bonecas de maçaroca e machadinhas descobrimos o … · ninguém sabe porque falta fazer um...
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Bonecas de maçaroca e machadinhas
DESCOBRIMOS O PATRIMÓNIO COLONIALQUE JOACINE QUER DEVOLVER
Lista de artefactos e obras de arte? Não há. E pedidos de outros países? Também não. Só
os índios em Manaus tentaram recuperar as suas máscaras - mas a pretensão foi recusada
Ninguém sabe porque falta fazer um inventário. E também ninguém(oficialmente) pediu nada. Mas há intenções (de Angola, que quer bonecas e
machadinhas) e um "objeto de desejo" do Brasil, a Carta de Pêro Vaz de Caminha.Por Sara Capelo
OAs bonecas do Su-doeste de Angolaforam citadaspelo governo an-golano como umbem a devolver.Mas estas chega-ram ao museunuma expediçãocientífica, diz odiretor do museu
14artefactosdosjurupixunaestão na cole-
çãodo Museuda Ciência da
Universidade deCoimbra. Há ain-
da outros qua-tro dos ticuna
AO MNE E ÀDGPC NÃO
CHEGOU ATÉAGORA
NENHUMPEDIDO DE
RESTITUIÇÃO
Assimque viram as
máscaras com a formade animais, os índiosticuna reconheceram--nas como suas. Eram
de vime e pano retirado, ali por1783 ou poucos anos depois, deuma árvore de nome Candixuba.As bocas eram uma larga lista pretaaté às orelhas, como era costumeentre os ]urupixuna - os índios daAmazónia cujo nome significa pre-cisamente bocas negras, por tingi-rem as suas.
Estavam em Portugal desde o fimdo século XVIII, levadas pelo natu-ralista Alexandre Rodrigues Ferrei-ra, que durante nove anos percor-reu 40 mil quilómetros em territóriobrasileiro. E regressavam naqueleabril de 1997 pela primeira vez aoBrasil para uma exposição em Ma-naus. Os jurupixuna tinham-se ex-tinguido, mas os ticuna ocupavam o
mesmo território e mantinham ri-tuais próximos. Sentiam-se herdei-ros. Impuseram a proibição da en-trada de mulheres na sala onde es-tavam expostas as 27 máscaras pararituais exclusivamente masculinos.E negociaram até a presença de umdeles na sala para garantir que ne-nhuma as observava.
Depois, pediram a restituição. A
exigência foi-lhes negada pelos or-ganizadores da exposição - que in-cluía, segundo noticiou o jornal Fo-lha de São Paulo, 250 peças, comoflautas, arcos e flechas depositadasna Academia das Ciências de Lisboa
e da Universidade de Coimbra.O tema da devolução de patrimó-
nio indígena estava quente nessa
época no Brasil: cerca de uma déca-da antes, os índios krahô tinham
conseguido reaver um machado ce-rimonial de pedra que estava no Mu-seu Paulista. E três anos mais tarde,os ticuna criaram uma moção paraexigir ao Nationalmuseet, da Dina-marca, a restituição de um manto ce-rimonial de penas que fora expostoem São Paulo. Tal como no caso por-tuguês, a pretensão foi-lhes negada.
A história das máscaras dos juru-pixuna é, a vários títulos, exemplarna discussão sobre a devolução de
património colonial, que tem tido
grande expressão em França (quejá decidiu devolver peças ao Be-nim) ou na Holanda (onde as nego-ciações estatais com o Sri Lanka
parecem ter falhado). E foi motivode debate com uma proposta de
Joacine Katar Moreira para quefossem alocadas verbas no Orça-mento do Estado para "um grupode trabalho composto por museó-logos, curadores e investigadorescientíficos" inventariarem o patri-mónio colonial em Portugal.
Inventariação nacional por fazerA surpresa dos índios ticuna ao en-contrarem as máscaras poderia co-locar-se também nos dias de hoje.É que não se tem conhecimentoabsoluto da extensão do patrimó-nio de outros países depositado emPortugal. A Direção-Geral do Patri-mónio Cultural (DGPC) não respon-deu sobre se já se iniciou o traba-lho de identificação de peças ouartefactos em organismos do Esta-
do. Numa resposta por email à SÁ-BADO, o Ministério dos NegóciosEstrangeiros fez questão de subli-nhar que "o Governo respeita as
decisões da Assembleia da Repú-blica" e a intenção do Livre/Joacine"foi rejeitada". A SÁBADO sabe quenão existe uma lista oficial com o
património de origem colonial.
Quais são, afinal, os objetos nocentro da discussão?
Os Museus de Etnologia e de Ar-queologia, em Lisboa, são imedia-tamente apontados como contendo
peças daqueles territórios. Tambéma Academia das Ciências, a Socie-dade de Geografia, o Museu Ar-
queológico do Carmo (onde existe,
por exemplo, uma múmia pré-co-lombiana exposta) ou as Universi-dades de Lisboa e de Coimbra -que não conseguiram responder a
tempo do fecho deste artigo sobre o
património que detêm - ou a Uni-versidade do Porto, onde através de
permutas, compras ou recolhas es-tão "várias peças arqueológicas e
etnográficas oriundas de culturas e
civilizações de praticamente todas
as regiões do mundo, não apenasdas chamadas antigas colónias por-tuguesas", explicou fonte oficial.
Ali existe uma múmia e umamáscara funerária do Antigo Egito,esculturas astecas, ferramentas da
Papua-Nova Guiné, máscaras ceri-moniais e relicários da Bacia do
Congo, para citar apenas algumas.Nenhuma foi alvo até agora de umpedido de restituição.
Depois, existem peças dispersas.No espólio do Museu Municipal O
O de Faro existe "uma única" peçaafricana, uma estátua com o nomeNkisi Nkondí que chegou a receberuma oferta de 2 milhões de eurosde uma galeria londrina. "É uma
peça importante no acervo do museu", refere o diretor, Marco Lopes,citando um estudo que coloca a
doação em 1917, pelo coronel João
Viegas, que recolheu a peça nafronteira com o Congo.
Apesar de assumir que "existembens culturais coloniais que pode-riam ser devolvidos", o antigo dire-tor da Biblioteca Nacional c profes-sor no King's College, FranciscoBethencourt. entende que não se
pode indicar objetos de modo indi-vidual. Teriam primeiro de ser in-ventariados por "uma equipa con-junta de especialistas portugueses e
dos novos países independentes". E
isso não foi feito.
MUSEUSUNIVERSITÁ-
RIOS, DEETNOLOGIAOU A TORREDO TOMBO
ESTARÃO NOCENTRO DO
DEBATE
Os manuaisdevem perder o
eurocertrismo,exemplo da
referência aos
escravos como"produxs de
enorme valorcomercial", dizJoacine Katar
Moreira
OA Universidadede Coimbra diznão ter registode "qualquercontacto recentecom o povoticuna"
A Carta de Pêro Vaz, um "desejo"O Instituto Brasileiro de Museus
(Ibram) assume desconhecer o pa-trimónio existente em Portugal. A
"questão da repatriação de bens
culturais é assunto ainda embrioná-rio", explicou fonte oficial do Ibramà SÁBADO. Não existe, por isso, "umlevantamento pormenorizado des
tes acervos", nem "um grupo institu-cionalizado sobre o tema" (apesarde haver discussões no Comité de
Prevenção ao Tráfico Ilícito do Mer-cosul Cultural), nem "consenso acer-ca de pedidos formais de repatria-ção". Ainda assim, o Ibram aponta aCarta de Pêro Vaz de Caminha - umdos tesouros da Torre do Tombo -como um "objeto de desejo".
O Ministério dos Negócios Estran-
geiros e a DGPC disseram exata-mente o mesmo: nenhum tem "re-
gisto de qualquer pedido de resti
tuição de obras". E a SÁBADO es-barrou num muro de não respostasda parte de outros governos (Ango-la, Moçambique, Cabo Verde, Ti-mor), que tentou contactar por telefone e para os quais enviou perguntas por email.
Entre todos os países, Angola temsido o único a expressar publica-mente a vontade de reaver algunsbens, nomeadamente os que estãonos Museus de Etnologia e de Ar
queologia. No fim de 2018, a entãotitular da pasta, Carolina Cerquei-ra, listou ao Expresso as peças quesabia estarem nessas entidades:
"Máscaras, cestarias, cerâmica,estatuetas de arte Mbali, machadi-nhas polidas do Neolítico, artetchokwe, bonecas". Já este ano, à
TSF, o secretário de Estado Agui-naldo Cristóvão reforçou que "há,no geral, museus portugueses com
peças que fazem parte do patri-mónio cultural angolano" e que"ainda" está a proceder "a um in-ventário para estimar quantas pe-ças saíram ilicitamente do país". A
lista, há anos prometida, tarda.E c possível saber se essas peças
são ilícitas? Depende de quem res
ponde à pergunta. Primeiro, explicaIsabel Roque, não se referindo aocaso angolano, "a investigação so-bre as proveniências é residual,
porque essa não tem sido conside-rada prioritária [e] muito por faltade fontes arquivísticas que a pos-sam suportar". É que "parte das pe-ças existentes em museus terãosido produzidas com intuitos de
comercialização e, portanto, a in-vestigação acerca dos seus contex-tos de produção é difícil", diz a
professora da Universidade Euro-
peia, especializada em Museologia.Depois, acrescenta Luís Raposo,
presidente do ICOM (International
Council of Muscums) Europa, "as
coleções pilhadas provavelmentenão existem nos museus públicos".A origem está documentada e é lí-cita, acrescenta o diretor do Museude Etnologia, Paulo Costa. Esterefere que nunca recebeu nenhumcontacto ou pedido a este respeito.E recorda que o museu foi criadoem 1965 e "que a grande parte" do
espólio (cerca de 40 mil peças, de
80 países) foi recolhida em missõescientíficas. Muitas das bonecas exi-gidas por Angola (que são amuletosde fertilidade, feitas de carolo de
milho, barro, tronco) são dessas ex-pedições ao Sul da então provínciaultramarina.
Já as machadinhas neolíticas, são
uma pretensão "risível", entende
Raposo, por não serem "símbolosidentitários" de um único povo:"Têm muitos milhares de anos e
existem aos pontapés em Portugale Angola."
loacine Katar Moreira explica quea questão é muito mais do que a
origem ilícita das obras. E lançaduas perguntas: se estes povos vi-viam "na época colonial" num am-biente de "violência institucionali-zada", quando venderam esses
bens haveria "espaço para a negociação"? E "negociaram em pé de
igualdade?" Paulo Costa não con-corda com esta argumentação, queentende como "radical e extremis-ta, que não ajuda a resolver nada".
O arqueólogo Luís Raposo - queé favorável à devolução, mas com
regras c "limitadas" para "não es
vaziar os museus" - questiona se
sobre que fim será dado a esses
objetos. "Devolver, sim. Mas não
para destruir por um ritual mágico.É para ser apresentado publica-mente." Ou seja: sair de um museu
para outro. A própria foacine KatarMoreira coloca esse como um pon-to de honra na
restituição, queclassifica pelanecessidadede "Justiça
histórica": "A ideia não é esvaziaros museus nacionais, Não é enviar
peças e obras para espaços quenão manifestaram nenhum interes-se." Luís Raposo recorda-se de háuns anos ter acompanhado a visitade um alto responsável museológi-co egípcio ao Museu Nacional de
Arqueologia. "Era um indivíduomuito conhecido como sendo mui-to lutador do regresso dos tesourosao Egito e ele disse: 'Está muitobem aqui e ajuda a promover a
imagem do Egito.'" Considerava
aquela uma peça de menor valorface às que tem no país.
OApesar dos even-tuais pedidosexternos de resti-tuição, JoacineKatar Moreirapretende "umdebate nacional"
UM EGÍPCIOQUE DEFEN-DE A DEVO-LUÇÃO DAS
PEÇAS QUISMANTER ASMÚMIAS EMPORTUGAL
Os/fedaFundação
Sindika Dokolo,marido de Isa-
bel dos Santos,ostá "cm
manutenção",lê-se na página
em inglês
TAMBÉM AS
COLEÇÕESPRIVADASDEVERIAM
ENTRAR NODEBATE, DIZO ARQUEÓ-LOGO LUÍS
RAPOSO
OO relatório
pedido peloPresidente fran-cês, EmmanuelMacron, lançoua discussão aonível nacional
E se fosse Portugal?Dois exemplos de patrimónioque o País tem no exterior
Abibliotecada diocese do
Algarve foi saqueada por FrancisDrakc às ordens da coroa irglc-sa. "É importante para o estudoda hiszóna do Algarve e está
hoje em Inglaterra", diz o arqueó-logo Luís Raposo. Outro exem-plo é o Padrão de Diogo CãoEstava na Alemanha, que aceitoudevolve-lo à Namíbia, onde o
explorador o criciu em 1486.
Privados: o elefante na salaA deputada sublinha que esta é
uma "missão geracional" e quecontinuará a apresentar iniciativassobre o tema - ainda que não te-nha um calendário definido paratal. Igual resposta deu o PAN à SÁ-BADO: o partido propôs no progra-ma eleitoral "devolver o patrimóniocultural" afim de repor "a Justiçahistórica", mas ainda não tem "da
ta definida". Importa "abrir umdebate sério e construtivo".
O debate tem estado até agoraapenas centrado no património pú-blico e tem deixado de parte o queexiste no privado, alerta Lufs Raposo. Esse é o "elefante na sala": d que,"no caso dos museus portugueses,são poucos os que resultaram de pilhagens ou que são ícones identitá-rios. E o lado invisível do iceberguesão as coleções privadas, de queninguém fala. É muito mais gravecontinuar a haver leilões". Mantendo nos ainda em Angola, as 20 peças que, até ho|e. regressaram àque-le país eram propriedade de privados. E foram compradas pela Fun-
dação Sindika Dokolo, o maridode Isabel dos Santos. As primeiras,duas máscaras e uma estátuatchokwe (que tinham sido sa-
queadas do Museu do Dundodurante a guerra civil) foram
entregues ao sogro, o então
presidente fosé Eduardo dos
Santos, em 2016. Depois de
anos de negociações, Dokolorevelou que as comprara adois colecionadores anóni-
mos de França e da Bélgica. O