bruno cava - copesquisa

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ublicado em 24 de maio de 2014 Copesquisa em cultura Foto: Sala Dobradiça, Santa Maria (RS) Introdução O caso é produzir conhecimento diretamente implicado nos lugares e tempos onde a cultura acontece e é organizada. É um trabalho de “dentro”, onde o “dentro” não significa simplesmente alguma espécie de imersão ou confusão, mas um jogo de cooptações laterais entre a produção de cultura e de conhecimento. Afetar-se mutuamente, compondo e decompondo relações na medida em que os saberes se conchavam, é o cerne do processo. O copesquisador decide pensar com, antes do que como os agentes, produtores e viventes da cultura. O resultado será também ação

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copesquisa

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ublicado em 24 de maio de 2014Copesquisa emculturaFoto: Sala Dobradia,Santa Maria(RS)IntroduoO caso produzir conhecimento diretamente implicado nos lugares e tempos onde a cultura acontece e organizada. um trabalho de dentro, onde o dentro no significa simplesmente alguma espcie de imerso ou confuso, mas umjogo decooptaes laterais entre a produo de cultura e de conhecimento. Afetar-se mutuamente, compondo e decompondo relaes na medida em que os saberes se conchavam, o cerne do processo. O copesquisador decide pensarcom, antes do quecomoos agentes, produtores e viventes da cultura. O resultado ser tambm ao cultural, intervenonacultura, em contnua realimentao, mas ao mesmo tempo uma produo com estatuto cientfico. A metodologia guarda pontos de toque com a pesquisa-ao e com algumas formas de cartografia cognitivo-afetiva, em que a implicao estratgica nos processos produtivos qualifica o conhecimento.Linhas geraisNo horizonte atual em que otrabalho vivo biopoltico (Negri & Hardt), definindo os modos de trabalho, cooperao e explorao hoje; copesquisar em cultura no pode contornar aproduo de subjetividadecomo unidade de anlise e ao poltico-cultural.Isto significa, pelo menos, quatro coisas:1)No pode ser um mtodo descritivo, que seresumaa colecionar fatos e identidades, arranjando um quadro ecltico, neutralizado ou supostamente objetivo. Seria cair nos vrios positivismos: (multi)culturalismo, sociologismo, economicismo. preciso assumir umponto de vista, situar-se na franja das transformaes, na fronteira onde criatividade e antagonismo funcionam sem distines claras. preciso tomar lado.2)No pode ser disciplinar. Discutir cultura imediatamente discutir poltica, assim comoeconomia poltica. Traar alinha de demarcaodo que poderia definir o campo epistmico e/ou institucional do fato cultural j uma ao poltica. Sobretudo, se faz necessrio rejeitar a tentativa de conformar o campo cultural como um territrio depurado de conflitos e disputas, no que se diferenciaria da poltica. Esta chave apaziguada da cultura, quase de celebrao, serve muito bem aos intermedirios empresariais/estatais que j se especializaram nos negcios da Cultura. A copesquisa indisciplinar e muitas vezes antidisciplinar.3)No pode tomar partido segundo uma linha preservacionista. No h o que defender. No existepatrimnio culturala ser pesquisado. Cultura movimento, relao, transformao, ou no viva. Toda cultura dinmica e transitria. Qualquer viso patrimonialista nega o poder da diferena que a cultura tem de transformar, e se transformar no processo. O que se busca a autonomia, no a pureza. Evidentemente, pode ser preciso enfrentar tentativas de desculturao ou capitalizao, mas isto implica ativar na prpria cultura as foras subversivas que contornam tais ataques. O modelo culturalmajoritrio que faz o cerco nas culturas afirmativas s verdadeiramente ameaado pelo que no pode capturar; isto , pelo motor nomdico das diferenas. O motor da diferena inova os termos do conflito e dissemina fragmentos potentes para um projeto de libertao, alm de si mesmo.4)A produo de subjetividade depende de um plano de imanncia, quer dizer, a elaborao de problemas cujas coordenadas desestabilizem as coordenadas dos problemas decididos de fora ou de cima. Quem governa no quernovos problemas. Mas o par imanncia x transcendncia no pode cair em Fla-Flu ou paralogismo terico. As culturas dissidentes, de resistncia ou afirmao dependem dessa reproblematizao imanente para escapar, com destreza e astcia, dos modelos dominantes em que essas culturas s poderiam existir como extico comercializvel ou curiosidade, ou simplesmente no reconhecveis como tal, desqualificadas e at criminalizadas (como o pixo). No por acaso, tais culturas sejam imediatamenteformas de vida. impossvel divisar existncia e trabalho. Nesse sentido, copesquisam-se ossaberes menores(G. Deleuze ou M. Foucault). A cooperao transversal, muito produtiva, encadeada como esfera docomum, alm do pblico e do privado, que se revezam nos esquemas de poder cultural.4.1)Por um lado, livrar-se da transcendncia do estado, um mal infantil que aflige a cabea de muitos atores do cenrio cultural. Parecem no conseguir pensar sem passar pela integrao, mediao superior, comando e racionalizao estatais. A copesquisa evita a bitola estadocntrica, para pensar e agir. Nessa bitola, caberia ao estado unificar as redes e fluxos de produo cultural, seja mediante alguma figura de sntese a cultura brasileira, a cultura baiana, regionalista, da periferia etc , seja segundo um Plano que determine, de maneira arborescente, a ordenao do setor cultural. No primeiro caso, um nacionalismo cultural ou regionalismo, fixado sobre identidadescom osmltiplos intermedirios empresariais/estatais que as operam com preferncia. No segundo caso, uma concepo planificadora em que especialistas decidem o que melhor, de cima a baixo. Exemplo disso o projetoPraas da Cultura(integrado com os esportes), que aplica pacotes prontos dearquitetura e engenhariapara instalar equipamentos nos lugares sem, no entanto, qualquer articulao com a composio do trabalho cultural j existente. No destoa muito da concepo transcendente de projetos federais de moradia, como oMinha casa minha vida,pensando de cima pra baixo comograndes conjuntospr-fabricados de viver. Em ambos os programas, colocando-se como esfera pblica, funcionam empreendimentos perfeitamente acomodados na lgica privatista, que favorecem construtoras ebancos de investimentointernos aos arranjos de governabilidade. Exemplo diverso, dentro do campo institucional, e de interesse copesquisa, foi a polticaPontos de cultura, engendrada no ministrio da cultura de Gilberto Gil, nogoverno Lula.Comment by usuario: ARGUMENTO PARA AMAZONLOGOS.....4.2)Por outro lado, livrar-se da transcendncia do mercado, outra fixao edipiana de muitos atores. O mercado apresentado como uma fora invencvel e invisvel, a que se conclama uma adaptao imediata, para aproveitar as oportunidades e fomentar a sustentabilidade, ou seja, necessidadede capitalizao. O apelo corporativista. O objetivo das polticas culturais passa a ser, assim, reforar a diferenciao do mercado e equip-lo de redes de valorizao dos agentes e produtores. Tem-se aqui a proposta de choque de capitalismo, que apela por modernizao e capacitao de um setor supostamente atrasado em relao s ltimas inovaes empresariais. Dessa maneira, a economia poltica clssica tenciona impor-se sobre o campo cultural, enquanto as culturas dissidentes inventam alternativas de economia, saberes menores em relao ao capitalismo. Atualmente, tal mtodo se orienta na direo de um campo cultural expandido, que vai abarcar o turismo, o videogame, o design. Grosso modo, so os discursos da indstria criativa ou economia criativa, e cuja ltima vedete foi a economia laranja, a mesma coisa recauchutada para o desenvolvimento. Todas esto baseadas na segmentao do mercado, e na explorao da propriedade imaterial e direitos autorais, um modelo verdadeiramente muito antigo e injusto. Em vez da antiga classe artstica, o novo sujeito corporativo passa a ser a classe criativa. Seu vetor de elitizao na diviso do trabalho consiste em suas habilidades e capacidades cognitivo-afetivas, no que se diferencia no mercado. A ideologia da meritocracia criativa em nada se descola da forma-estado do capitalismo cognitivo. Contra isso, a copesquisa em cultura s pode encontrar subjetividades na crtica e no antagonismo das culturas dissidentes,bem como na construo de alternativas poltico-econmicas.ConclusoA copesquisa se coloca na emergncia de subjetividades poltico-culturais, pesquisando no s as redes, gnglios e sistemas de produo e gerao de novas qualidades, formas, contedos e alternativas, como tambm os pontos de atrito, as lutas, os antagonismos dentro e contra, na imanncia da vida mesma, onde ela se organiza como cooperao e criao, comocomum. A copesquisa, nesse sentido, tambm produo do comum.Texto baseado em parte da fala apresentada no VII Seminrio da Diversidade Cultural, em Belo Horizonte (21-23/5/14).Xhttp://www.quadradodosloucos.com.br/4299/copesquisa-em-ciencias-e-sociedade/Publicado em 28 de maio de 2014Copesquisa em cincias e sociedadeFoto: UEM, maio 2014Democratizar as cinciasOgovernobrasileiro estabelece a cincia como ativo estratgico, conforme o projeto de melhorar a situao do pas na diviso internacional do trabalho. Apoltica do governo, basicamente, consiste em qualificar a produo de conhecimento para capacitar o parque produtivo nacional, e reverter a balana comercial tecnolgica desfavorvel. Nesse propsito, tm sido executados programas de desenvolvimento cientfico e tecnolgico, como oBrasil maiorou oCinciasem fronteiras,repletos de escolhas e critrios sobre o tipo e a forma de cincia em que o pas precisariainvestir.Ao mesmotempo, vivemos um perodo de intensas mobilizaes que exprimem o desejo por maior democracia em termos de acesso e gesto. Durante vrias dcadas no Brasil, os movimentos e lutas sociais se orientavam por pautas mais tticas, com demandas imediatas ou reivindicaes no sentido de melhorar a margem dos trabalhadores, dentro da regulao capitalista. Recentemente, no entanto, um extenso cinturo de sujeitos de luta se recombinou e adquiriu fora material para expandir a pauta, querendo no apenas contedos mais vantajosos na estrutura representativa existente, masnovas formasde democracia, participao e cogesto. Com incidncia direta na questo das cincias, to centrais nas discusses sobre os projetos de cidade, desenvolvimento e progresso tecnolgico, de que a sociedade precisa.Nesse contexto, a democratizaodascincias nunca foi to atual. A reapropriao no apenas da discusso e deciso sobre as cincias de maneira mais aberta e abrangente, mas tambm o coengendramento de modos de produzir cincias e saberes em redes mais heterogneas, quebrando o discurso especialista e os positivismos metodolgicos. A democratizao passa, por um lado, pelo redimensionamento das coordenadas dodesenvolvimento cientfico. Por outro lado, passa por uma renovao epistemolgica da prpria cincia, alm das normas e modelos impostos seja por uma estatizao doprojeto nacionalde pesquisa (com fins de insero vantajosa no mercado globalizado), seja pela mercantilizao gradual das esferas de produo de conhecimento a servio das indstrias multinacionais (farmacutica, agronegcio, automobilstica, petroqumica etc), ambos se misturando sem maiores atritos numa simbiose tpica do neodesenvolvimentismo em curso. Em ambos os casos, estamos na tentativa de reeditar um modelo forjado nas economias centrais do segundo ps-guerra, aBigScience, se orienta por grandes empreendimentos hegemonizados pelos grandes players do capitalismo.A democratizao no pode ser, contudo, apenas fazer o elogio romntico dasmall science, nem somente pluralizar os caminhos do conhecimento e sua institucionalizao, como se fosse necessrio contemplar outros setores, numa reconciliao geral. Trata-se, na realidade, de destituir os projetos e modelos que aparelham a instituio da cincia, para gradualmente afirmar politicamente outras redes de produo de saber, imediatamente antagonistas e criativas. Estas no existem, simplesmente, fora da grande fbrica daBig Science, como se o caso fosse criar instituies paralelas e abandonar a disputa das afluncias de recursos em determinados programas, sua gesto e acesso. O fato que, dentro da prpria instituio da cincia, coexistem experincias e redes que procedem por outros mtodos,mas queao mesmo tempo so mantidas isoladas, desconectadas, e funcionalizadas segundo uma gesto superior que acomoda inclusive sua produtividade segundo o modelo dominante.Por isso, preciso assumir a imanncia entre os saberes maiores (integrao pelaBig Science) e os saberes menores ou vivos, costurados juntos, ainda que os ltimos sejam tendencialmente dissensuais aos primeiros. Isto significa que a democratizao do campo das cincias passa por uma aliana com esses saberes menores e o lugar em que acontecem, inclusive por dentro das malhas e labirintos das instituies existentes, sobredeterminadas que esto pelo estado e mercado. A luta pela democracia no , portanto, simplesmente institucional, j que sorve das foras sociais, as nicas que podem conferir a energia de democratizao e romper os modelos,mas tambm uma luta institucional.***Dos mtodosAo longo do sculo 20, o tronco anglo-saxo da filosofia das cincias devastou os edifcios tericos do cientificismo normativo ou disciplinar. A Cincia tem ps de barro e caminhasobre a terra. Todos os esqueletos no armrio do que se pretendia Cincia, com maiscula, foram expostos em praa pblica. A culminncia dessetrabalho de demoliode fundamentos culmina no anarquismo metodolgico de Paul Feyerabend, cuja obra prima pela leveza narrativa, incentivo experimentao e pluralismo democrtico de formas e contedos. Para o autor, os fundamentos destroados no devem ser reunidos nalguma nova grande ideia, mas recombinados criativamente segundo um mosaico de marcos epistmicos, to mltiplo quanto a prpria composio social.Apesar da desconstruo da Cincia e suas pretenses insustentveis, aBig Scienceno se desarticulou. Muito pelo contrrio, nas ltimas dcadas, fortaleceu-se continuamente, aumentando o valor das patentes, integrando as redes cientficas indstria e promovendo endmicas campanhas de desinformao em aspectos-chave, como transgnicos, meio ambiente ou tabagismo. Fica claro como no basta destroar, nas teorias, o edifcio epistemolgico sustentando o modelo, porque ideias s podem vencer ideias. Falta um suplemento paralelo deao poltica,que formule alternativas concretas a partir dos sujeitos existentes e tendncias de luta, pararetomaras estruturas da prtica cientfica. Novamente, tais sujeitos no precisam se restringir apenas queles diretamente envolvidos nessa atividade, podendo colher energias nummeio socialem intensa mobilizao por direitos.Pesquisadores como Bruno Latour, hoje, invocam as cincias para reorientar as lutas. Na questo ecolgica, por exemplo, o autor convoca a instituio da cincia para construir um novo tipo de objetividade e racionalidade, que congregue tendncias atualmente dspares em causas comuns. Est falando de um conceito forte de cincia, que propicie foras para enfrentar o establishment industrialista-modernizante. Latour aposta na (alegada) excelncia da antropologia simtrica em realizar a mediao entre a pluralidade de modos de existncia, num trabalho que ele qualifica como diplomtico. A antropologia dos modernos seria um tipo de ecumenismo, um esperanto ontolgico. No entanto, muitas vezes a relao estabelecida entre as foras polticas dominantes e as resistncias, em cada modo de existncia, acaba sendo conflitiva, dissensual, onde qualquer consenso possvel dos atuais vencedores at que se transformem as condies do problema e as correlaes de fora, possibilitando a sim, outros consensos mais interessantes.De toda sorte, o problema que, descolada da composio social, a instituio da cincia se distanciou tambm da capacidade de produzir narrativas alternativas e frontes abrangentes de mobilizao. O fechamento epistmico foi estratgico para segregar a discusso, criando interdies e reservas de mercado. O programa do sculo 20 de separar-se como saber especialista e racionalidade superior, segundo a integrao estatal e mercadolgica, levou as cincias a se tornar um assunto distante, quase hermtico, para a grande maioria das pessoas. Da a ocupao do discurso pelas instituies programticas estatais ou pelo prprio mercado, dois modelos entrelaados que andam juntos paramediara produo dos saberes com a sociedade, cingindo-os em projetos polticos indiscutveis aos meros mortais.Um grande desafio consiste, em consequncia, em como reatar o envolvimento social com as cincias. No s para determinar os rumos e polticas, como tambm para reapropriar-se da instituio da cincia dentro de uma multiplicidade de propostas e utilidades, transformando institucionalmente e, quem sabe, o prprio conceito de cincia.Essa a linha de mtodos mais democratizantes, to oportunos hoje no Brasil, como no mbito dasscience studiesou no mbito da STS (Science, Technology and Society). Os saberes vivos que circulam pela sociedade tambm so produtivos, antes e depois do processamento pelas mediaes em que as cincias tm sido separadas e acondicionadas (para ento serem reintegradas nos grandes modelos, aBig Sciencesempre foi ao fim e ao cabo interdisciplinar).Uma copesquisa nas cincias, ento, implica antes de qualquer coisa uma ocupao constante em construir outras pontes e outras formas de relao entre a instituio da cincia e as foras sociais, vivas, que j circulam e se relacionam. Estas que tambm produzem saberes e que tambm se beneficiam e participam ou podem participar da instituio da cincia (numa universidade com maior acesso, e com gesto mais aberta cidade, por exemplo). Nesse ponto, por um lado, o caso enredar experincias mais institucionais no sentido de libertar a produo de saberes vivos que j existem, embora fragmentados ou isolados, dando-lhes relevncia poltica; por outro lado, reconhecer a extenso das redes de produo de cincias para alm dos confinamentos disciplinares e institucionais, pesquisando junto dos sujeitos sociais mobilizados produtiva e politicamente. Esta pesquisa se torna, desta maneira, tambm uma ao poltica, coordenando as duas frentes.Trata-se de uma organizao das autonomias, quando no estiverem subordinadas ou integradas pelos grandes modelos daBig Science.O resultado disso ser menos a proposio de outro grande modelo totalizante, do que o adensamento de redes de cooptaes laterais e produo heterognea, de onde proliferam alternativas constituintes para fazer cincia e viv-la como democracia.Parte deste texto foi apresentada como fala aoGrupo de Pesquisa emScience Studiesda Universidade Estadual de Maring (UEM), em 28/5/2014. Dedico especialmente professora Cristina Machado, pelo percurso que, do Crculo de Viena astrologia afirmativa, me ensinou as bases tambm para pesquisar nesse campo to crucial.Xhttp://www.quadradodosloucos.com.br/4318/as-historias-da-esquerda-e-a-linha-de-cor/ preciso renovar essa esquerda, para que passemos a linha de cor no lugar certo, e assim possamos reconhecer nossas lutas e companheiros, e nossos mortos. Precisamos comear a recontar as histrias e desarmar os automatismos de uma esquerdologia racista. O levante doano passado, desdobrado at hoje num forte ciclo de novas organizaes e lutas de favelas e periferias, praticamente exige isso

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Publicado em 24 de novembro de 2011Por um outro Belo Monte

Belo Monte no apenas uma usina. Se Braslia sintetizou o imaginrio progressista do Brasil dos 1950, Belo Monte faz isso para o sculo 21. Nele, condensam as foras polticas, as esperanas, as perspectivas e as cosmovises. Saturado de argumentos, estudos, relatrios, mitos, panfletos, manifestos e imposturas, Belo Monte palco para todos os personagens da pera brasileira. onde se disputa a nova ordem, o Brasil do passado e do futuro. onde coalha oBrasil Maiordos megaventos e doPr-Sal: a nao-potncia, enfim alavancada ao porvir que seus orgulhosos filhos desfrutaro. a forja do novo homem brasileiro. Como emIdade da Terra(1980), ltimo filme de Gluber Rocha, os vrios Cristos (Negro, ndio, Militar e Guerrilheiro) e o Diabo (Brahms) se debatem entre liturgias e orgias pela revoluo brasileira. Tudo a est em jogo: tensiona, range, di, estala e borbulha.Do Estado Novo ao 2 Plano Nacional de Desenvolvimento da ditadura cvico-militar, at o Brasil Maior no sculo 21, os governos brasileiros tm respondido crise global com saltos de desenvolvimento. Em 1929, 1973 e 2008, ocorreu debaixo da bandeira do nacionalismo, num consenso entre esquerda e direita. Nas trs ocasies, a nao do futuro no poderia ficar para trs em seus grandes inadiveis projetos de modernizao. Todas as vezes, isso significou converter o mito no plano. Executar esse grandePlanoexigiu comando forte e centralizado (Vargas, Geisel, Dilma). Um que consiga fabricar consenso, reunir esquerda e direita, a grande imprensa e o capital nacional-internacional e a governana financeira. E a partir desse esforo de engenharia poltica investir maciamente, propagandear a esperana e equacionar sacrifcios (aos pobres) e dividendos (aos ricos).De passagem, preciso tomar distncia de homens-mediadores que tentam se acoplar a projetos de poder. Mais problemtico do que o governo Dilma estar construindo Belo Monte, Belo Monte estar construindo o governo Dilma. Se, com toda a consequncia, participo de algumafora menoragenciada ao evento Lula-Dilma, por que teria de me sentir compelido a subsumir-me Dilma Maior? No me refiro a ser a favor ou contra, mas tendncia, predisposio quase moral de apoio e lealdade.Desta vez, o governo promete minimizar a perda e democratizar o ganho: remover a pobreza e socializar o trabalho. Nesse sentido, Belo Monte s pode ser mesmo a ltima grande obrasocialista,como escreveu o socilogo Giuseppe Cocco. Isto medida que o projeto socialista se realiza na transformao do mercado de livres capitais individuais em capital coletivizado pela planificao estatal. Com mo invisvel e pulso firme, chega-se aosocialismo do capitalque permite crescer a taxas chinesas eis o nosso horizonte.A sntese mstica do futuro, portanto, no discutida. Prevalece umapoticapica* grandiloquentemente wagneriana nas propagandas e discursos. Demais, impe-se a dupla dialtica: o curto e o longo prazos, problemas menores e maiores. E, com ela, certa mtrica do desenvolvimento: como medir o valor, como quantificar perdas e ganhos, como produzir o homem.Da a pergunta no pode ser levianamente voc a favor ou contra a construo da usina?, nesse binarismo de vagas indignaes e discusses de almoo de domingo. O caso dramatizar: colocar o conflito e desenvolv-lo em suas mltiplas vozes, sem deixar jamais de tomar partido.Uma estratgia est em exasperar a indignao. Denunciar os abusos aos direitos humanos e ao meio ambiente. Provar porA + Bdos malefcios incompensveis. Listar opresses e convocar osyntelektuaispara esgotar intelectualmente as perversidades cometidas. Desnudar as intenes verdadeiras do governo e seus aglomerados empresariais-financeiros, sua traio aos ideais de esquerda, sua impudente retrica de cartilha. Realar como os povos da Amaznia, ndios, caboclos, sertanejos e ribeirinhos so os coitados da histria, literalmente tratorados de seu ecossistema e sem direitos. Ainda outra vez erigir o altar humanista e acusar esse mesmo homem por sua indstria desumana, contra as outras humanidades e a alma do mundo. Em parte, pequenos partidos e outros ainda sequer oficializados vem a oportunidade para desgastar a imagem do governo e capitalizar eleitoralmente as suas candidatas.Outra estratgia, mais potente, consiste em construir a indignao. Elaborar uma cartografia das lutas reais. Orientar o carnaval, articular os movimentos sociais. Reelaborar uma antropologia natural, no perspectivismo doBrasil menor. coordenar narrativas de outros mundos, outras humanidades, outros Brasis, multiplicando a resistncia. Unidos menos pela natureza humana do que pelo homem comonaturezas(no plural).Comment by usuario: O PROJETO CARTOGRAFIA SOCIAL NA AMAZNIA SE ORIENTA EM BOA MEDIDA POR ESSA PERSPECTIVA.Mais do que isso, elaborar uma outra mtrica, outro modo de medir, quantificar e valorar as relaes sociais. Isto significa desprogramar o olhar, desmacetear a anlise e passar a enxergar Belo Monte no s como produo de energia a partir da natureza, mas como a produo do prprio ser humano. Como se governa o acesso, a propriedade, a produo, a distribuio e a circulao dessa energia, como ela circula e se estrutura como fora produtiva? Como se produz ocomumartificial a partir docomumnatural, quero dizer, o homem como naturezas? A, contra todas as utopias e progressismos, a diferena entre um ambientalismo fortementecommonistae os ecologismos metafsicos ou ecossocialismos exasperantes. Entremortificara indignao com apelos m conscincia e sacerdcios esquerdistas, e alegrementeconstruira indignao, construir ocomum, rir do poder e trabalhar na rede social de relaes, ocupaes, mdias, perspectivas e novos modos de viver e sentir e se relacionar. Em suma, constituir Brasis menores, minoritrios, constituir o comum.Belo Monte nosso maior problema, seja na sua violncia civilizatria como obra concreta aqui e agora, seja como prancheta messinica, como alegoria e drama polticos. Mas o problema principal talvez no esteja propriamente na inocncia do sofrimento, na violao da ecologia ou nas incongruncias da matriz energtica, como insiste a maioria de seus opositores, com slida argumentao, mas perspectiva desfocada.Como escreveu Marx nosGrundrisse: No ato da reproduo [da vida social] no se alteram apenas as condies objetivas, mas os prprios produtores se modificam, extraindo de si mesmos novas qualidades, desenvolvendo a si mesmos por meio da produo, se remodelando, formando novas foras e novas concepes, novos meios de comunicao, novas necessidades e uma nova linguagem (p. 405 da ed. brasileira).Talvez o problema principal esteja em como, na afirmao de um outro Belo Monte, outra forma de governar e produzir, noutras palavras, na produo resistente deBrasis menores ou minoritrios, possamos reinventar o brasileiro, a ns mesmos em nossas infinitas naturezas humanas.Recomendados:Os paradoxos do desenvolvimentismo nos governos Lula-Dilma, por Hugo Albuquerque, noDescurvoDiscurso s naes indgenas, por Clber Lambert, naRevista FrumBelo Monte e Jirau, por Rodrigo Nunes, naRevista Global BrasilBelo Monte sob o signo dos direitos humanos, por Fabiano Camilo, noColetivo AmlgamaA recriao anacrnica do imaginrio desenvolvimentista, por Ral Prada, emHorizontes Nmadas50 Leituras sobre Belo Monte, por Idelber Avelar, naRevista FrumKrysto Redentor, crticade Idade da Terra, por Lus Alberto Rocha Melo, naRevista ContracampoTransformao na antropologia, transformao da antropologia, conferncia de Eduardo Viveiros de Castro, na revistaSopro 58Dilma Rousseff e a encruzilhada do desenvolvimentismo, por Idelber Avelar, naRevista FrumComentrios sobre Belo Monte, por Miguel do Rosrio, noleo do DiaboO fara e a represa, ensaio nesteQuadrado dos loucosPS.Substitupoticaporpicaem 25/11, 16:30, acolhendo comentrio de uma leitora atenta: ()Se,para salvar a lricadeslumbrante, de Tristo e Isolda, fosse preciso ficar cem anos ouvindo sa Cavalgada das Walqurias, qquer pessoa que no fosse PERFEITAMENTE metida a besta, teria de aguentar cem anos de CW, s pra ter Tristo e Isolda. Ento, meus amiguinhos, uma potica grandiloquentemente wagneriana bullshit.Ainda se podia aproveitar alguma coisa se fosse umapica grandiloquentemente wagneriana. Mas uma potica, isso, acordem, outro departamento. ()