borges, maria eliza linhares - história & fotografia

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    Copyright 2003 by Maria Eli za Linhares BorgesProjeto grafico da capaJairo Alvarenga Fonseca

    ("A Fotografia nas viagens de exploracao". Reproduzido de Tissandicr,Gaston. Le Merveilles de la phOlo;;wphie. Paris: Hachette, [874.In. . KOSSO, Boris . Origem e expansdo dajmogmfia no Brasil:

    seculo XIX. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980. p. 58)Coordenadores da colecao

    Carla AnastasiaEduardo Paiva

    Editoracao eletronicaWuldenia Alvarenga Santos Ataide

    RevisaoAlia Elisa Ribeiro

    Borges, Maria Eliza LinharesB583f Historia & Fotografia J Maria Eliza Linhares Borges ._Belo Horizonte: Aurentica, 2003.

    136p. (Colecao Historia & . .. Reflexoes, 4)ISBN 85-7526-075-8

    CDU 77(091)791.43

    1.Fotografia-histdria. I. Titulo. II. Serie,

    A~\!,,~/2003

    Todos os direitos rcservados pela Autentira Editora,Nenhuma parte desta publicacao podera ser reproduzida,

    se ja por rneios rnecanicos, e ie tronicn , s eJa via copia xerograf icascm a autorizacao previa da editora.

    Autentica EditoraR u a J an ua ri a . 437 - F[orest a

    31 J J 0-060 - Bel a Horizonte - MGPAB X: (S5 31) 3423 3022 - TELEVEN DAS: 0800 283 J 322

    www.aulenlicaeditora.com.bre-mail: autentica@autenlicaedilora.~om.br

    A imagem fotografica imais que aretenciio de um fragmento do real sobre um suporte.

    Siio trechos de unta realidade suspensa 110 tempo roubadosda vida e devolvidos a ela com revelacoes inesperadas-Luis Humberto

    http://www.aulenlicaeditora.com.br/http://www.aulenlicaeditora.com.br/
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    SUMARIO

    INTRODU

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    INTRODU(:AO

    Muito tern sido dito e escrito acerca das relacoes entreImagens e Ciencias Sociais, Basta correr os olhos pelossumariosdas revistas acadernicas, pelos catalogos de editoras voltadaspara 0 publico universitario ou mesrno observar a disposicaodos livros nas estantes e vitrines das livrarias para perceber aproliferacao de temas ligados a esse campo de estudo, Entretan-to, em que pese a inequfvoca importancia das imagens visuaisno trabalho de pesquisadores, estudantes e no cotidiano dos di-ferentes setores da sociedade conternporanea. ainda e possivelconstatar a carencia de publicacoes que preencham a demandaespecifica por criterios te6rico-metodol6gicos acerca da utiliza-r;aode imagens fotograficas no campo da analise hist6rica. Muitofreqiientemente professores de Hist6ria de diferentes niveiseducacionais nos relatam suas dificuldades para explorar, emsala de aula, a rica relacao existente entre Hist6ria e imagens,particularmente entre Hist6ria e Fotografia.

    Este livro, sobre a relacao entre a hist6ria-conhecimen-to e a fotografia, vern responder a algumas dessas dernandas.Mais que teorizar sobre a natureza da irnagem fotognifica aumesmo criar novas categorias analnicas voltadas especifica-mente para 0estudo da iconografia saida da camera escura,nossa intencao primeira e contribuir para urn dialogo fertilentre a fotografia, aqui entendida como materia do conheci-mento hist6rico, e a hist6ria-conhecimento. Para tal, busca-mas sistematizar canhecimentas disseminados em diferentes

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    Historia & fQlograiia

    estudos, muitas vezes inacessfveis aqueles que, embora mo-vidos por inquietacoes metodologicas, nao sabern por ondecornecar essa busca.

    No prirneiro capftulo, levantamos uma questao poucoexpJorada pelos historiadores que hoje vern se dedicando arefletir acerca do lugar e do papel das irnagens visuais, da fo-tografia em especial, na pesquisa hist6rica. Analisamos as ra-zoes te6rico-metodol6gicas que levaram uma parcela signifi-cativa da comunidade de historiadores do seculo XIX aestabelecer uma hierarquia de importancia entre as fontes depesquisa historica, a classificar as[ontes visuais como docu-mentos de pesquisa de segundo categoric e, final mente, a naoincluir a fotografia no roIdos documentos de pesquisaem His-t6ria. Esse retorno a historiografia do seculo XIX nao e gra-tuito, Nao podemos nos esquecer de que os parametros quenortearam a ensino e a pesquisa hist6rica nesse perfodo trans-cenderam seu pr6prio tempo. Mais que isso, deram 0 tom, pardecadas e decadas, a grande maioria dos rnanuais de hist6riautilizados nas salas de aula das instituicoes universitarias e doensino fundamental e medio no decorrer do seculo XX. Emgrande medida, pode-se dizer que a forca dessa heranca muitocontribuiu para dificultar 0desenvolvimento de metodologiascapazes de fazer falar as fontes visuais.

    No segundo capftulo, buscamos mostrar que, embora re-jeitada como fonte de pesquisa hist6rica, a fotografia introdu-ziu urn novo tipo de ver e dar a ver a diversidade do mundomodemo, rapidamente incorporado por homens e mulheres doseculo XIX e das primeiras decadas do seculo XX. Sem pre-tender desenvolver uma hist6ria da fotografia, elegemos algu-mas representacoes fotograficas de maier expressao nesse pe-rfodo para, a partir delas, buscarmos cornpreender os usos e asfuncoes sociais a elas atribufdas pelos fot6grafos, profissionaise amadores, dos anos oitocentos. Simultaneamente a esse des-cortinar do olhar fotografico introduzimos alguns dos criterios

    que hoje orientam a analise dessa importante fante de pesqui-sa hist6rica.

    No terceiro e ultimo capitulo, tratamos da relacao hojeexistente entre a hist6ria-conhecimento e 0 documento foto-grafico. Ap6s uma reflexao sobre a natureza da linguagem fo-tografica e de suas similitudes com outras irnagens, fizemosuma breve incursao sabre as viagens fotograficas, de estran-geiros e nacionais, atraves do Brasil imperial e republicano.

    Certamente que ao transitarmos por esse longo periodo,mais que secular, que marca de urn lado a surgimento da foto-grafia e de outro a sua incorporacao a pesquisa hist6rica, naoabordaremos todas as qnestfies relativas a convivencia entreessa imagem e a hist6ria-conhecimento. Temos, no entanto, aconviccao de que a natureza e a abrangencia da abordagemaqui proposta hao de contribuir para 0 estimulo a utilizacao,cada vez maior, das imagens fotograficas na pesquisa e no en-sino da Hist6ria.

    A realizacao deste livro contou com a contribuicao dediversas pessoas. Dentre elas gostaria de expressar rninha gra-tidao a Amelia Aurora de Magalhaes, a Arnelinha, pelo incen-tivo e pela leitura criteriosa de paries da primeira versao. Tam-bern nao posso deixar de agradecer aojovem fot6grafo Felipede Freitas Dutra, pelo emprestimo de bibliografia; aos organi-zadores desta colecao, Carla Maria Junho Anastasia e Eduar-do Franca Paiva, pela confianca; ao Otavio e a Luiza, meusamores e companheiros de cada dia; e a Marlucia pelas xica-ras de cafe.

    Como de praxe, gostaria de dizer que as falhas, porventuracontidas neste livro, sao de minha inteira responsabilidade.

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    CAPiTULO I.-- -- ---- ------------- ..

    A Ciencia Hist6rica na epocada invencao da FotografiaA ilusiio de inovaciio

    Antiga h6spede da literatura, da politica e da filosofia. aHist6ria busca, ao longo do seculo XIX, construir sua pr6priamorada. No decorrer desse periodo, historiadores de diferen-tes correntes te6rico-metodol6gicas empenharam-se na defi-ni~ao da fisionomia e da identidade cognitiva da Hist6ria como objetivo de dist ingui-la das demais ciencias do homem. Etambem esse 0 momento do surgimento de urn novo tipo deimagem visual: a fotografia. Desde entao, sua trajet6ria e suasrelacoes com a hist6ria-conhecimento tern passado por per-cursos variados e ate mesmo inimaginaveis por seus criadorese pelos historiadores de offcio do seculo XIX.

    Hoje, a analise da relacao entre a hist6ria-conhecimentoe a fotografia, objcto central deste livro, comporta multiplascaminhos e diferentes abordagens. No entanto, esse dialogo,cada vez mais fertil, nem sempre foi celebrado de maneirapositiva. No decorrer do seculo XIX e das primeiras decadasdo seculo XX, um grupo significativo de historiadores se re-cusou a lancar mao da fotografia como fonte de pesquisa his-torica, muito embora os diferentes setores da sociedade e deoutras areas cientfficas tenham valorizado e utilizado esse tipode imagern desde a seu surgimento.

    Neste capitulo, analisaremos as razoeS da rejeicao da fo-tografia pelos historiadores ligados a historiografia met6dica

    IS

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    H i st nr i a & Fntografla

    do seculo XIX. Mas por que iniciar 0estudo da relacao entre ahist6ria-conhecimento e a fotografia a partir de sua negacao?Nao sera esta opcao urn contra-senso?

    Por mais de uma vez temos presenciado 0 usa da foto-grafia, como urn recurso pedag6gico destinado a despertar 0interesse de alunos do ensino fundamental pelo estudo dahist6ria de sociedades passadas. 0 problema e que iniciati-vas como essas, por certo louvaveis , tern, muitas vezes, sereduzido a rnera reuniao e exposicao das imagens coletadas.Os cuidados necessaries para a compreensao das particulari-dades da linguagem fotografica sao, freqtientemente, descon-siderados. Tal procedimento acaba por reforcar nos alunos aideia de que os homens e mulheres de ontem viviam exata-mente como se apresentam nas respectivas fotografias.

    Quando util izada sob essa perspectiva, a imagem foto-grafica esta sendo concebida como urn dado natural, querdizer, como testemunho puro e/ou bruto dos fatos sociais. Osque assim procedem, encaram a fotografia como duplicacaodo real. Transformada em espelho do real, a fotografia dis-pensa 0 emprego de metodologias capazes de faze-la falar.Assirn concebida, 0 tratamento dado a fotografia eo mesmoque os historiadores do seculo XIX davam aos documentospar e1es considerados como fonte de pesquisa hist6rica

    Nessa epoca, ao historiador de offcio cabia coletar os do-cumentos oficiais, aplicar-lhes as regras do metodo crftico,responsaveis pela verificacao da autenticidade, da proceden-cia e da veracidade de seus conteiidos e, final mente, enca-dea-los em urna sequencia temporal e espacial . A narrativaderivada desse procedimento acabava por naturalizar os aeon-tecimentos hist6ricos. Em outras palavras, ao partir do pressu-posto de que "as coisas sao como sao", a sequencia dos fatosnarrados era apresentada como sendo a expressao natural daverdade sobre 0 passado.

    Nao par outra razao, acredita-se, naquele momento, que"a hist6ria - res gestae - existe em si, objetivamente, e se

    oferece atraves dos docurnentos".' Por isso mesmo, 0trabalhodo historiador era dar visibilidade ao passado ate entao escon-dido nos documentos guardados nos arquivos. Nao par acasoos criticos desse modo de abordar a Hist6ria dizem que a his-toriografia met6dica instituiu a mistica de urn conhecimentoessencialrnente objetivo e mecanico, O U seja, natural.

    Ora, quando 0conceito de conhecimento hist6rico deixade ser percebido como dado natural e passa a ser entendidocomo conteudo cultural sujeito a interpretafoes, estamos di-ante de urn outro paradigma. A essa altura, ja nao se pode maisaplicar as evidencias historicas e aos documentos as mesmosconceitos de fonte e de pesquisa hist6rica propostos pelo para-digma que dava suporte a historiografia met6dica.

    Como nos lembra Thomas Khun, urn paradigma e urnmodo cientifico de produzir conhecimentos. Seu funcionamen-to pressupoe urn arranjo entre perguntas e tentativas de res-postas, mediado por hipoteses, que, durante urn certo tempo,orienta os rumos da pesquisa da comunidade de praticantes deuma ciencia, Toda e qualquer questao que nao se encaixe nes-se arranjo - ao qual Khun chama de anomalia ou de violacaode expectativas - e tida como elemento perturbador e, por issomesrno, deve ser desconsiderada por aqueles que seguiam pela16gica do respective paradigma.'

    Eis aonde queremos chegar! Pelas razoes que veremosurn pouco mais adiante, a comunidade de praticantes da his-toriografia metodica entendia que a imagem fotognifica naopreenchia as requisitos necessaries para ser considerada fon-te de pesquisa hist6rica. Percebida como uma anornalia, foideixada de lado., R ES I S, Jose Carlos . A Hisu ir iu ent re a f t/ lJ ." ,ft u e u de/Ida. S ao Paulo, Atka.1996, p. 13., K UH N. T ho ma s. A estrutura das rfvo/Ui";jes cielilijicUS. 2 .c d ., S a o Paulo: Pc~pec-tiva, 1978, p. 1 3.

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    sociocultural. Integram urn sistema de significacao que naopode ser reduzido ao nfvel das crencas formais e conscientes.Pertencem a ordern do simbolico, da linguagem metaforica,Sao portadoras de estilos cognitivos proprios,

    Urn retorno, breve que seja, ao paradigma met6dico podenos ajudar a evitar a falacia do que estamos chamando de ilu-sao de inovacao,

    Historia & Fotografia

    Hoje, entretanto, a cognicao em Hist6ria percorre cami-nhos bern distintos. Se a fotografia vern sendo cada vez maisuti lizada como fonte, como objeto de analise e como recursopedag6gico, e porque a comunidade de praticantes da cienciahist6rica nao mais se orienta pelos fundamentos do paradigmamet6dico. Entretanto, M quem acredite que 0usa de imagensfotognificas na pesquisa hist6rica signifique inovar, mesmoquando se the aplica 0mesmo conceito de documento hist6ricoutilizado pela historiografia met6dica. Nao sepercebe, por exem-plo, que nonovo paradigma nem a Hist6ria e urn conhecimentomecanico destinado a traduzir a verdade dos fatos, nem 0docu-mento fala por si mesmo e nem 0historiador e urn mero trans-missor das informacoes nele contidas. Portanto, reunir imagensfotograficas de urn determinado perfodo e apresenta-Ias comofiel retrato do passado e urn procedirnento em tudo e por tudoigual a pratica dos pesquisadores do seculo XIX.

    Lernbremo-nos de que eles negaram 0 estatuto de docu-mento hist6rico as imagens fotograficas, muito embora tenhamlancado mao das iconografias contidas tanto na emblematicaquanta nas pinturas de historia, ja que "ilustravam'' exatamen-te 0que estava posto nos documentos escritos, Ora, se usamosas imagens fotograficas sob essa mesma perspectiva, estarnos,na realidade, criando uma ilusiio de inovacdo. Quando utiIiza-da com fins compreensivos, a fotografia, ou qualquer outrotipo de iconografia, demanda 0emprego de metodologias con-soantes com a 16gica e os fundamentos teoricos que a defi-nem como fonte de pesquisa hist6rica. Inseri-Ia na pesquisa,a titulo de inovacao. e aplicar-lhe 0 conceito de documentode urn paradigma que nao a inclui no rol de suas fontes, e 0mesmo que produzir urn coqueteJ teorico-rnetodologico, parcerto nada esclarecedor,

    Quando as imagens visuais, dentre elas a fotografia. sao uti-lizadas como fontes de pesquisa hist6rica, e porque funcionamcomo rnediadoras e nao como reflexo de urn dado universo

    A historiogrofia metodica e arejeiciio do documento [otogrdfico

    o sucesso da publicacao, em 1898, de lntroduciio aosEstudos Historicos nao foi gratuito. Ao lade da edicao dosmimeros de A Revista Historica, surgida em 1876 na Franca, aobra de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos, dois pro-fessores de Hist6ria da Sorbonne, teve 0merito de condensar edivulgar os fundamentos epistemologicos da Hist6ria, entendi-da como "urn conhecimento cientificamente conduzido".

    Se, por um lado, esse "ensaio sobre 0metodo das cien-cias historicas" se encarregou "de subtrair a ciencia historicaas causas sobrenaturais, de colocar em xeque 0 finalismo mar-xista e 0 progressismo racionalista", por outro, resgata umaantiga tradicao da pesquisa hist6rica. Embora tivessem urn en-tendimento proprio do processo de cognicao historica, Lan-glois e Seignobos sustentaram a tese de Tucidides de que apesquisa hist6rica se inicia com a suspeita. Segundo ele, acei-tar os documentos em seu conjunto, sem urn exame previo desua autenticidade e procedencia, equivaleria a reproduzir 0senso comum, fortemente comprometido com os interessesdesse au daquele ator social.

    Na era modema, 0 legado tucidiano de critica docu-mental foi fortalecido pelas contendas entre Lutero e a Igre-ja. Ao colocar ern duvida a interpretacao que a Igreja dava

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    COW;AO "H'S1()~1A& . . _RmEx6,," Hist6ria & FotogrJfi~

    ao texto bfblico, Lutero e seus seguidores contribufram paradisseminar 0princfpio da diivida e, indiretamente, favorecera critic a dos textos oficiais. No decorrer do seculo XVII, Des-car tes estabe lece urna relacao direta entre a diivida rnetodi-ca, a aplicacao dos metodos de pesquisa e 0 conhecimentocientifico. Grosso modo, pode-se dizer que esse clima dedesconfianca diante do texto acabou por favorecer a nao-acei-tacao passiva das informacoes contidas nos documentos uti-lizados pelos historiadores.

    Em 1681, 0 beneditino Dom Mabillon (1632-1701) pu-blica urna especie de manual, De Re Diplomatica, destinado adistinguir documentos falsos de documentos que, com 0 tem-po e as c6pias, iam sendo adulterados, conscientemente ounao, Nao e incorreto dizer que essa obra de critica textual fun-ciona como urn marco para a construcao de urn metodo deanalise hist6rica do documento escrito. No seculo XIX, 0 his-toriador alemao Leopoldo von Ranke reafirma a necessidadede 0 historiador buscar a autenticidade e a legitimidade dosdocumentos histor icos , S6 assim eles nos mostrariam 0aeon-tecido "tal como efetivamente tinha sucedido".'

    Como nos lembra 0historiador Sergio Buarque de Ho-landa, essa afirmativa, proferida em 1824, foi largamente di-fundida entre a comunidade de historiadores europeus, des-de 0 inicio da segunda metade do seculo XIX. Embora elatenha sido proferida por urn historiador que, na pratica, in-terpretava os documentos e neles buscava urn nexo de senti-do para explicar os fatos narrados, suas palavras foram des-contextualizadas e utilizadas de forma pragrnatica, restrita esimplista, Dentre os responsaveis pela vulgarizacao da tesede Ranke, encontram-se os autores de lntroduciio aos Estu-dos Hist6ricos. Sao e1es, tarnbem, os defensores de urn outro

    fundamento da historia metodica: 0 da fusao entre rea lidadee conhecimento historico, entre historia-materia do conhe-cimento (histor ia-fazer) e historia-conhecimento dessa ma-t e ria (hi storia-conheci mento).

    Esse conjunto de preceitos, ja incorporado por muitospesquisadores desde meados do seculo XIX, transcendeu, ra-pidamente, a pr6pria comunidade de historiadores dedicadosexc1usivamente a pesquisa his t6r ica. Foi par tilhado por orga-nizadores de bibliotecas e de acervos documentais financia-dos pelos cofres piiblicos, alern de ser reafirmado, dentro efora da Europa , por professores de his tor ia e autores de manuaisdida ticos dessa disciplina. Os conteiidos expressos nesses ve-Iculos de transrnissao dos fundamentos do paradigma met6-dieo entravam pelas portas e janelas das salas de aula e sealojavam no inconsciente dos alunos. ' Contribufam abertamen-te para a formacao de urna consciencia historica aneorada, deurn lado, na aplicacao do metoda de analise dos docurnentosescritos e, de outro, na valorizacao das acoes sociais daquelesque eram considerados os verdadeiros sujeitos da Hist6ria: osdirigentes poifticos, civis e militares. Nao e demais lembrarque, alem de pesquisadores, os autores de lntroduciio aos Es-tudos Historicos, juntarnente com outros pra ticantes da Esco-la Met6dica, tambern

    fonnularam os program as e e laboraram as obras dehistoria destinadas aos alunos dos colegios e da escolaprimaria, [fundaram J simultaneamen te urna disciplinacientffica e segrcgaram urn discursa ideol6gico quecontinuou a dominar 0ensino e a investigacao em his-t6ria nas universidades [francesas 1 ate osanos de 1940;

    0 livro do espanhol Santiago Calleja Fernandez. Noci ones de H iJ/ ,) ri ll d e

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    Historia & Forografla

    e insereveram uma cvolucao mftica da coletividadefrancesa - sob a forma de uma galena de herois e decomhates cxcmplares - na memoria de geracoes deestudantes ate os anos de 1960.j

    sirnultaneamente, a producao didatica de historia e a pesqui-sa de historiadores e cientistas sociais como Sergio Buarquede Holanda e Gilberto Freyre."

    Para 0que nos interessa no momento, e importante lem-brar que muito ernbora os historiadores afinados com 0pensa-mento da Escola Metodica nao tenharn dispensado 0 usa deirnagens visuals em suas pesquisas e em seus livros didaticos,sernpre supervalorizaram 0documento escrito na producao desuas narrativas. 0uso da emblernatica, safda da filatelia e danumismatica, bern como 0 emprego das pinturas de hist6riaajudaram-Ihes a sustentar uma nocao de Hist6ria calcada naideia de verdade sem macula.

    Alern de confirmarem 0que diziam os documentos escri-tos, as imagens visuais tornavarn mais palatavel 0entendimentodo que estava posto nas fontes textuais. Sob essa perspectiva,as especirnes iconograficos aeima referidos funcionavam tan-to como recurso didatico, quanta como documento hist6rico.Como fonte de pesquisa hist6rica ela apenas confirmava 0que

    No caso especffico do Brasi I,e possfvel encontrar ecos des-sa concepcao de Hist6ria tanto nos dais volumes do manualdidatico de historia de Joaquim Manoel de Macedo (1820-1883), Lici ies de Hist6ria do Brasil para uso dos alunos doimperial Colegio de Pedro 1/,( ' assim como nas teses defen-didas por Joao Ribeiro (1860-1934), autor deHistoric do Bra-sil,' Alguns estudiosos da atualidade mostram que tanto asideias de Macedo quanta as de Joao Ribeiro influenciararn,, Sobre os pressupostos dcssa obra , ver: BOURDE, Guy e MARTIN. Herve. AIEscolas Hisuiricas. Lisbon: Europa-America, s/d. {Forum da Historia), especifi-carncntc p. 94.,0l iv ro de Joaqu im Manoel de Macedo, escr it o 0 pruneiro volume em 1862 e 0segundo e 1863, foi for te rnente inf luenciado pelas ide ias contidas em HistoriaGeral do Brasi l, de Adolfo Varnhagen, historiador de confianca da Casa deBraganca e um dos princ ipais mernbros do lnsti tuto Historico Geograf ico Brasi -lci ro {lHGBj. Para alern do importunre papel dcscmpenhado por Varnhagem, jun-10 ao IHGB, sobretudo nn que se refere a coleta e organizacan do acervo docu-menial brasi le iro relat ive aos seculos XVI. XVII e XVII, os analistas da producaoh is to riograf ic a do seculo XIX tem sidn un ii nimes em atr ibui r a Varnhagem a d i-fusao de uma visao de u rna h is tor ia do Bras il c alc ada nas i dei as da concil iacao,da refo rma e da cordi a Iidadc d n brasi Iei roo Sobre cssas que st oes, ver:RODRIGUES, Jose Honorio. H is ui ri a C om b at en te , Rio de Janeiro: Nova Fron-t eir a, 1982 , p , 191 296: BANDEIRA DE MELO, Ci ro F. Sentunes da Hisuiria: /Il'I>1I.

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    C()Ln;:AO "HI:sn)RIA & I\UUXUES ....

    ja estava dito nos documentos escritos, Dada essa posicao su-balterna na hierarquia de importancia dos documentos utiliza-dos na pesquisa historica, as imagens visuais ruiopassavam dedocumentos de segunda categoria.

    Ora, constatar que as imagens visuais, aceitas pela histo-riografia met6dica, desernpenharam as funcoes de ilustrar 0texto escrito e de despertar sentimentos patri6ticos nos leito-res, ajuda-nos a entender apenas parte do que estamos buscan-do responder. Em outras pala vras, compreender 0 lugar da em-blernatica e da pintura de historia no paradigma met6dico naoexplica, por si so, porque as imagens fotograficas levaram maisde urn seculo para serem aceitas como fonte de pesquisa nasCiencias Sociais e na Historia em particular.

    Quando a fotografia surge, em 1826,9suas imagens con-taram com 0 apoio de diversos hornens de ciencia, alem deindustriais, comerciantes e polfticos, 1

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    passivamente, as imagens do mundo mediante a contempla-Itao de suas fonnas e cores. Diferentemente desses dois filoso-fos, Platao caracteriza esse tipo de olhar quase como urna mio-pia, ja que a visao recepti va, meramente sensitiva, apenas davaa conhecer a superffcie das coisas. E, conhecer pela aparenciaeo mesmo que se iIudir, diria Platao,

    Essas duas vertentes da filosofia do olhar sempre estive-ram presentes nos diferentes momentos da historia do pensa-mento ocidental. No entanto, os que acolheram uma, rejeita-ram a outra, Por isso Bosi nos dira que 0 raci onal ismo modemosempre se viu diante do dilema de "ou conhecer pelos sentidosou conhecer pela mente" .1 1

    Para 0que nos interessa no momento, e importante frisarque a ciencia modem a atribui urn peso excessivo ao metodo eas tecnicas de pesquisa no processo de explicaciio dos feno-menos ffsicos e sociais, Aliados ao usa da razao critica, 0cor-reto emprego dos metodos e das tecnicas de pesquisa garanti-riam a neutral idade e a objetividade do conhecimento cientffico.Esta cornbinacao, propria do pensamento empfrico-raciona-lista, contribui para que a razao filosofica de Platao fosse aospoucos cedendo lugar a razao pratica do mundo modemo,preocupada com a prova documental. Por isso se diz que "0olho do racionalismo moderno examina, compara, esquadri-nha, mede, analisa mas nunca exprime''."Por detras da excessiva valorizacao das tecnicas e dosmetodos de pesquisa se encontra urna logica de organizacaoda relacao entre conhecimento e realidade. Ao primeiro cabe-ria transmit ir a verdade contida nos atos dos atores sociais,expressas nos documentos escritos devidarnente examinados.

    Isso significa que caberia ao conhecimento cientffico discer-nir entre 0 falso e 0 verdadeiro, entre 0certo e 0 errado.

    Ora, ao criar 0 conceito de imagem como simulacra doreal, Platao tarnbem entendia que 0processo de percepcao doreal se fazia mediante 0dialogo entre os polos do par verdadelfalsidade. Para atingir a verdade seria necessario educar 0olhardo filosofo, S o assim ele estaria em condicoes de eliminar 0falso e ensinar a verdade. Na era modema, parcelas deseon-textualizadas do pensamento de Piatao seriam adotadas pelahistoriografia metodica. De Platao os racionalistas modernosherdaram tanto a lese que identificava saber e compromissocom a verdade, quanta a que sustentava a relacao direta entreolhar niioeducado pela razao e percepcao ilusoria do real me-diante a producao e/ou visualizacao de imagens.

    Com 0desenvolvimento da tecnica da perspectiva, desdeo Renascimento, ganha forca a antiga tese da relacao entreeducacao do olhar e producao de imagem realista. Acredita-se que toda e qualquer imagem visual que estabeleca umacornbinacao, exata, infalfvel e matematica, entre largura, es-pes sura e profundidade e uma reproducao fiel do real, inde-pendentemente das convencoes sociais de seu desenhista,pintor, escultor ou arquiteto.

    Etimologicamente 0 termo perspectiva signifiea 0 mes-rna que olhar racionalizado ou ver claro, Nao por acaso, 0 ar-quiteto, maternatico, critico de arte e cartografo Italiano LeoneBattista Alberti (1405-1472) intitulou de Construiione leggi-lima seu tratado sobre a perspectiva. Assim como Alberti, ou-tros tratadistas do Renascimento tambern entendiam que "0artista [e] urn emissor do mundo", ja que seu olho nao fazmais do que "atrair a imagem do objeto para seu intelecto,assim como 0 {rna atrai a linha de ferro". 13

    LI S obr e a histo ria d o o lh ar n o O cid em e, ve r: B OS I, A lfre do. F en om en olcg ia d o olha r.In : N OY A1 S , A da uto (o rg .). 0 olhar. S :io P au lo : C om pa nh ia d as L etr as , 1 988 . p . 7 J.

    u S obr e a h is t6 ria d o olhar no ocidente, ver: B OS I, A lfr ed o. F en or ne no lo gia d o olhar,In:N O VA IS . A d au to ( or g. ). 0 Olhar. S i lo P a ul o: C o mpanh ia das Letras, J 9 88 , p . 7 1 .

    "Sobre 0 papel da perspectiva no Renascimento, ver : BRUZZI. Hygina M. "Bast5esc ru za do s" . I n: Do Vi.f[,.tI,Ui r an gi ve i - em busca de um lugar pos-u top ico . BeloH oriz on te: C IA rte , 2 00 1. p . 9 8 e s egs .

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    CCnf(AO "HLq(}RIA . . RtfLl::O{:SAo adotar essa teoria e aplica-la ao uso das imagens visuais

    na pesquisa e no ensino da Historia, a historiografia met6dica,herdeira do racionalismo modemo, conjuga, de uma maneirasingular, tradicao e modemidade. Mais que i5S0, chancela 0antigo ditado popular - que ainda hoje conta com grande aceita-~ao no conhecimento ordinario - que diz: e verdade porque vicom os proprios olhos. Assim, sempre que 0visto, traduzido emimagens, emanasse de olhos que tivessern sido postos na posi-r. ;:aocorreta, porque educado pelas tecnicas da perspectiva, ha-veri a uma perfeita correspondencia entre realidade e imagem.

    Mas, nem tudo que e maternatico e exato e preciso emuito menos verdadeiro, advertiam, ja no Renascimento, al-gun s estudio sos da perspect iva. Em bora domi nante, a certezada correspondencia entre imagem e realidade, entre imagem everdade, nao era tao unanirne como possa parecer. Nessa me-dida, sua utilizacao acabava por criar urn certo desconfortoentre aqueles que se preocupavam em demonstrar a perfeitasintonia entre iconografia e realidade. Para solucionar essa am-biguidade, a comunidade de historiadores, afinada com os pro-positos da escola met6dica, apoiou-se na antiga tese da infali-bilidade da educacao do olhar. Concebe como documentohistorico visual apenas aqueles cujas imagens fossem fruto doaprendizado das academias de pintura.

    E importante lembrar que, a partir do seculo XIV, princi-palmente, disserninaram-se por quase toda a Europa os espa-r.;:osdesrinados a educar 0 olhar de desenhistas e pintores se-gundo a tecnica da perspectiva: as Academias de Pintura eEscultura. Af se ensinava a produzir imagens que nao apenasespelhariarn 0 real como tambern traduziriam os atos dos legf-timos sujeitos da Hist6ria: os reis e seus cfrculos civil e rnili-tar. A esse aprend izado, que nasce com a eu l tura de corte, erescesob 0 patrocfnio da Igreja, alarga-se com 0 poder da nobreza,sobretudo em Veneza e em Florenca, importava mais a educa-~ao do olhar segundo objetivos previamente definidos do que

    propriamente a criatividade da obra. Dos artistas, esperava-sea producao de pinturas que pudessem produzir, exprimir e trans-mitir a seu piiblico-alvo - os siiditos reais - a gloria dos feitosde seus dirigentes. Cria-sc, assim, 0 offcio do pintor de histo-ria, responsavel pela producao de uma arte essencialmentepragrnatica e funcional que exalta, celebra e comemora os fei-tos dos "herois", apesar de ser tida como essencialmente rea-lista e verdadeira,

    Ao longo do tempo, tres grandes requisites foram orien-tando a confeccao das pinturas de historia. 0 primeiro era aexigencia de que esses funcionarios, pages pelo erario real,passassern pelo treinamento das Acadernias; 0 segundo pres-supunha que suas obras contassem com 0 reconhecimento dosreis; e 0 terceiro exigia que tais obras fossem publicamente re-conhecidas mediante a aprovacao em concursos, requisite parasuas exposicoes nos saloes." Realismo, perfeicao e veracidadeeram os principais atributos das imagens produzidas pelos pin-tores de historia, figuras obrigatorias nas campanhas civis emili tares de reis; prfncipes c generals do Antigo Regime e dossovernos liberais do seculo XIX. Fruto da observacao in loco eoelaboradas segundo as canones do paradigma perspective, a ere-dibilidade dessas imagens advinha, muitas vezes, do fato de se-rem encomendadas. Nessa medida, pode-se dizer que elas eramuma ilustracao do contei ido inscrito nos textos escri tos .

    Sentimentos de ordcm, respeito, patriotismo, heroismo econsciencia nacional e cidada foram, nos diferentes momentosda Historia, objeto dessa pedagogia pragmatica do olhar.

    Nao resta a menor diivida de que 0 discurso da educacaodo olhar do pintor de historia serviu para transformar suasimagens em urn recurso de autoridade. As imagens par elesproduzidas podium ser consideradas urn documento para apesquisa historica niio apenas porque ilustravam 0 texto escrito.

    "WILLIAMS. R. Cultura. Rio l ie Janei ro: Pal c Ter ra . 1992 . r 1~9-1 so.28 29

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    Hislori3 & Fmogr3(ia

    mas sobretudo porque traziam a assinatura de uma autoridadereconhecida nos cfrculos do poder. Como veremos a seguir, aproducao fotognifica nao se encaixava nesse criteria de vali-dacao cientffica da imagem.

    Nao podemos nos esquecer de que nos primeiros anos doaparecimento da fotografia, as fot6grafos eram, na sua maio-ria, homens comuns - desenhistas e gravuristas autodidatas,caricaturistas, pintores tidos como sem expressao artfstica. Naopossuiam vfnculos diretos com as Academias e suas imagensabordavam temas e motivos quase sempre distantes da a!_raodos homens considerados produtores da Historia." Isso serndizer que, ja par volta do ana de 1880, 0 aperfeicoamentodas cameras fotograficas colocaria a fotografia ao a1cancedo homem comum.

    Essa dilatacao do uso da fotografia faz com que os novasfot6grafos estabelecarn novos e distintos criterios de olhar parafazer suas tomadas dos acontecimentos sociais. Cada individuodefine nao apenas 0quemerece ser registrado, mas tarnbem sobque ungulo as acoes socials de seus cotidianos devem ser imor-talizadas. Os criterios da educacao do olhar, normatizados nasAcademias de Pintura, nao eram conhecidos pelos fot6grafosamadores. A eles interessava tao somente aprisionar cenas emomentos significativos para suas vidas Intimas.

    A essa pratica, intitulada pelos setores de elite de banali-zacao do universo imagetico, agrega-se 0 fato de a fotografiaser urn testemunho do presente. Em princfpio, suas imagensregistram 0aqui e 0agora. Mas para a comunidade de prati-cantes da historiografia met6dica, a conceito de faro hist6ricoestava estritamente atrelado ao estudo dos acontecimentospassados, Ainda que se aceitasse a natureza precisa, exata efiel da imagem fotografica, sua vinculacao Com 0 momento

    presente impedia-Ihe de figurar na galeria, naquele perfodorestrita, de documentos historicos,

    Na realidade, as imagens praduzidas pela camera lucida- como muitos chamavam a maquina fotognifica - foram far-tamente utilizadas por pintores, como Degas, par exemplo,interessados em captar do real as mimicias que 0olho humanonao era capaz de registrar. Nao raro encontramos livros didati-cos, nacionais e estrangeiros, produzidos em meados da deca-da de 1860, que tambem lancaram mao das imagens fotognifi-cas para reproduzir as pinturas de hist6ria alocadas nos museuse corredores dos palacios, Como ainda nesse perfodo niio seconhecia a tecnica de reproducao da fotografia atraves da im-prensa, as imagens fotograficas chegavam ate os livros media-das pela tecnica da litografia. Niio par acaso, nesse mesmoperiodo, a poeta Baudelaire, antes de se convencer da dimen-sao artistica da fotografia, identificou sua natureza e seu po-tencial com os da imprensa. Quer dizer, conceituou-me comouma especie de pr6tese, de artefato mecanico precise, que nadacriava, muito embora Fosse dotada dos atributos necessariespara auxiliar no avanco tecnol6gico e industrial.

    Por ser portadora de caracteristicas tao distantes do con-ceito de documento pr6prio da historiografia rnetodica, a foto-grafia foi alijada da pesquisa historica, Sua inclusao nesse uni-verso dependia, pois, de uma mudanca do paradigma hist6rico.

    No final do seculo XIX, uma serie de transformacoes nasrelacoes sociais enos parametres do pensamento filos6fico ecientffico corneca a colocar em causa os fundamentos da his-toriografia met6dica. Conseqiientemente inicia-se urn proces-so que, em medio prazo, contribuiria para criar as condicoeste6ricas que levariam a uma mudanca do conceito de docu-mento hist6rico que, por sua vez, acabaria incorporando a fo-tografia no ral de Fontes de pesquisa hist6rica.

    De urn lado, ganhava forca a crit ica a infalibilidade daotica perspectiva. Crescia 0 ruimero de pintores e estudiosos da

    " No case da caricarura, por exemplo, a di ferenca oj gritantc. Suns imageus tinhamc om o o bj et iv o a e nu ca d as a ~O t.. "" :So p odc r. N ess a m ed id a, ela s fu ncio na var n c om ou r n a e s p e ci e de c on tr a- h is to ri a e nao de iu st ra o; ii o d o s { ex lOS oficiais.

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    COLEy\o ,IHIS r 0RI~ & . . . REF l& :XOfS ~ Hi , l o ri " & FOIgra f i0

    do, a tradicao, na va esperance de poder preservar 0que ja sedesfazia. Outros alimentavam a crenca iluminista num futuropromissor. Outros, ainda, apostavarn na grande crise do capi-talismo como condicao para a revolucao socialista e 0 iniciode uma nova era.

    No campo da reflexao historica, 0 historiador francesJules Michelet inc1ui, no rol de suas buscas intelectuais, au-tores ate entao relegados ao esquecimento. como Her6doto eGiambattista Vico, por exemplo. Das leituras dos textos doprimeiro, Michelet inicia um processo de reabilitacao do de-poimento oral, alern de subverter 0principio de que a cienciahistorica se dedicava exclusivamente a analise do passado,Das teses de Giambattista Vico, autor de Scienza Nuova,Michelet extrai outros ensinamentos que iriam marcar suadistancia em relacao aos historiadores da Escola Met6dica,dita positivista. Chama a atencao para a especificidade dasciencias do hornem em relacao as da natureza; propoe a com-binacao de diferentes metodologias para a analise de eviden-cias historicas tambem diferentes, e defende a tese de que 0conhecimento hist6rico se faz com a analise de dados anoni-mos e nao, como queria a historiografia rnetodica, apenascom a analise dos dados saidos exclusivamente das acocs deatores socialmente privilegiados. Nos anos que se seguiram.os escritos de Vico tambern inspiraram autores como Dil-they, Weber, Benedetto Croce e Collingwood, 17 os quais, di-reta ou indiretamente, teriam um papel preponderante na der-rubada do paradigma met6dico.

    Em meio a esse processo de mudancas, ganha forca atese weberiana da natureza compreensiva e interpretativa dasciencias do cultura, Weber

    arte a sustentar a lese de que "nao ha perspectiva exata ouprojecao absoluta do mundo, [pois], ha sempre algo no espacoque escapa ao olho, matematizado que seja"." De outro, umacorrente de fil6sofos e te6ricos das Ciencias Sociais ji come-cava a colocar em duvida tanto a tao propalada existencia deuma verdade iinica dos fenomenos sociais, quanto a corres-pondencia direta entre conhecimento e verdade. Esses sinto-mas de mudanca das bases te6ricas do conhecimento cientffi-co eram fortemente influenciados pelos desdobramentos doprocesso de globalizacao, em curso desde a era das grandesnavegacoes. Alem disso, 0 final do seculo XIX assiste a umprodigioso processo de transformacao trazido pelas guerras;movimentos nacionalistas; investidas imperialistas; desenvol-virnento acelerado da tecnologia e da ciencia: migracoes emmassa dos campos para as areas urbanas, de paises para pai-ses; surgimento de novas classes socials, novos oficios e no-vas profissocs, Tudo que 0mundo sempre conheccra em pro-porcoes localizadas adquiria, a partir de entao, uma dimensiioplanetaria. Essa reviravolta nas e das relacoes humanas geranovas incertezas, poe em xeque os valores que ate entao calca-ram as tradicoes e os modos de ver das diferentes sociedadesdentro e fora da Europa.

    as desafios do que mais tarde viria a ser denominadode sociedade de massa, ja detectados por Tocqueville, Marx,Nietzsche, dentre outros, redirecionavam 0olhar dos te6ricosdas ciencias sociais.

    As tensoes, os conflitos e os antagonismos em curso con-tribufam para dilapidar os canones polfticos, cientfficos esocioculturais que a Revolucao Inglesa arranhara. a Revolu-~ao Francesa golpeara e os diferentes desdobramentos sociaise politicos da Revolucao Industrial iam minando mais e mais ,No bojo dessas transformacoes alguns se apegavam ao passa- 17 Sobrc 0 pensamento de Vico e suus inf luencias na f ilosof ia c nas ciencias socials .ver: WILSON. Edmund_ R umo c E .

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    H;sk>rj"& FOlogra fi~

    combate rcsolutarnente a idcia de que a Ciencia possaengendrar "concepcoes do mundo" de validade uni-versal, fundadas no sentido objctivo do decurso hist6-rico. [Para ele J , esse sentido objetivo nao existe e porisso mesmo nao cxiste uma ciencia social livre de pres-supostos valorativos, IX

    Com essas alteracoes no e do pensamento. estavam aber-tas algumas portas para 0estabelecimento de urn novo concei-to de realidade, de ciencia hist6rica, de metodo de pesquisa e,sobretudo, de documento hist6rico. As imagens visuais deixa-riam de ser consideradas urn retrato fiel dos fatos para se trans-fonnarem em linguagens dotadas de s inraxe propria. Parafra-seando Italo Calvino, as imagens fotograficas deixariam deser as coisas para se tomarem "figuras de coisas que signifi-cam outra coisa" .IY

    Sem embargo, esse clima de mudancas e inovacoes naotraria, de imediato, a derrubada do paradigma que norteara ahistoriografia metodica, 0 apego a tradicao, a ausencia declareza sobre os rumos das transformacoes em curso e a pro-pria vinculacao do ensino de Hist6ria, e ate mesmo da pesquisa,aos interesses do poder funcionariam como entraves para a in-corporacao e a difusao de uma outra pratica de pesquisa e deensino da ciencia historica,

    Enquanto isso, a fotografia ia sendo utilizada, cada vezmais, por todos os segmentos das sociedades modemas. lnde-pendente mente da resistencia dos membros da comunidade depraticantes da historiografia metodica, suas imagens divulga-Yamos feitos dos homens publicos e 0cotidiano dos homens emulheres de diferentes classes sociais.

    E para essa direcao que deslocaremos nosso olhar no ca-pitulo seguinte.

    Segundo ele, do passado so se pode conhecer as inten-~6es que motivaram as a~6es sociais dos diferentes atoreshist6ricos. Sob essa perspectiva, a finalidade do processo cog-nitivo deixa de ser a expressao da verdade dos fatos "tal comoteriam acontecido" para se transformar em urn processo decornpreensao e interpretacao des significados que os homensatribuiram as suas condutas sociais, sempre motivadas e/ouorientadas por expectativas em relacao a a~iio dos outros, Deacordo com essa logica de raciocinio, a dimensao objetiva eracional do processo de conhecimento tambern implicant aaceitacao de uma certa dose de subjetividade. 0 mundo a serdessacralizado pelo homem de ciencia nilo e feito de coisas,mas de relacoes sociais plenas de significados porque per-passadas pela forca de valores, crencas, mitos, rituais e sim-bolismos. Mediante 0 uso de uma metodologia capaz de de-tectar as estrategias racionais das acoes sociais, motivadaspor interesses nem sempre racionais, tais como are, 0dogmae os desejos, 0homem calcula, racionaliza e cria meios paraatingir seus fins. Cabe ao cientista compreender e interpretaresses processos.

    Sob essa 6tica, nega-se a antiga tese da coincidencia en-tre a historia-fazer e a hist6ria-conhecimento. E assirn que aciencia historica, como qualquer outra ciencia da cuitura, sedesnaturaliza. Torna-se uma construcao que s6 funciona seoperada a partir de urn conjunto de hipoteses."COHN. Gabriel (org.). Weber. 2.ed. . Sao Paulo: Alica, 1982. p. 21 (Colecso Gran-des Cientistas), " CALVINa. !talo. "As cidades e os sfrnbolos", In: As cidades invisiveis. 3.ed. S50Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 17.

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    Tradicao e modernidadena mira dos fotografos

    CAPfTULO IL__. ",_"." ..

    A ansia de apreender 0mundo a partir de suas manifes-tacoes essencialrnente objetivas e precisas, caracterfstica daheranca do pensamento cartesiano, nao foi suficiente paraeliminar a magia e a comocao que as imagens visuais desper-taram e despertam no homem. Ao longo dos seculos, as dife-rentes sociedades tern criado distintas formas de produzir,olhar, conceber, dialogar e utilizar suas producoes imageti-cas. Ao possibilitar 0 constante desejo de eternizar a condi-~ao humana, por certo transit6ria, a imagem fotografica seaproxima de outras iconografias produzidas no passado. Comoessas, a fotografia tambern desperta sentimentos de medo, an-giistia, paixao e encanto. Reune e separa homens e mulheres,informa e celebra, reedita e produz comportamentos e valo-res. Comunica e simboliza. Representa.

    Sua genese ffsico-qufmica e sua capacidade reprodutivacriam urn novo profissional da imagem e inauguram nao ape-nas uma estetica propria, como tarnbern urn novo tipo de olhar,Toda essa novidade diz respeito a urna sociedade cada vez mai slaica, globalizada, veloz e tecnologica, em que as pessoas con-vivem a urn s6tempo com 0medo do anonimato, a necessida-de de preservar 0presente, a incerteza sobre 0 futuro e a espe-ranca de construcao de urn mundo bern sucedido.

    Foto e urn termo que vern do grego, phos. Significa luz,Fotografia quer dizer "a arte de fixar a luz de objetos mediante

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    Historia & Fotografra

    a acao de certas substfincias", J Em 1826, 0 frances JosephNicephore Niepce (1765-1833) desenvolveu a heliografia.:urn processo qufmico para fixar, em uma camera escura, aluz emanada de objetos. Pouco tempo depois, Niepce se as-sociou a Louis Jacques Mande Daguerre (1787 -J 851) que,ap6s 1839, veio a ser conhecido como 0 inventor da daguer-reotipia. Desse processo que consistia em usar uma fina ca-mada de prata polida, aplicada sobre uma placa de cobre esensibilizada em vapor de iodo, resulta uma irnagem de altaprecisao, embora em apenas uma copia. Poucos anos antes,em 1835, 0 ecletico Willam Henry Fox Talbot (1800- J 877)produzia 0 primeiro cal6tipo ou talbotipo, uma tecnica quepermitia a reproducao da imagem em papel albuminado. En-quanta isso, em 1832, na recem-criada nacao brasileira, urnfrances radicado na Vila de Sao Carlos (atual Campinas),Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879), desenvol-via suas pesquisas sobre a reproducao de imagens medianteprocessos quimicos que ele pr6prio chamou dephotographie,termo que so se tornaria usual ap6s 1839.3

    Na realidade, entre fins da decada de 1820 e meados dosanos de 1860, indivfduos de diferentes lugares da Europa e dasAmericas debrucaram-se, isoladamente ou nao, na pesquisa dediversos processes ffsico-quimicos com 0 objetivo de captar efixar imagens na camera escura. A identificacao dos nomes deNiepce e de Daguerre como inventores da fotogmfia deveu-seem grande medida a publicidade dada a reuniao, promovida

    em 1839, por Francois Arago, membra do Pariamen to Fran-ces, na Academia de Ciencias e de Belas Artes da Franca paradivulgar as experiencias desses dois franceses.

    Como toda novidade, os primeiros anos da fotografia foramrnarcados par uma intensa polernica acerca de sua natureza. En-quanto uns conccbiam-na como uma tecnica precisa e exata quepermitiria ao homem moderno realizar seu sonho de conquista edomesticacao da natureza; outros encaravam-na como uma este-tica inteiramente nova que viria revolucionar 0mundo das artes.Houve, tarnbem, aqueles que, movidos por urn misto de encanta-mento e pragmatismo, nao se preocuparam com as debates te6ri-cos que a circundavam. Lancaram mao da camera escura, profis-sional ou amadoristicamente, para celebrar as conquistas damodemidade e embalsamar fracoes de tempos que rapidamenteiam se perdendo no turbilhao das mudancas em curso.

    Embora a analise da questao conceitual da fotografia es-cape aos objetivos deste livro, e importante lembrar que, entreos anos 20 e 40 do seculo XX, momento da chamada Revolu-qao Surrealis ta, muitos ja conceituavam a fotografia comoimagem hfbrida. Juntamente com as obras de pintores comoMir6, Picasso, Salvador Dali, Max Ernest, as colagens do fo-t6grafo Man Ray (1890-1976) subverteram as tentativas ante-riores de reduzi-la ora a um mecanismo tecnico altamente so-fisticado, ora ao campo do realismo estetico. Desde entao afotografia "encarna a forma hfbrida de uma 'arte inexata' e , aomesmo tempo, de uma 'ciencia artfstica', 0que nao tern equi-valentes na hist6ria do pensamento ocidental". 4

    Nomes como 0de Roland Barthes (1915-1980) e deCartier-Bresson (1908) estao associados a urn conjunto de questoes acer-ca da especificidade da linguagem fotografica e de sua possfvelsimilitude com outros tipos iconograficos. A partir dos anos 80

    I BELLONE. Roger. Laplw/oJifupi1ie. 2.ed . . Par is : PUF, 1997. p . .'i (Colecao Quesais-je").

    , No fi li al do l iv ro 0 lei tor encontrara uma se~iio intitulada Cnm%);ill, onde poderaser identi f icada a sequencia his torica dos principals exper imcntos que deram ori-gem a fotografia, des fatos rnais relevantcs sobre sua his loria e do, ter rnos tecnicosaqui ernpregados.

    , Recentcrnente Bor is Kossoy trouxe a luz dncurnentos que comprovam a descobcrtaisolada da fotografia por Hercule Florence. Sobre esta questao, ver: KOSSOY, Boris.Origem e expun.

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    Hist6ria & Fotografia

    do seculo XX, as teorias de Bar thes, sobretudo, tern funciona-do como ponto de partida para 0 debate e a reflexao sobrequestoes e problemas relatives a natureza da linguagem foto-grafica," Grosso modo, pode-se dizer que entre os teoricos dasirnagens visuais, em geral, ha uma tendencia a destacar maisas similitudes existentes entre a fotografia e as demais inte-grantes da "cornunidade de imagens", para usarmos uma ex-pressao cara a Barthes, Ja entre as analistas da imagem foto-grafica strito sensu, 16possfvel localizar pelo menos duastendencias analiticas. Alguns colocam a genese automatica dafotografia como urn divisor de aguas entre ela e as dernaisformas iconograficas; outros reconhecem sua genese automa-tica mas a definem como uma imagem hfbrida, ou seja, comourn amdlgama de natureza, tecnica e cultura, cuja analise naose reduz a urn iinico centro. Pressupoe a conjugacao, nem sern-pre simetr ica, de suas diferentes dimensoes,Como dito anteriormente, nao constitui objetivo nossodesenvolver uma his toria da fotografia nes te capitulo, Interes-sa-nos tao somente compreender os sentidos que os fotografos,profissionais e amado res, deram a fotografia entre os anos de1839 e as primeiras decadas do seculo XX. Os usos e funcoes aela atribuidos pcnnitem-nos es tabelecer alguns nexos entre assignificados das imagens fotograficas no passado e sua utiliza-((aO nos difcrenres campos da analise hist6rica na atualidade,

    natureza polissemica e hfbrida da imagem fotografica, Parte sig-nificativa da fotografia, profissional e/ou amadora, passou pelaconfeccao de retrato de individuos cujo desejo era transcenderas muros do anonimato erigidos pelo ritmo acelerado e voraz damodernidade. Desde cedo 0 ret rato fotografico se coloca comouma pro va material da existencia humana, alern de alirnentar amem6ria individual e coletiva de homens piiblicos e de grupossociais, Nao por acaso, antes de deixar 0 pais rumo ao exilio, afamil ia imperial doou a Bibl ioteca Nac ional sua imensa colecaode fotografias. Delas fazem parte mais de 400 retratos de D.Pedro II que hoje tern moti vado a pesquisa de mu itos estudiososbrasileiros." Dada a importancia do retrato fotografico na histo-ria dos usos e funcoes da fotografia, iniciamos com ele nossaabordagem sobre algumas das principais modalidades fotogra-ficas nas primeiras decadas de sua existencia,

    Em 1854, portanto quinze anos depois do reconhecimen-to oficial do daguerreotipo, 0caricaturista, desenhista e escri -tor Gaspard-Felix Tournachon, conhecido como Nadar (1820-1910), i naugura, no mimero 113 da rua Saini-Lazare em Pari s,urn atelier de ret ratos fotograficos. lmediatamente, 0 estudiodesse membra da burguesia da capital frances a torna-se urnlugar privilegiado de reuniao da elite artistica, intelectual ecientifica parisiense e estrangeira.

    Dentre seus c1ientes encontra-se 0 poeta Charles Baude-laire (1821-1867), que anos antes havia resistido bravamente adimensao artfstica da fotografia. Segundo Gisele Freund,' Bau-delaire era urn burgues de habito e gosto nobres, com urna con-cepcao de arte fortemente influenciada pelos canones da esteticapict6rica t radicional, criada a partir dos mestres da perspectiva.Seu conceito de ar te moderna pressupunha urn estreito dialogo

    a retrato fotogrdfico: didlogos com a pinturaDentre as rnodalidades da linguagem fotografica, 0 retrato

    pode ser visto como uma porta de aces so privilegiada - emboraexistam outras igualmente importantes - para percebermos a

    " Sobre este ace rvo, ver : VAZQUEZ, Pedro Karp. A lolo!:wjil/ IW lmpert). Rio deJaneiro: Zahar, 2002 (Colecao Descobrindo 0 Brasil): KOSSOY. Boris. Ori)iel l.1 eexpansd da fotografia IlO Brasil: .

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    H istoria & rot f)g r3 fi 3

    entre modemidade e tradicao. Para Baudelaire, era exatamenteessa articulacao entre tempos culturais diferentes que possibili-tava ao artista transcender a mesmice do universe cotidiano,atado a fins tipicamente imediatos, e dessa forma criar algo pe-rene. Como a fotografia era por ele concebida apenas como umatecnica exata e precisa, sem nenhum lastro com 0passado, Bau-delaire nao a inclufa no universo artistico,"

    Rejeicoes como essa explicam, pelo menos parcialmen-te, porque tantos fotografos daquela epoca passaram a produ-zir imagens fotograficas a partir de criterios que norteavam 0universo da pintura. Dialogar com a tradicao era, talvez, 0ca-minho mais seguro para validar a nova forma de olhar e dar aver 0mundo.

    Ao posar para Nadar, Baudelaire parece ter admitido quea genese automatica da fotografia nao se constitufa em urnimpedimenta para a realizacao de urn ideal artistico. No en-tanto, e importante lembrar que quando 0poeta entra no esni-dio da rua Saint-Lazare, ja eram c1ientes de Nadar figuras derenome da intelectualidade francesa, tais como, Vigny, Balzace Sarah Bernhardt, para ficarmos apenas nesses nomes, Issonos faz pensar que 0conceito de arte nao se restringia aos esti-los esteticos propriamente ditos. Assim como na pintura moder-na, a consagracao da estetica fotografica tambern dependia doreconhecimento publico da autoria da obra."

    A fotografia reproduzida na pagina anterior (Figura 1)nos mostra que 0 reconhecimento da autoridade de certos fo-t6grafos, como ocorreu com Nadar, por exemplo, transcendiaos muros de seus estiidios. Em Urn brasileiro cosmopolita noatelie de Nadar, t itulo dado a essa fotografia pela autora de 0espirito das roupas, apenas conhecemos a nacionalidade doretratado e a autoria da imagern. Todavia, 0 exercicio da infe-rencia associativa - marca indelevel do trabalho do historia-dor, em grande medida artifice da decifracao de pistas e sinais_ permite-nos afirmar, como faz a aurora do livro de onde foiextraida essa foto, tratar-se de urn retrato de urn membra daaristocracia brasileira, provavelmente ligado ao setor cafeeiro.Afinal, na segunda metade dos anos oitocentos apenas pessoasdesse segmento social podiam se dar ao luxo de viajar para aEuropa e sobretudo pagar a valor de uma fotografia assinadapar Nadar. Se comparada com a producao de outros fot6grafos-artistas - que ate meados dos anos de 1850 monopolizaram 0nascente mereado fotografico na Franca, Inglaterra, Alemanha, Se a po lemica sob re a nat ureza art fs ti ca ou nao da fotograf ia c aqui mcncionada, eporq ue foi encabccada por homens que exe rce lit grande inf1 u e nc i asobre us scto ressociais que mais consumiam as lmagens fotograficas naquele periodo: .1 aristocra-c ia e a nascente burgues ia , 0 que el es d iziam determinava tanto 0que deveria serfotografado e como 0fotogmfo devia proceder, Mais tarde, corn 0barateamcnto dafotografia, esse debate connnuou, com algumas alteracoes, a nortear 0 gosto c 0olhar dos segmentos socials que passaram a consumir a imagcm totngrafica.

    Figura f

    Sobre 0debate de Baudclnife com a fotografia, ver : TEIXEIRA COELHO (org.). Amodernidade de Baudelaire - t ex tos i ned it os . R io de Janei ro : Paz e Ter ra , 1988 .

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    de seus clientes, condicao necessaria para exprimir-lhes a in-terioridade e a alma dos rnesrnos, Nadar lanca mao do daguer-re6tipo para realcar certos traces da individualidade femininacultuados pelo imaginario do seculo XIX. Nesse perfodo, osatributos da mulher, sobretudo dos segmentos mais abastados,eram identificados com as ideias de delicadeza, de sensualida-de e de uma certa dose de misterio. Para exprimi-los, Nadar seapropria de alguns c6digos ja assentados no campo da pintura,A cornbinacao do nu e/ou seminu com as dobras irregularesdos tecidos, somada aojogo de c1aro/escuro, ressalta a expres-sao vaga e melanc6lica do olhar ao mesmo tempo em quemostra, esconde e sugere a sensualidade do corpo eo misterioda alma feminina. E assim que a fotografia ressalta os atribu-tos feminines ja consagrados pela l iteratura e pela pintura edevidamente assentados no irnaginario da epoca.

    A foto abaixo, feita pelo fot6grafo frances Gilmer, 1870,e outro exemplo do dialogo da fotografia com a pintura.

    COU:~,:A{)...H~q6R~ &." REFLlX015" Histori & Fotogr~fi;!

    enos Estados Unidos da America -, veremos que a fotografiadesse "brasileiro cosmopolita em Paris" guarda rnuitos pontosde convergencia com 0 padrao do retrato artfstico dos anosoitocentos.

    As linhas de fuga dos retratos, quase sernpre a meio-corpo,atraem 0olhar do expectador para os detalhes da roupa, das maose da expressao de seu olhar. 0 fot6grafo-artista quer, fundamen-talmente, exprirnir urna tese corrente no mundo da pintura, oaqual 0retrato artistico mais que informan deveria representar.Ou seja, "condensar em uma imagem simb61ica 0 essencial dasqualidades e das funcoes de urn individuo importante".'?

    Urn outro retrato, tambem feito por Nadar, indica-nos comoa relacao fotografia/pintura acaba por propor urna estetica distin-ta daquela produzida pelos canones pictoricos em funcao da tex-tura da imagem, da ausencia de cores e dojogo de luz e sornbra.

    A foto abaixo, a sensualidade da atriz Sarah Bernhardtcontrasta com a sobriedade da imagern masculina, reproduzi-da anteriormente. Interessado em captar os traces fisionomicos

    Figura 3Nessa imagern, produzida a partir da tecnica do col6dio

    umido e reproduzida em papel albuminado, a husca da sensua-Iidade ferninina se faz prcsente a partir da combi nacao dos mes-mos elementos que, na pintura, constroem a estetica da nudez,Ao corpo nu, naquele momenta restrito ao corpo feminine,

    Figura 2

    '0 BAURET. Gabriel. Appmche.< de III photographic. Paris: Nathan. 2002. p. 51.

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    COW;Ao "H ISTOOIA& . . . REm.Of>"

    agrega-se 0movimento dos eabelos e a identidade misteriosada mulher que, num movirnento semi-aberto, deixa ver frag-mentos de sua face, aumentando, assim, a dose de misteriosugerida pela fotografia. Sobre a extensao do teeido que for-ra 0 diva, desloca-se 0 olhar do expectador provavelmentecurioso e encantado com a suavidade das linhas do corpo nu,liso e sensual de alguern que quase revela sua identidade.Trabalhando com esses parfirnetros, autorizados pela pintura epela literatura, 0fotografo acaba por produz ir uma outra sinta-xe, propria da fotografia.

    Entretanto, 0 processo de individualizacao da fotografianao foi simples. Nao por acaso, muitos fotografos lancaram maode "uma serie de tecnicas como a goma bicromatada e 0bromo-leo", com 0 objetivo de aproximar a imagern fotografica dosparametres estet icos propr ios da pintura em pastel e agua-forte.por exernplo." 0 emprego de recursos como esse sinaliza ape-nas uma das dificuldades enfrentadas pela l inguagem fotografi -ea para se legitimar e autonomizar no universe artfstico.

    Nao podemos nos esquecer, no entanto, que as articula-coes entre tradicao e modernidade nao se reduzem a um pro-cesso de mao ilnica. Da mesma forma que a linguagem picto-rica cria limites para 0 desabrochar da sintaxe fotograf ica, 0seu desenvolvimento tarnbem repercute na primeira. Em 1865,pintores como Monet, Pissarro e Cezane realizaram 0 Sa/oilde Refuses/!. evento universalmente reconhecido como urn" FABRIS, Annatcresa, "A invencao da totogra fia: repercussoes soc ia is". III : FA"BRIS, Annatercsa (org.), Fotogrufia: usus e fUII("iies ' II} seculn XIX. Sao Paulo:EDUSP. 1998. p, J 7. (Cole~ao Texto & Arte. 1).

    " Quase que simultaeearreote it rcalizacao do Saloll de R eJ u. lb , urn grupo de pintorcs,e nc ao ec ad o p or Colbert, D el ac ro ix e D el ar oc be , c ri a a R ev ist a I .R Rea l isme . S e us t cx -lOS defendem a tese da "identidade entre rea lidade da natureza e rea lidadc oticu daimagern", Pam criar uma imagem "precisa", "exata" e. portanto "realism", os pintoreslancam mllo da lupa e de outros art iffc ios para "rcproduz ir os lW\'OS da realidade.impercepuveis a olho nu". Esse rnovimento nega 11 . fotografia 0 estatuto de arte; ciaapenas ~aceita como tecnica, Sobre essas qucstoes, vcr: FREUND. Giscle. Lafotogra-f iu como documen to .."dal. B a rc e lo n a: E d it o ri al Gustavo Gili, 1993. p. 68--69.

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    Historia & FotQgr~fia

    impor tante marco da luta por urna arte l ivre dos canones tradicio-nais e da ingerenc ia dos mecenas que inibiarn a criatividade dosartistas, Menos de tres decadas depois, a rebeldia contra a sub-missao da pintura a estetica greco-romana e renascentista culmi-na no movimento conhec ido como Cubismo. Af, seria rn criadasoutras fonnas de representacao da figura humana, da vida emsociedade e da natureza. Na nova estet ica, a fotograf ia funcionacomo urna aliada da pintura . A partir de imagens fotograficas,pintores como Pablo Picasso, por exemplo, produzem, em agua-forte e em oleo, uma nova estet ica pictorica, Outros pintores, naovinculados ao cubismo, tambern lancam mao da fotografia visan-do, com isso, aguc;ar 0olhar e captar detalhes do real nao percebi-dos a olho nu, Nesses casos, a intencao era produzir uma maiorsensacao de real ismo, Mas, vol temos, par ora, as representacoesfernininas veiculadas pela fotografia de f ins do seculo XIX.

    Figura 4Nessa imagem atribufda ao major Henry Arthur Herbert

    (1840-1901 ) - fotografo amador e membro do Parlamento J n-gles pelo distrito Kerry da Irlanda -, parece que 0 fotografo

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    C o u: J .; AO . . .H I ST 6 R I . . .. .&... RFFlf:

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    Hlstorla & Fotografia

    esfera da casa. Mulher-mae, mulher-esposa, rnulher-pilar daconservacao da familia, mulher-educadora, rnulher-enfermei-ra foram algumas das principais representacoes da figura fe-minina presentes na literatura ficcional, medica, nos relatesde viajantes e na historiografia do seculo XIX. EmA Mulher,o historiador Jules Michelet nao apenas vinculou mulher/fa-milia/estabilidade social, como tambem constmiu uma liga-9ao historica entre a Figura feminina e os offcios de fiar ecosturar.! ' A maioria das imagens pictoricas e fotograficasdas mulheres oitocentistas tambern relacionava mulher e ati-vidades dornesticas. Mesmo quando se encontrava na fabri-ca, sua representacao simbolizava a extensao da casa. Naoseria, pois, incorreto dizer que a linguagem fotografica tam-bern funcionava como urn dos principais suportes a corrobo-rar com esse esforco de naturalizacao da condicao feminina.

    Imediatamente inicia-se uma dernocratizacao dos valo-res e dos signos fotograficos. as amincios em jornais divulga-yam 0endereco do novo profissional da fotografia, bern comoo raio de extensao de sua producao, Como pequenas fabricasde ilusao, seus estiidios atraiam homens e mulheres que, indivi-dualmente ou em grupos, davam vazao as suas fantasias. Paratal, os esnidios ofereciam uma variedade de apetrechos utili-zados na montagem de cenarios de acordo com desejo deauto-representacao de seu publico, Replicas de tapetes per-sas, cortinas de veludo e brocado, almofadas decoradas, pa-nos de fundo pintados com cenas rurais etou urbanas, roupasde gala, instrurnentos musicais, bengalas, sornbrinhas de sedaetc., eram disponibilizados aos clientes interessados em atri-buir realidade a seus sonhos e desejos.

    A era dos estudios fotogrdficosJa em meados do seculo XIX, uma inovacao recnica nao

    apenas popularizaria 0 retrato fotografico, retirando seu mono-polio dos membros da aristocracia e da alta burguesia, comotambern criaria as condicoes para a irnplementacao da fotogra-fia cornercial e industrial. Em 1854,0 fotografo frances AndreAdolphe Eugene Disderi (1819-1889) cria urn aparelho que per-mitiria a tomada de ate oito cliches simultaneos, iguais ou dife-rentes, em uma iinica chapa, Estava inventado 0 charnado car-t iio de visifa, urn retrato de cerca de 9,5 x 6,0 em, montado sobreurn cartao rfgido de 10 x 6,5 ern, aproximadamente. Essa inova-traO tecnica baratearia sensivelrnente 0 custo da fotografia.

    Figura 6,. MICHELET, Jules. A IIUI/her. Sao Paulo: Mar tins Fontes, 1995, p. 14. E importantcIernbrar que tal constru ,fio nao res is te a uma ana lise empii ca . Muuos estudos so-bre a rnulher em sociedades do seculo XIX ou de per lodos ameriores tern mostradoque a divisao sexual do trabalho n50 necessariarnente lega it figuru feminina papeise/ou ali vidades propri~sdo rnund 0 < .1 0n es n c o,

    Travestidos de nobres e burgueses, esses homens e mu-lheres nao conseguiam, como nos lembra Fabris, escamotearsua origem socioeconornica, A pele mal tratada e 0 semblante

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    HiSloria & Fotografia

    cansado, combinados com a rigidez do corpo, niio desapare-ciam sob os disfarces sociais e acabavam por denunciar suaposicao subaltema na estrutura social.

    A citacao na pagina seguinte ~ extrafda, entre tantas ou-tras, de urn jornal da cidade rnineira de Juiz deFora em 1883-evidencia pelo menos His dos novos atributos da fotografia daera dos esnidios. 0 primeiro se refere a democratiza9ao doconsumo de sua imagem, 0segundo ao potencial de mobilida-de espacial dos fotografos e de suas criacoes. Ja 0 terceiro dizrespeito ao aparecimento de novos negocios e offcios ligadosao rnundo da fotografia, tais como as ernpresas produtoras deequipamentos fotograficos, as casas especializadas na vendade filmes, rnaquinas e papeis destinados a reproducao da ima-gem, de porta-retratos e sobretudo a formacao dos profissio-nais da fotografia. Em fins do seculo XIX alguns fotografosmantinham esnidios fotograficos com filiais em diversas cida-des. Para tal, empregavam outros fotografos que niio apenasrespondiam pela producao fotografica dos estiidios, como tam-bern exerciam a funciio de fotografos ambulantes.

    Esse foi 0 caso, par exemplo, do proprietario da Photo-g r afi a A /e ll ul , Alberto Henschel (1827-1882), que se associacom outros fotografos e em 1867 inaugura urn estiidio foto-grafico em Recife e outre em Salvador. Tres anos depois. abreuma filial no Rio de Janeiro e, em 1882, outra em Sao Paulo.Anos mais tarde, a recem-criada Belo Horizonte abrigaria maisurn esnidio da Photografia Alemii. Henschel e imimeros foto-grafos brasileiros se deslocavam pelo interior do pais levandoas novidades que iam surgindo nos grandes centros da Europae dos Estados Unidos, 0que certarnente contribuia para a disse-rninacao de certos signos fotograficos.'4

    PhotografiaAlemaRuado Espirito SantoPerto doTcatroOs abaixo assinados tern a honra de partieipar ao respcitavei pu-blico desta cidade que aeabamde rnontar 0 sc u atelie na ru a aei-maoTrabalham todos as dias e com qualquer tempo.Tiram retratos de todos os sistemas, garantindocomplcta pcrfei-ya O nos trabalhos; e assirn esperam as anunciantcs mcreceremavaliosa protecao do ilustrado publico desta cidadc.Precos:Retratos canoes de visita, duzia 6$000Retratos cartoes de visita, abri!hantados,duzia 10$000Retratos car toes imperiais abr ilhantados, duzia !8$000Tendo de seguir em poueo tempo para Barbacena e S. Joao d'EIRei prevenimos ao respcitavel publico que a demora nesta cida-de sera pequena.Osfot6grafos. Passig & [rmiioY

    A proposito da dissemina9lio/incorpora~ao dos padroesfotognlficos socialmente definidos, 0 relato de uma senhoraitaliana parece-nos emblematico. Conta-nos ela que cresceravendo uma fotografia de tres tias, ja falecidas, irrnas de suamae. Na imagem, as tias se encontravam assenladas em urnbanco do jardim da casa materna e no colo de cada uma delashavia urn instrumento musical. Anos mais tarde, quando adulta,"De ncordo com Christo. 0preen de urn lngresso para urn camarotc noTeatro Novelli,em Jui z de Fora. er a, na epoca , de 25S000. Is so nOS d:l l ima ideia do publico queestava em condicoes de adquirir cartees de visita, De acordo com Karp Vazquez. nadccada de 1870, Christiano Junior e Joaquirn Insley Pacheco, dois fotografos do Riode Janei ro, ofereciam a duzia de ret ratos ern formam ( ar le d e ... site pOT 5S000 c 0fot6grafo B. Lopes chegava a prestar 0mesmo service por a1~ 3$000. Na epoca urndaguerreodpo custava entre 5S000 e 8Sooo. Sobre essas qucstoes, CHRISTO. Maralizde C. V. A fotografia a tr aves dos anuncio s de j omais . Ju iz de Fora. ]877 1910 .Loc s : R ev is ta d e Hisuuia. Juiz de Fora: UFJF, v 6. n. l , 2000. p. 130 e KARPVAZQUEZ. Pedro. Afo/llgnlfia JW Imperio. Rio de Janei ro: Zuhar . 2002. p. 29.

    " Aos que se inreressarem por urna pesquisa sobre os estudios fo\ogrMieos no Brasildo seculo XIX. vcr: KOSSY, Boris. Origens eexpunsad/l.r()lo!;r~f;a 110 Brasil.S ec ul X I X . Rio deJaneiro: Fundacao Nacional de Arte, I 'i ll ]: KARP VAZQUEZ.Pedro. A .forollruj iu I/O Imperio Rio de Janeiro: Zahar, 2002 (Colccao Descobrin-do 0Brasil).

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    H i ,t 6 r ia & F o t og ra fi a

    essa senhora perguntou a mae por que ela nao se interessara,como as tias mais velhas, pela rmisica. Para sua surpresa, amae the revelou que suas irmas, as t ias, jamais tinham apren-dido a tocar qualquer instrumento musical. Decepcionada, asenhora the indagou sobre a razao daquela fotografia. Commuita naturalidade sua mae disse-lhe que "era costume da epocaque mocas de famil ia de c1asse media se apresentassem comos modos das jovens de classe al ta" .I~

    Alem do retrato individual, os fot6grafos ambulantes eos esnidios de fotografia tambem se dedieavam a producaodos albuns de familia, de grupos de profissionais, de amigos edos albuns de eidades. Em todos esses trabalhos 0 fotografo,independente ou vinculado a alguma empresa, desempenhavao papel de mediador da cultura do olhar fotogriifico, mais tar-de seguido de perto por amadores. Nao por aeaso, Miriam Mo-reira Leite chama a atencao para a uniformidade

    integracao a que a familia sujeita os seus novos rnembros":"cria elos, institui e preserva a mem6ria familiar. Quando feitaem esnidio, a auto-imagern da familia somava-se a interferenciade urn outro olhar: 0do pr6prio fot6grafo, que tambern possuiaseus criterios esteticos e seus condicionamentos tecnicos,

    Em0 espirito das roupas, Gilda de Mello e Souza lan-cou mao da fotografia para, a partir do tema da moda no secu-1 0 XIX, retlet ir sabre questoes l igadas ao conceito de c1assesocial e de sexo.

    entre as retratos antigos de farnflias judias russ as, bra-silciras, arabes, italianas e succas que imigraram paraSao Paulo, a ponto de os retratos de uma famflia ju-dia russa (inadvertidamente) tercm sido escolhidospara ilustracao de urn artigo sobre a Iamilia patriar-cal hrasi leira."

    IFigura 7

    o padrao a que a autora se refere diz respeito amaneira derepresentar 0 grupo familiar. Nas fotografias de familia - fos-sem elas produzidas em estiidios au nao - 0que interessava eraa representacao dos papeis sociais. E com eles que se cria aidentidade do grupo e se institui a mem6ria de sells membras.Segundo Bourdieu, "0 album de familia exprirne a verdade darecordacao social". Funeiona como uma especie de "rita de" E ntre v is ta R e IalO de M ar ia G ra zia S ca gl ia L i u ha re s. A s 1 0 1f0 Du t r a, t ic d 1 9 7 8 . A ce rv n

    d e e nt re v is tas da au t o ra ." MOREIRA LEITE, Miriam. Retratos de [amilia. 2 .e d v cr , Sao Paulo: EDUSPfFAPESP, 2000. p. 76.

    " BOURDlEU. apud. LE GOFF, Ja cq ues , M em 6ria . In : EJI(.'id"l'idiu Einaudi. Por-to: lmprensa Nacional-Casa da Maeda, 1884, p. 39. v.l

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    Coucso "H

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    do barateamento da imagem fotogrnfica, acabou por mflacio-nar seu preco, cujos calculos computavam os gastos com ossuportes destinados a colorizar a imagem e com 0 pagamentodo trabalho dos miniaturistas enearregados de pintar a fotogra-fia, alem dos custos da pr6pria fotografia. Em virtude disso, afoto-pintura funcionou com uma barreira socioeconornica

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    ele, aocontrario, se completa com os demai s pianos da imagem.Ao fundo esta urn dos leones da cidade-Iuz: 0Areo do Triunfo.Projetado para eeIebrar a vitoria de Napoleao Bonaparte emAusterlitz, em 1805, esse marco da grandeza da nacao francesa,conclufdo em 1836, remete expeetador ao passado e a tradi-s:ao. Entre sua silhueta e 0 guarda de transito, estao os autom6-veis que vern e vao, leones, por sua vez, da veIocidade do pro-gresso e da modemidade. As mulheres sobre seus triciclostambern sugerern uma certa combinacao entre tradicao e mo-demidade. Se, por urn Iado, a presenca feminina ja ganha asruas; por outro, eIa se loeomove no espaco publico com urnvefculo que nao e tao moderno quanto 0 autom6vel, 0 qual,naqucIe perfodo era sempre guiado por homens. A conjugacaoautom6vcI/tricielo desperta, no observador, imagens assoeiadasa urn tipo de agilidade superior a do movimento do carpo huma-no. Fortalecern a crenca na capacidade do hornern conquistar edorninar, via teenologia, a natureza. Diante do guarda de transi-to, no plano inferior da imagern, encontrarn-se as linhas quedernarcam, nochao, uma Iinguagem propria das normas de tran-sito, signa da disciplina espacial urbana, condicao de integra-rraoe sobrevivencia suiurbis. No conjunto, a imagem exala con-tentamento, higienizacao e interacao entre as pessoas. Agradavele bonita como urn cartao-postal:

    A identificacao entre modernidade e cartao-postul nao screduz a sua linguagem iconografica. Na rcalidade, 0 cartao-postal e iarnbem uma modalidade nova de correspondencia. Euma comunicacao constituida de tcxto e imagem visual que ul-trapassa dais tipos de fronteiras. A espacial, geografica, e a daindividualidade da correspondencia. As palavras do ernitente,livres do sigilo que os envelopes garanlem aos tcxtos das cartas,vao sc socializando ate chegarern ao destinatario. 0 fot6grafo,interlocutor oculto dessa comunicacao rnultipartilhada, produza cornprovacao do que oolho do(s) destinatariots) nao pode(m)ver. No lado oposto do cartao, as irnagcns, Icones de umaleitura positiva e otimista da modernidade, funcionam como

    H; stUr ia & F o t og r a r i a

    exercfcio e das praticas civilizadoras, iam construindo suasversoes higienizadas, oficiais e modern as do espaco publico.Nao por aeaso, os predios publicos e as construcoes arquiteto-nicas esteticamente mais arrojadas foram os prineipais alvosdos produtores dos cartoes-postais, Consumindo os fcones queas representavam, 0 turista, que durante suas viagens inter-rompia a mesmice de seu cotidiano, queria mostrar a seus pa-rentes e amigos que tarnbem ele participava do "avanco dacivilizacao", simbolizada, nos cartoes-postais, por urn mundoordenado por signos ja identificados com as nocoes de bela,prazer e avanco, sobretudo tecnol6gico.

    F igura 9

    Essa imagem nos coloca diante de urna outra face do car-tao-postal: sua dimensiio pedag6gica. Ve-se que 0 foco princi-pal do fot6grafo recai sobre a figura do guarda de transite.Entretanto, 0 sentido pedag6gico da imagem nao se reduz a

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    CUl[y.\o 'IHISTORIA &... REHfX()(S"

    entre os que as cultuavam. Em lorna dos significados a elasatribufdos, os homens tanto podiam se unir quanto se separar,

    Nas sociedades predominantemente laicas do mundomoderno, mudam as formas de reverenciar a morte e a memo-ria do morto. As crencas sobrenaturais e os rituais funebresdeixam de ser defendidos tao apaixonadamente. A celebracaoda morte ganha urn calendario pr6prio e urn espaco que, dia adia, vai se tornando mais asseptico e impessoal. Ainda assim,durante 0 r itual destinado a celebrar a mem6ria do morto, seuretrato feito em vida e, comumente, distribuido entre os queparticiparam de seu cotidiano. Para cultuar sua lembranca, afotografia e urn dos recursos mais utilizados.

    No inicio de 2002, 0Museu D'Orsay de Paris apresentouuma exposicao intitul ada Ie de rnier portrait. Em meio a escu1-turas e pinturas de diferentes perfodos da modernidade, desta-cavam-se as fotografias que, entre 1854-60, tarnbem registra-ram "0 ultimo retrato" de criancas, jovens e adultos. Essecostume de fotografar a morte recern-chegada, tao corriqueirona Franca oitocentista, era partilhado por muitas outras socie-dades do mundo moderno. Ao retratar urn ente querido queacaba de morrer, a imagem fotografica faz reviver, em lingua-gem e estetica seculares, "algo que se asseme1ha ao estatutoprimitivo das imagens: a magia". Nesses casos, a fotografiafunciona como urn "substi tute da posse de uma coisa ou pes-soa querida, posse que Ihe confere algumas das caracteristicasdos objetos unicos." Sempre que vista, a imagem estimularalembrancas e, quem sabe, aplacara a dor da perda.

    Naquela epoca, a confeccao do chamado ultimo retratoseguia urn padrao estetico dado pela pintura. No seculo XVI,o pintor italiano Jacopo R. Tintoretto (1518-1594) pintara urnquadro retratando a morte de sua fiIha. Sua estetica da represen-ta~ao da vida que acabara de seesvairtomou-se urn padrao para

    Hi Sioria & Fotograti a

    uma especie de guia para a imaginacao tanto do ernitente damensagem quanta de seu(s) receptor(es).

    Se os albuns de familia podem funcionar como fonte parao historiador problematizar temas ligados a hist6ria da vidaprivada, os cart6es-postais, hoje pecas cruciais dos acervosdas cidades, sao documentos que tanto inforrnam quanta per-mitem a analise das representacoes do espaco publico,

    Afotografia e as representaciies da morteVma muitiplicidade de mites, positivos e negatives, re-

    lacionados com 0 tema da morte marca a trajet6ria do homemao longo da hist6ria da humanidade, Em todos os tempos, apassagem ~ definiti vapara uns, temporaria para outros - da vidapara a morte e celebrada por diferentes rituais funebres, Ao exe-cutar seus rites, os homens nao apenas criam forrnas para do-mesticar a dor e a medo diante do sentimento de perda que amorte acarreta, como tambem estabelecem normas para regularas condutas dos membros das comunidades a que pertencem.

    E assim que a nocao de morte gloriosa fabrica 0mitodo her6i, cuja vida sera reverenciada pelos vivos segundourn calendario pr6prio. Hades, Inferno, Purgat6rio, Parafsosao alguns dos Iugares-Icones que a tradicao grega e cristadestinaram a vida ap6s a morte. As representacoes de cadaurn desses espacos - celebrados pela li teratura, rmisica e ar-tes plasticas - correspondem explicacoes para 0 aicance eolimite da acao humana.

    Nas sociedades tradicionais, os ritos funebres tamberninclufam a confeccao de mascaras mortuarias, as quais naoapenas guardavam as propriedades do morto, como tambernreverenciavam sua mem6ria. Expostas em lugares especiais,elas eram sacralizadas e, como tais, institufarn, divulgavam,reforcavam e alimentavam 0 sentimento de pertencimento ,.\SONTAG, Susan. Ensuios sobrefotogrofia. Lisboa: Dom Quixote , 1986, p_ 137

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    outros pintores e, mais tarde, para os fot6grafos oitocentistas,Nao por acaso, muitas dessas fotografias eram assinadas porfot6grafos-artistas.

    Ainda hoje, 0 ultimo retrato, feito no espaco domestico, eurna tradicao cultuada em cer tas comunidades rurais. Todavia,nesses casos, ele nao apenas tern urnoutro significado, como tam-bern e reservado aqueles que na o tiveram tempo de experienciar avida, os recem-nascidos. Na fotografia que se segue, extrafda dolivro Terra, 0 fot6grafo Sebastiao Salgado explica que,

    Segundo a crenca popular do Nordeste, quando mor-rem anjinhos, ainda nao acostumados com as coisasda vida e quase sem conhcccr as coisas de Deus, Cprecise que seus olhos sejarn mantidos aber tos paraque possum encontrar com mais Iacilidade 0caminhodo ccu, Pois com as olhos Icchndos. os anj inhos erra-riam cegamente pelo limbo, scm nunca cncontrar amorada do Senhor. Ceara. 1983Y

    Figura 10

    ,., SALGADO, Sebastiao, Tetra. Silo Paulo: Cornpanhia das Lerras, 1997, p. 140.

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    H ; ,( 6 ria & F otogr afia

    Alem dos olhos semi-abertos, a crianca ja morta traz nac abe ca u r na cruz sustentada por um a e sp e ci e de toea. Essa cruz,sfmbolo do perteneimento ao mundo cristae. funciona comoguia para os olhos desprovidos de conhecimento sobre 0 traje-to a ser percorrido. Para os familiares do bebe recem-morto, afotografia funcionara como a prova de que a crianca partiupreparada para sua longa viagem em direcao ao paraiso. Parao historiador, interessado na decodifieat;ao da imagem, essetipo de fotografia e 0 testemunho de uma das formas de mani-festacao do irnaginario popular cristae.

    No seculo XX, as representa

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    COL{~O ""HISTOIUA & . .. R tf L[X(}ESI!

    Figura 11Nessa fotografia os mernbros do bando de Lampiao mais

    pa~~~empe9a~ d.eurn museu macabro. Sem qualquer intencaoartisnca, 0objetivo do fot6grafo e informar 0 desbaratamentod.e~m dos iiltimos redutos do banditismo social no sertao bra-sileiro, Ironia .ouAnfi?, 0 fato e que a imagem tarnbern poe adescoberto a violencia dos meios de combate it a9iio de gruposque. como esse, eram considerados uma arneaca a estabilida-de da na9ao ~rasileira. Vestimentas, armas, 0 classico chapeudos. cangaceiros, botas, tudo ricamente omado, querem sim-boh~ar 0 ~m da rebeldia camponesa que a cultura excludentee Iatifundista da Republica transformara em sirnbolo do caos eda anarquia. As imagens das cabecas de Lampiao e seu bandaparecern ser urn caso especffico de dialogo da modemidadecom a tra~i9iio. Expor partes do corpo de rebeldes, sobretudoa cabeca, ~ u~.costume antigo." Para ficarmos apenas no pas-sado da historia brasileira, lembremo-nos do corpo de Tira-dentes dilacerado, exposto em pontos do caminho entre Rio,. E lmportante lem .. bli b rar que as cabecas do s cangacei ro s fica ra m ex p o st a s a v i s i t a c aopu lea em Salvador ale 1969 d decisao i . Y quan 0 uma eci sao jud ic ia l determinou que f ossem sepultadas. -

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    Historia & Fotografia

    de Janeiro e Vila Rica. Pelo que se sabe, sua cabeca teria fica-do exposta na capital da capitania de Minas Gerais, de modo amanter viva a lernbranca dos custos de uma rebeliao. Quandoveio a Republica, Pedro Americo criou 0ultimo retrato de Ti-radentes, ja entao identificado como her6i national.

    Mas a divulgacao da fotografia na imprensa nao se res-tringiu ao tema da morte. As cclebra90es e comernoracoesdos atos publicos dos chefes de Estado e do cotidiano desuas famflias, as manifestacoes politicas, as conquistas tee-nologicas, as reformas no espaco publico, enfim, uma gamavariada de temas e acontecimentos foram, com 0 tempo, pre-enchendo as paginas dos jornais, madificando sua estetica e,sobretudo, contribuindo para criar urna outra relacao doshornens com as imagens.

    Fatog rafia , imprensa e politicas publicasDentre as campos de visibilidade da imagem fotografica

    na imprensa de fins do seculo XIX e inicio do seculo XX,estavam tambern as representacoes sobre as classes sociais.Nesse perfodo, 0 jornalista americano, Jacob-August Riis(1848-1914), especialista em cr6nicas policiais, descobre apoder de persuasao e propaganda da fotografia e inaugura urnnovo estilo jomalistico: 0documentario ilustrado (Figura 12).

    Tal qual no ultimo retrato de Lampiao e de Che Guevara,ai tarnbern a solidariedade entre tex.toe imagem visa a forma-9ao de opiniao dos leitores de jornais, A diferenca e que ostemas de Riis privilegiavam a vida e nao a morte. Seu olhar sedirigia para a sociedade concebida a partir de dais grandesblocos: os pobres e as ricos nos Estados Unidos da America.As imagens dos pobres traziam a tona 0 tema da sociedade demassa, dos trabalhadores imigrantes, dos desempregados, men-digos, em suma, do universo social identificado com as "classesperigosas". Enquanto a producao das imagens de trabalhadores

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  • 5/14/2018 borges, maria eliza linhares - histria & fotografia

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    Na transicao do seculo XIX para 0seculo XX, os grandes cen-tros urbanos, sobretudo aqueles ligados a producao industrial,recebiarn urn grande fluxo de migrantes. A organizacao de seusespacos vai sendo profundamente alterada pela presens:a denovos atores sociais, cujas vidas os decretos municipals tenta-yam regular e controlar. Ferreiros, sapateiros, costureiras, bom-beiros, operarios de fabricas, vendedores ambulantes de todoo tipo, desempregados, mendigos e os chamados vagabundostransitavam pelas ruas, bairros e pracas antes reservados aosantigos habitantes. Em meio a tais transformacoes. criou-se 0panico das massas, das multid6es sem identidade propria, ime-diatamente identificadas com a desordern. Para manter 0 con-trole sobre 0 processo de alargamento das fronteiras do espacopiibl ico, as autoridades criavam uma serie de poI iticas publicas,alicercadas por uma enorrne literatura, sobretudo medica e jurf-dica, que a mfdia seencarregava de divulgar. Texto e imagemcompun ham a nova 1inguagem destinada a domes ticar 0espacoem diferentes metropoles da Europa e das Americas."

    Longe de ser urn documento neutro, a fotografia crianovas formas de documentar a vida em sociedade. Mais quea palavra escrita, 0desenho e a pintura, a pretensa objetivi-dade da imagem fotografica, veiculada nos jornais, nao ape-nas infonna 0 leitor - sobre datas, localizacao, nome de pes-soas envolvidas nos acontecimentos - sobre as transforrnacoesdo tempo curto, como tambem cria verdades a partir de fan-tasias do irnaginario quase sernpre produzidas par fracoes daclasse dominante.

    I!italianos, chineses, judeus, irlandeses etc., sobretudo dos de-sempregados ou subempregados, eram guiadas por urna interpre-taqao rnoralista e reformista, safda do olhar xenofobo de medicosejuristas de fins do seculo XIX, as representacoes fotograficas daburguesia pautavam-se par valores positivos, como a belezaplastica, a felicidade, a uniao da famflia, 0 lazer etc."Ao relacionar a pobreza com as representacoes do aban-dono, da enfermidade, da pregu ica, do crime e da subnutricao, 0fotografo punha suas imagens a service dos discursos dos de-fensores das polfticas sanitaristas, das reformas urbanas e daaprovaciio de leis de controle e disciplinarizacao do trabalho.

    Figura 12Ainda que circunscrito as grandes cidades norte-america-

    nas, 0 trabalho fotografico de Riis dialogava com 0 de outrosfot6grafos-jomalistas situados em outros espacos gcograficos.

    " Ao lado das imJgcns sohrc a pobrcza . c res co . t ambcm nes sc penodo, a producaofotngrafica especializnda em documentar as doencas Sua circulacao tinha destinaccr to: as revis tas rnedicas, Ao Indo das nnagens da entcrmidcde, encontram-se asdos laborator ies de pcsquisa, onde se v e medicos e pesquis~dores em seus locals detrabalho, 0 par saudc/doenca orienta as rcpre>cnta~oc, do e'ipa(:o socinl idcntificn-do pclas idcias deordemldesurdcm. Sobre essas questoes, ver : SILVA. James R. Deaspectos qunse I loridos. Fo!Ogrnfias em revis tus medicas paulistas , 18981920.Revist a Brasileira de HiwirilJ - Crencia c Sociedade. S50 Paulo: ANPUHIHumanilas Publica,,6es. v, 21, n. 41, 200!. p. 201