biologia, biopolítica, bioarte, biocontemporaneidade
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE EDUCAO
LUCIANA VALRIA NOGUEIRA
Aproximaes entre biologia, biopoltica e bioarte:
um ensaio sobre a biocontemporaneidade
So Paulo2009
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LUCIANA VALRIA NOGUEIRA
Aproximaes entre biologia, biopoltica e bioarte:
um ensaio sobre a biocontemporaneidade
Dissertao apresentada Faculdade de Educao da
Universidade de So Paulo para obteno do ttulo deMestre em Educao.
rea de concentrao: EducaoOrientador: Prof. Dr. Julio Groppa Aquino
So Paulo2009
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Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo
37.01 Nogueira, Luciana ValriaN778a Aproximaes entre biologia, biopoltica e bioarte : um ensaio sobre
a biocontemporaneidade / Luciana Valria Nogueira ; orientao JulioGroppa Aquino. So Paulo : s.n., 2009.
--- p. il.
Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao emEducao.rea de Concentrao : Educao) - - Faculdade deEducao da Universidade de So Paulo.
1. Foucault, Michel, 1926-1984 2. Deleuze, Gilles, l925-1995 3.Guattari, Felix, 1930-1992 4. Filosofia da educao 5. Biologia Filosofia 6. Governamentalidade 7. Arte ciberntica I. Aquino, JulioGroppa, orient.
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FOLHA DE APROVAO
Luciana Valria NogueiraAproximaes entre biologia, biopoltica e bioarte: um ensaio sobre a biocontemporaneidade
Dissertao apresentada Faculdade de Educao
da Universidade de So Paulo para obteno dottulo de mestre em Educao.rea de Concentrao: Psicologia e Educao
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituio: ____________________________ Assinatura: _______________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituio: ____________________________ Assinatura: _______________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituio: ____________________________ Assinatura: _______________________
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Para
Shirley Schreier,
com amor e gratido
(ainda que no esteja sua altura).
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AGRADECIMENTOS
Tomando-se como manifestao concreta de nossas multiplicidades, com suas
linhas, meridianos e fusos que nos atravessam a todo o momento, no h como noperceber que essa geografia experimentada, essa cartografia constituda, deve sua
construo a muitas pessoas. Pautada na convico de que somente a amizade pode
produzir uma verdadeira esttica da existncia, tomo a gratido como ocasio para o
registro de minha alegria por finalizar este trabalho. Assim, com todo o meu corao e
com todo o meu sentimento, registro aqui meus mais sinceros agradecimentos.
Ao meu pai, por ter me ensinado o amor ao mundo natural.
minha me, pelo amor vida e aos livros.
Shirley Schreier, que me ensinou a fazer cincia e a enxergar a beleza nos
fenmenos do mundo. Os anos que passei em seu laboratrio foram fundamentais em
minha formao. Entre um espectro e outro, ali fui me constituindo.
Aos amigos da vida: Eduardo Lins, Rebecca Schaeffner, Hermann de Oliveira,
Tharin Blumenschein, Mrio Videira e William Ferro. Sem eles, a tarefa de viver no
seria to bela e fecunda.
Aos colegas e amigos da ps-graduao: Adlia, Carlos Manoel, Carlos Rubens,
Cludia, Danilo, Elisa, Fbio, Ftima, Gisela, Marcelo, Mnica, Thomas e Sandra.
Nossos encontros foram sempre regados por um incrvel respeito ao pensamento e me
ensinaram muito mais do que se pode imaginar.
Carol, pela ajuda inestimvel em me salvar do meu ingls.
Ao Andr Vilela, pelas dicas que acabaram por nortear os rumos deste trabalho,
ainda que ele no saiba a importncia de sua contribuio.
s professoras Cintya Ribeiro e Maria Elice Brzezinski Prestes, integrantes da
banca, pela fora e pela ajuda em me fazer pensar.
Ao Daniel, pela incrvel disponibilidade e ajuda na reta final. No fosse seu
socorro, eu dificilmente teria tido a serenidade necessria para concluir o trabalho.
Cintya, que partilhou comigo a vivacidade de seu pensamento. Nossas
conversas esto registradas em minha alma.
Aos meus alunos, fonte de energia e vontade para continuar estudando.
Ao Julio, pelos quinze anos de convivncia que me ensinaram mais do que sou
capaz de aprender. Julio, no h muitas palavras disponveis para traduzir minha
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gratido. Definitivamente, voc no se transforma agora em uma linha na lista de
agradecimentos. Muito alm disso, voc est presente em cada uma das muitas linhas
deste trabalho. Nenhuma palavra teria sido grafada no fosse sua dedicao e sua
orientao, sua presena constante e amiga. Obrigada por me contaminar com seu amor
ao pensamento, por ser esse guerreiro diante da vida, por sua generosidade sem par, por
me mostrar que mais vale um gesto tmido do que uma inteno grandiosa. Este
trabalho fruto desse tmido gesto. Julio, a voc, amor e gratido eternos.
Ao Sandro, meu amor e companheiro de toda a vida, que sempre acreditou na
minha capacidade, valorizando meu trabalho e me ajudando em todos os momentos (na
alegria e na tristeza, na sade e na doena).
Aos meus filhos, Nina e Leo, pelo tempo que sinto ter-lhes roubado, por todas as
vezes que no pudemos brincar ou sair, pela compreenso e amizade. A eles, todo o
meu amor. Obrigada.
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RESUMO
NOGUEIRA, L. V. Aproximaes entre biologia, biopoltica e bioarte: um ensaiosobre a biocontemporaneidade.2009. 113 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de
Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.
Este trabalho, de carter ensastico, pretende configurar algumas implicaes dodiscurso biolgico na contemporaneidade por meio da anlise de como certos conceitosoriundos do campo das cincias biolgicas espcie e gene, particularmente espraiam-se pelo corpo social, associando-se a determinados modos de subjetivao. Ahiptese norteadora do estudo a de que a no explicitao da fragilidade de ambos osconceitos obedece a demandas de controle e de assujeitamento, sobretudo no que serefere ao desenvolvimento e utilizao de biotecnologias. Trata-se da produo denovas formas de vida e, ao mesmo tempo, de processos especficos de subjetivao.
Partindo da premissa de que um novo homem est sendo forjado pelas biotecnologias,argumenta-se no sentido de que elas puderam granjear certa legitimidade no imaginriosocial justamente porque tais conceitos so solidrios converso da identidadebiolgica em bioidentidade. De acordo com Foucault, se antes as disciplinas se dirigiamao homem-corpo, com a biopoltica elas se voltam ao homem-espcie. Os mecanismosregulamentadores da vida passam a fazer parte das relaes de poder-saber, com vistas manipulao dos fenmenos vitais. Assim, parece despontar claramente uma conexodireta entre o espectro biopoltico e os conceitos de espcie e de gene. Entende-se, pois,que os desdobramentos dessa conexo desembocaro no mbito da biossociabilidade eda bioidentidade. Tomando como material emprico algumas obras do cinema e dasartes plsticas, prope-se uma visada analtica singular sobre as relaes entre biologia,biopoltica e bioarte, tendo como perspectiva uma esttica da existncia baseada na ticada amizade. Na construo dessa visada, foi fundamental a filosofia produzida porMichel Foucault, bem como a de Gilles Deleuze e Flix Guattari.
Palavras-chave: Michel Foucault, Biopoltica, Bioarte, Biocontemporaneidade, Estticada existncia.
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ABSTRACT
NOGUEIRA, L. V. Approximations among biology, biopolitics and bioart: an essayon biocontemporaneity.2009. 113 f. Dissertao (Mestrado). Faculdade de Educao,
Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.
This paper aims at reflecting on some implications around the contemporary biologicaldiscourse through the analysis of how some concepts in the field of biological sciences particularly species and genes spread through the social body, associating withcertain modes of subjectivation. The guiding hypothesis of the present study is that thenon-explicitation of the fragility of both concepts follows the demand for control andsubmission, especially as far as the development and usage of biotechnologies areconcerned. Thus, there is at the same time production of new forms of life andproduction of specific processes of subjectivation. Considering the premise that a new
man is being forged by the biotechnologies, it is argued that the latter have succeeded ingaining some legitimacy in the collective imaginary, especially because such conceptsare solidary with the conversion of biological identity into bioidentity. According toFoucault, if the disciplines used to point toward the human-body, nowadays, underbiopolitics they have moved into focusing on the human-species. The life-regulatingmechanisms have become part of the power-knowledge relations focusing on themanipulation of vital phenomena. Thus, there seems to be a direct connection betweenthe biopolitical spectrum and the concepts of species and genes. One can conclude,therefore, that the unfolding of this connection will lead into the scope of biosociablityand bioidentity. By taking some empirical work from the cinema and the plastic arts,this research proposes a singular analytical approach to the relations among biology,biopolitics and bioart, under a perspective which contemplates an esthetics of theexistence based on the ethics of friendship. In the building of this approach, MichelFoucault"s thought played a fundamental role, followed by Gilles Deleuze's and FlixGuattari's philosophies.
Keywords: Michel Foucault, Biopolitics, Bioart, Biocontemporaneity, Esthetics ofexistence.
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Leve como leve pluma
Muito leve, leve pousa
Muito leve, leve pousa
Ah, simples e suave coisa
Suave coisa nenhuma
Suave coisa nenhuma
Sombra silncio ou espuma
Nuvem azul
Que arrefece
Simples e suave coisa
Suave coisa nenhuma
Que em mim amadurece
(Secos e Molhados / Joo Ricardo e Joo Apolinrio)
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SUMRIO
1.AMBINCIAS E INTERSTCIOS: GUISA DE INTRODUO 112.SOBRE A BIOPOLTICA 17
2.1. A relao entre poder e vida segundo Foucault 17
3.ESPCIE E GENE:SUPORTES BIOPOLTICOS 27
3.1. A questo da espcie 27
3.2. DNA, a molcula da hereditariedade 37
3.3. A questo do gene 38
3.4. Mas, afinal, o que um gene? 46
4.EU,ROB 54
4.1. Ambincia I: Converse All Stars, Vintage 2004 55
4.2. Interstcio I: entre o slido e o lquido 58
5.AMBINCIA II:CDIGO 46 63
5.1. Ns e(m) nossos genes 63
5.2. Interstcio II: gesto do risco contra a degenerao da espcie 65
6.AMBINCIA III:TOGNINA GONSALVUS 76
6.1. De menina-lobo a portadora de hipertricose lanuginosa congnita 76
6.2. Interstcio III: a metamorfose do olhar 80
7.AMBINCIA IV:ORLAN 83
7.1. O corpo biociberntico 83
7.2. Interstcio IV: moralismo ou esttica da existncia? 85
8.AMBINCIA V:EDUARDO KAC 89
8.1. Arte transgnica 89
9.POR UMA ESTTICA DA EXISTNCIA 93
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 107
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 110
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1.AMBINCIAS E INTERSTCIOS: GUISA DE INTRODUO
O homem feito por sua crena.
Como ele acredita, assim ele .Bhagavad Gita
necessrio ouvir o som da grama crescendo. Inventariar. Tornar existente o
imaterial. Deitar palavras e deixar que a escritura fale do que no existiu, daquilo que se
viveu sem saber. Como saber quando o pontual construiu mais do que um ponto? No
saber. Talvez, apenas dar a chance de trazer superfcie. Inventariar invencionices a
ponto de torn-las matria. Diante de tantas impossibilidades, s resta a inveno. E,
tantas quantas fossem as vezes que se precisasse escrever, tantas seriam as histriasinventadas. Memoriar: ato de concretizar experincias pela palavra. Redundncia bruta.
Tornar realidade o que se passou sem se haver passado. Devir puro. Escrituras: saber o
que se , saber aquilo em que se pensa. Transformar a escritura no gesto do pensamento
e no na sua inteno.
***
O presente trabalho pretende refletir sobre questes da contemporaneidade.
Pauta-se no desejo de compreender como certos conceitos do campo das cincias
biolgicas espcie e gene, particularmente , a despeito de toda sua fragilidade,
espraiam-se pelo corpo social, engendrando novas subjetividades, novas formas de vida.
A arte tomada aqui como ocasio de discusso, sendo que os conceitos do a
possibilidade de existncia desta. A reflexo foucaultiana e suas repercusses no mbito
da produo do pensamento constituem o solo sobre o qual se deseja deitar a anliseproposta. Sero utilizados, em particular, o conceito de governamentalidade e as noes
dele derivadas ou a ele diretamente relacionadas, tais como biopoder e biopoltica.
Tendo em vista a inescapvel interseco entre as novas formas de subjetivao
e a produo de saberes do campo cientfico, mormente das cincias biolgicas,
conceitos desta rea sero tratados luz do pensamento foucaultiano.
O que faz a vida? O que pode a vida? Quanto pode a vida viver? Como faz-la
viver em sua mxima potncia?
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O trajeto se faz nas sinuosidades prprias dos rastros de uma ideia-unidade.
Aquilo que na aparncia remete a uma navegao errtica, nada mais do que os
percursos que certas ideias traam ao difundirem-se pela mirade da experincia
humana. So linhas sutis, desdobramentos inesperados, lugares insuspeitos.
Percorrer esse trajeto, como proposto aqui, talvez leve concluso de que
vivemos hoje em uma espcie de biocontemporaneidade: um tempo no qual a dimenso
biolgica, no apenas do homem, mas de todo o mundo natural, a grande responsvel
pelos modos de viver dos viventes. Nossas relaes com o mundo, com o outro e com
ns mesmos, parecem inegavelmente mediadas pelo biolgico. A zosobrepondo-se
bios. esta sobreposio que denomino biocontemporaneidade, a construo de uma
biocultura.
Na consecuo do caminho, sero empregadas produes de variadas reas,
afinal, no h uma residncia fixa. No entanto, os documentos no sero utilizados
fora de demonstrao de essncias ou naturezas. Trata-se, antes, de um estranhamento;
estranhamento diante de padres naturalizados, de ideias limitadoras de possibilidades
outras de existncia. No se pretende, tambm, que este trabalho se constitua como
revelao de um suposto compl maligno, tampouco como uma busca de culpados ou
inocentes categorias estas tambm de carter essencial. Trata-se, no limite, de refletir
sobre o poder-saber de concepes fundamentais.
De largada, as hipteses so: a no explicitao da fragilidade conceitual
obedece a demandas de controle e de assujeitamento, sobretudo no que se refere ao
desenvolvimento e utilizao de biotecnologias. Esse assujeitamento se concretiza
pelo uso dos meios de comunicao (sejam eles de divulgao estritamente cientfica,
ou no) e do espao escolar como lugares, por excelncia, de exerccio do poder. Alm
disso, ele tem espao e possibilidade de existncia num mundo biocontemporanizado,
num mundo biocultural.Por fim, alinhavando aquilo que na superfcie pode mostrar-se como uma colcha
de retalhos, a discusso de ordem tica faz-se necessria, a fim de promover uma
reflexo constante no interior do cenrio escolar acerca das relaes entre cincia, tica,
poltica e cidadania. Tal reflexo deve buscar compreender no que se transformou o ser
humano e em que medida o desenvolvimento cientfico responsvel por essa
transformao; ela deve, ainda, apontar no sentido de uma tica da amizade, de uma
esttica da existncia. Nas palavras de Jean Baudrillard, a questo agora comopodemos ser humanos perante a ascenso incontrolvel da tecnologia (2003). As
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implicaes do alcance da cincia sobre a conduta humana so imensas, e, portanto,
parece ser obviamente bem-vinda qualquer contribuio no sentido de um maior
entendimento dessas relaes e de seus efeitos.
Trata-se, pois, de um exerccio de reflexo em uma rea especfica do
conhecimento cientfico: a biologia. Esta reflexo, no entanto, no se dirige a
especialistas, e, por isso, algumas conceituaes e delimitaes mais tcnicas se faro
necessrias. A fim de no enfadar o leitor com explicaes desnecessrias
compreenso do texto, um sistema de notas de rodap com as principais definies ser
utilizado quando houver necessidade, de tal sorte que o leitor poder se reportar a elas
sem prejuzo da discusso central, a saber, a discusso de que os conceitos fundam
regimes de saberes e permitem o exerccio de poderes especficos. Dessa forma,
importam menos os conceitos em si, e mais a demanda a que eles respondem e suas
possveis ressonncias em reas alheias s de suas produes.
Os conceitos funcionaro como documentos sobre os quais a anlise pretendida
se far. Eles, obviamente, no aparecero descolados de um contexto, ou seja, no sero
trabalhados em si mesmos, mas a partir das conotaes que lhes so dadas por alguns
autores de referncia do campo biolgico. Instrumentalmente, um tanto de histria das
ideias se apresentar; um tanto de biologia ser explicitado.
Como estratgia discursiva, optou-se por uma introduo com vistas a apresentar
os principais conceitos utilizados na anlise posterior. Assim, conceitos capitais do
arsenal foucaultiano tais como biopoltica e governamentalidade sero confrontados
com conceitos biolgicos especficos espcie e gene , a fim de colocar em
movimento uma analtica potencializadora do pensamento.
Esse confronto inicial servir de alicerce para o caminho que se seguir por meio
da construo de ambincias e de interstcios, no qual sero utilizadas obras do cinema e
das artes plsticas como material emprico. Os interstcios carregam uma simbologiafecunda e significativa, afinal, em biologia, representam os espaos em que ocorre a
comunicao entre as clulas, unidades fundamentais da vida. Materialmente, os
interstcios no so nada; eles so, porm, o local onde a prpria existncia se d.
Curioso: o espao que garante a materialidade da vida. Imageticamente, podemos
construir a ideia de que as ambincias representam os prprios intercursos da vida, e os
interstcios, a comunicao e a interao entre eles.
A conduo do texto, assemelhando-se, a princpio, a uma colcha de retalhos,pede do leitor um pouco de pacincia, a fim de que se possa, paulatinamente, tecer a
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costura. Os alinhavos e cozeduras dar-se-o medida exata que a pea for sendo
estruturada. O arremate final ter por objetivo buscar uma reflexo acerca de possveis
estticas da existncia promotoras de mais vida, estticas existenciais que sejam capazes
no de propor, nem de apontar, mas de lanar ideias que tateiem possveis caminhos em
que a potncia do viver possa eclodir. Afinal, o que pode a vida? E mais: o que pode a
vida na contemporaneidade, dentro de toda a trama produzida no corpo social pela
cincia?
Os retalhos iniciais apresentam uma anlise de dois filmes de fico cientfica
Eu, Robe Cdigo 46. Cada um deles tomado como ocasio para refletir acerca das
biotecnologias e da transformao da vida. Tais reflexes carregam o proceder analtico
que alimenta o trabalho.
No mesmo diapaso, seguem as discusses das trs manifestaes artsticas
tratadas aqui como documentos que me pareceram fecundas como pletoras1, a fim de
que se possa oxigenar o pensamento e expandir o movimento do ato de refletir sobre. O
percurso se inicia no sculo XVI com Lavnia Fontana, expoente feminina das artes
plsticas do Renascimento italiano. Lavnia pintou Antonietta Gonsalvus, a menina-lobo
que, junto com sua famlia, alimentou o imaginrio da poca graas sua bizarra
aparncia. O corpo como retrato da alma.
Na sequncia, so discutidos os trabalhos da francesa Orlan e suas intervenes
radicais no campo da arte carnal. Neles, a parafernlia provida pela tecnologia mdica
converte-se em instrumentos do fazer artstico, que se concretiza na materialidade
corporal da artista. O corpo como alma.
Os trabalhos genticos de Eduardo Kac fecham esse ciclo. Ao utilizar o prprio
cdigo da vida (o DNA) como instrumental especfico para a produo de suas obras,
Kac parece sinalizar cabalmente a definitiva ruptura entre o ser, o corpo e a alma. Ele
efetivamente cria vida, manipulando-a e hibridizando-a de tal sorte, que acaba porlanar um estranhamento diante de concepes arraigadas. O que o corpo? O que a
vida? O que podem o corpo e a vida nesse novo contexto? Estariam Kac e Orlan
apontando para uma obsolescncia do humano inaugurando o transumano , ou para
uma supremacia da materialidade baseada no aumento da extensividade e, portanto, no
aumento das potncias e das latncias da prpria vida? O corpo como corpo extensvel,
mutvel, reprogramvel.
1 O termo pletora utilizado aqui em seu sentido mais estrito: aumento significativo da abundnciasangunea.
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Por fim, ser biocontemporneo ser um vivente em uma biocultura levaria a
uma eroso daquilo que a vida pode ser, ou a uma amplificao das potncias de vida?
sobre isso que este trabalho tenciona refletir. Sem respostas nem propostas, ele
procura trazer uma discusso que seja capaz de produzir estranhamento, pensamento em
ato.
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2.SOBRE A BIOPOLTICA
2.1. A relao entre poder e vida segundo Foucault
O termo biopoltica nasce no bojo da anlise foucaultiana sobre as origens da
medicina social. Em O nascimento da medicina social, conferncia proferida no Rio de
Janeiro, em 1974, e compilada na obra Microfsica do poder (2003), Foucault traa o
quadro da situao mdica na Alemanha, na Frana e na Inglaterra durante os sculos
XVII e XVIII. Ele mostra que, para a sociedade capitalista, a medicina moderna , antes
de tudo, uma estratgia biopoltica, ou seja, trata-se de uma medicina que tem por
alicerce certa tecnologia do corpo social. A hiptese de Foucault a de que no houve,
na sociedade capitalista, passagem de uma medicina coletiva para uma medicina
privada. O capitalismo, desenvolvendo-se em fins do sculo XVIII e incio do sculo
XIX, socializou o corpo como fora de produo. A partir de ento, o controle da
sociedade no mais operaria no nvel do indivduo, pela conscincia ou pela ideologia,
mas no nvel biolgico, somtico, corporal.
Trataremos aqui com mais ateno do modelo mdico ingls, pois deste,
segundo Foucault, que herdamos a forma de sade pblica ainda em vigor. A ttulo de
ilustrao e para marcar as diferenas fundamentais de forma bastante sumria,
podemos dizer que o modelo alemo constituiu-se num saber mdico estatal traduzido
pela normalizao da profisso mdica, que era subordinada a uma administrao
central e integrada por meio de uma organizao gerida pelo Estado.
J o modelo francs, diferentemente, nasceu em resposta aos problemas
suscitados pela urbanizao, apresentando uma caracterstica bastante peculiar: a
ligao com os saberes cientficos ou com as ditas cincias extra-mdicas, sobretudo
com a qumica. No perodo compreendido entre os sculos XVII e XVIII, era bastantedifundida a ideia de que o meio ambiente principalmente a qualidade do ar e da gua
estava intimamente ligado questo da sade dos indivduos. Data desse perodo o
trabalhoRelaes entre o fsico e o moral no homem, do filsofo e fisiologista francs
Pierre-Jean-Georges Cabanis (1757-1808). A respeito da cidade, ele diz: todas as vezes
que homens se renem, seus costumes se alteram; todas as vezes que se renem em
lugares fechados, se alteram seus costumes e sua sade (apud FOUCAULT, 2003, p.
85).Ainda para ressaltar a ideia de que haveria uma ligao entre o estado do
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ambiente e a sade humana, basta lembrar que a palavra malria, usada para designar
a doena infecciosa provocada pelos protozorios do gnero Plasmodium, a corruptela
de mau ar.
Dessa forma, a medicina urbana pode ser entendida como uma sofisticao do
tema da quarentena, utilizando mtodos de vigilncia sanitria como a anlise e o
esquadrinhamento de tudo aquilo que, acumulado ou amontoado no espao urbano,
pudesse vir a provocar doenas. Em torno de 1740 e 1750, surgem os primeiros
cemitrios com caixes individualizados (anteriormente, os corpos eram despejados nos
cemitrios, o que muitas vezes levava a um transbordamento que acabava ultrapassando
os muros); em 1780, eles comeam a ser transferidos para a periferia das cidades.
Curiosamente, a individualizao do cadver, do caixo e do tmulo, no nasceu, como
se costuma crer, de uma preocupao religiosa em relao aos mortos; sua origem se
deve, na verdade, a razes poltico-sanitrias de respeito aos vivos. Alm disso, fazia-se
necessrio, para salvaguardar a sade do ambiente e, consequentemente, da populao
, um controle estrito da circulao do ar e da gua. Nesse perodo, encontramos na
Frana as grandes obras de canalizao e de redes de distribuio da gua (que hoje
conhecemos como obras de saneamento bsico), e a construo de grandes e largas
avenidas no espao urbano com a finalidade de arejar as cidades.
O modelo ingls, do qual somos tributrios, nasceu da problematizao dos
pobres como fonte de perigo mdico no segundo tero do sculo XIX. Datam desse
perodo as primeiras grandes agitaes sociais da populao pobre, que se tornou uma
fora poltica capaz de participar e/ou de promover revoltas. Parte dessas revoltas era
uma resposta ao estabelecimento de um sistema de carregadores e de um sistema postal
que dispensavam os servios anteriormente prestados por aquela populao. Alm
disso, a epidemia de clera que assolou Paris em 1832, propagando-se por toda a
Europa, acabou por gerar um preconceito em relao populao proletria e plebia.Dessa forma, iniciou-se uma diviso do espao urbano em reas para ricos e para
pobres, pois a coabitao entre eles foi considerada um perigo sanitrio e poltico para
as cidades.
A medicina inglesa comea a tornar-se social com a Lei dos Pobres, legislao
que propunha um controle mdico dos estratos populares. Essa legislao comportava a
ideia de uma assistncia e de uma interveno mdicas controladas que, ao mesmo
tempo, ajudavam os pobres em relao aos cuidados com a sade e protegiam os ricosdos supostos perigos que aqueles representavam sade destes. A partir de tal
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dispositivo, v-se claramente a transposio para a legislao mdica de um problema
poltico enfrentado pela burguesia. Assim, essa nova medicina social representava
essencialmente um controle da sade e do corpo das classes mais pobres, a fim de torn-
las mais aptas para o trabalho e menos perigosas para o convvio com as classes ricas.
Posteriormente, por volta de 1875, a Lei dos Pobres foi complementada com a
organizao de um servio autoritrio de controle mdico da populao. Essa
organizao estava concretizada nos health servicesou health officers, que tinham como
funo o controle da vacinao obrigatria da populao, a localizao e destruio de
locais insalubres potencialmente perigosos, e a organizao do registro de epidemias e
de doenas infecto-contagiosas, obrigando a notificao dos casos pelas pessoas e
servios hospitalares.
No Brasil, podemos destacar vrios acontecimentos que certamente tiveram ou
tm como base essa ideia nascida da Lei dos Pobrese seus desdobramentos. Talvez o
caso mais notrio seja o da Revolta da Vacina, que teve lugar no Rio de Janeiro, em
1904. Tratou-se de uma resposta (afora a manipulao poltico-partidria envolvida)
campanha de vacinao obrigatria perpetrada por Oswaldo Cruz (1872-1917), cientista
brasileiro que, no coincidentemente, acabara de voltar da Frana, onde estivera
estudando microbiologia a partir de 1897. Mais recentemente, podemos citar o caso da
dengue, em que agentes sanitrios podem e devem inspecionar e dedetizar locais
considerados focos de transmisso do vrus. Alm disso, de acordo com a legislao em
vigor, obrigatrio que os hospitais notifiquem ao Ministrio da Sade todos os casos
diagnosticados de doenas infecto-contagiosas, tais como a sndrome da
imunodeficincia adquirida (AIDS).
Percebemos, assim, que a frmula da medicina social inglesa foi aquela que
apresentou mais desdobramentos e que ficou como herana entre ns, pois possibilitou a
ligao de aspectos importantes: uma medicina assistencial para os pobres, umamedicina administrativa encarregada de problemas gerais e uma medicina privada para
aqueles que desta pudessem dispor.
A ampliao das ideias de Foucault sobre o tema da biopoltica aparecer em seu
A vontade de saber (2007), no captulo Direito de morte e poder sobre a vida.
Posteriormente, ela volta a comparecer no livro Em defesa da sociedade(2005b). Em
ambos os textos, Foucault insiste na diferenciao entre biopoder e soberania. No
primeiro, a tnica traduz-se em fazer viver, deixar morrer, em substituio ao fazermorrer, deixar viver caracterstico do regime de soberania. Essa migrao de extrema
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importncia no contexto deste trabalho. Vejamos, ento, a que exatamente Foucault se
refere.
Na teoria clssica da soberania, a vida e a morte no so tomadas como
fenmenos naturais ou exteriores ao campo poltico; ao contrrio, elas se vinculam ao
soberano, ao poder, ao direito. Nas palavras de Foucault, porque o soberano pode
matar que ele exerce seu direito sobre a vida. essencialmente um direito de espada
(2005b, p. 289). Assim, o poder , no limite, mais um mecanismo de subtrao, de
extorso seja de riqueza, de bens, de servios, ou de sangue. um direito de
apropriar-se de coisas, de corpos, de vidas.
Na poca clssica2, o poder deixa de se embasar majoritariamente na retirada e
na apropriao, e passa a funcionar alicerado na incitao, no reforo, no controle e na
vigilncia, com o intuito de otimizar as foras que ele submete. Trata-se de gerir a vida,
mais do que de exigir a morte; esta s exigida quando recrutada em defesa da vida.
Note-se que justamente nesse perodo que ocorrem as maiores guerras, os mais
terrveis genocdios. Tais guerras, no entanto, no mais se fazem em defesa do
soberano, e sim em defesa da vida, em defesa da existncia de todos. Os massacres,
ento, tornam-se vitais; vitais na prpria ambiguidade de acepo do termo: tanto no
sentido de promover a vida, quanto no sentido de dispens-la. O que est em questo
no mais defender a soberania do Estado, mas garantir a sobrevivncia de uma
populao. a lgica biopoltica entrando em cena.
Essa nova lgica reveste-se de duas estratgias principais: a disciplina e a
regulamentao. A primeira delas data do sculo XVII e pode ser identificada
principalmente nas escolas, nos hospitais, nas fbricas e nas casernas, tendo como
resultado uma docilizao e uma disciplinarizao do corpo por meio de seu
adestramento, da otimizao de suas foras, e de sua integrao a sistemas de controle.
H aqui uma concepo do corpo como mquina e, portanto, como sujeito a umaantomo-poltica.
A regulamentao, por sua vez, surge no sculo XVIII, justamente com o
advento da medicina social. A gesto da vida no mais incide apenas sobre os
indivduos, mas sobre as populaes, por meio do controle das taxas de natalidade e de
mortalidade, dos ndices de longevidade, dos indicadores de sade. a biopoltica das
populaes; o corpo-espcie surgindo ao lado do corpo-mquina.
2Foucault nomeia como poca clssica o perodo que se estende do final do sculo XVI ao final do sculoXVIII.
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Seguindo essas duas vertentes o corpo-espcie e o corpo-mquina , temos um
controle de ponta a ponta da vida. Inicialmente separadas, elas acabam por confluir. Tal
confluncia chega a ser sugerida por Foucault como uma exigncia de ajuste do
capitalismo, que, em suas palavras, no pode se garantir seno ao preo de uma
insero controlada dos corpos no aparelho de produo e atravs do ajuste dos
fenmenos de populao aos processos econmicos (2005b, p. 290).
Se as disciplinas se dirigiam ao homem-corpo, com a biopoltica elas se voltam
para o homem-espcie. A disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens como
indivduos; j a biopoltica, dirige-se mesma multiplicidade, mas como massa global.
Foucault insere a biopoltica na complexa relao entre vida e histria. Se antes a vida
pressionava a histria por meio das epidemias e da fome, na medida em que estas so
controladas pelas tcnicas polticas (e pela tecnologia mdica), ela passou a ser objeto
do saber, e a espcie vivente acabou por tornar-se uma fora passvel de modificao, de
interveno e de melhoria. A vida e seus mecanismos entram, assim, nos clculos
explcitos do poder e do saber, enquanto estes se tornam agentes de transformao da
vida. Segundo Agamben, se o homem era um animal vivente capaz de uma existncia
poltica, agora o animal em cuja poltica o que est em jogo seu carter de ser
vivente ([parafraseando Aristteles], 2004, p. 17).
Claramente, parece haver uma conexo direta entre os conceitos de biopoltica e
de espcie, e aquilo a que eles se destinaram no tecido social. Entende-se que o
desdobramento dessa conexo desemboca nos conceitos de bioidentidade e de
biossociabilidade. De acordo com Ortega (2003), a nfase dada aos procedimentos de
cuidados corporais seja do ponto de vista mdico, higinico ou esttico levaria
formao de identidades somticas, isto , identificao do indivduo com seu prprio
corpo, em forma e essncia. aqui que o problema toma contornos surpreendentes, pois
encerra um paradoxo.Na medida em que o homem passa a ser identificado como pertencente a uma
espcie, e na medida em que esta , em ltima instncia, o supra-sumo da interioridade
posto que definida pelo contedo genmico , o esperado seria uma interiorizao
crescente da viso do corpo. Percebe-se, no entanto, que tal processo parece desembocar
em uma exterioridade vazia, prescindvel do outro. Assim, em um primeiro momento,
conceitos como espcie e gene de fato levam a uma interiorizao; esta interiorizao,
porm, se desdobra em exterioridade, a fim de contemplar uma biossociabilidade.Vejamos o que se passou.
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valioso reportarmo-nos a Hannah Arendt, que, apesar de no ter se referido a
Foucault, fundou paralelamente a ele uma teoria do governo da vida. Tomando a
reflexo arendtiana como foco, podem-se produzir certas atualizaes do pensamento
foucaultiano.
Para Arendt, o fenmeno totalitrio pde ser diagnosticado por meio da anlise
daquilo que efetivamente ocorria nos campos de concentrao, onde operava-se a
reduo biopoltica dos indivduos ao mero fato biolgico, abstrata nudez de ser
unicamente humano (apudFASSIN, 2006). Dessa forma, se no totalitarismo o poder
era utilizado para reduzir a humanidade ao fato biolgico (o homem-espcie, o homem-
corpo), nas sociedades liberais modernas a vida tornou-se uma verdade de validade
incontestvel. Essa incontestabilidade, esse carter sagrado da vida a vitria do animal
laborans , esto, para ela, essencialmente ligados a um crescente processo de
despolitizao. a vida nua, nascida da fuso (ou seria sobreposio?) dazoe da bios
de que nos fala Agamben, que passa a ocupar o vazio deixado pela decomposio do
mbito pblico (ou seria o oposto, isto : ser que, ao ocupar o lugar central, a vida nua
teria promovido a decomposio do espao pblico?). Assim, aquilo que Foucault
chama de biopoder e identifica como sendo o processo de politizao da vida, , para
Arendt, profundamente antipoltico.
Segundo Arendt, os confrontos sobre a raa e, em geral, sobre todo obiolgico na natureza (o sexual includo) so apolticos por definio.[...] Ou bio ou poltica, juntos no possvel (HELLER apudORTEGA, 2004, p. 12).
A biopoltica seria, nessa perspectiva, uma definidora de conceitos e
movimentos centrados na diferena como categoria principal da poltica, substituindo os
grandes relatos, e intimamente ligada poltica da identidade, na qual dois elementosaparecem de maneira constante: a inscrio do sentido da ao na linguagem do
biolgico, e a recusa do universalismo em favor de solues especficas.
Para Agamben (2004), a biopoltica , antes de mais nada, uma questo de
fundao do contrato social, uma vez que a produo de um corpo biopoltico seria um
ato original do poder soberano. Ele acredita que a biopoltica to antiga quanto a
exceo soberana. Assim, desde ento, ao colocar a vida biolgica no centro dos seus
clculos, o Estado moderno s reafirma o elo entre o poder e a vida nua. Vale notar que
tambm Agamben, em sua anlise, recorre filosofia arendtiana, tomando de
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emprstimo a leitura de Aristteles por ela proposta. Retomando a distino entre zoe
bios, Agamben faz da mesma o ponto central de sua teoria biopoltica. A zo,sinnimo
de vida biolgica, entendida como o simples fato de viver em que o homem um
animal como todos os outros, contrape-se bios,que seria a maneira prpria de viver
de um indivduo ou de um grupo, aquilo que distinguiria o homem dos demais animais.
Na contemporaneidade, parece haver um esfacelamento da dualidade zo/bios vida
nua/existncia poltica , acarretando uma confuso crescente e redutora do poltico ao
biolgico.
vida nua e aos seus avatares no moderno (a vida biolgica, asexualidade etc.) inerente uma opacidade que impossvelesclarecer sem que se tome conscincia de seu carter poltico;inversamente, a poltica moderna, uma vez que entrou em ntimasimbiose com a vida nua, perde a inteligibilidade que nos parece aindacaracterizar o edifcio jurdico-poltico da poltica clssica(AGAMBEN, 2004, p. 126).
O que toda essa digresso pode nos fazer pensar acerca da espcie, da
bioidentidade e da biossociabilidade? Ortega nos oferece a sntese. Por meio da
discusso da ascese clssica, ele traz a ideia de uma bioascese contempornea
absolutamente fundada na perspectiva biopoltica. De acordo com ele, aquela ascese
grega que tinha a transcendncia como objetivo, que era movida pelo desejo de
demarcar uma singularidade, e que se constitua como uma forma de resistncia cultural
representada pelas prticas de si, adquire na bioascese contornos estritamente
normalizadores. Dito de outra forma, a bioascese traz, embutida em si, uma vontade de
uniformidade, de modos de existncia conformistas, visando nica e exclusivamente a
sade e o corpo perfeito como fim ltimo algo de natureza profundamente
ensimesmada.
A biossociabilidade uma forma de sociabilidade apoltica constitudapor grupos de interesses privados, no mais reunidos segundo critriosde agrupamento tradicionais como raa, classe, estamento, orientaopoltica, como aconteceia na biopoltica clssica, mas segundocritrios de sade, performances corporais, doenas especficas,longevidade etc (ORTEGA, 2003, p. 63).
Os processos de subjetivao so intrnsecos s prticas ascticas; com as
bioasceses no diferente. A subjetivao, nesse caso, se d pelas regras da
biossociabilidade, com foco nos procedimentos que visam os cuidados corporais a fim
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de que as bioidentidades possam ser construdas. Assim, o sujeito constitudo aquele
que se autocontrola e se autovigia, afinal, sua sade e bem-estar dependem nica e
exclusivamente do cuidado que ele despende com seu corpo. Aprisionado em sua
liberdade, no lugar do desamparo esse sujeito tenta encontrar uma sada: a adeso aos
preceitos de uma vida saudvel e sem riscos, um projeto de controle sobre a vida
desprovido de paixes. Com a negao do mal-estar prprio condio humana, por
meio de uma espcie de dessimbolizao da vida pela dissoluo do mbito poltico,
ocorre a destituio da dimenso finita do sujeito, dando lugar a um sujeito cuja vida
regulada e administrada em sua dimenso biolgica. o sujeito causa de si mesmo. O
que o termo biossociabilidade parece indicar a ausncia de qualquer sociabilidade que
implique a convivncia com um outro, a ausncia de qualquer tipo de contato com a
alteridade. Esta a dissoluo do poltico acima referida. A vida fica, assim, contida
entre as recomendaes e prescries que anunciam o que pode estar ao alcance de
todos: corpo e sade perfeitos, ausncia do sofrimento e da dor, negao da morte. A
biossociabilidade transforma a sade em uma mercadoria que, como todas as outras,
pode ser comprada.
Qual o sentido dessa nova sociabilidade que prescinde do outro? Quais so as
implicaes em se considerar a emergncia do biolgico, enquanto definidor e regulador
da vida, como uma forma de sociabilidade?
A discusso sobre biossociabiliddae acaba por inscrever uma outra problemtica.
Por um lado, em decorrncia dessa ideologia da sade perfeita e da responsabilizao
individual pela mesma, a doena passa a ser tomada como sinnimo de fracasso pessoal.
Tendo em vista que o modelo a ser seguido praticamente inalcansvel para a maioria
da populao, sintomaticamente cresce o nmero de doenas associadas imperfeio
corporal, tais como obesidade, anorexia, bulimia e depresso. Por outro lado, porm, a
nova problemtica diz respeito afirmao de Rabinow (1999) de que, nabiossociabilidade, a natureza ser remodelada na cultura compreendida como prtica.
De acordo com ele, a natureza h de se tornar artificial, exatamante como ocorreu com a
naturalizao da cultura. A superao entre ambas implicaria a dissoluo da categoria
do social.
No futuro, a nova gentica deixar de ser uma metfora biolgica paraa sociedade moderna, e se tornar uma rede de circulao de termos
de identidade e lugares de restrio, em torno da qual e atravs da qual
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surgir um tipo verdadeiramente novo de autoproduo: vamoscham-lo de biossociabilidade (RABINOW, 1999, p.143).
E, ainda nas palavras dele,
O que cabe ressaltar, todavia, que, cada vez mais, novas formas deorganizao coletiva tm surgido, conjugando diferentes atores,interesses, temporalidades, ou mesmo especialidades, dentro de umnovo modo de existncia em que a vida se encontra no centro denossas preocupaes (RABINOW, 1999, p. 180).
Lado a lado com esse sujeito que cuida de si mesmo, despontam dois
importantes conceitos: o de fitness e o de risco. Curiosamente, mas no por acaso,
fitness um conceito tambm retirado do escopo das cincias biolgicas, podendo ser
entendido como o valor adaptativo de determinadas caractersticas. A seleo natural,
evolutivamente, privilegiaria as caractersticas mais bem adaptadas ao meio em
constante mudana. No caso da bioascese, o fitnessest ligado modelagem corporal
garantida pela ginstica e por outras prticas esportivas; trata-se, pois, de um
aperfeioamento fsico que visa a adaptao a um mundo biopolitizado. O discurso do
risco, por sua vez, funciona por meio de uma operao engenhosa. Se o sujeito seu
prprio corpo, isto , se h uma identificao plena entre forma (corpo) e mente (self),
temos dois riscos em jogo: o primeiro o de adoecer ou de, por displicncia, no ter a
melhor qualidade de vida possvel; o outro o de que, sendo o corpo a prpria
identidade, no haja como esconder do outro aquilo que se . A bioidentidade no
salvaguarda o espao de fingimento necessrio ao convvio social. No havendo essa
possibilidade de fingimento, de esconderijo, o outro se torna uma ameaa e, portanto,
no mais digno de confiana. Em um nvel macro, isso leva dissoluo do lao
social.
As prticas bioascticas fundem corpo e mente na formao dabioidentidade somtica, produzindo um eu que indissocivel dotrabalho sobre o corpo, o que torna obsoletas antigas dicotomias, taiscomo corpo-alma, interioridade-exterioridade, mente-crebro(ORTEGA, 2003, p. 68).
O impressionante poder de persuaso desses discursos advm da chancela por
eles recebida da cincia. Assim, a verdade est posta; a opinio, banida; a uniformidade,
instaurada; a normalizao, desejada. Basta observarmos alguns produtos comerciaispara percebermos do que se trata:
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O que voc escolhe para comer e beber pode ser decisivo na batalhacontra as reaes de oxidao causadas por radicais livres, queenvelhecem a pele e a deixam sem vio e com linhas de expresso.Alguns alimentos recomendveis so: abacaxi, acerola, caju, cenoura,
couve-de-bruxelas, couve-flor, couve-manteiga, kiwi, laranja, limo,maracuj, melancia, morango, tomate, uva e vinho tinto. Eles possuemcomponentes ativos como cido ascrbico, flavonides,bioflavonides, limonides e licopeno, que impedem ou dificultam oprocesso de desestabilizao das clulas. Muitas vezes, essassubstncias podem at destruir os radicais livres e, consequentemente,retardar o desgaste dos tecidos e salvar a sua beleza de dentro parafora. Para usufruir desses benefcios, indicado ingerir de trs a cincopores dirias de frutas e hortalias. (texto retirado do site de umafamosa clnica de esttica, prometendo o fim das rugas).
Note-se o que est acima indicado: a responsabilidade de cada um; a sade e o
bem-estar dependem de escolhas pessoais acertadas, pois a cincia j determinou o que
causa o aparecimento das rugas e como se pode fazer para evit-las. O mesmo site
completa com o exemplar enunciado: Seu rosto vai revelar muito mais de voc.
Equipe mdica dos sonhos: cirurgies e anestesistas membros daSBCP e da SBA. Mas como s isso no basta, muitos dos nossosmdicos so formados e especializados na USP e em outras faculdadesfederais, alm de possurem ampla experincia na rea e estarem emcontato com os ltimos avanos da Medicina Esttica. (Clnica deCirurgia Plstica Especializada).
Desperte a beleza que existe dentro de voc. (Espao de MedicinaEsttica).
O que a se v a fora de verdade do discurso cientfico transmutado em
discurso moral.
possvel, ento, perceber o quanto a biopoltica contribui para uma melhorcompreenso daquilo que est em jogo e em movimento na contemporaneidade. Em
termos genealgicos, a vida (nua), entendida em sua dimenso puramente biolgica,
acabou por transformar-se no s em elemento crucial de efetivao de polticas
sociais/pessoais, mas, acima de tudo, numa definio do mbito propriamente poltico
um mbito paradoxalmente convertido, como discutido acima, num movimento
apoltico. Seja no tratamento de indivduos singulares ou de populaes indiferenciadas,
da clonagem reprodutiva ou no, do risco epidmico, de obesos ou anorxicos, a
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categoria ser vivo que ocupa um lugar cada vez mais central no espao e na ao
pblicos.
Em sua dimenso fenomenolgica, tal fato tambm permite relacionar domnios
separados por divises administrativas e disciplinares o que foi aqui chamado de
espraiamento , desenhando uma nova cartografia das produes humanas. Aquilo que
parecia pertencer ao escopo da medicina e das cincias, passa a participar crescentmente
por meio de uma visada biopoltica no que tange administrao e gesto dos
corpos de conjuntos maiores e mais abragentes, nos quais temas como trabalho,
imigrao e urbanismo mesclam-se a questes de sade pblica, prtica clnica e
pesquisa biolgica.
Num plano que poderamos chamar de crtico, tais consideraes levam a uma
interrogao sobre as escolhas a serem feitas pelas sociedades contemporneas e sobre a
economia moral a que se submetem. Assim, a biopoltica pe a vida social em tenso,
reclamando uma tomada de posio, uma possibilidade de resistncia, uma defesa da
multiplicidade e de formas outras de vida, onde o que est em jogo uma pulso, um
desejo de liberdade e de felicidade no restritivas, no limitantes. O que a anlise crtica
da biopoltica permite vislumbrar a possibilidade de expresso de potncia e de
devires outros.
Vejamos, pois, o quanto os conceitos de espcie e gene, fundamentais nas
cincias biolgicas, instituem saberes e prticas biopolticas em campos alhures.
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3.ESPCIE E GENE:SUPORTES BIOPOLTICOS
3.1. A questo da espcie
[...] though we cannot define species,they yet have properties which varieties have not,
and [] the distinction is not merely a matter of degree3
William Bateson
A noo corrente de que haveria uma ciso fundamental entre as cincias puras e
as cincias aplicadas ancora-se no pressuposto no declarado de que possvel existir
neutralidade na produo cientfica. Supor essa neutralidade indica, antes de mais nada,
uma crena de que a cincia no s busca, mas efetivamente encontra a verdade. Ora,seguindo essa lgica, no que se refere a da verdade, no h como imaginar que
interferncias externas poderiam alterar aquilo que se pretende desvendar. Assim, o
olhar do pesquisador, ou ainda a rede de relaes complexas e mltiplas nas quais est
inserido o saber cientfico, no participariam da produo do conhecimento.
A hiptese deste trabalho baseia-se em uma premissa oposta suposio acima,
isto , na afirmao de que tal ciso no existe. Utiliza-se aqui a ideia de que as cincias
aplicadas (a tcnica) so efeito no s dos conhecimentos providos pela cincia pura,mas de toda a malha engendrada pelas relaes de poder-saber presentes no campo
cientfico consonante com as prticas sociais. Dessa forma, entende-se que a cincia
afirmativa, no sentido de produzir efeitos que se espraiam pelo tecido social, moldando
e implementando novas formas de vida, novas subjetividades.
A fim de discutir a hiptese proposta, parte-se de dois conceitos fundamentais do
campo das cincias biolgicas, a saber, os conceitos de espcie e gene. O que se
pretende refletir de que forma esses conceitos, estando profundamente entranhados
nas prticas biotecnolgicas, acabaram por instituir a possibilidade de existncia destas.
Alm disso, pretende-se problematizar o quanto tais conceitos se configuram, por meio
das biotecnologias, como potentes constituintes de estratgias biopolticas. Ainda, para
rastrear as estratgias que levam a desdobramentos de produo de bioidentidades e de
biossociabilidades, discutir-se-: afinal, o que uma espcie?
3 [...] embora no possamos definir estritamente as espcies, ainda assim elas tm propriedades que asvariedades individuais podem no ter, e as distines [entre as espcies e as variedades individuais] noso meramente uma questo de grau. (traduo nossa)
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A escolha desses conceitos no aleatria. Embora haja, no corpo de
conhecimentos produzidos pelas cincias biolgicas, numerosos conceitos
fundamentais, os dois escolhidos se configuram como os mais pertinentes para a
discusso aqui pretendida. Prova disso que, no obstante a fragilidade do conceito de
espcie, ele ainda assim funciona, provendo uma srie de prticas para aquilo que se
deseja.
ainda possvel produzir um discurso de espcie aplicvel moda de uma lei
geral baseada nas similitudes, como apontado em As palavras e as coisas
(FOUCAULT, 2002). Pode-se suspeitar que uma lei geral assim produzida, tendo em
vista as regularidades, acaba por se traduzir em formas de controle e enquadramentos: o
homem referenciando-se a si mesmo como algum pertencente a uma espcie com tais e
quais caractersticas. Trata-se, pois, da reafirmao de uma natureza inexorvel,
portanto , a qual faz-se necessrio obedecer sob pena de ser um desviante, um anormal.
Em reviso recente, John Wilkins (2002) lista 26 formas diferentes de qualificar
e definir espcie. Noes como espcie gnica, fenoespcie, espcie biolgica,
ecoespcie, dentre outras, compem o quadro e do uma pequena ideia do quo varivel
pode ser o conceito. No presente trabalho, o foco est na concepo de espcie que
atende pelos nomes de espcie gentica e bioespcie, devido recorrncia delas e
importncia dos autores que as definem (Theodosius Dobzhansky e Ernst Mayr,
respectivamente). Tanto Dobzhansky quanto Mayr podem ser apontados como os mais
influentes geneticistas do sculo XX, tendo elaborado em conjunto a Teoria Sinttica da
Evoluo ou Neodarwinismo, teoria que agrega os conhecimentos genticos aos
conceitos darwinianos de seleo natural e evoluo. Ela emprega as noes de espcie
e gene, e a principal teoria sobre a qual se assenta a biologia contempornea.
Em 1935, Dobzhansky publicou o artigo A critique of the species concept in
biology. Habilidosamente, ele lanou ali os alicerces para uma nova forma de entender omundo vivo por meio da definio de espcie. No toa, pois, que o ttulo traduz uma
insatisfao; trata-se mesmo de uma crtica com vistas a inaugurar um novo paradigma.
Dobzhansky inicia seu texto reconhecendo o problema como forma de mostrar
que uma soluo possvel: o conceito de espcie um dos mais antigos e mais
fundamentais na biologia. Entretanto o mais universalmente reconhecido como no
satisfatrio4(DOBZHANSKY, 1935, p. 344, traduo nossa).
4 The species concept is one of the oldest and most fundamental in biology. And yet it is almostuniversally conceded that no satisfactory definition of what constitutes a species has ever been proposed.
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A dificuldade, segundo ele, apresenta-se em razo da enorme variedade das
formas de vida conhecidas, e a necessidade de uma definio razovel defendida tendo
em vista que a formao de um conhecimento coerente sobre o mundo vivo depende da
ajuda de uma classificao hierrquica (espcie o nvel mais elementar de
categorizao taxonmica5, uma vez que categorias individuais no teriam nenhum
pragmatismo). A questo fundamental para Dobzhansky : seriam as espcies uma parte
da ordem da natureza, ou uma parte da ordem desejada pela nossa mente? Sua
resposta aponta para a primeira opo.
Dobzhansky prossegue encaminhando sua argumentao no sentido de reforar a
ruptura com a noo de Grande Cadeia do Ser6que perdurou na Histria Natural por
quase 24 sculos, tendo se espraiado por campos outros da produo humana moda de
uma ideia-unidade. Os primrdios dessa ruptura originam-se no Romantismo alemo e
nas formulaes acerca da evoluo, tendo a Teoria Darwinista da Evoluo um papel
fundamental. Em linhas gerais, o que se deseja combater e que se apresenta com fora
na Grande Cadeia do Ser a ideia aristotlica de continuidade entre as formas de vida,
no se podendo assim, dado o continuum, falar em espcie, mas somente em uma linha
contnua, fixa e encadeada. Apenas para ilustrar o que aqui est em jogo, vejamos o que
nos diz Aristteles acerca de como a natureza funciona:
A natureza passa do animado para o inanimado de maneira to gradualque sua continuidade torna indistinguvel a fronteira entre eles; e huma espcie intermediria que pertence a ambas as ordens. Pois asplantas vm imediatamente depois das coisas inanimadas; e as plantasdiferem umas das outras quanto ao grau com que elas parecem
5Categorias taxonmicas: as categorias taxonmicas podem ser definidas como o nome associado a umdeterminado txon, sendo este ltimo uma designao de organismos que podem ser reunidos com baseem uma caracterstica particular. A categoria associada ao txon demonstra o nvel de generalidade a queestamos nos referindo relativamente a um txon entre outros. As categorias taxonmicas mais usuaisremontam ao Systema Naturaeproposto por Lineu em 1878 e so: espcie, gnero, famlia, ordem, classe,filo e reino. Percebe-se que nesta ordenao partimos do menos abrangente para o mais abrangente.Outras categorizaes intermedirias so possveis e largamente utilizadas, tais como, sub-reino, sub-filo,infra-ordem, entre outras.6Grande Cadeia do Ser: a denominao descritiva do universo conhecida como cadeia do ser abrigavaa afirmao da constituio do mundo de trs caractersticas especficas, a saber: a existncia de doismundos, o princpio de plenitude e o princpio da continuidade. A aceitao destas caractersticas implicauma certa concepo da natureza de Deus. Esta concepo foi associada por sculos a outra que lhe eraoposta, sendo esta oposio fonte de contradio dentro do pensamento religioso do Ocidente. A estespressupostos de constituio de mundo esteve associada tambm certa concepo de valor ltimo que ster sua derrocada no perodo do Romantismo alemo. Ainda assim, esta certa ideia de valor, juntamentecom a crena de que o universo aquilo que o termo a cadeia do ser deve conter, forneceu as bases paraa tentativa de compreenso do problema do mal e para mostrar que o esquema das coisas inteligvel epode ser apreendido pela mente racional.
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participar da vida. Pois a classe tomada como um todo parece, emcomparao com outros corpos, ser claramente animada; mas, secomparada aos animais, parece ser inanimada. E a transio das plantaspara os animais contnua. Assim, pois, algum pode perguntar sealgumas formas marinhas so animais ou plantas, uma vez que muitasdelas esto grudadas na rocha e morrem se forem separadas delas. (apudLOVEJOY, 2005, p. 61)
Ao longo de doze pginas, Dobzhansky utiliza-se de todos os recursos para
reduzir a questo da espcie quilo que chama de constelao gnica. Considerando que
possvel e desejvel estabelecer uma definio mais ou menos abrangente, ele parte do
pressuposto (mesmo sem admitir tratar-se de uma pressuposio) de que a variabilidade
das formas de vida observada no to grande assim, quando olhada no aspecto mais
abrangente. Que exista variabilidade, inegvel; mas possvel entend-la como uma
variao descontnua. justamente aqui que se encontra o ponto fundamental de
negao do aristotelismo. Quando se trabalha com a ideia de descontinuidade, v-se que
possvel agrupar os organismos de acordo com a mesma. Dessa forma, uma
classificao natural em oposio a uma artificial e, assim, passvel de uma crtica
mais contundente pode ser definida como aquela que reflete, empiricamente,
descontinuidades existentes nos materiais que se deseja classificar. Assim, num nvel
menos descontnuo teramos as espcies; aumentando-se gradativamente o nvel de
descontinuidade, teramos o gnero, a famlia, o ordem e todas as demais categorias
taxonmicas. Percebe-se, pela leitura cuidadosa do texto, que Dobzhansky vai procura
de exemplos da fauna e da flora que possam ajud-lo a formar sua ideia de espcie. Essa
mesma busca foi empreendida por Aristteles para reforar a ideia de continuidade dos
seres vivos, donde se depreende que a natureza suficientemente generosa a ponto de
contemplar, com exemplos distintos, noes opostas.
No caso de Dobzhansky, percebe-se claramente que no se est questionando a
existncia de uma ordem subjacente, apesar de isto estar anunciado no incio do artigo,
guisa de retrica. A ordem existe e basta utilizar o mtodo adequado para encontr-la,
de tal sorte que seja til e profcuo. E aqui est o ponto alto do texto, pois, em poucos
anos, Dobzhansky, Mayr e Simpson lanariam a Teoria Sinttica da Evoluo. A Nova
Sntese, como tambm conhecida, anunciar que todo o mundo vivo pode ser
compreendido de uma maneira globalizante, uma vez que tudo aquilo que vivo teria
um mesmo padro de funcionamento; haveria regularidades neste mundo. O artigo de
1935 parece querer plantar as bases para a aceitao do que viria mais tarde. Alm
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disso, esse artigo seria ainda o alicerce sobre o qual as biotecnologias, setenta anos
depois, poderiam granjear. Ele acena, pois, com uma nova forma de conceber
organismos, retirando da taxonomia clssica o poder de definir o que uma espcie
tendo em vista o fato de ela se basear em caractersticas morfolgicas anatmicas, em
uma exterioridade palpvel. A partir dessa nova perspectiva, o que deveria definir uma
espcie seria, antes de mais nada, a compatibilidade sexual entre os organismos (sexual
aqui entendido como compatibilidade entre os cromossomos7 e os genes dos
organismos). Em suma, pode-se dizer que o artigo de Dobzhansky inaugura o olhar
gentico sobre os organismos, transferindo as similitudes que eram superficiais, de
aparncia, para um lugar interno. dentro do prprio organismo, mais especificamente
em seus gametas, que estaria sua identidade.
O que parece extremamente interessante no caminho analtico percorrido por
Dobzhansky o fato de que suas concluses e sua definio so elaboradas a partir de
uma negao, isto , a partir daquilo que o seu avesso: os organismos hbridos, cuja
propalada esterilidade est, fisiolgica e molecularmente, ligada a problemas na
meiose8.
Assim, definem-se como pertencentes mesma espcie indivduos em cujo
processo meitico h pareamento compatvel entre os cromossomos homlogos9a fim
de que se produzam gametas10 capazes de perpetuar a espcie. Tratas-se de uma
definio que se dobra sobre si mesma, representando assim como a figura da cobra
que come o prprio rabo um eterno reincio, uma eterna retroalimentao.
Curiosamente, algo semelhante ocorreu o Projeto Genoma Humano (PGH); pois, afinal,
qual genoma foi sequenciado? Do genoma de que humano estamos falando? Tratou-se
de um pool no qual os genes sequenciados caracterizavam-se pela anomalia, isto ,
aqueles genes que, mutados, so responsabilizados por doenas. O genoma saudvel foi,
enfim, inferido por meio do genoma defeituoso.
7Cromossomo: longa molcula de DNA associada a protenas, onde esto inscritas as instrues para ofuncionamento das clulas.8Meiose: processo de diviso clula em que uma clula diplide d origem a quatro clulas haplides,cada uma com metade do nmero de cromossomos da clula original. a meiose que produz os gametas,e neste tipo de diviso celular que ocorre a recombinao gnica, por meio do pareamento especficodos cromossomos homlogos, responsvel pela variabilidade gentica dos organismos.9 Cromossomo homlogo: cada um dos cromossomos que apresentam a mesma sequncia de genes;encontram-se aos pares nas clulas diplides (aquelas que possuem o contedo total do genoma de umorganismo sexuado), sendo cada representante do par herdado originalmente de cada um dos gametas.10 Gameta: cada uma das duas clulas haplides (aquelas que possuem apenas metade do patrimnio
gentico dos organismos sexuados) que se unem na reproduo sexuada, originando a primeira clula donovo indivduo, o zigoto.
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O que certamente escapou a Dobzhanski foram as possibilidades de
desdobramento que essa interiorizao das identidades especficas poderia engendrar.
Sobre esses desdobramentos para outros campos alm do biolgico, trataremos um
pouco mais adiante, de forma a contemplar, de uma s vez, uma anlise que tome em
considerao tambm o que Mayr defendeu.
O atual conceito de espcie foi reformulado em 1942, como marco do esforo
intelectual de um dos evolucionistas mais longevos da histria. Trata-se de Ernst Mayr,
morto, em 2005, s vsperas de completar 101 anos de idade. Sua carreira cientfica
iniciou-se em Harvard em 1928, por ocasio de seu doutoramento sobre as aves-do-
paraso da Nova Guin. Ao longo de seus 80 anos de atividade acadmica, Mayr
procurou trabalhar tanto na pesquisa de campo, quanto na elaborao de bases
filosficas mais slidas para a biologia. dele a obra-referncia O desenvolvimento do
pensamento biolgico (1998), em que percorre 24 sculos de uma cincia que se
formalizou h pouco. Partindo de Aristteles, Mayr explora a histria das ideias acerca
do mundo vivo. Algo marcante em sua produo a preocupao em salvaguardar um
espao nico para a biologia, livre das matematizaes e dos reducionismos prprios s
cincias fsicas. Isto se deve viso essencial na filosofia biolgica de Mayr de que
organismos vivos possuem propriedades ditas emergentes que poderiam ser entendidas
como aquelas no encontrveis nas partes isoladas, mas que se expressam no todo
complexo. Prova dessa preocupao so seus ltimos trabalhos publicados entre ns:
Biologia, cincia nica Reflexes sobre a autonomia de uma disciplina cientfica
(2005) eIsto biologia A cincia do mundovivo(2008).
Em sua conceituao, duas definies so claramente contrapostas: a definio
de natureza tipolgica, tpica de Lineu e que remonta a Plato e Aristteles, francamente
calcada na ideia de diferenas fenotpicas entre os indivduos, e uma definio que ele
chama de conceito biolgico de espcie. Como no poderia deixar de ser, o que Mayrprope uma definio tambm baseada no contedo gentico. De acordo com ele, uma
espcie biolgica constituda por grupos de populaes naturais capazes de
entrecruzamento, e que so reprodutivamente (geneticamente) isolados de outros grupos
similares. O que est em evidncia aqui so as relaes genticas, e no mais as
diferenas ou semelhanas morfolgicas. Tem-se, assim, o reforo de uma
interiorizao da identidade para dentro dos corpos, para dentro das clulas, para dentro
de seus ncleos.
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H, nessa conceituao, uma preocupao em ressaltar que o conceito refere-se
apenas e to somente a populaes comunidades reprodutivas, nas palavras de Mayr:
O status de espcie propriedade de populaes, no de indivduos.
Uma populao no perde seu status de espcie quando,ocasionalmente, um indivduo que dela faz parte comete um erro ehibridiza com outra espcie (MAYR, 2005, pp. 192-193).
Assim como fizera Dobzhansky anteriormente, Mayr ressalta que no se trata de
um agrupamento artificial: o conceito de espcie transmite o significado de espcie na
natureza. No se pode esquecer que a luta aqui se d por um novo espao no campo das
cincias biolgicas, e, de modo a no permitir dvidas, necessrio marcar
categoricamente a linha de separao entre a nova sistemtica e a linneana. Desta forma,peremptoriamente, Mayr anuncia que esse sim um conceito que tem um papel
concreto na natureza, no se tratando de meras instrues baseadas no juzo humano
sobre como delimitar txons de espcies caracterstica esta que ele imputa
sistemtica linneana.
Assim, definir espcie significa, antes de mais de nada, reconhecer que seu
significado biolgico est inexoravelmente ligado proteo de um acervo harmonioso
de genes (a constelao gnica de Dobzhansky), e que sua validade s pode se dar numa
dimenso temporal e espacial concreta. Dito de outra forma, somente quando
organismos distintos se encontram na natureza que podemos avaliar aquilo que
responsvel por sua integridade. Se houver cruzamento com produo de prole frtil,
teremos a confirmao da espcie em questo.
Essa definio, no entanto, s aplicvel a organismos que se reproduzem por
meio do sexo (sexo entendido aqui como encontro de gametas que geraro um novo
ser). O que poderia ser dito, ento, sobre os organismos que se reproduzem de forma
assexuada? Novamente, incorre-se no problema da excluso de numerosas formas de
vida na medida em que elas no so compatveis com o conceito inventado. Em
Dobzhansky, os excludos so os hbridos; aqui, so os organismos assexuados. Como
possvel afirmar que a espcie existe concretamente na natureza, se numerosas formas
de vida so automaticamente excludas? Mayr chega mesmo a falar em erro, como se os
organismos, por um engano momentneo, tivessem cruzado com quem no deveriam!
Ou seja, tratar-se-ia de um engano da natureza.
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No obstante todas as consideraes a respeito serem feitas de maneira elegante
em ambas as formulaes analisadas, o que permanece : apesar dos dissonantes,
espcie isto, e ponto final. Mesmo assim, no se pode j falar em reducionismo; no se
trata efetivamente disso. Antes, trata-se de uma mirada num nvel de organizao que
atende apenas plataforma celular ou molecular. O que essa mirada no resolve o
paradoxo fundamental dos organismos vivos de que a soma do funcionamento das
partes no explica o funcionamento do todo. H reducionismo apenas quando se
pretende que esse paradoxo seja deixado de lado, como se fosse algo irrelevante, e os
organismos vivos passam a ser encarados pela viso microscpica. E justamente isso o
que ocorre.
A cincia como inveno, enfim, acaba por no ser problematizada. Fica apenas
a suposta verdade cientfica, sem os questionamentos necessrios. Afinal, em tempos de
biotecnologias produtoras de novos seres, o que fazer com as populaes de
transgnicos? De que status desfrutaro os clones e hbridos hiper-modernos? Que tipo
de lugar poderiam ocupar esses novos seres? Estas so apenas algumas das questes
sobre as quais uma filosofia da biologia deveria se debruar. A discusso tica uma
necessidade premente, dados os desdobramentos a que estamos assistindo.
Muito se tem produzido traduzindo essa inquietao. Obras de arte, como as j
mencionadas e as da artista plstica Patricia Piccinini11, incrivelmente impactantes, so
apenas exemplos. Piccinini, em seu mundo ps-espcie, cria seres possveis, seres em
relao e convivncia com o humano que tambm j ps-humano.
Alm da produo de novos seres, temos a produo de outro homem. A
hiptese aqui que esse novo homem est sendo engendrado pelas biotecnologias, e
que estas puderam granjear justamente porque o entendimento de espcie como acima
exposto tornou possvel a manipulao da identidade biolgica transformada em
bioidentidade. A insistncia em trazer a discusso acerca do conceito de espcie para ocorpo deste trabalho diz respeito produo de bioidentidades, de biossociabilidades.
Veremos como as duas plataformas dialogam de forma a mostrar a potncia desse
conceito como um dispositivo, algo que se espraia por campos alheios ao de sua
produo original, engendrando novas formas de compreender a vida.
11 Nascida em Serra Leoa em 1965, reside na Austrlia desde 1972. Formou-se em Lngua Italiana naUniversidade de Firenze, Itlia (1985 a 1988). De volta Austrlia em 1989, bacharelou-se em Artes pela
Universidade Nacional da Austrlia e no Victorian College of the Arts tambm australiano. Suas obrastraduzem um questionamento contundentes das manipulaes genticas, da sua presena neste trabalho.
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O reducionismo se concretizaria por meio do conceito de gene.
Tomemos, a ttulo de demonstrao da ausncia de problematizao, o que
aparece em livros didticos, pois por meio deles que os estudantes entram em contato
com os conceitos fundamentais da biologia, inclusive o de espcie. Numa amostragem
preliminar pequena, mas significativa foram examinados trs livros de ampla
utilizao nas escolas paulistas.
Espcie um agrupamento de populaes naturais, reais oupotencialmente intercruzantes, produzindo descendentes frteis ereprodutivamente isolados de outros grupos de organismos (LOPES,2004, p. 182).
Espcie: grupo de populaes cujos indivduos so capazes de secruzar e produzir descendentes frteis, em condies naturais, estandoreprodutivamente isolados de indivduos de outras espcies (AMABIS& MARTHO, 2006, p. 236).
Espcie biolgica seria o grupo de organismos capazes de se cruzaremna natureza, produzindo descendentes frteis. O conceito de espciebaseado na capacidade de reproduo amplamente aceito hoje.Assim mesmo, ele tem algumas limitaes; no pode ser aplicado, porexemplo, a organismos que se reproduzem assexuadamente [...]. Vejaainda o caso da comparao entre dois fsseis de espcies extintas.Evidentemente a deciso sobre se pertencem ou no mesma espcieno poder basear-se no critrio reprodutivo (CSAR & SEZAR,2007, p. 629).
Nota-se que apenas na ltima definio h a preocupao de assinalar a
dificuldade de uma conceituao moda de uma lei geral. Somente nesse caso so
apontadas as limitaes do conceito. No entanto, apesar de a ressalva ter sido feita, a
problematizao no levada a cabo, pois o conceito, da forma em que foi posto,
funcional, pragmtico; no justifica, portanto, perder tempo de aula com esse tipo de
discusso. Dessa forma, nossos alunos aprendem que um organismo identificvel pelo
seu contedo gentico e pertencente a uma dada espcie, desde que este contedo
gentico esteja em harmonia com o de outro organismo. A medida , pois, o pareamento
especfico dos cromossomos homlogos na meiose. Os hbridos e os assexuados so
excees, casos parte. O problema que esses casos parte so numerosssimos, e a
ausncia de uma discusso sobre isso impede que importantes reflexes sejam
alavancadas. Perde-se a oportunidade de discutir a vida objeto, por excelncia, da
biologia na contemporaneidade. Nossos alunos acabam sendo privados dapossibilidade de pensar formas outras de existncia.
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3.2. DNA, a molcula da hereditariedade
A dupla-hlice uma estrutura sucinta,mas sua mensagem no poderia ser mais prosaica:
a vida uma simples questo de qumica.Watson e Crick
A natureza qumica do material nuclear j estava elucidada desde o final do
sculo XIX. Tendo um forte acento bioqumico, a biologia daquela poca buscava
desvendar a composio dos diversos materiais celulares. Assim, Johann Friedrich
Miescher, trabalhando com bandagens utilizadas em ferimentos, isolou glbulosbrancos presentes no pus e, a partir da anlise de seus ncleos, pde perceber ali a
existncia de um material com caractersticas bem marcadas. Nos ncleos das clulas,
encontrava-se um componente com comportamento cido, rico em fosfato e em
nitrognio, que foi chamado de nuclena. Em estudos bioqumicos posteriores, Albrecht
Kossel demonstrou que a riqueza em nitrognio se devia presena de bases
nitrogenadas e, s vsperas do sculo XX, Richard Altmann, aluno de Miescher, cunhou
o termo cido nuclico.
O DNA s viria a ser assim chamado por volta de 1912, quando Phoebus Levine
e Walter Jacobs propuseram a existncia de unidades bsicas, os nucleotdeos,
concluindo que o DNA (cido desoxirribonuclico) era um polmero formado por tais
unidades nucleotdicas.
Essa breve descrio pode dar a impresso de que se pretende traar uma histria
das ideias acerca do DNA. No entanto, no isso que est em questo aqui. A
apresentao desse breve relato no pretende demonstrar a existncia um caminho linear
e progressivo de investigaes que culminaram em uma descoberta da verdade, mas
sim a fragilidade e, talvez, a arbitrariedade com que conceitos ou entidades biolgicas
assumem determinados papis. Vejamos.
O vis bioqumico tpico supramencionado era significativo, mas obviamente
convivia com outras abordagens igualmente bem representadas. Uma dessas variantes
eram os estudos fisiolgicos.
As questes moleculares da hereditariedade demoraram muito a fazer parte do
rol de preocupaes cientficas, tornando-se presentes somente algum tempo depois do
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resgate dos trabalhos mendelianos. Numa demonstrao da importncia do vis
fisiolgico, Bateson, no Congresso Internacional de Botnica de 1906, cunhou o termo
gentica com a seguinte declarao: um novo e bem desenvolvido ramo da fisiologia
foi criado. A este estudo podemos dar o ttulo de Gentica (KELLER, 2002, p. 13,
grifos nossos).
A busca estava direcionada para uma molcula que fosse capaz de explicar o
funcionamento dos mecanismos hereditrios (a importncia dos trabalhos de Mendel
sobre a elucidao destes mecanismos ser discutida mais adiante). Naquele momento,
nenhuma molcula desfrutava de mais prestgio do que as protenas, uma vez que elas
esto virtualmente implicadas em todas as reaes metablicas das clulas. Na verdade,
elas esto no apenas envolvidas metabolicamente, mas tambm estruturalmente. Nos
anos subsequentes ao anncio de Bateson, muitos experimentos tentaram demonstrar
que as protenas eram as entidades fsicas responsveis pela hereditariedade. No
entanto, os esforos nesse sentido acabaram por sucumbir diante da evidncia
experimental de que a molcula em questo era o DNA e no outra. A retirada de cena
definitiva das protenas como candidatas a molculas da hereditariedade deu-se em
1952, com os experimentos de Hershey e Chase com bacterifagos T2.
Iniciou-se, a partir da, uma corrida pela elucidao da estrutura dessa molcula.
Uma vez que sua natureza qumica j era conhecida, era necessrio agora saber como os
nucleotdeos deveriam estar organizados e ligados entre si. O modelo, nesse caso, era
fundamental, pois a partir dele seria possvel inferir os mecanismos de duplicao
(herana) e, ao mesmo tempo, de salvaguarda da informao. Em outras palavras,
poder-se-ia saber a fisiologia da herana.
Foi em 1953, apenas um ano aps a aceitao do DNA como a molcula da
hereditariedade, que James Watson e Francis Crick propuseram o modelo
tridimensional da molcula do cido desoxirribonuclico. O que impressiona aqui avelocidade com que a despreocupao quanto s questes da hereditariedade cedeu
espao a um interesse central em relao s mesmas. Pode-se supor que esse espao
tenha sido to rapidamente conquistado por conta das numerosas possibilidades
tecnolgicas que foram imediatamente vislumbradas. A hiptese de largada a de que
quanto maior o efeito produtivo e afirmativo de um conceito, mais rapidamente ele
alcana um status de ponta.
Mas, se o gene j existia desde 1909 e se o DNA apenas foi atrelado hereditariedade mais de 40 anos depois, qual a relao entre ambos? Como conectar
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os conceitos de gene e a molcula de DNA s noes de informao, conservao,
mudana e transmisso? A fim de iluminar estas questes, enveredemos pelo conceito
de gene.
3.3. A questo do gene
J era primavera na Inglaterra quando o trem partiu rumo a Londres. O dia era 8
de maio de 1900 e, assim como o solo primaveril, prenhe e frtil, uma inveno entrava
em curso alicerando um dos campos mais profcuos e produtivos da cincia
contempornea: a gentica. Aproveitando o tempo livre, o ilustre passageiro William
Bateson, professor da Johns College, lia os trabalhos sobre ervilhas que um
desconhecido monge agostiniano havia escrito acerca do padro de herana de sete
caractersticas da Pisum sativum. O impacto da leitura o faria declarar:
Uma determinao exata das leis da hereditariedade provavelmenteter mais influncia sobre a viso que o homem tem do mundo, esobre o poder do homem em relao natureza, do que qualquer outroavano do conhecimento que possamos imaginar [...]. No h a menordvida de que estas leis podem ser determinadas (apud HENNIG,2001, p. 11, grifos nossos).
No se trata aqui, porm, de elencar as virtudes da Pisum, tampouco as do
dedicado monge que contou e analisou mais de trezentas mil sementes de ervilhas.
Pretende-se, antes, situar a histria de uma das fabulaes mais bem-sucedidas da
biologia: a histria de como uma molcula o DNA tornou-se o cdigo da vida, e de
como a entidade gene passou a ocupar uma funo explicativa da mais alta ordem sobre
os seres viventes. Dito de outra forma, pretende-se discutir como os genes alcanaram afora explicativa que congrega no apenas a noo de origem, de programa, mas
tambm de desenvolvimento.
O conceito fundamental dessa trajetria obviamente ser o de gene, poro do
material portador da informao gentica. Mas, o que efetivamente significa
informao? Quanto um gene capaz dizer sobre ns mesmos? Trata-se aqui de
iluminar estas questes por meio dos conceitos de biopoltica e bioidentidade, e, ainda,
de discutir o quanto a difuso dos conhecimentos cientficos especficos da biologia
molecular acabou por abalar as noes de normalidade e patologicidade.
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O termo gentica foi cunhado em 1906 por Bateson, o bilogo que alguns anos
antes havia redescoberto os trabalhos de Gregor Mendel em textos de Hugo de Vries, de
Carl Correns e de Erich Von Tschermak, publicados simultaneamente no Proceedings
ofthe German Botanical Society.
Pensar que os trabalhos mendelianos ficaram esquecidos durante quase 30 anos
desafia nossa compreenso, dada a importncia de que a gentica desfruta hoje. Poder-
se-ia supor que o fato de terem sido publicados em alemo, numa obscura revista de
botnica, por um monge geograficamente isolado, seriam motivos suficientes para
explicar esse esquecimento; no se deve crer, porm, que toda a m sorte inicial do
mendelismo possa ser imputada a esses fatores. Em Ordem do discurso (2004),
Foucault expe uma interessante problemtica acerca desse silncio. Em sua anlise, ele
toma como condio essencial para o surgimento de uma dada disciplina que suas
proposies inscrevam-se em certo horizonte terico. A partir deste ponto de vista, no
basta que uma proposio seja verdadeira de fato; no a verdade que est em jogo,
mas sua insero numa dada sistemtica de pensamento. Assim, no obstante Mendel
dizer aquilo que posteriormente seria aceito como a verdade sobre os padres de
herana hereditria, seus mtodos e objetos situavam-se num horizonte estranho aos
estudos biolgicos de sua poca. Vale dizer que Mendel foi o pioneiro no uso da
estatstica como ferramenta produtora de conhecimento cientfico nas cincias
biolgicas.
Mendel dizia a verdade, mas no estava no verdadeiro do discursobiolgico de sua poca: no era segundo tais regras que se constituamobjetos e conceitos biolgicos; foi preciso toda uma mudana deescala, o desdobramento de todo um novo plano de objetos na biologiapara que Mendel entrasse no verdadeiro e suas proposiesparecessem, ento, (em boa parte) exatas (FOUCAULT, 2004b, p.35).
o que Franois Jacob (2001) chama de campo do possvel. Para este bilogo-
filsofo estudar a histria da biologia , antes de tudo, dar-se conta de como os objetos
tornaram-se acessveis anlise. Dito de outra forma, podemos entender que estudar a
histria da biologia investigar o campo do possvel em cada poca, definido pelas
teorias ou crenas em curso, pela natureza dos objetos acessveis, pela tecnologia
disponvel para efetuar o estudo, pela maneira mesma de observar e falar sobre os
objetos.
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Assim, o discurso gentico surge no momento em que o campo do possvel se
apresenta a ele, no momento em que a verdade inscreve-se num horizonte terico
adequado. sobre o nascimento do conceito de gene e, mais, sobre um discurso sobre o
gene, que se pretende discorrer aqui. Ainda com Foucault:
O discurso nada mais do que a reverberao de uma verdadenascendo diante de seus prprios olhos; e, quando tudo pode, enfim,tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discursopode ser dito a propsito de tudo, isso se d porque as coisas, tendomanifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar interioridadesilenciosa da conscincia de si (FOUCAULT, 2004b, p. 49).
Na trilha de Foucault, possvel afirmar que no crivo do pensamento ocidental
pensamento este que guarda a menor distncia possvel entre o pensamento e apalavra, materializando uma realidade por meio do discurso que se d o nascimento
do imprio gentico.
Vale a pena aqui, antes mesmo de dar incio ao nosso percurso analtico sobre o
gene, retomar a ideia do pioneirismo de Mendel no uso de ferramentas estatsticas
utilizadas na abordagem de fenmenos do mundo vivo. Dito de outra forma, a mirada
mendeliana era populacional em termos foucaultianos, tratava-se de biopoltica.
No parece razovel imputar a utilizao do arsenal matemtico-estatsticosimplesmente ao fato de Mendel ser fsico. O que parece que o ilustre monge
agostiniano se inseria num movimento mais amplo ligado ao governo dos homens,
sendo estes entendidos em sua dimenso de espcie biolgica. De novo, trata-se
precisamente daquilo que Foucault chamou de biopoltica.
O termo gene aparece somente em 1909 sem que nenhum conceito estivesse
associado a ele , muito antes de o DNA ser eleito como a molcula da hereditariedade.
Na verdade, ele surge com um duplo propsito. Primeiramente, parecia necessrio dar