaria comnoite livre. Em vez disso, comprou duas entradas para o teatro, acompanhou a noiva até o meio dcaminho, e depois desapareceu repentinamente.

– Um estratagema para despistar – interveio Lestrade, que ouvia a conversa com certa impaciência– Aliás, muito estranho. Essa é a primeira objeção. Segunda: imaginemos que ele tenha chegado

Londres e visto o agente estrangeiro. Precisa repor os documentos antes do amanhecer, sob pende darem pela falta dele. Levara consigo dez. Em seus bolsos foram encontrados apenas sete. O quteria acontecido aos outros três? Certamente não os teria perdido de propósito e, além disso, ondestá o pagamento por sua traição? Era de supor que se encontrasse uma grande soma de dinheiem seu poder.

–  A mim tudo parece claro – observou Lestrade. – Não tenho dúvidas em relação ao ocorrido. Etirou os documentos para vendê-los. Avistou-se com o agente. Não chegaram a um acordo quanao preço. Dirigiu-se novamente para casa, mas o agente acompanhou-o. No metrô, o espiãassassinou-o, apoderando-se dos papéis mais importantes, e atirou o cadáver para fora do vagãIsso explicaria tudo, não lhe parece?

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– E por que ele não estava com o bilhete?– Talvez indicasse a estação mais próxima da casa do agente. Por isso, este teve o cuidado de subtrai-

lo do bolso da vítima.– Muito bem, Lestrade, ótimo! – comentou Holmes. – Sua hipótese é bastante viável. Entretanto, se

for verdadeira, o caso está terminado. Por um lado, o traidor encontra-se morto; por outro, osplanos do submarino Bruce-Partington já se encontram com toda a certeza no continente. O quenos resta fazer?

– Agir, Sherlock... agir! – gritou Mycroft, saltando da cadeira. – Todos os meus instintos se rebelamcontra essa explicação. Ponha em ação as suas faculdades! Vá ao local do crime! Fale com as pessoasimplicadas nos acontecimentos! Pesquise tudo! Jamais, durante toda a sua carreira, apresentou-semelhor ocasião de servir o seu país.

– Está bem, está bem! – disse Holmes, encolhendo os ombros. – Vamos, Watson! E você, Lestrade,pode acompanhar-nos por uma ou duas horas? Iniciaremos as nossas buscas com uma visita àestação de Aldgate. Até logo, Mycroft. Trarei fatos novos antes do anoitecer, mas pressinto que vocêterá pouco a esperar.

Uma hora mais tarde, Holmes, Lestrade e eu nos encontrávamos sobre os trilhos do trem subterrâneo, noponto em que emergem do túnel, pouco antes de Aldgate. Um cavalheiro idoso, cortês, de faces rubicundas,representava a companhia ferroviária.

–  Aqui jazia o corpo do rapaz explicou ele, indicando um lugar a cerca de um metro da via férrea. –Não podia ter caído lá de cima, pois, como vêem, estas paredes são inacessíveis. Só poderia,portanto, ter sido atirado de um trem, que, até onde nos é dado supor, deve ter passado aqui porvolta da meia-noite de segunda-feira.

– Verificaram se os vagões apresentavam algum sinal de violência?– Não, nem foi encontrado qualquer bilhete.– Alguma porta, por acaso, foi encontrada aberta?– Não.

– Obtivemos hoje de manhã novos indícios –disse Lestrade. – Um passageiro que passou por Aldgate num metrô comum, cerca das onze equarenta da noite de segunda-feira, declarouter ouvido um pesado baque, como o de umcorpo ao cair na linha, pouco antes de o trementrar na estação. O nevoeiro, porém, estavamuito denso, e ele não pôde ver nada. Naocasião não se deu grande importância ao fato...Mas o que diabo estará acontecendo ao sr.Holmes?

Com uma expressão de vivíssimo interesse estampadano rosto, meu amigo fixava os trilhos no ponto em queestes, fazendo uma curva, saem do túnel. Aldgateconstitui um entroncamento e ali se entrecruza uma vastae emaranhada rede de desvios. Era neles que se fixavamos seus olhos vigilantes, perscrutadores, e eu lhe noteina face ativa e sagaz o contrair dos lábios, o tremor dasnarinas e a curvatura típica das espessas sobrancelhas,

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tudo o que eu conhecia tão bem.– Os desvios – murmurou –, os desvios!– O que têm eles? O que quer dizer?– Suponho que não haja grande número de desvios num sistema ferroviário como este.– De fato, existem muito poucos.– E além disso uma curva. Desvios e curva. Por Deus! Se assim fosse!– O que é, sr. Holmes? Encontrou algum indício?

– Uma idéia... mera suposição. Mas, sem dúvida nenhuma, o caso aumenta de interesse. Únicabsolutamente único, e, todavia, por que não? Não vejo o menor sinal de sangue na linha.

– Não havia quase nenhum.– Segundo eu soube, o ferimento era bastante grande.– O osso estava esmagado; externamente, porém, a ferida não parecia grave.– E, no entanto, era de esperar que tivesse havido sangue. Poderia inspecionar o trem no qual viajav

o passageiro que ouviu o baque de um corpo?– Receio que não, sr. Holmes. A composição do trem já foi desfeita e os vagões foram redistribuído– Posso garantir-lhe, sr. Holmes – afirmou Lestrade –, que todos os vagões foram cuidadosamen

examinados. Tratei disso pessoalmente.Fazia parte das fraquezas mais características de meu amigo certa impaciência indomável ao defrontar-

com inteligências menos penetrantes que a sua.– É provável – disse, afastando-se. – Na verdade, não eram os vagões o que eu desejava examina

Não nos resta mais nada a fazer aqui, Watson. Não o importunaremos mais, Lestrade. Julgo qunossas investigações nos devem conduzir agora a Woolwich.

Na Ponte de Londres, mandou um telegrama a seu irmão, estendendo-o a mim antes de expedi-lo.“Vislumbro certa luz no meio das trevas, mas éprovável que venha a extingu ir-se.Entretanto, queri a que vocêfizesse chegar às minhas mãos, na Baker Street, a l ista completa de todos os espiões estrangeir os ou agentes internacionais cuja residência 

na I nglaterra éconhecida, com os respectivos endereços por extenso.Sherlock”.

– Isso poderá ser-nos útil, Watson – observou ele ao tomarmos lugar no trem de Woolwich. Devemos sem dúvida a meu irmão Mycroft ter-nos posto em contato com um caso que prometrevelar-se fora do comum.

Seu rosto inteligente trazia ainda aquela expressão de energia intensa e concentrada que demonstravque alguma circunstância nova e sugestiva lhe abrira estimulante campo para exercer seus notáveis dotes draciocínio. Compare-se o cão de caça, de orelhas pendentes e cauda baixa, a vaguear em torno do canil, coo mesmo animal que, com olhos brilhantes e músculos tensos, fareja a caça próxima, e ter-se-á uma idéia dmudança operada em Holmes no decorrer daquela manhã. Que diferença do homem inerte e abatido quem roupão cor de rato, andava ainda há poucas horas, de um lado para outro, na saleta isolada pela névo

– Aqui há um excelente material, um objetivo – disse-me. – Fui tolo por não ter visto as suas possiblidades desde o princípio.

– Ainda agora ele se apresenta para mim mais confuso que nunca.– Mesmo para mim a conclusão é confusa, mas aferrei-me a uma hipótese que poderá nos lev

longe. O homem encontrou a morte em outro lugar, e seu corpo estava na capota do vagão.– Na capota?– Extraordinário, não acha? Reflita, porém, nos fatos. Será mera coincidência ter sido encontrado n

ponto onde o trem se agita e oscila ao passar nos desvios? Não é esse o local onde se pode esper

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– Não consigo compreender, sr. Holmes – disse ela. – Não consigo mais dormir desde que se deutragédia; vivo pensando, pensando incessantemente, noite e dia, no verdadeiro significado de tudisso. Arthur era um rapaz simples, cavalheiresco e patriota como poucos. Preferiria cortar a mãdireita a vender um segredo de Estado confiado à sua guarda. Para quem o conhecia bem, é a coimais absurda, impossível e fora de propósito.

– Mas e os fatos, srta. Westbury?– Sim, sim; reconheço minha impossibilidade de explicá-los.

– Ele estava necessitando de dinheiro?– Não; seus gastos eram mínimos e ele ganhava um ótimo salário. Já tinha economizado algum

centenas de libras e devíamos casar-nos pelo Ano-Novo.– Não lhe notou nenhuma perturbação ultimamente? Vamos, srta. Westbury, use da máxima franque

conosco.O olhar penetrante do meu amigo notara certa mudança nas maneiras da jovem. Ela corou, indecisa.

– Realmente – disse por fim. – Tinha a impressão de que qualquer coisa o preocupava.– Há muito tempo?– Há mais ou menos uma semana. Tornara-se pensativo e inquieto. Em certa ocasião, insisti com e

para que se abrisse comigo. Admitiu ter qualquer coisa que o perturbava com referência ao serviç‘É um assunto grave demais para que ouse falar, mesmo a você’, respondeu. Nada mais consegarrancar-lhe.

 A atitude de Holmes tornou-se grave.– Prossiga, srta. Westbury. Prossiga, mesmo se tiver a impressão de estar depondo contra ele. Nã

podemos saber a que isso nos pode conduzir.– Francamente, nada mais tenho a dizer. Uma ou duas vezes pareceu-me estar a ponto de me confi

qualquer coisa. Falou-me uma noite acerca da importância dos documentos secretos, e tenho umvaga idéia de ter dito que sem dúvida os espiões estrangeiros pagariam uma fortuna para obtê-lo

 A fisionomia de meu amigo tornou-se ainda mais severa.

– Nada mais?– Disse-me que éramos negligentes a respeito de tais assuntos... que seria bem fácil a um traidapoderar-se dos planos.

– Ele fez essas observações recentemente?– Sim, nestes últimos dias.– Agora, fale-nos da última noite em que o viu.– Tínhamos combinado ir ao teatro. O nevoeiro estava tão espesso que era inútil tomar um carr

Pusemo-nos a andar, e nosso caminho levou-nos às proximidades da sua repartição. De súbito ecomeçou a correr, desaparecendo no nevoeiro.

– Sem uma palavra?– Soltou uma exclamação; foi tudo. Esperei-o, mas não voltou; regressei então para casa. Na manh

seguinte, quando a repartição abriu, vieram interrogar-nos. Por volta do meio-dia recebemoshorrível notícia. Oh! sr. Holmes, se fosse possível ao menos salvar-lhe a honra! Ele a prezava tant

Holmes sacudiu a cabeça tristemente.– Vamos, Watson – disse-me. – Ainda temos muito o que fazer. Em primeiro lugar devemos ir à seçã

de onde foram subtraídos os documentos.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

– Os indícios contra aquele rapaz já eram desfavoráveis e nossas investigações os tornam ainda pior– observou Holmes, enquanto o carro se punha em movimento. – Seu casamento iminente fornec

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– Contudo, é estranho que ele fossearriscar-se roubando os originais,quando poderia copiá-los semdificuldade, com resultadosigualmente vantajosos para oseu propósito.

– É esquisito, sem dúvida... No

entanto, foi o que ele fez.– Todas as pesquisas relativas a

este caso revelam algo de inex-plicável. Segundo me disseram,esses documentos que ainda seencontram desaparecidos são osde maior importância.

– Sim, de fato.– Acredita que alguém pudesse, com

esses três documentos, mas sem os outros sete, construir um submarino Bruce-Partington?– Foi o que declarei ao Almirantado. Entretanto, estive hoje revendo os desenhos e já não estou tã

certo disso. As válvulas duplas, que se fecham automaticamente, estão desenhadas num dos papérecuperados. Enquanto o país estrangeiro que se apoderou dos planos não as tiver inventado, nãpoderá construir o submarino. Essa dificuldade, é claro, poderá ser facilmente superada.

– De qualquer modo, os três desenhos desaparecidos são os mais importantes?– Sem a menor dúvida.– Agora, se me permite, gostaria de dar uma volta pelo prédio. Que me lembre, nada mais me res

perguntar-lhe.Holmes inspecionou a fechadura da caixa-forte, a porta da sala e, finalmente, as folhas de ferro da janel

Somente quando nos encontrávamos na parte externa do edifício é que ele deu mostras de um vivo interessHavia um grande loureiro abaixo da janela e vários dos seus ramos mostravam sinais evidentes de teresido torcidos ou quebrados. Examinou-os cuidadosamente com uma lente e fez outro tanto com algunvestígios pouco nítidos no terreno em redor. Por fim, pediu ao sr. Johnson que fechasse as folhas de ferro d janela e chamou-me a atenção para o vão que elas deixavam ao centro, o que facilitava a qualquer pessoa dfora ver o que se passava no interior da sala.

– Estas marcas foram prejudicadas pelos três dias de demora. Podem significar alguma coisa, mtambém é possível que não tenham nenhum valor. Bem, Watson, penso que nada mais temosfazer em Woolwich. Nossa colheita aqui foi bem magra. Vejamos se em Londres temos mais sort

Todavia, antes de deixarmos a estação de Woolwich, acrescentamos mais um feixe à nossa ceifa. bilheteiro informou-nos confidencialmente que tinha visto Cadogan West – que conhecia bem, de vista – nnoite de segunda-feira, e garantiu-nos que ele embarcara para a Ponte de Londres, no trem das oito e quinzEstava só e comprou uma passagem de terceira classe. O empregado surpreendeu-se com seu aspectnervoso e agitado. Estava de tal modo trêmulo que não conseguiu recolher o troco, no que foi auxiliado pebilheteiro. Uma rápida consulta ao horário dos trens revelou-nos ser o das oito e quinze o primeiro quWest poderia ter apanhado, depois de ter se despedido da noiva às sete e trinta.

– Procuremos reconstituir os fatos, Watson – disse-me Holmes ao cabo de meia hora de silêncio.Não acredito que tenhamos, em toda a nossa longa série de investigações em conjunto, defrontadcaso mais difícil do que este. A cada passo encontramos um novo obstáculo. Apesar de tudo, é cer

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que realizamos um apreciável progresso. O resultado das nossas pesquisas em Woolwich foi namaior parte desfavorável ao jovem Cadogan West; entretanto, os sinais da janela prestam-se a umahipótese mais propícia. Suponhamos, por exemplo, que ele tenha sido sondado por algum agenteestrangeiro. Isso pode ter sido feito mediante uma promessa que o teria impedido de falar sobre oassunto, a qual, apesar de tudo, exerceu influência em seu espírito, conforme se depreende dasobservações feitas por ele à noiva. Ora, muito bem. Imaginemos agora que, quando se dirigia aoteatro com a jovem, tivesse distinguido subitamente, através da névoa, o vulto desse mesmo

agente caminhando na direção do departamento. Rapaz impetuoso e de decisões rápidas, todasas suas outras preocupações desapareceram diante do dever. Acompanhou o homem, chegou

 junto à janela, presenciou a subtração dos documentos e lançou-se no encalço do ladrão. Destemodo superamos a objeção de que ninguém tiraria os originais, quando lhe seria mais fácil copiá-los. A esse estranho, porém, não restava outra alternativa senão apoderar-se deles. Até aqui, oraciocínio está bem concatenado.

– E depois?– Depois começam a surgir as dificuldades. É lógico conceber que, em tais circunstâncias, o primeiro

gesto de Cadogan West fosse o de agarrar o meliante e dar o alarme. Por que não o fez? Tratar-se-iade funcionário de categoria elevada? Isso explicaria a conduta de West. Ou o ladrão teria logradoescapar protegido pelo denso nevoeiro, e West embarcou para Londres a fim de apanhá-lo na própriaresidência, presumindo-se que sabia onde ele morava? O caso devia exigir a máxima urgência, emvista de ele ter abandonado a jovem sozinha no nevoeiro e não ter feito o mínimo esforço para secomunicar com ela. Nesse ponto, nossa pista se perde e defrontamo-nos com uma imensa lacunaentre cada uma dessas hipóteses e o encontro do cadáver de West, com sete documentos no bolso,sobre a capota de um vagão do metrô. O instinto sugere-me que trabalhe, daqui em diante,começando pelo lado oposto. Se Mycroft nos mandou a lista de endereços, talvez consigamosdescobrir nosso homem e seguir assim duas pistas em vez de uma.

Havia realmente um bilhete à nossa espera na Baker Street. Fora trazido em caráter de urgência por um

mensageiro do governo. Holmes passou os olhos por ele rapidamente e o entregou a mim.“O cardume de espiões égrande; no entanto, poucos são os peixes de bom por te capazes de levar a cabo golpe de tal monta. Os únicos dignos de nota são os seguintes: Adolph Meyer, Great George Street, 13, Westminster; Louis La Rothi ere, Campden Mansions, Notting Hill , e Hugo Oberstein, Caulfield Gardens, 13, Kensington. Deste último sabe-se que esteve segunda-feira na cidade e que a deixou agora, com destino ignorado. Sinto-me satisfeito com a notícia de que vocêfinalmente conseguiu vislumbrar alguma luz. O gabinete aguarda com impaciência o seu relatór io final .As altas esferas insistem na máxima urgência. Todas as forças do Estado se encontr am àsua disposição, caso vocêvenha a necessitar delas.

Mycroft”.– Receio – disse Holmes, sorrindo – que todos os cavalheiros da rainha e todos os seus homens não

nos possam valer neste assunto.Estendeu sobre a mesa seu grande mapa topográfico de Londres e pôs-se a estudá-lo minuciosamente.

– Muito bem! – exclamou dali a instantes, dando mostras de satisfação. – O vento, por fim, começaa soprar a nosso favor. Ora, viva, Watson, acredito piamente que, no fim de contas, seremos bemsucedidos – acrescentou, dando-me uma palmada no ombro, num súbito acesso de bom humor.– Agora vou dar um giro. É um simples reconhecimento. Nada farei de importante sem estaracompanhado de meu fiel camarada e ilustre biógrafo. Espere-me aqui, pois, na pior das hipóteses,

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dentro de uma ou duas horas estarei de volta. Se o tempo lhe parecer demasiado longo, pegupapel e tinta e inicie a narrativa de como salvamos a pátria.

Senti-me invadido pelo seu bom humor, pois sabia perfeitamente que Holmes jamais abandonaria habitual austeridade de maneiras sem ter boas razões para isso. Aguardei com impaciência o seu regressdurante toda aquela infindável tarde de novembro. Finalmente, pouco depois das nove, apareceu-me umensageiro com o seguinte bilhete:

“Janto no Goldini , na Gloucester Road, Kensington.

Peço-lhe para vir ter comigo imediatamente.Traga um pé-de-cabra, uma lanterna fur ta-fogo, um escopro e um revólver.

S. H” .Belos apetrechos para um cidadão respeitável levar consigo através de ruas escuras, encobertas pe

nevoeiro! Ocultei-os debaixo do sobretudo e dirigi-me sem demora ao endereço indicado. Meu amigestava sentado a uma mesinha redonda, junto à porta do bizarro restaurante italiano.

– Já jantou? Então, faça-me companhia no café e num cálice de curaçau. Experimente os charutos dcasa. São menos mortíferos que os habituais. Trouxe os utensílios?

– Estão aqui, no sobretudo.– Ótimo. Deixe-me apresentar-lhe um resumo do que já fiz, acompanhado de certas instruções

respeito do que ainda vamos fazer. Primeiro, é preciso lembrar que o cadáver do jovem foi colocadna capota do vagão. Isso tornou-se evidente desde o instante em que compreendi que o corpo tinhcaído dela, e não do interior da carruagem.

– Não poderia ter sido atirado de uma ponte?– Sou capaz de jurar que isso seria impossível. Se você reparar nas capotas dos vagões, verá que sã

ligeiramente abauladas e não há o menor anteparo em redor. Podemos afirmar, portanto, quecorpo de Cadogan West foi colocado sobre a parte superior de um dos vagões.

– E como isso foi feito?– Essa é a pergunta a que devemos responder. Só existe uma possibilidade. Você sabe que os trens d

metrô correm fora das galerias subterrâneas em certos pontos do West End. Recordo-me vagamende ter observado, ao percorrer esses lugares, algumas janelas pouco acima de minha cabeçImaginando, pois, que um trem parasse exatamente debaixo de uma dessas janelas, haveria qualqudificuldade em depositar um cadáver sobre um dos vagões?

– A idéia parece-me de todo inverossímil.– Não devemos esquecer-nos do velho axioma de que, quando todas as outras hipóteses falham,

que resta, mesmo que seja improvável, deve traduzir a verdade. No caso presente, todas as demahipóteses são falhas. Quando descobri que o principal agente internacional, que acabava de deixLondres, morava numa fila de casas à margem da linha do metrô, fiquei tão satisfeito que você ssurpreendeu com a minha leviandade extemporânea.

– Ah! Era esse o motivo?– Exatamente. O sr. Hugo Oberstein, da Caufield Gardens, 13, tornou-se meu objetivo. Iniciei minh

operações na estação de Gloucester Road, onde um funcionário muito amável me acompanhou alongo da linha e me permitiu verificar não somente que as janelas da escada de serviço da CaulfieGardens se abrem sobre os trilhos, mas também que, fato ainda mais essencial, devido à intersecçãde uma das linhas mais importantes, os trens às vezes ficam retidos, durante vários minutoexatamente naquele ponto.

– Magnífico, Holmes! O caso está resolvido!– Calma, calma, Watson. Fizemos progressos; a meta, no entanto, ainda se encontra distante. Or

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depois de ter estudado os fundos da casa na Caulfield Gardens, dirigi-me à parte da frente e convenci-me de que o pássaro tinha realmente batido a linda plumagem. A casa é espaçosa, mas, pelo quepude ver, está vazia no andar superior. Oberstein morava ali com um único criado, provavelmentecúmplice de inteira confiança. Devemos lembrar-nos de que Oberstein partira para o continentecom o fito de negociar sua presa, não com a idéia de fugir. Não tinha razões para temer um mandadode prisão, nem jamais lhe teria passado pela cabeça a possibilidade de uma busca domiciliar porparte de um policial amador. Contudo, é precisamente isso o que vamos fazer.

– Não poderíamos obter um mandado e legalizar a busca?– Impossível, diante da falta de provas.– Que esperanças podemos alimentar?– Talvez a correspondência que houver lá dentro...– A coisa não me cheira bem, Holmes.– Caro companheiro, você ficará de guarda à rua; eu me encarregarei da parte delituosa. Não é ocasião

para hesitar diante de ninharias. Pense no bilhete de Mycroft, no Almirantado, no ministério, na altapersonalidade que aguarda notícias. Precisamos agir.

Minha resposta foi erguer-me da mesa.– Tem razão, Holmes, devemos agir.

Ele levantou-se de súbito e apertou-me a mão.– Sabia que não iria abandonar-me no último momento – disse-me.

Por um instante vi em seus olhos algo insólito, que chegava a parecer ternura; quase imediatamente,porém, voltou a ser o homem prático e autoritário de sempre.

– Temos cerca de oitocentos metros de caminho, mas não há pressa. Vamos a pé. Cuidado para nãodeixar cair os instrumentos. Sua prisão como pessoa suspeita traria complicações desastrosas!

 A Caulfield Gardens era constituída de uma dessas fileiras de casas de fachada lisa, com pórtico e pilares,produto característico dos meados da época vitoriana, no coração do West End de Londres. Na casa vizinhaà que procurávamos parecia haver uma festa de

crianças, pois através da noite ressoavam umalegre burburinho de vozes infantis e os acordesde um piano. O nevoeiro continuava espesso eprotegia-nos como uma sombra amiga. Holmesacendeu a lanterna e dirigiu o jato de luz para apesada porta.

– Eis um obstáculo difícil de transpor – eledisse. – Além de fechada à chave, deveter uma tranca. Creio que seremos maisbem sucedidos nos fundos da casa. Háuma excelente arcada lá embaixo, sob aqual poderemos ocultar-nos no caso deum policial demasiado zeloso vir nosinterromper. Ajude-me a saltar o muro,Watson, e farei o mesmo por você.

Um minuto depois encontrávamo-nos no pátio.Mal alcançáramos a sombra, ouvimos os passosde um policial ecoarem na névoa. Logo que o ritmocadenciado morreu ao longe, Holmes tentou abrir

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a porta inferior. Vi-o curvar-se e empurrar até que esta, com um estalido seco, se escancarou. Precipitamnos através da escura passagem, fechando a porta do pátio atrás de nós. Holmes precedia-me na escadcurva e desprovida de passadeira. O pequeno jorro de luz amarelada da lanterna projetou-se sobre um janela baixa.

– Aqui está, Watson... deve ser esta. Abriu-a e ouvimos de súbito um murmúrio abafado, áspero, que foi aumentando progressivamente até

transformar num estrondo fragoroso: era um trem que passava por nós na escuridão. Holmes percorre

com a luz da lanterna o peitoril da janela. Estava coberto da fuligem vomitada pelas locomotivas em trânsitContudo, a superfície negra estava apagada e raspada em alguns pontos.

– Pode se ver onde apoiaram o cadáver. Veja, Watson! O que é isto? Trata-se, sem dúvida, de manchde sangue – afirmou, apontando para leves sinais descoloridos ao longo do caixilho da janela.Ficaram impressas também na pedra da escada. A demonstração é completa. Esperemos aqui aque um trem pare.

 A demora não foi grande. O trem seguinte surgiu com estrondo na galeria, como o outro, mas retardoumarcha no espaço aberto e, em seguida, com um ranger de freios, parou exatamente debaixo de nós. Dparapeito da janela até a capota dos vagões a distância não chegava a um metro e vinte. Holmes cerrou janela sem fazer ruído.

– Até aqui nossa hipótese está comprovada – observou. – Que pensa de tudo isso, Watson?– É sua obra-prima. Jamais você se elevou a maior altura.– Nesse ponto discordo de você. Desde o momento em que deduzi que o corpo fora colocado sob

a capota, intuição, aliás, fácil de compreender, o resto era inevitável. Se não fossem os graves intresses que o envolvem, o caso até aqui seria insignificante. Nossas dificuldades, porém, ainda nãforam superadas. Todavia, talvez encontremos nesta casa algo que nos possa auxiliar.

Tínhamos subido a escada de serviço e entráramos no apartamento do primeiro andar. Era constituído duma série de aposentos: a sala de jantar, sobriamente mobiliada, nada continha de interessante. O segundaposento, um quarto, apresentava-se nas mesmas condições. A sala restante, porém, parecia mais promi

sora, e meu companheiro preparou-se para fazer ali uma busca em regra. Estava repleta de livros e papéisevidentemente era utilizada como escritório. Rápida e meticulosamente, Holmes revistou o conteúdo dtodas as gavetas e armários, mas nenhuma luz indicadora de êxito veio iluminar-lhe o rosto austero. Ao cabde uma hora de trabalho, não tinha feito progresso algum.

– Aquele velhaco apagou todos os rastros – disse. – Nada deixou que o incriminasse. Destruiu oremoveu toda a correspondência comprometedora. Esta é nossa última esperança.

Era um pequeno cofre de ferro que se encontrava sobre a escrivaninha. Holmes abriu-o com o auxíldo escopro. Continha vários rolos de papel cobertos de cifras e cálculos, sem a menor indicação, porémdo assunto a que se referiam. A repetição das palavras ‘pressão da água’ e ‘pressão por polegada quadradsugeria uma possível relação com um submarino. Holmes pô-las de lado com ar impaciente. Restavapenas um envelope que encerrava pequenos recortes de jornal. Deixou-os cair sobre a mesa e, de súbitcompreendi pela expressão de seu rosto que suas esperanças se haviam reavivado.

– O que é isto, Watson? Hem? O que é isto? Recortes de uma série de mensagens insertas na seçãde anúncios de um jornal. Os tipos e o papel parecem indicar o Daily Telegraph. Ângulo superidireito da página. Nenhuma data... mas é fácil pô-los em ordem. Este deve ser o primeiro:

“Esperava receber notícias mais cedo. Concordo com as exigências.Escreva pormenor izadamente para o endereço contido no car tão.

– Pierrot”.– Eis o seguinte:

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“Demasiado complexo para descrevê-lo. Necessito relatóri o completo.O pagamento ser-lhe-á feito logo após a entrega da mercador ia.

– Pierrot”.– Agora vem este:

“Negócio urgente. Preciso retirar oferta, a não ser que o contrato seja inteir amente executado. Marque encontro por carta. Conf irmarei por anúncio.

– Pierrot”.

– E finalmente:“Segunda-feira, ànoi te, depois das nove. Duas pancadas. Apenas nós dois.Não seja tão desconfiado. Pagamento àvista na entrega da mercador ia.

– Pierrot”.– Uma cadeia absolutamente sem falhas, Watson! Se conseguíssemos ao menos descobrir quem está

na outra ponta!Sentou-se, mergulhado em seus pensamentos, tamborilando com as pontas dos dedos na mesa. Por fim,

levantou-se repentinamente.– Ora, afinal de contas, talvez não seja assim tão difícil. Nada mais nos resta a fazer aqui, Watson.

 Acho melhor darmos um pulo até o Daily Telegraph e encerrarmos nosso dia de trabalho.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Mycroft Holmes e Lestrade compareceram no dia seguinte, após a refeição matinal, ao encontro quetínhamos marcado, e Sherlock Holmes colocou-os a par das nossas atividades do dia anterior. O homem daScotland Yard sacudiu a cabeça ao ouvir o relato de nossa violação de domicílio.

– Não podemos usar esses meios, sr. Holmes – resmungou. – Não admira que obtenha resultadossuperiores aos nossos. Entretanto, qualquer dia o senhor pode ultrapassar os limites e meter-se emapuros, juntamente com seu amigo.

– Pela Inglaterra, a terra natal e a beleza. Que tal, Watson? Imolados no altar da pátria! Mas o que vocêpensa de tudo isso, Mycroft?

– Ótimo, Sherlock! Simplesmente admirável! Mas o que pretende fazer?Holmes apanhou o Daily Telegraph de cima da mesa.– Viu a mensagem de hoje de Pierrot?– Como?! Outra?– Sim, ei-la.

“Hoje ànoi te. Mesma hora. Mesmo lugar. Duas pancadas.Assunto de importância vital. Sua própria segurança em jogo.

– Pierrot”.– Por Deus! – exclamou Lestrade. – Se ele for, nós o apanharemos!– Assim pensei ao mandar publicar o anúncio. Creio que, se puderem acompanhar-nos, por volta das

oito horas, à Caufield Gardens, poderemos aproximar-nos de uma solução.Uma das características mais notáveis de Sherlock Holmes era a faculdade de afastar as preocupações e

fixar o espírito em coisas de menor monta, quando se convencia de que não lhe era possível continuar atrabalhar com proveito. Lembro-me de que ele passou todo aquele memorável dia absorvido numa monografia,a qual se propusera escrever, sobre os Motetos polifônicos de Lassus [Orlandus Lassus, compositor belga,cujo verdadeiro nome era Roland Delattre, um dos maiores músicos do século XVI (NT)]. Quanto a mim, eracompletamente desprovido desse poder de abstração e, por conseguinte, as horas pareciam intermináveis. A enorme importância nacional do fato, a ansiedade reinante nos mais elevados círculos governamentais, aprópria natureza da experiência que íamos tentar – tudo concorria para me deixar os nervos em frangalhos.

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Senti um grande alívio quando, finalmente, após uma ligeira refeição, nos lançamos em nossa expediçãEncontramo-nos com Mycroft e Lestrade em frente à estação de Gloucester Road. A porta dos fundos dresidência de Oberstein tinha sido aberta na noite anterior e eu fui obrigado a entrar e abrir-lhes a dvestíbulo, pois Mycroft recusara-se, irredutível e indignado, a pular a grade de ferro. Às nove horas, estávmos todos sentados no escritório, esperando pacientemente o nosso homem.

Duas horas decorreram lentamente. Ao soar das onze, as badaladas vagarosas do grande relógio digreja próxima pareciam fazer submergir todas as nossas esperanças. Lestrade e Mycroft agitavam-s

impacientes em suas cadeiras e consultavam os próprios relógios duas vezes por minuto. Holmes mostrva-se silencioso e calmo, as pálpebras semi-cerradas, mas com todos os sentidos de sobreaviso. De repete, levantou a cabeça.

– Está chegando – murmurou.Passos furtivos ecoaram através da porta. Foram um pouco adiante e voltaram. Ouvimos um arrastar d

pés do lado de fora e, logo em seguida, dois golpes secos da aldrava. Holmes ergueu-se e fez-nos sinal papermanecermos sentados. O bico de gás do vestíbulo estava restringido ao mínimo. Abriu a porta da rua quando o vulto escuro deslizou à sua frente, voltou a fechá-la e trancou-a. ‘Por aqui’, ouvimo-lo dizer, e, logem seguida, o homem encontrava-se diante de nós. Holmes seguira-o de perto, e enquanto ele se voltavcom um grito de espanto, agarrou-o pelo pescoço e atirou-o para dentro da sala. Antes que o prisioneipudesse recuperar o equilíbrio, a porta estava fechada e Holmes postado diante dela. O homem lançou uolhar em torno de si, cambaleou e caiu sem sentidos no soalho. Com o choque, o chapéu de abas largavoou-lhe da cabeça e o cachecol deslocou-se, apresentando a nossos olhos a barba longa e rala e as feiçõesuaves e delicadas do coronel Valentine Walter.

Holmes soltou um assobio de surpresa.– Desta vez, você pode considerar-me um

asno, Watson – disse-me. – Não era este opássaro que eu esperava.

– Quem é? – perguntou, ansioso, Mycroft.

– O irmão mais novo do falecido sir JamesWalter, chefe do Departamento de Embar-cações Submarinas. Sim, sim; agoracomeço a entender. Ele está recuperandoos sentidos. Acho melhor deixarem ointerrogatório a meu cargo.

Tínhamos transportado o corpo exânime para osofá. Um momento depois nosso prisioneiro sen-tou-se, relanceou o olhar aterrorizado em redor epassou a mão pela testa, como se não pudesse acre-ditar nos próprios olhos.

– O que é isso? – perguntou. – Vim aqui fazeruma visita ao sr. Oberstein.

– Já sabemos de tudo, coronel Walter –respondeu Holmes. – Não posso compre-ender como um cidadão inglês tenha procedido dessa forma. No entanto, toda a correspondênce as relações que manteve em Oberstein são de nosso conhecimento. Sabemos também dacircunstâncias relativas à morte do jovem Cadogan West. Permita-me aconselhá-lo a atenuar a sufalta, arrependendo-se e fazendo uma confissão completa, pois ainda restam certas minúcias qu

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que é impossível copiá-los em pouco tempo’. ‘Mas devo levá-los de volta esta noite’, repliqueOberstein refletiu por alguns momentos e, depois, disse ter encontrado uma solução. ‘Ficarei coos três de que preciso. Poremos os outros nos bolsos deste rapaz. Quando for encontrado, certamenlhe atribuirão a culpa de tudo’. Eu não via outra saída, e por isso fizemos como ele tinha sugerid Aguardamos meia hora à janela até que um trem parasse. A densidade do nevoeiro punha-nossalvo de olhares indiscretos e não tivemos a menor dificuldade em depositar o corpo de West sobo vagão. Aí terminou o caso, no que me diz respeito.

– E seu irmão?– Nada disse, mas já me surpreendera uma vez mexendo em suas chaves e creio que desconfiava d

mim. Percebi-lhe a suspeita nos olhos. Como sabem, o escândalo deixou-o acabrunhado.Fez-se na sala um longo silêncio, interrompido afinal por Mycroft Holmes.

– Não poderia reparar o mal que fez? Isso lhe aliviaria a consciência e possivelmente atenuaria o secastigo.

– Como poderia fazer essa reparação?– Onde se encontra Oberstein com os documentos?– Não sei.– Não lhe deu nenhum endereço?– Disse-me que, se lhe escrevesse para o Hotel du Louvre, em Paris, as cartas, com toda a probabi

dade, lhe chegariam às mãos.– Então ainda há remédio – observou Sherlock Holmes.– Farei tudo o que puder. Não nutro a menor simpatia por Oberstein, que foi o causador da minh

desgraça.– Aqui tem papel e tinta. Sente-se a essa mesa e escreva o que vou ditar. Preencha o envelope com

endereço indicado. Muito bem. Vamos agora ao texto da carta:“Prezado senhor: Com referência ànossa transação, sem dúvida já terá notado que ainda fal ta nos 

planos um pormenor de grande impor tância. Possuo um desenho que os tornará compl etos. Para obtê-lo, porém, vi-me envolvido em ulteriores complicações, o que me força a pedir -lhe um novo adiantamento de quinhentas li bras. Não conf io na remessa do desenho pelo correio, e só aceitarei ouro ou notas como pagamento.Poderia ir ao seu encontr o; todavia, minha ausênci a do país, neste momento,suscitar ia suspeitas. Espero, por tanto, encontrá-la no salão de fumar do Char ing Cross Hotel, sábado, ao meio-dia. Lembre-se de que aceitarei uni camente papel- moeda inglês ou our o”.

– Isso será o bastante. Ficarei deveras surpreso se essa carta não trouxer nosso homem de volta.E trouxe-o de fato! É um episódio que já faz parte da história – da história secreta de uma nação, que

freqüentemente muito mais interessante do que suas crônicas públicas. Oberstein, ansioso por levar interamente a cabo o golpe mais brilhante de sua carreira, caiu na armadilha e acabou por cumprir uma pena dquinze anos numa prisão britânica. Em sua mala foram encontrados os inestimáveis planos do BrucPartington, que ele pusera a leilão em todos os centros navais da Europa.

O coronel Walter morreu no cárcere, ao final do segundo ano de sua sentença. Quanto a Holmes, regressocom novas forças à monografia sobre os Motetos polifônicos de Lassus, a qual foi lançada em edição limitade julgada pelos conhecedores como a última palavra a respeito do assunto. Soube incidentalmente, algumsemanas mais tarde, que meu amigo tinha passado um dia em Windsor, de onde voltou com um alfinete dgravata que ostentava uma magnífica esmeralda. Quando lhe perguntei se o tinha comprado, respondeu-m

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que lhe fora dado de presente por uma nobre dama, em cujo interesse tivera a fortuna de levar a bom termouma delicada missão. Não disse mais nada; creio, porém, ter adivinhado o nome da augusta senhora [A rainha Vitória (NT)], e estou certo de que aquele alfinete de esmeralda trará eternamente à memória de meuamigo a aventura dos planos do submarino Bruce-Partington.

O DETETIVE AGONIZANTE A sra. Hudson, senhoria de Sherlock Holmes, era uma criatura dotada de infinita paciência. Não só o seuapartamento do primeiro andar era continuamente invadido por legiões de pessoas de aspecto estranho emuitas vezes indesejáveis, mas seu extraordinário inquilino exibia uma extravagância e uma irregularidadede vida capazes de pôr à prova a sua resignação. O incrível desmazelo, a paixão pela música nas horas maisinsólitas, os exercícios ocasionais de tiro ao alvo no interior do apartamento, as fantásticas e geralmentemalcheirosas experiências científicas, e a atmosfera de violência e perigo que o rodeava, faziam de SherlockHolmes o pior pensionista de Londres. Por outro lado, no entanto, ele pagava um aluguel principesco, e nãotenho dúvidas de que todo o prédio poderia ser comprado com o dinheiro que Holmes pagou por seuapartamento durante o tempo em que vivi com ele.

 A pobre mulher tratava-o com a mais profunda reverência e jamais ousava interferir em sua conduta,por mais descabida que fosse. Dedicava-lhe também grande estima, pois Holmes usava, no trato com assenhoras, de gentileza e atenção fora do comum. Embora detestasse o sexo oposto e não tivesse a menorconfiança nele, fora sempre um adversário cavalheiresco. Sabendo como era sincera a amizade que estasenhora lhe dedicava, ouvi atenta e ansiosamente a narrativa que ela veio fazer-me em meu apartamento,no segundo ano de minha vida de homem casado, e com a qual me pôs a par do triste estado a que meuamigo estava reduzido.

– Ele está à morte, Dr. Watson – disse-me. – Há três dias que piora a olhos vistos, e não sei seconseguirá resistir até a noite. Não quis deixar-me chamar um médico. Hoje de manhã, quando lhe

vi o rosto encovado e aqueles enormes olhos brilhantes fitando-me, não pude resistir mais. ‘Comsua licença ou sem ela, sr. Holmes, vou chamar um médico imediatamente’, disse-lhe eu. ‘Se éassim, chame Watson’, res-pondeu. Se estivesse em seulugar, doutor, não perderiatempo, caso queira encontrá-locom vida.

Fiquei horrorizado, pois nada sabiade sua doença. É inútil dizer que meapressei a pôr o sobretudo e o chapéu,e, enquanto íamos no carro, solicitei àboa criatura outros pormenores.

– Pouco lhe posso dizer, dou-tor. Ele andava ocupado numcaso lá para as bandas deRotherhithe, numa viela juntoao rio, e voltou com essa molés-tia. Caiu de cama na quarta-feira à tar-de e desde então tem permanecido deitado.

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Há três dias que não prova líquido ou alimento algum.– Santo Deus! Por que não chamou um médico?– Ele não o permitiu, já lhe disse. O senhor sabe como ele é autoritário! Mas não lhe resta mui

tempo de vida, como verá logo que lhe puser os olhos em cima.Holmes oferecia realmente um espetáculo confrangedor. Na luz incerta daquele dia nevoento de novembr

o quarto do doente era um lugar triste, mas foi principalmente seu rosto lívido e descarnado, fitando-me dleito, que me gelou o coração. Os olhos luziam devido à febre, havia no rubor das faces sinais de exaustã

progressiva do organismo, e crostas escuras denegriam-lhe os lábios; as mãos exangues contraíam-sincessantemente sobre o cobertor e a voz era áspera e entrecortada. Jazia inerte na cama quando entrecontudo, minha presença fez emanar de seus olhos um brilho de lucidez.

– Olá, Watson! Parece que a coisa vai mal – disse-me num fio de voz, na qual se percebiam aindtraços do antigo tom despreocupado.

– Meu caro amigo! – exclamei, dirigindo-me a ele.– Não se aproxime! Não se aproxime! – bradou, na voz cortante e imperiosa que só lhe ouvira e

ocasiões de grande perigo. – Se chegar perto de mim, Watson, serei constrangido a fazer com quse retire desta casa.

– Mas por quê?– Porque assim o desejo. Não lhe basta isso?

Sim, a sra. Hudson tinha razão. Estava mais autoritário que nunca; todavia, era triste vê-lo naquele estad– Desejava apenas ajudá-lo – murmurei.– Exatamente! Você me será muito mais útil se fizer o que estou dizendo.– É claro, Holmes.

 A rispidez de suas maneiras abrandou.– Você não ficou aborrecido? – perguntou ofegante.

Pobre amigo, como poderia ficar aborrecido, vendo-o reduzido a tal condição?– É para o seu próprio bem, Watson – rouquejou.

– Para o meu próprio bem?– Sei o que tenho. É a chamada moléstia dos cules de Sumatra, enfermidade que os holandeseconhecem melhor do que nós, apesar de não terem conseguido remédio contra ela. Só uma coisacerta: é mortal e terrivelmente contagiosa.

Falava com uma energia febril, enquanto suas longas mãos se agitavam e torciam na ânsia de me afasta– Transmite-se pelo simples contato, Watson... pelo simples contato. Conserve-se à distância e tud

estará bem.– Por Deus, Holmes! Você julga que eu posso tomar isso em consideração? Não o faria nem mesm

no caso de um estranho, quanto mais quando se trata de cumprir meu dever para com um velhamigo.

Fiz de novo menção de me avizinhar, mas ele repeliu-me com um olhar furioso de cólera.– Se você ficar onde está, falarei. Caso contrário, terá de sair deste quarto.

Tenho um respeito tão profundo pelos dotes extraordinários de Holmes que costumo sempre ceda seus desejos, ainda quando não os compreendo. Nesse momento, porém, todo o meu instintprofissional se insurgia. Podia aceitar suas ordens em qualquer outro lugar, mas, num quarto de doentquem mandava era eu.

– Holmes – disse-lhe –, você está fora de si. Um homem enfermo é como uma criança, e eu o tratarcomo tal. Queira ou não queira, vou examinar os seus sintomas e tratar de curá-lo.

Meu amigo lançou-me um olhar irritado:

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– Já que preciso dos serviços de um médico, ainda que contra a minha vontade, permita-me ao menoschamar um no qual eu deposite confiança.

– Então você não confia em mim?– Em sua amizade, certamente; contudo, fatos são fatos, Watson, e, afinal de contas, você não passa

de um simples clínico com experiência muito limitada e dotes medíocres. É doloroso ter de lhedizer estas coisas, mas você não me dá outra alternativa.

Senti-me profundamente magoado.

– Tal observação é indigna de você, Holmes. Ela revela claramente o estado de seus nervos. Todavia,se não tem confiança em mim, não lhe imporei meus serviços. Deixe-me então chamar sir JasperMeek ou Penrose Fisher, ou outro qualquer dos melhores médicos de Londres. Mas alguém precisaser chamado; quanto a isso, não há dúvida. Se pensa que vou ficar aqui vendo-o morrer, sem cuidarde você ou trazer alguém que o faça, engana-se redondamente.

–  Acredito em suas boas intenções, Watson – disse o enfermo, entre um soluço e um gemido. – Querque lhe demonstre sua ignorância? O que sabe você, por exemplo, a respeito da febre de Tapanuli?Que noções tem da putrefação negra de Formosa?

– Nunca ouvi falar nelas.– Existem muitas doenças desconhecidas, e ignoram-se muitos problemas patológicos com relação

ao Oriente, Watson.Interrompia-se a cada frase, a fim de recobrar as poucas forças que lhe restavam.

– Aprendi tudo no decurso de recentes pesquisas de caráter médico-legal. Contraí esta infecção quandome encontrava empenhado nelas. Você não poderá fazer nada.

– Talvez não; mas sei que o Dr. Ainstree, a maior autoridade viva em doenças tropicais, está atual-mente em Londres. Qualquer objeção de suaparte será inútil, Holmes. Vou buscá-la imedia-tamente – retorqui-lhe, dirigindo-me, resoluto,para a porta.

 Jamais experimentei tamanho choque. Num abrir efechar de olhos, o moribundo, com um salto tigrino, tinha-me interceptado o caminho. Ouvi o estalido de uma chavegirando na fechadura. Um momento depois ele tinharegressado cambaleante à cama, exausto e arquejante,após tão violento desperdício de energia.

– Não me tirará esta chave nem à força, Watson.Tenho-o em meu poder, caro amigo, e aqui ficaráaté eu resolver o contrário. No entanto, compre-endo a sua atitude para comigo. – Tudo isso foidito aos arrancos, entre esforços terríveis paratomar fôlego. – Sei que deseja unicamente o meubem. Percebo-o com clareza. Poderá fazer o quequiser depois; antes, porém, dê-me tempo pararecuperar as forças. Agora não, Watson, agoranão. São quatro horas. Às seis poderá ir.

– Mas isso é uma loucura, Holmes.– Somente duas horas, Watson. Prometo deixá-la

partir às seis. Quer esperar?

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– Quantas meias-coroas?– Cinco.– Ah! Muito poucas! Muito poucas! Que infelicidade a minha, Watson! Apesar de tudo, é melhor pô-

las no bolsinho do colete, e o resto de dinheiro no bolso esquerdo das calças. Obrigado. Issomanterá melhor o seu equilíbrio.

Era puro delírio. Holmes estremeceu e deixou escapar novamente dos lábios aquele ruído, misto detosse e soluço.

– Agora acenda o gás, Watson, mas tenha muito cuidado em não levantar a chama, nem por uminstante, acima da metade normal. Peço-lhe para agir com cautela. Obrigado, assim está ótimo.Não, não precisa fechar as cortinas. Faça o favor de colocar algumas cartas e jornais sobre estamesa, ao meu alcance. Obrigado. Agora um pouco daquelas quinquilharias que estão no consolo dalareira. Ótimo, Watson! Encontrará aí uma pinça para cubinhos de açúcar.“Queira pegar com ela essa caixinha de marfim. Ponha-a aqui entre os jornais. Muito bem! Agorapode ir buscar o sr. Culverton Smith no número 13 da Lower Burke Street”.

Para dizer a verdade, meu desejo de chamar um médico diminuíra, pois meu amigo estava num estadovisível de delírio, e me parecia perigoso abandoná-lo naquele instante. Todavia, mostrava-se agora ansiosopor consultar a pessoa indicada, sem embargo de sua relutância anterior.

– Nunca ouvi tal nome – respondi.– É provável, meu bom Watson. Talvez fique surpreendido ao saber que a pessoa mais versada nesta

moléstia, no mundo, não é um médico, mas um lavrador. O sr. Culverton Smith é um ilustre fazendeirode Sumatra, atualmente de visita a Londres. Um surto epidêmico da doença em sua propriedade,distante de qualquer auxílio médico, forçou-o a estudá-la por conta própria, com resultados notáveis.Como é criatura muito metódica, não queria que você fosse procurá-lo antes das seis, pois tinha acerteza de que não o encontraria em casa. Se conseguir convencê-lo a vir aqui e conceder-nos obenefício de sua experiência, única no campo desta doença, cujo estudo tem sido seu passatempofavorito, estou certo de que ele poderá curar-me.

Reproduzi as palavras de Holmes como se tivessem sido pronunciadas consecutivamente, sem explicarque eram interrompidas por súbitas faltas de ar e pelo contínuo contrair das mãos, que indicavam o sofri-mento pelo qual estava passando. Naquelas poucas horas, seu aspecto piorara bastante. A vermelhidão dorosto era ainda mais pronunciada, os olhos luziam com maior brilho na concavidade das órbitas escuras, eum suor gélido cobria-lhe a fronte. Ainda conservava, contudo, o tom de voz imperioso que havia deacompanhá-lo até o último alento.

– Conte-lhe exatamente como me deixou – disse. – Transmita-lhe com fidelidade a impressãoproduzida por mim em seu espírito... a de um moribundo... um moribundo delirante. Francamente,não consigo compreender por que razão todo o leito do oceano não se tornou uma única massacompacta de ostras, tão prolíficas me parecem essas criaturas. Oh! Estou divagando. É estranhocomo o cérebro controla o cérebro. Que dizia eu, Watson?

– Dava-me instruções para falar com o sr. Culverton Smith.–  Ah! Sim; lembro-me agora. Minha vida depende disso. Insista com ele. Não estamos em muito

boas relações. O sobrinho dele... eu suspeitava de algo criminoso e contei-lhe isso. O rapazmorreu em condições horríveis. Ele nutre certo rancor por mim. Procure abrandá-lo, Watson. Seique não falhará, pois jamais me desiludiu. Existem, sem dúvida, inimigos naturais que limitam oaumento desses moluscos. Você e eu, Watson, fizemos a nossa obrigação. Será, então, o universosubmergido pelas ostras? Não, não; seria monstruoso! Você transmitirá fielmente a impressãoque produzi em seu espírito.

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Deixei-o com a dolorosa impressão daquele esplêndido cérebro proferindo disparates como uma criançTinha-me entregado a chave e apressei-me a guardá-la comigo, receoso de que ele se trancasse por dentr A sra. Hudson esperava no corredor, trêmula e chorosa. Ao descer as escadas ainda ouvi a voz agudapenetrante de Holmes a expandir-se numa canção desconexa. Na rua, enquanto chamava um carro, uhomem dirigiu-se a mim através do nevoeiro.

– Como passa o sr. Holmes, doutor? – indagou.Era um velho conhecido, o inspetor Morton, da Scotland Yard, vestido à paisana.

– Muito mal – respondi.Ele fitou-me de maneira tão singular que, se não fosse demasiado perverso, diria ter-lhe lobrigado n

rosto, à luz tênue do lampião, um lampejo de alegria.– Ouvi falar nisso – observou.

Entretanto, o carro chegou e nós nos separamos. A Lower Burke Street era um conjunto de lindas casas residenciais situadas no vago limite entre Nottin

Hill e Kensington. O carro parou em frente a uma casa que apresentava um aspecto sóbrio e uma delicadimponência, com suas grades de ferro antiquadas, sua porta maciça e seus luzentes ornatos de bronze. Tudisso condizia com o solene mordomo que surgiu, enquadrado na rósea claridade de uma lâmpada coloridpendente do vestíbulo.

– O sr. Culverton está, sim, senhor. Dr. Watson? Muito bem. Levar-lhe-ei seu cartão.Meu humilde nome e meu título não pareceram impressionar o sr. Culverton Smith. Através da port

entreaberta, ouvi uma voz aguda e petulante:– Quem é esse sujeito? O que ele quer? Com mil

demônios, Staples, quantas vezes já lhe disse quenão desejo ser perturbado nas minhas horas deestudo?

Percebi a voz do mordomo, submissa, gaguejandodesculpas e explicações.

– Não importa, não posso recebê-lo, Staples. Nãoadmito que o meu trabalho seja interrompidodesta maneira. Diga-lhe que não estou em casa.Que volte amanhã de manhã, se de fato desejafalar comigo.

Novamente o mesmo murmúrio respeitoso.– Está bem, está bem, dê-lhe meu recado. Pode vir

amanhã de manhã, se quiser. Meu trabalho nãopode ser retardado.

Pensei em Holmes debatendo-se em seu leito deenfermo e talvez contando inquieto os minutos, naexpectativa de que eu pudesse levar-lhe socorro. A ocasião não era para cerimônias. Sua vida dependia daminha presteza de ação. Antes que o mordomo metivesse transmitido o recado, eu o empurrara para o ladoe irrompera na sala.

Com um grito estridente de cólera, um homemlevantou-se de uma poltrona, ao pé da lareira. Vi à minhafrente um enorme rosto queimado de sol, com uma pele

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grosseira e untuosa, vasto queixo duplo e olhos cinzentos, sombrios e ameaçadores, fitando-me sob asespessas sobrancelhas grisalhas. O largo crânio estava coberto por um barrete de veludo, posto elegantementede lado sobre a superfície rosada e luzidia. A cabeça era descomunalmente grande, e todavia, baixando oolhar, vi, para minha surpresa, que a figura do homem era pequena e frágil, de ombros e costas torcidoscomo os de alguém que na infância tivesse sofrido de raquitismo.

– Que história é essa? – bradou em voz estentórea. – Que significa essa intrusão? Não lhe tinhamandado dizer que só poderia recebê-lo amanhã?

– Sinto muito – respondi –, trata-se, porém, de um assunto inadiável. O sr. Sherlock Holmes... A simples menção do nome de meu amigo produziu extraordinário efeito no homenzinho. A expressão

de cólera desapareceu-lhe imediatamente do rosto. Sua fisionomia tornou-se tensa e vigilante.– Vem da parte de Holmes? – indagou.– Acabo de deixá-lo.– Que aconteceu? Como está ele?– Acha-se gravemente enfermo, em estado desesperador. Eis por que vim procurá-lo.

O homem fez sinal para que me sentasse e voltou a acomodar-se na poltrona. Nesse momento vislumbrei-lhe o rosto, refletido no espelho que se encontrava sobre o consolo da lareira. Teria jurado ler nele umsorriso maligno, odioso. Todavia, convenci-me de que fora apenas o efeito de alguma contração nervosa,pois logo em seguida encarou-me com ar de sincera preocupação.

– Lamento-o muito – disse ele. – Conheço o sr. Holmes apenas através de certos negócios em queestivemos empenhados, mas nutro o máximo respeito por seu talento e caráter. Ele é um curioso docrime, como eu o sou das moléstias. Para ele, o delinqüente, para mim, o micróbio. Eis as minhasprisões – continuou, indicando-me uma fileira de frascos e tubos que se encontravam sobre umamesinha. – Nesses meios de cultura cumprem pena alguns dos piores malfeitores do mundo.

– É exatamente por causa dos seus conhecimentos especializados que Holmes deseja vê-lo. Ele o temem alto conceito; julga ser o senhor o único homem em Londres que pode salvá-lo.

O homenzinho estremeceu e seu elegante barrete escorregou para o chão.

– Como? – perguntou. – Por que acredita o sr. Holmes que eu o possa socorrer na contingência emque se encontra?– Por causa de sua experiência no tocante a doenças tropicais.– Mas por que ele julga que a moléstia que contraiu é de origem tropical?– Porque no decurso de certa investigação profissional recente, esteve trabalhando nas docas entre

marinheiros malaios.O sr. Culverton Smith sorriu benevolamente e apanhou o barrete do chão.

– Ah? É isso? Vai ver que a coisa não é tão grave como pensa. Há quanto tempo está doente? –indagou.

– Há cerca de três dias.– Tem sido acometido de delírios?– De vez em quando.– Hum! Isso me parece grave. Seria desumano não atender ao seu pedido. Não tolero que ninguém

me interrompa nas horas de trabalho, Dr. Watson, mas este é, sem dúvida, um caso excepcional.Num minuto estarei pronto para acompanhá-lo.

Lembrei-me de uma recomendação de Holmes.– Neste momento tenho outro compromisso – repliquei.– Está bem; irei sozinho. Sei o endereço de Holmes. Pode ficar certo de que estarei lá no máximo

dentro de meia hora.

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Regressei ao quarto de Holmes com o coração apertado no peito. Por tudo quanto me era dado sabereceava que durante minha ausência tivesse sobrevindo algum acesso fatal; no entanto, para meu grandalívio, ele melhorara sensivelmente durante esse intervalo. Seu aspecto ainda era impressionante, mas não delirava e podia falar, com voz fraca, é verdade, mas com uma lucidez e uma presença de espíritmaiores que de costume.

– Então, Watson, falou com ele?– Falei; já deve estar a caminho.

– Magnífico, Watson! Magnífico! Você é o melhor dos mensageiros.– Ele queria vir comigo.– Isso não seria possível, Watson. Seria preciso impedi-lo a todo custo. Ele perguntou o que eu tinh– Sim; falei-lhe a respeito dos marinheiros malaios do East End.– Muito bem! Fez tudo o que um bom amigo poderia fazer. Agora pode desaparecer de cena.– Mas devo esperar para ouvir a opinião dele, Holmes!– Está certo; contudo, tenho motivos para supor que a sua opinião será mais franca e valiosa se ele

 julgar a sós comigo. Há espaço suficiente para se esconder atrás da cabeceira da cama.– Meu caro Holmes!– Creio não haver outro remédio, Watson. O quarto não se presta para alguém se esconder e por iss

mesmo não dá margem a suspeitas. Contudo, aí atrás, Watson, ficará bem.Subitamente, sentou-se na cama, demonstrando uma viva atenção na fisionomia descarnada.

– Ouço o barulho de rodas de carro. Depressa, homem, se me quer bem! E não se mexa, aconteçaque acontecer... aconteça o que acontecer, ouviu? Não fale! Não faça o menor gesto! Limite-seescutar com toda a atenção.

Num instante, todo aquele inesperado acesso de energia o abandonou como por encanto, e suas palavrdominadoras e autoritárias perderam-se nos murmúrios desconexos e ininteligíveis do delírio.

Do esconderijo para onde eu fora empurrado com tanta pressa, ouvi o soar de passos na escada e, eseguida, o abrir e fechar da porta do quarto. Depois, para minha surpresa, seguiu-se longo silêncio

interrompido apenas pela respiração irregular e ofegante do enfermo. Imaginei que nosso visitante estvesse de pé, ao lado do leito, olhando para a figura sofredora de meu amigo. Finalmente, quebrou-seestranho silêncio.

– Holmes! – exclamou o recém-chegado, no tom peremptório de quem procura acordar alguém.Holmes! Não está me ouvindo, Holmes?

Ouviu-se um roçar de panos, como se ele o houvesse sacudido rudemente pelos ombros.– É o sr. Smith? – sussurrou Holmes. – Quase não ousava esperar que viesse.

O outro riu.– Nem eu teria imaginado – redargüiu. – No entanto, como vê, estou aqui. Deve estar sentindo remors

Holmes...– É muita bondade de sua parte... muita nobreza ter vindo. Prezo muito o valor dos seus conheciment

especializados.Nosso visitante deu uma risadinha sarcástica.

– Bem sei. Felizmente, você é o único homem em Londres que tem conhecimento deles. Já sabeque tem?

– A mesma coisa – respondeu Holmes.– Ah! Reconhece os sintomas?– Sem dúvida.– Ora, isso não me surpreende, Holmes. Não me espantaria se se tratasse da mesma moléstia. Se fo

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– Estou desfalecendo... vou morrer!– Escute, Holmes!

Tive a impressão de que ele sacudia o moribundo, e foi a custo que me contive em meu esconderijo.– Precisa me ouvir. Precisa me ouvir, entendeu? Recorda-se de uma caixinha... uma caixinha de marfim

Chegou na quarta-feira. Você a abriu... lembra-se?– Sim, eu a abri. Havia dentro uma agulha movida por uma mola forte. Algum jogo...– Não era jogo, como verá à sua própria custa. Idiota, procurou sua própria ruína. Quem o mando

atravessar-se em meu caminho? Se me tivesse deixado em paz, não lhe teria feito mal algum.– Lembro-me agora – articulou Holmes com dificuldade. – A agulha! Saiu sangue. Essa caixinha...

em cima da mesa.– Exatamente essa, com os diabos! E será melhor que eu a leve comigo. Assim se vai a sua últim

esperança de prova. E agora que já sabe da verdade, Holmes, pode morrer ciente de que eu o mateVocê sabia demasiado a respeito do destino de Victor Savage, e por isso resolvi mandá-lo fazer-lhcompanhia. Seu fim está muito próximo. Vou sentar-me aqui para vê-lo morrer.

 A voz de Holmes se transformara num sussurro quase inaudível.– Que quer? – perguntou Smith. – Que aumente a chama do gás? Ah! As sombras já começam a ca

não é? Sim, vou aumentá-la, pois assim poderei vê-lo melhor.Ele atravessou o quarto, e a luz, de súbito, tornou-se mais viva.

– Mais alguma coisa, meu amigo?– Um cigarro e fósforos.

Por verdadeiro milagre não gritei de alegria, tal foimeu assombro. Holmes falava em sua voz natural... umpouco fraca, talvez, porém a mesma que eu tão bemconhecia. Seguiu-se uma longa pausa, e tive a sensaçãode que Culverton Smith fitava o meu companheiro,imobilizado de espanto.

– Que significa isso? – ouvi-o dizer por fim, emtom seco e rouco.– O melhor meio de representar com êxito um

papel é identificar-se com ele – disse Holmes. –Dou-lhe minha palavra de honra que há três diasnão provava nem comida nem bebida, até o mo-mento em que teve a gentileza de me dar aque-le copo de água. Entretanto, foi do fumo quemais senti falta! Ah! Cá estão os cigarros!

Ouvi o ruído de um fósforo sendo riscado.– Assim está muito melhor. Parece-me distinguir

os passos de um amigo.De fato, ouviu-se um rumor de passos do lado de

fora; a porta abriu-se e o vulto do inspetor Morton surgiuno limiar.

– Está tudo em ordem, e aí tem seu homem... –disse Holmes.

O policial fez os avisos de costume e concluiu:– O senhor está preso sob a acusação do homicídio de Victor Savage.

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– E poderá acrescentar: da tentativa de assassinato de Sherlock Holmes – observou meu amigo comuma risadinha. – A fim de evitar trabalho a um inválido, o sr. Culverton Smith teve a bondade de daro nosso sinal convencionado, aumentando a chama do gás. A propósito, o prisioneiro tem umacaixinha no bolso direito do casaco, a qual seria melhor retirar. Obrigado. Se eu fosse o senhor, teriao maior cuidado ao pegá-la. Ponha-a aqui. Poderá ser útil no processo.

Houve um rumor súbito de luta, acompanhado de um tilintar de metais e de um grito de dor.– O senhor quer se machucar? – perguntou o inspetor. – Faça o favor de ficar quieto.

Chegou aos meus ouvidos o estalido das algemas que se fechavam.– Bela armadilha! – gritou a voz aguda e zombeteira de Smith. – Isso o levará à cadeia, Holmes, não a

mim. Ele pediu-me que viesse aqui para tratar dele. Compadeci-me dele e vim. Agora, certamente,irá afirmar que eu disse alguma coisa inventada por ele, a fim de corroborar as suas insensatassuspeitas. Pode mentir o quanto quiser, Holmes. Minha palavra vale o mesmo que a sua.

– Santo Deus! – exclamou Holmes. – Tinha-o esquecido completamente. Meu caro Watson, devo-lhe mil desculpas. E pensar que pude esquecer-me dele! Não tenho necessidade de apresentá-loao sr. Culverton Smith, pois já se encontraram há algumas horas. Há um carro à espera lá embaixo?Eu o acompanharei assim que me vestir, pois talvez a minha presença seja necessária no postopolicial.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .–  Jamais senti tanta falta disto – continuou Holmes, enquanto se reconfortava, nos intervalos de sua

toalete, com um copo de clarete e alguns biscoitos. – Todavia, como sabe, meus hábitos sãoirregulares, e esse acontecimento significa muito menos para mim do que para a maioria doshomens. Era-me essencial impressionar a sra. Hudson, dando ao meu estado imaginário umaaparência efetiva de realidade, a fim de que você, por sua vez, o transmitisse a Smith. Não ficouofendido, não é mesmo, Watson? Deve reconhecer perfeitamente que, entre os seus numerososdotes, não se encontra a dissimulação, e que, se lhe revelasse o meu segredo, jamais seria capazde convencer Smith da urgente necessidade de sua presença aqui, circunstância de vital importância

para o meu plano. Sabendo de sua natureza vingativa, tinha plena certeza de que viria, a fim deverificar pessoalmente o êxito de sua obra.– Mas seu aspecto, Holmes... aquele rosto espectral?– Três dias de jejum absoluto não melhoram a beleza de ninguém, Watson. Quanto ao resto, não há

nada que uma boa esponja não possa limpar. Com um pouco de vaselina na testa, beladona nosolhos, carmim nas faces e crostas de cera nos lábios obtêm-se efeitos satisfatórios. A simulação dedoenças é assunto a respeito do qual, mais de uma vez, já pensei em escrever uma monografia. Ecertas divagações ocasionais a propósito de meias-coroas, ostras ou outra coisa qualquer produzemuma aceitável aparência de delírio.

– Mas por que não deixou que eu me aproximasse de você, quando na realidade não havia perigo deinfecção?

–  Ainda o pergunta, Watson? Imagina que não tenho respeito pelo seu talento médico? Acha quevocê, com seu astuto raciocínio, se deixaria enganar por um moribundo que, apesar de fraco, nãoapresenta alteração alguma no pulso ou na temperatura? A três metros de distância, era-me fácililudi-lo. Se não o conseguisse, quem iria fazer com que meu Smith caísse na armadilha? Não,Watson, eu não tocaria nessa caixinha. Poderá ver, se a observar de lado, o ponto em que a agulhase projeta para fora, como um dente de víbora. Creio que foi por meio de um estratagema análogoque o pobre Savage, único obstáculo entre esse monstro e uma herança, encontrou a morte.Minha correspondência, porém, como sabe, é muito variada, e estou sempre em guarda contra

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todos os pacotes que me vêm ter às mãos. Compreendi, todavia, que se fingisse que ele obtiverêxito em seu intento poderia talvez obter uma confissão dele. Minha simulação foi realizada coa perícia de um verdadeiro artista. Obrigado, Watson, ajude-me a vestir o casaco. Depois dcumprida a nossa missão no posto policial, creio que qualquer coisa nutritiva no Simpson nãseria verdadeiramente fora de propósito.

O PÉ-DO-DIABO Ao anotar, de tempos em tempos, algumas das curiosas experiências e as interessantes recordaçõe

associadas à minha longa e íntima amizade com Sherlock Holmes, defronto-me amiúde com as dificuldadeoriundas de sua invencível antipatia por todo tipo de publicidade. Seu espírito ríspido e rabugento nutrsempre o mais profundo desprezo pelo aplauso popular, e nada o divertia mais, ao final de um caso habilmendeslindado, que reverter o mérito do êxito a qualquer agente oficial, e ouvir com um sorriso irônico o cogeral de congratulações indevidas. Foi de fato essa atitude da parte de meu amigo, e não certamente a falde material interessante, que me fez apresentar ao público nestes últimos anos muito poucas narrativaMinha participação em algumas das suas aventuras constituiu sempre um privilégio que me obrigavamáxima discrição.

O leitor poderá imaginar, portanto, a minha surpresa ao receber na última terça-feira um telegrama dHolmes – jamais se dá ao trabalho de escrever cartas quando é possível expedir telegramas –, concebido noseguintes termos:

“Por que não dar publ icidade ao Horrível mistério da Cornualha – o caso mais estranho que já ti ve em mãos?” 

Não faço a menor idéia do que o fizera lembrar-se do assunto, ou do capricho que o induzira a desejque fosse entregue ao domínio público; todavia, apressei-me a coligir minhas notas sobre o caso, antes quoutro telegrama viesse cancelar o precedente, e apresento-o agora a meus leitores.

Foi na primavera do ano de 1897 que a férrea constituição de Holmes começou a dar alguns sinais dfraqueza diante do trabalho constante e duríssimo, e essa indisposição era talvez agravada por excessoocasionais em sua vida privada. Em março daquele ano o Dr. Moore Agar, da Harley Street, cuja dramáticapresentação a Holmes eu talvez ainda venha a narrar, declarou de modo peremptório que o famoso detetivparticular devia abandonar toda e qualquer atividade e entregar-se ao mais completo repouso, se quisesevitar um irreparável esgotamento nervoso. O estado de sua saúde não era assunto que pudesse despertem Holmes o mínimo interesse, pois seu desprendimento moral era absoluto, mas resignou-se por fim (eface da ameaça de ficar definitivamente impossibilitado de trabalhar) a uma completa mudança de atmosfee ambiente. Assim, no início da primavera daquele ano, estávamos reunidos numa pequena casa de campnas proximidades da baía Poldhu, no limite extremo da península da Cornualha.

Tratava-se de um lugarejo singular, muito propício ao temperamento sombrio do meu paciente. Da janelas de nossa pequenina casa caiada de branco, situada no alto de um arborizado promontóridominávamos com o olhar todo o sinistro semicírculo da baía Mount, antiga armadilha mortal para todoos veleiros, com sua orla de penhascos negros e recifes traiçoeiros, sobre os quais inúmeros navegadoretinham encontrado morte trágica. Graças à brisa setentrional que ali sopra, a baía parece plácida e abrigadconvidando o pequeno barco acossado pelas tempestades a procurar repouso e proteção.

Súbito, muda o vento; sopram violentas as lufadas do sudoeste, a âncora é arrastada, a praia surgesotavento e finalmente trava-se a suprema batalha com os rochedos espumantes. O marinheiro velhoexperimentado evita aproximar-se desse lugar maldito.

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Do lado da terra, a paisagem que nos circundavaera tão tétrica quanto a do mar. Consistia numa regiãode charnecas ondulantes, desertas e de cor pardacenta,onde, de longe em longe, surgia um campanário queassinalava qualquer aldeia abandonada. Em todas asdireções sobre essas charnecas despontavam vestígiosde uma raça definitivamente extinta, que deixara como

única recordação estranhos monumentos de pedra,túmulos irregulares onde se encontravam depositadasas cinzas dos seus mortos, e curiosos trabalhos decerâmica, indícios de lutas pré-históricas. O fascínio eo mistério desse lugar, com a sua atmosfera sinistra denações desaparecidas, exerciam influência sobre aimaginação de meu amigo, ele passava grande partedo tempo em longos passeios e solitárias meditaçõespelos campos áridos. O antigo dialeto da Cornualhatambém lhe prendera a atenção e recordo-me de queHolmes descobrira certa afinidade entre esse dialeto eo caldeu, a qual derivaria dos fenícios que traficavamestanho. Holmes recebera uma encomenda de livros defilologia e preparava-se para desenvolver essa tese quando, derepente, para minha tristeza e sua indisfarçada delícia, nos vimosenvolvidos, naquela terra de sonhos, num problema mais emocionante, mais atraente e infinitamente maismisterioso do que os que nos tinham obrigado a abandonar Londres. Nossa existência simples e tranqüila,nossa saudável rotina foram violentamente interrompidas, e vimo-nos precipitados no meio de uma seqüênciade acontecimentos que suscitaram a máxima emoção, não só na Cornualha como em toda a região ocidental

da Inglaterra. Muitos dos meus leitores talvez se lembrem do que veio a ser chamado na ocasião ‘O horrívelmistério da Cornualha’, se bem que à imprensa londrina tivesse chegado uma narrativa demasiado incompletados fatos. Agora, decorridos treze anos, darei a público os pormenores reais desse inconcebível acontecimento.

 Já disse que os campanários esparsos assinalavam as aldeias existentes nessa região da Cornualha. A maispróxima delas era o pequeno povoado de Tredannick Wollas, onde as moradias de cerca de duas centenas dehabitantes se aglomeravam em torno de uma vetusta igreja coberta de musgo. O vigário da paróquia, reverendoRoundhay, era uma espécie de arqueólogo e, como tal, Holmes estabelecera relações com ele. Homem demeia-idade, majestoso e afável, era dotado de uma notável bagagem de erudição quanto a fatos locais. A seuconvite, fôramos tomar chá na sede da paróquia, e lá conhecemos também o sr. Mortimer Tregennis, cavalheiroindependente que ajudava o vigário a aumentar os seus parcos recursos hospedando-se em sua casa vasta edesordenada. O vigário, sendo solteiro, sentia-se feliz com esse arranjo, apesar de haver muito pouco emcomum entre ele e o seu pensionista, homem alto, moreno, de óculos, e cujo andar curvado sugeria umaverdadeira deformidade física. Recordo-me que, durante a nossa curta visita, notamos que o vigário estavamuito loquaz, ao passo que seu pensionista mostrava-se estranhamente taciturno, com um aspecto triste epensativo, e deixou-se ficar quase sempre sentado, evitando nossos olhares, aparentemente preocupadocom seus próprios problemas.

Eis que os dois homens irromperam abruptamente em nossa pequena sala de estar na terça-feira, 16 demarço, pouco depois de termos terminado a nossa primeira refeição, enquanto fumávamos antes do passeiocotidiano pelos arredores.

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– Sr. Holmes – disse com voz agitada o vigário –,ocorreu durante a noite o fato mais trágico eextraordinário do mundo. É verdadeiramenteincrível e podemos considerar sua presença aqui,neste momento, como dom especial da Provi-dência, pois, em toda a Inglaterra, o senhor é justamente o homem de que necessitamos.

Encarei o importuno vigário com ar de poucos amigos;Holmes, porém, tirou o cachimbo da boca e endireitou-se na poltrona, como um velho cão de caça que ouve osoar das trompas dos caçadores. Com um gesto, indicouo sofá, onde nosso ansioso visitante e seu perturbadocompanheiro se sentaram, lado a lado. O sr. MortimerTregennis parecia mais calmo que o clérigo, mas o tremorde suas mãos finas e o brilho de seus olhos escurosdemonstravam que sentia a mesma emoção.

– Falo eu ou o senhor? – perguntou ele ao pároco.– Parece que o senhor fez a descoberta, seja ela

qual for, e o vigário tomou conhecimento delapor seu intermédio, por isso talvez seja melhoro senhor falar – disse Holmes.

Lancei um olhar ao pároco, humildemente vestido, aolado de seu pensionista, cuja indumentária era irrepre-ensível, e diverti-me com o ar de surpresa que a fácil dedução de Holmes lhes havia estampado nas face

– Talvez eu deva dizer algumas palavras primeiro – objetou o vigário –, e depois o senhor decidirá deve ouvir o sr. Tregennis ou se devemos correr imediatamente ao local da misteriosa tragédi

Devo explicar-lhe que nosso amigo, aqui presente, passou a noite de ontem na companhia de seudois irmãos, Owen e George, e de sua irmã, Brenda, na casa deles, em Tredannick Wartha, situad junto à velha cruz de pedra no meio da planície. Deixou-os, pouco depois das dez, jogando cartao redor da mesa da sala de jantar, com excelente saúde e bom estado de espírito.“Hoje pela manhã, como de costume, levantou-se muito cedo, e antes do café saiu em passenaquela direção, sendo alcançado pelo carro do Dr. Richards, que o informou ter sido chamadcom urgência a Tredannick Wartha. O sr. Mortimer Tregennis, como é óbvio, acompanhou-o. Achegar a Tredannick Wartha, deparou com um espetáculo inaudito. Os dois irmãos e a irmã estavasentados à mesa, exatamente como os havia deixado, com as cartas ainda espalhadas à sua frene as velas gastas até o fim. A irmã jazia rígida, morta na cadeira, enquanto a seu lado os doirmãos riam, gritavam e cantavam, completamente fora de si. Os três, a morta e os dois dementetinham estampada nas fisionomias a expressão do mais intenso horror, um terrível esgar de pavoNão havia o menor sinal da presença de alguém na casa, à exceção da sra. Porter, a velha cozinheie governanta, que declarou ter dormido a sono solto e nada ter ouvido durante a noite. Nada foroubado ou remexido e não há qualquer explicação do que poderia ter apavorado uma mulher ponto de lhe causar a morte, e ter feito dois homens normais perderem completamente o juízoEsta é, em resumo, a situação, sr. Holmes; se puder ajudar-nos a esclarecê-la, terá realizado umgrande obra”.

Eu esperava, de qualquer modo, persuadir meu companheiro a manter o repouso que constituía o objetiv

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Volvemos em seguida os passos para a casa fatídica, cujos ocupantestinham encontrado tão estranho destino.

Era uma habitação grande e clara, mais uma vila do que umasimples casa de campo, circundada por um vasto jardim que,

graças ao ar ameno da Cornualha, já se encontrava cobertode flores primaveris. A janela da sala de estar dava para

esse jardim, e por ela, segundo as declarações de Mortimer

Tregennis, devia ter entrado aquela coisa demoníaca, quepor um rápido instante transtornou a mente de seusirmãos por um simples efeito de horror. Holmes passeoulenta e pensativamente por entre os canteiros floridos eao longo do caminho, antes de penetrarmos no portal.Lembro-me de que ele estava tão absorto nos própriospensamentos que tropeçou num regador cheio de água,despejando o seu conteúdo sobre nossos pés e na areia

do jardim. No interior da casa, fomos recebidos pela velhagovernanta, a sra. Porter, que, com a ajuda de uma jovem criada,

acudia aos arranjos domésticos. Respondeu prontamente a todasas perguntas de Holmes. Nada ouvira durante a noite. Os patrões tinham

apresentado, nos últimos tempos, um excelente estado de espírito; nunca os vira tãoalegres e satisfeitos! Naquela manhã, ao entrar na sala e ao deparar com aquele quadro

sinistro, desmaiara de horror. Mal voltou a si, abriu a janela para arejar o ambiente e correupara a estrada, onde encontrou um garoto ao qual pediu que chamasse um médico. Se quisessem ver a srta.Brenda, ela estava na cama, no andar superior. Foram necessários quatro homens robustos para colocar osdois irmãos no carro do hospício. Não queria ficar nem mais uma noite na casa, e, naquela mesma tarde, iria juntar-se à sua família em St. Ives.

Subimos as escadas e examinamos o cadáver. Brenda Tregennis fora uma jovem belíssima, se bem que játivesse atingido a idade madura. O rosto moreno, de linhas perfeitas, era encantador, mesmo na morte, masainda apresentava sinais da convulsão que provocara a sua última emoção terrena. Do quarto da extintadescemos para a sala de estar onde se verificara a incrível ocorrência. Ainda se amontoavam na lareira ascinzas do fogo da noite anterior. Sobre a mesa, na qual continuavamespalhadas as cartas do baralho, viam-se quatro castiçais com asvelas inteiramente consumidas. As cadeiras tinham sidoencostadas à parede; no entanto, tudo o mais estava nolugar. Holmes percorreu a sala com passos rápidos eleves; sentou-se nas diversas cadeiras, aproxi-mando-as da mesa, para reconstituir asposições. Verificou que ângulo do jardimpoderia ser visto do interior; inspeci-onou o pavimento, o teto, a lareira;entretanto, nem por um momento noteiaquele súbito brilho do olhar e aquelacontração dos lábios que me fariampressentir que entrevira um raio de luznaquela densa treva.

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Porter está isenta de qualquer suspeita. É evidentemente inofensiva. Existirão provas de que alguémsubiu à janela do jardim, e, por meios ignorados, horrorizou os três irmãos a ponto de enlouquecê-los? A única hipótese nesse sentido é fornecida pelo próprio Mortimer Tregennis, quando afirmaque seu irmão distinguira algo movendo-se no jardim. Isso é, sem dúvida, extraordinário, pois anoite estava chuvosa, enevoada e escura. Quem quisesse assustar aquela gente seria obrigado aencostar o rosto à vidraça, a fim de ser visto. Ao lado da janela, na parte exterior, corre um canteirode flores de cerca de um metro de largura; não apresenta, porém, o menor sinal de pés. Por conse-

guinte, é difícil imaginar como alguém, do lado de fora, poderia ter produzido tão forte impressãosobre as três pessoas, praticando tão estranho e complexo atentado. Percebe as dificuldades comque nos defrontamos, Watson?”

– Perfeitamente – respondi, cheio de convicção.– No entanto, se tivéssemos mais alguns elementos, poderíamos demonstrar que elas não são

insuperáveis – continuou Holmes. – Estou certo de que você encontrará em seu vasto arquivoalguns casos quase tão obscuros como este. Por ora, vamos pôr de lado o problema até queapareçam dados mais precisos, e dediquemo-nos, durante o resto da manhã, à pesquisa dohomem neolítico.

 Já me referi muitas vezes à faculdade de meu amigo de esquecer momentaneamente as coisas que opreocupam, mas nunca o admirei tanto como naquela manhã de primavera, na Cornualha, onde, duranteduas horas, discorreu a respeito de celtas, pontas de flechas e fragmentos de cerâmica, com grandedesembaraço, como se nenhum mistério sinistro aguardasse uma solução. Só à tarde, de regresso à casa,tornamos a abordar no assunto. Estava à nossa espera uma visita e não foi preciso dizer-nos de quem setratava. Aquele vulto enorme, o rosto duro e sulcado de rugas, o olhar arrogante, o nariz aquilino, oscabelos grisalhos que quase vasculhavam o teto da sala, a barba – loura nas pontas e branca junto aoslábios, exceto as manchas de nicotina deixadas pelo eterno charuto –, tudo isso era muito conhecido tantoem Londres como na África, e só podia estar relacionado à extraordinária personalidade do Dr. LeonSterndale, o célebre explorador e caçador de leões.

Sabíamos de sua presença na região e tínhamos por uma ou duas vezes avistado a sua figura gigantescanos atalhos da charneca. Ele, porém, nada fizera para se aproximar de nós, nem nós, por outro lado, jamaissonháramos estabelecer relações com ele, pois sua misantropia era assaz reconhecida. Nutria um amor tãoexagerado pelo isolamento que, nos intervalos de suas viagens, passava a maior parte do tempo numapequenina casa de campo perdida na solidão dos bosques de Beauchamp Arriance. Aí, entre livros e mapas,dedicava-se a uma existência de absoluta segregação, atendendo às próprias necessidades, sem parecerinteressar-se pela vida de seus vizinhos. Surpreendi-me, portanto, ao ouvi-lo perguntar a Holmes, com vozansiosa, se tinha feito algum progresso na reconstituição do misterioso acontecimento.

– A polícia do condado está absolutamente tonta – disse –, mas talvez o senhor, com a sua experiênciamais vasta, consiga sugerir uma explicação plausível. O único motivo que me leva a interessar-mepelo caso é o fato de que, durante as minhas numerosas estadias aqui, travei uma íntima amizadecom a família dos Tregennis (aliás, pelo lado de minha mãe, poderia chamá-los primos), e seutrágico destino constituiu, como é natural, um profundo golpe para mim. Posso dizer-lhes que meencontrava já em Plymouth, rumo à África, quando soube do sucedido, e voltei no mesmo instante,a fim de colaborar no inquérito.

Holmes arqueou as sobrancelhas.– Por causa disso, então, o senhor perdeu o vapor?– Seguirei no próximo.– Por Deus! Isso é que se chama amizade!

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– Como lhe disse, éramos parentes!– De acordo... Primos por parte de mãe. Sua bagagem já estava no navio?– Alguma coisa; a de maior valor estava comigo no hotel.– Compreendo. Mas, com certeza, a notícia desse acontecimento não pôde ter sido publicada pelo

matutinos de Plymouth.– Não; recebi um telegrama.– Pode dizer-me quem lhe telegrafou?

Pelo rosto magro e ossudo do explorador perpassou uma sombra.– É muita curiosidade, sr. Holmes!– Faz parte de minha profissão.

Com um esforço, o Dr. Sterndale recobrou a calma.– Nada me impede de dizê-lo. Foi o sr. Roundhay, o vigário, quem me telegrafou.– Muito obrigado – redargüiu Holmes. – Respondendo à sua primeira pergunta, devo dizer-lhe qu

ainda não tenho uma noção clara deste caso, mas nutro fortes esperanças de chegar a umconclusão. Seria prematuro dizer-lhe mais alguma coisa.

– Suas suspeitas indicam algum rumo seguro?– Não; sobre isso nada posso afirmar.– Então, perdi meu tempo, e parece-me inútil prolongar a minha visita.

O famoso explorador retirou-se a passos largos, visivelmente irritado, e, ao cabo de cinco minutos, Holmseguiu-o. Não tornei a vê-lo senão à tarde, quando regressou. Pelo passo lento e a fisionomia abatidconcluí não terem sido muito frutíferas as suas investigações. Passou os olhos por um telegrama que aguardava e o atirou ao fogo.

– Do Plymouth Hotel, Watson – explicou-me. – O vigário deu-me o endereço e eu telegrafei para láfim de me certificar se a versão do Dr. Sterndale era exata. Parece que de fato passou a noite lá,parte de sua bagagem já fora embarcada para a África, enquanto ele voltava com o intuito de estpresente durante esta investigação. Que deduz você de tudo isso?

– Que o assunto lhe interessa muito.– Interessa-lhe profundamente... sim. Há um fio, aqui, que até agora não conseguimos agarrar e qutalvez nos conduza através da meada. Alegre-se, Watson, pois estou certo de que ainda não temona mão todos os elementos essenciais. Quando tal suceder, nossas dificuldades serão dissipadas

Eu mal sabia que as palavras de Holmes logo se veriam confirmadas, e que estava prestes a ocorrer ufato estranho e sinistro, que iria dar um novo rumo às nossas pesquisas. Eu me barbeava junto à janela, nmanhã seguinte, quando ouvi o tropel de patas de cavalo, e, erguendo o olhar, deparei com uma carruageque vinha em disparada pela estrada. O veículo estacou à porta e dele apeou nosso vigário, que entrocorrendo pelo jardim. Holmes já estava vestido e ambos nos apressamos ao seu encontro.

Nosso visitante estava tão emocionado que mal podia articular palavra; todavia, após muito balbuciararquejar, conseguimos ouvir-lhe a trágica notícia:

– Mortimer Tregennis morreu durante a noite, apresentando exatamente os mesmos sintomencontrados nos outros membros de sua família.

Holmes ergueu-se de súbito, vibrante de energia.– Pode levar-nos em seu carro?– Certamente.– Nesse caso, Watson, adiaremos nossa refeição. Estamos ao seu inteiro dispor, sr. Roundhay. Vamo

depressa, antes que alguém entre no aposento e tire qualquer coisa do lugar.Tregennis ocupava dois quartos sobrepostos num ângulo da casa. O do andar térreo servia de sala d

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estar; o de cima era o quarto de dormir. As janelas de ambos davam para um campo de croquê, junto aoedifício. Tínhamos chegado antes do médico e da polícia, de modo que tudo se encontrava no lugar. Desejodescrever a cena exatamente como se apresentava naquela nevoenta manhã de março, cuja impressão jamais se apagará da minha memória.

 A atmosfera do quarto estava incrivelmente sufocante, eestaria ainda mais irrespirável se a criada, que tinha entradoantes, não escancarasse a janela. Talvez isso pudesse

atribuir-se a um lampião que estava aceso no centro damesa. Junto à mesa estava sentado o morto, reclinado napoltrona, a barba rala apontada para a frente, os óculosempurrados para a testa, o rosto trigueiro e magrovoltado para a janela e contraído no mesmo espasmode horror que transtornara as feições de sua pobre irmã.Os membros convulsos e os dedos crispados pareciamindicar que morrera num verdadeiro paroxismo demedo. Estava vestido, ainda que houvesse sinais deque o fizera às pressas. O leito em desalinhomostrava que dormira ali e que o fim trágico se deraàs primeiras horas da manhã.

Para avaliar a energia ardente, oculta sob a aparênciafleumática de Holmes, bastaria reparar na súbita transformaçãoque ele sofreu ao entrar na sala fatal. Instantaneamente ele ficoutenso e alerta, com os olhos brilhando, a fisionomia impenetrável, osmembros fremindo de energia. Saía para o campo de croquê, regressava pela janela, rodeava o aposento, subia ao quarto, como um irrequieto cão de caça farejando a presa. No quarto dedormir, fez um rápido giro e terminou abrindo a janela de par em par, o que pareceu fornecer-lhe novo

motivo de excitação, pois debruçou-se nela lançando estrepitosas exclamações de interesse e satisfação. Emseguida, desceu a escada correndo, pulou a janela, atirou-se de bruços no relvado, pôs-se de pé num salto etornou a entrar na sala, tudo isso com a energia do caçador prestes a apanhar a presa. O lampião, de tipocomum, sofreu também um minucioso exame, principalmente no que se referia à sua capacidade. Inspecionoucuidadosamente com uma lente a fuligem que lhe recobria a parte superior, e raspou um pouco da cinza quehavia aderido à superfície, guardando-a num envelope, que enfiou na carteira. Finalmente, ao chegarem omédico e a polícia, acenou ao vigário e saímos os três para o relvado usado para jogar croquê.

– Tenho o prazer de lhes comunicar que a minha investigação não foi de todo infrutífera – observou.– Não posso permanecer aqui para discutir o caso com a polícia, mas eu lhe ficaria grato, sr. Roundhay,se quisesse apresentar os meus cumprimentos ao inspetor e chamar-lhe a atenção para a janela doquarto e para o lampião da sala de estar. Cada um desses elementos é sugestivo, e, juntos, acho-osquase conclusivos. E agora, Watson, creio que nosso tempo pode ser mais bem aproveitado emoutro lugar.

 A polícia, provavelmente, não via com bons olhos a intromissão de um diletante, ou talvez julgasse queestava seguindo uma pista mais segura. O fato é que ninguém nos procurou nos dois dias seguintes, duranteos quais Holmes passou parte do tempo em casa, fumando e conjeturando. No entanto, gastou a maiorparte do tempo em demorados passeios solitários pelos arredores, dos quais voltava sem indicar, de modoalgum, onde tinha estado. Uma certa experiência serviu para me revelar o rumo de suas pesquisas. Elecomprou um lampião exatamente igual ao que ficara aceso nos aposentos de Mortimer Tregennis na manhã

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da tragédia. Encheu-o com o mesmo combustível usado na casa do vigário e calculou com exatidão o tempnecessário que ele levava para se esgotar. A essa seguiu-se outra experiência, de caráter tão desagradávque não me será fácil esquecê-la.

– Você deve ter notado, Watson – observou ele, uma tarde –, que existe um único ponto comum danalogia nas diferentes informações que nos chegaram aos ouvidos. Refiro-me ao efeito produzidem cada caso, pela atmosfera do aposento sobre as pessoas que entraram nele em primeiro lugaDeve lembrar-se de que Mortimer Tregennis, ao descrever o episódio de sua última visita à casa do

irmãos, disse que o médico, quando entrou na sala, caiu sobre uma cadeira. Já se esqueceu despormenor? Eu não me esqueci. Agora, deve lembrar-se também de que a sra. Porter, a governantnos declarou que desmaiara ao penetrar na sala e só depois abrira a janela. No segundo caso, o dpróprio Mortimer Tregennis, não pode ter esquecido a impressão horrível de asfixia que sentimoquando transpusemos a porta da sala, embora a criada já tivesse aberto a janela. Soube depois quessa criada se sentiu tão mal que teve de ir para a cama. Ora, Watson, deve convir que esses fatosão muito significativos. Em ambos os casos, temos provas irrefutáveis de envenenamento datmosfera. Por outro lado, em cada um deles, deparamos com um processo de combustão. Nprimeiro, o fogo ardia na lareira, no segundo, um lampião estava aceso. O fogo era necessário, poa noite estava fria, mas o lampião... como se pode verificar pela quantidade de combustível consumidfoi aceso muito tempo depois do raiar do dia. Por quê? Sem dúvida porque existia alguma ligaçãentre esses três fatores: a combustão, a atmosfera sufocante e, finalmente, a loucura ou a mortdaqueles infelizes. Está claro, não acha?

– Assim parece.– Pelo menos podemos aceitar essa hipótese. Suponhamos, então, que em cada um dos casos algum

coisa foi queimada, tendo produzido uma atmosfera de misteriosos efeitos tóxicos. Muito bem. Nprimeiro, o da família Tregennis, essa substância foi colocada na lareira. A janela estava fechadmas, naturalmente, parte dos vapores foi absorvida pela chaminé, ao menos por certo tempo. Pisso deve-se imaginar que os efeitos do veneno foram menores do que no segundo caso, em qu

houve menos escape de fumaça. Os resultados parecem indicar isso, pois no primeiro caso apena mulher, presumivelmente dotada de um organismo mais sensível, encontrou a morte, enquannos outros se apresentou o fenômeno da loucura temporária ou permanente, que é, com certeza,primeiro estágio provocado pela droga. No segundo caso, o resultado foi total. Por conseguinte, ofatos tendem a confirmar a hipótese de um veneno que atua por combustão. Baseado nesse raciocínera natural que procurasse no quarto de Mortimer Tregennis qualquer traço dessa substância.claro que o primeiro objeto que inspecionei foi a manga do lampião. E, de fato, encontrei nela cerquantidade de cinza escamosa, com uma franja de pó castanho, que ainda não fora de todo consumidComo você viu, recolhi metade desse pó e coloquei-o num envelope.

– Por que apenas metade, Holmes?– Não é meu costume, caro Watson, dificultar as investigações da polícia oficial. Costumo deixar-lh

todas as provas que encontro. Se possuírem habilidade para descobri-lo, boa parte do veneno aindse encontra lá. E agora, Watson, vamos acender nosso lampião; tomaremos, no entanto, a precauçãde abrir a janela, a fim de evitarmos a morte prematura de dois dignos membros da sociedade. Vocse sentará numa poltrona junto da janela, a menos que, como pessoa de bom senso, se recusetomar parte nesta experiência. Ah! Prefere ver como vai terminar? Eu estava certo de que conheco meu Watson. Colocarei esta cadeira em frente à sua, de modo que possamos ficar ambos a igudistância do veneno e face a face. Deixaremos a porta entreaberta. Cada um de nós está em posiçãque permite observar o outro e pôr fim à prova se os sintomas se revelarem alarmantes. Es

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entendido? Muito bem! Tiro, então, nosso pó do envelope, ou o que resta dele, e ponho-o sobre olampião aceso. Pronto! E agora, Watson, sentemo-nos e aguardemos os acontecimentos.

Estes não se fizeram demorar. Mal havia me sentado, principiei a sentir um odor sufocante, almiscarado,sutil e nauseante. À primeira baforada, perdi todo o domínio do cérebro e da imaginação. Uma nuvemespessa e negra baixou-me sobre os olhos, e eu tive a intuição de que ela trazia em seu bojo, invisível ainda,mas pronto a saltar diante de meus sentidos dominados pelo pavor, tudo quanto havia de vagamente horrível,monstruoso e infinitamente perverso no mundo. Formas indistintas giravam e flutuavam na escuridão da

nuvem, cada uma delas trazendo em si a ameaça ou a advertência de qualquer coisa iminente, o aparecimentode algo pavoroso, cuja sombra, só por si, bastaria para me fulminar a alma. Fiquei gelado de horror. Senti oscabelos arrepiarem, os olhos saltarem das órbitas, a boca escancarar-se e a língua pender para fora como umpedaço de couro. Era tal o tumulto em meu cérebro que tive a impressão de que a minha cabeça ia estourar.Tentei gritar e apenas percebi, vagamente, um rouco coaxar, que devia ser a minha voz, mas irreal einfinitamente distante. Nesse momento, num supremo esforço de fuga, irrompi através daquela nuvem dedesespero e entrevi o rosto de Holmes, pálido, rígido, petrificado de terror – a mesma máscara que eu viraimpressa nas feições dos dois cadáveres. Essa visão deu-me um átomo de lucidez e força. Saltei da poltrona,atirei os braços em torno de Holmes e com ele precipitei-me cambaleante para fora da sala. Momentosdepois estávamos estirados lado a lado sobre a relva, cônscios somente do sol radioso, cujos raios diluíama infernal nuvem de pavor em que nos encontrávamos envolvidos. Lentamente ela se evaporou de nossoespírito, como a bruma dos pântanos, e assim recuperamos a calma e a razão. Sentamo-nos no relvado,enxugando o suor viscoso de nossas testas e olhando apreensivos um para o outro, como querendo fixar osúltimos traços da espantosa experiência a que nos tínhamos submetido.

– Palavra de honra, Watson! – exclamou Holmes por fim,com voz ainda vacilante. – Devo agradecer-lhe e, aomesmo tempo, apresentar-lhe desculpas. Essaprova, que, para mim só, seria imperdoável, éduplamente imperdoável porque envolvi nela um

querido amigo. Não sei como devo pedir-lheperdão.– Você bem sabe – respondi emocionado (pois

 jamais me fora dado ver Holmes tão afetuoso) –que para mim a maior alegria, o máximoprivilégio consiste em poder ser-lhe útil.

Meu amigo voltou imediatamente ao tom irônico queo caracterizava.

– Seria supérfluo agirmos como loucos, Watson.Qualquer observador desprevenido afirmaria porcerto que já o estávamos ao tentar tão temeráriaexperiência. Confesso, porém, que nuncaimaginei que o efeito pudesse ser tão violento einstantâneo.

Entrou correndo em casa, reapareceu com o lampião aindaaceso, conservando-o à distância, e arremessou-o sobre ummonte de galhos secos.

– Devemos esperar que a atmosfera do quarto se purifique. Suponho, Watson, que não alimente amenor sombra de dúvida quanto à maneira pela qual essas tragédias ocorreram.

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– Absolutamente nenhuma.– A causa, no entanto, permanece tão obscura como antes. Sentemo-nos debaixo deste caramanchã

para discutir o assunto. Aquela maldita droga parece ainda me apertar a garganta. Somos obrigadoa admitir que, na primeira tragédia, o criminoso foi Mortimer Tregennis, apesar de ele ter sidovítima na segunda. Não nos esqueçamos da história da briga de família, seguida de um apaziguamentTodavia, não sabemos até que ponto foi o litígio, nem o valor efetivo da reconciliação. Quandevoco Mortimer Tregennis, com aquela cara de raposa matreira, com aqueles olhos redondos

astutos brilhando por trás dos óculos, não o julgo homem suscetível de perdoar alguém. Alémdisso, deve recordar-se de que a idéia de um vulto movendo-se no jardim, a qual nos desviomomentaneamente a atenção da causa real do trágico evento, partiu dele. Tinha motivos para nodespistar. E, finalmente, se não foi ele quem atirou essa substância no fogo no momento em quabandonou a sala, quem mais poderia tê-lo feito? A coisa sucedeu logo depois da partida dele. Salguma pessoa tivesse aparecido, a família evidentemente teria deixado a mesa. Por outro ladneste pacífico condado da Cornualha não se fazem visitas depois das dez horas da noite. Portanttodos os indícios apontam Mortimer Tregennis como o único culpado.

– Então sua própria morte foi um suicídio!– Bem, Watson, à primeira vista tal hipótese não parece impossível. Um homem sobre cuja consciênc

pesa a culpa de um crime tão hediondo contra a própria família, poderia muito bem, levado peremorso, infligir a si mesmo idêntico fim. Há, contudo, fortes argumentos contra tal suposiçãFelizmente, existe alguém na Inglaterra que tudo sabe a esse respeito, e eu providenciei para qupossamos ouvir os fatos de seus próprios lábios, ainda esta tarde. Ah! Aí vem ele um pouco antes dhora... Queira vir por aqui, Dr. Leon Sterndale. Estivemos realizandodentro de casa uma experiência química, a qual reduziu nossasaleta a condições absolutamente inadequadas para recebertão ilustre visitante.

Eu ouvira o ranger do portão do jardim e vira surgir na passagem

a majestosa figura do grande explorador da África, que se voltoucom certa surpresa para o rústico caramanchão sob o qual nos ha-víamos sentado.

– Recebi há cerca de uma hora o bilhete com que mandavame chamar, sr. Holmes, e por isso aqui estou, apesar de nãosaber por que deveria obedecer às suas ordens.

– Talvez possamos esclarecer a situação antes de nossepararmos – replicou Holmes. – Por enquanto, fico-lhemuito grato pela cortês aquiescência. O senhor vaidesculpar-nos esta recepção ao ar livre, mas meu amigo Watsone eu quase fornecemos mais um capítulo ao que os jornaischamam de ‘O horrível mistério da Cornualha’, e por orapreferimos uma atmosfera mais saudável. Entretanto, como oassunto que vamos discutir o interessa particularmente demodo bastante íntimo, é melhor que conversemos em lugaronde ninguém nos possa ouvir.

O explorador tirou o charuto da boca e encarou fixamente omeu companheiro.

– Não consigo atinar qual possa ser o assunto que me

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interessa de forma tão pessoal e íntima – respondeu.– Refiro-me ao assassinato de Mortimer Tregennis – explicou Holmes.

Naquele momento desejei estar armado. O rosto arrogante de Sterndale tornou-se rubro de cólera, seusolhos fuzilaram, as veias da fronte incharam, ao mesmo tempo em que se lançava de punhos fechados sobremeu companheiro. Conteve-se, porém, a tempo, e com um violento esforço recobrou a calma, uma calmarígida e fria, talvez ainda mais ameaçadora do que a explosão colérica.

– Vivi tanto tempo entre os selvagens e afastado das leis – disse – que me habituei a fazer justiça por

minhas próprias mãos. Rogo-lhe que não esqueça isso, sr. Holmes, pois não é meu desejo causar-lhe nenhum mal.

– Nem eu tenho o desejo de molestá-la, Dr. Sterndale. A prova mais evidente disso é que, sabendo oque sei, mandei chamá-lo e não à polícia.

Sterndale deixou-se cair sentado no banco com um gemido, subjugado, talvez pela primeira vez em todaa sua aventurosa existência. Da atitude de Holmes, calma e segura, emanava tão grande autoridade que aninguém era dado resistir. Nosso visitante titubeou por instantes, abrindo e fechando as enormes mãos,presa de intensa agitação.

– O que o senhor pretende dizer? – indagou por fim. – Se tenciona divertir-se à minha custa, estámuito enganado. Deixemos de rodeios. O que quer de mim?

– Vou já dizê-lo – retorquiu Holmes –, e faço-o na esperança de que a minha franqueza seja corres-pondida. Meu próximo passo vai depender da maneira como o senhor se defender.

– Defender-me?– Precisamente.– Mas defender-me de quê?– Da acusação de ter assassinado Mortimer Tregennis.

Sterndale enxugou a testa com um lenço.– Com franqueza, o senhor está ultrapassando os limites. Será que todos os seus êxitos dependem

dessa prodigiosa capacidade de blefar?

– Se alguém está blefando aqui – observou Holmes em tom severo –, é o senhor, Dr. Sterndale, e nãoeu. Como prova, contar-lhe-ei alguns fatos nos quais baseei minhas conclusões. Nada direi de seuregresso de Plymouth, deixando grande parte da bagagem prosseguir viagem para a África, a não serque tal atitude me indicou que o senhor era um dos fatores que deveriam ser considerados nareconstituição do drama...

– Eu voltei...– Já me explicou as razões, mas eu as considero pouco convincentes e inadequadas. Mas deixemos

isso de parte. O senhor me procurou para perguntar de quem eu suspeitava. Recusei-me a responder-lhe. Dirigiu-se então à casa do vigário, esperou algum tempo do lado de fora e por fim regressou àsua residência.

– Como sabe?– Eu o segui.– Não vi ninguém.– Pode estar certo de que isso sucederá sempre que eu o seguir. O senhor passou toda a noite em

claro e formulou certos planos que resolveu pôr em prática logo ao alvorecer. Saindo de casa aoromper do dia, encheu os bolsos com pedrinhas avermelhadas que jaziam num monte junto aoseu portão.

Sterndale estremeceu violentamente e fitou Holmes, aturdido.– O senhor venceu, então, a passos rápidos, o quilômetro e meio que o separava da casa da paróquia.

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 Acrescentarei que usou o mesmo par de tênis que tem agora nos pés. Ao chegar lá, atravessoupomar e a sebe lateral e colocou-se embaixo da janela do quarto de Tregennis. Embora fosse dclaro, o silêncio dentro da casa era completo. Tirou algumas pedrinhas do bolso e atirou-as contra janela do pavimento superior.

Sterndale pôs-se de pé num pulo.– Mas o senhor é o Diabo em pessoa! – exclamou.

Holmes sorriu diante do cumprimento.

– Foi preciso atirar dois ou talvez três punhados de pedras, para que Tregennis aparecesse à janePediu-lhe, então, que descesse. Ele se vestiu às pressas e foi para a sala de estar. O senhor entropela janela. Seguiu-se entre ambos um rápido colóquio, durante o qual o senhor ficou andando dum lado para outro na sala. Saiu, em seguida, pelo mesmo caminho, fechou a janela e permaneceno relvado do lado de fora, fumando um cigarro e observando os acontecimentos. Finalmentdepois da morte de Tregennis, retirou-se como viera. E agora, Dr. Sterndale, como justifica tal condute que motivos o levaram a proceder assim? Se tentar lograr-me, por pouco que seja, dou-lhe minhpalavra de honra de que passarei definitivamente o caso para outras mãos.

O rosto do nosso visitante tornou-se lívido ao ouvir essas palavras. Ficou sentado por algum tempsilencioso e pensativo, o rosto apoiado nas mãos. Por fim, com um gesto impulsivo, arrancou uma fotografdo bolso do casaco e atirou-a em cima da mesa rústica, diante de nós.

– Eis por que fiz isso – explicou. A fotografia reproduzia o busto e o rosto de uma mulher belíssima. Holmes inclinou-se para observá-

– Brenda Tregennis – disse.– Sim, Brenda Tregennis – repetiu nosso visitante. – Há anos que nos amávamos. É esse o segred

de meu isolamento na Cornualha, de que toda gente se admirava. Só assim podia estar próximda única criatura que me era cara no mundo. Não podia casar-me com ela porque tenho ummulher, que me abandonou há muitos anos e da qual, por culpa das odiosas leis inglesas, aindnão pude divorciar-me. Durante anos Brenda esperou. Durante anos eu esperei. E eis o resultad

de nossa espera.Um violento soluço abalou-lhe a figura gigantesca e ele comprimiu a garganta com a mão. Depois, nusupremo esforço, conseguiu dominar-se e continuou:

– O vigário sabia de tudo. Era nosso confidente. Ele lhes dirá que ela era um verdadeiro anjo na terrFoi por isso que ele me telegrafou e eu voltei. Que me importavam as bagagens ou a África, diando que sucedera à minha querida Brenda? Aí tem, sr. Holmes, a explicação que faltava para o meprocedimento.

– Continue – solicitou meu amigo.O Dr. Sterndale tirou do bolso um embrulho de papel e depositou-o sobre a mesa. Por fora estav

escrito: ‘Radix pedis Diaboli’, e logo abaixo, num rótulo vermelho, lia-se: ‘Veneno’. Empurrou o pacote eminha direção.

– Sei que o senhor é médico – disse. – Já ouviu falar neste preparado?– Raiz de pé-do-diabo! Não, nunca.– Isso, aliás, não compromete os seus conhecimentos profissionais – acrescentou –, pois acredi

que, com exceção da amostra existente em um laboratório de Budapeste, não há outro exemplar nEuropa. Ainda não encontrou lugar na farmacopéia nem nos tratados de toxicologia. A raiz temformato de um pé, meio humano, meio caprino; daí o nome fantástico que lhe foi dado por cerbotânico missionário. É usada como veneno, em provas punitivas, pelos curandeiros de algumregiões da África ocidental, que a conservam em segredo entre eles. Foi-me possível obter es

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amostra específica na zona de Ubangui, em circunstâncias verdadeiramente extraordinárias.Ele abriu o pacote, enquanto falava, e exibiu-nos certa quantidade de um pó castanho-avermelhado,

semelhante a rapé.– E então? – perguntou Holmes em tom severo.– Vou explicar-lhe tudo quanto de fato aconteceu, pois já sabe tanto que é de meu interesse que

conheça o resto. Já lhe expus as minhas relações com a família Tregennis. Por causa da irmã, culti-vava a amizade dos irmãos. Após certa desavença doméstica por questões de dinheiro, Mortimer

afastou-se dos outros, mas parece ter havido uma reconciliação, e eu voltei a encontrar-me com ele,como fazia com os demais. Era astuto, sutil, intrigante, e por várias razões chegara a suspeitar dele;no entanto, jamais deu motivos para qualquer desavença séria entre nós.“Um dia, há cerca de duas semanas, esteve em minha casa, e eu lhe mostrei algumas de minhascuriosidades africanas. Entre outras coisas, dei-lhe a conhecer este pó e descrevi as suas estranhaspropriedades, a maneira como estimula os centros nervosos cerebrais que controlam a sensaçãodo medo e como provoca a loucura ou a morte do infeliz nativo exposto aos seus efeitos pelofeiticeiro da tribo. Expliquei-lhe também a ignorância em que se encontrava a ciência européia aseu respeito. Não sou capaz de lhe dizer como conseguiu apoderar-se dele, pois nem por uminstante me afastei da sala, mas seguramente deve tê-lo feito enquanto eu abria armários ou meinclinava diante de alguma caixa. O fato é que subtraiu certa quantidade de raiz de pé-do-diabo.Recordo-me perfeitamente de que me cumulou de perguntas sobre a quantidade e o tempo ne-cessário para que produzisse o efeito desejado, mas eu estava bem longe de imaginar que tivesseum motivo pessoal para fazê-lo.“Não pensei mais no assunto até receber em Plymouth o telegrama do vigário. Aquele monstrosupunha que eu me encontraria em alto-mar quando recebesse a notícia, e que me perderia duranteanos no coração da África. Mas, contra a sua expectativa, voltei imediatamente. Como é óbvio, malme inteirei dos pormenores da tragédia, compreendi que alguém usara o meu veneno. Procureientão o senhor para ver se por acaso encontrara outra explicação. Mas não podia haver outra. Estava

convencido de que o assassino era Mortimer Tregennis; por amor ao dinheiro e talvez com a idéiade que, se os demais membros da família ficassem loucos, ele assumiria, sozinho, a tutela do conjuntodos bens, usara contra eles o pó venenoso, enlouquecendo os dois irmãos e matando a irmã Brenda,a única criatura que amei na vida, e que me amava. Aí estava o seu crime; que castigo que lhe cabia?Deveria eu apelar para a justiça? Onde estavam as minhas provas? Eu sabia de tudo, mas conseguiriafazer um júri de aldeãos acreditar numa história tão fantástica? A possibilidade me pareceu remota.Contudo, não podia arriscar-me a um malogro. Minha alma clamava por vingança. Já lhe disse, sr.Holmes, passei tão grande parte da vida longe da lei que acabei finalmente por ditar eu próprio asminhas leis, e assim sucedeu também neste caso. Decidi que ele devia compartilhar a mesma sorteque infligira aos outros. Ou isso, ou então eu faria justiça por minhas mãos. Em toda a Inglaterra nãoexiste neste momento homem algum que dê menos valor à própria vida do que eu.“Agora já lhe contei tudo. O resto o senhor mesmo nos deu a conhecer. De fato, como disse, apósuma noite de insônia, saí cedo de casa. Prevendo a dificuldade de acordá-lo, apanhei um punhadode pedrinhas do monte a que se referiu e servi-me delas para lançá-las contra a janela. Ele desceu efez-me entrar pela janela da sala de estar. Eu o acusei do crime. Afirmei-lhe estar ali como juiz ealgoz. O miserável deixou-se cair numa cadeira, paralisado de terror diante do meu revólver. Acendio lampião, despejei-lhe em cima o pó e coloquei-me fora da janela, pronto a executar minha ameaçade matá-lo, caso procurasse abandonar a sala. Morreu ao cabo de cinco minutos. Meu Deus! Quemorte! Meu coração, porém, estava empedernido, pois Mortimer não sofreu nada que a minha

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inocente Brenda não tivesse suportado antes dele. Eis minha história, sr. Holmes. Talvez, se amasuma mulher, o senhor tivesse feito o mesmo. De qualquer forma, estou em suas mãos. Faça de mio que quiser. Como já lhe disse, não há ninguém no mundo que receie menos a morte do que eu

Holmes permaneceu algum tempo em silêncio.– Quais eram seus planos? – perguntou por fim.– Tencionava embrenhar-me no centro da África. Meu trabalho ali ficou pela metade.– Pois vá terminá-la – sentenciou Holmes. – Eu, pelo menos, não tenho a menor intenção de tent

impedi-lo.O Dr. Sterndale ergueu seu vulto gigantesco, inclinou-se gravemente e saiu do caramanchão. Holme

acendeu o cachimbo e estendeu-me a bolsinha de tabaco.– Algumas fumaças não venenosas constituirão um agradável derivativo – observou. – Espero qu

concorde comigo, Watson, em que este é um caso no qual não devemos interferir. Nossa investigaçãfoi independente, e independente será também nosso modo de agir. Você teria coragem de denunciesse homem?

– Certamente que não – respondi.– Nunca amei, Watson, mas, se amasse, e minha eleita sofresse semelhante destino, certamen

agiria como o nosso destemido caçador de leões. Quem sabe? Bem, Watson, não quero ofendelhe a inteligência explicando o óbvio. As pedrinhas encontradas no peitoril da janela estabeleceramnaturalmente, o ponto de partida das minhas pesquisas. Eram em tudo diferentes das do jardido vigário. Somente quando volvi a atenção para o Dr. Sterndale e para a sua residência é que de onde provinham. O lampião aceso em pleno dia e os resíduos de pó na manga do lampiãformaram um encadeamento fácil de seguir. E agora, meu caro, creio que podemos varrer dmente esse desagradável assunto e regressar de consciência leve ao estudo daquelas raízecaldaicas, cujos vestígios seguramente devem ser encontrados no ramo da grande língua célticque se fala na Cornualha.

SEU ÚLTIMO ADEUSEram nove horas da noite de 2 de agosto – o mais terrível agosto da história do mundo. Já se pod

imaginar que a maldição divina caía ameaçadora sobre a humanidade degenerada, pois na atmosfeparada e sufocante pairava um soturno silêncio e uma vaga sensação de inquieta expectativa. O sol já spusera há muito, e, não obstante, uma faixa sanguínea, semelhante a uma ferida aberta, estendia-se aindno horizonte distante. No alto, as estrelas brilhavam, e, embaixo, cintilavam na baía as luzes das embarcaçõeOs dois famosos alemães encontravam-se junto do parapeito de pedra da alameda do jardim, de costapara a extensa casa baixa, ornada de pesados frontões, olhando para a ampla curva da praia que sdesenrolava aos pés da enorme rocha calcária, sobre a qual Von Bork, como águia errante, há quatro anotomara o seu pouso. Estavam de pé, com as cabeças quase unidas, e conversavam em tom baixo confidencial. Vistas de baixo, as pontas acesas dos seus charutos pareciam os olhos flamejantes de alguespírito maligno a perscrutar as trevas.

Homem extraordinário, esse Von Bork – criatura que dificilmente encontraria paralelo entre todos os fiéagentes do kaiser. Foram os seus dotes particulares que desde logo o indicaram para a missão inglesa, a maimportante de todas, e, desde o momento em que a empreendera, esses dotes haviam-se tornado cada vemais patentes à meia dúzia de pessoas que, no mundo inteiro, se achavam em contato direto com a verdadUma dessas era o seu atual companheiro, o barão von Herling, primeiro-secretário da legação, cujo possan

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Benz de 100 HP atravancara a estrada, enquanto esperava o seu proprietário, a fim de levá-lo a Londres.– A julgar pelo rumo que tomam os acontecimentos, você provavelmente estará de regresso a Berlim

dentro de uma semana – dizia o secretário. – Quando lá chegar, meu caro Von Bork, creio que ficarásurpreso com a acolhida que lhe está sendo preparada. Estou a par de tudo o que se pensa nas maisaltas esferas a respeito da atividade desenvolvida por você neste país.

O secretário era um homem gigantesco, alto e de compleição robusta, dotado de um modo de falarpausado e persuasivo, que constituía o principal segredo do seu êxito na carreira política.

Von Bork riu.– Essa gente não é muito difícil de lograr – observou. – Não se pode imaginar povo mais dócil e

simplório.– Não diria isso – respondeu o outro, pensativo. – Eles possuem curiosas limitações, que é necessário

aprender a observar. É essa simplicidade superficial que induz o estrangeiro em erro. A primeiraimpressão que se tem deles é de que são inteiramente maleáveis. Depois, subitamente, surge-nospela frente algo de muito sólido, e verificamos que atingimos o limite e precisamos nos adaptar àrealidade. Têm, por exemplo, as suas convenções insulares, as quais, por si sós, devem ser olhadascom atenção.

– Refere-se às regras de bom tom e a todo o resto? – suspirou Von Bork, como alguém que sofreramuito.

– Refiro-me aos preconceitos britânicos com todas as suas ridículas manifestações. A título deilustração, posso lhe citar um dos meus piores descuidos... permito-me falar-lhe dos meusdescuidos, pois você conhece bem a minha obra para saber dos meus êxitos. O fato ocorreu naminha primeira chegada aqui. Eu tinha sido convidado para uma reunião de fim de semana nacasa de campo de um membro do gabinete. A conversa era extraordinariamente indiscreta.

Von Bork concordou com um movimento de cabeça.– Eu também estava lá – observou secamente.– Exato. Pois bem; como era natural, enviei a Berlim um resumo do que ouvira. Por infelicidade,

nosso bom chanceler tem a mão algo pesada nesses assuntos e transmitiu uma nota em que mostravaestar ciente de tudo quanto fora dito. Isso, como é natural, fez com que eu fosse apontado como afonte das informações. Não pode imaginar o prejuízo que esse fato me causou. Posso lhe garantirque não houve nada de delicado na atitude dos nossos amigos ingleses naquela ocasião. Suporteidois anos esse estado de coisas. Agora, você, com essa sua pose esportiva...

– Não, não; não a chame de pose, que é coisa artificial; isto é espontâneo. Sou um esportista nato. Oesporte me agrada muito.

– Justamente; ainda produz melhor resultado. Você compete com eles em corridas de iate, acompanha-os na caça, joga pólo, rivaliza com eles em qualquer competição, sua quadriga alcança o primeiroprêmio no Olympia. Ouvi mesmo dizer que chega ao ponto de praticar pugilismo com os jovensoficiais. E qual é a conseqüência? Ninguém o leva a sério. Você é considerado ‘um camaradão’, ‘umtipo demasiado bom para ser alemão’, um bebedor resistente, um freqüentador de clubes noturnos,um boêmio, enfim. E, no entanto, esta sua tranqüila casa de campo é o centro de metade dasembrulhadas que ocorrem na Inglaterra. Quanto ao elegante esportista, é o mais astuto agente deespionagem da Europa. Isso se chama gênio, meu caro Von Bork... gênio!

– Você me desvanece, barão! Entretanto, posso lhe garantir que os meus quatro anos neste país nãoforam improdutivos. Mas ainda não lhe mostrei o meu pequeno depósito. Quer entrar um instante?

 A porta do escritório dava para o terraço. Von Bork empurrou-a e, tomando a dianteira, apertou o botãoda luz elétrica. Tornou a fechar a porta atrás do seu corpulento companheiro e baixou cautelosamente a

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cortina sobre a janela provida de grades. Só depois de ter tomado todas essas precauções é que volveurosto aquilino e queimado do sol para a sua visita.

– Alguns dos meus documentos já seguiram – explicou. – Quando minha mulher e os criados partiraontem para Flushing, levaram os menos importantes. Naturalmente, preciso pedir a proteção dembaixada para os outros.

– O seu nome já foi incluído na comitiva. Não surgirão dificuldades para você ou para a sua bagagem Afinal, pode ser que nem precisemos partir. Talvez a Inglaterra abandone a França ao seu destin

Sabemos que entre elas não existe nenhum tratado de aliança.– E a Bélgica?– Com a Bélgica sucede a mesma coisa.

Von Bork meneou a cabeça.– Não creio. Existe um acordo determinado. A Inglaterra jamais suportaria tal humilhação.– Pelo menos por enquanto, ela se manterá neutra.– Mas, e a sua honra?– Ora, meu amigo, vivemos numa época pragmática. A honra é um conceito medieval. Além disso,

Inglaterra não está preparada. Parece inconcebível; no entanto, nem o nosso tributo especial dguerra, de cinqüenta milhões, que, julgo, tornou nosso propósito tão evidente como se o tivéssemoanunciado na primeira página do Times, conseguiu despertar esse povo da sua modorra. De quandem quando, surge uma interrogação. É meu dever procurar responder-lhe. De vez em vez, alguése irrita; cabe-me acalmá-lo. Não obstante, posso afirmar-lhe que, quanto ao essencial, isto é, reservde munições, preparativos contra eventuais ataques de submarinos, providências para a fabricaçãde explosivos de alta potência, nada disso está pronto. Como se pode, então, pensar numa intervençãda Inglaterra, mormente agora que instigamos essa sarabanda infernal da guerra civil irlandesa Deus sabe lá que mais para manter-lhe os pensamentos voltados para si mesma?

– Ela precisa pensar no futuro.– Ah! Isso é outro assunto. Suponho que, quanto ao futuro, já temos planos bem definidos em relaçã

à Inglaterra, e que as informações proporcionadas por você serão de interesse vital para nós. Co John Bull, se não for hoje, será amanhã, e, se preferir hoje, estaremos perfeitamente preparados. S julgar melhor amanhã, vai nos encontrar ainda mais prontos. Acho que seria mais prudente ecombater junto de aliados; isso, porém, é lá com ele. Esta semana decide-se o seu destino. Mavocê falava dos seus documentos...

 A luz brilhava em sua vasta calva e ele sentou-se na poltrona, fumando o charuto tranqüilamente.Num canto da outra extremidade da enorme sala, forrada de carvalho e recoberta de livros, havia um

cortina. Von Bork afastou-a, deixando à vista um grande cofre com ornatos de bronze. Em seguida, destacoda corrente do relógio uma pequena chave e, após algumas manobras na fechadura, abriu a pesada porta

– Olhe! – disse, afastando-se para um lado e fazendo um amplo aceno com a mão. A luz batia em cheio sobre o cofre aberto e o secretário da embaixada olhou com grande interesse

fileiras de compartimentos abarrotados de papéis, que o enchiam inteiramente. Cada um desses compatimentos tinha uma etiqueta, e seus olhos percorreram uma longa série de títulos, tais como: ‘Baixios‘Defesas portuárias’, ‘Aviões’, ‘Irlanda’, ‘Egito’, ‘Fortificações de Portsmouth’, ‘Canal da Mancha’, ‘Rosyte muitos outros. Todas aquelas divisões regurgitavam de documentos e planos.

– Formidável! – exclamou o secretário, pondo de lado o charuto e batendo palmas com as mãogordas.

– E tudo isto em quatro anos, barão. Não me parece pouca coisa para um bebedor inveterado, qupassa a vida em competições hípicas! Contudo, a jóia mais preciosa da minha coleção ainda es

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para chegar. Já tem o espaço reservado – observou, apontando para um compartimento vazio, ondese lia: ‘Sinalizações navais’.

– Mas você já tem uma notável coleção de documentos.– Papelada velha e inútil. O Almirantado pressentiu qualquer coisa e mudou todos os códigos. Foi um

golpe terrível, barão... grave retrocesso em toda a minha campanha. Graças, porém, ao meu talãode cheques e ao prestimoso Altamont, tudo estará em ordem esta noite.

O barão consultou o relógio e soltou uma exclamação gutural.

– Infelizmente, não posso me demorar mais. Como deve imaginar, os acontecimentos estão se preci-pitando em Carlton Terrace, e todos nós devemos estar a postos. Esperava poder levar a notícia doseu grandioso lance, mas vejo que não me é possível. Altamont não marcou hora para vir?

Von Bork estendeu-lhe um telegrama:“I rei esta noi te sem falta e levarei novas velas.

Al tamont” .– Velas, hein?– Como vê, ele se finge de mecânico, e eu possuo muitos automóveis. No nosso código, tudo quanto

possa ter importância é indicado sob o nome de peças de motor. Quando fala de ‘radiador’, querdizer ‘vaso de guerra’; uma ‘bomba de óleo’ é um ‘cruzador’, e assim por diante. ‘Velas’ quer dizer‘sinalizações navais’.

– Foi expedido de Portsmouth, ao meio-dia – observou o secretário, examinando a mensagem tele-gráfica. – A propósito, quanto lhe paga?

– Por este trabalho especial, quinhentas libras; mas, como é natural, pago-lhe também um ordenado.– Que miserável! Não há dúvida de que estes traidores são úteis, mas lamento o dinheiro maldito

com que os pagamos.– Com relação a Altamont, não lamento nada. Seu trabalho é admirável. Se lhe pago bem, pelo menos

me entrega a mercadoria, conforme a sua frase pitoresca. Além disso, não é um traidor. Garanto-lheque o nosso Junker, dotado do mais profundo pangermanismo, é uma pomba inocente nos seus

sentimentos contra a Inglaterra, comparado a esse fanático irlandês-americano.– Oh! É irlandês da América?– Se você o ouvisse falar, não teria a menor dúvida. Algumas vezes custa-me entendê-lo. Parece ter

declarado guerra tanto ao rei inglês como ao inglês do rei... Mas precisa mesmo ir? Ele deve chegara qualquer momento.

– Sinto muito, mas já é tarde. Nós o esperaremos amanhã de manhã, e, quando tiver feito passar esselivro de sinais através da portinhola, pelas escadas do Duke of York, poderá pôr um ‘Finis‘ triunfal àsua missão na Inglaterra. Que é isso? Um tocai [vinho licoroso e muito aromático, produzido nazona setentrional da Hungria, nas proximidades da cidade de Tokaj (NT)]? – exclamou repentina-mente, apontando para uma garrafa coberta de poeira e fortemente arrolhada, que se encontravanuma bandeja entre dois copos.

– Aceita um copo antes de partir?– Não, obrigado. Mas tenho a impressão de que vai haver um festim.– Altamont tem bom paladar em questão de vinhos e apaixonou-se pelo meu tocai. É um tipo muito

sensível e preciso enchê-lo de pequenas atenções. Tive necessidade de estudar bem o gênio dele.Eles tinham saído para o terraço e atravessaram-no até o outro extremo, onde, a um toque do motorista

do barão, o motor do enorme carro pôs-se a funcionar.–  Aquela deve ser a iluminação de Harwich, suponho eu – observou o secretário, vestindo o casaco.

– Como tudo parece calmo e imóvel! Talvez haja outras luzes no decurso da semana, e as costas

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pendia-lhe um charuto meio fumado, meio mastigado. Assim que se sentou, riscou um fósforo para acendê-lo de novo.

– Preparando-se para partir? – indagou, olhando em redor. – Eh! amigo – acrescentou, enquanto oseu olhar pousava no cofre, cuja cortina tinha sido afastada –, não me diga que guarda os seusdocumentos naquilo!

– Por que não?– Que diabo! Num lugar tão exposto como esse? E, depois, o senhor é um espião! Ora, qualquer

ladrão americano seria capaz de arrombá-lo com um abridor de latas. Se eu soubesse que qualquerdas minhas cartas iria parar numa coisa assim, jamais as escreveria.

– O mais hábil arrombador não seria capaz de forçar este cofre – retorquiu Von Bork. – Não háinstrumento que consiga cortar-lhe o metal.

– Mas, e a fechadura?– Também não. Possui um segredo duplo. Sabe o que significa isso?– Macacos me mordam! – redargüiu o americano.– Não é suficiente formar apenas uma palavra, mas também uma série de algarismos, para que ela

funcione – disse, levantando-se e mostrando ao redor do orifício da fechadura um disco de duplaradiação. – Este de fora é para as letras e o de dentro, para os algarismos.

– Bem imaginado, não há dúvida.– Não é, portanto, tão simples como você pensava. Mandei fazê-lo há quatro anos. Será capaz de

adivinhar a palavra e o número que escolhi?– Não.–  Agosto e 1914, aí está.

 A fisionomia do americano exprimiu surpresa e admiração.– Com os diabos! Foi bem pensado!– Sim; na ocasião, poucos de nós poderíamos adivinhar a data. Mas aí está ela, e amanhã de manhã

encerro as minhas atividades.

– Bem, acho que vou precisar dar um jeito na minha vida. Não pretendo ficar sozinho neste miserávelpaís. Pelo que vejo, dentro de uma semana ou menos, John Bull vai se colocar nas patas traseiras ecomeçar o ataque. Prefiro observá-lo do outro lado do canal.

– Mas você não é cidadão americano?– Ora, Jack James também era, e no entanto o meteram na cadeia em Portland. Não adianta a gente

dizer aos guardas ingleses que é cidadão americano. ‘Aqui imperam a lei e a ordem britânicas’,afirmam eles. E por falar em Jack James, meu caro, parece que você não se preocupa muito emproteger os seus auxiliares.

– Que quer insinuar? – perguntou Von Bork em tom incisivo.– Bem, é o chefe, não é? Cabe-lhe providenciar que não caiam em desgraça. Entretanto, eles caem, e

quando é que você se dá ao trabalho de socorrê-los? James, por exemplo...– Esse era louco.– Bem, realmente, no fim ele ficou meio maluco. Também não era para menos, tendo de trabalhar dia

e noite com uma centena de agentes nos calcanhares, prontos para algemá-lo. E agora chegou a vezde Steiner...

Von Bork estremeceu violentamente, e seu rosto bronzeado tornou-se pálido.– Que aconteceu a Steiner?– Aconteceu que foi apanhado, eis tudo. Invadiram sua loja ontem à noite, e ele, com todos, os seus

documentos, foi parar na prisão de Portsmouth. Você vai embora e ele, pobre-diabo, terá que agüentar

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o repuxo e ainda se dar por satisfeito se conseguir salvar a pele. Eis por que tenciono atravessarcanal tão depressa como você.

Von Bork era forte e dominava-se perfeitamente; contudo, era fácil perceber que a notícia o abalara.– Como teriam eles apanhado Steiner? – murmurou. – É o fato mais lamentável sucedido até agora– Ora, por pouco não aconteceu coisa pior, pois tenho a impressão de que já andam na minha pist– Não é possível!–  Afirmo-lhe que é. A dona da pensão em que moro, no caminho de Fratton, já foi interrogada,

quando eu soube disso, achei que tinha chegado o momento de me pôr a salvo. Mas o que nãposso compreender é como a polícia consegue saber dessas coisas. Steiner é o quinto homeque você perde desde que estou a seu serviço, e, se eu não escapar a tempo, saberei muito bequem será o sexto. Como explica isso? Não se envergonha de ver seus homens desapareceredeste modo?

Von Bork tornou-se rubro de cólera.– Como ousa falar dessa maneira?– Se não ousasse, meu caro, não estaria a seu serviço. Mas vou lhe dizer sem rodeios aquilo qu

penso. Ouvi dizer que vocês, alemães, quando um agente já cumpriu sua missão, não se importacom o fato de ele ser posto de molho.

Von Bork pôs-se de pé num salto.– Você se atreve a insinuar que traí meus próprios agentes?– Não chego a tanto, meu amigo, mas há algo em tudo isto, e cabe a você desvendá-la. Seja como fo

não quero correr mais riscos. Vou para a pequenina Holanda, e quanto mais depressa melhor.Von Bork tinha dominado a sua cólera.

– Temos sido amigos há muito tempo para discutir agora, no momento exato da vitória – disse. – Vocrealizou um trabalho esplêndido e correu perigos dos quais não posso me esquecer. Vá, pois, sedemora, para a Holanda, e em Rotterdam poderá tomar um vapor para Nova York. Daqui a umsemana, nenhuma outra linha de navegação oferecerá segurança. Levarei esse livro com o resto do

documentos.O americano conservava o pacote na mão, mas não fazia a menor menção de entregá-la.– E a coisa? – perguntou.– O quê?– O cobre? O pagamento? As quinhentas libras? O artilheiro tornou-se exigente à última hora, e,

eu não lhe tivesse passado mais cem dólares, nada teria conseguido. ‘Nada feito!’, respondia-mele, e o fazia com convicção, mas os últimos cem o amoleceram. A brincadeira me custou ao todduzentas libras, e por isso é lógico que eu não queira me desfazer da mercadoria sem receberminha parte.

Von Bork esboçou um sorriso amargo.– Você não parece ter em grande conceito a minha honra – observou. – Exige o dinheiro antes de m

entregar o livro.– Negócios são negócios, meu caro.– Muito bem; como quiser.

Sentou-se à mesa e preencheu rapidamente um cheque, mas, antes de entregá-la ao americano, estaco– No fim de contas, se são essas as condições, Altamont, não vejo por que deva confiar mais em voc

do que você em mim. Percebe? – acrescentou, olhando por cima do ombro para o companheiro. Aqui está o cheque, em cima da mesa. Reclamo o direito de examinar esse pacote antes de lhentregar o cheque.

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O americano estendeu-lhe o volume. Von Bork desfez o nó do barbante que o amarrava e desembrulhouos dois papéis do invólucro. Perplexo, contemplou, em silêncio, o livrinho azul que jazia à sua frente, emcuja capa se lia em letras douradas: ‘Manual prático de apicultura’. Pouco tempo, porém, sobrou aocélebre espião para contemplar esse título estranhamente comum. Um instante depois, sentiu-se agarradopelo pescoço por mão de ferro, enquanto uma esponja embebida em clorofórmio era mantida diante doseu rosto convulsionado.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .– Outro copo, Watson? – perguntou Sherlock Holmes, estendendo a mão para a garrafa de tocai.

O alentado motorista, que tinha se sentado à mesa, estendeu prontamente o seu copo.– Bom vinho, Holmes.– Verdadeiramente notável, Watson. O nosso amigo, ali deitado no sofá, garantiu-me que provém da

adega particular de Francisco José, do Palácio Schonbrunn. Faça o favor de abrir a janela, pois ocheiro de clorofórmio não é agradável ao paladar.

O cofre estava entreaberto e Holmes, em pé à sua frente, retirava documento por documento, os quais,após rápido exame, colocava com cuidado na maleta de Von Bork. O alemão roncava estentoreamente sobreo sofá, de pés e braços amarrados.

– Não precisamos ter pressa, Watson. Ninguém nos interromperá. Quer tocar a campainha? Não hámais ninguém na casa, além da velha Martha, que representou de forma admirável o seu papel. Arranjei-lhe emprego aqui, logo que comecei a tratar deste caso. Ah! Martha, pode estar sossegada;tudo correu às mil maravilhas.

 A simpática velhota surgira no umbral da porta. Inclinou-se com um sorriso para Holmes, mas volveu umolhar algo apreensivo para a figura estirada no sofá.

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– Ah! É o que muitas vezes tenho perguntado a mim mesmo. Se fosse apenas o ministro do Exterior,eu teria resistido. No entanto, quando o primeiro-ministro em pessoa se dignou visitar a minhahumilde morada!... O fato, Watson, é que esse cavalheiro aí no sofá era demasiado astuto para anossa gente. Pertencia a uma classe à parte. As coisas iam de mal a pior e ninguém conseguiacompreender a razão. Agentes eram alvo de suspeitas ou chegavam a ser apanhados; contudo,havia provas de uma força central secreta e poderosa. Tornava-se absolutamente necessáriodesmascará-la. Recebi urgentes e pertinazes solicitações para que me ocupasse do assunto. Esta

aventura custou-me dois anos, mas foi desprovida de interesse. Quando lhe disser que iniciei aminha peregrinação em Chicago, que ingressei numa sociedade secreta irlandesa em Buffalo, quedei sério trabalho à polícia de Skibbereen, conseguindo assim, mais tarde, chamar sobre a minhapessoa a atenção de um subordinado de Von Bork, que me recomendou a ele como homem promissor,você perceberá a complexidade do caso. Desde então fui honrado com a confiança do célebreespião, o que não impediu o malogro da maioria dos seus planos e a prisão de cinco dos seusmelhores agentes. Eu os tinha debaixo dos olhos e apanhei-os no momento oportuno... Ora, ora,meu caro, espero que já esteja melhor!

Esta última observação era dirigida ao próprio Von Bork, que, após muito resfolegar e piscar os olhos,ficara silencioso, ouvindo a explicação de Holmes. Diante dela, irrompeu numa torrente furiosa de invectivasgermânicas, com o rosto transtornado pela cólera. Holmes prosseguiu no seu rápido exame dos documentos,enquanto o prisioneiro rugia e praguejava.

– Apesar de pouco melodioso, o alemão é a mais expressiva de todas as línguas – observou, quandoVon Bork se interrompeu, dominado pelo cansaço. – Caramba! – acrescentou, fitando com maisatenção o canto de um tratado, antes de repô-lo no cofre. – Isto servirá para meter outro pássaro nagaiola. Não imaginava que o tesoureiro doMinistério da Guerra fosse tão velhaco, emborao tivesse há muito debaixo de olho. Caro VonBork, o senhor irá responder por muitos crimes.

O prisioneiro endireitara-se com certa dificuldade sobreo sofá e fitava o seu captor numa curiosa mistura deestupor e ódio.

– Ainda ajustarei contas com você, Altamont – disseele com vagarosa deliberação; – mesmo que levea vida inteira, haveremos de ajustar contas.

– Sempre a mesma velha cantiga – comentouHolmes. – Quantas vezes já a ouvi em épocaspassadas... Era o estribilho favorito do saudosoprofessor Moriarty. Dizem que o coronelSebastian Moran também o aprendera. E, nãoobstante, aqui estou eu, vivo, criando abelhas emSouth Downs.

– Maldito, duas vezes traidor! – vociferou oalemão, retesando os músculos num supremoesforço e encarando o adversário com furorhomicida.

– Não, não sou assim tão ruim – disse Holmes,sorrindo. – Como por certo demonstra a minha

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maneira de falar, o sr. Altamont, de Chicago, não tinha existência real. Servi-me dele e liquidei-o.– Quem é você, então?– Para falar com franqueza, não importa muito quem eu seja, mas, desde que isso parece interessá-l

sr. von Bork, posso afirmar-lhe que esta não é a primeira vez que entro em contato com membroda sua família. Trabalhei muitas vezes na Alemanha em tempos idos, e talvez o meu nome não lhseja desconhecido.

– Gostaria de saber – disse o prussiano em voz ríspida.

– Fui eu quem provocou a separação entre Irene Adler e o finado rei da Boêmia, quando seu primHeinrich era o encarregado dos negócios imperiais na Inglaterra. Fui eu ainda quem evitou o assasinato, por parte do niilista Klopman, do conde von und zu Grafenstein, irmão mais velho de sumãe. Fui eu também...

Von Bork esbugalhou os olhos, estupefato.– Existe apenas um homem – gritou.– Exatamente – confirmou Holmes.

Von Bork soltou um gemido e afundou-se no sofá.– E quase todas as minhas informações foram obtidas por seu intermédio – exclamou. – Que val

podem ter elas? Que fiz eu? Estou completamente arruinado.– São, sem dúvida, um tanto inexatas – replicou Holmes. – Necessitam de certas verificações, e nã

lhe sobrará tempo para fazê-las. Seu almirante talvez ache o calibre dos novos canhões muito maido que ele imagina, e os cruzadores um pouco mais velozes.

Von Bork fez um gesto desesperado.– Há também um grande número de pormenores que, com toda a certeza, virão à luz no devid

tempo. Todavia, você é dotado de uma qualidade raríssima num alemão, Von Bork. Possui espíriesportivo e não me guardará rancor quandocompreender que, tendo conseguido iludirtantos outros, acabou sendo iludido por mim.

 Afinal, você agiu com as melhores intençõespelo bem do seu país, e eu fiz outro tanto pelomeu. Que pode haver de mais natural? Alémdisso – acrescentou com certa doçura, pou-sando a mão no ombro do adversário subjugado–, é melhor assim do que cair diante dequalquer inimigo mais ignóbil. Os documentos já estão prontos, Watson. Se quiser me ajudara levar o prisioneiro, creio que poderemos partirpara Londres imediatamente.

Não foi fácil retirar Von Bork, que era homem fortee destemido. Finalmente, agarrando-o pelos braços,nós dois conseguimos arrastá-lo aos poucos pelopasseio do jardim, que ele percorrera com tãoorgulhosa segurança quando, algumas horas antes,recebera as congratulações do famoso diplomata. Apósum esforço final, foi alojado, sempre de pés e mãosamarrados, no banco traseiro do pequeno automóvel.

– Temo que não se sinta tão cômodo quanto as

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O AUTOR E SUA OBRA  Arthur Conan Doyle nasceu em Picardy Place, Edimburgo (Escóci

no dia 22 de maio de 1859. Seu pai, Charles Altamont Doyle, era funcionário público no Edinburgh Office of Works. Ele sofria de epilepsiaalcoolismo e foi institucionalizado, vindo a falecer num asilo em 189Sua mãe, Mary (Foley) Doyle mantinha uma pensão. Ambos tinham de

cendência irlandesa e eram católicos de origem normanda. A criatividade era patente na ascendência de Doyle: seu avô foi u

criativo caricaturista; seu tio, um famoso ilustrador. O pai de Doyle earquiteto, desenhista e ilustrador de livros. O próprio Doyle foi admirdor de Edgar Allan Poe e Emile Gaboriau.

 Ainda criança, Arthur freqüentou colégios jesuítas no continente (Áutria) e na própria Grã-Bretanha. Em outubro de 1876, aos dezesseis anoingressou na Universidade de Edimburgo, onde em 1882 se diplomarem medicina, especializando-se em oftalmologia.

Na Universidade de Edimburgo, Doyle conheceu o Dr. Joseph Bell quem descreveria como uma pessoa com fisionomia de águia, maneiras bizarras e o estranho dom dobservar certos detalhes), cirurgião do Hospital de Edimburgo e professor na Universidade, cujos surpreedentes métodos de dedução e análise serviram de grande inspiração na futura criação do seu célebre dettive. De maneira similar a Holmes, o Dr. Bell diagnosticava os pacientes, explicava os seus sintomas e amesmo lhes contava detalhes de suas vidas antes que eles pronunciassem sequer uma palavra sobre suaflições. Também Sir Henry Littlejohn, que ensinou medicina forense a Doyle, deixou-lhe uma profundimpressão e contribuiu para o desenvolvimento do caráter de Holmes.

Foi nas horas de ócio em seu consultório médico que Doyle começou a esboçar o que mais tarde seriaseu detetive. A atividade médica o ocuparia por dez anos, até 1891. Quando Doyle se lembrou do profess

Bell, ganhava muito pouco, numa modesta clínica que possuía, nos arredores de Portsmouth.Pressionado pela necessidade e incentivado pelos conselhos de um amigo (que mencionara como as sucartas eram expressivas), Doyle percebeu que poderia ganhar algum dinheiro fora do campo da medicinacedeu lugar à literatura, ou melhor, a dois tipos de literatura: os livros policiais, que lhe deram popularidade fortuna – os quais não hesitava em definir como ‘obras indignas’ de sua alma cristã –, e os romancehistóricos, cuja redação o levou a estudar durante anos o período em que se desenvolveriam as suas histrias, que lembravam as de Walter Scott.

Sua primeira história, O Mistério de Sassassa V O Mistério de Sassassa V O Mistério de Sassassa V O Mistério de Sassassa V O Mistério de Sassassa V  alley  alley  alley  alley  alley , foi publicada anonimamente (por míseros três gunéus) no Chamber’s Journal, em 1879. O conto revela a sua precoce idéia da aparição de uma ‘besta demníaca’, tema que ele mais tarde explorou na mais famosa história de Sherlock Holmes, O Cão dos Bask O Cão dos Bask O Cão dos Bask O Cão dos Bask O Cão dos Bask ervilleervilleervilleervilleerville

Depois de muitas tentativas e frustrações, Doyle conseguiu que fosse publicada a sua primeira histórestrelando o detetive e o seu escudeiro Watson. Um Estudo em V Um Estudo em V Um Estudo em V Um Estudo em V Um Estudo em V ermelhoermelhoermelhoermelhoermelho apareceu na Beeton’s Christm Annual, em 1887. A boa aceitação do público levou-o a escrever a segunda história de Holmes, O Signo doO Signo doO Signo doO Signo doO Signo doQuatroQuatroQuatroQuatroQuatro, que foi publicada na Lippincott’s Magazine. O detetive começava a chamar a atenção, aos poucoatraindo o que mais tarde se tornaria uma legião de leitores fiéis.

 A personagem – inicialmente Sherringford Holmes, com o nome logo mudado para Sherlock Holmesera ao mesmo tempo o professor Bell, Auguste Dupin, de Poe, e M. Lecoq, de Gaboriau, mas era sobretudHolmes, a mais perfeita máquina de raciocínio e dedução que o mundo conheceu, sempre ao lado de seamigo e auxiliar, o dr. Watson.

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O sobrenome do detetive pode ter sido baseado no jurista americano e colega médico Oliver WendellHolmes; o primeiro nome pode ter vindo de Alfred Sherlock, violinista proeminente em sua época. O Dr. John Watson, médico de Southsea e membro da Sociedade Científica de Portsmouth (que serviu na Man-chúria por algum tempo) teve a honra de dar o nome ao companheiro de Holmes.

 As características que tornaram Holmes atraente aos leitores – sua integridade, probidade, sensibilidade,determinação racional, ausência de sentimentalismo e superioridade intelectual – são avaliadas e relatadaspor Watson, médico como Doyle, concedendo humanidade a Holmes, que sem considerar a indulgência de

Watson, torna-se frio, inacessível e desagradável. “Pode ser que você não seja luminoso”, diz Holmes aWatson, “mas você é um condutor de luz. Algumas pessoas, mesmo sem possuir gênio, têm um notávelpoder de estimular isso nos outros”.

O método sherlockiano é típico da análise científica: ao deparar com o crime, ele não se ocupa da psico-logia da vítima ou dos suspeitos. A linguagem dos fatos é soberana e as pistas concretas levarão infalivel-mente às causas que as produziram. A famosa personagem realmente acreditava na infalibilidade da ciência.

Nos intervalos das histórias do detetive, Doyle dedicou-se a obras ‘mais sérias’, mais apreciadas peloescritor, como A Companhia Branca A Companhia Branca A Companhia Branca A Companhia Branca A Companhia Branca, As F As F As F As F As Façanhas do Brigadeiro Gerardaçanhas do Brigadeiro Gerardaçanhas do Brigadeiro Gerardaçanhas do Brigadeiro Gerardaçanhas do Brigadeiro Gerard e Miquéias ClarkMiquéias ClarkMiquéias ClarkMiquéias ClarkMiquéias Clarkeeeee; este último,um grande sucesso. Doyle acabou, assim, abandonando a medicina para seguir definitivamente a carreiraliterária.

 As histórias de Sherlock Holmes tornavam-se mais e mais populares, obrigando Conan Doyle a continuarcriando aventuras para o seu detetive. E quanto mais vezes o detetive expunha as suas habilidades para opúblico estupefato, mais as outras obras de Doyle tornavam-se obscurecidas. Em 1891 ele escreveu à suamãe: “Tenho pensado em matar Holmes... e livrar-me dele para sempre. Ele mantém a minha mente afasta-da de coisas melhores”.

 A idéia de acabar com Holmes permanecera com Doyle. Durante a sua visita à Suíça, em 1893, eleconheceu as cataratas Reichenbach, local que escolheu como palco para o encontro fatal entre Holmes e oProfessor Moriarty. Pretendia, assim, pôr um fim às histórias de Holmes e dar espaço às suas obras maisclássicas.

Na última narrativa das Memórias de Sherlock Holmes, O Problema F O Problema F O Problema F O Problema F O Problema F inalinalinalinalinal, de 1893, o detetive e um vilão,o professor Moriarty, despencam num abismo dos Alpes. Para a grande surpresa de Doyle, a morte deSherlock Holmes chocou milhares de pessoas de todos os cantos do mundo. Muitos marcharam em lutopelas ruas de Londres, em protesto. O público não se conformava e clamava pela volta do detetive.

 A despeito das queixas de toda a Grã-Bretanha, Holmes continuou morto por dez anos. Em 1903, cedendomais uma vez ao apelo dos editores – que lhe ofereciam propostas irrecusáveis – Doyle ressuscitou odetetive, que não caíra no precipício, mas escalara o outro lado do paredão. Assim, em meio a um turbilhãode protestos e insultos, Doyle trouxe de volta o seu detetive no episódio A Casa V  A Casa V  A Casa V  A Casa V  A Casa V  azia azia azia azia azia, em 1903. Era a provade que a criatura tornara-se mais forte do que o criador: Sherlock Holmes tinha se tornado imortal.

No final de 1899 o iminente conflito entre a Inglaterra e a África do Sul deu a Doyle, patriota fervoroso, aoportunidade de auxiliar o seu país. Durante a Guerra dos Bôeres ele exerceu a sua profissão supervisionan-do o hospital de Langman Field, na África, posto que assumiu em 1900.

 Juntamente com a guerra, veio de todo o mundo um surto de críticas contra a conduta do Império Britâ-nico. Coube a Doyle defender os interesses de sua pátria no panfleto amplamente traduzido A Guerra na África do Sul: Suas Causas e Conduta.

Pelos seus esforços na defesa dos interesses do seu país, Conan Doyle recebeu, em 1902, o título denobreza do Império. Passou, então, a portar o soberbo título Sir antecedendo seu nome.

Em 1912, Doyle introduziu no mundo da literatura o célebre Professor Challenger, de O Mundo P O Mundo P O Mundo P O Mundo P O Mundo P erdidoerdidoerdidoerdidoerdido,um conto sobre o renascimento da pré-história num lugar remoto da América do Sul.

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 Apesar da hostilidade do criador pela criatura, Holmes tornou-se sempre mais popular, em livros, adaptaçõpara o teatro e, mais tarde, para o cinema. Até hoje chegam cartas ao número 221-B da Baker Street, eLondres, onde era seu escritório.

Dotado de espírito aventureiro, Doyle participou de diversas expedições às regiões árticas e à África.Sua primeira esposa, Louise Hawkins, com quem havia se casado em 1884, faleceu em 1906. Ele se caso

com Jean Leckie em 1907.Doyle concorreu sem sucesso para Parlamento em 1900 e em 1906.

Em seus últimos anos de vida – e de certo modo contradizendo as atitudes de seu imortal herói – Doyconverteu-se ao espiritualismo e foi um pregador incansável de sua fé, dedicando-se ao seu estudo aprofudado, tema sobre o qual escreveu à exaustão. O espiritismo tornou-se para ele uma religião e o levoupromover palestras em vários países, como a Austrália e África do Sul. Em 1922, declarou que a famosa fodas fadas de Cottingley era autêntica.

 Sir Arthur Conan Doyle faleceu em Windlesham (Sussex, Grã-Bretanha) a 7 de Julho de 1930, debilitadpor um ataque cardíaco que o afligira meses antes. Ele escreveu mais de sessenta histórias e também nãficção, jogos, versos, memórias, contos e vários romances históricos e sobrenaturais, além de ficçãespeculativa.