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    II Seminário sobre Educação a Distância da Faculdade deEducação da Unicamp

    EaD e as universidade públicas: gestão, processo, docênciae implicações institucionais e políticas da modalidade. 

    Campinas, 17 de setembro de 2009 1

    Tecnologia, espaciotemporalidade e educação: Contribuições

    dos estudos sobre Novos Letramentos para uma reflexão sobre

    EAD e Universidade no Brasil.

     Marcelo El Khouri Buzato

    IEL/UNICAMP

    Introdução: educação e inclusão na modernidade tardia

    Estou certo de que não sou o único educador que se incomoda diariamente

    com o que lê/escuta na mídia, ou na fila da padaria, acerca da Educação no

    Brasil. Parece que todas as narrativas sobre os problemas do país, da gripe

    suína à violência no trânsito passando pela corrupção na política, terminam

    inevitavelmente com o enunciado duplo e dúbio: “o problema/a solução

    desse/para esse país é a (falta de) Educação”. Perturbam-me mais ainda as

    réplicas a esses enunciados das por certos especialistas de plantão: “é precisofomentar a competição no sistema escolar”, “a escola precisa ser trazida ao

    século XXI”, a educação necessita de um choque de gestão”.

    Me incomodam essas réplicas, primeiro, porque são cínicas. A competição já

    existe: compete-se por tempo no computador, por verbas para o passeio, pela

    vaga no estacionamento da escola, pela carteira para canhotos, pela última

    coxinha da cantina... A escola (pública, sobretudo, no ensino fundamental e

    médio, e privada, sobretudo, no ensino superior) já está firmemente fincada no

    século XXI: onde mais estariam, lutando por “empregabilidade” e não mais por

    emprego, os filhos dos “perdedores” que o capitalismo hipertecnologizado e

    transnacionalizado não pára de produzir? Sobretudo, não é exatamente, ou

    somente, a escola que necessita de um choque de gestão: é – e sempre foi – o

    país que, como quase todos os outros, fez da educação formal pública um

    mecanismo institucionalizado de exclusão daqueles que nela chegam sem o

    domínio dos códigos culturais (ou das relações pessoais) que caracterizam as

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    elites competitivas (BOURDIEU; PASSERON, 1975), o país que usa a escolapara não gerir, mas simplesmente justificar, fazendo circular certos discursos

    ligados a uma pseudomeritocracia, uma certa relação entre diferença cultural e

    desigualdade social.

    Também me amuam essas propostas porque apontam, para a escola, e para

    quem precisa dela, soluções de “inclusão” que os “incluídos” não querem para

    si: ter que competir pelo que lhes devia ser dado por direito, serem trazidos a

    um contêiner que alguém projetou em lugar de produzirem o tempo-espaço de

    sua “inclusão”, levar o “choque” em lugar de redesenharem o “circuito” no qual

    circulam seus desejos, seus corpos, sua atividade.

    Em resumo, não acho que a escola deva ser a parada onde se pega  o ônibus

    de uma inclusão 1 em outro lugar: ela deve ser o ônibus, e a inclusão o espaço

    que ela cria ao circular.

    Se é verdade que os procedimentos e as mentalidades prototípicas da escola,não só no Brasil, mas em todo o mundo, parecem mais adequados ao Século

    XIX, não é menos verdade que o que muitos esperam que ela faça também

    não corresponde ao que se pretende fazer “inclusão” significar hoje. Como

    explica García Canclini (2005:17, ênfases adicionadas),

    agora importam as diferenças integráveis ao mercadostransnacionais e acentuam-se as desigualdades, vistas comocomponentes 'normais' para a reprodução do capitalismo. (...) Asociedade, antes concebida em termos de estratos e níveis, oudistinguido-se segundo identidades étnicas ou nacionais, agora épensada com a metáfora da rede. Os incluídos são os que estãoconectados. ...

    1 Quem fala em “inclusão”, fala, na maior parte dos casos, do lugar de incluído, isto é, fala como alguém

    que se vê pertencendo a um contexto estável, homogêneo e fechado, dentro do qual o objetivo ou ideal

    que termos desgastados como “cidadania” ou “justiça social” tentavam descrever no passado já teria sido

    plenamente alcançado. Mais do que isso, fala como alguém que já definiu aquilo que é, tem ou faz comobom e necessário para todos os demais. Não é desse lugar que pretendo falar, se puder evitar.

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    Quando pensamos em EAD, tendo em vista, sobretudo, as novaspossibilidades de mediação tecnológica de que ela se serve hoje, precisamos

    ter bastante clareza sobre o que queremos, afinal, que ela promova nessa

    relação entre desigualdade , diferença   e conexão . Isto porque, boa parte das

    propostas tradicionais já mencionadas combinam perfeitamente com certos

    modos de se fazer EAD: a presença de tecnologias casa-se perfeitamente com

    o apelo à modernização e à gestão eficiente. A possibilidade de descolar as

    interações que fazem o empreendimento educacional de territórios e sistemasnormativos que lhes impõem custos, controles e incertezas vistos como

    excessivos, é algo que traz novos atores para o “mercado” e aumenta a

    competitividade entre eles, certamente.

    Esses discursos que critico não alcançaram uma ampla abrangência e

    relevância gratuitamente, obviamente. De fato é necessário melhorar a gestão,

    modernizar os métodos e as mentalidades, ampliar o alcance territorial do

    empreendimento educacional e, sobretudo, desmantelar os feudos acadêmicose mercados cativos da educação no país. Mas há diversas maneiras de fazê-lo,

    algumas talvez menos problemáticas, se bem que menos interessantes, do que

    a EAD. Da mesma forma, a EAD abre as possibilidades de ação e reflexão na

    educação em direções muito mais interessantes e potencialmente

    transformadoras do que se têm habitualmente visto, quando nos dispomos a

    olhá-la da margem (não do seu centro nem do seu “exterior”). Dito de outra

    forma, se não é justo imputar à EAD a responsabilidade por todos osproblemas que há na educação hoje e, tampouco, esperar dela que os resolva!

    Mas ela é, talvez, o lócus mais propício no momento para o desencadeamento

    de uma certa reflexividade entre os educadores.

    O sentido de reflexividade que estou tentando acionar aqui é o de Giddens

    (1991), i.e. o da ordenação e reordenação do sistema social promovida pela

    circulação do conhecimento nos contextos a que ele se refere: a mera inserção

    da EAD nos discursos sobre educação traz à consciência dos educadores o

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    problema inescapável da relação entre ensino/aprendizagem eespaciotemporalidade.

    O fato é que, novamente citando Giddens (op. cit.), vivemos, há alguns

    séculos, mas cada vez mais intensamente, o que o autor denomina desencaixe

    (disembedding), i.e um descolamento das relações sociais dos seus contextos

    locais tradicionais. Trata-se do esvaziamento do tempo-espaço de suas

    referências dadas pelos domínios locais (a vida quotidiana, as práticas sociais

    situadas e ancoradas na presença física dos atores/interlocutores) e sua

    padronização por meio de referenciais mais abrangentes (globais) fundados na

    ausência, o que produz uma reestruturação das próprias relações.

    São dois, basicamente, segundo Giddens (op. cit.), os mecanismos que

    possibilitam esse desencaixe:  fichas simbólicas   (tokens) e sistemas peritos  

    (expert systems). Fichas simbólicas são meios de troca que carregam valores

    estandardizados e que, portanto, possibilitam estabelecer relações sociais ao

    longo do tempo e do espaço sem a necessidade do deslocamento dos corpos

    dos participantes. O exemplo clássico de ficha simbólica é o dinheiro, por seu

    valor de troca universal e porque ele pode circular indefinidamente. Já sistemas

    peritos são maneiras de organizar e gerir a atividade social baseadas em

    conhecimento técnico-científico tido como universalmente válido, modos de

    fazer o mundo “continuar a girar” que independem dos praticantes envolvidos e

    que penetram virtualmente todos os aspectos do quotidiano. São esses

    sistemas que “garantem”, por exemplo, nossa confiança na comida e nos

    remédios que consumimos, nos arranha-céus em que vivemos, nos aviões que

    de que nos servimos para ir a congressos.

    Tanto fichas simbólicas quanto sistemas peritos dependem, para serem

    eficazes, da confiança  que depositamos neles. Um pedaço de metal só

    funciona como moeda, por exemplo, porque compartilhamos uma mesma

    crença sobre seu valor de troca no nosso sistema econômico. Confiamos tão

    plenamente nos sistemas peritos de que nos servimos, mesmo não os

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    compreendendo completamente, ou melhor, especialmente porque não oscompreendemos internamente, que, no caso de algo dar errado (como o

    prédio ruir, o avião se perder, o remédio não nos curar, etc.), tendemos a

    responsabilizar, primeiro, algum agente local (a cobiça do empreiteiro, a

    irresponsabilidade da “perua” que não desligou o celular durante a decolagem,

    o analfabeto que tomou o remédio sem ler a bula).

    Estas reflexões de Giddens possibilitam sugerir que tanto o preconceito que

    alguns guardam contra a EAD, quanto o entusiasmo acrítico com que alguns

    outros pretendem implantá-la indiscriminadamente, passam exatamente pela

    relação entre desencaixe   e confiança . É a partir dessa relação, em última

    análise, que os evangelizadores   e os detratores   da EAD tiram a força para

    muitos de seus argumentos.

    De um lado, espera-se que a EAD contorne as mazelas “locais” da educação

    (dita tradicional) em todos os níveis, fornecendo ao país, finalmente, um

    sistema perito2. Espera-se que ela produza e faça circular, mais eficientemente,

    fichas simbólicas trocáveis, no capitalismo pós-industrial, por algum tipo de

    “inclusão”: certificados trocáveis por empregabilidade, learning objects  

    trocáveis por learning schedules  cheios de incertezas locais, notas em exames

    estandardizados trocáveis por mais verbas ou mais cartões de benefícios

    sociais; essas verbas e cartões trocáveis por mais votos nas eleições locais,

    etc. Por outro lado, a asserção construtivista (fundamentada na Antropologia)

    de que o conhecimento é local, dependente de contexto ou situado  serve para

    levantar suspeitas sobre a efetividade de fazer da EAD um avatar do

    desencaixe na educação.

    Minha contribuição aqui não será no sentido de apoiar os detratores ou os

    evangelizadores da EAD, mas de chamar a atenção dos colegas que trabalham

    2 São vários, evidentemente, os atores humanos e não humanos envolvidos nesse mesmo

    empreendimento, dentre os quais, os testes estandardizados de abrangência regional, nacional einternacional.

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    na interface entre educação, linguagem e tecnologia em que me sinto “situado”,para uma outra faceta do problema. O que vim fazer foi dividir com eles

    algumas reflexões sobre como os assim chamados novos

    letramentos/letramentos digitais trouxeram à consciência dos que pesquisam

    letramento a necessidade de repensar relação entre prática social, história e

    espaciotemporalidade nas nossas pesquisas e propostas de ação.

    Letramento, tecnologias e espaciotemporalidade: reflexões correntes

    O problema da relação entre contexto e letramento é tão antigo quanto o

    próprio conceito de letramento. Resumindo drasticamente as visões aí

    manifestadas nos últimos cinquenta anos, podemos destacar três momentos.

    Um primeiro conjunto de estudos, identificado posteriormente como “modelo

    autônomo”, defendia que a escrita alfabética teria possibilitado ao Homem

    separar os significados da fala dos significados do falante. Nesse modelo, o

    texto escrito (alfabético) aparece como ferramenta que permite ao pensamento

    não apenas transcender a espaciotemporalidade da enunciação, como

    transportar, acumular e combinar proposições entre tempos e espaços

    discretos, de modo que um problema complexo pudesse ser resolvido em

    etapas e com o auxílio de uma “memória externa” duradoura e confiável.

    Importa dizer aqui que, baseados nessa tese, tais autores postularam um

    relação determinista entre escrita e desenvolvimento (cognitivo e social), e que

    essa postulação está ligada, historicamente e conceitualmente, a políticas de

    alfabetização em massa patrocinadas por organismos transnacionais ao longodo século XX.

    Um segundo conjunto de pesquisas e reflexões sobre o letramento, por vezes

    chamado de “Novos Estudos sobre o Letramento”, propôs uma revisão radical

    do modelo autônomo a partir de etnografias realizadas em contextos

    socioculturais e geopolíticos até então totalmente desprezados. Em diálogo

    profícuo com disciplinas como a Antropologia e a Sociolinguística, esses

    pesquisadores mostraram que os significados e efeitos cognitivos e sociais do

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    letramento variavam contextualmente. Diversos estudos, deste então, foramconsolidando a noção de que letramentos são práticas sociais “situadas”,

    sendo esse, exatamente, um dos motivos pelos quais se fala hoje em

    “letramentos”, no plural.

    Pesquisas mais recentes, que aqui podemos associar a um terceiro momento

    da relação entre contexto e letramento, tem revisto tanto a ênfase (exagerada?)

    dada pelos estudos socioculturais (modelo ideológico) ao “poder do local”,

    como uma certa negligência desses estudos em relação ao fato de que os

    componentes materiais/ tecnológicos desses letramentos são sempre

    transportados de outros contextos e incorporados, de uma maneira ou outra,

    nas práticas locais, adicionando aí outras agentividades (BRANDT; CLINTON,

    2002). As reflexões em torno dessas questões têm se apoiado no diálogo com

    disciplinas como a Geografia, a Teoria Geral dos Sistemas, a teorias sobre

    Cognição Distribuída e a Teoria Ator-Rede, principalmente.

    Tomando embalo no que se convencionou chamar “virada espacial” nas

    ciências humanas a partir dos anos 1990, estudiosos do(s) (novos)

    letramento(s) têm criticado a noção sedimentada em estudos anteriores de que

    contextos são contêineres espaciotemporais pré-programados dentro dos quais

    as práticas de letramento seriam encenadas. Ao contrário, tem-se tentado

    desenvolver reflexões e pesquisas no sentido de introduzir uma concepção

    relacional (e relativista) de tempo-espaço nesses estudos, i.e. tem-se tentado

    mostrar que (i) tempo e espaço são sempre produzidos pela prática social, ou

    seja, os contextos são gerados pelos letramentos e (ii) as diferentes noções,

    experiências e representações de tempo-espaço em um contexto colidem e

    repercutem continuamente umas nas outras, sendo essa, em verdade, uma

    das facetas da complexidade na vida moderna, refletida e produzida pelos

    novos letramentos.

    É certo que os letramentos digitais desempenham um papel central nessas

    reflexões mais recentes, justamente porque eles permitem estruturar,

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    representar e coordenar o tempo-espaço “dentro” e “através” de diversasatividades, de formas que perturbam profundamente a ilusão da unicidade e

    linearidade espaciotemporais na qual estão fundadas muitas de nossas

    práticas de letramento institucionalizadas, especialmente, as escolares. Sem

    desconsiderar as maneiras como instituições, tradições, cânones e tecnologias

    (disciplinares) localizam os letramentos, pesquisadores dos novos letramentos

    têm tentado entender melhor como os (novos) letramentos deslocam e

    articulam textos, interesses, capacidades, subjetividades e tecnologiasdistribuídas espaciotemporalmente. Dito de outra forma, temos tentado

    trabalhar com uma concepção de letramentos como redes heterogêneas e dos

    contextos em que os letramentos são estudados como espaços fronteiriços

    (LEANDER, 2008, BUZATO, 2009). 

    Esses estudos guardam potenciais contribuições para o campo da educação e,

    em especial, para a ação educativa apoiada em novas tecnologias, incluída aí

    a EAD. Isto porque pode-se dizer a escola tem se preocupado, até aqui, emutilizar as novas tecnologias para rotinizar e algoritmizar a produção e a

    recepção de conteúdos (informação) ao mesmo tempo em que tenta ignorar,

    senão reprimir (proíbe-se o celular, o MSN, etc, independentemente da

    finalidade de seu uso), as perturbações na relação entre o contexto escolar e a

    identidade, o engajamento, e a agentividade, etc. que essas mesmas

    tecnologias induzem. Esse “recalque” indica o valor “terapêutico” de uma boa

    reflexão sobre a relação entre o contexto e as agentividades, as identidades, assubjetividades na educação, e as maneiras pelas quais as tecnologias (todas,

    inclusive as “velhas”) estabilizam e coordenam tempos e espaços produzidos

    tradicionalmente no que chamamos de escola.

    Talvez valha a pena, antes de tentar aplicar esse raciocínio ao problema da

    EAD, explicitar melhor a maneira como isto se dá na escola dita tradicional.

    Alguns estudiosos do assunto (por exemplo LEANDER, 2004) vêm mostrando

    que a própria escola é um tipo de tecnologia que, como todas as demais, está

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    impregnada de valores. Esses valores chocam-se, segundo esses estudiosos,com valores intrinsecamente ligados às affordances   das novas tecnologias

    implantadas no contexto escolar. Quando se diz que a escola permanece no

    século XIX, está-se, de certa forma, reconhecendo o seu sucesso, enquanto

    tecnologia projetada para conservar, transmitir, massificar e reproduzir

    categorias pré-definidas do ser e do saber gerando com isso um “estoque” de

    mão de obra bem (con)formada. Nos termos de Latour (op. cit.), a idéia bem

    sucedida por trás da escola enquanto tecnologia foi justamente torná-la um fielintermediário   da rede sociotécnica complexa que chamamos de sociedade

    industrial.

    Como toda tecnologia, a escola está relacionada à estruturação da atividade

    social no tempo e no espaço. Ela produz, com a ajuda de tecnologias a ela

    subordinadas e nela integradas, uma certa espaciotemporalidade. A mais

    fundamental dessas tecnologias é justamente a escrita. Primeiro, porque textos

    escritos servem, supostamente, para esvaziar enunciados das suas condiçõesoriginais de enunciação de modo que possam ser trazidos “de volta à vida” e

    expostos à reinterpretação em outras condições enunciativas. Um quadro

    negro cheio de textos ou diagramas serve, basicamente, para sincronizar e

    direcionar espacialmente a atenção dos alunos na atividade conduzida pelo

    professor. Um livro didático poupa o trabalho de escrever no quadro e copiar no

    caderno, mas tem a desvantagem de distribuir a atividade espacialmente de

    modos que o professor não pode controlar: que dirá um laptop por aluno!(LEANDER, 2004). Um retroprojetor ou um projetor multimídia ou quadro digital

    reúnem essas affordances  do livro e do quadro, e a elas adiciona outras: pode-

    se diminuir a iluminação ambiente, “acalmando” os ânimos e desencorajando

    as falas paralelas. Pode-se pré-segmentar o texto de modo a organizar o

    pensamento em tópicos, e ao mesmo tempo tornar a transição temporal entre

    tópicos mínima, para preservar monocronicidade da atividade.

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    Um software de apresentação é “melhor” do que uma transparência porquepermite tornar o texto visualmente mais sedutor (embora não necessariamente

    mais “didático”), e mais facilmente transportável (para a próxima aula, um

    próximo emprego, um sistema de gerenciamento de conteúdos, etc) e, ao

    mesmo tempo, mais facilmente editável e recombinável com outros textos.

    Uma impressora ou máquina de xerox permite “disciplinar” um pouco mais essa

    editabilidade, transportabilidade e recombinabilidade, assim como inserir aí um

    componente antiergonômico por vezes visto como “educativo”: evita-se o copy- and-paste .

    O orientação monocrônica do evento genérico “aula” é apenas uma das

    instâncias da monocronia mais geral que orienta a escolarização: o tempo é aí

    quase sempre desenhado de modo que uma atividade exclua todas as outras

    possíveis. Isto se vê na maneira como os turnos e tópicos são gerenciados na

    interação oral entre professor e alunos, as interações agrupadas em blocos de

    cinquenta minutos, esses blocos em períodos, os períodos divididos entre“letivos” e “não letivos” etc.

    A orientação geral da escola é também, obviamente, monoespacial. Ela é

    sempre cercada por muros que (supostamente) isolam o espaço da infância, da

    ingenuidade, da moralidade, da fantasia, da instrução, etc., dos espaços do

    consumo, do trabalho, do lazer etc. Até mesmo os gângsteres de periferia

    podem vir a negociar esse espaços com um diretor de escola suficientemente

    hábil. Laboratório de informática, sala de aula, cantina, ante-sala da diretoria,

    vestiário, corredor, banheiro, quadra de esportes, “cantinho do amasso”,

    “escada dos maconheiros”, etc. são formas mais ou menos impostas ou

    toleradas de monoespacializar e isolar entre si atividades, subjetividades e

    relações de poder que, “misturadas na mesma gaveta”, fariam “implodir” o

    espaço supostamente homogêneo chamado escola.

    Assim sendo, quando se diz que a escola ficou no século XIX está-se dizendo,

    entre outras coisas, que ela não aceita a policronia e poliespacialidade do

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    mundo “lá fora”: o do escritório, da casa, do shopping, da bolsa de valores, etc.Mesmo não pretendendo defender ou condenar uma ou outra dessas

    orientações espaciotemporais, visto que ambas criam seus próprios

    problemas e suas próprias possibilidades para uma vida justa, bela e

    feliz, está evidente que as disputas e conflitos em torno das novas tecnologias

    na educação, incluída aí a EAD, fundam-se, em grande parte, no choque entre

    elas. Isso, contudo, só fica evidente quando são dadas à escola todas as

    condições necessárias para o uso das novas tecnologias. Antes, a luta peloacesso/conexão, capacitação, licenças, grades curriculares e políticas de EAD

    mais flexíveis, etc parece obnubilar o verdadeiro problema, que é também a

    verdadeira possibilidade de transformação: a hibridização de duas culturas,

    dois processos históricos e duas orientações espaciotemporais numa mesma

    prática social que chamamos de educação.

    Em verdade, estudos que focalizam o componente espaciotemporal dos novos

    letramentos/letramentos digitais têm sugerido que a principal razão pela qual astecnologias da informação e comunicação (TIC) geralmente se transformam em

    tecnologias apenas da informação na escola (LEANDER, 2004) não é a falta de

    acesso ou de capacitação dos professores e alunos para o uso das TIC. Ao

    contrário: a falta de interesse pela capacitação e/ou a subutilização das

    conexões e da capacitação disponíveis, que muitas vezes se observa, parecem

    ser sintomas, e não causas, de um problema intercultural!

    Enquanto alguns estudiosos têm se esforçado em mostrar que o uso dos

    computadores, dentro e fora do ambiente escolar, pode ser contraproducente

    do ponto de vista dos resultados da aprendizagem (tais quais representados e

    tornados mensuráveis por testes estandardizados), em especial para alunos de

    classes sociais mais baixas (DWYER et al, 2007), outros têm defendido

    veementemente a incongruência existente entre o que se espera (e se avalia)

    como resultado da aprendizagem (em letramento) e o que o aluno que está

    sendo avaliado faz (em termos de letramento) ou o que se espera que ele seja

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    capaz de fazer na vida depois da escola, acionando o potencial deslocador emultiplicador de espaciotemporalidades das TIC.

    Esse desencontro tem sido pensado, inclusive, em uma escala bem maior do

    que a da escola ou a do país3 por autores como Lankshear e Knobel (2004), e

    pode ser sumarizado na tabela 1, extraída do seu trabalho.

    Tabela 1 - Dimensões da variação entre as “mentalidades” da escola e da cultura digital,extraída de Lankshear e Knobel (2004, p. 11)

    Convém destacar, a respeito dessa comparação, e do trabalho dos autores,

    que embora as tecnologias digitais sejam fundamentais para o enquadramento

    (framing ) da atividade social, para a implementação (deployment ) de novas

    relações que caracterizam a nova mentalidade, essas tecnologias não as

    determinam, nem tampouco seu uso é totalmente controlável pelos sujeitos

    inscritos em um ou outro mindset . Trata-se, como sempre, de processos de

    3 Os autores utilizam, para comparar as duas culturas ou orientações sociohistoricamente marcadas

    envolvidas nesse conflito o rótulo “mentalidades” (mindsets), correspondentes a “valores, sensibilidades,

    normas e procedimentos” produtores e produtos de um certo momento histórico e de um certo conjuntode possibilidades de mediação técnica (p. 7, minha tradução).

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    mediação e translação (LATOUR, op. cit.), produtores de um certo percurso deinovação que não se pode estabelecer a priori .

    EAD para que? EAD para quem?

    Talvez já seja possível retomar o tema da EAD para pensar o que as

    discussões correntes nos estudos do letramento nos sugerem. Retomando e

    reorganizando minha argumentação até aqui, temos que a escola é produtorae produto de uma mentalidade  que inclui um certo tipo de orientação

    (mono)espaciotemporal bastante propícia a uma relação com o conhecimento e

    com a atividade produtiva que “não serve mais”, embora torne mais factível a

    tarefa de gerenciar, avaliar, certificar e transformar em fichas simbólicas, que

    alimentam um sistema perito (em construção e cheio de falhas), aquilo que

    professores e alunos estão ou deveriam estar fazendo.

    Essa mentalidade está em conflito flagrante com uma outra, produtora eproduto de outro tipo de orientação espaciotemporal e de outras relações

    com o conhecimento e com a atividade produtiva, que, embora muito mais

    próxima do que se faz no mundo do trabalho e da pesquisa científica, e,

    portanto, em tese, muito mais desejável tanto como meio quanto como objeto

    de formação do aluno, “não serve ainda” para produzir resultados educacionais

    (no sentido dado pelas avaliações estandardizadas) legitimados, nem é

    compatível com principal tecnologia educacional anterior (i.e. a escola),estabilizada, implantada e dotada de uma inércia   (no sentido de LATOUR,

    2000) que não pode ser ignorada.

    O que esperar da EAD, em especial na universidade, diante desse nó górdio?

    Primeiro penso que devamos falar em EAD no plural, como aprendemos a falar

    em letramento(s). Não é razoável pensar que EAD na UNICAMP, no interior do

    Piauí, na Espanha, na Califórnia, na China, na formação de professores, na

    orientação de doutores, no ensino de línguas, na certificação de técnicos de

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    nível médio, no treinamento de agentes de saúde, nos cursos de MBA damoda, e nos projetos do Reuni, etc seja uma mesma EAD. Cada uma dessas

    EADs terá, certamente, suas finalidades, suas prioridades, seus significados

    locais, indissociáveis das ideologias vigentes nos sítios (no sentido de

    LATOUR, 2005) de onde partem e para onde convergem as conexões que elas

    gerem. Tampouco é viável, ou desejável, conceber cada um desses sítios

    como forças capazes de estabilizar completamente a relação entre tecnologia,

    educação e espaciotemporalidade e produzindo ali uma “EAD situada” (aprópria expressão remete a um contra-senso). O que estou querendo dizer, em

    outras palavras, é que todas essas EADs, como todos os letramentos,

    produzirão suas próprias possibilidades de transformação, ou reprodução, da

    prática educacional no país, e que enfrentarão os mesmos conflitos, e

    possibilidades de inovação, que professores e alunos da educação dita

    tradicional já enfrentam vivendo na fronteira entre dois mindsets .

    Há, contudo, como no caso dos letramentos, que se fazer um esforço reflexivopara  e por causa de  a existência dessa multiplicidade, dessas possibilidades e

    incompatibilidades. Se é possível definir, a priori, o que caracterizaria a EAD

    produzida em uma universidade como a UNICAMP, arrisco dizer que, em

    princípio, seria justamente o compromisso de não apenas inventar maneiras

    competentes de enquadrar e implementar um certo conjunto de atividades num

    outro arranjo espaciotemporal, mas de, ao fazê-lo, promover e difundir

    reflexividade entre os atores “internos” e “externos” envolvidos nesse seuempreendimento. Como minha contribuição principal nessa direção, proponho

    que se inscrevam no rol dos candidatos a “ferramenta” para essa reflexividade

    dois conceitos trazidos a “contrabando” de minhas pesquisas em novos

    letramentos/letramentos digitais: objetos fronteiriços  e pedagogia da conexão .

    Objetos fronteiriços e pedagogia da conexão: conceitos para pensar uma

    certa EAD

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    Como já exposto, tenho me engajado em um esforço de pesquisa distribuídointernacionalmente, embora não cristalizado na forma de uma corrente ou

    associação científica, que visa caracterizar os (novos) letramentos como redes

    heterogêneas e os contextos produzidos por esses letramentos como espaços

    de fronteira. Trata-se, basicamente, de tentar um engajamento com o potencial

    pedagógico/emancipador daquilo que Lankshear e Knobel (op. cit.) chamam de

    um novo mindset   (e que eu pessoalmente prefiro chamar de cultura digital )

    visando encontrar maneiras de legitimar os novos letramentos epistemológica einstitucionalmente (o que me parece ser, também, interesse dos que

    pesquisam em EAD).

    Ocorre que a compreensão de letramento como rede implica dizer muito mais

    do que esse curto espaço me permite, mas, para “passar minha muamba”

    competentemente, basta dizer o seguinte: cada prática que se pode chamar de

    (novo) letramento (por exemplo, utilizar o Twitter para compartilhar novidades e

    acompanhar deslocamentos geográficos, notícias, pensamentos e recados dosoutros ou com os outros) está distribuída técnica, cognitiva e semioticamente

    de forma compatível, porém diferente, de cada outra (nova ou “velha”) prática

    que constitui o universo de um letrado (digital). Cada letramento é, no fundo, a

    configuração de uma rede heterogênea, isto é, uma rede constituída de atores

    humanos e não humanos que negociam e reinterpretam seus interesses, assim

    como refigurativizam e fazem circular suas agentividades, num processo que a

    Teoria Ator-Rede denomina translação .

    Uma translação  que resulte em estabilidade requer a coordenação de ações e

    conhecimentos que estão distribuídos  tanto espaciotemporalmente  (meu

    computador/celular em Campinas, o servidor do Twitter nos EUA, os tuiteiros

    que sigo ou me seguem em diversas cidades do Brasil) quanto em termos de

    mundos sociais/subjetivos (eu posso seguir Mano Menezes, técnico de

    futebol e ser seguido por Beatriz, minha filha de nove anos que mora em São

    Paulo, sem que nada do que acontece nos nossos mundos sociais seja

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    compartilhado além desses posts ) e domínios cognitivos  e normativos  (eusei digitar um pensamento em 140 caracteres e posso fazê-lo chegar a um país

    em que haja censura na imprensa, mas não saberia/poderia fazê-lo sem um

    teclado KWERTY, o qual eu não projetei e cujo funcionamento mecânico e

    eletromagnético eu não entendo exatamente, e nem sem obedecer, em alguma

    medida, as normas da ortografia da língua em que o expressei; o servidor do

    Twitter sabe como fazer esse meu pensamento expresso em 140 caracteres

    transformar-se em linguagem binária e remetê-lo a outros computadores,celulares, etc via Internet, mas talvez não saiba ler “via9ra” como “viagra”, e

    portanto, talvez não possa fazer valer a norma anti-spam   que alguém

    programou nele).

    Cada um dos envolvidos nessa rede tem interesses e interpretações

    particulares (ou típicas de seu mundo social/ mindset  /espaço normativo) que

    precisam ser co-agenciado(a)s, mas não necessariamente alinhado(a)s

    globalmente, para que exista uma prática distribuída em rede chamada tuitar eum sujeito praticante chamado tuiteiro. 

    Como isso é possível? Como é possível, dito de outra forma, compatibilizar

    heterogeneidade e ação coordenada (sem imposição de interpretações) de

    modo que um determinado sistema sociotécnico (por exemplo, um

    empreendimento em EAD apoiada em TIC) seja produtivo? Como, afinal,

    satisfazer interesses, interpretações e espaciotemporalidades distintas, por

    vezes conflitantes, por modos outros que não “a imposição “imperialista” de

    representações, a coerção, o silenciamento e a fragmentação” (STAR;

    GRIESEMER, 1989, p. 413)?

    São duas, basicamente, as maneiras pelas quais esse objetivo pode ser

    atingido, segundo a Sociologia da Ciência e Tecnologia de orientação

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    interacionista: a estandardização de métodos4  e o desenvolvimento (ou aemergência) de objetos fronteiriços (boundary objects ).

    É suficientemente óbvia a ligação existente entre estandardização de métodos

    e o funcionamento dos sistemas peritos (e das fichas simbólicas). Nos

    deparamos com essa ligação, por exemplo, toda vez que tentamos tirar uma

    carteira de habilitação, tomamos um avião, sacamos dinheiro em um caixa

    eletrônico ou fazemos uma consulta médica. Também é bastante direta a

    percepção de que as TIC são ferramentas formidavelmente úteis para a

    estandardização de métodos. Por isso mesmo, é de olho nesse potencial que

    boa parte dos entusiasmados com um certo tipo de EAD a vêem como

    solução para os problemas e incertezas locais da educação no país.

    Por sua vez, objetos fronteiriços (doravante OFs), a outra maneira de

    compatibilizar heterogeneidade e cooperação a que já me referi, são definidos

    na Sociologia da Ciência e Tecnologia de orientação sociointeracionista como

    objetos (máquinas, instrumentos, textos, conceitos, representações, histórias,

    gêneros textuais, etc.) que “tanto habitam várias comunidades de prática como

    satisfazem as demandas informacionais de cada uma delas”, sendo

    “suficientemente flexíveis para adaptarem-se a necessidades e restrições dos

    vários grupos que os empregam, mas também suficientemente robustos para

    manter uma identidade própria nesses diferentes lugares” (BOWKER; STAR,

    1999, p. 297, minha tradução).

    4 A estandardização de métodos é funcional numa translação porque ela enfatiza o “como” e não o “o

    que” ou o “porque” da atividade, e portanto, permite restringir a necessidade dos atores de entenderem o

    que estão fazendo, globalmente, enquanto se ocupam do que fazem localmente. Questões de ordem mais

    alta (afetas ao “o que” e ao “por que”) são mais potencialmente perturbadoras da ação coesiva

    estabelecida na rede. Devemos reconhecer que boa parte da educação formal, especialmente nos níveis

    mais fundamentais, é feita dessa forma: uma criança que entra na escola rapidamente aprende como deve

    sentar-se, pegar no lápis, escrever, usar o lápis ou a caneta etc. Pode-se passar anos aprendendo a fazer

    contas de vários tipos sem entender o porquê de se fazer cada conta de cada maneira, como fazê-la deoutra maneira ou o significado, afinal, dessas contas todas no empreendimento maior que chamamos de

    educação. Isso não nos impede, entretanto, de apreciar ou valorizar o que fazemos localmente apoiados

    nesses “comos”.

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    OFs são, portanto, de meios de tradução capazes de coordenar ações,interesses e interpretações globais e locais de modo que cada mundo

    envolvido possa fazer o que lhe interessa, lhe dá prazer e lhe é percebido

    como tendo valor e atendendo um interesse seu, ao mesmo tempo em que se

    fortalece por participar de uma rede heterogênea: em verdade, quanto mais

    heterogênea for a rede, mais fortes se tornam os participantes dela, porque

    mais perto estarão de serem seguidos do que de seguir (LATOUR, 2000).

    Objetos fronteiriços podem, mas não necessariamente precisam, envolverestandardização de métodos, mas o que importa dizer aqui, pensando em

    educação, é que a estandardização, quando usada neles, não constitui seu

    objetivo; ao contrário, ela é uma maneira, projetada ou emergente, de

    compatibilizar objetivos e interpretações diversas e de fazê-los circular

    espaciotemporalmente.

    Há diversos exemplos de objetos fronteiriços a que podemos recorrer quando

    pensamos em EAD. Sistemas de gerenciamento de aprendizagem estão,provavelmente, entre os mais salientes no momento: eles permitem

    compatibilizar os interesses de administradores, tutores, alunos,

    pesquisadores, programadores, investidores e autoridades educacionais, ao

    mesmo tempo em que abrigam, e fazem circular, uma miríade de outros

    objetos fronteiriços de utilidade pedagógica óbvia tais como glossários,

    agendas, linguagens de marcação, mapas/diagramas, formulários de diversos

    tipos, etc.

    Um LMS, porém, tem a peculiaridade de ser projetado, assim como muitos

    dos demais objetos fronteiriços que abriga. Ele é, nesse sentido, uma maneira

    de disciplinar a energia produtiva que as conexões entre atores/mundos

    proporciona e induzir certo percurso para as inovações que aí surgem. Há

    outros tipos de objetos fronteiriços, que podemos chamar de emergentes, dos

    quais poderíamos/deveríamos nos apropriar, já que não podem ser projetados,

    para produzir certo tipo de EAD (ou de pedagogia, no sentido mais amplo).

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    Uma analogia linguística talvez caiba aqui para esclarecer o que estoutentando dizer: quando um falante de português e um falante de japonês, por

    exemplo, se comunicam em inglês, essa língua pode ser vista como um objeto

    fronteiriço off-the-shelf , produzido em outro lugar, por outros atores. Mas,

    supondo que (i) o inglês não fosse aceito e valorizado por ambas as partes

    como capaz de reinterpretar adequadamente seus interesses comunicativos ou

    fazer deslocarem-se no tempo e no espaço, suas agentividades, (ii) que,

    mesmo assim, houvesse entre eles certa disposição e tolerância para buscarcompreender o outro, e que (iii) essa disposição, em torno desses interesses,

    pudesse ser mantida por certo tempo, certamente surgiriam aí outros OFs,

    meios menos previsíveis, certamente, mas também mais flexíveis e inovadores.

    A história das línguas registra muitos casos que se encaixam nesse cenário, e

    se refere aos objetos (línguas) fronteiriços neles emergentes, línguas francas

    ou pidgins5.

    Há vários problemas com os pidgins, quando olhamos para eles com olhos dequem procura uma língua “legítima” ou “legitimável” e estável: primeiro, um

    pidgin tem um léxico extremamente limitado e uma gramática bastante

    rudimentar quando comparado com línguas ditas normais. Isso justamente

    porque ele atende a um universo muito limitado de funções e situações

    comunicativas. Segundo, pidgins não são línguas que duram e que vão

    “enriquecendo” indefinidamente: tornam-se obsoletas rapidamente ou

    desaparecem tão rápido como surgiram, em alguns casos, ou, ao contrário, sesobrevivem pelo tempo e espaço necessários, adquirem falantes nativos e

    transformam-se em uma língua crioula (deixando, assim, de ser pidgins).

    Mas há também duas vantagens que vale a pena ressaltar: primeiro justamente

    porque criado e aprendido de forma espontânea (e não adquirido como língua

    materna ou planejado por lingüistas), um pidgin inscreve o falante em um

    5 Um dos exemplos mais famosos dessas línguas francas é o Sabir, falado pelos navegantes nos portos domediterrâneo entre os séculos XV e XIX, que combinava elementos do árabe, francês, italiano e espanhol.

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    “criatividade”, “talento” etc, a capacidade dos sujeitos contemporâneos desuperar a monocronia, a monoespacialidade e o monologismo no processo de

    aprender/ensinar. Essa pedagogia seria, como todas as outras, baseada em

    princípios; estes, por sua vez, voltados não para acelerar o desencaixe , mas

    para capacitar alunos e professores a “ compreender e negociar suas

    diferenças, sua conexidade e a dinâmica da significação em um diálogo entre

    consciências e discursos diferentes” (KOSTOGRIZ, 2002, s.p., minha

    tradução).

    Não se trata, obviamente, de uma pedagogia de  ou para  EAD especificamente,

    mas de uma pedagogia que uma certa EAD talvez esteja em posição exata,

    nesse momento, para construir e disseminar. Como tentei demonstrar na parte

    inicial deste trabalho, tanto as pessoas que estamos tentando educar, quanto

    os patrocinadores do nosso empreendimento educacional desejam que a

    escola prenda e ensine a lidar produtivamente com a policronia e a

    poliespacialidade. Também se deseja que a escola ajude o país a contornar asimposições do local, e de suas tecnologias institucionais (máquinas políticas

    que se alimentam da ignorância e do isolamento geográfico, por exemplo)

    aprendendo/ensinando a compatibilizar heterogeneidade (cultural,

    espaciotemporal e disciplinar) com ação coordenada, voltada para o objetivo

    abrangente da “inclusão” de todos onde eles já estão!

    Isto não significa dizer que a idéia geral de uma pedagogia da conexão   é

    eliminar ou deslegitimar o local, o situado, etc quando pensamos em

    conhecimento (e letramento). O local (entendido geograficamente,

    culturalmente ou como domínio específico do conhecimento) é, e sempre será,

    “o sítio da solidariedade, da resistência, dos sentidos, interpretações, valores e

    orientações compartilhadas, um meio pelo qual o mundo social é re-imaginado

    e rearticulado” (KOSTOGRIS, op. cit, s.p., minha tradução). Ele não precisa, e

    não deve, ser, entretanto, o meio preferencial para excluir, ranquear, cristalizar,

    alinhar, no qual circulam coisas que vêm de longe, cheias de valor de troca,

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    mas vazias de possibilidades dialógicas. É nisso, essencialmente, que um certotipo de EAD pode ser decisiva.

    Essa pedagogia é, não custa reforçar, antes de tudo, um empreendimento

    técnico-científico, e está, portanto, sujeita a todas as condições que regem

    esse tipo de empreendimento. Nos termos da Teoria Ator-Rede, ele requer que

    lancemos mão de estratégias  e mediadores  (humanos e não-humanos) e que

    sejamos capazes de fornecer accountability  aos nossos aliados/patrocinadores,

    de modo que eles permaneçam alistados e interessados. Suspeito que os

    primeiros ou mais promissores entre esses aliados sejam exatamente nossos

    alunos, principalmente aqueles que nossas escolas monológicas,

    monocrônicas e monoespaciais ainda não conseguiram transformar em meros

    intermediários .

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