brinquedoteca: as manifestaÇÕes das crianÇas … · assim, sendo a brinquedoteca um espaço para...

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Universidade Estadual de Maringá 12 a 14 de Junho de 2013 1 BRINQUEDOTECA: AS MANIFESTAÇÕES DAS CRIANÇAS QUANTO AO DIREITO DE BRINCAR MONTAGNINI, Rosely Cardoso (UEM) MÜLLER, Verônica Regina (Orientadora/UEM) Introdução O texto apresenta a análise dos resultados de um grupo focal, realizado com crianças entre 10 a 12 anos, de um colégio estadual da cidade de Londrina- PR. O objetivo da realização do grupo focal com crianças era compreender, a partir de suas manifestações, o que pensam e sabem sobre seu direito de brincar e de que forma idealizam os espaços intencionalmente organizados para promover o exercício lúdico infantil, denominados atualmente no Brasil como brinquedotecas ou ludotecas. Utilizaremos no texto o termo brinquedoteca oficializado pela Associação Brasileira de Brinquedotecas – ABBri, no início da década de 80. A intervenção realizada tem por princípio prezar a condição de participação das crianças nas situações que lhes dizem respeito, como um “ator social portador da novidade que é inerente a sua pertença à geração que dá continuidade e faz renascer o mundo” (SARMENTO, 2004, p.2). Compreendemos que “a criança não é mero receptor das influências a que está sujeita, é também um ator em contínuo desenvolvimento e com opinião própria” ( TOMÁS, 2007, p.88), entretanto necessita que o adulto lhe ofereça oportunidades para exercer a sua condição de participante nos espaços onde frequenta. Assim, temos a brinquedoteca como um espaço lúdico destinado à criança, que pode se tornar um ambiente propício para o exercício da participação política, já conquistado desde 1989 na Convenção dos Direitos da Criança (CDC). A conquista pelos direitos da criança tem avançado gradativamente a favor de garantir à criança, não somente existir dignamente, mas também participar politicamente. Entretanto, falta muito para que todas as crianças tenham uma vida

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Universidade Estadual de Maringá 12 a 14 de Junho de 2013

1

BRINQUEDOTECA: AS MANIFESTAÇÕES DAS CRIANÇAS

QUANTO AO DIREITO DE BRINCAR

MONTAGNINI, Rosely Cardoso (UEM)

MÜLLER, Verônica Regina (Orientadora/UEM)

Introdução

O texto apresenta a análise dos resultados de um grupo focal, realizado com

crianças entre 10 a 12 anos, de um colégio estadual da cidade de Londrina- PR. O

objetivo da realização do grupo focal com crianças era compreender, a partir de suas

manifestações, o que pensam e sabem sobre seu direito de brincar e de que forma

idealizam os espaços intencionalmente organizados para promover o exercício lúdico

infantil, denominados atualmente no Brasil como brinquedotecas ou ludotecas.

Utilizaremos no texto o termo brinquedoteca oficializado pela Associação Brasileira de

Brinquedotecas – ABBri, no início da década de 80.

A intervenção realizada tem por princípio prezar a condição de participação

das crianças nas situações que lhes dizem respeito, como um “ator social portador da

novidade que é inerente a sua pertença à geração que dá continuidade e faz renascer o

mundo” (SARMENTO, 2004, p.2).

Compreendemos que “a criança não é mero receptor das influências a que está

sujeita, é também um ator em contínuo desenvolvimento e com opinião própria” (

TOMÁS, 2007, p.88), entretanto necessita que o adulto lhe ofereça oportunidades para

exercer a sua condição de participante nos espaços onde frequenta. Assim, temos a

brinquedoteca como um espaço lúdico destinado à criança, que pode se tornar um

ambiente propício para o exercício da participação política, já conquistado desde 1989

na Convenção dos Direitos da Criança (CDC).

A conquista pelos direitos da criança tem avançado gradativamente a favor de

garantir à criança, não somente existir dignamente, mas também participar

politicamente. Entretanto, falta muito para que todas as crianças tenham uma vida

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digna, estamos muito aquém de uma situação ideal e plena com respeito à aplicação da

lei (MÜLLER, 2007, p.141 e TOMÁS, 2011, p.65).

Segundo Tomás (2011), no início do sec XX, em 1900, Ellen Dey publicou o

livro O Século da Criança, este manifestava a ideia de que o século XX seria o século

da criança como sujeito de direitos. De fato, aconteceram a partir de então, várias lutas e

movimentos sociais reivindicativos os quais contribuíram com a conquista da criança

pelos direitos de brincar.

Assim, sendo a brinquedoteca um espaço para brincar e sendo o ato de brincar

um direito da criança (CF/1988, ECA/1990), podemos inferir que esse espaço pode ser

pensado pelas crianças. Participar ativamente na organização da brinquedoteca, junto

ao educador, é o início do exercício de sua cidadania, é apoderar-se pela conquista de

seu direito pois possui plena condição de contribuir e inovar nesse espaço.

O surgimento e disseminação das brinquedotecas e o direito de brincar.

A história que conhecemos, pelas fontes obtidas com restrição de idiomas,

afirmam que o surgimento e disseminação das brinquedotecas nas Américas tem sua

origem em Los Angeles, em 1934, em um contexto de tensão política, social e

econômica (CUNHA, 1992).

Os registros encontrados sobre o surgimento da primeira Toy Library1, narram

sempre o mesmo contexto histórico. A década de 30, período pós-guerra, também

conhecido como “Crise de 1929”, ou “Grande Depressão” , trouxe pobreza geral nos

Estados Unidos e em diversos países do mundo (HOBSBAWM, 1995, p.91). Essas

condições ocasionaram a falta de recursos dos pais em proporcionar brinquedos aos

filhos e por isso algumas crianças pegavam materiais de uma loja para confeccionar

brinquedos, sem autorização do proprietário, causando-lhe desconforto (MOORE,

1995 ; OLIVEIRA, 2011, p.16).

1 A primeira brinquedoteca “ Toy Library” possui caráter exclusivamente de empréstimo de brinquedos. Atualmente denomina-se “Los Angeles Toy Loan”. Um dos principais objetivos: "Desenvolver um senso de responsabilidade nas crianças porque dá louvor e reconhecimento quando os brinquedos são devolvidos no tempo e sem danos”. Disponível em: http://dpss.lacounty.gov/dpss/toyloan/default.cfm acesso em 21/04/2013.

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Podemos inferir que o fato que mobilizou esse proprietário de loja, teve como

motivação inicial a necessidade do adulto, em conter pequenos furtos. Entretanto, ainda

que inicialmente a organização desse espaço possua intenções de solucionar problemas

de adultos, a criança foi beneficiada por ganhar um espaço que privilegiou e promoveu

o brincar. Desde então, a brinquedoteca começou a ser disseminada mundialmente,

com objetivos específicos em cada país, sempre voltadas para o brincar, sendo

denominadas Toy Library (Estados Unidos, Alemanha e outros), Lekotek (Suécia e

outros), Ludothéque (França), Brinquedoteca (Brasil) (OLIVEIRA, 2011, p.18).

No Brasil, a iniciativa de organizar um espaço lúdico para a criança foi em

1973, com a Ludoteca da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). A

proposta era de rodízio de brinquedos entre as crianças. Entretanto, oficialmente a

primeira brinquedoteca brasileira foi criada em 1981, em São Paulo, tendo como um dos

objetivos o empréstimo de brinquedos, mas também oferecendo oportunidade de

brincar no próprio espaço. O princípio de empréstimos foi associado a uma filosofia

fundamentada no ato de brincar e na brincadeira em atendimento às necessidades da

criança. Em 1984, foi criada a Associação Brasileira de Brinquedotecas (CUNHA,

2007, p.14).

Santos (2011), afirma que brincar nesse ambiente pode desenvolver a

autonomia da criança pela liberdade de escolher com o que deseja brincar, o que

também favorece a iniciativa, a criatividade, o senso crítico e a responsabilidade de

manter o ambiente organizado como sendo um princípio ético2.

Brincar não se limita somente ao contato que a criança tem com o brinquedo.

Por meio da brincadeira a criança aprende comportamentos, expressa sentimentos e

emoções, interage nas trocas com outras crianças e com os adultos, o que possibilita o

desenvolvimento da expressão artística, a transformação e descoberta de novos

significados lúdicos que dão vida à brincadeira (FRIEDMANN, 1992, p. 229).

O reconhecimento ao direito de brincar e a necessidade atual de implantação

de brinquedotecas, como sendo uma das possibilidades de garantir esse direito,

2 Para este texto buscamos a definição do princípio ético como sendo da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito ao bem comum, ao meio ambiente e às diferentes culturas, identidades e singularidades. Nos referenciamos nos princípios básicos para a Educação Infantil citado nas Diretrizes Curriculares Nacionais, 2010.

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conduzem para a necessidade de formação do educador ou professor brinquedista

(WAJSKOP, 1992, p. 97).

Cientes dessa necessidade, a brinquedoteca passa a ser reconhecida

oficialmente, a partir de 2010, pelo Ministério da Educação (MEC) como sendo

necessária no âmbito educacional de formação de professores. Um dos critérios que

subsidia o ato de reconhecimento do curso, expresso no Instrumento de Avaliação dos

Cursos Superiores de Pedagogia (2010), é a implantação de brinquedotecas físicas para

serem utilizadas como laboratório de ensino e extensão nas universidades3.

Portanto, podemos afirmar que a brinquedoteca é reconhecida como espaço

necessário no contexto atual ( CUNHA, 2011).

Existe, hoje no Brasil, as modalidades de brinquedoteca comunitária,

hospitalar, itinerante, terapêutica, escolar, laboratórios de pesquisa e extensão

universitária, instituições penais, Organizações não governamentais (ONGs), culturais,

esportivas, entre outras, totalizando 565 brinquedotecas até o ano de 2009 (OLIVEIRA,

2011, p.21 ).4

A técnica, o primeiro contato e a intervenção da equipe pedagógica.

A entrevista realizada com a técnica do grupo focal favorece a liberdade de

expressão e participação aos sujeitos da pesquisa. Segundo Boni e Quaresma (2005), a

técnica objetiva estimular os participantes a discutirem sobre um assunto de interesse

comum, sendo possível ser realizada com um grupo de pessoas que já se conhecem , ou

não. Essa técnica propicia uma interação onde “há interesse não somente no que as

pessoas pensam e expressam, mas também como elas pensam e por que pensam”.

(GATTI, 2005, p. 9)

Optamos pela técnica do grupo focal pela iminência que evidencia com os

objetivos de nossa pesquisa. Nos propomos a realizá-la com dois grupos de crianças de

3 Instrumento de Avaliação de Cursos Superiores de Pedagogia, dimensão 3, indicador 3.12 - Brinquedotecas.Disponívelem:http://download.inep.gov.br/download/superior/condicoesdeensino/2010/instrumento_reconhecimento_curso_pedagogia2.pdf; acesso em 04/05/2013 4 Esses dados foram obtidos com a pesquisa realizada pelo Pontão da Cultura em 2008 e 2009.

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10 a 12 anos, de uma mesma sala de aula de 6º ano do ensino fundamental de um

colégio estadual da cidade de Londrina - PR.

Segundo dados coletados em entrevista na Secretaria de Educação, a cidade de

Londrina não possui uma brinquedoteca municipal, que atenda a todas as crianças

londrinenses, entretanto existe na Secretaria uma equipe ciente da necessidade de

implantação de brinquedotecas nas escolas municipais de Londrina. Essa equipe fornece

acessoria, incentiva e orienta as escolas para a ação que está vinculada ao projeto “Mais

Educação” do governo Federal, o qual financia a implantação de brinquedotecas nas

escolas que dispõe de ampliação de jornada.

Atualmente temos 20 Centros Municipais de Educação Infantil (CMEI), 72

Escolas Municipais de Ensino Fundamental (EM) e 68 Escolas Filantrópicas,

conveniadas com a prefeitura, totalizando 160 unidades de ensino que atendem as

crianças. Dessas escolas, 40 possuem brinquedoteca em funcionamento5, de acordo com

informações coletadas por telefone, o que não possibilita a constatação das condições de

funcionamento desses espaços.

Após estas constatações e considerando que, segundo o Estatuto da Criança e

do Adolescente (ECA/1990), é criança a pessoa até 12 anos de idade, decidimos

entrevistar crianças do ensino fundamental, com idade entre 10 e 12 anos, por não

estarem incluídas na política de brinquedotecas do projeto “Mais Educação”.

O objetivo do trabalho com o grupo consistiu em levá-los a compreender sua

condição política na sociedade; discutir os seus direitos a partir do Estatuto da Criança

e do Adolescente e elaborar um projeto de uma brinquedoteca municipal para a cidade

de Londrina, a fim de compreenderem que também possuem esse direito e que podem

ser beneficiados com esse espaço físico.

O primeiro contato foi com o Diretor da escola. Nessa oportunidade mostramos

a intenção em trabalhar com uma turma de alunos do 6º ano. Apresentamos a ele o

5 Não é possível afirmar o número exato de escolas que estão com as brinquedotecas em funcionamento pois esta pesquisa foi realizada por telefone, sendo que nem todas as escolas foram visitadas para constatação da condição de funcionamento. Em virtude da demanda das matrículas no início desse ano 20013, quando as escolas receberam os alunos do 5º ano do ensino fundamental de nove anos, várias escolas cederam seus espaços de biblioteca e brinquedoteca para serem utilizadas como salas de aula de ensino regular. Já era previsto pela Secretaria de Educação que em 2013 a estrutura física das escolas não atenderiam a demanda, desde quando foi implantado o ensino fundamental de nove anos (dados coletados na pesquisa de campo em entrevista na Secretaria de Educação, em abril/2013)

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projeto da dissertação, do grupo focal e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

(TCLE). O diretor imediatamente, num gesto afirmativo, encaminhou-nos para a

Pedagoga que viabilizaria os aspectos práticos, à qual expliquei novamente como se

desenvolveria o trabalho. A Pedagoga ofereceu-se para selecionar os melhores alunos e

tratar essa oportunidade como um “prêmio” ao aluno que tem bom comportamento.

Nosso posicionamento foi de agradecer-lhe dizendo que este não era o critério de

seleção, mas que gostaríamos de trabalhar com toda a turma.

Essas atitudes em relação às crianças leva-nos a refletir sobre a conquista do

direito de participação, que é para todas as crianças. Por isso rejeitamos a hipótese de

que uma delas seja excluída das atividades propostas. Oportunizar à criança pensar seu

espaço lúdico é levá-la ao exercício de seu direito, em relação à cidade.

Müller (2007, p.136 e 140), afirma que

Devemos intensificar esforços para pensar e lutar pela vida comunitária aceitável, onde cada um tenha o seu lugar. Falando do sujeito criança não há como desvincular o lúdico deste olhar e a necessidade de sua potencialização nos espaços em que a criança frequenta [...] Essa tarefa do ensino prático e teórico dos direitos para a criança é também tarefa da escola, sobretudo são as ações cotidianas de cada adulto que devem revelar a importância do exercício da defesa dos direitos infantis.

A partir dessa reflexão, somos levados a atribuir a devida importância a esse

espaço organizado para promover o exercício lúdico na escola, visto que as

brinquedotecas podem se tornar um ambiente ideal para a formação infantil da cultura

que incentiva a participação política e o exercício da democracia. Entretanto, a vida

institucionalizada da criança também pode se tornar uma simples agência de ocupação

e regulação do tempo, instituição controlada pelos adultos, onde a criança pode ser

privada de conhecer seus limites e liberdade (SARMENTO, 2004, p.9).

Na data agendada com a equipe estivemos na escola no período matutino para

organizar a sala e dispor carteiras e materiais, para todas as crianças que manifestaram o

desejo de participar. Visto ser fundamental a organização antecipada para o melhor

encaminhamento da proposta, também consideramos que a organização do espaço físico

deve objetivar a participação e interação do grupo, de maneira que todos estejam dentro

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do campo de visão entre si e com o moderador, o que facilita a interação e o sentimento

de fazer parte do grupo (RESSEL, 2008).

Assim, organizamos as cadeiras em semicírculo na frente do quadro, para

favorecer a visualização da projeção do datashow. Organizamos também as mesas em

grupos para propiciar as trocas durante o registro gráfico. Para cada grupo dispusemos

uma cestinha com lápis grafite, borracha, apontador, lápis aquarelável, um pote para

água, pincéis e papel toalha para secar os pincéis.

No período vespertino recolhemos os termos de consentimento na sala da

coordenação pedagógica e fomos para a sala de aula. Este seria nosso primeiro contato

com a turma, pois dessa forma foi autorizado pela direção. O professor da turma fez a

chamada e nos apresentou, complementando:

“_ Esse trabalho vale nota, eu vou ficar junto com a professora para avaliar”.

Partindo da compreensão que “a abertura do grupo é um momento crucial para

a criação de condições favoráveis à participação de todos os componentes”, e que

“precisa-se criar uma situação de conforto, de certo distensionamento para gerar uma

atmosfera permissiva” (GATTI, 2005, p.28), retomamos a apresentação de forma a

valorizar a participação infantil nessa pesquisa:

“_ Sou professora desse colégio, mas estou em licença para estudar e

desenvolver uma pesquisa que é muito importante sobre a cidade de Londrina. Pedi ao

diretor para vocês participarem dessa pesquisa. Uma pesquisa precisa de resultados e

vocês podem fazer parte dessa pesquisa e contribuir com os resultados”.

Já cientes de que todos participariam pelo recebimento do TCLE, detalhamos

um pouco mais sobre os encontros e definimos as regras de participação de forma

democrática, pois compreendemos que “a participação é um meio de aprendizagem

com valor em si mesmo e um direito fundamental da infância que reforça os valores

democráticos” ( TOMÁS, 2011 p. 112)

Conduzimos as crianças até a sala 30, para a formação. Utilizamos o datashow

como recurso na roda da conversa, assim a discussão foi orientada pelos

questionamentos e uma afirmação:

Vocês conhecem o ECA?

Vocês são crianças?

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De que vocês brincam?

Todas as crianças brincam?

Em Londrina tem espaços para brincar?

Temos direitos!

Incluímos, propositalmente, imagens com crianças brincando para oportunizar

um pensamento lúdico e de liberdade, conforme a imagem que segue:

Fonte: slide da discussão do grupo focal Imagens “Brincadeiras de Crianças” – Ivan Cruz.

O assunto provocou o desejo, em todas as crianças, de expressar suas opiniões

e conhecimentos. Não conseguiam se conter ou mesmo se lembrar de que havíamos

combinado algumas regras, como a de falar um de cada vez. Todos falavam ao mesmo

tempo, pouco pude compreender ao ouvir a gravação.

Sobre a abordagem se todas as crianças brincam, temos as seguintes

manifestações: “Não, as que ficam no sinaleiro não brincam”, “as deficientes não

brincam”, “os que são forçados a trabalhar não brincam”.

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Graciani (2005), ao considerar a injusta condição da infância das crianças e

adolescentes de rua, sugere que a sociedade capitalista tenha estabelecido uma

dualidade histórica do ponto de vista do jogo e da corporeidade.

Para os filhos das camadas médias e superiores, a cidade mostrou-se generosa em viabilizar tempo, espaço e elementos culturais para a potencialização do “viver infantil”. Ainda que exercendo o controle e o gerenciamento sobre o tempo livre da criança burguesa, as gerações adultas souberam reconhecer sua importância para o desenvolvimento. Para os filhos das classes trabalhadoras, entretanto acenou-se para a figura do trabalho precoce, da instrução disciplinar e do controle e gerenciamento do escasso tempo livre para atividades lúdicas e de corporeidade. (GRACIANI, 2005, p.163)

Segundo essa mesma autora, a sociedade capitalista possibilita o “reino da

liberdade” a um número restrito de consumidores e condena a grande maioria das

pessoas, principalmente as crianças, ao “reino da necessidade”.

O ambiente de discussão do assunto causou uma certa “bagunça”, organizada e

controlável. Embora o professor responsável pela turma manifestasse descontentamento

com as crianças pois queriam falar ao mesmo tempo, e constantemente fizesse

intervenções reforçando o aspecto da nota pelo comportamento, as crianças pareciam

não se importar, era como se a nota fosse irrelevante diante da necessidade de falar,

reivindicar e sugerir.

Após discussão, fomos à segunda parte do encontro, o registro gráfico. A

proposta era: “De tudo o que conversamos, o que vocês acham que devem desenhar,

escrever ou reivindicar como um direito da criança?”.

A análise da manifestação infantil no registro gráfico.

Solicitamos às crianças que registrassem graficamente o que compreenderam

sobre nossa conversa ou reivindicassem seus direitos. Utilizamos para essa análise as

frases e os desenhos que compunham a produção gráfica.

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Submetemos os descritores a uma análise específica, com a releitura de cada

categoria e subdivisão das categorias. Para concluir, realizamos a interpretação dos

dados e a aproximação com os autores que subsidiaram o referencial teórico do estudo.

As categorias foram definidas em duas formas de registro gráfico: frases e

desenhos.

1. Frases: subdividimos as frases em novas categorias:

Princípio ético de solidariedade e inclusão social;

Princípio político reivindicativo e democrático.

Princípio Ético de Solidariedade e Inclusão social

Princípio Político Reivindicativo e Democrático

“cantina de graça”

“crianças não devem trabalhar e sim brincar, como direito”

“paz, amor”

“Menos crianças na rua”;

“As crianças precisam de espaços para elas brincarem porque não tem como as crianças não terem um lugar certo para elas brincarem”.

Precisa ter em Londrina uma brinquedoteca para as crianças brincarem com segurança. Mas precisa ter em todos os municípios e cidades!”

“Todas as crianças tem direito de brincar”

“Brinquedoteca: o que o cadeirante pode fazer”;

“natação pública”

“As crianças podem brincar de boneca, tem alguns meninos que gostam de brincar de boneca” “um apartamento para deficientes”

“Tá fechado para construir um prédio. Vamos brincar na rua. Não dá, tem muito carro andando. Então na quadra. Por que o prefeito não faz mais parquinho? Em vez de ficar nadando no dinheiro - Prefeito, para de nadar no dinheiro e nos ajuda aí”.

As crianças são autênticas, e as manifestações em relação à proposta foi

desenhar espaços onde se sentem à vontade, em paz e com amigos em situações lúdicas.

O momento do desenho é lúdico, espontâneo e reflexivo, favorecendo a troca de

opiniões, o compartilhamento das ideias e resolução de problemas.

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A política está explícita na fala e desenho da criança, precisa ser incentivada na

coletividade para que se sintam fortalecidos como grupo que reivindica pelos seus

direitos, saiam da situação de comodismo que as influências externas lhes legam.

A visão adultocêntrica acerca da criança e a condução desprovida de

compromisso com a formação da criança nesse momento lúdico pode eximir, até

mesmo no momento da brincadeira, os significados que esta possui para a criança.

Para Brougére(1995), A brincadeira pode ser, às vezes, uma escola de conformismo social, de adequação às situações propostas, pode, do mesmo modo, tornar-se um espaço de invenção, de curiosidade e de experiências diversificadas, por menos que a sociedade ofereça à criança os meios para isso (BROUGÈRE, 1995, p. 107).

Vale considerar que, a despeito das intervenções dos adultos “as crianças

formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande”

(BENJAMIN, 2012, p. 104), no qual vive sua especificidade, onde a ética da

solidariedade e inclusão social preocupa a criança quando se trata de espaços lúdicos

para todos.

Aparentemente, em seus quotidianos presenciam situações de exclusão social,

violência, homofobia, fome, o que configura violação dos direitos conquistados. A

percepção desses aspectos e o conhecimento sobre seus direitos pode levá-los a uma

atitude reivindicativa. Essa é a formação que almejamos e acreditamos.

A análise dos desenhos nos conduziu à classificação das categorias quanto às

brincadeiras coletivas e individuais.

2. Desenhos:

Todos os desenhos manifestaram vivências ou espaços lúdicos, por isso foram subdivididos em duas categorias:

Brincadeiras Coletivas

Brincadeiras Individuais

Brincadeiras

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No total de 28 desenhos, em 7 não há crianças, em 8 a criança está sozinha, em

6 há duas crianças e em 7 há mais de três crianças.

Se somarmos os desenhos sem crianças com os desenhos de crianças brincando

sozinhas temos mais de 53% das crianças expressando uma brincadeira solitária.

Embora nos registros gráficos observamos muitas crianças brincando sozinhas, a

maioria das sugestões foram brincadeiras coletivas. Podemos, a partir desses dados,

inferir que as condições de urbanidade e questões sociais políticas e econômicas que

envolve a sociedade contemporânea como a falta de tempo dos pais por exemplo, tem

levado a criança a brincar sozinha. Talvez, por essa necessidade da sociedade atual, os

brinquedos eletrônicos, idealizados pelos adultos, possuam a característica da

brincadeira individual.

Segundo Benjamin (2012, p.104),

Se até hoje o brinquedo tem sido demasiadamente considerado como criação para a criança, quando não como criação da criança, assim também o brincar tem sido visto em demasia a partir da perspectiva do adulto, exclusivamente sob o ponto de vista da imitação.

É muito comum encontrarmos em ambientes como restaurantes, clubes,

escolas, entre outros, grupos de crianças que estão juntas mas sozinhas, pois cada uma

Coletivas Individuais

Cabo de guerra, futebol, corrida, pipa, brinquedoteca, amarelinha, parque, piscina, piquenique, xadrez, vôlei, pescaria.

Passeio no campo, boneca.

sem crianças

criança sozinha

duas crianças

várias crianças

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está com seu brinquedo eletrônico, fazendo seu jogo individual, o qual não foi pensado

por elas para sua infância, mas os adultos as têm conduzido para essa prática.

Considerações Finais

A experiência de proporcionar momentos em que a criança possa se expressar e

ser ouvida traz múltiplas manifestações do desconforto que estão vivendo e sendo

conduzidas em sua infância. O que nos leva a concluir que os adultos produzem o

mundo infantil, onde a criança é inserida, sem dar a devida importância à singularidade

da infância. O adulto produz brinquedos individuais pela necessidade dos pais, que não

possuem tempo para o filho. Os adultos sempre pensam a infância pela criança e isso

tem influenciado sua formação.

Entendemos que “o ECA, ao considerar crianças e adolescentes cidadãos, traz

a noção implícita do direito ao protagonismo de cada um sobre os rumos de suas vidas”

(MÜLLER, 2013, p.18).

A proposta dessa pesquisa também nos levou a considerar que quando não há

propostas de momentos coletivos, de trocas de conhecimento e compartilhamento de

ideias entre as crianças, nos espaços institucionalizados onde frequentam, também não

pode haver um grupo que se organiza pela reivindicação de seus direitos. Há portanto,

uma emergência em repensar os brinquedos e brincadeiras atuais que se fortalecem no

individualismo.

Esse estudo se completa quando trazemos à reflexão o pensamento das crianças

e sua forma original e sincera de pensar os espaços lúdicos, que estes sejam acessíveis a

“todas as crianças, de outras cidades também”. O interessante mesmo é perceber que a

melhor vida para a criança será aquela pensada e organizada, não para ela, mas para

todos. (MÜLLER, 2007, p.136).

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad Marcus Vinícius Mazzari. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2012.

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