bruno foschini pajtak a tragicomédia da modernidade
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO/PUC-SP
Bruno Foschini Pajtak
A Tragicomédia da Modernidade: Shakespeare e Cervantes na Inglaterra do século XVII.
Mestrado em História
São Paulo
2017
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO/PUC-SP
Bruno Foschini Pajtak
A Tragicomédia da Modernidade: Shakespeare e Cervantes na Inglaterra do século XVII.
Mestrado em História
Dissertação apresentada à Banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obentenção do título de MESTRE em História Social, sob orientação da Profª. Estefânia Knotz Canguçu Fraga.
São Paulo 2017
Bruno Foschini Pajtak
A Tragicomédia da Modernidade: Shakespeare Cervantes na Inglaterra do século
XVII.
Dissertação apresentada à Banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obentenção do título de MESTRE em História Social, sob orientação da Profª. Estefânia Knotz Canguçu Fraga.
Aprovado em: ____/ ____/ 2017.
BANCA EXAMINADORA
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Agradecimentos
Gostaria de agradecer a Professora Estefânia, pela paciência, confiança e
orientação durante esse processo. A Professora Yone de Carvalho pelos conselhos,
conhecimento e disponibilidade. Aos meus colegas de mestrado pelos debates,
conversas e críticas que levaram essa pesquisa sempre à frente, principalmente à
Diogo Araujo, Gabriela Nascimento Silva, Breno Freire, Rafael Tim e Mariana
Alcântara. Aos meus queridos amigos que foram pacientes e me ouviram falar sem
parar desse trabalho que não era, de maneira nenhuma, de seu interesse, Renata
Gomes, Clarice Curi, Stefano de Luna e Alexandre Terini. A Vitor Vívolo que, além
de ser um dos mais caros amigos é também um excelente pesquisador, suas leituras
e críticas foram essenciais nesses ultimos dois anos. A todos os membros do
Libertários F. R. pelo companheirismo e risadas, mesmo nos momentos mais difíceis
dessa caminhada. À minha família, meus pais, minha tia, pelo apoio e leitura das
várias páginas. Minha avó, por me ouvir mesmo sem o interesse pela presente
pesquisa. À Rayanni, pela paciência e compreensão, por ter feito a parte final dessa
jornada digna de ser trilhada, pelos dias que foram perdidos escrevendo essas
páginas e pelo sorriso daqueles que vieram e ainda virão.
“Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow. Creeps in this petty pace from day to day, To the last syllable of recorded time; And all our yesterdays have lighted fools. The way to dusty death. Out, out, brief candle! Life’s but a walking shadow, a poor player That struts and frets his hour upon the stage. And then is heard no more. It is a tale; told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing”
William Shakespeare
PAJTAK, Bruno Foschini. A Tragicomédia da Modernidade: Shakespeare e Cervantes na Inglaterra do século XVII.
RESUMO
O objetivo dessa dissertação foi analisar as obras de Shakespeare e Cervantes, espeficicamente Troillus and Cressida (1602) e El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha (1605), notando que ambas foram escritas em um contexto de grande instabilidade e mudanças de paradigmas tanto na Espanha quanto na Inglaterra. A obra de Cervantes será aqui analisada no contexto na qual a mesma foi publicada e lida na Inglaterra de Shakespeare, tomando como local de análise a Londres do século XVII. Para tanto, será estudado o contexto na qual a cidade tornou-se um grande centro comercial e cultural duranto o reinado de Elizabeth I. Serão também analisados os contextos de produção e publicação que envolviam os escritores de peças de teatro e os livreiros editores da época que lutavam constantemente pelo monopólio da representação, sempre lembrando que o conceito de autor estava, na época, formando. Portanto, a pesquisa utilizara-se do conceito de representação formulado pela Nova História Cultural para analisar as disputas entre a corte e a cidade, entre a cidade e o teatro, entre a corte e o teatro e entre os livreiros editores e os autores de livros, disputas essas que perduraram durante toda a vida de um dos maiores escritores de todos os tempos, William Shakespeare.
Palavras-chave: Teatro elizabetano. Shakespeare. Cervantes. Londres. Representação. Cultura. História Moderna. História do Teatro. História.
PAJTAK, Bruno Foschini. The Tragicomedy of Modernity: Shakespeare and Cervantes in Seventeenth Century’s England.
ABSTRACT
The objctive of this dissertation was to analyze the works of Shakespeare and Cervantes, specifically Troillus and Cressida (1602) and El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha (1605), noting that both were written in a context of great instability and paradigm changes both in Spain and England. The work of Cervantes will be analyzed here in the context in which it was published and read in Shakespeare's England, taking seventeenth-century London as the place of analysis. In order to do so, we will study the context in which the city became a major commercial and cultural center during the reign of Elizabeth I. We will also analyze the contexts of production and publication that involved the playwriters and the publisher-booksellers of the time who constantly fought for the monopoly of representation, always remembering that the concept of authorship was, at the time, in formation. Thus the research had to use the concept of representation formulated by New Cultural History to analyze disputes between court and city, between city and theater, between court and theater, and between book publishers and book authors , which lasted throughout the life of one of the greatest writers of all time, William Shakespeare.
Keywords: Elizabethan Theatre. Shakespeare. Cervantes. London. Representation. Culture. Modern History. Theatre History. History.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................9
CAPÍTULO 1- A CIDADE E O PALCO..................................................24 1.1 Cidade Medieval, Cidade Moderna.............................................24 1.2 A Cidade e a Corte......................................................................50
CAPÍTULO 2 - PRÁTICAS DE PRODUÇÃO.........................................56
2.1 Ler ou ouvir.................................................................................56 2.2 A voz...........................................................................................78 2.3 O Livro........................................................................................87
CAPÍTULO 3 - A TRAGICOMÉDIA DA MODERNIDADE...................101
3.1 Considerações Finais...............................................................101 BIBLIOGRAFIA....................................................................................104
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INTRODUÇÃO
A presente pesquisa foi desenvolvido a partir da intenção de questionar as
fontes, “Troilus and Cressida” (1602) de Shakespeare e “El Ingenioso Hidalgo Don
Quixote de la Mancha” (1605), ambas do século XVII escritas uma na Espanha e a
outra na Inglaterra, sobre os possíveis contrastes encontrados entre as duas,
buscando o que Raymond Williams1 chamaria de estruturas de sentimento2.
Williams, nesse caso, seria um grande acréscimo à própria pesquisa por fazer a
revisão de alguns conceitos marxistas, como por exemplo, o conceito de experiência
histórica, no qual Marx em seu livro O Dezoito de Brumário de Louis Bonaparte,
trabalha com a ideia de que o homem constrói sua própria história, ocorrendo tal
construção em dois momentos. No primeiro o homem utiliza referências culturais já
conhecidas e, no segundo, a partir do momento em que algo completamente novo é
definido, o homem pode se expressar dentro de suas novas condições sócio
históricas. Williams, no entanto, chama atenção para a complexidade desse
movimento em seu livro Marxismo e Literatura,
Esse tipo de determinação – um processo complexo e inter-relacionado de limites e pressões – está na própria totalidade do processo social, e em nenhum outro lugar: não num “modo de produção” abstrato, nem numa “psicologia” abstrata. Qualquer abstração do determinismo, baseada no isolamento das categorias autônomas, que são consideradas como controladoras, ou que podem ser usadas para a previsão, é então uma mistificação de determinantes específicos e sempre correlatos que constituem o
1 Raymond Williams foi um teórico e crítico cultural que lecionou na Universidade de Cambridge. Escreveu sobre política, cultura, mídia e literatura bem como roteiros e romances. Formado em Letras pela mesma Universidade, Williams é um dos principais nomes da Nova Esquerda Inglesa e tenta, em sua obra, desmistificar as diferenciações entre uma cultura chamada popular e outra erudita. Sua vasta obra inclui livros como O Campo e a Cidade, Drama em Cena, Tragédia Moderna, A Produção Social da Escrita, Marxismo e Literatura, dentre muitos outros livros. 2 Estrutura de Sentimento é um termo cunhado por Raymond Williams na tentativa de descrever “a relação dinâmica entre experiência, consciência e linguagem, como formalizada e formante na arte, nas instituições e tradições. [...] Williams o cunhou para resolver um problema analítico, ou seja, a prevalência de certas convenções cinematográficas em certos períodos, prevalência que não podia ser explicada pelos termos das análises correntes”. Maria Elisa Cevasco, Para Ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 152.
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processo social real – uma experiência histórica ativa e consciente, bem como, por omissão, passiva e objetificada.3
Logo, Williams propõe uma base complexa de análise: a argumentação que,
inicialmente, não estava presente nem na minha iniciação científica, nem no projeto
de pesquisa dessa dissertação originalmente concebido. A teoria de experiência
histórica e cultural de Williams, apesar de extremamente válida quando tratamos da
literatura a partir do século XVIII, não pode ser o único ponto de análise, visto que,
naturalmente, o próprio conceito de literatura estava em formação no recorte
histórico escolhido. Para tanto se viu necessário um caminho mais profundo ao
longo dos conceitos de representação e apropriação como formulados por Roger
Chartier4 e pelo conceito de circularidade cultural, tal como foi formulado por Carlo
Ginzburg.
O conceito de representação, aqui utilizado, pretende-se distanciar de uma
subjetividade ligada à mentalidade, ou seja, uma análise baseada na psicologia para
tentar explicar o mundo social, e sim, proporemos uma história social que:
[...] tome por objeto a compreensão das formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo social – que, à revelia dos actores sociais, traduzem suas posições e interesses objectivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse.5
Para tanto seria imprescíndivel estabelecer as continuidades e as rupturas
existentes nas práticas de leitura e oralidade que se desenvolveram durante dois
séculos, analisar também as estratificações sociais presentes na Inglaterra do início
do século XVII e propor um debate que não deixe de lado a recepção e a
apropriação dessas obras, entendendo tais ações como manifestações culturais do
3 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Tradução de Waltensir Dutra, Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 4 Roger Chartier é professor do Collège de France e diretor de estudos da Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales. Doutor em História, suas pesquisas estão voltadas para relações entre literatura e cultura escrita, particularmente para os textos de teatro na Europa nos séculos XVI ao XVIII. Autor de diversas obras dentre as quais Do Palco à Página: Publicar e Ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI-XVIII, Cardenio Entre Shakespeare e Cervantes: História de uma peça perdida, A mão do Autor e A Mente do Editor entre muitos outros. 5 CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. 2ª Edição. Algés, DIFEL 82, 2002. P. 19.
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seu respectivo tempo histórico, ao mesmo tempo que se estabeleça um diálogo com
as fontes literárias.
Foram escolhidas, então, duas obras que se inserem de maneira peculiar no
período que podemos chamar de início da Modernidade, a primeira delas é a obra
prima mundial de Miguel de Cervantes, “O Engenhoso Cavaleiro D. Quixote de la
Mancha”, a segunda uma peça de teatro escrita por William Shakespeare chamada
“The Famous Historie of Troilus and Cresseid”, (“A Famosa História de Troylus e
Cresseid”, em tradução livre). Tratam-se ambas as obras (D. Quixote e Troilo e
Cressida) de paródias sobre os contos medievais de cavalaria, ou seja, dos Romans
medievais. Shakespeare, com Troilus and Cressida, nos oferece uma peça de
extrema complexidade que dificilmente pode se encaixar nos gêneros conhecidos
das suas obras: Comédias, Tragédias, Peças Históricas. A peça é, ao mesmo
tempo, trágica, cômica e histórica, com grande quantidade de humor ácido e um
surpreendente descrédito às temáticas que contornam a mesma.
Da primeira à última cena, ao longo de Tróilo e Cressida, desenvolve-se, interrompida por uma bufonaria constante, essa grande querela sobre o sentido e o valor da guerra, sobre a existência e o valor do amor. Poderíamos dizer ainda: uma controvérsia sobre a existência da ordem dos valores num mundo cruel e incompreensível. Hamlet, príncipe da Dinamarca, foi colocado diante da mesma questão.6
Como veremos, Troilus and Cressida é uma peça extremamente
problemática. Além da dificuldade inicial de a colocarmos em algum desses gêneros,
temos suas duas páginas de título diferentemente impressas em duas edições
distintas. Na primeira edição in quarto de 1609 afirma-se que a peça foi
apresentada pela companhia teatral de Shakespeare7 no seu teatro O Globe, há
uma segunda edição in-quarto que afirma que o livro que o leitor possuía em mãos
era sobre “uma nova peça, nunca ‘estragada’ com o palco, nunca insultada com as 6 KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. P. 85. 7 Essa informação estabeleca uma dificuldade técnica, não sabemos exatamente a data na qual a peça foi apresentada, portanto o nome que a companhia teatral de Shakespeare, colocado na página título como King’s Men, pode muito bem ser o errado, visto que até 1603 a mesma era chamada Lord Chamberlain’s Men e só a partir daí passou a ser conhecida como King’s Men.
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palmas dos vulgares e, ainda assim, cheia da palma cômica.”8 Diversos outros
empecilhos cercam-na, apesar desta sido registrada em 7 de fevereiro de 1603, só
foi publicada em 1609 - alguns especialistas em Shakespeare afirmam que a peça
pode ter sido censurada, visto que ela foi escrita logo após a tentativa de um golpe
de estado, encabeçado pelo favorito da Rainha, Robert Devereux, o Conde de
Essex. O Conde era, em sua própria época, constantemente relacionado com
Aquiles, um dos principais personagens da peça, além de ser bastante popular
dentre o povo. Portanto, uma das teorias acerca do pouco material que temos sobre
representações de Troillus and Cressida é que o Master of Revels achou por bem
proibir a apresentação ao público. Além disso, possuímos três diferentes edições,
as citadas anteriormente em forma de in quarto de 1609 e uma publicada em 1623,
seis anos após a morte de Shakespeare em forma de in fólio. Em 1679, o poeta
inglês John Dryden também encenou a sua versão própria de Troilo e Cressida,
tirada do tomo Shakespeariano a peça sofreu cortes e alterações para ser mais
“palatável” ao público da época.
Os caminhos escolhidos para tratar a obra de Cervantes apresentaram
algumas dificuldades pois, o trabalho não visa estudar Don Quixote em sua
totalidade de produção e publicação, e sim, como ele foi publicado e lido na
Inglaterra. Alguns teóricos chave foram necessários para tal entendimento, além de
Roger Chartier, foram incluidos na discussão diversos autores especializados na
História do livro da Inglaterra do século XVII tais como David Scott Kastan9, David
Bevington10 e Dale Randall11, leituras fundamentais que ajudaram na melhor
8 Em inglês original “a new play, never staled with the stage, never clapper-clawed with the palms of the vulgar, and yet passing full of the palm comical.” BEVINGTON, David. Introduction in SHAKESPEARE, William. The Arden Shakespeare: Troilus and Cressida. London: Bloomsbury, 2015. 9 David Scott Kastan é professor de Inglês e Literatura Comparativa na Universidade de Columbia. Especialista em Shakespeare, suas publicações incluem títulos como Shakespeare and the Book, Shakespeare after Theory, Shakespeare and the Shapes of Time, Critical Essays on Shakespeare’s Hamlet, entre outras. 10 David Bevington é professor emérito de Inglês, Literatura e Literatura Comparativa na Universidade de Chicago. Especializado em Drama Inglês na renascença, editou a obra completa de William Shakespeare além de ter publicado livros como The Theatrical City: Culture, Theatre and Politics in London, 1576 – 1649, Shakespeare: Script, Stage, Screen, This Wide and Universal Theatre: Shakespeare Performance, Then and Now. 11 Dale B. J. Randall foi professor de literatura Renascentista tanto no departamento de Literatura Inglesa quanto no de Estudos Teatrais da Universidade de Duke, dentre suas obras destacamos Cervantes in the Seventeenth Century England: The Tapestry Unturned, Winter Fruit: English Drama, 1642 – 1660, The Golden Tapestry: A Critical Survey of Non-Chilvaric Spanish Fiction in English Translation, 1543 – 1657.
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compreensão em como se editava e produzia livros no início da modernidade na
Inglaterra e, principalmente, como se era lido.
A escrita e a leitura, ao longo de milênios, desenvolveu-se de diversas
maneiras, do pergaminho antigo à criação do códex12 até a criação dos Kindles e
Kobos que hoje vemos tão numerosamente. No entanto, devemos manter em mente
que essas práticas de escrita e leitura atrelam a si mesmas, convenções e limitações
próprias à sua própria época. Tais práticas trazem sentidos e significados ao texto
enquanto objeto material. Não é possível, por exemplo, extrair de um texto de
Sófocles ou Aristófanes o mesmo significado que era extraído por um leitor da
antiguidade, por não termos as mesmas práticas de leitura e por não
compartilharmos convenções de forma, reprodução e organização com tais épocas.
Essas práticas modificaram-se, adaptando-se às maneiras de ler de seu
próprio tempo. O leitor, portanto, não é um mero espectador no estudo da história do
livro e da leitura, ele é produtor de significados também. O mesmo, como nota
Michel de Certeau, é “um caçador que percorre terras alheias”, logo, ao lermos um
livro estamos em uma relação de troca, adquirindo e impondo significados
particulares à história. É notável como algumas adaptações de livros, já produzidas
no cinema, nos cause uma estranheza extrema pelo fato do diretor não reproduzir
determinada cena da mesma maneira como a imaginávamos, o que não altera em
nada o valor estético do filme, mas serve como ponto de partida para minha
argumentação.
O estudo da História da escrita e da leitura necessita, portanto, materializar o
livro em seu próprio tempo, no tempo de sua leitura e de sua produção, para enfim,
podermos estudar os sentidos que eram extraídos dos mesmos em seus respectivos
contextos históricos, sociais e culturais.
“Deve-se então historicizar a definição e a taxonomia dos gêneros, das práticas de leitura, das modalidades de circulação e dos
12 Por códex aqui entende-se os livros manuscritos e os livros que foram criados após a invenção da imprensa de Gutenberg, ou seja, “objetos compostos de folhas dobradas um certo número de vezes, o que determina o formato do livro e a sucessão dos cadernos. Esses cadernos são montados, costurados uns aos outros e protegidos por uma encadernação. A distribuição do texto na superfície da página, os instrumentos que lhe permitem as identificações (paginação, numerações), os índices e os sumários: tudo isto existe desde a época do manuscrito” (CHARTIER, Roger. A Aventura do Livro: Do leitor ao navegador. Tradução de Reginaldo Moraes, São Paulo: Editora UNESP, 1999.)
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diferentes públicos visados pelos textos, tais como eles nos foram legados pela ‘instituição literária’”13
A partir da compreensão dos aspector sociais nas quais a obra foi
apropriada, poderemos seguir para o questionamento da fonte em si e buscar os
caminhos ideais para seguir e quais resoluções tomar baseando-se nas “respostas”
às perguntas feitas.
É a partir desse estudo dos sentidos, que a obra tem em seus diferentes
estados, que proponho uma analíse de Shakespeare e Cervantes e a apropriação
de suas obras que se dá no âmbito conceitual da representação coletiva, no século
XVII na Inglaterra.
Cervantes, como autor espanhol, nunca colocou os pés na Inglaterra e
Shakespeare, como autor inglês, nunca esteve na Espanha, ambos vivenciaram os
anos conturbados enquanto seus países digladiavam-se, cada qual com sua
experiência particular. Cervantes participa ativamente dos esforços de Guerra, tendo
sido soldado, combatido os turcos e ferido na Batalha de Lepanto (1571) o autor
espanhol ajuda nos esforços para construir a “Invencível” Armada que partiria em
1588. Com o fracasso da expedição, Cervantes escreve uma ode que tem a
intenção clara de confortar a pátria após o revés sofrido,
Não tomes por desventura,
Oh Espanha, nossa mãe!
Ver teus filhos voltarem ao teu seio,
Deixando o mar cheio de suas desgraças,
Pois não é o braço do inimigo que os faz voltar,
E sim a borrasca incontrolável...14
Sobre Shakespeare, por outro lado, pouco ou nada sabemos acerca do que
fazia durante os anos em que a Inglaterra temia a invasão da Espanha, podemos, no
13 CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar e Ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. P. 14 14 CERVANTES, Miguel de Saavedra apud CANAVAGGIO, Jean. Cervantes. Tradução de Rubia Prates Goldoni. São Paulo: Editora 34, 2005. P.170. No original “No te parezca acaso desventura/ ¡oh España, madre nuestra!/ ver que tus hijos vuelven a tu seno,/ dejando el mar de sus desgracias lleno,/ pues no los vuelve la contraria diestra,/ vuélvelos la borrasca incontrolable…”
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entanto, compreender o medo que a invasão espanhola da Invencível Armada trazia
aos ingleses. A forte presença espanhola nos palcos londrinos é atestada pela
criação de peças como The Spanish Tragedy (A Tragédia Espanhola) de Thomas
Kyd, escrita entre 1582 e 1592 (data de sua primeira performance conhecida) e que
inaugura, junto com Titus Andronicus o gênero conhecido como “revenge plays”
(peças de vingança). Além de The Spanish Tragedy, em Love’s Labor’s Lost
(Trabalhos de Amor Perdidos) o personagem espanhol Armado é extremamente
caricaturado pela sua maneira de falar e se expressar, algo que veremos também
em Troilo e a diferença de sua linguagem romântica para com a de Diomedes
enquanto os dois cortejam Cressida. Além das peças teatrais, é publicado em 1583
a tradução inglesa da Brevissima relación de la destruyción de las Indias de
Bartolomé de las Casas, sob o título de The Spanish Colonie (A Colônia Espanhola),
a tradução, como nota Chartier, é feita a partir da tradução francesa do flamengo
Jacques de Miggrode, publicada em 1579, o Quixote de Cervantes seguirá um
caminho parecido tendo sido publicado a partir da tradução holandesa do romance.
O tradutor inglês retoma o título em sua mensagem ao leitor, “Spanish cruelties and tyrannies, perpetrated in the West Indies, commonly termed The Newe found worlde” [Tiranias e crueldades dos espanhóis perpetradas nas Índias Ociedentais, comumente chamadas de Novo Mundo] bem como a intenção: “to serve as a President and warning to the XII (sic) Provinces of the Lowe Countries” [para servir de precedente e advertência às XII (XVII) províncias dos Países Baixos]. Esse texto fundou a lenda negra antiespanhola, em particular em sua tradução latina de 1598, ilustrada por 17 gravuras de Théodore de Bry.15
É possível imaginar que, no decorrer da década em que foi traduzida na
Inglaterra, precedendo a partida da Invencível Armada, o texto suscitou o medo de
que tais atrocidades fossem cometidas na Inglaterra protestante. Dessa “lenda
negra” surgem diversos panfletos que alertam para as ações dos “malditos
espanhóis”.
Os dois morreram no mesmo ano (1616) com uma diferença de um dia, de
um para o outro (Cervantes falece em 22 de abril e Shakespeare em 23 de abril).
Contudo, a obra de Cervantes “pisou” em território estrangeiro e, não apenas isso,
15 CHARTIER, Roger. Cardenio entre Shakespeare e Cervantes: História de uma peça perdida. Tradução de Edmir Missio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. P.28.
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rodou o mundo, atravessou o Atlântico e foi amplamente difundida já em seu próprio
tempo. Vários dados podem embasar essa afirmação, apenas em 1605 (ano da
primeira impressão) são impressas cinci edições, mais uma em 1607 e uma em
1608 – essas citadas são apenas as edições impressas em terras sob o jugo
espanhol. O Quixote, não é desconhecido do outro lado do Atlântico, onde “participa”
das chamadas Fiestas de Sortija (um tipo de jogo no qual os cavaleiros tem que
acertar argolas com as suas lanças),
Segundo a relação manuscrita da festa, vários cavaleiros entram em competição nesse torneio [...]. Todos se apresentam fantasiados como cavaleiros de romances: o “corregidor”, que também é o “mantenedor” ou organizador do torneio aparece de início, como “Cavallero de la Ardiente Espada”, apelido de Amadis de Grécia, depois ele troca de roupa e concorre como Bradaleón: outros entram na carreira como se fosse o “Cavallero Antártico” [...], o “Cavallero de la Selva” [...]. Um dos competidores, dom Luis de Córdoba [...] escolheu outro herói: ele entra na praça como o “Cavallero de la Triste Figura don Quixote de la Mancha, tan al natural y propio de como lo pintan en su libro” [tão exatamente quanto é pintado em seu livro.16
Não apenas a fantasia é relatada como “tal como é pintado em seu livro”
mas o cavaleiro fantasiado de Don Quixote ganha o prêmio da melhor invenção,
podemos inferir que tal prêmio advém das risadas que a sua entrada fantasiada
causou.
O mesmo não podemos dizer das peças de Shakespeare, que ficaram por
muito tempo confinadas ao próprio território inglês. A proposta, nesse caso, é
estudar obras concebidas em um mesmo período e os seus respectivos contrastes.
Partindo do princípio de que ambas as obras possuem um caráter crítico aos ideais
cavaleirescos. de Cervantes e como essa produção de significados pode ter afetado
a sua obra. E principalmente, como a peça estudada, “Troilus and Cressida”, se
relaciona com o Don Quixote, sendo produzidas em países com sociedades que, à
primeira vista, parecem tão completamente diferentes e que dividem o mesmo
recorte histórico. Troillus e Cressida conta a história de um romance impossível entre
os dois personagens que dão nome ao título. A obra é inspirada, muito
16 CHARTIER, Roger. Cardenio entre Shakespeare e Cervantes: História de uma peça perdida. Tradução de Edmir Missio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. P.62.
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provavelmente, da única obra finalizada de Geoffrey Chaucer “Troillus and Criseyde”
que, por sua vez, inspirou-se no “Il Filostrato” de Boccacio. O pano de fundo da peça
é a Guerra de Tróia, que já se arrasta por sete anos, no acampamento dos gregos
Aquiles recusa-se a lutar e fica em sua tenda fazendo imitações cruéis dos líderes
gregos juntamente com seu amante, Pátroclo. Ajax, o outro grande herói grego é
descrito como:
[...] valente como o leão, grosseiro como o urso, lento como o elefante; é um homem em quem a natureza de tal modo acumulou temperamentos, que seu valor ficou comprimido até a loucura e sua loucura temperada com sabedoria. Não há virtude de que ele não possua algum reflexo, nem vício de que não mostre qualquer mancha particular. É triste sem motivo, e alegre a contrapelo; tem as articulações de todas as coisas, mas todas as coisas são desarticuladas, que parece um Briareu gotoso, com muitas mãos, mas sem poder fazer uso delas, um Argo cego, todo olhos mas sem poder enxergar.17
Para Jan Kott, o acampamento grego é composto por um círculo de bufões
tentando manter o controle através da sua própria ilusão de poder e tolice, esse
círculo é completador por Nestor e Ulisses que “são engolfados, por um momento,
nessa universal bufonaria”18 que não conseguem lançar mão de seus planos
inteligente por conta da teimosia de ambas as partes.
Em Tróia o tom é diferente, não vemos mais bufões e sim cortesãos,
cavaleiros. Heitor sabe que é necessário entregar Helena, sabe que Tróia
eventualmente vai cair, e enquanto discute com Paris, Troillus e Príamo sobre o que
fazer em relação à rainha grega se coloca completamente a favor da devolução, à
princípio,
Heitor: Páris e Troilo, ambos falaram bem e, na causa e questão agora em debate, glosastes bem, porém superficialmente, não muito diferentes dos jovens que Aristóteles proclamou serem incapazes de
17 SHAKESPEARE, William. Troillus and Cressida in The Complete Works of William Shakespeare. New York, NY: Barnes & Noble, 1994. P. 716 (I, II, 22 – 32). No original “[...] he is valiant as the lion, churlish as the bear, slow as the elephant: a man into whom nature hath so crowded humours, that his valour is crusht into folly, his folly sauced with discretion: there is no man hath a virtue that he hath not a glimpse of; nor any man an attaint but he carries some stain of it: he is melancholy without cause, and merry against the hair: he hath the joints of every thing so out of joint, that he is a gouty Briareus, many hands and no use; or purblind Argus, all eyes and no sight.” 18 KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. P. 83.
18
ouvir a filosofia moral. As razões que alegam fazem mais para conduzir à paixão ardente do sangue destemperado do que assentar com liberdade a distinção entre o que é justo e o injusto. [...] A natureza sempre exige que todos os direitos sejam restituídos a seus donos. Ora, pode haver posse mais justificada que a do marido em relação à esposa? [...] Se Helena é esposa, assim, do Rei de Esparta, como é notório, as leis morais dos povos e da natureza em altas vozes gritam que deve ser entregue.19
Ainda assim, Heitor refuta toda sua argumentação racional acima na ultima
frase de seu discurso, “Não obstante, meus alegres irmãos, me acho propenso a
guardar Helena, pois essa causa tem bastante peso na honra de todos e de nossa
pátria.”20 A razão, para Heitor, é suplantada pela perda da honra trazida pela entrega
de Helena. A princesa não é, para os troianos, um produto para ser medido, pesado
e calculado de acordo com o seu valor e a manutenção da estadia da mesma em
Tróia é objeto de honra e, consequentemente, sem preço. O dilema de Heitor seria
muito bem caracterizado quatrocentos anos antes pelo trovador Chrétien de Troyes;
quando Lancelot, ao encontrar uma carroça guiada por um anão e estando sem
cavalo, hesita em subir nela com medo do que isso faria com a sua honra,
Por um breve instante, o cavaleiro hesita em subir. Muito errou se temeu a desonra e não ousou subir de pronto. Pagará caro por isso. É que Razão, separada de Amor, diz-lhe que evite subir. Ela ralha e lhe ensina a nada fazer nem empreender que possa levar a desonra ou exprobação. Essa Razão não está no coração, mas na boca. Porém Amor está no coração encerrado e lhe manda e ordena que suba depressa à charrete. Amor assim quer, e o cavaleiro sobe. Não lhe importa a vergonha, pois Amor ordena e quer.21
19 SHAKESPEARE, William. Troillus and Cressida in The Complete Works of William Shakespeare. New York, NY: Barnes & Noble, 1994. P. 727. (II, II, 163 – 186). No original “Paris and Troilus, you have both said well/ And on the cause and question now in hand/ Have glozed, but superficially; not much/ Unlike young men, whom Aristotle thought/ Unfit to hear moral philosophy:/ The reasons you allege do more conduce/ To the hot passion of distemper’d blood/ Than to make up a free determination/ ’Twixt right and wrong; […] Nature craves/ All dues be render’d to their owners: now,/ What nearer debt in all humanitu/ Than wife is to the husband? […] If Helen, then, be wife to Sparta’s king, -/ As it is known she is, - these moral laws/ Of nature and of nations speak aloud/ To have her back return’d”. 20 SHAKESPEARE, William. Troillus and Cressida in The Complete Works of William Shakespeare. New York, NY: Barnes & Noble, 1994. P. 727. (II, II, 189 – 193). No original “Ne’ertheless,/ My spritely brethren, I propend to you/ In resolution to keep Helen still/ For’tis a cause that hath no mean dependence/ Upon our joint and several dignities.” 21 TROYES, Chrétien de. Romans de la Table Ronde. Paris: Livre de Poche, 2002. P. 280. No original “Avant d'y monter, le chevalier eut deux pas d'hésitation. Ce fut là son malheur! Pour son malheur il eut honte d'y bondir aussitôt, et il s'en trouvera bien puni à son gré! Mais Raison qui s'oppose à Amour lui dit qu'il se garde de monter; elle lui fait la leçon et lui enseigne à ne devoir rien entreprendre qui lui vaille honte ou blâme. Raison qui ose lui dire cela ne règne pas dans son coeur mais seulement sur sa bouche. Mais Amour qui est enclos dans son coeur lui commande vivement de
19
As imitações dos bufões dão lugar às maneiras de corte, gracejos, floreios e
elogios. Como nota Kott, a peça é um grande choque entre o antigo e o moderno,
entre troianos e gregos que se embatem em um massacre sem fim. Para existir
nesse mundo os personagens fazem da guerra sua própria rotina, os soldados são
saudados antes de partir para a batalha e quando voltam dela em um cortejo de
morte sem fim.
Desde a origem, Tróilo e Cressida era uma peça de atualidade, um panfleto político amargo e debochado. Tróia era a Espanha, os gregos eram os ingleses. Por muito tempo após a derrota da Invencível Armada, a guerra ainda durava, não se via ainda seu fim. Os gregos são lúcidos, pesados e brutais. [...] não precisam persuadir-se de que morrem pela fidelidade e pela honra. Eles pertencem a um [...] novo mundo. Os troianos obstinam-se em conservar seus valores absolutos ridículos e seu código de combate medieval. São anacrônicos.22
A peça continua mostrando que em um mundo onde a guerra é absurda, não
basta apenas inteligência e cortesia para se sobreviver. É um novo mundo que se
coloca frente os personagens, as regras não são mais as mesmas e os personagens
não são salvos pelos caprichos do Amor ou da Roda da Fortuna. É necessário ser
engenhoso, livrar-se da noção de honradez e ser que nem o Aquiles da peça, que
nem se dá ao trabalho de lutar contra Heitor, espera o oponente embainhar sua
espada e manda seus mirmidões assassiná-lo pelas costas.
O trabalho será, dessa forma, dividido em três capítulos. O primeiro
discorrerá sobre as condições de produção, escrita e representação no cenário
londrino na virada do século XVI para o XVII, anos em que eram escritas e lidas as
peças de Shakespeare. Para tal, trataremos da evolução teatral que ocorre desde a
Idade Média e quais as influências desse tipo de encenação no teatro elisabetano do
século XVI. As temáticas das peças, os locais de apresentação, a evolução do teatro
no cenário londrino como um todo e o trajeto de Shakespeare até a leitura de
Cervantes no provável ano de 160623. A fim de um melhor entendimento seria
monter aussitôt dans la charrete. Amour le veu, il y bondit, sans se soucier de la honte, puis qu’Amour le veut et l’ordonne.” 22 KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. P. 86. 23 Como nota Roger Chartier, ao analisar a obra de Beaumont The Knight of the Burning Pestle, a mesma, provavelmente, encenada em 1607, não poderia ter sido realizada sem a leitura de D. Quixote. Portanto, a presença da obra de Cervantes na Inglaterra antes de sua tradução “oficial” ser
20
interessante compreender como o cenário do teatro desenvolveu-se na cidade de
Londres. Tentaremos, então, “dialogar” com, além dos já conhecidos e traduzidos
autores Stephen Greenblatt24 e James Shapiro25, também com os doutores Steven
Mullaney26 que em seu livro The Place of the Stage discute as relações de poder no
espaço urbano, e com a doutora Janette Dillon27, autora de Theatre, Court and City,
que se preocupa com o papel do teatro e como a sua inclusão na cena da disputa de
poderes em Londres gera tensões entre a corte e a cidade. O primeiro capítulo
exporá também o espaço reservado às comemorações na Idade Média e
Renascimento na Europa, local de disputas e renovações de poder, como nota o
autor Mikhail Bakhtin em sua brilhante obra A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: O Contexto de François Rabelais. O lugar das festas e do riso era
também político e, portanto, área fértil para o florescimento de situações de tensões
e de disputas de poder, locais onde o poder era contestado e, ao mesmo tempo,
reafirmado por meio da risada grotesca.
O segundo capítulo tratará da recepção, produção e leitura da obra, tanto de
Don Quixote como de Troilus and Cressida. Nesse capitulo serão avaliadas as
diferentes maneiras de produção e escrita da peça teatral, tendo em mente que a
peça teatral é, primeiramente, de característica oral e que Shakespeare em si, não
publicou ou vendeu os direitos de nenhuma de suas peças. Daremos enfoque à
questão da recepção teatral a partir do momento em que o próprio autor preza,
publicada é, aqui, atestada. Divagações podem ser feitas acerca dessa cópia da obra de Don Quixote ser em língua vernácula ou uma tradução incompleta, apesar disso, podemos ter certeza da leitura prévia do livro por alguns indivíduos que passariam também a ser incluídos na companhia teatral de Shakespeare. 24 Stephen Greenblatt é teórico e crítico literário, tendo recebido seu PHD em Cambridge, especializou-se em estudar a obra de William Shakespeare, é um dos criadores da corrente chamada Novo Historicismo, uma das mais influentes escolas de crítica e teoria literária, a partir do início dos anos 1980, sua obra inclui livros como Como Shakespeare se Tornou Shakespeare, Hamlet in Purgatory, Shakespeare’s Freedom, entre outras. 25 James Shapiro é Doutor em inglês e professor de Inglês da Universidade da Columbia, é autor de alguns livros sobre a vida e obra de Shakespeare, em alguns de seus trabalhos mais notáveis Shapiro foca o ano específico na vida de Shakespeare para fazer suas perguntas às suas fontes. Entre seus livros encontramos títulos como 1599 Um ano na vida de William Shakespeare, Quem Escreveu Shakespeare e The Year of the Lear: Shakespeare in 1606. 26 Steven Mullaney é Doutor em Inglês e Literatura comparada pela Universidade de Stanford. Atualmente Mullaney leciona na Universidade de Michigan. Seu principal livro, The Place of the Stage, objetiva buscar o lugar do teatro não apenas em seus termos físicos mas também no campo do imaginário londrino dos séculos XVI e XVII. 27 Janette Dillon é Doutora em Inglês pela Universidade de Oxford. Atualmente, Dillon leciona na Universidade de Nottingham na Inglaterra. Além de ter escrito o livro mencionado no texto, Dillon também realizou um trabalho com o objetivo de introduzir o teatro medieval e renascentista com o nome de Early English Theatre.
21
antes da cultura escrita, a própria atuação teatral como a única maneira de se
produzir significados, paradoxalmente, as únicas maneiras de termos os registros de
tais obras é por via escrita. Seguindo as palavras de Quevedo tentaremos, portanto,
“Escutar os mortos com os olhos”,
“Mas se queremos compreender os significados que os leitores davam aos textos dos quais se apropriavam, precisamos projetar, conservar e compreender os objetos escritos que os continham.”28
Devemos ir além da própria compreensão de um estudo do códex e partir
para um estudo de sua produção, por que eram produzidos, por quem, em qual
quantidade e como tais objetos eram lidos. A História da leitura é recheada de suas
próprias descontinuidades,
“[...] mesmo dentro de aparentes continuidades. Ler encarando uma tela é uma leitura dispersa, segmentada, ligada ao fragmento, mais do que à totalidade da obra. E não estaria isso, nesse aspecto, numa linha de descendência direta das práticas permitidas e encorajadas pelo códice? O códice convidava o leitor a folhear os textos, fosse usando o índice fornecido ou lendo à status et gambades, nas palavras de Montaigne. [...]. Nossas interrogações brotam dessas rupturas decisivas.”29
Portanto, é fundamental notarmos que as obras de teatro na Inglaterra dos
setecentos seguem caminhos pouco heterodoxos até as suas respectivas
publicações. Tais caminhos da fala oral até a palavra escrita são trilhados dessa
maneira não apenas na Inglaterra, como nota o historiador Roger Chartier, na
França e na Espanha, conhecidas também pela efusão teatral que ocorre em seus
respectivos domínios a partir do século XVI, temos ocorrências de disputas entre os
autores de fato das peças teatrais e os “livreiros-editores”. Por livreiro-editor, termo
que será utilizado ao longo dos capítulos dessa dissertação, entende-se a função
que é, ao mesmo tempo, a de gráfico e de livreiro, nas palavras de Roger Chartier,
“O livreiro editor dos séculos XVI, XVII ou XVIII define-se inicialmente pelo seu comércio. Ele vende, além dos livros que ele mesmo edita,
28 CHARTIER, Roger. A Mão do Autor e a Mente do Editor. Tradução: George Schlesinger. 1ª Edição – São Paulo: Editora UNESP, 2014. P. 24. 29 Ibid. P. 22 – 23.
22
aqueles que obtêm por uma troca com seus colegas: ele lhes envia, em folhas não encadernadas, livros que editou e, em troca, recebe os livros dos outros. Pode possuir uma gráfica, ou então fazer com que uma gráfica trabalhe para ele. É, portanto, em torno da atividade de livraria que se organiza toda a atividade editorial.”30
Como veremos, tais direitos sobre os livros são adquiridos de diversas
maneiras pelos livreiros-editores e uma delas é a da transcrição da peça, o que nos
leva à inclusão da obra de outros grandes teóricos da linguagem e literatura, como
Paul Zumthor31 e Mikhail Bakhtin32, pois a recepção e a estética da criação verbal
são definidoras também de sentidos. Logo, o primeiro capítulo, a meu ver, elaborará
suportes teóricos acerca de cuidados com o manuseio de obras escritas na
Inglaterra setecentista para, assim podermos questionar com mais propriedade os
textos acerca da sua produção de sentidos e significados e posicionar os rumos que
a pesquisa tomará acerca da própria História Cultural e de temas como
representação.
Por fim, o terceiro capítulo procurará analisar as temáticas utilizadas nas
fontes, deslocando a elas as dúvidas inicialmente propostas por essa dissertação,
acautelando-se da análise e das formas de geração de sentidos. O terceiro capítulo
tratará de examinar a peça Troilus and Cressida escrita em 1601 e Don Quixote
(escrito em 1604, traduzido na Inglaterra em 161333) indagando acerca do objetivo
central dessa pesquisa, ou seja, encontrar nas duas obras e na maneira como elas
foram lidas, em seu recorte temporal específico e recorte espacial, os significados
que as mesmas propuseram para a formação do discurso da modernidade. Para
tanto, precisaremos entender que o conceito de Modernidade é também uma
armadilha, de acordo com Reinhart Koselleck, não é possível especificar um tempo
fixo utilizando as expressões “tempo moderno” ou “época moderna”. Afinal,
30 CHARTIER, Roger. A Aventura do Livro: Do leitor ao navegador. Tradução de Reginaldo Moraes, São Paulo: Editora UNESP, 1999. P. 53. 31 Paul Zumthor é um dos grandes especialistas em História da Literatura Oral, ou Vocalidade como ele mesmo prefere chamar. Doutor em História pela Universidade de Genebra, inaugura na década de 70 novos horizontes para o estudo da poética medieval. Suas obras mais conhecidas são A Letra e a Voz: A “Literatura” Medieval, Introdução à Poesia Oral e Performance, Recepção, Leitura. 32 Mikhail Bakhtin é um dos mais importantes teóricos da literatura contemporânea. Formado em História e Filologia, entre suas obras mais importantes podemos destacar A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, Questões de Literatura e Estética: a Teoria do Romance e Estética da Criação Verbal. 33 Como citado anteriormente, acerca da pesquisa do historiador Roger Chartier sobre Cardenio, The Knight of the Burning Pestle e Cervantes.
23
[...] a expressão apenas qualifica o tempo como novo, sem informar sobre o conteúdo histórico desse tempo ou desse período. O aspecto formal da expressão só ganha sentido a partir do contraste com o tempo anterior, o tempo “velho” ou quando empregado como conceito de época, em oposição às definições do período de tempo anterior.34
Principalmente se o conceito de modernidade vier acompanhado do de
Idade Média, isso causa um estranhamento semântico na medida em que temos
uma Antiguidade, um período entre essa Antiguidade e a Modernidade e ainda
temos um período posterior aos dois, a Contemporaneidade. De modo que analisar
o período que chamamos de Idade Moderna é também analisar uma ideia formada a
partir de um certo período. Período de renovação, de quebra de paradigmas que
Tróilo e Cressida, Don Quixote, Sancho Pança, Hamlet, e tantos outros vão
diagnosticar.
34 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. P.269-270.
24
CAPÍTULO 1 - A CIDADE E O PALCO
1.1 Cidade Medieval, Cidade Moderna
O florescimento teatral durante o século XVI, na Inglaterra, foi influenciado
amplamente pela união, um tanto incomum, entre o Teatro Clássico grego e o Teatro
Medieval. Não apenas na Inglaterra houveram tais florescimentos, na França, na
Espanha, entre outros, tais processos de desenvolveram. Contudo, a maneira com
as quais a gênese teatral se perpetuou nos diferentes países difere-se por diversos
fatores. Um deles, seria a formação de uma nova concepção do significado da
cidade. Londres não era mais a cidade medieval que perdurou até o século XV.
Apesar de todo o seu crescimento populacional e seu crescimento em importância
durante o Renascimento do século XII, a cidade do século XIV e XV conviveu com
crises, pestes, calamidades, incêndios além das guerras constantes durante o
período:
Na França (Guerra dos Cem Anos); na Itália, sujeita a terríveis conflitos armados entre as cidades e a numerosas operações militares nos Estados da Igreja; na Península Ibérica, devastada pelas guerras civis; na Inglaterra, no século XV, quando da Guerra das Duas Rosas... As cidades tiveram de construir novas muralhas ou consertar as antigas, o que arruinou suas finanças e impôs aos citadinos pesadas cargas fiscais, que aumentaram o descontentamento dos habitantes menos ricos, sobre os quais aquelas cobranças pesavam mais.35
Além de grandes revoltas sociais urbanas, na Inglaterra podemos citar a do
tecelão Wat Tyler em 1381, conduzidas não apenas contra a coroa, mas também
contra os “ricos, os poderosos burgueses que controlam as instituições urbanas”36.
Nesse contexto de crise e tensão social há um severo aumento no número de
marginais: vagabundos, sem tetos, delinquentes e prostitutas vivem em locais entre
os quais a fronteira é flutuante. No entanto, como nota Steven Mullaney ao analisar
35 GOFF, Jacques Le. Cidade in Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (org.). Tradução de Hilário Franco Junior. Bauru, SP: EDUSC, 2002. P. 232 36 GOFF, Jacques Le. Cidade in Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (org.). Tradução de Hilário Franco Junior. Bauru, SP: EDUSC, 2002. P. 233
25
a construção e definição do espaço dedicado às leprosarias na cidade de Londres.
Para Mullaney a própria definição do leproso é transformada durante os séculos XI e
XII na Inglaterra, os comentários bíblicos na Idade Média combinaram o mendigo
Lázaro com Lázaro de Betânia; o leproso, antes uma figura do espetáculo de morte,
transforma-se em uma forma de sagrada poluição da alma, uma lembrança e um
monumento vivo que reforça a tese de que a salvação e a ressurreição ocorrem
mesmo para o mais destroçado dos corpos.
O século XII vivencia um intenso crescimento da cidade medieval e com ele
temos a construção do primeiro leprosário, em 1118 pela Rainha Matilde. Os
leprosários passam então a enquadrar a cidade, estabelecendo de maneira abstrata
os limites organizacionais da cidade, cultura e comunidade londrina. Tais limites
eram estabelecidos também pelas autoridades em forma de “Liberties”, basicamente
a área onde se predominava a autoridade destinada à cada posição de poder. No
caso de Londres a “Liberty” era definida pela área em torno da Torre de Londres.
De fato, como nota Le Goff, a cidade é “um lugar teatral”37, local de
interpretações, memória, artes de se fazer e andar, como diria Certeau “um lugar
palimpsesto” onde “a subjetividade se articula sobre a ausência que a estrutura
como existência e a faz “ser-aí”.38 Onde os atores principais são os caminhantes,
que dão sentido às construções e às ações perpetradas em suas ruas, logo, o
sentido da cidade, como um palimpsesto, altera-se à medida que o seu caminhante
dá novos e contínuos significados ao ato de viver, fazer e caminhar. No século XV
começam a desaparecer os leprosários, em 1557 temos os dois últimos casos de
leprosos atravessando o Tâmisa para um hospital localizado nos arredores de
Southwark. É possível estabelecer um paralelo, como o fez Mullaney, entre o fim dos
leprosários e o início de outra atividade que sai das ruas, do público e vai para o
privado: o Teatro.
Os lugares escolhidos para a construção dos teatros também foram os
arredores de Londres. Principalmente devido à censura e ao discurso conservador
acerca da prática teatral, as companhias teatrais foram forçadas a procurar os limites
entre os poderes estabelecidos para as “Liberties”, onde havia um limbo de
37 GOFF, Jacques Le. Cidade in Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (org.). Tradução de Hilário Franco Junior. Bauru, SP: EDUSC, 2002. P. 219 38 CERTEAU. Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014. P. 176
26
autoridade, para enfim, poderem estabelecer locais próprios para sua própria
atuação.
Os antagonistas do teatro, na época, utilizaram-se dessa marginalização dos
teatros para discursar contra os mesmos. Na virada do século, a cidade era
circundada por construções nas quais eram feitas apresentações teatrais e que se
localizavam, à exemplo dos leprosários, nos arredores de Londres. O que mais
incomodava os elisabetanos não era a existência ou tipo de construção utilizada
para fazer os teatros e sim sua localização.
O que Stockwood acha distinto e escandaloso, até mesmo ao ponto da audácia e indisciplinada eloquência, não é a arquitetura mas o lugar do palco, sua marginal ainda que importante situação no limite do início da Londres moderna.39
O exame das tradições dos rituais marginais, espetáculos e licenças deve
ser feito analisando-se a definição de espaço, partindo-se do princípio de que as
cidades medievais e renascentistas não eram moldadas por planejamento urbano ou
controle populacional e sim pela variedade de ritos de iniciação, exclusão e
celebração através dos quais a ordem social era definida. Como nota Bakhtin, a
cidade é o local da celebração, da “carnavalização”, onde o alto e o baixo
confundem-se para celebrar a restauração e a renovação da ordem. O lugar das
festas e ritos que viram o mundo “de cabeça para baixo” para enfim renovar o
sentido de poder e autoridade. E se, até hoje, examinamos os rituais e cerimonias
organizados em torno de figuras de poder, como por exemplo a pré coroação de
Elizabeth, como formas iniciais de ritos de passagem, importantes que tais figuras
de poder assumissem seu lugar adequado dentro da hierarquia social. Tal visão não
é de fato, errada, mas pode ser enganadora na medida em que nos esquecemos de
também contextualizar a perspectiva urbana dos rituais que não eram meramente
paisagens. Suas testemunhas seriam o que Certeau chamaria de “praticantes
ordinários da cidade”,
39 MULLANEY, Steven. Civic Rites, City Sites in Staging the Renaissance. P. 18. No original “What Stockwood finds distinctive and scandalous, even to the point of an audacious and unruly eloquence, is not the architecture but the place of the stage, its marginal yet commanding situation on the threshold of early modern London.”
27
Esses praticantes jogam com espaços que não se veem: têm dele um conhecimento tão cego como no corpo a corpo amoroso. Os caminhos que se respondem nesse entrelaçamento, poesias ignoradas de que cada corpo é um elemento assinado por muitos outros, escapam à legibilidade. Tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada.40
Qualquer cidade poderia ser descrita como uma projeção de seus valores
culturais e crenças, como uma fusão de ideias e ideologias em formas concretas,
inscrições de práticas e contradições no próprio seio da comunidade, a cegueira que
caracterizam as práticas. No entanto, como nota Lefebvre, os espaços sociais se
interpõem uns nos outros,
Não são coisas, limitadas umas pelas outras, se chocando por seu contorno ou pelo resultado de inércias. Certos termos, como “camada” ou “capa”, não são desprovidos de inconvenientes. [...]. As fronteiras visíveis (por exemplo, os muros, as cercas em geral) fazem nascer a aparência de uma separação entre espaços ao mesmo tempo em ambigüidade e em continuidade. O espaço de um “cômodo”, de um quarto, de uma casa, de um jardim, separado do espaço social por barreiras e muros, por todos os signos da propriedade privada, não é menos espaço social. Estes espaços também não são “meios” vazios, recipientes separáveis de seu conteúdo.41
A Londres, da metade do século XV até o início do século XVI, vivencia um intenso
crescimento populacional, apesar das crises e intempéries, as cidades grandes
estratificam-se cada vez mais de acordo com as suas condições sociais, criando
bairros para estrangeiros, pobres, marginais. A repressão também cresce
exponencialmente contra essa camada da população, que era extremamente mal
vista pelo resto da cidade, entretanto, os discursos repressivos não se provavam
bem sucedidos.
40 CERTEAU. Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014. P. 159 41 LEFEBVRE, Henri. Production of Space apud DILLON, Jannete, Theatre, Court and City: Drama and Social Space in London. Cambridge University Press, Nova York: 2006 P. 21. No original “They are not things, which have mutually limiting boundaries and which collide because of their contours or as a result of inertia. Figurative terms such as ‘sheet’ and ‘stratum’ have serious drawbacks. […]. Visible boundaries, such as walls or enclosures in general, give rise for their part to an appearance of separation between spaces where in fact what exists is an ambiguous continuity. The space of a room, bedroom, house or garden may be cut off in a sense from social space by barriers and walls, by all the signs of private property, yet still remain fundamentally part of that space. Nor can such spaces be considered empty ‘mediums’, in the sense of containers distinct from their contents.”
28
Mapa de Londres em torno de 1550, de Braun e Hogenberg.
(https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Antique_map_of_London_by_Braun_%26_Hogenberg.jpg)
29
Grande parte desse crescimento populacional, porém, pode ser muito mais
creditado à imigração. Se contarmos com a comparação entre nascimentos e mortes
no mesmo período, o número de habitantes na capital teria sido bastante reduzido,
não fossem as intensas imigrações advindas de outras partes da Inglaterra. Londres
era uma cidade única, em todos os aspectos, naquela época. Exercia uma
fascinação extrema em todo o resto do país por ser a uma cidade de alguma forma
substancial. As novas modas eram exibidas em Londres, os livros estrangeiros eram
impressos em Londres, a corte (principalmente a corte de Jaime I) passava bastante
tempo em Londres e, como nos interessa muito mais, o teatro encontrou o seu lugar
em Londres.
Tal lugar, no entanto, não veio sem a devida disputa. Disputa social, disputa
econômica, disputa legal. Os teatros e as suas companhias não eram bem vistos
pela sociedade conservadora da Inglaterra do século XVI, muito pelo contrário,
Do ponto de vista da cidade, as casas de teatro eram a fonte de todas as doenças empesteando Londres, e, por um lado os pais da cidade estavam certos – mas apenas na medida em que tais casas de teatro eram a manifestação completa da “lei incontinente” que havia sempre reinado nas “Liberties”.42
O Teatro, ou a casa de espetáculo, surge, portanto, na margem do que poderemos
considerar uma disputa de poder entre a coroa e a cidade pelo predomínio das
representações. Não conscientemente, tais companhias buscavam constantemente
a presença de protetores ao longo da nobreza que assim, poderiam dar estatuto de
legibilidade às mesmas para atuar no que poderíamos considerar o limite da lei
vigente na cidade londrina. Ao mesmo tempo que a cidade clamava cada vez mais
para dar significado à sua própria experiência. Nesse caso, não são poucas as
peças que fazem alusão à cidade de Londres, a primeira delas provavelmente em
meados de 1580 The Three Ladies of London (As Três Damas de Londres), escrita
logo após a derrota da Invencível Armada, a peça é um apelo ao sentimento londrino
sobre a vitória contra um país estrangeiro. 42 MULLANEY, Steven. Civic Rites, Civic Sites in KASTAN, David Scott e STALYBRAS, Peter (org). Staging the Renaissance: Reinterpretations of Elizabethan and Jacobean Drama. New York: Routledge, Chapman and Hall, Inc, 1991. P.25. No original “From the city’s point of view, the playhouses were the source of all the ills pestering London, and in a sense, the city fathers were right – but only insofar as those playhouses were a full manifestation of the ‘incontinent rule’ that had always reigned in the Liberties.”
30
(Mapa de Londres em 1593, por John Norden).43
43 Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/John_Norden#/media/File:John_Norden%27s_map_of_London_1593_Large_version.jpg
31
No entanto, muitas outras fazem alusões, piadas e trazem imagens da
Londres do XVI, apesar de muitas vezes nem ser a cidade que esteja sendo
encenada no palco. A Tróia de Troilo e Cressida é deveras moderna para estar se
passando mesmo na antiguidade, e sua cidade é extremamente parecida com
Londres, com ruelas pequenas e constante marcha militar. Além disso, não
poderíamos deixar de citar Henrique IV, que se passa propositalmente em Londres,
para descrever o crescimento do herdeiro do trono, conhecendo a escória londrina e
cometendo diversos pequenos delitos.
A palavra “Liberties”, contudo, possui sentido contraditório quando tratamos
dos teatros. Ela pode ser utilizada para determinar os direitos e privilégios de uma
cidade e, portanto, seu limite geográfico e jurídico, ao mesmo tempo ela poderia
precisar as áreas que caem fora da autoridade da cidade por conta de seus próprios
privilégios e direitos hereditários. As casas de teatro eram, simultaneamente, um
fenômeno da cidade e um fenômeno da “não cidade”, desejado pelos habitantes,
negado pelos governantes. Ela permanecia no limbo performático do próprio
monopólio da representação.
Os atores e membros de companhias estavam sujeitos, consequentemente,
à ação direta dos governos contra suas atividades. É com esse viés, por exemplo,
que foi definido no “Ato contra Vagabundos” de 1572, a profissão de ator como a de
um vagabundo, ao menos que tais companhias e casas teatrais possuíssem a
proteção patronal de algum nobre poderoso. Assim que começam a surgir as
ligações entre o teatro e a nobreza. O Teatro, construído em 1576, possuía a
proteção do Conde de Leicester e a patente garantida à James Burbage. Alguns,
menos afortunados, fingiam a mesma proteção e houveram diversas reclamações
acerca da variedade de companhias que se chamavam “Queen’s Men” (Homens da
Rainha).
A relação entre tais companhias e seus patronos, no entanto, não era de um
patronato financeiro e, sim, a de uma proteção política e legal acerca de suas
próprias atividades. Havia, portanto, independência financeira das companhias
teatrais que atuavam em seus teatros. No entanto, haviam leis que denunciavam tal
tipo de atividade, por conta dessas casas terem sido “locais construídos com um
propósito”, tais leis denunciavam a atividade do teatro ao mesmo tempo que
denunciaram a atividade de um bordel, ou um ringue de lutas de ursos ilegal. Para
burlar a lei, as companhias utilizavam-se da desculpa de que as apresentações
32
realizadas para o público em tais casas, tratavam-se de ensaios para performances
mais importantes, como por exemplo, para a Rainha em Whitehall. Os atores faziam
fama e reputação tanto na cidade como na corte, e sabiam como utilizar a fama e o
respeito adquirido em ambas as esferas de influência para manter o seu próprio
equilíbrio e seus direitos para poder atuar.
Eles podiam sucessivamente violar a autoridade da cidade invocando o suporte de seus patronos, muitos dos quais eram membros do Muito Honorável Conselho de Sua Majestade. William Fleetwood, um cronista de Londres, escreveu para o Lorde Burghley em 1584 para expressar seu ultraje em relação à insolência de um ator, que se recusou a se submeter à tentative de Fleetwood de discipliná-lo e disse, ao invés disso, “que ele era um homem de meu Lorde Hunsdon.44
O Teatro Elizabetano, consequentemente, afastava-se do caráter público
que havia sido tão comum às apresentações na Idade Média. Ao definir-se o lugar
de apresentação, o espaço passa a depender de novos símbolos e sinais, como
diria Raymond Williams. Grande parte da função ritualística da obra passa a ficar
dependente da própria produção de sentido que a casa de teatro dá à ela mesma,
isso seria o que Williams chama de sinal,
Uma área de história das artes, que é enorme e à qual habitualmente não se presta atenção, é o desenvolvimento de sinais sociais de que aquilo a que, então, se vai ter acesso deve ser encarado como arte. [...] O sinal de uma galeria de arte é um caso especialmente óbvio. É um lugar especializado e destinado à contemplação da pintura, do desenho, ou da escritura como arte. [...] Considere-se porém, a diferença quando vemos um desenho ou uma pintura numa rua comum ou na parede de uma casa. Logo se indaga por que está ali: será algo feito por algum vândalo, algum troca-tintas não autorizado, ou algum artista impulsivo e frustrado, ou será alguma nova política de trazer a arte para as ruas?45
Nesse caso, as pessoas que vão ao teatro passam a esperar, obviamente,
obras teatrais bem escritas e bem encenadas (principalmente pela premissa de
terem pago para verem o espetáculo), o que explica grande parte do alvoroço e do
44 DILLON, Jannete, Theatre, Court and City: Drama and Social Space in London. Cambridge University Press, Nova York: 2006. P.35 45 WILLIAM, Raymond. Cultura. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. P. 130
33
público teatral na era elisabetana, que sairiam de espetáculos teatrais exibidos na
rua em pageants, com temas extremamente inspirados na Igreja. Muitas vezes eram
encenadas Mistérios cristãos, peças ritualísticas que interpretavam passagens da
bíblia, com grande ênfase na paixão de cristo. Mas os grandes sucessos, em
questão de temática, eram as encenações das Moralidades. Entre os personagens
principais dessas peças não estavam mais a Igreja e a Heresia, mas também a Paz,
a Justiça, a Vaidade, entre outros. Tais personagens não eram mais meros alicerces
da religiosidade e espiritualidade medieval, mas também eram protagonistas ativos
no desenrolar da trama.
Entrementes, as moralidades se arraigaram firmemente na Inglaterra, que partilha com a França as honras de ser o berço clássico do gênero. Já em 1378, John Wiclif se refere a um Play of the Lord’s Prayer (Auto do Padre-Nosso) alegórico, apresentado em seu condado natal de York. [...] As Virtudes e os Pecados Mortais [...] mediam forças nas moralidades inglesas, tão ricas em propósitos didáticos e retóricos quanto as conferências dramatizadas sobre Ética, no continente.46
Tais peças referentes à moralização da sociedade acabavam sempre com a
justiça sendo feita aos que abusavam da roda da fortuna, que eram vaidosos ou
glutões, muitas vezes o seu destino era a morte e, consequentemente, o inferno.
Não é difícil imaginar o fascínio que tais peças causavam no público,
principalmente quando nos lembramos que tais companhias, em épocas de peste ou
leis que proibissem sua atuação em Londres, viajavam pelo interior apresentando-
se. Foi em uma dessas apresentações que, muito provavelmente, William
Shakespeare teve seu primeiro contato com o teatro. Apesar de estarem sendo
realizadas, efetivamente, em um ambiente de incrível repressão devido à reforma
protestante, tais peças não eram, a rigor, católicas.
No entanto, com uma maior possibilidade da margem de lucros e uma
grande plateia, além de novas possibilidades de temas e cenários, as companhias
teatrais diminuíram cada vez mais suas turnês pelo interior e concentraram-se nas
áreas marginalizadas da crescente Londres.
46 BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Tradução de Maria Paula v. Zurawski, J. Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. São Paulo: Perspectiva, 2014. P. 265.
34
Os teatros, construídos em Londres a partir de 1576, com a inauguração da
primeira casa de espetáculos o “Theatre” carregam em si mesmos, símbolos do
embate entre a corte e a cidade. Por serem estabelecimentos com propósitos
definidos e por terem sido construídos e mantidos por indivíduos que alguns textos e
leis da época consideravam como “vagabundos”, os teatros eram combatidos
frequentementes em textos moralizantes. Todavia, era a liberdade das Companhias
teatrais que mais causava estranheza à lógica da cidade. Eles não eram,
necessariamente uma ordem de ofício, recebiam ou procuravam receber uma
proteção constante de algum alto nobre sem, no entanto, estabelecer com ele uma
relação de mecenato.
O Theatre fora construído com a proteção de uma patende concedida à James Burbage e sua companhia pelo Earl de Leicester em 1574, o que dava à companhia um status altamente protegido. [...]. Esse sistema de licenciamento, então, paredia formalizar uma relação do antigo patronato entre grandes lordes e artistas; mas os termos da carta de Burgage para Leicester, solicitando a confirmação de sua proteção, torna claro que a relação não se extendia ao suporte financeiro.47
Logo, o que havia era a configuração de um novo tipo de profissão. As companhias
teatrais lucravam, e bem, com suas práticas e não dependiam do financiamento de
ninguém para subsistir, o que caracteriza, basicamente, uma grande mudança na
lógica econômica da cidade. Ao mesmo tempo em que os artistas eram o tempo
todo pressionados pelas leis da cidade para afiliar-se à algum nobre poderoso, eles
estavam edificando suas condições de auto sustentabilidade.
No limite entre dois mundos completamente distintos, o mundo medieval
regrado por suas morais e o mundo moderno mais independente do discurso
religioso e moralizante das regras religiosas, os atores e as companhias teatrais
conseguem realizar um dos mais bem-sucedidos negócios do século XVII. De fato,
uma das melhores maneiras para se estabelecer indivual e seguramente em
Londres era por meio do teatro, isso é, se a pessoa em questão tivesse o talento
necessário. Não era necessário nenhum período de aprendozado e o sucesso
dependia apenas do esforço, talento, habilidade e parcimônia.
47 DILLON, Jannete, Theatre, Court and City: Drama and Social Space in London. Cambridge University Press, Nova York: 2006. P.34
35
(The Theatre por Walter C. Hodges in <http://shalt.dmu.ac.uk/locations/theatre-1576-
98.html>)
A organinização hierárquica dessas companhias usou como modelo as
guildas de artesãos da época. Apesar disso, o que as companhias teatrais ofereciam
não eram produtos paupáveis, a pessoa que vai ao teatro não tem a mesma
experiência de quem vai à uma loja. Janette Dillon relaciona o advento do teatro
elisabetano com o da construção do Royal Exchange – fundado em 1571 pelo
mercador Thomas Gresham com o objetivo de ser o centro comercial de Londres.
Para Dillon, a construção de um projeto tão ambicioso quanto o Exchange ser
contemporâneo ao início de outro negócio igualmente arriscado como as formações
de novas companhias teatrais e a aquisição de lugares físicos na cidade, com o
intuito de serem utilizadas para performance, não é uma mera coincidência.
36
O que tornou possível a mistura de fileiras nas audiências dos teatros foi a comoditização do teatro. Uma vez que as casas de espetáculo se estabeleceram e as peças eram oferecidas para o consumo de clientes pagantes, mais frequentemente do que elas eram comissionadas para performances privadas, qualquer um poderia comprar entradas para uma performance.48
Uma vez que essa Londres pré-moderna vive, basicamente, no limite entre
dois mundos completamente distintos: um deles austero e moral, baseado nas
tradições cristãs e adaptado pelos protestantes e o outro, que se baseia no lucro, na
venda e, principalmente, na oferta do que os cidadãos da cidade queriam consumir.
Afinal, o que vem primeiro: a damanda por produtos ou a capacidade para supri-los?
A demanda por diversos produtos em uma cidade em constante
transformação, como era Londres na virada do século XVI, torna construções como
o Royal Exchange extremamente necessárias, afinal, há uma demanda cada vez
maior pelo que pode ser considerado “exótico”.
No entanto, como notado acima, há um problema de função. Os
espectadores do teatro não vão adquirir objetos como os clientes de uma loja vão
adquirir produtos, uma pessoa que vai assistir uma peça faz isso em busca de
outras sensações que não a da compra e posse de um produto. Logo, o consumidor
do teatro procura algo além da posse física de um material, na Londres do século
XVII ir ao teatro era consumir a hábitos, costumes e status social.
Enquanto que os bens em exposição nas lojas no Royal Exchange almejavam mexer com os desejos dos consumidores ao ponde em que eles iriam colocar suas mãos em seus bolsos, as peças eram pagar antes de sua exposição, nem elas podiam pertencer à um consumidor individualmente ou serem levadas para casa após a compra. Elas eram a definição do prazer efêmero. Ainda assim, como o lobby anti teatral continuava dizendo, elas mexiam com os desejos em um grau perigoso.49
48 DILLON, Jannete, Theatre, Court and City: Drama and Social Space in London. Cambridge University Press, Nova York: 2006. P.38. No original “What made possible the mixing of ranks in theatre audiences was the commoditisation of theatre. Once playhouses became established and plays were offered for the consumption of paying costumers more often than they were commissioned for private performance, anyone coud buy entrance to a performance.” 49 DILLON, Jannete, Theatre, Court and City: Drama and Social Space in London. Cambridge University Press, Nova York: 2006. P.41. No original “Where goods on display in the Royal Exchange shops aimed to stir consumer’s desires to the point where they would put their hands in their pockets, plays were already paid for before they were displayed, nor could they be owned by individual consumers or taken home after purchase. They were by definition ephemeral pleasures. Yet, as the antitheatrical lobby kept saying, they stirred desires to a dangerous degree.
37
As tendências podem ser descritas na medida em que as peças teatrais
ofereciam maneiras de agir. Em uma sociedade visivelmente díspar nos costumes
entre nobres em gentis, os teatros agiam entre a corte e a cidade aproximando os
dois extremos, ofecerendo peças onde viam-se interações entre as duas classes,
onde o público poderia julgar os dois personagens e onde, muitas vezes, haviam
críticas e satirizações às duas. O status social que as peças ofereciam pode ser
explicado pelos preços necessários para se ir ver uma peça. Dentre os teatros que
foram sendo contruidos em Londres, os espectadores que fossem no Blackfriars
pagavam mais, sendo assim, pertenciam à um público mais selecionado,
[...] enquanto que peças no Red Bull iam pela popularidade, mesmo ao custo de parecer antiguadas. A mesma peça realizada pelos King’s Men no Blackfriars, no Globe e em Whitehall tinham ressonâncias diferentes e diferentes status de moda, em cada.50
Além do preço, a própria arquitetura interna dos teatros oferecia locais onde,
dependendo do preço que se era pago, podia ter uma visão mais ampla da peça e,
ao mesmo tempo, podia ser visto. Nesse caso, os teatros passavam a refletir uma
condição da sociedade inglesa do Antigo Regime. A vida pública e o status social
eram intrinsecamente conectados, logo, era apenas esperado que pessoas de alto
poder aquisitivo ou nobres fossem vissem e fossem vistos assistindo as peças nas
galerias. Os expectadores do teatro então, permaneciam em um regime de
constante observação, não apenas da peça em si, mas também de seu público,
captando tudo que estimulasse seus desejos “eróticos, imorais, materialistas, ou
todos eles.”51
Existe ainda uma outra diferença entre o teatro e as compras em uma loja,
que também se relaciona às questões do desejo. Como nota Dillon, o sentido lúdico
do teatro não pode ser extendido ao de se fazer compras. Por mais divertido que
seja ficar olhando às vitrines, existe um limite entre o imaginar possuir um produto e
jogar com as noções de posse, todavia, o ato de comprar vem atrelado à mudança
50 DILLON, Jannete, Theatre, Court and City: Drama and Social Space in London. Cambridge University Press, Nova York: 2006. P.39. No original “[…] while plays at the Red Bull went for popularity even at the cost of seeming old fashioned. Even the same play performed by the King’s Men at the Blackfriars, the Globe and Whitehall had different ressonances, and a different fashion status, in each.” 51 DILLON, Jannete, Theatre, Court and City: Drama and Social Space in London. Cambridge University Press, Nova York: 2006. P.41. No original “[…] erotic, immoral, materialistic, or all of these.”
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de posse, o objeto vai de um lugar para o outro, de uma pessoa para outra. No
teatro, os espectadores apenas participam imaginativamente do que é comprado. O
que é comprado é a oportunidade de se entrar em um local onde é disponibilizado a
oportunidade de brincar com a imaginação, ser alguém em algum lugar. Não a
oportunidade de olhar um objeto material, mas a de se observar modos de ser.
Conceitos como instabilidade, mudança, mobilidade, fluidez, entre outros,
descrevem processos de maneira impessoal, quase como se tais processos fossem
feitos sem a atuação de pessoas. Para Dillon, o conceito que deveria ser utilizado é
o de hábito, ou costume.
Ao colocar o conceito de hábito dentro da discussão de mudanças e realinhamentos na Londres do início do século XVII, é possível não apenas destacar participação social, mas começar a entender o lugar do teatro entre aquelas relações sociais. O teatro é, acima de tudo, um lugar de espetáculo, mas um com alto grau de cooperação. O palco pode mostrar o que já esta circulante e dar a isso uma maior circulação, mas também pode mostrar algo novo e criar novas tendências. Em outras palavras, é um poderoso criador e dispersador de hábitos.52
Por essas razões, o mercado se mostra como um conceito a ser explorado
dentre o cotidiano londrino no início da Idade Moderna. Apesar desse mercado, no
século XVI, ser um lugar no passado, como nota o historiador Jean-Christophe
Agnew e herdar esse sentido na Inglaterra medieval, este estava a beira de uma
mudança em sua essência, afinal, os contemporâneos dessa transformação
achavam difícil entender a nova liquidez do mercado, uma liquidez, que segundo
Dillon, “também achava uma analogia
O Royal Exchange é icônico nesse sentido. O prédio passa a participar do
próprio imaginário da cidade, incluído em algumas como “Three Lords and Three
Ladies of London” (1588 – 1590) e “A Knack to Know a Knave” (1592). A interação
entre a cidade e o palco faz com que o foco dramático das peças seja transportado
para a cidade de Londres. Nem todas as peças se passam em Londres,
naturalmente, mas as peças que assim o fazem são particularmente interessantes
52 Ibid. P. 16 – 17. No original “By putting the concept of fashion into the discussion of shifts and realignments in early seventeenth-century London it is possible not only to highlight agency, but to begin to understand the place of the theatre within those social relations. The theatre is above all a place of show, but one with a high degree of agency. The stage can display something new and create new currency. In other words, it is a powerful maker and disperser of fashions.
39
para compreendermos a natureza das relações sociais que imperavam no mundo
londrino.
O que era ofertado no teatro eram modos de ser, modos de se vestir, modos
de agir. Em Hamlet, há uma cena em que o príncipe Hamlet zomba de Osrico,
ridicularizando-o pela maneira que o mesmo utiliza o gorro; na cena quando Osrico
chega com o convite de Laertes para o duelo final, o príncipe obviamente responde
o floreio do serviçal retirando o seu gorro e colocando-o de volta. A falha de Osrico
em imitar o gesto de Hamlet leva o mesmo à repreende-lo,
Osrico: Meu doce senhor, se Vossa Alteza dispuser de tempo, farei uma comunicação da parte de Sua Majestade. Hamlet: Recebê-la-ei com a máxima atenção. Usai vosso gorro de acordo com a sua finalidade; foi feito para a cabeça.53
Como nota Andrew Gurr, a utilização de chapéus, gorros e afins por atores
em palco não é tão destacado quanto, por exemplo, as roupas de Hamlet. A não ser
que saibamos dos maneirismos da corte, e que também seja de nosso
conhecimento, que Hamlet seja dotado da perfeita etiqueta, a zombaria com Osrico
pode não ser notada. A utilização de chapéus, obviamente, é para a proteção contra
o sol ou contra o frio, Osrico entende que o pedido de Hamlet para utilizar bem o seu
gorro seja uma preocupação com o sol quente, com a qual ele responde,
Osrico: Eu agradeço, meu senhor, está muito quente. Hamlet: Ao contrário, creia em mim; faz muito frio; o vento é norte. Osrico: Realmente, príncipe, está fazendo bastante frio. Hamlet: Conquanto me pareça que o tempo está abafado e quente para a minha compleição. Osrico: Sim, não há dúvida, está bastante abafado, de certo modo... [...]54
O humor da cena é óbvio; Osrico tenta o tempo inteiro agradar o príncipe por
meio de floreios educados enquanto é atacado pela retórica de Hamlet, personagem
53 SHAKESPEARE, Hamlet. The Complete Works of William Shakespeare. Barnes and Noble, New York: 1994. P.709 (V, II, 90 – 93) No original “Osric: Sweet lord, if your lordship were at leisure, I should impart a thing to you from his majesty. / Hamlet: I will receive it, sir, with all diligence of spirit. Put your bonnet to his right use, ’tis for the head. 54 Ibid. P.709 (V, II, 94 – 101) No original “Osric: I thank your lordship, it is very hot./ Hamlet: No, believe me, ’tis very cold; the wind is northerly. / Osric: It is indifferent cold, my lord, indeed. / Hamlet: But yet methinks it is very sultry and hot for my complexion. / Osric: Exceedingly, my lord; it is very sultry, - as ’twere […]”
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que se utiliza desse tipo de artifício para causar desconforto com quase todos os
personagens. Os chapéus, na época, eram retirados como um gesto de respeito.
Apenas um cortesão na presença de um rei manteria o chapéu em sua mão. Osrico
assim o faz, na presença de Hamlet, parecendo excessivamente respeitoso,
principalmente por ser um dos serviçais do Rei usurpador dirigindo-se ao filho do rei
assassinado. Shakespeare faz uso de cenas com chapéus em outras peças
Trabalhos de Amores Perdidos (Love’s Labours Lost), Sonhos de Uma Noite de
Verão (Midsummer Night’s Dream) e Como Gostais (As You Like It). A não ser que
conheçamos as práticas e sejamos capazes de perceber que Hamlet fica com o seu
chapéu enquanto Osrico continua a florear com o seu, nós acabamos por perder o
verdadeiro propósito por trás do incidente. Como nota Gurr, ajuda também saber
que:
[...] o típico “gorro” Elizabetano em 1600 tinha uma copa alta, uma borda estreita e uma base redonda – um tipo de chapéu-coco alongado – para visualizar a imagem que Horácio teve de Osrico indo embora como um bebê galispo “com a concha na cabeça”.55
Shakespeare faz com que Hamlet seja uma das peças que utiliza com mais
sofisticação as condições de palco de sua época, seja ao encenar a peça dentro da
peça, para cenas de duelos ou conversas entreouvidas por trás de cortinas. Outro
fator, igualmente importante, que estabelecia os limites nos quais as condições
teatrais eram impostas era o vestuário utilizado nas peças. As roupas que os atores
utilizavam serviam para demarcar posições, conquistar territórios. Não haviam
atrizes na Inglaterra do XVI-XVII, apesar de não haverem leis que fossem contrárias
à prática do teatro e da existência de uma mulher em cima do palco e, no resto da
Europa, mulheres participavam da representação de peças. Apesar de não estarem
no palco, as mulheres eram parte do espetáculo, não devemos podemos esquecer
que as características do teatro inglês eram bastante propícias para a participação
ativa da plateia, portanto, enquanto a existência de mulheres na plateia era capaz de
reverter a direção do olhar sobre os personagens. Ao mesmo tempo, um único
gênero era dividido entre múltiplos papeis sexualizados, o próprio gênero era 55 GURR, Andrew. The Shakesperean Stage: 1574 – 1642. Cambridge University Press, Cambridge: 2014. P. 3. No original “[…] a typical Elizabethan ‘bonnet’ in 1600 had a high crown, a narrow brim and a round dome – a kind of elongated bowler hat – in order to visualise Horatio’s image of Osric running off like a baby lapwing ‘with the shell on his head’.
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retratado como uma dissimulação, uma performance que variava. O travestismo do
teatro traz à tona a instabilidade da categorização de gêneros na Inglaterra
renascentista, muito baseada no discurso médico de Galeno que atestava,
[...] que a única distinção genital entre homens e mulheres era de calor – o calor que fazia com que a vagina feminina “pular para fora” tornando-se morfologicamente idêntica ao pênis.56
Logo, não havia um discurso médico que fizesse uma divisão estável entre
os gêneros masculino e feminino, a concepção era uma mistura entre as sementes
do homem e da mulher, a grande diferenciação entre os gêneros era a preservação
do calor para o masculino e da frieza para o feminino. O gênero era, portanto, uma
produção, na qual as diferenças eram construídas e transformadas e essa produção
tornava-se evidente no palco, quando eram demarcadas pelas roupas.
Roupas que demarcavam as diferenças entre os gêneros, mas que
tornavam explicitas, principalmente, as diferenças entre as classes sociais. Ao
menos oito proclamações foram expedidas na época com o objetivo de prevenir a
“confusão” de graus que resultava onde os mais pobres se vestiam ricamente.
Regulamentações em torno de vestimentas foram necessárias para demarcar e
assegurar as diferenças sociais, testemunho da ansiedade acerca da desordem que
os vestuários poderiam trazer. Apesar das ações do estado, que se esforçou para
proibir e regulamentar as vestimentas, as transgressões acerca desta eram a
essência principal do teatro renascentista inglês. Diversos tratados anti teatrais
protestavam contra a fluidez da identidade social no palco, Stephen Gosson, um dos
mais ásperos críticos do teatro, acha censurável que no teatro um menino possa:
[...] “colocar roupas, imitar gestos e paixões” de uma mulher e que uma “pessoa vil” possa “se auto rotular com o título de um príncipe com treino e portes falsificados”.57
56 KASTAN, David Scott and STALYBRASS, Peter. Staging the Renaissance: Reinterpretations of Elizabethan and Jacobean Drama. Routledge: New York, 1991. P.8. No original “[…] the only genital distinction between men and women was of heat – the heat which caused the female vagina to ‘pop out’ into the morphologically identical male penis” 57 GOSSON, Stephen. Plays Confuted in Five Acts. London, 1579. apud KASTAN, David Scott and STALYBRASS, Peter. Staging the Renaissance: Reinterpretations of Elizabethan and Jacobean Drama. Routledge: New York, 1991. P. 9. No original “[…] ‘put one the attyre, the gesture, the passions’ of a woman and that a ‘meane person’ would ‘take upon him the title of a Prince with counterfeit port and traine’.
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O palco apresentava, portanto, identidades de gênero que, longe de serem
fixas, mostram-se problemáticas e volúveis. Dessa maneira, não nos é possível não
relacionar tal acontecimento com o texto de Bakhtin “A Cultura Popular na Idade
Média e no Renascimento” (1965), no qual o autor russo destaca a importância do
riso cômico medieval e renascentista para a lógica da renovação do poder. Os
festejos do carnaval, como nota Bakhtin, eram intrinsecamente relacionados à
prática teatral, salvo que, o carnaval era vivido sem a necessidade imediata de
personagens e sem a necessidade de um palco. As festas que originariam o teatro
renascentista eram encenadas e encaradas, portanto, sob um viés duplo: sérias e
cômicas. Ao mesmo tempo que seriam realizadas encenações de mistérios
religiosos, seria coroado um “Rei dos Tolos” e assim por diante. Tal característica
não chega a se perder totalmente no teatro elisabetano, devido à prática de um dos
atores cômicos dançar uma jiga cômica após o término de uma peça; fosse a
mesma uma comédia, tal prática não causaria tanto estranhamento, contudo, a
dança era realizada após as tragédias e dramas históricos. Em um público atual a
prática deveria causar imenso estranhamento, imaginar que após a morte de
Hamlet, Romeu e Julieta ou Ricardo II um comediante subiria no palco para dançar e
parodiar algo parecido com uma “moral” da história. A tradição, no entanto, pedia
que tal atividade perdurasse.
A representação dos mistérios e soties dava-se num ambiente de carnaval. O mesmo ocorria com as festas agrícolas, como a vindima, que se celebravam igualmente nas cidades. O riso acompanhava também as cerimônias e os ritos civis da vida cotidiana: assim, os bufões e os “bobos” assistiam sempre às funções do cerimonial sério, parodiando seus atos (proclamação dos nomes dos vencedores dos torneios, cerimônias de entrega do direito de vassalagem, iniciação dos novos cavaleiros, etc.).58
As visões de mundo ofertadas pelos ritos de carnaval analisados por Bakhtin
eram deliberadamente “não-oficiais”, não pertenciam ao Estado ou à Igreja e
relacionam-se intrinsicamente aos do espetáculo teatral. Apesar de Bakhtin afirmar
que os dois diferenciam-se quando se analisa a experiência do indivíduo em cada,
acredito ser exatamente o oposto. Tanto o teatro de Shakespeare quanto os ritos
58 BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. Oitava Edição. Hucitec: São Paulo, 2013. P. 4.
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carnavalescos chamam o espectador para vive-los, daí nasce a catarse – a qual não
seria possível a menos que a plateia viva intensamente a própria peça, aceite os
costumes e hábitos que por ela são ofertados. Nesse sentido, os bufões e bobos
também são fatores que aproximam as duas práticas de representação,
logicamente, de maneiras bem diferentes. Os bufões e os bobos no carnaval não
encarnam personagens,
[...] não eram atores que desempenhavam seu papel no palco (à semelhança dos comediantes que mais tarde interpretariam Arlequim, Hans Wurst, etc.). Pelo contrário, eles continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunstâncias da vida. Como tais, encarnavam uma forma especial da vida, ao mesmo tempo real e ideal. Situavam-se na fronteira entre a vida e a arte (numa esfera intermediária), nem personagens excêntricos ou estupidos nem atores cômicos.59
Em contraste, os personagens que representam bufões em tragédias e
comédias shakespearianas são caricatos, não possuem complexidade ou objetivo à
não ser o de serem os alívios cômicos da cena. Todos eles agem como Sir John
Falstaff, o amigo boêmio de Henrique V, que tenta de todas as maneiras ganhar
vantagem utilizando-se da sua própria capacidade de usar as palavras. Mas, acima
de Falstaff, Térsites em Troillus and Cressida é, de longe, o bufão mais ilógico.
Térsites é hábil com as palavras, não tem medo de seus superiores, julga-os,
condena-os e toma-se como louco o tempo inteiro. Em seu embate com Ajax,
personagem criada por Shakespeare para, provavelmente, ser uma sátira de Ben
Jonson durante o período conhecido como Guerras do Teatro, o bufão escravo leva
sempre a melhor, conseguindo atordoar o adversário apenas com palavras,
enquanto o guerreiro segue por espanca-lo,
Ajax: Térsites! Térsites: Agamemnon?... E se ele tivesse tumores bem cheios em todo o corpo? Ajax: Térsites! Térsites: E se os tumores se abrissem, então o general não correria? Não ficaria que nem um núcleo malicioso? Ajax: Cão!
59 BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. Oitava Edição. Hucitec: São Paulo, 2013. P. 7.
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Térsites: Assim, sairia dele alguma coisa; sim, porque até agora não vi sair nada. Ajax: Filho de uma loba, não sabe ouvir? Então sente isso. (Bate-lhe.) Térsites: Que a peste grega se apodere de ti, senhor bastardo com espírito de bife. Ajax: Então fala, fermento embolorado! Fala! Vou deixar-te amável com pancada. Térsites: Antes disso eu te deixaria inteligente e piedoso com as minhas invectivas. Mas penso que teu cavalo aprenderá um discurso antes que tu aprendas uma oração de cor. Sabes bater, não é verdade? Que a morrinha vermelha saia de ti, seu cavalo sem valor! Ajax: Cogumelo venenoso, diga-me qual era o conteúdo da proclamação. Térsites: Pensas que eu não tenho sentimento, para me bateres desse modo? Ajax: A proclamação! Térsites: Foste proclamado louco, creio. Ajax: Toma cuidado, porco-espinho; toma cuidado! Estou sentindo comichão nos dedos. Tersites: Quisera eu que tu ficasses com comichão no corpo todo, da cabeça aos pés, e que eu fosse incumbido de te raspar, faria de ti a mais repugnante sarda da Grécia. Quanto estás na nas campanhas, és tão vagaroso para bater, como qualquer outro. [...] (Bate-lhe) Térsites: Continua! Continua! Ajax: Tamborete de bruxa! Térsites: Sim, continua, continua, cabeça de pau! Tens tanto cérebro na cabeça, como eu tenho nos cotovelos; só um asno poderia servir de ti como tutor. Burro valente e desprezível! Só serves aqui, para triturar os troianos; entre as pessoas de algum espírito, és comprado e vendido como um escravo bárbaro. Se começares a bater em mim, vou grudar em teus calcanhares e dizer o que és, polegada por polegada, sujeito sem entranhas.60
60 SHAKESPEARE, William. The Arden Shakespeare: Troillus and Cressida. Revised Edition. Edited by David Bevington. Bloomsbury: London, 2015. P.205 (II.I. 1-48) No original “Ajax: Thersites! / Thersites: Agamemnon – how if he had boils, full, all over, generally? / Ajax: Thersites! / Thersites: And those boils did run (say so), did not the general run, then? Were not that a botchy core? / Ajax: Dog! / Thersites: Then there would come some matter from him. I see none now. / Ajax: Thow bitch-wolf’s son, canst thou not hear? Feel, then. / Strikes him / Thersites: The plague of Greece upon thee, thou mongrel beef-witted lord! / Akax: Speak, then, thou vinewed’st leaven, speak. I will beat thee into handsomeness. / Thersites: I shall sooner rail thee into wit and holiness; but I think thy horse will sooner con an oration than thou learn a prayer without book. Thou canst strike, canst thou? A red murrain o’thy jade’s tricks! / Ajax: Toadstool. Lern me the proclamation. / Thersites: Dost thou think I have no sense, thou strik’st me thus? / Ajax: The proclamation! / Thersites: Thou art proclaimed a fool, I think. / Ajax: Do not, porcupine, do not. Mi fingers itch. / Thersites: I would thou didst itch from head to foot. An I had the scratching of thee, I would make thee the loathsomest scab in Greece. When thou art forth in the incursions, thou strikest as slow as another. […] / Ajax: [Beats him] You whoreson cur! / Thersites: Do, do. / Ajax: Thow stool for a witch! / Thersites: Ay, do, do! Thou sodden-witted lord, thow hast no more brain than I have in mine elbows; an asinico may tutor thee. Thow scurvy-valiant ass, thow art here but to thrash Trojans, and thow art bought and sold among those of any wit, like a barbarian slave. If thou use to beat me, I will begin at thy heel and tell what thow art by inches, thou thing of no bowels, thow!”
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Não é a estupidez de Térsites que leva a cena adiante e, sim, sua esperteza
em atacar Ajax de uma maneira muita mais brutal do que a que o bufão lhe ataca.
Fazendo o guerreiro grego sentir muito mais dor do que ele mesmo sente.
Logo, personagens que podem ser considerados como bufões e bobos tem
uma participação bastante importante na configuração do carnaval e na
configuração de uma peça como Troillus and Cressida onde a majoridade dos
personagens é composta por bufões, bobos e idealistas. No Quixote também temos
exemplos disso, o protagonista da história é, ao mesmo tempo, bufão e bobo. Sabe
muito como usar suas palavras, da herança dos livros que leu e é genioso a ponto
de partir para o combate mediante a menor ofensa como quando ataca e é
derrotado pelos prisioneiros que acabava de libertar na estrada quando tenta
convencê-los de ir até Dulcineia e agradecer à ela pelo feito “heroico” que Quixote
havia acabado de realizar,
E, chamando todos os galeotes, que estavam em alvoroço e tinham depojado o aguazil até deixa-lo em pelo, puseram-se todos à roda dele para ver o que lhes mandava, e assim lhes disse: - É de gente bem-nascida agradecer os benefícios recebidos, e um dos pecados que a Deus mais ofende é a ingratidão. Digo isto porque já vistes, senhores, com manifesta experiência, o que de mim recebestes; em paga do qual quisera e é minha vontade que, carregados dessa cadeia que tirei do vosso pescoço, logo vos ponhais a caminho e vades à cidade de El Toboso e ali vos apresenteis diante da senhora Dulcineia d’El Toboso e lhe digais que o seu cavaleiro, o da Triste Figura, vos envia recomendados, e lhe conteis ponto por ponto todos os que teve esta famosa aventura até vos pôr na desejada liberdade; e feito isso, podereis ir onde quiserdes, à boa ventura. Respondeu por todos Ginés de Pasamonte, dizendo: - O que vossa mercê nos manda, senhor e libertador nosso, é impossível de cumprir de toda impossibilidade possível, porque não podemos ir juntos pelos caminhos, e sim a sós e divididos, cada qual por seu lado, procurando meter-se nas entranhas da terra, para não ser achado pela Santa Irmandade, que sem dúvida alguma há de sair à nossa caça. O que vossa mercê pode fazer e é justo que faça é trocar esse serviço e tributo da senhora Dulcineia d’El Toboso por alguma quantidade de abe-marias e credos, que nós rezaremos pela intenção de vossa mercê, e isto é coisa que se poderá cumprir de noite e de dia, fugindo e decansando, em paz ou em guerra; mas pensar que voltaremos agora às cebolas do Egito, digo, a apanhar a nossa cadeia e a seguir caminho para El Toboso, é pensar que é agora de noite, que ainda não são dez da manhã, e é pedir-nos como buscar figos na ameixeira. - Pois voto a tal – disse D. Quixote, já tomado de cólera -, D. filho da puta, D. Ginesillo de Paropillo, ou lá como vos chameis, que haveis
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de ir vós sozinho, com o rabo entre as pernas, com toda a cadeia às costas. Pasamonte, que não era nada sofrido, já sabendo que D. Quixote não tinha muito juízo, pois cometera o disparate de lhes querer dar a liberdade, vendo-se tratar daquela maneira, piscou para os companheiros e, apartando-se a parte, começaram a chover tantas pedras sobre D. Quixote que este não tinha mãos em se cobrir com a rodela; e o pobre do Rocinante não fazia mais caso da espora, como se fosse feito de bronze. [...] o derrubaram no chão; e apenas tinha ele caído, quando avançou sobre ele o estudante e lhe tirou a bacia da cabeça e lhe deu com ela três ou quatro golpes nas costas e outros tantos na terra, com o que a despedaçou.61
Don Quixote encarna os dois personagens e, portanto, sofre com ambas as
penas impostas a eles. O bufão que é ridicularizado por ser incapaz de entender a
lógica pela qual o mundo funciona e o bobo que é acertado fisicamente por ser
incapaz de se defender.
A abolição das relações hierárquicas, no carnaval, possuía significados
especiais, elas eram festas relacionadas com o tempo. Como nota Bakhtin, são
concepções determinadas de tempo que agem sobre as festas, tempo natural,
61 Saavedra, Miguel de Cervantes. O Engenhoso Cavaleiro D. Quixote de la Mancha. Primeiro Livro. Tradução de Sérgio Molina; São Paulo: Editora 34, 2016. P. 300 – 302. No original “Y llamando a todos los galeotes, que andaban alborotados y habían despojado al comisario hasta dejarle en cueros, se le pusieron todos a la redonda para ver lo que les mandaba, y así les dijo: / - De gente bien nacida es agradecer los beneficios que reciben, y uno de los pecados que más a Dios ofende es la ingratitud. Dígolo porque ya habéis visto, señores, con manifiesta experiencia, el que de mí habéis recebido; en pago del cual querría y es mi voluntad que, cargados de esa cadena que quité de vuestros cuellos, luego os pongáis en camino y vais a la ciudad del Toboso y allí os presentéis ante la señora Dulcinea del Toboso y le digáis que su caballero, el de la Triste Figura, se le envía a encomendar, y le contéis punto por punto todos los que ha tenido esta famosa aventura hasta poneros en la deseada libertad; y. hecho esto, os podréis ir donde quisiérdes, a la buena ventura. / Respondió por todos Ginés de Pasamonte y dijo: / - Lo que vuestra merced nos manda, señor y libertador nuestro, es imposible de toda imposibilidad cumprirlo, porque no podemos ir juntos por los caminos, sino solos y divididos, y cada uno por su parte, procurando meterse en las entrañas de la tierra, por no ser hallado de la Santa Hermandad, que sin duda alguna ha de salir en nuestra busca. Lo que vuestra merced puede hacer y es justo que haga es mudar ese servicio y montazgo de la señora Dulcinea del Toboso en alguna cantidad de avemarías y credos, que nosotros diremos por la intención de vuestra merced, y esta es cosa que se podrá cumplir de noche y de día, huyendo o reposando, en paz o en guerra; pero pensar que hemos de volver ahora a las ollas de Egipto, digo, a tomar nuestra cadena y a ponermos en camino del Toboso, es pensar que es ahora de noche, que aún no son las diez del día, y es pedir a nosotros eso como pedir peras al olmo. / - Pues voto a tal – dijo don Quijote, ya puesto en cólera -, don hijo de la puta, don Ginesillo de Paropillo, o como os llamáis, que habéis de ir vos solo, rabo entre piernas, con toda la cadena a cuestas. / Pasamonte, que no era nada bien sufrido, estando ya enterado que don Quijote no era muy cuerdo, pues tal disparate había acometido como el de querer darles libertad, viéndose tratar de aquella manera, hizo del ojo a los compañeros, y, apartándose aparte, comenzaron a llover tantas piedras sobre don Quijote, que no se daba manos a cubrirse con la rodela; y el pobre de Rocinante no hacía más caso de la espuela que se fuera hecho de bronce. […] dieron con él en el suelo; y apenas hubo caído, cuando fue sobre él el estudiante y le quitó la bacía de la cabeza y diole con ella tres o cuatro golpes en las espaldas y otros tantos en la tierra, con que la hizo pedazos.
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tempo biológico e tempo histórico. Além das festas terem se ligado a períodos de
“crise, de transtorno, na vida da natureza, da sociedade e do homem”62. As festas
oficiais da Igreja e do Estado não criavam essa sensação de interlúdio da vida, elas
eram a celebração da estabilidade, das regras que regiam o mundo; celebrava-se,
portanto, a ordem, os valores, as morais da época, enquanto que o carnaval é a
festa da renovação, de destruição das relações sociais. Nas festas oficiais a ordem
social tem um destaque proposital, cada qual permanece em locais reservados à
sua classe correspondente, era a consagração da desigualdade vigente, nas festas
carnavalescas o que prevalece é a linguagem comum, como diria Ulisses “há um
traço da natureza que torna todos os homens parentes”63 – apesar de Ulisses utilizar
a frase para descrever como os fatos do passado são facilmente esquecidos pelos
homens do presente. Os costumes do carnaval, assim sendo, estão cheios de
simbolismos que representam a renovação, esses representam a inversão da lógica
original, o mundo “ao avesso”, o contrário das:
[...] permutações constantes do alto e do baixo (‘a roda’), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões.64
O destronamento é outro artificio que é utilizado por Shakespeare em
alguma de suas peças, a perda do poder real, a morte do corpo político, como diria
Ernst Kantorowicz, poderia ser bastante sedutor – apesar de perigoso. O vestuário
da coroa, assim como o gorro da Hamlet, era um acessório que deveria ser usado
com extrema precaução, visto a belicosidade em torno do objeto. A coroa era a mais
óbvia marca de autoridade na época, em Rei Lear, ela significa a degradação do
poder real e a divisão dos territórios do reino entre os condes de Gloucester e Kent.
Lear abre a peça usando sua coroa e anunciando que ele vai entregar a autoridade
para os dois duques que são maridos de suas filhas. Aos duques são entregues
coroas menores e uma terceira coroa seria entregue àquele que se casasse com a
filha mais nova do rei, quando a mesma se recusa a casar o rei a manda para o 62 BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. Oitava Edição. Hucitec: São Paulo, 2013. P. 8. 63 SHAKESPEARE, William. The Arden Shakespeare: Troillus and Cressida. Revised Edition. Edited by David Bevington. Bloomsbury: London, 2015. P. 277 (III, III, 176). No original “One touch of nature makes the whole world kin”. 64 BAKHTIN, Mikhail. op. cit. P. 10.
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exílio e entrega a coroa aos dois duques, ordenando que eles à dividam entre si (a
coroa é um anel de ouro inquebrável, metáfora do quão impossível deveria ser
dividir um reino). Ao longo da peça, quando sua perda de autoridade fica cada mais
latente, o rei passa a utilizar uma coroa de flores ao invés de sua grande coroa. A
peça provavelmente teve bastante ressonância, devido ao fato de que o rei Jaime I
tinha pretensões de unir seus dois reinos, Escócia e Inglaterra, e o assunto era uma
luta que estava sendo realizada na época em que a peça foi lançada. No início da
peça há um debate entre Gloucester e Kent sobre quem o rei iria preferir como seu
sucessor, o Duque da Cornualha ou o Duque de Albany, tais nomes hoje não
significam muito, mas em 1605 o filho mais novo de Jaime havia sido feito Duque de
Albany e, enquanto o rei estava na Escócia, ele havia feito seu filho mais velho
Duque da Cornualha.
A melhor representação de um destronamento, doravante, acontece em
Richard II (1597), além do melhor monólogo acerca do significado do poder real,
quando o protagonista, o Rei Ricardo II, se encontra em uma praia no País de
Gales, cercado pelos seus inimigos e sem esperanças de receber um exército,
Rei Ricardo: Não importa onde esteja. Não me fale ninguém mais em conforto, mas em túmulos, epitáfios e vermes. Transformemos em papel a poeira, e sobre o seio da terra as nossas mágoas escrevamos com olhos inundados. Aprestemos testamenteiros, e de testamento seja nossa conversa. Não! Cautela! Que poderíamos legar? Mais nada, Senão, à terra, o corpo destronado. Nossas vidas, o reino, tudo, agora pertence a Bolingbroke. Nada resta a que chamemos de nosso, afora a morte e esse punhado de infrutuosa argila que a nossos ossos serve de coberta. Pelo alto céu, no chão nos assentemos para contar histórias pesarosas sobre a morte de reis: como alguns foram depostos, outros mortos em combate, outros atormentados pelo espectro dos que eles próprios haviam destronado, outros envenenados pela esposa, outros mortos no sono: todos eles
49
assassinados.65
A tragédia de Ricardo II, como nota Kantorowicz é a tragédia política que
simboliza os dois corpos do Rei. O rei transforma-se em diversos personagens ao
longo da história, na cena da costa de Gales ele é o “Rei”, no castelo de Flint o
“bobo” e é “Deus” na cena em Westminster, quando abdica da sua coroa e do seu
próprio nome. Nota-se o constante uso dos personagens carnavalescos como fonte
de inspiração para as peças, no entanto, Ricardo II é virado de ponta cabeça, de Rei
vira nada para então poder julgar os que o traíram. O monologo na costa do País de
Gales é iniciado como forma de atestar o próprio poder real. Ricardo continuamente
se declara como ungido, não apenas pelos seus vassalos, mas, também, por Deus e
pelo povo inglês, logo, a monarquia é detentora de dois diferentes corpos. Um,
mortal, e o outro imortal, o corpo do Rei físico que pode perecer em virtude de
doenças, guerras ou até mesmo de velhice é compartilhado por um corpo imortal,
que é por ele adquirido no momento da coroação. Assim sendo, o festival da
coroação é, na visão do estado monárquico inglês do século XVI, um dos mais
importantes eventos políticos que podem ser realizados. No entanto, vendo sua
mortalidade cada vez mais aparente enquanto seu corpo político afasta-se, Ricardo
passa a identificar a realeza também com a própria morte, o corpo real é
considerado mortal pela lista de infortúnios aos reis que Ricardo declama.
O festival da coroação, longe de significar a morte, produzia novos símbolos
para a própria cidade, sendo realizado em Londres ele reproduzia em menor escala
a mediação que faria do teatro inglês um dos mais importantes acontecimentos dos
séculos XVI e XVII, e tudo isso graças à interação entre a corte e a cidade.
65 SHAKESPEARE, William. The Arden Shakespeare: The Tragedy of King Richard the Second. Edited by Charles R. Forker. Bloosmbury: London, 2016. P.328 (III. II. 143 – 160) No original “King Richard: No matter where. Of comfort no man speak! / Let’s talk of graves, of worms and epitaphs, / Make dust out paper and with rainy eyes / Write sorrow on the bosom of the earth. / Let’s choose executors and talk of wills. / And yet no so, for what can bequeath / Save our deposed bodies to the ground? / Our lands, our lives and all are Bolingbroke’s, / And nothing can we call out own but death / And that small model of barren earth / Which serves as paste and cover to our bones. / For God’s sake let us sit upon the ground / And tell sad stories of the death of kings - / How some have been deposed, some slain in war, / Some haunted bt the ghosts they have deposed, / Some poisoned by their wives, some sleeping killed - / All murdered.”
50
1.2 A Cidade e a Corte
O teatro surge, no século XVI, como um movimento de massas, popular, não
muito ligado ao que poderíamos chamar – com muitas ressalvas – de alta cultura.
Ao mesmo tempo que o teatro passou a se estabelecer em locais fixos na cidade,
ele começou a fortalecer suas ligações com a corte, daí o surgimento de
companhias teatrais patrocinadas pela Rainha Elizabeth I e Jaime I - Queen’s Men e
King’s Men, para ser mais exato. Apesar das proibições que a cidade impôs quanto
à realização de peças dentro de seu limite legislativo. O fato é que, desde o início do
crescimento do negócio teatral, as companhias viam-se na disputa entre a cidade e
a corte.
Apesar de parecer, o teatro não surge como um aliado da corte frente à
disputa pelo poder. Ele permanece como um mediador entre os conflitos, suas
peças muitas vezes encarnam tais conflitos. A representação utiliza-se de símbolos,
revoltas, invasões, lugares comuns da cidade, que poderiam ser reconhecidos pelos
espectadores durante as apresentações. Efetivamente, o crescimento do número de
peças que se localizam na cidade se dá com a criação dos Queen’s Men (Homens
da Rainha). O nome de Londres começa a aparecer na já citada “The Three Ladies
of London”, no entanto, é com Edward IV que podemos analisar as tensões que
advém da relação entre cidade e corte e como o teatro permite-se tratar do assunto.
Perto do fim da peça, como nota Dillon, há uma grande confusão quando
Hobs, o curtidor, confunde o prefeito de Londres com o Rei. Tal confusão é
explicada pela vestimenta do prefeito, além do porte. Muito mais do que isso, trata-
se do imaginário popular em torno do rei,
Hobs: Sempre quando é apresentado um interlúdio ou pela em Tamworth, o Rei sempre está com uma barba longa e uma túnica vermelha, como ele [o prefeito]. Portanto eu espero que este seja o Rei.66
O erro é mais emblemático, na peça, devido ao fato de que o prefeito havia
acabado de repelir uma invasão rebelde em Londres, enquanto o Rei havia chegado 66 HEYWOOD, Thomas. Dramatic Works. P. 87 apud DILLON, Jannete, Theatre, Court and City: Drama and Social Space in London. Cambridge University Press, Nova York: 2006. P.43. No original “Hobs: Ever when they play an interlude or a commodity at Tamworth, the King always is in a long beard and a red gown, like him. Therefore I ‘spect him to be the King.”
51
tarde demais para, sequer, ajudar. A peça inteira preocupa-se profundamente com a
relação entre o monarca e o prefeito, e em um nível acima, entre a coroa, a nação e
a cidade. Pode-se dizer que a confusão feita por Hobs é a moral que se tira do início
da peça, quando o Rei, ao saber da existência de uma rebelião que ameaçaria
Londres, ao invés de sair imediatamente de encontro aos rebeldes, prefere passar a
noite festejando o que faz com que os rebeldes cheguem primeiro na cidade que,
teoricamente, estaria indefesa. O atraso do Rei coloca o prefeito como o governante
da Inglaterra, na medida em que, de acordo com a peça, o que seria defendido era o
coração do reino. Logo, a peça traz ideias interessantes quanto ao imaginário
popular acerca do Estado Moderno Inglês.
A retórica da peça se baseia na ideia de que Londres e a Inglaterra são
indivisíveis e assim também o são seus cidadãos. Portanto, a ocupação e a
hierarquia da cidade são sublinhadas em toda oportunidade e celebrada na imagem
dos “jaquetas de veludo” (velvet jackets), a elite rica, e os “barretes achatados” (flat
caps), os aprendizes, a utilização de tais terminologias deixa claro a intenção da
peça de expor e enfatizar a categorização social, a entrada dos personagens
confirma tal propósito, quando coloca os cidadãos entrando, cada qual, com o seu
vestuário específico.
A peça também chama os espectadores para apreciar a grandeza da
Inglaterra de acordo com os símbolos da cidade de Londres. Assim como o livro de
Stow “Survey of London” (1603), escrito para tentar compreender o crescimento e a
nova criação de símbolos e lugares na cidade. De acordo com Mullaney,
Para lermos uma cidade cerimonial como a Londres do início da modernidade, e para entender, ao menos em alguma extensão, um sentido de espaço estranho ao mundo moderno e ainda assim, substancialmente corporificado em tal cidade, nós ficamos necessitados de um guia; felizmente para nossos propósitos, os cidadãos do fim do século XVI compartilhavam nossa inadequação em um maior grau e produziram, como consequência, um guia bastante exemplar na pessoa de John Stow – antiquarista, erudito, e topógrafo da Londres Elizabetana.67
67 MULLANEY, Steven. The Place of the Stage: License, Play, and Power in Renaissance England. The University of Michigan Press: Chicago, 2003. P.14. No original “In order to read a ceremonial city like early modern London and to understand, at least to some extent, a sense of space alien to the modern world yet suvstantially embodied in such a city, we stand in need of a guide; fortunately for our purposes, the later sixteenth century shared out inadequacy to an increasing degree and produced, as a consequence, a quite exemplary guide in the person of John Stow – antiquarian, scholar and surveyor of Elizabethan London.”
52
Em seu livro Stow declara ser um cidadão de cidade e descreve sua
pesquisa como uma “Descoberta” de Londres, e faz exatamente isso; buscando a
arqueologia da cidade e revelando suas linhas e locais de significação. Para Stow,
Londres é um palimpsesto dos muitos que viveram e morreram dentro de seus
limites, das pessoas e eventos que foram modificados e modificaram a cidade,
deixando as marcas de sua passagem nas ruas, calçadas, costumes e rituais. De
acordo com Michel de Certeau, isso seriam os relatos que, efetivamente,
transformam espaços e lugares, sob um viés cotidiano:
Os relatos efetuam portanto um trabalho que, incessantemente, transforma lugares em espaços ou espaços em lugares. Organizam também os jogos das relações mutáveis que uns mantêm com os outros. São inúmeros esses jogos, num leque que se estende desde a implantação de uma ordem imóvel e quase mineralógica (aí nada se mexe, salvo o próprio discurso que, numa espécie de travelling, percorre o panorama) até a sucessividade acelerada das ações multiplicadoras de espaços (como no romance policial ou em certos contos populares, mas esse frenese espacializante nem por isso deixa de ser menos circunscrito pelo lugar textual). Seria possível uma tipologia de todos esses relatos, em termos de identificação de lugares e de efetuações de espaços.68
Para Certeau, no entendo, há uma diferença essencial entre um “espaço” e
um “lugar”. O “lugar” seria a ordem na qual são distribuídos os elementos nas
relações sociais. Logo, se exclui a possibilidade de duas coisas ocuparem o mesmo
espaço. O “lugar”, para Certeau, indica estabilidade. “Espaço” então, seria a
existência de uma animação que é realizada pelo conjunto dos movimentos que se
desdobram em um determinado “lugar”. O “espaço” é variável na medida em que ele
conta com medidas variáveis como velocidade e tempo. Logo, o:
[...] espaço estaria para o lugar como a palavra quando falada, isto é, quando é percebida na ambiguidade de uma efetuação, mudade em um termo que depende de múltiplas convenções, colocada como o ato de um presente (ou de um tempo), e modificado pelas transformações devidas a proximidades sucessivas.69
68 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alvez. Editora Vozes: Petrópolis, 2014. P.185-186. 69 Ibid. P.184.
53
Londres oferece-se, portanto, como essa metáfora de lugares onde histórias
são construídas e reconstruídas, de acordo com os acontecimentos da cidade. Logo,
uma cidade é sempre uma reconstrução de sinais, uma constante reafirmação do
poder e das condições sociais. É, portanto, necessário, que as festas “oficiais” de
acordo com Bakhtin, celebrem e reafirmem o poder da verdade pré-fabricada. Tais
festas, como por exemplo a coroação seguem uma lógica simbólica e repetitiva. A
tradição do caminho percorrido pela realeza inscreve aos lugares comuns da cidade,
significados novos e diferentes que dão conta de modificar o palimpsesto cotidiano
da vida citadina. John Stow, escreve sua pesquisa topográfica não como uma
análise da cidade, mas sim, como uma caminhada pela mesma.
Começarei pelo Leste, então procederei através da alta e mais principal rua da cidade ao Oeste... então pelos chamados Stockes (um lugar de mercados tanto de peixes como de carnes que se localiza no meio da cidade) através de Poultrie (uma rua assim chamada) para o grande conduíte em West Cheap, e então através de Cheape para o Standard... então pelo Standard para o grande cruzamento...e então para o pequeno conduite no portão de Paulo.70
Tal caminho, percorrido por Stow no início de seu livro, é o mesmo percorrido
pela rainha Elizabeth em sua coroação. Stow recupera e recria não apenas o
significado de tais eventos, mas também, o acontecimento cheio de significados que
tal manifestação ao longo da rota percorrida na cidade sugere.
A peça de Heywood também recria esse caminho quando o líder rebelde
Falconbridge, em seu discurso, percorre também o mesmo caminho para, dessa
maneira, declarar-se ele mesmo como o grande conquistador não apenas de
Londres como, também, da Inglaterra. Nós ouvimos que os Londrinos vão sair da cidade E trazer-nos a batalha aqui em Mile End Green A quem se nós derrotarmos, então tomaremos a cidade E cavalgaremos em triunfo completo de Cheap até Paul’s. O Mint é nosso, Cheap, Lombard Stree, nossos conterrâneos O mais vil soldado, mais rico que um rei.71
70 STOW, John. Survey of London. Printed by John Windet: London, 1603. P. 117-118. No original “I will beginner at the East, and so proceede through the high and most principall streete of the cittie to the west… then by the said Stocked (a market place both of fish and flesh in the midst of the Cittie) through Poultrie (a street so called) to the great conduite in West Cheape, and so through Cheape to the Standard… then by the Standard to the great crosse… and then to the little conduit by Paules Gate.” 71 HEYWOOD, Thomas. Dramatic Works. P. 87 apud DILLON, Jannete, Theatre, Court and City: Drama and Social Space in London. Cambridge University Press, Nova York: 2006. P.51. No original
54
(Mapa de rotas de procissões para as principais cerimônias cívicas em Londres de Lawrence
Manley72.)
“We hear the Londoners will leave the city, / And bid us battle here on Mile End Green, / Whom if we vanquish, then we take the town, / And ride in triumph thorough Cheap to Paul’s. / The Mint is ours, Cheap, Lombard Street, our own; / The meanest soldier wealthier than a king.” 72 Disponível em https://books.google.com.br/books?id=NwBr499bjJIC&pg=PA226&lpg=PA226&dq=major+civic+processional+routes+london&source=bl&ots=WZuC01UFkJ&sig=HB6D7b9JbDRJHuhLI5stk_dTYUg&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwjc6rnJpP7YAhVIDJAKHUHxB-YQ6AEIKDAA#v=onepage&q=major%20civic%20processional%20routes%20london&f=false
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Não apenas a primeira locação citada é Mile End Green, onde a rebelião de
Wat Tyler foi rechaçada e seu líder morto, como também o líder da revolta cita o
caminho de Cheapside até St Paul’s que, como visto acima, era o caminho
processional das mais importantes cerimonias cívicas da cidade. A intenção é clara,
Falconbridge pretende inscrever, na cidade de Londres, novas significações para
enfim poder nomear-se como o novo monarca de um novo tempo.
A mobilidade social trandia a reforçar a distinção um tanto borrada entre a
cidade e a corte. Numa época em que filhos de comerciantes tornavam-se famosos
nas novas profissões proporcionadas pelo teatro, filhos de aristocratas estavam
tornando-se aprendizes de comerciantes. A expansão de classes profissionais
educadas alargou um território social no qual nem o comércio, nem a cidade nem a
corte pertenciam de fato. O crescimento da produção literária e a produção de livros
de mão facilmente adquiríveis por cidadãos. A produção desses livros estava,
portanto, facilitando e confundindo as rígidas distinções de classes sociais.
56
CAPÍTULO 2 - PRÁTICAS DE PRODUÇÃO
1. Ler ou ouvir
A prática da leitura é algo que existe desde que foi criada a escrita. No
entanto, tal prática não é homogênea ao longo de toda duração da escrita. Diversas
maneiras de leitura são encontradas ao longo da História, e um historiador que
deseja se aventurar pelo campo da leitura e literatura deve permanecer atento para
identifica-las, contextualizando suas noções de legibilidade para compreender e
articular métodos e técnicas que dialoguem com a sua fonte. Tais práticas definem o
sentido de representação e podem ser diferenciadas entre: leitura em voz alta,
leitura para si ou para os outros, leitura silenciosa, leitura do fato privado, leitura da
praça pública, leitura sacralizada ou laicizada e leitura “intensiva” ou “extensiva”.
Cada uma dessas práticas conferem sentidos diferenciados aos textos que são
lidos, transformando o ato de ler em si em um ato de apropriação cultural da
representação.
E aqui tomamos o conceito de representação tal qual é entendido pelo
historiador Roger Chartier. É preciso compreender que sim, como nota Sandra
Jatahy Pesavento, o conceito de representação passa por um sistema de ideias e
imagens que realizam a construção de um “mundo paralelo de sinais que se constrói
sobre a realidade” e, portanto, o imaginário (e a representação)
[...] é histórico e datado, ou seja, em cada época os homens constroem representações para conferir sentido ao real. Essa construção de sentido é ampla, uma vez que se expressa por palavras/discursos/sons, por imagens, coisas, materialidades e por práticas, ritos, performances. [...] Ele é um saber que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito.73
Não obstante, apesar de inspirarem tais suposições de construção do real
por meio desses signos é preciso notar que a representação se estabelece por meio
73 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2ª Edição. Belo Horizonte, Autêntica, 2008. P. 43.
57
da disputa de classes. Dessa maneira, a História Cultural tem o desafio de entender
o modo diversificado com o qual as realidades sociais são construídas, pensadas e
entendidas em variados tempos e momentos. Portanto, embora possuam um caráter
universalista que se funde em um discurso racional, “as representações do mundo
social [...] são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam.”74
Dessa maneira não podemos entender as representações, ou as intenções da
mesma como completamente inocentes, visto que são forjadas pelos interesses da
própria classe,
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformados ou a justificar para os próprios indivíduos, as suas respectivas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e competições cujos desafios se enunciam em forma de poder e de dominação.75
Focamo-nos, então, na ideia de que o conceito de representação
compreende táticas de disputas de poder e domínio de discurso, e tal elaboração
conceitual nos permite compreender de maneira mais clara as disputas pelo
monopólio das práticas de leitura e de sentidos de legibilidade.
Os conflitos acerca dos monopólios sobre a publicação de um livro nos
remetem à invenção de Gutenberg, que revolucionou a escrita e a publicação de
livros do século XV em diante pois, anteriormente, era apenas possível reproduzir
livros copiando-os à mão. A partir de meados da década de 1450 não era mais
necessário o exaustivo trabalho dos copistas e era colocada em prática a ideia da
prensa tipográfica. Foram multiplicados objetos de leitura que, até então, eram
pouco ou nada conhecidos por grande parcela da população. A cidade vivenciou tal
revolução muito mais abertamente, com o domínio do material escrito. Dentro de
suas muralhas houve uma facilitação no processo de burocratização das práticas
administrativas e comerciais. No entanto é necessário “reformular a oposição entre
74 CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. 2ª Edição. Algés, DIFEL 82, 2002. P. 17. 75 Ibid. P. 17
58
‘cultura escribal’ e ‘cultura impressa’”76. Como nota Chartier, o surgimento de obras
dedicadas à publicação manuscrita na Inglaterra, Espanha e França contestam a
afirmação de que o surgimento da prensa de impressão “matou” o manuscrito. Muitos gêneros escritos (antologias poéticas, tratados políticos, instruções nobiliárias, nouvelles à la main – folhas de notícias -, textos libertinos e heterodoxos, partituras musicais e mais) eram distribuídos em cópias manuscritas.77
Tais cópias continuavam a circular por diversas razões, dentre elas: o custo
mais baixo das cópias manuscritas, para evitar a censura, o desejo de manter a
circulação limitada e uma maior maleabilidade da forma manuscrita, que
possibilitava o acréscimo e revisionismos da obra. As estreitas ligações entre a
prensa de impressão e o manuscrito se davam também pela transformação de
“obras recém-saídas das gráficas” por “leitores do passado, e leitores instruídos em
particular”78 que corrigiam os erros presentes nas obras ou cortavam fragmentos.
Tais apropriações do material escrito não mudariam, portanto, suas formas
representativas?
O que nos interessa, no entanto, é a resistência dos manuscritos frente à
depreciação durável da prática dos livreiros-editores, algo que Chartier denomina de
“estigma da impressão”. Tal atitude para com os livreiros-editores é demonstrada por
diversos autores do século XVII, na Inglaterra, Espanha e França, autores como
Thomas Heywood, Ben Jonson, Lope de Vega, Miguel de Cervantes e Molière.
Como na passagem do segundo livro do Engenhoso Cavaleiro Don Quixote de la
Mancha, no capítulo LXII, D. Quixote em sua estadia em Barcelona vai visitar uma
oficina de impressão de livros e tem um diálogo com o tradutor de um deles:
“Mas vossa mercê me diga: esse livro é impresso por sua conta ou já vendeu o privilégio a algum livreiro? - Por minha conta o imprimo – respondeu o autor – e penso ganhar mil ducados pelo menos, com esta primeira impressão, que há de ser de dois mil corpos, e num abrir de olhos se hão de despachar a seis reais cada um.
76 CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. Tradução: George Schlesinger. 1ª Edição – São Paulo: Editora UNESP, 2014. P.104 77 Ibid P.105 78 Ibid. P.106
59
- Boa conta! – respondeu D. Quixote. – Bem se vê que vossa mercê não sabe dos logros e dolos dos impressores nem dos enredos que têm uns com os outros. Pois eu lhe afirmo que quando se vir com dois mil corpos de livros às costas, verá seu próprio corpo tão fatigado que se espantará, e mais se o livro for um pouco avesso e nada picante. - Por quê? – disse o autor. – Vossa mercê quer que eu o entregue a um livreiro para que ele me dê pelo privilégio três maravedis, e ainda pense que com isso me faz mercê?”79
As más condutas dos livreiros-editores eram tópicos recorrentes em livros e,
principalmente, prólogos de livros e peças geralmente reeditadas para efeito de
correção de um texto absurdamente corrompido, como o diriam seus autores. Não
nos cabe aqui julgar os livreiros-editores por suas práticas nem por suas disputas
com os autores de livros e peças. Tais querelas existiram por, pelo menos, três
séculos até a promulgação da lei de direitos autorais na Inglaterra, a “Copyright Act”,
que entraria em vigor a partir do ano de 1710 e colocaria um ponto final sobre as
questões de autoria e edição.
Tal assunto pareceria finalizado, caso o advento da internet com seus
milhões de terabytes de conteúdo para livre acesso não estivesse colocando em
perspectiva novamente o conceito de autoria e direito de lucro sobre o material
intelectual. Como nota Roger Chartier:
“O mundo digital carrega uma promessa sedutora, oferecida pela capacidade da nova tecnologia de inventar formas originais de escrever, livres das restrições impostas pela morfologia do códice e do regime jurídico do copyright”80
79 Saavedra, Miguel de Cervantes. O Engenhoso Cavaleiro D. Quixote de la Mancha. Segundo Livro. Tradução de Sérgio Molina; São Paulo: Editora 34, 2012. P. 736. No original “Pero dígame vuestra merced: este libro ¿imprímese por su cuenta o tiene ya vendido el privilegio a algún librero? – Por mi cuenta lo imprimo – respondió el autor – y pienso ganhar mil ducados, por lo menos, com esta primera impresión, que há de ser de dos mil cuerpos, y se han de despachar a seis reales cada uno em daca las pajas. - ¡Bien está vuesa merced em la cuenta! – respondió don Quijote -. Bien parece que no sabe las entradas y salidas de los impressores y las correspondencias qye hay de unos a otros. Yo le prometo que cuando se vea cargado de dos mil cuerpos de libros vea tan molido su cuerpo, que se espante, y más si el libro es um poco avieso y nonada picante. - Pues ¿qué? – dijo el autor -. ¿Quiere vuesa merced que sol o dé a um librero que me dé por el privilegio tres maravedís, y aun piensa que me hace merced en dármelos? 80 CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. Tradução: George Schlesinger. 1ª Edição – São Paulo: Editora UNESP, 2014. P.125
60
Além disso, os avanços tecnológicos prometem dar um duro golpe nas
práticas de leitura, tornando obsoleto o códice como hoje o conhecemos e
transformando as práticas de leitura herdadas desde meados do século II e que
continuaram a ser reproduzidas pelos períodos subsequentes e que formaram a
base para a definição do que conhecemos como a ordem dos discursos e a ordem
dos livros. Os índices, as tabelas, as concordâncias, as páginas passaram a vigorar
no lugar dos rolos, sendo de vital importância nas modificações das formas de leitura
e, portanto, apropriações feitas pelos leitores das obras que lhes eram
disponibilizadas. O que a revolução de Gutenberg realmente fez foi alterar
drasticamente o número de cópias de livros que passaram a circular no Ocidente.
De tal maneira que um moleiro italiano “Numa aldeia tão pequena como Montereale”
pudesse possuir e ler livros como Decameron de Boccaccio, Historia del Giudicio, Il
cavallier Zuanne de Mandavilla, Il Supplimento dele cronache de Foresti, entre
outros. Tais práticas indicam uma “rede de leitores que superam o obstáculo dos
recursos financeiros exíguos, passando livros de mão em mão”81. É lógico que a
partir de uma mais efetiva e numerosa produção, “dois mil corpos” diria D. Quixote,
era necessário um público que atendesse tal demanda. E esse mesmo público
apropriava-se da matéria escrita para formular novas representações, como nos
mostra brilhantemente o historiador Carlo Ginzburg ao analisar o caso de
Menocchio,
No entanto, atentemos para o fato de que, antes mesmo dá leitura ser
efetivada abstraímos significações do objeto livro. Como nos mostra Borges sobre
sua experiência com Don Quixote, em sua autobiografia,
“Eu ainda me lembro daquelas encadernações vermelhas com os títulos dourados da edição Garnier. Em algum momento a biblioteca de meu pai se dispersou e, quando li Dom Quixote numa outra edição, tive a sensação de que não era o verdadeiro. Mais tarde, um amigo conseguiu para mim a edição Garnier com as mesmas gravuras, as mesmas notas de rodapé e as mesmas erratas. Todas essas coisas para mim faziam parte do livro, este era para mim o verdadeiro Dom Quixote”82
81 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso; São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 82 BORGES, Jorge Luis in CHARTIER, Roger. Inscrever e Apagar, 2007. P.15
61
O objeto do códice, antes de seu conteúdo literário, dá sentido à obra. Sua
edição, suas gravuras, suas notas de rodapé, sua introdução da primeira, segunda,
terceira edições. Todos esses detalhes dão sentido e fazem parte das apropriações
culturais dos leitores.
A noção de apropriação não é encarada aqui como Foucault o define como a
atividade em que:
“O sujeito fundante, com efeito, está encarregado de animar diretamente, com suas intenções, as formas vazias da língua; é ele que, atravessando a espessura ou a inércia das coisas vazias, reapreende, na intuição, o sentido que é ai depositado.”83 (FOUCAULT, Michel, A Ordem do Discurso. P.47)
No entanto a concepção de apropriação que desejamos não estabelece uma
oposição total à teoria de apropriação foucaultiana, nas palavras de Roger Chartier:
“A nossa perspectiva é diferente, sem ser contraditória, atentando não nas exclusões por confiscação, mas nas diferenças do uso partilhado tal como as identifica Pierra Bourdieu [...] O que equivale a dizer, simultaneamente, que as práticas contrastantes devem ser entendidas como concorrências, que as suas diferenças são organizadas pelas estratégias de distinção ou de imitação e que os empregos diversos dos mesmos bens culturais se enraízam nas disposições do habitus em cada grupo.”84
A partir daí são estabelecidos dois modelos de compreensão dos textos, dos
livros e de suas leituras. “O primeiro põe em contraste disciplina e invenção,
considerando estas duas categorias não como antagônicas, mas como sendo
geridas a par.”85 Para Chartier é necessário não apenas notar a obviedade das
coerções pelas classes dominantes, mas, também, notar como se articulam as
proibições ou coerções e as liberdades condicionadas.
O segundo modelo seria o da distinção e divulgação, que possibilitaria
propor um entendimento da circulação dos objetos ou dos modelos culturais que não
83 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Tradução de Laura de Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2014. P.47. 84 CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. 2ª Edição. Algés, DIFEL 82, 2002. P.137 85 Ibid. P.137
62
reduzisse tudo à uma simples difusão. Os processos que imitam ou vulgarizam não
devem ser considerados como simples, pois sua complexidade e dinamismo
habitam na própria caracterização das lutas entre concorrentes onde toda
divulgação “concedida ou conquistada, produz imediatamente a procura de uma
nova distinção.”86
Logo, é preciso notar que a circulação da cultura não é de caráter apenas
horizontal, permanecendo eterna a distinção entre cultura popular e cultura erudita,
citando Raymond Williams “Culture is Ordinary”,
“O primeiro fundamento da validade vem, para horror dos mais sofisticados, da experiência pessoal. A cultura é ordinária, você e eu também a experimentamos, mesmo que não entremos na catedral, não vejamos a biblioteca, não entremos no cinema. A cultura já está dada no nosso modo de vida; [...] Equivale, por conseguinte, a discordar radicalmente das duas formas de ação abertas para quem parte de uma visão de cultura como algo extraordinário. Tais ações, estas sim fadadas ao fracasso, são as duas saídas impossíveis da visão liberal de cultura: na versão progressista, o difusionismo – generalizar a alta cultura como a de todas as classes, redimindo o privilégio pela distribuição diferenciada entre desiguais e, na versão conservadora, o elitismo, a cultura como reserva onde uma só minoria faz o que quer.”87
Deve-se sempre encarar a visão de cultura não apenas com divisões
simplistas entre alta e baixa que deixam de lado relações complexas de
apropriações, circulações e difusões. Notemos, por exemplo, que as peças escritas
por Shakespeare (hoje considerado por uma visão conservadora como pertencentes
à uma alta cultura, capaz de grande erudição) eram apresentadas em um subdistrito
londrino em Southwark, perto de prostíbulos e ringues de lutas de cães para
qualquer um que tivesse ao menos um pence para o lugar na frente do palco. É
necessário abonar as noções de cultura que colocam uma peça Shakespeariana
como o mais alto grau de erudição de uma época, quando na verdade, Shakespeare
só é Shakespeare pelo simples fato de ter vivido onde viveu e com quem viveu, e a
partir de sua extrema sensibilidade ter conseguido dar nova vida a velhas e
conhecidas peças. Como nota Chartier “Todos os materiais portadores das práticas 86 CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. 2ª Edição. Algés, DIFEL 82, 2002. P.138 87 CEVASCO, Maria Elisa. Para Ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001. P. 47 – 48.
63
e dos pensamentos da maioria são sempre mistos, combinando formas e motivos,
invenção e tradições, cultura letrada e base folclórica.”88
Nosso foco, no entanto, não é a extrema habilidade com a qual Shakespeare
projetava suas peças para o teatro, muito menos a encenação das mesmas. Nota-
se, de maneira simplória, que não temos nenhum registro dos artifícios utilizados
pela companhia teatral de Shakespeare (Chamberlain’s Men) para a encenação de
nenhuma de suas peças. Temos fios e rastros que nos levam a crer e poder formular
suposições, muitas vezes extremamente acuradas, sob as maneiras de se atuar e
as reações de público que cada peça possuiu. No entanto, a presente pesquisa
pretende voltar-se à relação de Shakespeare com o livro ou, melhor dizendo, a sua
não relação com o livro, visto que, Shakespeare não participou da publicação de
nenhuma suas trinta e sete peças. Ironicamente retratado como o patrono das letras
e, consequentemente dos livros, Shakespeare viveu (e morreu) sem o grande
reconhecimento de autor que hoje o damos.
Essa não relação de Shakespeare com o livro não nos deixa em um vácuo
sem respostas aos questionamentos que, por ventura, poderemos fazer às fontes.
Como nota David S. Kastan, tais perguntas devem ser feitas em relação ao material
disponibilizado para a leitura. Ao fazermos isso com Shakespeare, portanto, não
estaremos mais olhando para a real intenção do autor em repassar a sua mensagem
mas, sim, para negociações e transações sociais e econômicas que perpassam a
história do códice Shakesperiano. Primeiramente é necessário notar que as
intenções dos autores dos séculos XVI até o XVIII não eram, necessariamente,
respeitadas em todos os seus sentidos. Diversos artifícios entravam em cena e
modificavam, apagavam e delimitavam os textos autorais, como nos mostra Chartier,
ao analisar os caminhos para a publicação de D. Quixote na Espanha. O livro nunca
era publicado a partir da cópia manuscrita do autor, o livreiro-editor recebia uma
cópia feita por um escriba profissional que era então enviada ao Conselho do Rei
para receber aprovações e censuras para, a partir daí a cópia receber as
permissões para impressão e publicação. Mesmo depois dessa cópia retornar ao
autor que a entregava para o livreiro-editor, o livro sofria mudanças realizadas pelas
práticas tipográficas, que acabavam por produzir distorções em uma mesma tiragem
88 CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. 2ª Edição. Algés, DIFEL 82, 2002. P.134
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de livros.89 Tais práticas não eram exclusivas da Espanha da época, pois
perpassavam toda uma técnica ocidental de impressão de livros no século XVII.
Consideremos, portanto, que apenas alguns ou talvez nenhum livro possua, de fato,
as intenções originais de seu autor. Isso não obriga, necessariamente, a exclusão de
seu valor intrinsicamente histórico à pesquisa, pois diferente de uma tentativa de
erudição que seguem a:
[...] orientação dos filólogos clássicos, que traçam toda a tradição do manuscrito de uma obra de modo a estabelecer o texto mais provável, visando reconstruir um texto original supostamente existente além e acima de suas múltiplas formas materiais e que é, segundo o vocabulário da bibliografia analítica, o ‘texto de cópia ideal’”90
Seguiremos a perspectiva da crítica Shakespeariana na qual, mesmo
quando são diferentes e claramente modificadas as obras devem ser consideradas
como encarnações históricas. Todos os estados do texto, mesmo os mais inconsistentes e bizarros, devem ser incluídos e eventualmente publicados porque, como resultado de atos de escrever e práticas gráficas, constituem a obra conforme foi transmitida a seus leitores.91
Portanto, todas as edições, mesmo as consideradas mais bizarras dentre o
códice Shakespeariano, devem ser publicadas e consideradas como documentos
históricos de seu tempo, não da intenção do autor mas das práticas de leitura
estabelecidas de uma época. O mesmo vale para o texto de Quixote, que, como
nota Francisco Rico, mesmo que o manuscrito original aparecesse como que por
mágica, o mesmo não seria mais do que um dos estados da obra.
Tais definições e buscas pelas obras assim como elas foram pretendidas
originalmente pelo autor negariam as condições singulares nas quais elas foram
elaboradas, censuradas, modificadas e lidas, retirando-as do contexto histórico e
colocando-as em um tempo não existente, não considerando sua própria
hermenêutica da ordem dos livros ou da ordem dos discursos.
89 CHARTIER, Roger. A Mão do Autor e a Mente do Editor. Tradução: George Schlesinger. 1ª Edição – São Paulo: Editora UNESP, 2014. P.260 - 261 90 Ibid. P.267. 91 Ibid. P. 268.
65
Poderia se dizer que tal abordagem essencialmente material do texto
deixaria o pesquisador mais distante do que realmente importa, o texto em si. Para
tanto devemos considerar que abordar o livro tal qual ele foi concebido, publicado e
lido dentre suas multiplicidades de edições e versões é abordar de fato o texto em si,
pois só poderíamos ler o que está em frente aos nossos próprios olhos, não existe
outro sentido de leitura e apropriação que não o dos “efeitos que as formas materiais
produzem”92. E reconhecer que as formas específicas que um texto assume traz é
ao mesmo tempo significante e significado. Tal tratamento, portanto, procura
localizar não apenas a intenção do autor ao escrever uma obra, mas a série de
negociações e de diferentes intenções pelas quais passa a obra até ser publicada e,
quando publicada, as diferentes apropriações que dela resultam.
Há muito que as práticas de leitura tem sido estudadas dessa maneira por
Roger Chartier, David S. Kastan, D. F. Mackenzie dentre tantos outros, e de certo
modo, não é mais surpreendente o tratamento do objeto livro como fonte de
pesquisa. A grande diferença, nesse caso, vem do fato de, como dito acima,
Shakespeare não ter demonstrado em vida nenhum interesse em publicar suas
peças, deixando-as apenas para a experiência da performance, para o universo
teatral. Todavia, Shakespeare também não se opôs à publicação desgovernada de
suas obras, muitas delas completamente modificadas pelas já conhecidas práticas
escusas dos livreiros editores.
Portanto, uma análise de Shakespeare, sua vida, seus costumes, suas
controvérsias não caberá nesse capitulo, visto que sua participação na publicação
de suas obras teatrais foi pouca ou nula. Deixaremos de fora todos os aspectos
relacionados à performance teatral das obras estudadas, entendendo que a sua
relevância será demonstrada após as considerações iniciais acerca da publicação e
leitura do códice em si. Acredito que Shakespeare assentiria que suas peças eram
escritas para o palco, e uma análise do palco e sua importância no cotidiano londrino
devem ser feitas separadamente. Nossa busca é pelos homens, livreiros, editores e
livreiros-editores que publicaram, negociaram, barganharam e copiaram
Shakespeare, aqueles que se aventuraram na publicação das obras
Shakespearianas e à quem devemos a sua existência. A prensa, no entanto, não era
92 CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Tradução de Mary Del Priori. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. P.IX
66
desconhecida do dramaturgo inglês pois, através dela, foram publicadas suas
poesias Venus and Adonis e The Rape of Lucrece em edições cuidadosamente
impressas por seu conterrâneo Richard Field. Tal fato reforça a tese de que
Shakespeare não possuía interesse na publicação de suas peças pelo simples
motivo de as mesmas terem sido escritas para o palco, viverem nele, respirarem
nele, devendo nele permanecer. Assim como roteiros de filmes não são hoje
publicados como livros, podemos entender que as intenções do autor eram a da
performance em si. De fato, como nota Kastan “Shakespeare, é claro, ‘vive’ no
teatro; lá ele se torna nosso contemporâneo, respondendo às nossas necessidades
e interesses”93, no entanto, é o próprio fato do Shakespeare teatral se aproximar
tanto de nós que o torna “suspeito”. A performance de suas peças pendem
facilmente para os nossos próprios interesses e questionamentos. É fato que a cena
teatral do século 17 até o atual foi dominada pelas peças criadas pelo dramaturgo
inglês, não negando os gênios que vieram antes e depois.
No teatro, Shakespeare escapa de sua própria historicidade para se tornar o
Shakespeare de todos os tempos. Nota-se, por exemplo, que o teatro tem a
capacidade de dar verdadeiro valor ao que é representado, como nota Chartier, O teatro nos séculos XVI e XVII e o romance do século XIX apropriaram-se do passado, deslocando acontecimentos e personagens históricos para o domínio da ficção literária e colocando no palco ou na página a ficção de situações que haviam sido reais ou eram apresentadas como tais. Quando as obras são habitadas por uma força própria, adquirem a capacidade de produzir, moldar e organizar a experiência coletiva física e mental. [...] Logo, parece certo como declara Hamlet (Hamlet, II, 2), que atores “são as sínteses e breves crônicas do tempo” e que as peças históricas criadas para espectadores e leitores são representações do passado mais vívidas e fortes do que a história escrita nas crônicas utilizadas pelo dramaturgos.
As peças deixam de possuir um lugar de fato e ganham vida própria,
ocupando então lugares da imaginação e representação que cruzam significados da
experiência vivida e da apropriação feita pelos ouvintes. O teatro ocupa, nesse
patamar, um tempo próprio diferente do tempo histórico estudado, pois ele cria,
deforma e transfere signos e sinais para um mundo completamente diferente onde
93 KASTAN, David Scott. Shakespeare and the Book. Cambridge: The Cambridge University Press, 2001. P.6 No original “Shakespeare does, of course, ‘live’ in the theater; there he becomes our contemporary, responsive to our need and interests.” (A tradução é minha)
67
as atuações Shakespearianas, por exemplo, estariam reféns dos censores, e dos
gostos do público. Era mister que se fizessem, portanto, peças históricas que se
adequassem tanto a um quanto a outro. Apesar de terem sempre sido encaradas
como duas metades de uma mesma obra, a performance e o texto não podem ser
relacionadas e não pertencem ao mesmo universo. Como nota Kastan, a
performance não traz vida ao texto nem o texto registra a performance, eles são dois
modos de produção dissimilares.
Tais descontinuidades podem ser percebidas nas contradições da página
título de The Duchess of Malfi (1623) de John Webster, onde, como nota Kastan, o
editor escreve que a peça está sendo publicada “As it was presented privately at the
Blackfriars; and publiquely at the Globe, By the Kings Majesties Servants” (Como foi
apresentada de maneira privada no Blackfriars; e publicamente no Globe, pelos
Kings Majesties Servants). Ao mesmo tempo o livro é caracterizado como “The
perfect and exact Coppy, with diuerse things Printed, that the lenght of the play
would not beare in the presentment" (A cópia perfeita e exata, com diversas coisas
impressas, que o tamanho da peça não suportaria na apresentação). Esse paradoxo
formulado pela página título de The Duchess of Malfi nos mostra a complexa relação
entre a prensa e a performance. Tais incongruências delimitam mais ainda a
intensidade das disputas pelas intenções originais. Naturalmente, devemos prestar
atenção ao que Paul Ricoeur descreve como “mundo do leitor” e o “mundo do
texto”94, adicionando mais alguns elementos à esse complexo encontro de
apropriações simbólicas. Afinal, como nota Chartier, temos que considerar as
dependências inerentes às próprias práticas de leitura. Um texto só existe quando
ele é lido, e ler algo é sempre ler a forma como foi materialmente concebida: livros,
pergaminhos, textos na tela de um computador, tablets entre outros. Essas leituras
levam à produção designificados diferentes, posto que, são tipos de leituras e
apropriações distintas.
Tais premissas, por mais básicas, definem os caminhos tomados para o
estudo desse capítulo.
No caso de Shakespeare esse encontro é ainda mais complexo pois ele
pode ter acontecido duplamente, a primeira com a exposição da peça e a segunda
94 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Vol 3. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. P. 267
68
com a leitura da obra impressa. Uma, como nota Kastan, não pertence à outra. Não
fazem parte da mesma obra, não possuem os mesmos sinais de legibilidade.
Se considerarmos uma performance de Hamlet e uma edição de Hamlet, não se pode conceituá-las, penso eu, como duas interações de um mesmo trabalho. Apesar delas serem reconhecidamente relacionadas (certamente mais próximas do que, eu diria, uma performance de Hamlet e uma edição de Othelo), elas ainda são materialmente e teoricamente distintas.95
Hamlet não é uma entidade contida nas duas peças e, sim, o nome de cada
uma delas. Nenhuma pode ser considerada como menos autêntica, pois não existe
uma realidade externa às performances e às leituras. E de fato, as diferentes leituras
se localizam em um tempo específico no período histórico, daí a possibilidade de
estudar suas práticas e seus signos de vocalidade, como diria Paul Zumthor.
Nesse capítulo, porém, nos ateremos aos aspectos físicos do livro, nesse
caso, estaremos estudando o tempo do livro. De fato, fica mais clara ainda a
afirmação de Roger Stoddard,
Seja o que quer que façam, os autores não escrevem livros. Os livros não são absolutamente escritos. Eles são fabricados por copistas e outros artífices, por operários e outros técnicos, por prensas e outras máquinas.96
Logo, o texto não pode existir em si mesmo, fechado contra as próprias
lógicas de práticas de legibilidade de seu próprio tempo. E o tomo shakespeariano
não pode perder sua autoridade frente às práticas de representação, pela razão
mais clara de todas, toda representação de suas peças, que não à de sua própria
companhia teatral, advém dos próprios textos. Obviamente, no palco tais peças
ganham vida própria e as próprias adaptações das mesmas se encarregam de
modificar a obra para adaptar-se às nossas “estruturas de sentimento”, como diria
Raymond Williams. No entanto, como discutiremos mais adiante, acredito que essa
95 KASTAN, David Scott. Shakespeare and the Book. Cambridge: The Cambridge University Press, 2001. P.9. No original “In considering a performance of Hamlet and an edition of Hamlet, one is not, I think, considering two iterations of a single work. Though they are admittedly related (certainly more closely than are, say, a performance of Hamlet and na edition of Othelo), they are still materially and theoretically distinct.” 96 STODDARD, Roger. Morphology and the Book in American Perspective in Printing History 17, 1987. 2 – 14. P. 2.
69
universalidade de Shakespeare não vem de sua capacidade de estar em todos os
tempos e sim, da sua extrema e intensa vivência em seu próprio tempo. Com isso,
nossas próprias escolhas de peças, poemas e sonetos mais lidos são as que mais
se adequam às nossas próprias necessidades.
O teatro elisabetano vivia, portanto, à sombra de diferentes questões de
autoridade: a autoridade advinda do estado que regulamentava, proibia, coibia,
censurava e permitia as apresentações teatrais; a autoridade advinda do espetáculo
teatral que tomava para si a representação de fatos históricos e fictícios que, por
meio da catarse, passariam da mera encenação de um espetáculo para uma
encenação do real; e, por fim, a autoridade das publicações das peças por livreiros-
editores pelas diferentes maneiras de aquisição das mesmas. Tais conflitos de
autoridade são evidenciados ao longo das edições que sobreviveram ao tempo e
chegaram até nós. As páginas título, os prefácios, todos eles nos indicam que as
disputas pela autoridade real da peça eram maiores do que “pressupõe a nossa vã
filosofia” (Hamlet. I, V, 167-168).
Primeiramente é necessário compreender que o caminho percorrido pelas
peças nos setecentos, do palco até sua publicação, nem sempre fora o mais
ortodoxo. Os autores de peças não entregavam de bom grado as mesmas aos
livreiros-editores e Shakespeare, em especial, como vimos acima, nunca se
preocupou realmente em ter suas peças publicadas. O tomo Shakespeariano que
chega até nós, portanto, foi “vítima” de variadas apropriações e manuseios distintos
que não o da própria pena de Shakespeare. Muito mais do que isso, as primeiras
edições publicadas possuem divergências grosseiras das edições posteriores, o que
proporcionou um impasse teórico no que concerne a métodos possíveis para se
estudar as peças.
Deveríamos negar às obras consideradas apócrifas o seu próprio lugar
histórico, e nos concentrar apenas no que consideramos o trabalho original de
Shakespeare? Os textos existem independentemente do meio no qual aparecem, suas formas materiais acidentais e meramente veiculares, ou existem apenas nessas formas, cada uma sendo uma encarnação textual singular cuja própria materialidade molda crucialmente o significado,
70
(Página título de Duchess of Malfi de John Webster, 162397)
97 Disponível em http://classic-literature.co.uk/john-webster-the-duchess-of-malfi-play.
71
alterando de algum modo a significância da organização linguística da obra?98
A resposta dada pelo próprio Kastan, e por um dos ramos da crítica
Shakespeariana, é a sustentação de que cada estado textual é uma forma de
“encarnação” da obra, uma possibilidade de legibilidade, ou seja, cada edição
também foi lida em sua própria época, possibilitando novas apropriações nos
“processos de sua transmissão, inclusive sua produção e recepção”99. A essência
dos acidentes entre edições deve ser entendida, portanto, a partir da própria
singularidade da história da leitura nos séculos XVI, XVII e XVIII, quando ainda não
existiam regulações que tratavam da autoria das obras escritas e publicadas.
Na medida em que as obras do período foram escritas posteriormente à sua
apresentação ou representação, deve-se procurar historicizar:
[...] a definição e a taxonomia dos gêneros, das práticas de leitura, das modalidades de circulação e dos diferentes públicos visados pelos textos, tais como eles nos foram legados pela ‘instituição literária’.100
Chartier demonstra as diferentes práticas de leitura e a taxonomia dos
gêneros, utilizando um conto de Jorge Luis Borges chamado O Espelho e a Máscara
(El espejo y la Máscara). Farei uso do mesmo conto, à modelo de Roger Chartier.
A fábula de Borges nos transporta do monumento ao acontecimento, da inscrição à atuação. Ela designa com grande força poética os diferentes registros de oposições que organizam a textualidade. Estes têm a ver com as normas estéticas (imitação, invenção, inspiração), com os modos de transmissão do texto (recitação, leitura em voz alta, declamação solitária), com a natureza do destinatário (o público em geral, os eruditos, o príncipe ou, finalmente, o próprio poeta) e com as relações entre as palavras e as coisas (que são da ordem da representação, da ilusão ou do mistério).101
98 KASTAN, David Scott. Shakespeare and the Book. Cambridge: The Cambridge University Press, 2001. P.117. No original “Do texts exist independently of the medium in which they appear, its material forms accidental and merely vehicular; or do they exist only in those forms, each a unique textual incarnation whose materiality itself crucially shapes meaning, altering in some way the significance of the linguistic organization of the work?” 99 McKenzie, D. F. Bibliography and the Sociology of Texts. P.20 100 CHARTIER, Roger. Do Palco à Página CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar Teatro e ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI – XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. P.14 101 CHARTIER, Roger. Do Palco à Página CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar Teatro e ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI – XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. P.19
72
O conto de Borges nos indica maneiras de analisarmos os meios de
produção, circulação e apropriação de textos considerando as variedades das
práticas de leitura em cada tempo, lugar e comunidade.
Voltando um pouco no tempo, para entendermos como os textos circulavam
na Antiguidade podemos citar a historiadora Florence Dupont que salientou a
insuficiência das categorias associadas à noção de literatura por uma “cultura
literária institucionalizada”.
Tais categorias podem ser definidas de três maneiras de identificar e
analisar um texto. Primeiramente temos a identificação da obra com um texto escrito
fixo, a qual distancia-se da maneira de categorização de Paul Zumthor, que trata
com cuidado extremo a utilização das terminologias “obra e texto”. Para Zumthor é
necessário entender que tais termos se engendram em um entendimento
diferenciado em cada tempo e em cada prática de leitura e , portanto, não pode ser
utilizado sem a devida acuidade histórica.
Resumo-lhes brevemente a definição, em estilo de dicionário: - obra: o que é poeticamente comunicado, aqui e agora – texto, sonoridades, ritmos, elementos visuais; o termo compreende a totalidade dos fatores da performance; - texto: sequência linguística que tende ao fechamento, e tal que o sentido global não é redutível à soma dos efeitos de sentidos particulares produzidos por seus sucessivos componentes.102 (ZUMTHOR, 1993, p. 220)
Em segundo lugar temos a obra produzida para o leitor, que a lê de maneira
silenciosa, produzindo significados na solidão de sua leitura, mesmo que esta seja
efetuada em um espaço público. E em terceiro lugar temos a caracterização da
leitura “como uma procura de sentido, um trabalho interpretativo, uma busca de
significados.”103
É preciso, no entanto, distanciar-se dessa cultura institucionalizada se
quisermos pensar em textos da Antiguidade e de vários séculos conseguintes.
Tomemos como exemplo a ode, que é tratada tanto por Roger Chartier
quanto por Raymond Williams. Para o historiador francês o sentido do texto
102 ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz: A “Literatura” Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. P.220 103 CHARTIER, Roger. Do Palco à Página CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar Teatro e ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI – XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. P.19
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“dependia inteiramente de sua eficácia ritual”104. Portanto, a força da mensagem
seria potencializada pelos artifícios utilizados durante o espetáculo, algo que
Williams nota ao estudar os sinais: “Há muitos sistemas integrados que se tornam
plenamente institucionais: o teatro, a galeria de arte, a sala de concertos.”105 No
entanto, o sinal como local não pode ser identificado a uma totalidade de práticas
culturais recorrentes, por exemplo, na Idade Média. O lugar sem as suas devidas
práticas culturais perde o seu próprio sentido, por exemplo, quando:
[...] antes que o teatro medieval fosse para as ruas, como parte de uma festividade religiosa, tipos de dramatização menos desenvolvidos de diversos dos mesmos eventos – momentos-chave da história cristã do mundo – haviam sido representados em igrejas [...] Que sinais se davam então? O uso de meios ‘dramáticos’ para ‘representar’ a peça [...].106
Ao lermos as peças, portanto, não podemos deixar de nos atentar para a
lógica única dentro das quais elas eram representadas, sua estrutura de sentimento,
pois: “O texto da ode, de uma singularidade irredutível, não podia ser posto por
escrito nem repetido. Ele era um momento de arrebatamento, era mistério, evento.
”107
A palavra falada foi gradualmente transformada em palavra escrita para que
o canto executado em festivais e competições pudesse pertencer a um gênero com
regras e passível de classificação e avaliação. A obra deixou de ser atribuída ao
sagrado e, ficou, portanto, dependente da aplicação correta da língua e de sua
adequação às regras. Dessa forma, segundo os “comentadores da Poética de
Aristóteles, uma tragédia não deveria mais ser julgada por meio de sua
representação, mas sim, por meio da leitura da obra, tornando-se possível identificar
se a obra se enquadrava nas normas vigentes.
Desse modo, voltamos ao início com a premissa de que é necessário, antes
de qualquer análise de conteúdo, historicizar o livro e as maneiras de leitura, visto
que “os leitores da Antiguidade não liam uma ode de Anacreonte, um poema de
Catulo ou o Satyricon do mesmo modo que nós o fazemos.” Sua relação com estes
104 Ibid. P20 105 WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1992. P.132 106 Ibid. P. 133 107 CHARTIER, Roger. Do Palco à Página CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar Teatro e ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI – XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. P.20
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textos era guiada pela eficiência dos rituais, dos sinais e das práticas de leitura em
obras que eram lidas, ouvidas ou ambas.
O historiador se vê em um delicado problema de método, pois como
podemos reconstituir as modalidades corretas da transmissão oral e da apropriação
auricular de textos antigos, visto que agora estes não podem mais ser lidos da
mesma maneira como já o foram?
Frente a essa questão, Chartier propõe três estratégias de análise. A
primeira é a tentativa de decifrar as práticas de oralidade nas representações
literárias. Como exemplo é utilizado a história que Sancho narra à D. Quixote no
capítulo XX da primeira parte de D. Quixote e, na qual, Sancho utiliza-se de artifícios
naturais à prática oral de sua terra, inconcebíveis para D. Quixote, acostumado com
os textos em forma escrita.
Uma segunda estratégia é a proposta por Paul Zumthor em extrair os
“índices de oralidade” dos textos,
Por índice de oralidade entendo tudo o que, no interior de um texto, informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua publicação – quer dizer, na mutação pela qual o texto passou uma ou mais vezes, de um estado virtual à atualidade e existiu na atenção e na memória de um certo número de leitores.108
Uma terceira estratégia é a análise das pontuações da obra, muito mais
técnica e específica. A busca na publicação da mesma e nas transformações
gramaticais da língua de indícios de virgulas, pontos de exclamação, pontos de
interrogação, entre outros, colocados em locais onde não fazem muito sentido,
dando à leitura técnica da obra, rastros dessa voz perdida. Procurou-se estabelecer
um diálogo metodológico entre as extrações dos índices de oralidade de Paul
Zumthor com as apropriações e adaptações dos livros de Chartier, analisando as
obras de William Shakespeare, Miguel de Cervantes e Francis Beaumont.
É fato notório que a literatura mundial encontra um marco com a publicação
da grande obra de Cervantes, Dom Quixote. Tal obra se espalha em milhares de
cópias pela Espanha, Portugal, França, Américas e, como nos vem ao caso,
Inglaterra. A tradução em inglês de D. Quixote feita por Thomas Shelton é publicada
108 ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz: A “Literatura” Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. P.35
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apenas em 1612. Entretanto, a presença de Quixote na Inglaterra, que inspira obras
completamente alusivas à obra do espanhol como “O Cavaleiro do Pilão Ardente”
(The Knight of the Burning Pestle) de Francis Beaumont, se dá bem antes dessa
data. Ao fazer seu estudo sobre Cardenio, uma peça perdida escrita, muito
provavelmente, por Shakespeare em parceria com Francis Beaumont e Fletcher,
Chartier faz uma interessante análise sobre as questões que concernem à datação
da obra:
Se a primeira edição in-quarto, sem nome de autor, data apenas de 1613, a peça sem dúvida foi representada alguns anos antes pela companhia de crianças que desde 1600 atuava no teatro instalado no antigo convento dos Blackfriars. Sua data poderia ser 1611, a seguir literalmente o texto da dedicatória de seu editor Walter Burre a Robert Keysar, o Master of the Queen’s Revels Children dos Blackfriars, que indica, ao fazer alusão à produção de Shelton surgida um ano antes que a peça [...] “ill be thought to be of the race of Don Quixote [...]” Mas mais provavelmente a peça fora representada em 1607 ou 1608 se privilegiarmos a nota de uma das personagens, o Citizen, que lembra no prólogo ou ‘indução’ que há “seven years there hath been plays at this house”.109
As duas datas, 1607-1608 ou 1611, levantam a mesma questão: sua relação
com a tradução em inglês de Dom Quixote, a qual só seria publicada em 1612. Tal
relação pode ser explicada pela leitura da obra em sua língua vernácula, a maioria
dos dramaturgos jacobianos conseguiria decifrar a língua espanhola, principalmente,
pelo fato da Espanha ter estado durante, pelo menos vinte anos, presente
culturalmente e politicamente na Inglaterra, participando ativamente de intrigas
políticas contra o governo de Elizabeth I e entrando em guerra com o país no final do
século XVII. A Espanha, portanto, representava o grande temor dos ingleses, pela
sua religião, pelas atrocidades cometidas na América Espanhola e pelo tamanho de
seu poderio naval, a “Invencível Armada”. O teatro não deixaria, portanto, de retratar
esse temor,
De início, a localização da ação dramática na Espanha: assim ocorre com a primeira e mais famosa das peças espanholas, The Spanish Tragedy, de Thomas Kyd. Escrita entre 1582 e fevereiro de 1592, data de sua primeira representação conhecida, e provavelmente
109 CHARTIER, Roger. Cardenio entre Cervantes e Shakespeare: A História de um Peça Perdida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. P. 32
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depois de 1585, a peça foi objeto de uma disputa de dois membros da comunidade dos livreiros e impressores londrinos, a Stationers’ Company.110
Desde 1606, portanto, existem alusões à Dom Quixote em cartas, como a de
Dudley Carleton (1574 – 1632) que acompanhou em 1605 o Conde de Nottingham
em uma missão de paz entre a Inglaterra e a Espanha e que faz menção a um
desafio de Dom Quixote,
Fiz com tanta ousadia para com você ter procurado meu nome nele, e ter me emprestado sua proclamação veneziana, porque eu já havia visto e ela me servirá de notícias para onde eu for. No lugar dela eu te mando o desafio de Dom Quixote, que é traduzido em todas as línguas e enviado ao redor do mundo.111
Apesar da hipérbole da afirmação, suas palavras realmente indicam a
grande fama do livro e o reconhecimento que uma citação a Dom Quixote teria,
mesmo apenas alguns anos após a sua primeira edição em língua vernácula. Em
1607 além da provável montagem da peça de Beaumont, temos outras peças que se
inserem e fazem referências à uma das passagens mais famosas de Cervantes.
Thomas Middleton em sua peça Your Five Gallants (Seus Cinco Galantes) faz um de
seus personagens, Pyamont, declamar a seguinte frase após ter sido horrivelmente
enganado, Não menos de quarenta quilos de ouro justo de uma vez ... coração, nada me irrita tanto ... Juro, eu poderia lutar com um moinho de vento agora.112
George Wilkins em seu “The Miseries of Inforst Mariage” (As misérias do
casamento forçado). Na peça, o protagonista “Scarborrow” “vive em tavernas
gastando sua riqueza (lives in Tavernes, spending of his wealth) ” e “não contente
110 CHARTIER, Roger. Cardenio entre Cervantes e Shakespeare: A História de um Peça Perdida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. P. 22 111 JR, Maurice Lee. Dudley Carleton to John Chamberlain 1603 – 1624 Jacobean Letters. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1972. P. 84. In RANDALL, Dale B. J. & BOSWELL, Jackson C. Cervantes in Seventeenth-Century England: The Tapestry Turned. New York, NY: Oxford University Press, 2009. No original em inglês “I Made so bold with you to look for my name in it and have borrowed your Venetian proclamation, because you have seen it already and it will serve me for News where I go. In place of it I send you Don Quixot’s challenge, which is translated into all languages and sent into the wide world.” 112 MIDDLETON, Thomas. Your Five Gallants. The Works of Thomas Middleton, Now First Collected, vol. 2. London: Edward Lumley, 1840. P. 297 No original em inglês “No lesse then forty pound in faire gold at one lift... heart, nothing vexes mee so much... sfoote [sic], I could fight with a win-mill now.”
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em colher da sua própria (not contente to ryot his owne)” ele toma porções de sua
irmã e seus irmãos. Nos momentos iniciais da peça, Scarborrow aparentemente faz
uma alusão à Dom Quixote, quando diz,
Agora eu estou armado para lutar com um moinho de vento, e para andar na muralha tal qual um imperador113
A tradução de Dom Quixote por Thomas Shelton inscreve-se, portanto, em
um contexto duplo, editorial e teatral. Naturalmente sua obra foi lida e amplamente
circulada pela Inglaterra mas, também, sua obra foi objeto de apropriações teatrais,
referências cruzadas e, até mesmo como vemos no caso de Cardenio, peças
criadas a partir de fragmentos da aventura do cavaleiro errante.
A questão que se apresenta é: identificados tais índices de oralidade, como
resolver o problema metodológico que se coloca em relação ao distanciamento, ou
essa “descontinuidade”? Posto que:
Com a voz que se ergueu no passado, passa-se o que ocorre com a própria história: não é possível negar-lhe a existência, mas ela não tem modelo. Ela foi, ao mesmo tempo, ocorrência e valor. Como ocorrência ela não teve causa única, nem é explicável em cronologia breve. Como valor identifica-se com a experiência que temos. ”114
Logo, como Zumthor sugere, Somente a prática permite, se não resolver, ao menos esclarecer empiricamente essas contradições. Por cruzamento de feixes de informações, por deslocamento de perspectiva e de visada, a partir de um ponto de vista intuitivamente escolhido, esforçarmo-nos para sugerir um acontecimento: o acontecimento-texto; representar o texto-em-ato, integrar essa representação no prazer que se sente na leitura”115
Paul Zumthor refere-se a esse prazer como o de ouvir um disco, a partir do
momento em que se atenua a “distância temporal”e o “abafamento sensorial. ”
Entretanto, ele não passa de mera ilusão de presença; se procedermos a uma
113 WILKINS, George. The Miseries of Inforst Mariage. London: George Vincent, 1607. No original “Now am I armd [sic] to fight with a wind-mill, and to take the wall* of an Emperor” * Take the wall: Expressão comumente usada seguindo a observação na qual aquele que caminha mais próximo da muralha está mais longe da sarjeta e de suas doenças. 114 ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz: A “Literatura” Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. P.220 115 Ibid. P. 221
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apresentação ao vivo, com cantor e músicos, é sobre os elementos não textuais da
performance que se concentram os interesses e os sinais culturais que serão
apropriados. Portanto, ao lermos uma obra que, outrora, foi produzida para ser
vocalizada sentados em nossas cadeiras, no conforto de nossas salas, sem
estarmos presentes para assistirmos os elementos cênicos, aquilo que escutamos,
mesmo com prazer, refere-se apenas, de modo artificioso, ao passado de uma voz
que já está morta.
2. A Voz
Há uma piada feita durante o filme Shakespeare Apaixonado (1999) quando
o investidor fictício, Fennyman, pergunta quem é a pessoa que está no palco
arrumando e instruindo os atores, ao que é respondido por Henslowe, “Ele é
ninguém”. Naturalmente, na nossa cultura ocidental Shakespeare pode ser qualquer
coisa, menos ninguém. Apesar de se ligar ao caráter mais próximo à nós a piada
suscita questões que nos levam à um questionamento muito mais profundo, quem
era Shakespeare em seu tempo de vida?
Sabemos quem Shakespeare é hoje, sabemos de suas peças, de seus
poemas, de seu leito de morte, de seus amigos, de fragmentos de sua vida que
foram rastreados a partir de sua própria obra. O que nos resta saber era o que
Shakespeare não era. Shakespeare não era autor de livros, não existia, na sua
época, nenhum tipo fama ou reconhecimento àqueles que escreviam peças de
teatro, o escritor era meramente alguém dentre os vários participantes da companhia
de teatro, era necessário para o todo. O escritor muitas vezes não escrevia sozinho,
diversas obras foram escritas com uma “segunda mão” como nota Ben Jonson e é
bem sabido da participação de Shakespeare em outros trabalhos compartilhados.
Havia também o fato de que as peças, quando ficavam prontas, não se adaptavam
ao tempo necessário para sua produção teatral, Hamlet, por exemplo, teve de ser
cortada para poder caber nas duas horas que eram o máximo de que se podia
dispor uma peça teatral.
O atestado desinteresse de Shakespeare, em publicar ou não suas peças,
pode ser explicada pelas palavras de outros autores. Como por exemplo, Thomas
Heywood que em sua advertência “Ao leitor” declara:
79
Nunca fez parte dos meus hábitos (cortês leitor) submeter minhas peças à imprensa. A razão disso alguns atribuem à minha própria incapacidade, mas prefiro, neste caso, submeter-me à severa censura deles, do que, ao procurar evitar a imputação de fraqueza, incorrer na maior suspeita de desonestidade. Pois mesmo se alguns costumam vender duas vezes seu trabalho, primeiro ao palco e depois à edição, quanto a mim, eu me proclamo aqui sempre fiel à primeira e nunca culpado da última [...]116
Muito provavelmente Shakespeare compartilhava dessa visão na qual o
teatro era o lugar de suas peças. Essa situação, tirando todos os devidos
anacronismos, assemelha-se muito à dos roteiros de filmes. Não é algo comum ver
roteiros sendo publicados, e a maior parte dos roteiristas entendem o roteiro, não
como a peça chave para um filme, mas um dos componentes do próprio. Existem
muito mais elementos para se adicionar, atores, cenário, direção, trilha sonora entre
muitos outros. Esses elementos, combinados, fazem a arte do filme. O teatro
elisabetano encarava dessa maneira os textos de suas peças. Eles eram parte da
peça, mas nunca estariam acima dos atores. Os atores faziam a peça. Richard
Burbage, Edward Alleyn, esses sim era os grandes astros, era por eles que as
pessoas enchiam os teatros, eram os atores, os homens que levavam, no palco, as
plateias do riso às lágrimas, nunca Shakespeare ou Marlowe, Kyd ou Jonson
Certamente, apesar do seu pouco interesse em publicar qualquer uma de
suas peças, Shakespeare, hoje em dia, convive com a ironia de terem sido essas
publicações que sobreviveram até nós e, por causa delas, existe um Shakespeare,
um Marlowe, um Kyd. No entanto, nem mesmo esses rastros de lembrança podem
ser confiados. A lembrança, como bem sabemos, nunca pode ser considerada como
uma testemunha confiável na análise dos fatos, a prensa, nesse caso, também não.
Ela também falsifica, engana, distorce e nos leva em direção à um outro
Shakespeare que não o de carne e osso que viveu nos séculos XVI e XVII.
Como notam Foucault e Chartier, a questão da autoria não é algo fixo e
estabelecido, é sim, uma construção conceitual de uma função. Foucault a chama
de “função autor”. O autor que conhecemos hoje, que tem direitos sobre como se
116 HEYWOOD, Thomas. The Rape of Lucrece, 1609. In CHARTIER, Roger. Do Palco à Página. No original “It hath been no costume in me of all other men (courteous Reader) to commit my Playes to the Presse: the reason though some may atribute to my owne insufficiency, I had rather subscribe, in that, to their severe censure, then by seeking to avoyd the imputation of weakenesse, to incurre greater suspicion of honesty: for though some have used a double sale of their labours, first to the Stage and after to the Presse: For my owne part, I here proclaime my selfe ever faithfull in the first, and never guilty of the last”
80
publica sua obra e participa dessa publicação, surgiu como fruto dos longos embates
entre os livreiros editores e o que conhecemos hoje como autores. Apenas no início
do século XVIII que teremos o início de uma resolução para a questão autoral.
Foucault, em sua palestra “O que é um autor? ”117 procura na formação da
função autoral a tentativa do estado de censurar, reprimir e controlar o que é dito,
daí que se formula a pergunta: “Importa quem fala? ”. Naturalmente, a “função autor”
para Foucault ligava-se intrinsicamente ao dispositivo da censura.
[...] os textos, os livros, os discursos começaram a ter realmente autores (diferentes dos personagens míticos e das grandes figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam ser transgressores.118
No entanto, pelo trabalho de Foucault não se propor a fazer uma datação,
fica claro que o mecanismo da censura existe antes da própria criação da “função
autor” e da noção de propriedade. Só precisaríamos notar a perseguição da Igreja
Católica aos textos protestantes e a perseguição da Igreja Anglicana, no caso, o
governo Inglês, aos textos e imagens católicas. Naturalmente, Shakespeare,
Cervantes e Beaumont conviviam com o mecanismo censor que decidia o que
poderia ser publicado e encenado e o que seria proibido, “Troillus and Cressida”
entra nesse contexto de uma maneira bastante peculiar, pois não temos certeza se a
peça foi censurada por tratar de temas políticos delicados em uma época delicada
no fim do governo de Elizabeth I, ou se a peça foi encenada apenas para um público
restrito em um teatro mais abastado em Londres.
Para Foucault existem duas outras proposições que se ligam à criação da
chamada “função autor”. A primeira era o que, para ele, se definia pela concepção
burguesa da individualidade e da propriedade privada. Tal concepção liga-se ao
mecanismo da censura, na medida em que, o autor se se coloca como proprietário
do discurso, discurso esse que pertence ao próprio campo abstrato da leitura, e
assim se colocava a mercê da possibilidade da transgressão, restaurando então,
como diz Foucault, “o perigo de uma escrita na qual, por outro lado, garantir-se-iam
117 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Volume 3. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 118 Ibid. P. 275.
81
os benefícios da propriedade”119. E a segunda, o que foi identificado como esse
cruzamento entre o que seriam discursos científicos e o que seriam discursos
literários e como eles seriam identificados e lidos. Todavia, como nota Douglas
Brooks, a criação da figura autoral com propósitos repressores é posta em cheque a
partir do momento em que, por exemplo, Shakespeare é aclamado pela função autor
na publicação de seu Complete Works em edição in-Folio em 1623, ou seja, após a
sua morte, não há, motivações penais em se prender um morto, além do que, como
notam os idealizadores dessa edição, seus antigos parceiros teatrais John Heminge
(1556 – 1630) e Henry Condell (1576 – 1627), no prefácio da mesma, todas as obras
publicadas no livro passaram pelo jugo do Master of Revels, ou seja, pelo censor
responsável pela avaliação das peças.
[...] essas peças já tiveram seus julgamentos e permaneceram após todos os recursos; e agora venham sair pelos Decretos da Corte.120
Ora, essa visão da inocência da peça, nas palavras de Brooks, contribui
para a criação da imagem do autor como um “feliz imitador da natureza” e um “the
most gentle expresser”121, no entanto, ela “Não se encaixa bem com a noção de
Foucault do discurso transgressor. ”122
O que provém de toda a reflexão de Foucault, sobre a existência da “função
autor”, é um processo duplo que seleciona e exclui. Primeiramente vai-se atrás da
nossa própria concepção do que seria uma obra. Seria uma obra tudo o que o autor
escreveu? Até mesmo coisas insignificantes como rascunhos incompletos em
cadernos ou até mesmo uma lista de compras ou algum lembrete escrito no canto
da página? Como definir ou especificar os alcances do conceito de obra?
119 FOUCALT, Michel. O que é um autor? In Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Volume 3. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. P. 275 120 HEMINGE and CONDELL, Prologue in The Complete Works of William Shakespeare, 15-16. No original “these playes have had their triall alreadie, and stood out all Appeales; and do now come forth quitted rather by a Decree of Court.” 121 Nesse caso a tradução para o português não foi possível, não há palavra no português que traduza “expresser”, sendo a tradução mais próxima “aquele que expressa”. 122 BROOKS, Douglas A. From Playhouse to Printing House: Drama and Authorship in Early Drama Modern English. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. P. 16. No original “[This image] does not cohere well with Foucault’s notion of transgressive discourse.”
82
A variação dessa atribuição depende da própria categoria de obra, e todo editor de obras completas encontra-se confrontado com o problema dessa delimitação.123
O segundo processo é aquele que concebe a figura do autor como análogo
à função do discurso. Logo, buscam-se os fatos e traços da existência do
personagem como um personagem existente no mundo, não apenas como um nome
em uma capa de livro, ou como no caso de Shakespeare, na folha de rosto e
declarado como escritor (não autor) de suas obras. Buscam-se essas reminiscências
para localizar o autor em seu tempo e lugar e, portanto, defini-lo, caracteriza-lo.
Podemos dizer que a “função autor” não é somente uma função, mas também uma ficção, e uma ficção semelhante a essas ficções que dominam o direito quando ele constrói sujeitos jurídicos que estão distantes das existências individuais dos sujeitos empíricos.124
Foucault define a “função autor” como um “princípio de economia frente a
proliferação do sentido”, ou seja, essa função é originada por operações complexas
que existem no afastamento entre o que seria o indivíduo real e o que seria o seu
nome. Borges, em seu conto “Borges e eu” nota essa separação discursiva entre o
seu eu subjetivo e seu eu subjetivo e a construção em cima do seu nome autoral. No
caso, há uma encarniçada disputa pelo controle de si mesmo, enquanto o “eu” se
agrada com:
[...] os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um autor.125
Logo, os gostos referentes ao discurso do autor são aqueles que o justificam
como tal, no entanto, ao mesmo tempo que o próprio nome “alcançou certas páginas
válidas”, essas mesmas não podem salvar o subjetivo “talvez porque o bom já não
seja de ninguém”. E por fim, mesmo deixando-se existir para Borges poder escrever,
o eu material está fadado a perder-se, “definitivamente, e só um ou outro instante”
123 CHARTIER. Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. Tradução de Luzmara Curcino e Carlos Eduardo Bezerra. São Carlos: EduFSCar, 2014. P.28 124 Ibid. P.30 125 BORGES, Jorge Luis. borges e eu in O Fazedor. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. P.54
83
dele poderá “sobreviver no outro”. O conto escrito por Borges reflete a dupla
identidade que passam a ter os autores, principalmente após as suas mortes. Ficam-
se os escritos, vão-se os indivíduos.
Esse debate percorre, principalmente, nossa própria concepção do que seria
um autor, desde o seu nome até a sua própria atividade. Portanto, é necessário
tratar-lo como uma função variável e complexa do discurso, não se deve entende-lo
a partir da evidência de sua existência social, como diria Foucault, “a função autor é
característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos
discursos no interior de uma sociedade. ”126
Logo, as noções de escrita e leitura são colocadas em questionamentos
frente uma análise mais aproximada da “função autor”. Ao questionar a validade do
que seria ou não uma obra, Foucault estabelece critérios de exclusão para definir o
que seria ou não um autor. No entanto, a noção da existência individual do autor
também contribui para construção da “função autor”, que é marcada, principalmente,
pela noção do nome próprio.
Nome que, inicialmente, é uma noção fundadora do conceito de obra e
gênero, os nomes dão validade ao discurso. Como Foucault nota, os nomes não
importavam muito para autores de ficção literárias durante a Idade Média, não era
necessário dar nomes aos criadores das histórias, elas circulavam e modificavam-se
devido às apropriações regionais diversas, diferentemente das obras científicas, que
eram colocadas sempre com os nomes dos pensadores ou inventores. Portanto, a
noção da existência de uma obra literária na Idade Média, para Foucault, dependia
de sua antiguidade e circulação.
Em compensação, os textos que chamaríamos atualmente de científicos, referentes à cosmologia e ao céu, à medicina e às doenças, às ciências naturais ou à geografia, eram recebidos, na Idade Média, e somente tinham um valor de verdade, desde que fossem assinalados com o nome de seu autor. As expressões “Hipócrates disse” e “Plínio narra” não eram precisamente as fórmulas empregadas como um argumento de autoridade, eram antes os índices que marcavam os discursos destinados a serem aceitos como aprovados127
126 FOUCALT, Michel. O que é um autor? In Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Volume 3. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. P. 267 127 Ibid. P. 265
84
De acordo com Foucault, um quiasma se produz no século XVII, ou no XVIII;
os textos científicos deixam de necessitar de um autor definido, passa a se apoiar no
“anonimato de uma verdade estabelecida ou sempre demonstrável novamente” e tal
sistema e lógica funcional lhes dá suporte para apagar de si mesma a “função
autor”. O inverso ocorre com os textos literários, passamos a necessitar do autor
para garantir veracidade na obra. O nome do autor, portanto garante e agrega status
e valor à obra, além de classificar a mesma. A “função autor”, está ligada, segundo
Foucault, não apenas aos dispositivos da censura, mas também à verificação da
veracidade de alguns discursos enquanto à outros se relegaria o status da mentira
ou da falsificação. Tal quiasma será refletido mais tarde, como nota o historiador
Vitor Vivolo, na substituição da fé na religião pela fé na ciência128, a ausência da
necessidade autoral, portanto, reflete-se muito mais na disputa acerca da ordem dos
discursos e separa-se apenas do âmbito da criação de uma função autor para ir de
encontro ao embate ciência-religião promovido ao longo dos séculos subsequentes
à Shakespeare.
É notável que, ao falarmos ou ouvirmos o nome de algum autor,
rapidamente o associemos ao gênero literário que ele pertence, julgamos, portanto,
os livros e as nossas leituras pela própria existência do nome do autor e do poder
desse nome. Ao mesmo tempo, podemos notar que, a afirmação feita por Stoddard
acima “Seja o que quer que façam, os autores não escrevem livros” está, de alguma
forma incompleta, sua outra metade seria, o que quer que seja que o fólio de 1623
fez juntamente com os livreiros-editores de sua época e dos séculos seguintes foi
escrever Shakespeare da maneira que o conhecemos hoje. Shakespeare e
Beaumont são tanto personagens dos livros que encerram seus nomes quanto
Romeu, Julieta, Hamlet, Troilo ou Cressida. As apropriações feitas em torno de seus
nomes nos trouxeram pessoas outras às que realmente existiram no século XVI e
XVII, também essas apropriações nos trouxeram outras atividades que hoje
conhecemos como a autoral, por tais motivos que nos vemos motivados a entrar na
discussão acerca da história dos conceitos de autor. Naturalmente, o caso de
Shakespeare, como notado acima, nos mostra um outro lado da formação da
“função autor”. 128 Para mais detalhes acerca desse tema ver VIVOLO, Vitor da Matta. As Horrendas Progênies de Frankestein e Moreau: Literatura e Ciência no Século XIX in Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História. ANPUH, 2015.
85
Tal transformação se mostra muito mais ligada ao lucro e à tentativa de se
estabelecer os livros sobre peças teatrais em mercadorias do que à alguma
organização do estado para vigiar e punir os autores que usavam de discursos
transgressores.
Além disso, apesar do fato de que os dramaturgos provavelmente tivessem escrito discursos transgressores (a peça “Isle of Dogs” de Jonson e Nashe pode ter sido uma delas) raramente esses autores parecem ter sido uma fonte de ansiedade para governantes e/ou legisladores que iniciaram esse esforço regulamentador.129
Todavia, como já relatado acima, casos de censura às peças encenadas não
eram inexistentes, “Troillus and Cressida” e “The Tragedy of King Richard II” são
exemplos de que a censura poderia coibir trechos da peça (como no caso da cena
da entrega da coroa em Richard II), proibir a peça de ser apresentada durante um
período específico (como possivelmente pode ter acontecido com “Troillus and
Cressida”) ou então proibir permanente a peça de ser apresentada. De fato, a partir
do momento em que o nome William Shakespeare passou à ser sinônimo de
rentabilidade:
No momento de sua morte, o número total de edições de peças de Shakespeare ultrapassava em muito o de qualquer outro escritor contemporâneo e, de fato, nenhuma outra peça daquele tempo vendeu tão bem quando a primeira parte de Henry IV.130
Apenas peças que haviam sido bem-sucedidas no palco tinham a honra de
ser publicadas pelos livreiros editores (“Troilus and Cressida” e “The Knight of the
Burning Pestle” seriam exceções notáveis à essa condição). No entanto, com
Shakespeare, esse panorama começaria a mudar consideravelmente, apesar de
atestado o fato de que em um universo econômico teatral, exibir o nome do “autor”
129 BROOKS, Douglas A. From Playhouse to Printing House: Drama and Authorship in Early Drama Modern English. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. P. 21 – 22. No original “Futhermore, although playwrights probably did write transgressive discourses (Jonson and Nashe’s Isle of Dogs may have been one of them), rarely do these authors seem to have been a major source of anxiety for the rulers and/or legislators who initiated these regulatory efforts.” 130 KASTAN, David Scott. Shakespeare and the Book. P.21. No original “At the time of his death, the total number of editions of Shakespeare’s plays far exceeded that of any other contemporary playwright, and indeed no single play to that time had sold as well as I Henry IV.”
86
em um texto de peça não ofereceria nenhuma vantagem comercial em particular.
Em 1598 tanto Richard II e Richard III foram reimpressas com o nome de
Shakespeare na página título e, em 1599, foi impressa uma nova edição da primeira
parte de Henry IV com, também, o nome de Shakespeare adicionado. Nos anos
antes de sua morte ainda foram publicadas vinte e nove edições de dezoito peças,
apenas oito delas sem a identificação de Shakespeare como o escritor.
De todos esses fatos, o mais impressionante seria a edição de 1608 de King
Lear não apenas notando Shakespeare como o escritor, mas anunciando de
maneira escandalosa sua autoria no topo da página título de uma maneira incomum.
Antes mesmo de se vermos o título nos confrontamos com o nome de Shakespeare:
“M. William Shakespeare:/ SUA / História da Crônica Verdadeira da vida e / morte de
Rei LEAR e suas três / Filhas. ”131 Atentemos para o fato de que, apesar de estar
notavelmente celebrada como escrita por Shakespeare, a peça não é mais “SUA” do
que qualquer outra de suas peças já publicadas anteriormente, visto que
Shakespeare não participa do processo de revisão, edição e publicação dessa peça
em formato in-quarto.
Muito embora ainda estivéssemos bem longe do que Foucault considera
como “função autor” pois a apropriação do discurso, nesse caso, é ambígua. Ao
mesmo tempo que podemos atestar para a existência do mesmo, não podemos
atribuir funções relativas ao domínio do discurso ao seu autor de fato. Desse modo,
características notáveis relacionadas à identificação de uma “função autor” não são
existentes durante essa época. A gênese desse processo, no entanto, não foi menos
confusa e atribulada do que qualquer outro processo histórico, dependeu de lutas,
interesses e decisões que muitas vezes não fazem muito sentido para um leitor do
século XXI. Como, por exemplo, o fato de que grande parte das lutas pelo estatuto
da Rainha Ana, votado pelo parlamento em 1709, que transformou as práticas de
publicação dos textos, foi também apoiada pelos livreiros editores. A situação de
precariedade exprimida pelas disputas e tensões entre livreiros editores e escritores
também pode ser considerada uma irrealidade. Seria uma história muito interessante
imaginarmos uma luta desigual entre os pobres escritores, que não eram apoiados
pela lei, sendo oprimidos pelos livreiros editores que agiam pirateando as obras que
131 No original: “M. William Shakespeare:/ HIS / True Chronicle Historie of the life and / death of King LEAR and his three / Daughters.”
87
não foram escritas ou concebidas por eles. A realidade, no entanto, mostra-se um
tanto diferente.
3. O Livro
Na Grécia Antiga a poesia tinha um caráter plenamente ritualístico, que foi
transformando-se, progressivamente, em “literatura”132. A razão para tal mudança
fora a das competições entre as diversas peças e histórias contadas pelos escritores
e pela trupe. Para tanto, a poesia deixou de ser vinculada ao seu caráter ritualístico
religioso e passou a depender da aplicação correta e imitação das regras.
Basicamente como o conto de Borges, “O Espelho e a Máscara”, citado acima, a
poesia passa pelos caminhos de força da mensagem, imitação à regra e inspiração
poética. Diversos fatores contribuíam para tal produção de sentidos. A força da
mensagem passou a ser fundamentalmente atribuída a força poética da
performance.
Foucault então, caracteriza a ordem do discurso literário moderno em
categorias que são: o conceito da obra, a categoria do autor e o comentário acerca
da obra.
As análises acerca das disputas entre livreiros-editores e escritores de peças
são então necessárias, não para atestar um juízo de valor acerca de um ou outro,
pois, como já foi demonstrado acima; as relações entre os dois ofícios não eram
definidas por uma rivalidade ou um atrito intenso, que poderiam impedir a
comunicação entre seus respectivos membros. A integração entre os que escreviam
e os que publicavam era definida de uma maneira muito mais complexa, dependia
muito mais da intenção de cada escritor e de cada livreiro-editor do que de uma
disputa exclusiva entre classes.
No entanto, é fato que os escritores regularmente reclamavam da existência
de cópias consideradas por eles, indignas de circulares ou de portarem seus nomes.
Como escreve Lope de Vega, ao verificar a capacidade de memorização de um
132 Literatura, nesse caso, está entre parênteses pois é um termo anacrônico na época, afinal, o sentido pelo qual o termo foi criado só surgiu após o século XVIII.
88
homem que disse ter sido capaz de transcrever sua peça inteira após assisti-la
algumas vezes,
Lendo suas transcrições, notei que para um verso meu, havia infinitos seus, cheios de loucuras, disparates e ignorâncias, o suficiente para comprometer a honra e a reputação do melhor poeta da nossa nação e das estrangeiras, onde já se lêem com tanto gosto.133
Tais observações de Lope de Vega são confirmadas pelo exame de uma
das cópias de Peribañez y el Comendador de Ocaña, o resultado é que a cópia
manuscrita possui apenas cem versos em comum com o texto impresso em 1614.
Na Inglaterra, no entanto, a maneira mais comum do chamado “roubo de
textos” era o da estenografia. Ou seja, a escrita rápida. Como nota Chartier, haviam
pelo menos, “dez manuais de ‘characterie’, ‘brachygraphy’, ou ‘stenography” que
“foram publicados entre 1588 e 1626”134. Em 1599 William Jaggard, um respeitado
membro da Stationer’s Company135 publicou uma versão in quarto de The
Passionate Pilgrim (O Peregrino Apaixonado) com a primeira página proclamando
que este havia sido escrito por W. Shakespeare quando, na verdade, o livro em
questão é uma antologia contendo apenas quatro sonestos de Shakespeare, dois
dos quais são de Trabalhos de Amores Perdidos. A maior parte do livro contem
versos de outros autores contemporâneos à Shakespeare, Christopher Marlowe,
Richard Barnfield e Walter Raleigh. Em 1612 uma nova edição expandida aparece
que inclui peças de Thomas Heywood, cujos direitos de publicação eram controlados
por Jaggard. Essa nova edição atesta para os novos versos adicionados, no entanto,
o nome de Shakespeare é o único que continua visível na primeira página.
Heywood, um autor que, como citado acima, possui uma relação muito mais próxima
com suas peças e versos publicados erroneamente, em uma epístola adicionada em
133 Las Dedicatorias de Partes XIII – XX de Lope de Vega in CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar e Ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. P. 45. No original “He hallado, leyendo sus traslados, que para un verso mío hay infinitos suyos, llenos de locuras, disparatas e ignorancias, bastantes a quitar la honra y opinión al mayor ingenio en nuestra nación, y las extranjera, donde ya se leen con tanto gusto.” 134 CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar e Ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. P.45 135 Companhia fundada em 1403 que detinha o monopólio da indústria de publicação na Inglaterra, era responsável pela regumentação e disciplina do ofício, definindo a conduta apropriada e mantendo os privilégios de seus associados.
89
(Página título da terceira edição não revisada de The Passionate Pilgrim)136
136 Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/The_Passionate_Pilgrim#/media/File:The_Passionate_Pilgrim_1612.jpg
90
seu An Apology for Actors (1612) protesta acerca do prejuízo feito a ele pela decisão
de Jaggard de incluir seus poemas sob o nome de Shakespeare, temendo que fosse
inevitável que isso:
[...] colocasse no mundo a opinião de que eu possa roubá-los (os poemas) dele e ele, para fazer o certo consigo mesmo tem, desde então, publicado-os com seu próprio nome. 137
Heywood ainda adiciona que Shakespeare também estava “muito ofendido”
com o senhor Jaggard que presumiu usar de maneira tão ousada o seu nome.
Apesar disso, além da epístola de Heywood não sabemos mais nada acerca da
reação de Shakespeare quanto à publicação dessa edição revisada. Contudo,
Jaggard cancelou as páginas-título das cópias não vendidas e reimprimiu The
Passionate Pilgrim sem o nome de Shakespeare como o escritor dos versos.
Esta não foi a ultima irregularidade de Jaggard em relação com trabalhos de
Shakespare. Em 1619 ele e Thomas Pavier juntaram-se para publicar uma coleção
de dez peças de Shakespeare, dentre as quais apenas oito eram do mesmo, as
outras duas A Yorkshire Tragedy e I Sir John Oldcastle, eram peças falsamente
atribuídas a ele. O projeto poderia não ter saído do papel, devido ao fato de que a
companhia teatral de Shakespeare os “Homens do Rei” se saiu bem-sucedida do
seu pedido ao Lord Chamberlain para ordenar que “nenhuma peça dos atores de
Sua Majestade” fosse impressa sem o consentimento de um, ou mais, membros da
mesma. Normalmente, tal ordem dada por um poder “superior” poderia muito bem
acabar com a ideia dos dois livreiros-editores, no entanto, como a impressão do livro
já havia começado, os dois decidiram ir em frente falsificando as datas em algumas
publicações para poderem parecer de tiragens mais antigas e, portanto, serem
vendidas com segurança na loja de Pavier em Ivy Lane.
Apesar disso, Jaggard foi o escolhido por Heminge e Condell para a
publicação do volume in-Fólio de todas as peças de Shakespeare. Tal escolha não é
tão surpreendente quando nos atentamos que as ações de Jaggard em relação aos
volumes publicados sob o nome de Shakespeare foram operadas no limite da
137 HEYWOOD, Thomas. An Apology for Actors. Printed by Nicholas Okes. 1612. Apud KASTAN, David Scott. Shakespeare and the Book. Cambridge: The Cambridge University Press, 2001. P. 55. No original “[…] put the world in opinion I might steale them from him and hee, to do himselfe right hath since published them in his own name.”.
91
(Página título da terceira edição revisada de The Passionate Pilgrim)138
138 Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/The_Passionate_Pilgrim#/media/File:The_Passionate_Pilgrim_1612Revised.jpg
92
propriedade e legalidade da época, não eram os feitos de um “infame pirata,
mentiroso e ladrão” como Swinburne, um poeta do século XIX, chamou o livreiro
editor. Ele mesmo, como já foi mencionado, era bastante respeito dentre a
companhia dos livreiros editores, suas ações, portanto, podem ser consideradas
muito mais oportunistas do que realizadas com a intenção de prejudicar outros
autores. Tal comportamento, como vimos anteriormente era bastante normal na
relação entre livreiros-editores e dramaturgos.
O que nos leva aos problemas relacionados à edição in-folio de
Shakespeare, mais especificamente, a inclusão de Troillus and Cressida no grande
volume que foi publicado em 1623. Desde seu início a peça prova ser um enigma,
desde sua inclusão nos gêneros literários existentes na época até o quebra cabeça
provocado pelas suas duas edições in-quarto onde em uma delas é dito que a peça
foi representada no Globe enquanto a outra ignora as condições de representação,
indo mais além e colocando uma mensagem ao leitor, propagandeando uma peça
inédita que nunca foi contaminada com as palmas dos espectadores do teatro.
A história da publicação de Troilus and Cressida na edição in-folio também é
bastante confusa. Primeiramente registrada no Stationer’s Register em 7 de
fevereiro de 1603 pelo livreiro editor James Roberts. Uma nota no registro declara
que ele poderá imprimir e publicar assim que o mesmo tenha “autoridade suficiente”,
algo que, podemos supor, o mesmo não adquiriu nos anos subsequentes. Tal item
pode ser relacionado à proteção adquirida pelas companhias teatrais contra a
publicação indesejada de peças. Muitas outras passagens no Stationer’s Register
apontam para necessidades do tipo. Apesar da entrada em 1603 no Register não
existe nenhuma cópia da peça publicada antes da edição de 1609. Em 28 de janeiro
de 1609 a peça é novamente citada no Register indicando que ela havia sido
reatribuída a Richard Bonian e Henry Walley.
Se Roberts nunca recebeu a “autoridade suficiente” que estava pendente em 1603 nós não sabemos, apesar de ser certamente significanete, como Blayney observa, que Roberts nunca, de fato, publicou uma peça por conta própria; ele ocasionalmente imprimiu peças para outros livreiros, mas parece ter se desinteressado em tomar para si os riscos comerciais da publicação. Sua entrada (no
93
(Página título de Troillus and Cressida 1609 afirmando que a peça foi representada pela companhia
teatral no Globe).139
139 Disponível em http://internetshakespeare.uvic.ca/Library/facsimile/book/BL_Q1_Tro/
94
(Página título de Troillus and Cressida 1609 sem informações referentes à representação).140
140 Disponível em https://hankwhittemore.com/tag/troilus-and-cressida/
95
Register) pode ter sido designada, em vez disso, para habilitá-lo à revender a propriedade do que ele havia adquirido.141
Walley e Bonian provavelmente compraram o direito da peça de Roberts,
possivelmente depois deles não terem conseguido comprar os direitos dos “grandes
possuidores” à quem a epístola dedicatória da primeira edição (no segundo estado,
ou seja, naquele que afirma que a peça não foi representada em palco) culpa pelo
atraso na publicação.
Muito possivelmente as diferenças entre as duas edições in-quarto de
Troilus and Cressida devem-se ao tamanho da peça, uma das maiores escritas por
Shakespeare, mais especificamente a terceira maior, seguida por King Lear a
Hamlet. A peça provavelmente foi bastante encurtada para caber nas duas horas
disponíveis para cada espetáculo teatral. É possível presumir, portanto, que a
versão da peça disponível in-quarto fosse realmente algo que nunca fora
apresentado antes, devido aos cortes realizados pelos dramaturgos e atores. Ao
mesmo tempo que, também seja possível afirmar que o texto presente na segunda
versão in-quarto seja apenas uma forma de vender mais cópias à leitores distraídos.
A história da publicação de Troilus and Cressida na coletânea em Folio é tão
confusa quanto a de sua versão in-quarto. A peça presumivelmente ainda pertencia
em 1622-1623 à Walley (Bonian já havia falecido) que se recusou a participar da
empreitada que Heminges e Condell haviam proposto. A peça, portanto, não
aparecia no catalogo do Folio, a única dentre as 36 peças de Shakespeare que não
estava presente. E foi inserida posteriormente e anonimamente entre a ultima do
gênero Histórias, logo após Henry VIII e a primeira dentre as tragédias, precedendo
Coriolanus. A posição reflete a ambiguidade da peça no que se refere ao gênero,
mas a ideia original para onde a peça seria colocada talvez não fosse essa.
Troilus and Cressida, de acordo com um estudo das numerações das
páginas proposto por David Benington, seria colocada, originalmente, após Romeu
and Juliet. Provavelmente as dificuldades acerca dos direitos de impressão retiraram 141 BEVINGTON, David. ‘Words, Words, Mere Words’: The Text of Troilus and Cressida in SHAKESPEARE, William. The Arden Shakespeare: Troillus and Cressida. Revised Edition. Edited by David Bevington. Bloomsbury: London, 2015. P.434. No original “Whether Roberts ever received the ‘sufficient aucthority’ that was pending in 1603 we do not know, though it is surely significant, as Blayney observes, that Roberts never in fact published a play on his own; he occasionally printed plays for some other stationer, but seems to have been uninterested in taking the commercial risks of publication. His entry may have been designed instead to enable him to resell the property he had acquired.”
96
a peça de seu devido lugar e o foram impressas algumas cópias do folio sem a
mesma. Assim que as dificuldades legais foram contornadas as próximas cópias do
folio apareceram com Troilus and Cressida em uma posição completamente
diferente da ideia original.
A primeira parte do The History of the Valorous and Wittie Knight-Errant Don
Quixote of the Mancha, por outro lado, foi impresso em sua versão in-quarto em
1612 publicado por Edward Blount, um dos livreiros responsáveis pela edição do
Folio de 1623. Traduzido do espanhol por Thomas Shelton. A primeira edição do
Quixote havia saído na Espanha em 1605. A tradução, portanto, teria demorado
cerca de cinco a seis anos para ser completada.
A tradução de Dom Quixote por Thomas Shelton inscreve-se em um duplo contexto, editorial e teatral. Seu editor, Edward Blount, desde antes de 1612, havia aberto seu catálogo às traduções: em 1600, publicou The Hospitall of incurable fooles, de Tommaso Garzoni; em 1603, The Essayes of moral, politique and militarie discourses, de Montaigne, na tradução de John Florio (do qual ele havia editado em 1598 o dicionário italiano-ingles A Worlde of Wordes); em 1604, The Naturall Morall Historie of the East and West Indies, do Padre José de Acosta; em 1607, a Ars áulica, de Lorenzo Ducci; e em 1608, Of Wisdome, de Pierre Charron. Depois de Dom Quixote, Blount prosseguiu nessa mesma politica editorial, publicando traduções de Luis de Granada (The Sinners Guide, 1614), do Guzman de Alfarache, de Mateo Alemán (The Rogue, 1622) e de Nicolas Faret (The HonestMan, 1632). Ele editará igualmente a gramática espanhola e inglesa de César Oudin (1622) e o dicionário espanhol-ingles de Richard Perceval, revisado e ampliado por John Minsheu (1623).142
Como notado acima, é em um contexto de forte presença da literatura estrangeira
que a tradução de Shelton é publicada. Desde antes de sua publicação são feitas
alusões à história do cavaleiro andante em outras obras. A mais famosa sendo The
Knight of the Burning Pestle (1607) (O Cavaleiro do Pilão Ardente). Estão presentes
entre as que citaram ou tem histórias bastante próximas ao do livro espanhol The
Second Maiden’s Tragedy (1610) (A Tragédia da Segunda Donzela), Your Five
Gallants (1607) (Seus Cinco Cortejos), entre outras. A primeira edição in-quarto de
The Knight of the Burning Pestle data apenas de 1613 e aparece sem autor, a partir
de 1635 é que temos os nomes de Beaumont e Fletcher colocados na página titulo.
142 CHARTIER, Roger. Cardenio entre Shakespeare e Cervantes: História de uma peça perdida. Tradução de Edmir Missio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. P.20-21.
97
(Página título da primeira versão de Don Quixote 1612, impressa por William Stansby para Edward
Blount).143
143 Disponível em RANDALL, Dale B. J. & BOSWELL, Jackson C. Cervantes in Seventeenth-Century England: The Tapestry Turned. New York, NY: Oxford University Press, 2009.
98
É seguro afirmar, no entanto, que a peça foi representada alguns anos antes
pela companhia de crianças que desde 1600 atuava no Blackfriars, mesma
companhia que Hamlet cita antes de dar boas vindas aos atores no castelo.
Hamlet: [...] Que espécie de atores são eles? Rosencrantz: Os mesmos de que tanto gostavas: os atores da cidade. Hamlet: E por que estão viajando? Se ficassem fixos só poderiam ganhar, assim na reputação como em vantagens materiais. Rosencrantz: Penso ser isso resultado da última sedição. Hamlet: Ainda gozam de conceito igual ao do tempo em que eu estava na cidade? Rosencrantz: Não tanto, meu senhor. Hamlet: E qual a causa? Ficaram enferrujados? Rosencrantz: Não, esforçam-se como de costume, mas apareceu por aí uma ninhada de crianças, uns frangotes que trazem a público todas as particularidades da questão, pelo que são barbaramente aplaudidos. Estão agora em moda, cacarejando de tal maneira nos teatros comuns – como eles lhes chamam – que muita gente de espada receia ir lá, com medo das penas de pato. Hamlet: Como assim! São crianças? E quem os mantém? Quem lhes paga ordenados? Só exercerão a arte enquanto puderem cantar? Não dirão mais tarde, se se tornarem atores comuns – o que é de presumir, uma vez que lhes faltam maiores cabedais – não dirão que os escritores abusaram deles, fazendo-os declamar contra seu próprio futuro?144
A data da primeira apresentação de The Knight of the Burning Pestle pode
ser atribuída ao ano de 1611 ano que, de acordo com Chartier, segue o texto de
dedicatória de seu editor Walter Burre a Robert Keysar, o Master of the Queen’s
Revels Children em que ele faz alusão à tradução de Shelton, publicada em 1612
com as seguintes palavras:
144 SHAKESPEARE, William. Hamlet in The Complete Works of William Shakespeare. Barnes and Noble, New York: 1994. P.684 (II. II. 331 – 357). No original “Hamlet: […] What players are they? / Rosencrantz: Even those you were wont to take such a delight in, the tragedians of the city. / Hamlet: How chances it they travel? Their residence, both their reputation and profit, was better both ways. / Rosencrantz: I think their inhibition comes by the menas of the late innovation. / Hamlet: Do they hold the same estimation they did when I was in the city? Are they so follow’d? / Rosencrantz: No, indeed, they are not. / Hamlet: How comes it? Do they grow rusty? / Rosencrantz: Nay, their endeavour keeps in the wonted pace: but there is, sir, an aery of children, little eyases, that cry out on the top of question, and are most tyrannically clapt for’t: these are now the fashion; and so berattle the commom stages, - so they call them, - that many wearing rapiers are afraid of goose-quills, and dare scarce come thither. / Hamlet: What, are they children? Who maintains’em? How are they escoted? Will they pursue the quality no longer than they can sing? Will they not say afterwards, if they should grow themselves to commom players, - as it is most like, if their means are no better, - their writers do them wrong, to make them exclaim against their own succession?
99
[...] talvez passará por ser da raça de dom Quixote: podemos ambos jurar confiantes que ela é cerca de um ano mais velha; e, portanto, pode (em virtude de seu direito de primogenitura) reinvindicar para ela o alto do posto.145
Todavia, a data mais aproximada da primeira apresentação da peça pode
ser, se seguirmos a nota de uma das personagens da peça, o Citizen, que diz no
prólogo “há sete anos se encenam peças neste teatro” (seven years there hath been
plays at this house), fazendo alusão ao acolhimento de trupes de crianças a partir do
início do século, colocando como data mais provável o ano de 1607 ou 1608.
No entanto ambas as datas trazem um problema, sua relação com um livro
que ainda não estava disponível em sua versão em inglês. Como Chartier nota,
Ainda que fosse preciso evitar estabelecer um paralelo muito estreito entre as situações e os motivos da comédia e da história escrita por Cervantes, e ainda que Beaumont (com ou sem Fletcher) extraísse sua inspiração diretamente dos próprios romances de cavaleria, e não de sua parodia, parece certo que o dramaturgo conhecia as aventuras de dom Quixote.146
Como o livro de Cervantes ficou conhecido na Inglaterra antes mesmo de
sua tradução ter sido lançada? Antes da tradução de Shelton duas outras edições,
além das edições em espanhol, estavam em circulação: a primeira de Milão (1610) e
a segunda de Bruxelas (1611). Com outras nove edições em espanhol, o livro do
Quixote conhece uma circulação muito rara naquela época ultrapassando, inclusive,
os limites ultramarinos.
Portanto, não é absurdo inferir que alguns dos leitores de Cervantes na
Inglaterra tenham adquirido o livro em outras línguas e lido-o. Não obstante, outra
teoria, levantada por Chartier é a dedicatória da tradução, dirigida à Lorde Walden,
Shelton indica que a pedido de um amigo ele havia traduzido D. Quixote cinco ou
seis anos antes.
145 CHARTIER, Roger. Cardenio entre Shakespeare e Cervantes: História de uma peça perdida. Tradução de Edmir Missio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. P.32. 146 CHARTIER, Roger. Cardenio entre Shakespeare e Cervantes: História de uma peça perdida. Tradução de Edmir Missio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. P.33.
100
Meu honorável Lorde: tendo traduzido, há uns cinco ou seis anos, a História de Dom Quixote da língua espanhola para a inglesa, no espaço de quarenta dias.147
Data bastante plausível, visto que a edição utilizada por Shelton fora
publicada em 1607 em Bruxelas. Edição esta que já havia corrigido os erros
deixados nas primeiras publicações madrilenas de 1605 a propósito do episódio em
que o asno de Sancho é roubado, logo após os dois protagonistas entrarem em
Serra Morena. Cervantes foi criticado pela sua negligencia em esquecer do destino
do burro e acabou por escrever dois textos adicionais para a reedição de 1605, um
deles descrevendo o roubo do asno por Gines de Pasamonte (o mesmo ladrão que
D. Quixote havia libertado) e o segundo que fala da recuperação do mesmo por
Sancho. Mesmo assim o texto não foi corrigido e Sancho aparece montado em um
asno que havia sido furtado algumas linhas atrás. A edição de 1607 em Bruxelas
efetuada por Roger Velpius tratou de corrigir a coerência do texto.
O livro perpassa o contexto do século XVII rodeado por esses pequenos
erros e cortes. Cortes esses que fornecem pistas quanto à suas publicações, as
discussões em torno dos mesmos e as maneiras que eles eram lidos, fazendo-nos
compreender as práticas de leitura principalmente de livros que se provam
extremamente complexos, tais como Troilus and Cressida.
147 SHELTON, Thomas. The History of the Valorous and Wittie Knight-Errant Don Quixote of the Mancha, epistola dedicatoria “To the Right Honourable His Verie Good Lord, The Lord of Walden in CHARTIER, Roger. Cardenio entre Shakespeare e Cervantes: História de uma peça perdida. Tradução de Edmir Missio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. P.36. No original “Mine Honourable Lord: having Translated some five or six years agoe, the Historie of Don Quixote, out of the Spanish tongue into the English, in the space of forty daies.”
101
CAPÍTULO 3 – A TRAGICOMÉDIA DA MODERNIDADE
3.1 Considerações finais
As histórias de D. Quixote e Troilus and Cressida inscrevem-se em um
momento bastante particular do século XVII, é um contexto que, como José Garcez
Ghirardi, do “Mundo fora de prumo” ou do mundo virado de ponta cabeça. A
Inglaterra não era mais católica e havia uma intensa perseguição religiosa ocorrendo
aos católicos relutantes que lá viviam, ao mesmo tempo, a grande maioria dos
padres criados por Shakespeare eram pessoas bondosas e generosas.
As histórias do Quixote e de Troilus trazem em si a ideia do riso como fonte
principal de seu atrativo, no entanto, as duas também retratam um mundo que
estava perdendo sua própria racionalidade. No ambiente de guerra total retratado
por Shakespeare em sua peça vemos gregos e troianos que há sete anos estão tão
acostumados com suas batalhas sangrentas que passam a fazer disso uma festa.
Na primeira cena da peça vemos Cressida e Pandaro olhando a marcha dos
soldados voltando da batalha como se assistissem a passagem de uma escola de
samba, com os guerreiros sendo saudados enquanto a festa seguia na cidade.
Quixote também retrata, apesar de seu tom paródico, a perda da noção da
realidade em um mundo tomado pela derrocada do poder espanhol. Shakespeare e
Cervantes tem essa ideia ao escreverem suas respectivas obras, na peça de teatro,
os gregos são os ingleses, os troianos são os espanhóis. Ambos representam as
qualidades que foram passadas, pela tradição teatral, a cada nacionalidade. Os
espanhóis eram geralmente retratados como os bufões, os que muito falavam e
nada faziam. Em Troilus and Cressida eles até fazem, mas são vencidos pela
esperteza e, podemos até dizer, vileza dos gregos. Como é visto na cena do
combate entre Heitor e Aquiles, aqui um dos momentos mais épicos da Guerra de
Tróia, que Homero ressalta as grandes qualidades dos heróis, na peça é um embate
que não acontece.
102
Heitor: Oh Nucleo putrefeito, só vistoso, tua boa arma te custou a vida. A
tarefa do dia está completa. Descansa, espada; hoje tiveste sorte; saciada
estás de sangue, dor e morte.
(Tira o capacete e lança o escudo para as costas.)
(Entram Aquiles e os mirmidãos)
Aquiles: Olha, Heitor, como o sol baixa no ocaso e como a feia noite vem
cansada no rastro dele. Assim como se afunda, desaparecendo o sol, no fim
do dia, de Heitor a vida, agora, se abrevia.
Heitor: Desarmado me encontro; não te valhas, grego, dessa vantagem.
Aquiles: Ataquem, camaradas, ataquem! Este é o homem que buscávamos.
(Heitor cai)
Assim caia Ílio! Tróia vem abaixo! Teu nervo, teu tentão já ficou laxo.
Mirmidões, cantai com bastante vigor: Matou Aquiles o possante Heitor!148
A encenação da peça também é um mistério, visto que não podemos afirmar
com certeza se a mesma foi apresentada no Globe, em algum teatro privado como o
Blackfriars ou se ela foi censurada pelo Master of Revels. Os motivos da censura
seriam bem claros visto que a peça faz alusão a guerra de Tróia, a vitória de um
esperto Aquiles sobre um tolo Heitor. No ano de 1601 uma rebelião liderada por
Robert Devereux o segundo conde de Essex havia fracassado e o conde havia sido
morto. O outrora favorito da rainha era comparado com ninguém menos que Aquiles,
daí os motivos claros da peça ter sido abafada, pelo menos na época.
É curioso, no entanto, a semelhança entre as duas histórias, tirando o fato de
uma se passar na Espanha contemporânea à Cervantes e a outra se passar na
Tróia da antiguidade, os conceitos de amor, racionalidade e mundo de ponta cabeça
são reproduzidos com similaridades demais para deixar de se observar. Logo, pode
ser bastante plausível buscar nas duas obras, nos seus contextos de representação,
de leituras e de produção de significados uma estrutura de sentimentos, ou como
diria Greenblat, uma energia social que une as relações da modernidade.
148 SHAKESPEARE, William. The Arden Shakespeare: Troillus and Cressida. Revised Edition. Edited by David Bevington. Bloomsbury: London, 2015. P.371 (V. X. 1-14). No original “Hector: Most putrefied core, so fair without, / Thy goodly armour thus hath cost thy life. / Now is my day’s work done. / I’ll take good breath. / Rest, sword, thou hast thy fill of blood and death. / (He starts to disarm) / (Enter Achilles and his Myrmidons.) / Achilles: Look, Hector, how the sun begins to set, / How ugly night comes breathing at his heels. / Even with the vail and dark’ning of the sun / To close the day up, Hector’s life is done. / Hector: I am unarmed. Forgo this vantage, Greek. / Achilles: Strike, fellows, strike! This is the man I seek. / (They fall upon Hector and kill him.) / So, Illium, fall thou! Now, Troy, sink down! / Here lies thy heart, thy sinews and thy bone. – On, Myrmidons, and cry you all amain, ‘Achilles hat the mighty Hector slain’.
103
Naturalmente, as diferenças entre os países dos escritores são bastante gritantes,
todavia as pequenas semelhanças podem mostrar caminhos a se seguir no estudo
da História Moderna.
104
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