biologia, biopolítica, bioarte, biocontemporaneidade

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  • 7/25/2019 Biologia, Biopoltica, Bioarte, Biocontemporaneidade

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE EDUCAO

    LUCIANA VALRIA NOGUEIRA

    Aproximaes entre biologia, biopoltica e bioarte:

    um ensaio sobre a biocontemporaneidade

    So Paulo2009

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    LUCIANA VALRIA NOGUEIRA

    Aproximaes entre biologia, biopoltica e bioarte:

    um ensaio sobre a biocontemporaneidade

    Dissertao apresentada Faculdade de Educao da

    Universidade de So Paulo para obteno do ttulo deMestre em Educao.

    rea de concentrao: EducaoOrientador: Prof. Dr. Julio Groppa Aquino

    So Paulo2009

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    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    37.01 Nogueira, Luciana ValriaN778a Aproximaes entre biologia, biopoltica e bioarte : um ensaio sobre

    a biocontemporaneidade / Luciana Valria Nogueira ; orientao JulioGroppa Aquino. So Paulo : s.n., 2009.

    --- p. il.

    Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao emEducao.rea de Concentrao : Educao) - - Faculdade deEducao da Universidade de So Paulo.

    1. Foucault, Michel, 1926-1984 2. Deleuze, Gilles, l925-1995 3.Guattari, Felix, 1930-1992 4. Filosofia da educao 5. Biologia Filosofia 6. Governamentalidade 7. Arte ciberntica I. Aquino, JulioGroppa, orient.

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    FOLHA DE APROVAO

    Luciana Valria NogueiraAproximaes entre biologia, biopoltica e bioarte: um ensaio sobre a biocontemporaneidade

    Dissertao apresentada Faculdade de Educao

    da Universidade de So Paulo para obteno dottulo de mestre em Educao.rea de Concentrao: Psicologia e Educao

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: ____________________________ Assinatura: _______________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: ____________________________ Assinatura: _______________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: ____________________________ Assinatura: _______________________

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    Para

    Shirley Schreier,

    com amor e gratido

    (ainda que no esteja sua altura).

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    AGRADECIMENTOS

    Tomando-se como manifestao concreta de nossas multiplicidades, com suas

    linhas, meridianos e fusos que nos atravessam a todo o momento, no h como noperceber que essa geografia experimentada, essa cartografia constituda, deve sua

    construo a muitas pessoas. Pautada na convico de que somente a amizade pode

    produzir uma verdadeira esttica da existncia, tomo a gratido como ocasio para o

    registro de minha alegria por finalizar este trabalho. Assim, com todo o meu corao e

    com todo o meu sentimento, registro aqui meus mais sinceros agradecimentos.

    Ao meu pai, por ter me ensinado o amor ao mundo natural.

    minha me, pelo amor vida e aos livros.

    Shirley Schreier, que me ensinou a fazer cincia e a enxergar a beleza nos

    fenmenos do mundo. Os anos que passei em seu laboratrio foram fundamentais em

    minha formao. Entre um espectro e outro, ali fui me constituindo.

    Aos amigos da vida: Eduardo Lins, Rebecca Schaeffner, Hermann de Oliveira,

    Tharin Blumenschein, Mrio Videira e William Ferro. Sem eles, a tarefa de viver no

    seria to bela e fecunda.

    Aos colegas e amigos da ps-graduao: Adlia, Carlos Manoel, Carlos Rubens,

    Cludia, Danilo, Elisa, Fbio, Ftima, Gisela, Marcelo, Mnica, Thomas e Sandra.

    Nossos encontros foram sempre regados por um incrvel respeito ao pensamento e me

    ensinaram muito mais do que se pode imaginar.

    Carol, pela ajuda inestimvel em me salvar do meu ingls.

    Ao Andr Vilela, pelas dicas que acabaram por nortear os rumos deste trabalho,

    ainda que ele no saiba a importncia de sua contribuio.

    s professoras Cintya Ribeiro e Maria Elice Brzezinski Prestes, integrantes da

    banca, pela fora e pela ajuda em me fazer pensar.

    Ao Daniel, pela incrvel disponibilidade e ajuda na reta final. No fosse seu

    socorro, eu dificilmente teria tido a serenidade necessria para concluir o trabalho.

    Cintya, que partilhou comigo a vivacidade de seu pensamento. Nossas

    conversas esto registradas em minha alma.

    Aos meus alunos, fonte de energia e vontade para continuar estudando.

    Ao Julio, pelos quinze anos de convivncia que me ensinaram mais do que sou

    capaz de aprender. Julio, no h muitas palavras disponveis para traduzir minha

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    gratido. Definitivamente, voc no se transforma agora em uma linha na lista de

    agradecimentos. Muito alm disso, voc est presente em cada uma das muitas linhas

    deste trabalho. Nenhuma palavra teria sido grafada no fosse sua dedicao e sua

    orientao, sua presena constante e amiga. Obrigada por me contaminar com seu amor

    ao pensamento, por ser esse guerreiro diante da vida, por sua generosidade sem par, por

    me mostrar que mais vale um gesto tmido do que uma inteno grandiosa. Este

    trabalho fruto desse tmido gesto. Julio, a voc, amor e gratido eternos.

    Ao Sandro, meu amor e companheiro de toda a vida, que sempre acreditou na

    minha capacidade, valorizando meu trabalho e me ajudando em todos os momentos (na

    alegria e na tristeza, na sade e na doena).

    Aos meus filhos, Nina e Leo, pelo tempo que sinto ter-lhes roubado, por todas as

    vezes que no pudemos brincar ou sair, pela compreenso e amizade. A eles, todo o

    meu amor. Obrigada.

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    RESUMO

    NOGUEIRA, L. V. Aproximaes entre biologia, biopoltica e bioarte: um ensaiosobre a biocontemporaneidade.2009. 113 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de

    Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.

    Este trabalho, de carter ensastico, pretende configurar algumas implicaes dodiscurso biolgico na contemporaneidade por meio da anlise de como certos conceitosoriundos do campo das cincias biolgicas espcie e gene, particularmente espraiam-se pelo corpo social, associando-se a determinados modos de subjetivao. Ahiptese norteadora do estudo a de que a no explicitao da fragilidade de ambos osconceitos obedece a demandas de controle e de assujeitamento, sobretudo no que serefere ao desenvolvimento e utilizao de biotecnologias. Trata-se da produo denovas formas de vida e, ao mesmo tempo, de processos especficos de subjetivao.

    Partindo da premissa de que um novo homem est sendo forjado pelas biotecnologias,argumenta-se no sentido de que elas puderam granjear certa legitimidade no imaginriosocial justamente porque tais conceitos so solidrios converso da identidadebiolgica em bioidentidade. De acordo com Foucault, se antes as disciplinas se dirigiamao homem-corpo, com a biopoltica elas se voltam ao homem-espcie. Os mecanismosregulamentadores da vida passam a fazer parte das relaes de poder-saber, com vistas manipulao dos fenmenos vitais. Assim, parece despontar claramente uma conexodireta entre o espectro biopoltico e os conceitos de espcie e de gene. Entende-se, pois,que os desdobramentos dessa conexo desembocaro no mbito da biossociabilidade eda bioidentidade. Tomando como material emprico algumas obras do cinema e dasartes plsticas, prope-se uma visada analtica singular sobre as relaes entre biologia,biopoltica e bioarte, tendo como perspectiva uma esttica da existncia baseada na ticada amizade. Na construo dessa visada, foi fundamental a filosofia produzida porMichel Foucault, bem como a de Gilles Deleuze e Flix Guattari.

    Palavras-chave: Michel Foucault, Biopoltica, Bioarte, Biocontemporaneidade, Estticada existncia.

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    ABSTRACT

    NOGUEIRA, L. V. Approximations among biology, biopolitics and bioart: an essayon biocontemporaneity.2009. 113 f. Dissertao (Mestrado). Faculdade de Educao,

    Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.

    This paper aims at reflecting on some implications around the contemporary biologicaldiscourse through the analysis of how some concepts in the field of biological sciences particularly species and genes spread through the social body, associating withcertain modes of subjectivation. The guiding hypothesis of the present study is that thenon-explicitation of the fragility of both concepts follows the demand for control andsubmission, especially as far as the development and usage of biotechnologies areconcerned. Thus, there is at the same time production of new forms of life andproduction of specific processes of subjectivation. Considering the premise that a new

    man is being forged by the biotechnologies, it is argued that the latter have succeeded ingaining some legitimacy in the collective imaginary, especially because such conceptsare solidary with the conversion of biological identity into bioidentity. According toFoucault, if the disciplines used to point toward the human-body, nowadays, underbiopolitics they have moved into focusing on the human-species. The life-regulatingmechanisms have become part of the power-knowledge relations focusing on themanipulation of vital phenomena. Thus, there seems to be a direct connection betweenthe biopolitical spectrum and the concepts of species and genes. One can conclude,therefore, that the unfolding of this connection will lead into the scope of biosociablityand bioidentity. By taking some empirical work from the cinema and the plastic arts,this research proposes a singular analytical approach to the relations among biology,biopolitics and bioart, under a perspective which contemplates an esthetics of theexistence based on the ethics of friendship. In the building of this approach, MichelFoucault"s thought played a fundamental role, followed by Gilles Deleuze's and FlixGuattari's philosophies.

    Keywords: Michel Foucault, Biopolitics, Bioart, Biocontemporaneity, Esthetics ofexistence.

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    Leve como leve pluma

    Muito leve, leve pousa

    Muito leve, leve pousa

    Ah, simples e suave coisa

    Suave coisa nenhuma

    Suave coisa nenhuma

    Sombra silncio ou espuma

    Nuvem azul

    Que arrefece

    Simples e suave coisa

    Suave coisa nenhuma

    Que em mim amadurece

    (Secos e Molhados / Joo Ricardo e Joo Apolinrio)

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    SUMRIO

    1.AMBINCIAS E INTERSTCIOS: GUISA DE INTRODUO 112.SOBRE A BIOPOLTICA 17

    2.1. A relao entre poder e vida segundo Foucault 17

    3.ESPCIE E GENE:SUPORTES BIOPOLTICOS 27

    3.1. A questo da espcie 27

    3.2. DNA, a molcula da hereditariedade 37

    3.3. A questo do gene 38

    3.4. Mas, afinal, o que um gene? 46

    4.EU,ROB 54

    4.1. Ambincia I: Converse All Stars, Vintage 2004 55

    4.2. Interstcio I: entre o slido e o lquido 58

    5.AMBINCIA II:CDIGO 46 63

    5.1. Ns e(m) nossos genes 63

    5.2. Interstcio II: gesto do risco contra a degenerao da espcie 65

    6.AMBINCIA III:TOGNINA GONSALVUS 76

    6.1. De menina-lobo a portadora de hipertricose lanuginosa congnita 76

    6.2. Interstcio III: a metamorfose do olhar 80

    7.AMBINCIA IV:ORLAN 83

    7.1. O corpo biociberntico 83

    7.2. Interstcio IV: moralismo ou esttica da existncia? 85

    8.AMBINCIA V:EDUARDO KAC 89

    8.1. Arte transgnica 89

    9.POR UMA ESTTICA DA EXISTNCIA 93

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 107

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 110

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    1.AMBINCIAS E INTERSTCIOS: GUISA DE INTRODUO

    O homem feito por sua crena.

    Como ele acredita, assim ele .Bhagavad Gita

    necessrio ouvir o som da grama crescendo. Inventariar. Tornar existente o

    imaterial. Deitar palavras e deixar que a escritura fale do que no existiu, daquilo que se

    viveu sem saber. Como saber quando o pontual construiu mais do que um ponto? No

    saber. Talvez, apenas dar a chance de trazer superfcie. Inventariar invencionices a

    ponto de torn-las matria. Diante de tantas impossibilidades, s resta a inveno. E,

    tantas quantas fossem as vezes que se precisasse escrever, tantas seriam as histriasinventadas. Memoriar: ato de concretizar experincias pela palavra. Redundncia bruta.

    Tornar realidade o que se passou sem se haver passado. Devir puro. Escrituras: saber o

    que se , saber aquilo em que se pensa. Transformar a escritura no gesto do pensamento

    e no na sua inteno.

    ***

    O presente trabalho pretende refletir sobre questes da contemporaneidade.

    Pauta-se no desejo de compreender como certos conceitos do campo das cincias

    biolgicas espcie e gene, particularmente , a despeito de toda sua fragilidade,

    espraiam-se pelo corpo social, engendrando novas subjetividades, novas formas de vida.

    A arte tomada aqui como ocasio de discusso, sendo que os conceitos do a

    possibilidade de existncia desta. A reflexo foucaultiana e suas repercusses no mbito

    da produo do pensamento constituem o solo sobre o qual se deseja deitar a anliseproposta. Sero utilizados, em particular, o conceito de governamentalidade e as noes

    dele derivadas ou a ele diretamente relacionadas, tais como biopoder e biopoltica.

    Tendo em vista a inescapvel interseco entre as novas formas de subjetivao

    e a produo de saberes do campo cientfico, mormente das cincias biolgicas,

    conceitos desta rea sero tratados luz do pensamento foucaultiano.

    O que faz a vida? O que pode a vida? Quanto pode a vida viver? Como faz-la

    viver em sua mxima potncia?

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    O trajeto se faz nas sinuosidades prprias dos rastros de uma ideia-unidade.

    Aquilo que na aparncia remete a uma navegao errtica, nada mais do que os

    percursos que certas ideias traam ao difundirem-se pela mirade da experincia

    humana. So linhas sutis, desdobramentos inesperados, lugares insuspeitos.

    Percorrer esse trajeto, como proposto aqui, talvez leve concluso de que

    vivemos hoje em uma espcie de biocontemporaneidade: um tempo no qual a dimenso

    biolgica, no apenas do homem, mas de todo o mundo natural, a grande responsvel

    pelos modos de viver dos viventes. Nossas relaes com o mundo, com o outro e com

    ns mesmos, parecem inegavelmente mediadas pelo biolgico. A zosobrepondo-se

    bios. esta sobreposio que denomino biocontemporaneidade, a construo de uma

    biocultura.

    Na consecuo do caminho, sero empregadas produes de variadas reas,

    afinal, no h uma residncia fixa. No entanto, os documentos no sero utilizados

    fora de demonstrao de essncias ou naturezas. Trata-se, antes, de um estranhamento;

    estranhamento diante de padres naturalizados, de ideias limitadoras de possibilidades

    outras de existncia. No se pretende, tambm, que este trabalho se constitua como

    revelao de um suposto compl maligno, tampouco como uma busca de culpados ou

    inocentes categorias estas tambm de carter essencial. Trata-se, no limite, de refletir

    sobre o poder-saber de concepes fundamentais.

    De largada, as hipteses so: a no explicitao da fragilidade conceitual

    obedece a demandas de controle e de assujeitamento, sobretudo no que se refere ao

    desenvolvimento e utilizao de biotecnologias. Esse assujeitamento se concretiza

    pelo uso dos meios de comunicao (sejam eles de divulgao estritamente cientfica,

    ou no) e do espao escolar como lugares, por excelncia, de exerccio do poder. Alm

    disso, ele tem espao e possibilidade de existncia num mundo biocontemporanizado,

    num mundo biocultural.Por fim, alinhavando aquilo que na superfcie pode mostrar-se como uma colcha

    de retalhos, a discusso de ordem tica faz-se necessria, a fim de promover uma

    reflexo constante no interior do cenrio escolar acerca das relaes entre cincia, tica,

    poltica e cidadania. Tal reflexo deve buscar compreender no que se transformou o ser

    humano e em que medida o desenvolvimento cientfico responsvel por essa

    transformao; ela deve, ainda, apontar no sentido de uma tica da amizade, de uma

    esttica da existncia. Nas palavras de Jean Baudrillard, a questo agora comopodemos ser humanos perante a ascenso incontrolvel da tecnologia (2003). As

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    implicaes do alcance da cincia sobre a conduta humana so imensas, e, portanto,

    parece ser obviamente bem-vinda qualquer contribuio no sentido de um maior

    entendimento dessas relaes e de seus efeitos.

    Trata-se, pois, de um exerccio de reflexo em uma rea especfica do

    conhecimento cientfico: a biologia. Esta reflexo, no entanto, no se dirige a

    especialistas, e, por isso, algumas conceituaes e delimitaes mais tcnicas se faro

    necessrias. A fim de no enfadar o leitor com explicaes desnecessrias

    compreenso do texto, um sistema de notas de rodap com as principais definies ser

    utilizado quando houver necessidade, de tal sorte que o leitor poder se reportar a elas

    sem prejuzo da discusso central, a saber, a discusso de que os conceitos fundam

    regimes de saberes e permitem o exerccio de poderes especficos. Dessa forma,

    importam menos os conceitos em si, e mais a demanda a que eles respondem e suas

    possveis ressonncias em reas alheias s de suas produes.

    Os conceitos funcionaro como documentos sobre os quais a anlise pretendida

    se far. Eles, obviamente, no aparecero descolados de um contexto, ou seja, no sero

    trabalhados em si mesmos, mas a partir das conotaes que lhes so dadas por alguns

    autores de referncia do campo biolgico. Instrumentalmente, um tanto de histria das

    ideias se apresentar; um tanto de biologia ser explicitado.

    Como estratgia discursiva, optou-se por uma introduo com vistas a apresentar

    os principais conceitos utilizados na anlise posterior. Assim, conceitos capitais do

    arsenal foucaultiano tais como biopoltica e governamentalidade sero confrontados

    com conceitos biolgicos especficos espcie e gene , a fim de colocar em

    movimento uma analtica potencializadora do pensamento.

    Esse confronto inicial servir de alicerce para o caminho que se seguir por meio

    da construo de ambincias e de interstcios, no qual sero utilizadas obras do cinema e

    das artes plsticas como material emprico. Os interstcios carregam uma simbologiafecunda e significativa, afinal, em biologia, representam os espaos em que ocorre a

    comunicao entre as clulas, unidades fundamentais da vida. Materialmente, os

    interstcios no so nada; eles so, porm, o local onde a prpria existncia se d.

    Curioso: o espao que garante a materialidade da vida. Imageticamente, podemos

    construir a ideia de que as ambincias representam os prprios intercursos da vida, e os

    interstcios, a comunicao e a interao entre eles.

    A conduo do texto, assemelhando-se, a princpio, a uma colcha de retalhos,pede do leitor um pouco de pacincia, a fim de que se possa, paulatinamente, tecer a

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    costura. Os alinhavos e cozeduras dar-se-o medida exata que a pea for sendo

    estruturada. O arremate final ter por objetivo buscar uma reflexo acerca de possveis

    estticas da existncia promotoras de mais vida, estticas existenciais que sejam capazes

    no de propor, nem de apontar, mas de lanar ideias que tateiem possveis caminhos em

    que a potncia do viver possa eclodir. Afinal, o que pode a vida? E mais: o que pode a

    vida na contemporaneidade, dentro de toda a trama produzida no corpo social pela

    cincia?

    Os retalhos iniciais apresentam uma anlise de dois filmes de fico cientfica

    Eu, Robe Cdigo 46. Cada um deles tomado como ocasio para refletir acerca das

    biotecnologias e da transformao da vida. Tais reflexes carregam o proceder analtico

    que alimenta o trabalho.

    No mesmo diapaso, seguem as discusses das trs manifestaes artsticas

    tratadas aqui como documentos que me pareceram fecundas como pletoras1, a fim de

    que se possa oxigenar o pensamento e expandir o movimento do ato de refletir sobre. O

    percurso se inicia no sculo XVI com Lavnia Fontana, expoente feminina das artes

    plsticas do Renascimento italiano. Lavnia pintou Antonietta Gonsalvus, a menina-lobo

    que, junto com sua famlia, alimentou o imaginrio da poca graas sua bizarra

    aparncia. O corpo como retrato da alma.

    Na sequncia, so discutidos os trabalhos da francesa Orlan e suas intervenes

    radicais no campo da arte carnal. Neles, a parafernlia provida pela tecnologia mdica

    converte-se em instrumentos do fazer artstico, que se concretiza na materialidade

    corporal da artista. O corpo como alma.

    Os trabalhos genticos de Eduardo Kac fecham esse ciclo. Ao utilizar o prprio

    cdigo da vida (o DNA) como instrumental especfico para a produo de suas obras,

    Kac parece sinalizar cabalmente a definitiva ruptura entre o ser, o corpo e a alma. Ele

    efetivamente cria vida, manipulando-a e hibridizando-a de tal sorte, que acaba porlanar um estranhamento diante de concepes arraigadas. O que o corpo? O que a

    vida? O que podem o corpo e a vida nesse novo contexto? Estariam Kac e Orlan

    apontando para uma obsolescncia do humano inaugurando o transumano , ou para

    uma supremacia da materialidade baseada no aumento da extensividade e, portanto, no

    aumento das potncias e das latncias da prpria vida? O corpo como corpo extensvel,

    mutvel, reprogramvel.

    1 O termo pletora utilizado aqui em seu sentido mais estrito: aumento significativo da abundnciasangunea.

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    Por fim, ser biocontemporneo ser um vivente em uma biocultura levaria a

    uma eroso daquilo que a vida pode ser, ou a uma amplificao das potncias de vida?

    sobre isso que este trabalho tenciona refletir. Sem respostas nem propostas, ele

    procura trazer uma discusso que seja capaz de produzir estranhamento, pensamento em

    ato.

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    2.SOBRE A BIOPOLTICA

    2.1. A relao entre poder e vida segundo Foucault

    O termo biopoltica nasce no bojo da anlise foucaultiana sobre as origens da

    medicina social. Em O nascimento da medicina social, conferncia proferida no Rio de

    Janeiro, em 1974, e compilada na obra Microfsica do poder (2003), Foucault traa o

    quadro da situao mdica na Alemanha, na Frana e na Inglaterra durante os sculos

    XVII e XVIII. Ele mostra que, para a sociedade capitalista, a medicina moderna , antes

    de tudo, uma estratgia biopoltica, ou seja, trata-se de uma medicina que tem por

    alicerce certa tecnologia do corpo social. A hiptese de Foucault a de que no houve,

    na sociedade capitalista, passagem de uma medicina coletiva para uma medicina

    privada. O capitalismo, desenvolvendo-se em fins do sculo XVIII e incio do sculo

    XIX, socializou o corpo como fora de produo. A partir de ento, o controle da

    sociedade no mais operaria no nvel do indivduo, pela conscincia ou pela ideologia,

    mas no nvel biolgico, somtico, corporal.

    Trataremos aqui com mais ateno do modelo mdico ingls, pois deste,

    segundo Foucault, que herdamos a forma de sade pblica ainda em vigor. A ttulo de

    ilustrao e para marcar as diferenas fundamentais de forma bastante sumria,

    podemos dizer que o modelo alemo constituiu-se num saber mdico estatal traduzido

    pela normalizao da profisso mdica, que era subordinada a uma administrao

    central e integrada por meio de uma organizao gerida pelo Estado.

    J o modelo francs, diferentemente, nasceu em resposta aos problemas

    suscitados pela urbanizao, apresentando uma caracterstica bastante peculiar: a

    ligao com os saberes cientficos ou com as ditas cincias extra-mdicas, sobretudo

    com a qumica. No perodo compreendido entre os sculos XVII e XVIII, era bastantedifundida a ideia de que o meio ambiente principalmente a qualidade do ar e da gua

    estava intimamente ligado questo da sade dos indivduos. Data desse perodo o

    trabalhoRelaes entre o fsico e o moral no homem, do filsofo e fisiologista francs

    Pierre-Jean-Georges Cabanis (1757-1808). A respeito da cidade, ele diz: todas as vezes

    que homens se renem, seus costumes se alteram; todas as vezes que se renem em

    lugares fechados, se alteram seus costumes e sua sade (apud FOUCAULT, 2003, p.

    85).Ainda para ressaltar a ideia de que haveria uma ligao entre o estado do

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    ambiente e a sade humana, basta lembrar que a palavra malria, usada para designar

    a doena infecciosa provocada pelos protozorios do gnero Plasmodium, a corruptela

    de mau ar.

    Dessa forma, a medicina urbana pode ser entendida como uma sofisticao do

    tema da quarentena, utilizando mtodos de vigilncia sanitria como a anlise e o

    esquadrinhamento de tudo aquilo que, acumulado ou amontoado no espao urbano,

    pudesse vir a provocar doenas. Em torno de 1740 e 1750, surgem os primeiros

    cemitrios com caixes individualizados (anteriormente, os corpos eram despejados nos

    cemitrios, o que muitas vezes levava a um transbordamento que acabava ultrapassando

    os muros); em 1780, eles comeam a ser transferidos para a periferia das cidades.

    Curiosamente, a individualizao do cadver, do caixo e do tmulo, no nasceu, como

    se costuma crer, de uma preocupao religiosa em relao aos mortos; sua origem se

    deve, na verdade, a razes poltico-sanitrias de respeito aos vivos. Alm disso, fazia-se

    necessrio, para salvaguardar a sade do ambiente e, consequentemente, da populao

    , um controle estrito da circulao do ar e da gua. Nesse perodo, encontramos na

    Frana as grandes obras de canalizao e de redes de distribuio da gua (que hoje

    conhecemos como obras de saneamento bsico), e a construo de grandes e largas

    avenidas no espao urbano com a finalidade de arejar as cidades.

    O modelo ingls, do qual somos tributrios, nasceu da problematizao dos

    pobres como fonte de perigo mdico no segundo tero do sculo XIX. Datam desse

    perodo as primeiras grandes agitaes sociais da populao pobre, que se tornou uma

    fora poltica capaz de participar e/ou de promover revoltas. Parte dessas revoltas era

    uma resposta ao estabelecimento de um sistema de carregadores e de um sistema postal

    que dispensavam os servios anteriormente prestados por aquela populao. Alm

    disso, a epidemia de clera que assolou Paris em 1832, propagando-se por toda a

    Europa, acabou por gerar um preconceito em relao populao proletria e plebia.Dessa forma, iniciou-se uma diviso do espao urbano em reas para ricos e para

    pobres, pois a coabitao entre eles foi considerada um perigo sanitrio e poltico para

    as cidades.

    A medicina inglesa comea a tornar-se social com a Lei dos Pobres, legislao

    que propunha um controle mdico dos estratos populares. Essa legislao comportava a

    ideia de uma assistncia e de uma interveno mdicas controladas que, ao mesmo

    tempo, ajudavam os pobres em relao aos cuidados com a sade e protegiam os ricosdos supostos perigos que aqueles representavam sade destes. A partir de tal

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    dispositivo, v-se claramente a transposio para a legislao mdica de um problema

    poltico enfrentado pela burguesia. Assim, essa nova medicina social representava

    essencialmente um controle da sade e do corpo das classes mais pobres, a fim de torn-

    las mais aptas para o trabalho e menos perigosas para o convvio com as classes ricas.

    Posteriormente, por volta de 1875, a Lei dos Pobres foi complementada com a

    organizao de um servio autoritrio de controle mdico da populao. Essa

    organizao estava concretizada nos health servicesou health officers, que tinham como

    funo o controle da vacinao obrigatria da populao, a localizao e destruio de

    locais insalubres potencialmente perigosos, e a organizao do registro de epidemias e

    de doenas infecto-contagiosas, obrigando a notificao dos casos pelas pessoas e

    servios hospitalares.

    No Brasil, podemos destacar vrios acontecimentos que certamente tiveram ou

    tm como base essa ideia nascida da Lei dos Pobrese seus desdobramentos. Talvez o

    caso mais notrio seja o da Revolta da Vacina, que teve lugar no Rio de Janeiro, em

    1904. Tratou-se de uma resposta (afora a manipulao poltico-partidria envolvida)

    campanha de vacinao obrigatria perpetrada por Oswaldo Cruz (1872-1917), cientista

    brasileiro que, no coincidentemente, acabara de voltar da Frana, onde estivera

    estudando microbiologia a partir de 1897. Mais recentemente, podemos citar o caso da

    dengue, em que agentes sanitrios podem e devem inspecionar e dedetizar locais

    considerados focos de transmisso do vrus. Alm disso, de acordo com a legislao em

    vigor, obrigatrio que os hospitais notifiquem ao Ministrio da Sade todos os casos

    diagnosticados de doenas infecto-contagiosas, tais como a sndrome da

    imunodeficincia adquirida (AIDS).

    Percebemos, assim, que a frmula da medicina social inglesa foi aquela que

    apresentou mais desdobramentos e que ficou como herana entre ns, pois possibilitou a

    ligao de aspectos importantes: uma medicina assistencial para os pobres, umamedicina administrativa encarregada de problemas gerais e uma medicina privada para

    aqueles que desta pudessem dispor.

    A ampliao das ideias de Foucault sobre o tema da biopoltica aparecer em seu

    A vontade de saber (2007), no captulo Direito de morte e poder sobre a vida.

    Posteriormente, ela volta a comparecer no livro Em defesa da sociedade(2005b). Em

    ambos os textos, Foucault insiste na diferenciao entre biopoder e soberania. No

    primeiro, a tnica traduz-se em fazer viver, deixar morrer, em substituio ao fazermorrer, deixar viver caracterstico do regime de soberania. Essa migrao de extrema

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    importncia no contexto deste trabalho. Vejamos, ento, a que exatamente Foucault se

    refere.

    Na teoria clssica da soberania, a vida e a morte no so tomadas como

    fenmenos naturais ou exteriores ao campo poltico; ao contrrio, elas se vinculam ao

    soberano, ao poder, ao direito. Nas palavras de Foucault, porque o soberano pode

    matar que ele exerce seu direito sobre a vida. essencialmente um direito de espada

    (2005b, p. 289). Assim, o poder , no limite, mais um mecanismo de subtrao, de

    extorso seja de riqueza, de bens, de servios, ou de sangue. um direito de

    apropriar-se de coisas, de corpos, de vidas.

    Na poca clssica2, o poder deixa de se embasar majoritariamente na retirada e

    na apropriao, e passa a funcionar alicerado na incitao, no reforo, no controle e na

    vigilncia, com o intuito de otimizar as foras que ele submete. Trata-se de gerir a vida,

    mais do que de exigir a morte; esta s exigida quando recrutada em defesa da vida.

    Note-se que justamente nesse perodo que ocorrem as maiores guerras, os mais

    terrveis genocdios. Tais guerras, no entanto, no mais se fazem em defesa do

    soberano, e sim em defesa da vida, em defesa da existncia de todos. Os massacres,

    ento, tornam-se vitais; vitais na prpria ambiguidade de acepo do termo: tanto no

    sentido de promover a vida, quanto no sentido de dispens-la. O que est em questo

    no mais defender a soberania do Estado, mas garantir a sobrevivncia de uma

    populao. a lgica biopoltica entrando em cena.

    Essa nova lgica reveste-se de duas estratgias principais: a disciplina e a

    regulamentao. A primeira delas data do sculo XVII e pode ser identificada

    principalmente nas escolas, nos hospitais, nas fbricas e nas casernas, tendo como

    resultado uma docilizao e uma disciplinarizao do corpo por meio de seu

    adestramento, da otimizao de suas foras, e de sua integrao a sistemas de controle.

    H aqui uma concepo do corpo como mquina e, portanto, como sujeito a umaantomo-poltica.

    A regulamentao, por sua vez, surge no sculo XVIII, justamente com o

    advento da medicina social. A gesto da vida no mais incide apenas sobre os

    indivduos, mas sobre as populaes, por meio do controle das taxas de natalidade e de

    mortalidade, dos ndices de longevidade, dos indicadores de sade. a biopoltica das

    populaes; o corpo-espcie surgindo ao lado do corpo-mquina.

    2Foucault nomeia como poca clssica o perodo que se estende do final do sculo XVI ao final do sculoXVIII.

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    Seguindo essas duas vertentes o corpo-espcie e o corpo-mquina , temos um

    controle de ponta a ponta da vida. Inicialmente separadas, elas acabam por confluir. Tal

    confluncia chega a ser sugerida por Foucault como uma exigncia de ajuste do

    capitalismo, que, em suas palavras, no pode se garantir seno ao preo de uma

    insero controlada dos corpos no aparelho de produo e atravs do ajuste dos

    fenmenos de populao aos processos econmicos (2005b, p. 290).

    Se as disciplinas se dirigiam ao homem-corpo, com a biopoltica elas se voltam

    para o homem-espcie. A disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens como

    indivduos; j a biopoltica, dirige-se mesma multiplicidade, mas como massa global.

    Foucault insere a biopoltica na complexa relao entre vida e histria. Se antes a vida

    pressionava a histria por meio das epidemias e da fome, na medida em que estas so

    controladas pelas tcnicas polticas (e pela tecnologia mdica), ela passou a ser objeto

    do saber, e a espcie vivente acabou por tornar-se uma fora passvel de modificao, de

    interveno e de melhoria. A vida e seus mecanismos entram, assim, nos clculos

    explcitos do poder e do saber, enquanto estes se tornam agentes de transformao da

    vida. Segundo Agamben, se o homem era um animal vivente capaz de uma existncia

    poltica, agora o animal em cuja poltica o que est em jogo seu carter de ser

    vivente ([parafraseando Aristteles], 2004, p. 17).

    Claramente, parece haver uma conexo direta entre os conceitos de biopoltica e

    de espcie, e aquilo a que eles se destinaram no tecido social. Entende-se que o

    desdobramento dessa conexo desemboca nos conceitos de bioidentidade e de

    biossociabilidade. De acordo com Ortega (2003), a nfase dada aos procedimentos de

    cuidados corporais seja do ponto de vista mdico, higinico ou esttico levaria

    formao de identidades somticas, isto , identificao do indivduo com seu prprio

    corpo, em forma e essncia. aqui que o problema toma contornos surpreendentes, pois

    encerra um paradoxo.Na medida em que o homem passa a ser identificado como pertencente a uma

    espcie, e na medida em que esta , em ltima instncia, o supra-sumo da interioridade

    posto que definida pelo contedo genmico , o esperado seria uma interiorizao

    crescente da viso do corpo. Percebe-se, no entanto, que tal processo parece desembocar

    em uma exterioridade vazia, prescindvel do outro. Assim, em um primeiro momento,

    conceitos como espcie e gene de fato levam a uma interiorizao; esta interiorizao,

    porm, se desdobra em exterioridade, a fim de contemplar uma biossociabilidade.Vejamos o que se passou.

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    valioso reportarmo-nos a Hannah Arendt, que, apesar de no ter se referido a

    Foucault, fundou paralelamente a ele uma teoria do governo da vida. Tomando a

    reflexo arendtiana como foco, podem-se produzir certas atualizaes do pensamento

    foucaultiano.

    Para Arendt, o fenmeno totalitrio pde ser diagnosticado por meio da anlise

    daquilo que efetivamente ocorria nos campos de concentrao, onde operava-se a

    reduo biopoltica dos indivduos ao mero fato biolgico, abstrata nudez de ser

    unicamente humano (apudFASSIN, 2006). Dessa forma, se no totalitarismo o poder

    era utilizado para reduzir a humanidade ao fato biolgico (o homem-espcie, o homem-

    corpo), nas sociedades liberais modernas a vida tornou-se uma verdade de validade

    incontestvel. Essa incontestabilidade, esse carter sagrado da vida a vitria do animal

    laborans , esto, para ela, essencialmente ligados a um crescente processo de

    despolitizao. a vida nua, nascida da fuso (ou seria sobreposio?) dazoe da bios

    de que nos fala Agamben, que passa a ocupar o vazio deixado pela decomposio do

    mbito pblico (ou seria o oposto, isto : ser que, ao ocupar o lugar central, a vida nua

    teria promovido a decomposio do espao pblico?). Assim, aquilo que Foucault

    chama de biopoder e identifica como sendo o processo de politizao da vida, , para

    Arendt, profundamente antipoltico.

    Segundo Arendt, os confrontos sobre a raa e, em geral, sobre todo obiolgico na natureza (o sexual includo) so apolticos por definio.[...] Ou bio ou poltica, juntos no possvel (HELLER apudORTEGA, 2004, p. 12).

    A biopoltica seria, nessa perspectiva, uma definidora de conceitos e

    movimentos centrados na diferena como categoria principal da poltica, substituindo os

    grandes relatos, e intimamente ligada poltica da identidade, na qual dois elementosaparecem de maneira constante: a inscrio do sentido da ao na linguagem do

    biolgico, e a recusa do universalismo em favor de solues especficas.

    Para Agamben (2004), a biopoltica , antes de mais nada, uma questo de

    fundao do contrato social, uma vez que a produo de um corpo biopoltico seria um

    ato original do poder soberano. Ele acredita que a biopoltica to antiga quanto a

    exceo soberana. Assim, desde ento, ao colocar a vida biolgica no centro dos seus

    clculos, o Estado moderno s reafirma o elo entre o poder e a vida nua. Vale notar que

    tambm Agamben, em sua anlise, recorre filosofia arendtiana, tomando de

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    emprstimo a leitura de Aristteles por ela proposta. Retomando a distino entre zoe

    bios, Agamben faz da mesma o ponto central de sua teoria biopoltica. A zo,sinnimo

    de vida biolgica, entendida como o simples fato de viver em que o homem um

    animal como todos os outros, contrape-se bios,que seria a maneira prpria de viver

    de um indivduo ou de um grupo, aquilo que distinguiria o homem dos demais animais.

    Na contemporaneidade, parece haver um esfacelamento da dualidade zo/bios vida

    nua/existncia poltica , acarretando uma confuso crescente e redutora do poltico ao

    biolgico.

    vida nua e aos seus avatares no moderno (a vida biolgica, asexualidade etc.) inerente uma opacidade que impossvelesclarecer sem que se tome conscincia de seu carter poltico;inversamente, a poltica moderna, uma vez que entrou em ntimasimbiose com a vida nua, perde a inteligibilidade que nos parece aindacaracterizar o edifcio jurdico-poltico da poltica clssica(AGAMBEN, 2004, p. 126).

    O que toda essa digresso pode nos fazer pensar acerca da espcie, da

    bioidentidade e da biossociabilidade? Ortega nos oferece a sntese. Por meio da

    discusso da ascese clssica, ele traz a ideia de uma bioascese contempornea

    absolutamente fundada na perspectiva biopoltica. De acordo com ele, aquela ascese

    grega que tinha a transcendncia como objetivo, que era movida pelo desejo de

    demarcar uma singularidade, e que se constitua como uma forma de resistncia cultural

    representada pelas prticas de si, adquire na bioascese contornos estritamente

    normalizadores. Dito de outra forma, a bioascese traz, embutida em si, uma vontade de

    uniformidade, de modos de existncia conformistas, visando nica e exclusivamente a

    sade e o corpo perfeito como fim ltimo algo de natureza profundamente

    ensimesmada.

    A biossociabilidade uma forma de sociabilidade apoltica constitudapor grupos de interesses privados, no mais reunidos segundo critriosde agrupamento tradicionais como raa, classe, estamento, orientaopoltica, como aconteceia na biopoltica clssica, mas segundocritrios de sade, performances corporais, doenas especficas,longevidade etc (ORTEGA, 2003, p. 63).

    Os processos de subjetivao so intrnsecos s prticas ascticas; com as

    bioasceses no diferente. A subjetivao, nesse caso, se d pelas regras da

    biossociabilidade, com foco nos procedimentos que visam os cuidados corporais a fim

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    de que as bioidentidades possam ser construdas. Assim, o sujeito constitudo aquele

    que se autocontrola e se autovigia, afinal, sua sade e bem-estar dependem nica e

    exclusivamente do cuidado que ele despende com seu corpo. Aprisionado em sua

    liberdade, no lugar do desamparo esse sujeito tenta encontrar uma sada: a adeso aos

    preceitos de uma vida saudvel e sem riscos, um projeto de controle sobre a vida

    desprovido de paixes. Com a negao do mal-estar prprio condio humana, por

    meio de uma espcie de dessimbolizao da vida pela dissoluo do mbito poltico,

    ocorre a destituio da dimenso finita do sujeito, dando lugar a um sujeito cuja vida

    regulada e administrada em sua dimenso biolgica. o sujeito causa de si mesmo. O

    que o termo biossociabilidade parece indicar a ausncia de qualquer sociabilidade que

    implique a convivncia com um outro, a ausncia de qualquer tipo de contato com a

    alteridade. Esta a dissoluo do poltico acima referida. A vida fica, assim, contida

    entre as recomendaes e prescries que anunciam o que pode estar ao alcance de

    todos: corpo e sade perfeitos, ausncia do sofrimento e da dor, negao da morte. A

    biossociabilidade transforma a sade em uma mercadoria que, como todas as outras,

    pode ser comprada.

    Qual o sentido dessa nova sociabilidade que prescinde do outro? Quais so as

    implicaes em se considerar a emergncia do biolgico, enquanto definidor e regulador

    da vida, como uma forma de sociabilidade?

    A discusso sobre biossociabiliddae acaba por inscrever uma outra problemtica.

    Por um lado, em decorrncia dessa ideologia da sade perfeita e da responsabilizao

    individual pela mesma, a doena passa a ser tomada como sinnimo de fracasso pessoal.

    Tendo em vista que o modelo a ser seguido praticamente inalcansvel para a maioria

    da populao, sintomaticamente cresce o nmero de doenas associadas imperfeio

    corporal, tais como obesidade, anorexia, bulimia e depresso. Por outro lado, porm, a

    nova problemtica diz respeito afirmao de Rabinow (1999) de que, nabiossociabilidade, a natureza ser remodelada na cultura compreendida como prtica.

    De acordo com ele, a natureza h de se tornar artificial, exatamante como ocorreu com a

    naturalizao da cultura. A superao entre ambas implicaria a dissoluo da categoria

    do social.

    No futuro, a nova gentica deixar de ser uma metfora biolgica paraa sociedade moderna, e se tornar uma rede de circulao de termos

    de identidade e lugares de restrio, em torno da qual e atravs da qual

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    surgir um tipo verdadeiramente novo de autoproduo: vamoscham-lo de biossociabilidade (RABINOW, 1999, p.143).

    E, ainda nas palavras dele,

    O que cabe ressaltar, todavia, que, cada vez mais, novas formas deorganizao coletiva tm surgido, conjugando diferentes atores,interesses, temporalidades, ou mesmo especialidades, dentro de umnovo modo de existncia em que a vida se encontra no centro denossas preocupaes (RABINOW, 1999, p. 180).

    Lado a lado com esse sujeito que cuida de si mesmo, despontam dois

    importantes conceitos: o de fitness e o de risco. Curiosamente, mas no por acaso,

    fitness um conceito tambm retirado do escopo das cincias biolgicas, podendo ser

    entendido como o valor adaptativo de determinadas caractersticas. A seleo natural,

    evolutivamente, privilegiaria as caractersticas mais bem adaptadas ao meio em

    constante mudana. No caso da bioascese, o fitnessest ligado modelagem corporal

    garantida pela ginstica e por outras prticas esportivas; trata-se, pois, de um

    aperfeioamento fsico que visa a adaptao a um mundo biopolitizado. O discurso do

    risco, por sua vez, funciona por meio de uma operao engenhosa. Se o sujeito seu

    prprio corpo, isto , se h uma identificao plena entre forma (corpo) e mente (self),

    temos dois riscos em jogo: o primeiro o de adoecer ou de, por displicncia, no ter a

    melhor qualidade de vida possvel; o outro o de que, sendo o corpo a prpria

    identidade, no haja como esconder do outro aquilo que se . A bioidentidade no

    salvaguarda o espao de fingimento necessrio ao convvio social. No havendo essa

    possibilidade de fingimento, de esconderijo, o outro se torna uma ameaa e, portanto,

    no mais digno de confiana. Em um nvel macro, isso leva dissoluo do lao

    social.

    As prticas bioascticas fundem corpo e mente na formao dabioidentidade somtica, produzindo um eu que indissocivel dotrabalho sobre o corpo, o que torna obsoletas antigas dicotomias, taiscomo corpo-alma, interioridade-exterioridade, mente-crebro(ORTEGA, 2003, p. 68).

    O impressionante poder de persuaso desses discursos advm da chancela por

    eles recebida da cincia. Assim, a verdade est posta; a opinio, banida; a uniformidade,

    instaurada; a normalizao, desejada. Basta observarmos alguns produtos comerciaispara percebermos do que se trata:

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    O que voc escolhe para comer e beber pode ser decisivo na batalhacontra as reaes de oxidao causadas por radicais livres, queenvelhecem a pele e a deixam sem vio e com linhas de expresso.Alguns alimentos recomendveis so: abacaxi, acerola, caju, cenoura,

    couve-de-bruxelas, couve-flor, couve-manteiga, kiwi, laranja, limo,maracuj, melancia, morango, tomate, uva e vinho tinto. Eles possuemcomponentes ativos como cido ascrbico, flavonides,bioflavonides, limonides e licopeno, que impedem ou dificultam oprocesso de desestabilizao das clulas. Muitas vezes, essassubstncias podem at destruir os radicais livres e, consequentemente,retardar o desgaste dos tecidos e salvar a sua beleza de dentro parafora. Para usufruir desses benefcios, indicado ingerir de trs a cincopores dirias de frutas e hortalias. (texto retirado do site de umafamosa clnica de esttica, prometendo o fim das rugas).

    Note-se o que est acima indicado: a responsabilidade de cada um; a sade e o

    bem-estar dependem de escolhas pessoais acertadas, pois a cincia j determinou o que

    causa o aparecimento das rugas e como se pode fazer para evit-las. O mesmo site

    completa com o exemplar enunciado: Seu rosto vai revelar muito mais de voc.

    Equipe mdica dos sonhos: cirurgies e anestesistas membros daSBCP e da SBA. Mas como s isso no basta, muitos dos nossosmdicos so formados e especializados na USP e em outras faculdadesfederais, alm de possurem ampla experincia na rea e estarem emcontato com os ltimos avanos da Medicina Esttica. (Clnica deCirurgia Plstica Especializada).

    Desperte a beleza que existe dentro de voc. (Espao de MedicinaEsttica).

    O que a se v a fora de verdade do discurso cientfico transmutado em

    discurso moral.

    possvel, ento, perceber o quanto a biopoltica contribui para uma melhorcompreenso daquilo que est em jogo e em movimento na contemporaneidade. Em

    termos genealgicos, a vida (nua), entendida em sua dimenso puramente biolgica,

    acabou por transformar-se no s em elemento crucial de efetivao de polticas

    sociais/pessoais, mas, acima de tudo, numa definio do mbito propriamente poltico

    um mbito paradoxalmente convertido, como discutido acima, num movimento

    apoltico. Seja no tratamento de indivduos singulares ou de populaes indiferenciadas,

    da clonagem reprodutiva ou no, do risco epidmico, de obesos ou anorxicos, a

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    categoria ser vivo que ocupa um lugar cada vez mais central no espao e na ao

    pblicos.

    Em sua dimenso fenomenolgica, tal fato tambm permite relacionar domnios

    separados por divises administrativas e disciplinares o que foi aqui chamado de

    espraiamento , desenhando uma nova cartografia das produes humanas. Aquilo que

    parecia pertencer ao escopo da medicina e das cincias, passa a participar crescentmente

    por meio de uma visada biopoltica no que tange administrao e gesto dos

    corpos de conjuntos maiores e mais abragentes, nos quais temas como trabalho,

    imigrao e urbanismo mesclam-se a questes de sade pblica, prtica clnica e

    pesquisa biolgica.

    Num plano que poderamos chamar de crtico, tais consideraes levam a uma

    interrogao sobre as escolhas a serem feitas pelas sociedades contemporneas e sobre a

    economia moral a que se submetem. Assim, a biopoltica pe a vida social em tenso,

    reclamando uma tomada de posio, uma possibilidade de resistncia, uma defesa da

    multiplicidade e de formas outras de vida, onde o que est em jogo uma pulso, um

    desejo de liberdade e de felicidade no restritivas, no limitantes. O que a anlise crtica

    da biopoltica permite vislumbrar a possibilidade de expresso de potncia e de

    devires outros.

    Vejamos, pois, o quanto os conceitos de espcie e gene, fundamentais nas

    cincias biolgicas, instituem saberes e prticas biopolticas em campos alhures.

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    3.ESPCIE E GENE:SUPORTES BIOPOLTICOS

    3.1. A questo da espcie

    [...] though we cannot define species,they yet have properties which varieties have not,

    and [] the distinction is not merely a matter of degree3

    William Bateson

    A noo corrente de que haveria uma ciso fundamental entre as cincias puras e

    as cincias aplicadas ancora-se no pressuposto no declarado de que possvel existir

    neutralidade na produo cientfica. Supor essa neutralidade indica, antes de mais nada,

    uma crena de que a cincia no s busca, mas efetivamente encontra a verdade. Ora,seguindo essa lgica, no que se refere a da verdade, no h como imaginar que

    interferncias externas poderiam alterar aquilo que se pretende desvendar. Assim, o

    olhar do pesquisador, ou ainda a rede de relaes complexas e mltiplas nas quais est

    inserido o saber cientfico, no participariam da produo do conhecimento.

    A hiptese deste trabalho baseia-se em uma premissa oposta suposio acima,

    isto , na afirmao de que tal ciso no existe. Utiliza-se aqui a ideia de que as cincias

    aplicadas (a tcnica) so efeito no s dos conhecimentos providos pela cincia pura,mas de toda a malha engendrada pelas relaes de poder-saber presentes no campo

    cientfico consonante com as prticas sociais. Dessa forma, entende-se que a cincia

    afirmativa, no sentido de produzir efeitos que se espraiam pelo tecido social, moldando

    e implementando novas formas de vida, novas subjetividades.

    A fim de discutir a hiptese proposta, parte-se de dois conceitos fundamentais do

    campo das cincias biolgicas, a saber, os conceitos de espcie e gene. O que se

    pretende refletir de que forma esses conceitos, estando profundamente entranhados

    nas prticas biotecnolgicas, acabaram por instituir a possibilidade de existncia destas.

    Alm disso, pretende-se problematizar o quanto tais conceitos se configuram, por meio

    das biotecnologias, como potentes constituintes de estratgias biopolticas. Ainda, para

    rastrear as estratgias que levam a desdobramentos de produo de bioidentidades e de

    biossociabilidades, discutir-se-: afinal, o que uma espcie?

    3 [...] embora no possamos definir estritamente as espcies, ainda assim elas tm propriedades que asvariedades individuais podem no ter, e as distines [entre as espcies e as variedades individuais] noso meramente uma questo de grau. (traduo nossa)

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    A escolha desses conceitos no aleatria. Embora haja, no corpo de

    conhecimentos produzidos pelas cincias biolgicas, numerosos conceitos

    fundamentais, os dois escolhidos se configuram como os mais pertinentes para a

    discusso aqui pretendida. Prova disso que, no obstante a fragilidade do conceito de

    espcie, ele ainda assim funciona, provendo uma srie de prticas para aquilo que se

    deseja.

    ainda possvel produzir um discurso de espcie aplicvel moda de uma lei

    geral baseada nas similitudes, como apontado em As palavras e as coisas

    (FOUCAULT, 2002). Pode-se suspeitar que uma lei geral assim produzida, tendo em

    vista as regularidades, acaba por se traduzir em formas de controle e enquadramentos: o

    homem referenciando-se a si mesmo como algum pertencente a uma espcie com tais e

    quais caractersticas. Trata-se, pois, da reafirmao de uma natureza inexorvel,

    portanto , a qual faz-se necessrio obedecer sob pena de ser um desviante, um anormal.

    Em reviso recente, John Wilkins (2002) lista 26 formas diferentes de qualificar

    e definir espcie. Noes como espcie gnica, fenoespcie, espcie biolgica,

    ecoespcie, dentre outras, compem o quadro e do uma pequena ideia do quo varivel

    pode ser o conceito. No presente trabalho, o foco est na concepo de espcie que

    atende pelos nomes de espcie gentica e bioespcie, devido recorrncia delas e

    importncia dos autores que as definem (Theodosius Dobzhansky e Ernst Mayr,

    respectivamente). Tanto Dobzhansky quanto Mayr podem ser apontados como os mais

    influentes geneticistas do sculo XX, tendo elaborado em conjunto a Teoria Sinttica da

    Evoluo ou Neodarwinismo, teoria que agrega os conhecimentos genticos aos

    conceitos darwinianos de seleo natural e evoluo. Ela emprega as noes de espcie

    e gene, e a principal teoria sobre a qual se assenta a biologia contempornea.

    Em 1935, Dobzhansky publicou o artigo A critique of the species concept in

    biology. Habilidosamente, ele lanou ali os alicerces para uma nova forma de entender omundo vivo por meio da definio de espcie. No toa, pois, que o ttulo traduz uma

    insatisfao; trata-se mesmo de uma crtica com vistas a inaugurar um novo paradigma.

    Dobzhansky inicia seu texto reconhecendo o problema como forma de mostrar

    que uma soluo possvel: o conceito de espcie um dos mais antigos e mais

    fundamentais na biologia. Entretanto o mais universalmente reconhecido como no

    satisfatrio4(DOBZHANSKY, 1935, p. 344, traduo nossa).

    4 The species concept is one of the oldest and most fundamental in biology. And yet it is almostuniversally conceded that no satisfactory definition of what constitutes a species has ever been proposed.

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    A dificuldade, segundo ele, apresenta-se em razo da enorme variedade das

    formas de vida conhecidas, e a necessidade de uma definio razovel defendida tendo

    em vista que a formao de um conhecimento coerente sobre o mundo vivo depende da

    ajuda de uma classificao hierrquica (espcie o nvel mais elementar de

    categorizao taxonmica5, uma vez que categorias individuais no teriam nenhum

    pragmatismo). A questo fundamental para Dobzhansky : seriam as espcies uma parte

    da ordem da natureza, ou uma parte da ordem desejada pela nossa mente? Sua

    resposta aponta para a primeira opo.

    Dobzhansky prossegue encaminhando sua argumentao no sentido de reforar a

    ruptura com a noo de Grande Cadeia do Ser6que perdurou na Histria Natural por

    quase 24 sculos, tendo se espraiado por campos outros da produo humana moda de

    uma ideia-unidade. Os primrdios dessa ruptura originam-se no Romantismo alemo e

    nas formulaes acerca da evoluo, tendo a Teoria Darwinista da Evoluo um papel

    fundamental. Em linhas gerais, o que se deseja combater e que se apresenta com fora

    na Grande Cadeia do Ser a ideia aristotlica de continuidade entre as formas de vida,

    no se podendo assim, dado o continuum, falar em espcie, mas somente em uma linha

    contnua, fixa e encadeada. Apenas para ilustrar o que aqui est em jogo, vejamos o que

    nos diz Aristteles acerca de como a natureza funciona:

    A natureza passa do animado para o inanimado de maneira to gradualque sua continuidade torna indistinguvel a fronteira entre eles; e huma espcie intermediria que pertence a ambas as ordens. Pois asplantas vm imediatamente depois das coisas inanimadas; e as plantasdiferem umas das outras quanto ao grau com que elas parecem

    5Categorias taxonmicas: as categorias taxonmicas podem ser definidas como o nome associado a umdeterminado txon, sendo este ltimo uma designao de organismos que podem ser reunidos com baseem uma caracterstica particular. A categoria associada ao txon demonstra o nvel de generalidade a queestamos nos referindo relativamente a um txon entre outros. As categorias taxonmicas mais usuaisremontam ao Systema Naturaeproposto por Lineu em 1878 e so: espcie, gnero, famlia, ordem, classe,filo e reino. Percebe-se que nesta ordenao partimos do menos abrangente para o mais abrangente.Outras categorizaes intermedirias so possveis e largamente utilizadas, tais como, sub-reino, sub-filo,infra-ordem, entre outras.6Grande Cadeia do Ser: a denominao descritiva do universo conhecida como cadeia do ser abrigavaa afirmao da constituio do mundo de trs caractersticas especficas, a saber: a existncia de doismundos, o princpio de plenitude e o princpio da continuidade. A aceitao destas caractersticas implicauma certa concepo da natureza de Deus. Esta concepo foi associada por sculos a outra que lhe eraoposta, sendo esta oposio fonte de contradio dentro do pensamento religioso do Ocidente. A estespressupostos de constituio de mundo esteve associada tambm certa concepo de valor ltimo que ster sua derrocada no perodo do Romantismo alemo. Ainda assim, esta certa ideia de valor, juntamentecom a crena de que o universo aquilo que o termo a cadeia do ser deve conter, forneceu as bases paraa tentativa de compreenso do problema do mal e para mostrar que o esquema das coisas inteligvel epode ser apreendido pela mente racional.

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    participar da vida. Pois a classe tomada como um todo parece, emcomparao com outros corpos, ser claramente animada; mas, secomparada aos animais, parece ser inanimada. E a transio das plantaspara os animais contnua. Assim, pois, algum pode perguntar sealgumas formas marinhas so animais ou plantas, uma vez que muitasdelas esto grudadas na rocha e morrem se forem separadas delas. (apudLOVEJOY, 2005, p. 61)

    Ao longo de doze pginas, Dobzhansky utiliza-se de todos os recursos para

    reduzir a questo da espcie quilo que chama de constelao gnica. Considerando que

    possvel e desejvel estabelecer uma definio mais ou menos abrangente, ele parte do

    pressuposto (mesmo sem admitir tratar-se de uma pressuposio) de que a variabilidade

    das formas de vida observada no to grande assim, quando olhada no aspecto mais

    abrangente. Que exista variabilidade, inegvel; mas possvel entend-la como uma

    variao descontnua. justamente aqui que se encontra o ponto fundamental de

    negao do aristotelismo. Quando se trabalha com a ideia de descontinuidade, v-se que

    possvel agrupar os organismos de acordo com a mesma. Dessa forma, uma

    classificao natural em oposio a uma artificial e, assim, passvel de uma crtica

    mais contundente pode ser definida como aquela que reflete, empiricamente,

    descontinuidades existentes nos materiais que se deseja classificar. Assim, num nvel

    menos descontnuo teramos as espcies; aumentando-se gradativamente o nvel de

    descontinuidade, teramos o gnero, a famlia, o ordem e todas as demais categorias

    taxonmicas. Percebe-se, pela leitura cuidadosa do texto, que Dobzhansky vai procura

    de exemplos da fauna e da flora que possam ajud-lo a formar sua ideia de espcie. Essa

    mesma busca foi empreendida por Aristteles para reforar a ideia de continuidade dos

    seres vivos, donde se depreende que a natureza suficientemente generosa a ponto de

    contemplar, com exemplos distintos, noes opostas.

    No caso de Dobzhansky, percebe-se claramente que no se est questionando a

    existncia de uma ordem subjacente, apesar de isto estar anunciado no incio do artigo,

    guisa de retrica. A ordem existe e basta utilizar o mtodo adequado para encontr-la,

    de tal sorte que seja til e profcuo. E aqui est o ponto alto do texto, pois, em poucos

    anos, Dobzhansky, Mayr e Simpson lanariam a Teoria Sinttica da Evoluo. A Nova

    Sntese, como tambm conhecida, anunciar que todo o mundo vivo pode ser

    compreendido de uma maneira globalizante, uma vez que tudo aquilo que vivo teria

    um mesmo padro de funcionamento; haveria regularidades neste mundo. O artigo de

    1935 parece querer plantar as bases para a aceitao do que viria mais tarde. Alm

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    disso, esse artigo seria ainda o alicerce sobre o qual as biotecnologias, setenta anos

    depois, poderiam granjear. Ele acena, pois, com uma nova forma de conceber

    organismos, retirando da taxonomia clssica o poder de definir o que uma espcie

    tendo em vista o fato de ela se basear em caractersticas morfolgicas anatmicas, em

    uma exterioridade palpvel. A partir dessa nova perspectiva, o que deveria definir uma

    espcie seria, antes de mais nada, a compatibilidade sexual entre os organismos (sexual

    aqui entendido como compatibilidade entre os cromossomos7 e os genes dos

    organismos). Em suma, pode-se dizer que o artigo de Dobzhansky inaugura o olhar

    gentico sobre os organismos, transferindo as similitudes que eram superficiais, de

    aparncia, para um lugar interno. dentro do prprio organismo, mais especificamente

    em seus gametas, que estaria sua identidade.

    O que parece extremamente interessante no caminho analtico percorrido por

    Dobzhansky o fato de que suas concluses e sua definio so elaboradas a partir de

    uma negao, isto , a partir daquilo que o seu avesso: os organismos hbridos, cuja

    propalada esterilidade est, fisiolgica e molecularmente, ligada a problemas na

    meiose8.

    Assim, definem-se como pertencentes mesma espcie indivduos em cujo

    processo meitico h pareamento compatvel entre os cromossomos homlogos9a fim

    de que se produzam gametas10 capazes de perpetuar a espcie. Tratas-se de uma

    definio que se dobra sobre si mesma, representando assim como a figura da cobra

    que come o prprio rabo um eterno reincio, uma eterna retroalimentao.

    Curiosamente, algo semelhante ocorreu o Projeto Genoma Humano (PGH); pois, afinal,

    qual genoma foi sequenciado? Do genoma de que humano estamos falando? Tratou-se

    de um pool no qual os genes sequenciados caracterizavam-se pela anomalia, isto ,

    aqueles genes que, mutados, so responsabilizados por doenas. O genoma saudvel foi,

    enfim, inferido por meio do genoma defeituoso.

    7Cromossomo: longa molcula de DNA associada a protenas, onde esto inscritas as instrues para ofuncionamento das clulas.8Meiose: processo de diviso clula em que uma clula diplide d origem a quatro clulas haplides,cada uma com metade do nmero de cromossomos da clula original. a meiose que produz os gametas,e neste tipo de diviso celular que ocorre a recombinao gnica, por meio do pareamento especficodos cromossomos homlogos, responsvel pela variabilidade gentica dos organismos.9 Cromossomo homlogo: cada um dos cromossomos que apresentam a mesma sequncia de genes;encontram-se aos pares nas clulas diplides (aquelas que possuem o contedo total do genoma de umorganismo sexuado), sendo cada representante do par herdado originalmente de cada um dos gametas.10 Gameta: cada uma das duas clulas haplides (aquelas que possuem apenas metade do patrimnio

    gentico dos organismos sexuados) que se unem na reproduo sexuada, originando a primeira clula donovo indivduo, o zigoto.

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    O que certamente escapou a Dobzhanski foram as possibilidades de

    desdobramento que essa interiorizao das identidades especficas poderia engendrar.

    Sobre esses desdobramentos para outros campos alm do biolgico, trataremos um

    pouco mais adiante, de forma a contemplar, de uma s vez, uma anlise que tome em

    considerao tambm o que Mayr defendeu.

    O atual conceito de espcie foi reformulado em 1942, como marco do esforo

    intelectual de um dos evolucionistas mais longevos da histria. Trata-se de Ernst Mayr,

    morto, em 2005, s vsperas de completar 101 anos de idade. Sua carreira cientfica

    iniciou-se em Harvard em 1928, por ocasio de seu doutoramento sobre as aves-do-

    paraso da Nova Guin. Ao longo de seus 80 anos de atividade acadmica, Mayr

    procurou trabalhar tanto na pesquisa de campo, quanto na elaborao de bases

    filosficas mais slidas para a biologia. dele a obra-referncia O desenvolvimento do

    pensamento biolgico (1998), em que percorre 24 sculos de uma cincia que se

    formalizou h pouco. Partindo de Aristteles, Mayr explora a histria das ideias acerca

    do mundo vivo. Algo marcante em sua produo a preocupao em salvaguardar um

    espao nico para a biologia, livre das matematizaes e dos reducionismos prprios s

    cincias fsicas. Isto se deve viso essencial na filosofia biolgica de Mayr de que

    organismos vivos possuem propriedades ditas emergentes que poderiam ser entendidas

    como aquelas no encontrveis nas partes isoladas, mas que se expressam no todo

    complexo. Prova dessa preocupao so seus ltimos trabalhos publicados entre ns:

    Biologia, cincia nica Reflexes sobre a autonomia de uma disciplina cientfica

    (2005) eIsto biologia A cincia do mundovivo(2008).

    Em sua conceituao, duas definies so claramente contrapostas: a definio

    de natureza tipolgica, tpica de Lineu e que remonta a Plato e Aristteles, francamente

    calcada na ideia de diferenas fenotpicas entre os indivduos, e uma definio que ele

    chama de conceito biolgico de espcie. Como no poderia deixar de ser, o que Mayrprope uma definio tambm baseada no contedo gentico. De acordo com ele, uma

    espcie biolgica constituda por grupos de populaes naturais capazes de

    entrecruzamento, e que so reprodutivamente (geneticamente) isolados de outros grupos

    similares. O que est em evidncia aqui so as relaes genticas, e no mais as

    diferenas ou semelhanas morfolgicas. Tem-se, assim, o reforo de uma

    interiorizao da identidade para dentro dos corpos, para dentro das clulas, para dentro

    de seus ncleos.

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    H, nessa conceituao, uma preocupao em ressaltar que o conceito refere-se

    apenas e to somente a populaes comunidades reprodutivas, nas palavras de Mayr:

    O status de espcie propriedade de populaes, no de indivduos.

    Uma populao no perde seu status de espcie quando,ocasionalmente, um indivduo que dela faz parte comete um erro ehibridiza com outra espcie (MAYR, 2005, pp. 192-193).

    Assim como fizera Dobzhansky anteriormente, Mayr ressalta que no se trata de

    um agrupamento artificial: o conceito de espcie transmite o significado de espcie na

    natureza. No se pode esquecer que a luta aqui se d por um novo espao no campo das

    cincias biolgicas, e, de modo a no permitir dvidas, necessrio marcar

    categoricamente a linha de separao entre a nova sistemtica e a linneana. Desta forma,peremptoriamente, Mayr anuncia que esse sim um conceito que tem um papel

    concreto na natureza, no se tratando de meras instrues baseadas no juzo humano

    sobre como delimitar txons de espcies caracterstica esta que ele imputa

    sistemtica linneana.

    Assim, definir espcie significa, antes de mais de nada, reconhecer que seu

    significado biolgico est inexoravelmente ligado proteo de um acervo harmonioso

    de genes (a constelao gnica de Dobzhansky), e que sua validade s pode se dar numa

    dimenso temporal e espacial concreta. Dito de outra forma, somente quando

    organismos distintos se encontram na natureza que podemos avaliar aquilo que

    responsvel por sua integridade. Se houver cruzamento com produo de prole frtil,

    teremos a confirmao da espcie em questo.

    Essa definio, no entanto, s aplicvel a organismos que se reproduzem por

    meio do sexo (sexo entendido aqui como encontro de gametas que geraro um novo

    ser). O que poderia ser dito, ento, sobre os organismos que se reproduzem de forma

    assexuada? Novamente, incorre-se no problema da excluso de numerosas formas de

    vida na medida em que elas no so compatveis com o conceito inventado. Em

    Dobzhansky, os excludos so os hbridos; aqui, so os organismos assexuados. Como

    possvel afirmar que a espcie existe concretamente na natureza, se numerosas formas

    de vida so automaticamente excludas? Mayr chega mesmo a falar em erro, como se os

    organismos, por um engano momentneo, tivessem cruzado com quem no deveriam!

    Ou seja, tratar-se-ia de um engano da natureza.

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    No obstante todas as consideraes a respeito serem feitas de maneira elegante

    em ambas as formulaes analisadas, o que permanece : apesar dos dissonantes,

    espcie isto, e ponto final. Mesmo assim, no se pode j falar em reducionismo; no se

    trata efetivamente disso. Antes, trata-se de uma mirada num nvel de organizao que

    atende apenas plataforma celular ou molecular. O que essa mirada no resolve o

    paradoxo fundamental dos organismos vivos de que a soma do funcionamento das

    partes no explica o funcionamento do todo. H reducionismo apenas quando se

    pretende que esse paradoxo seja deixado de lado, como se fosse algo irrelevante, e os

    organismos vivos passam a ser encarados pela viso microscpica. E justamente isso o

    que ocorre.

    A cincia como inveno, enfim, acaba por no ser problematizada. Fica apenas

    a suposta verdade cientfica, sem os questionamentos necessrios. Afinal, em tempos de

    biotecnologias produtoras de novos seres, o que fazer com as populaes de

    transgnicos? De que status desfrutaro os clones e hbridos hiper-modernos? Que tipo

    de lugar poderiam ocupar esses novos seres? Estas so apenas algumas das questes

    sobre as quais uma filosofia da biologia deveria se debruar. A discusso tica uma

    necessidade premente, dados os desdobramentos a que estamos assistindo.

    Muito se tem produzido traduzindo essa inquietao. Obras de arte, como as j

    mencionadas e as da artista plstica Patricia Piccinini11, incrivelmente impactantes, so

    apenas exemplos. Piccinini, em seu mundo ps-espcie, cria seres possveis, seres em

    relao e convivncia com o humano que tambm j ps-humano.

    Alm da produo de novos seres, temos a produo de outro homem. A

    hiptese aqui que esse novo homem est sendo engendrado pelas biotecnologias, e

    que estas puderam granjear justamente porque o entendimento de espcie como acima

    exposto tornou possvel a manipulao da identidade biolgica transformada em

    bioidentidade. A insistncia em trazer a discusso acerca do conceito de espcie para ocorpo deste trabalho diz respeito produo de bioidentidades, de biossociabilidades.

    Veremos como as duas plataformas dialogam de forma a mostrar a potncia desse

    conceito como um dispositivo, algo que se espraia por campos alheios ao de sua

    produo original, engendrando novas formas de compreender a vida.

    11 Nascida em Serra Leoa em 1965, reside na Austrlia desde 1972. Formou-se em Lngua Italiana naUniversidade de Firenze, Itlia (1985 a 1988). De volta Austrlia em 1989, bacharelou-se em Artes pela

    Universidade Nacional da Austrlia e no Victorian College of the Arts tambm australiano. Suas obrastraduzem um questionamento contundentes das manipulaes genticas, da sua presena neste trabalho.

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    O reducionismo se concretizaria por meio do conceito de gene.

    Tomemos, a ttulo de demonstrao da ausncia de problematizao, o que

    aparece em livros didticos, pois por meio deles que os estudantes entram em contato

    com os conceitos fundamentais da biologia, inclusive o de espcie. Numa amostragem

    preliminar pequena, mas significativa foram examinados trs livros de ampla

    utilizao nas escolas paulistas.

    Espcie um agrupamento de populaes naturais, reais oupotencialmente intercruzantes, produzindo descendentes frteis ereprodutivamente isolados de outros grupos de organismos (LOPES,2004, p. 182).

    Espcie: grupo de populaes cujos indivduos so capazes de secruzar e produzir descendentes frteis, em condies naturais, estandoreprodutivamente isolados de indivduos de outras espcies (AMABIS& MARTHO, 2006, p. 236).

    Espcie biolgica seria o grupo de organismos capazes de se cruzaremna natureza, produzindo descendentes frteis. O conceito de espciebaseado na capacidade de reproduo amplamente aceito hoje.Assim mesmo, ele tem algumas limitaes; no pode ser aplicado, porexemplo, a organismos que se reproduzem assexuadamente [...]. Vejaainda o caso da comparao entre dois fsseis de espcies extintas.Evidentemente a deciso sobre se pertencem ou no mesma espcieno poder basear-se no critrio reprodutivo (CSAR & SEZAR,2007, p. 629).

    Nota-se que apenas na ltima definio h a preocupao de assinalar a

    dificuldade de uma conceituao moda de uma lei geral. Somente nesse caso so

    apontadas as limitaes do conceito. No entanto, apesar de a ressalva ter sido feita, a

    problematizao no levada a cabo, pois o conceito, da forma em que foi posto,

    funcional, pragmtico; no justifica, portanto, perder tempo de aula com esse tipo de

    discusso. Dessa forma, nossos alunos aprendem que um organismo identificvel pelo

    seu contedo gentico e pertencente a uma dada espcie, desde que este contedo

    gentico esteja em harmonia com o de outro organismo. A medida , pois, o pareamento

    especfico dos cromossomos homlogos na meiose. Os hbridos e os assexuados so

    excees, casos parte. O problema que esses casos parte so numerosssimos, e a

    ausncia de uma discusso sobre isso impede que importantes reflexes sejam

    alavancadas. Perde-se a oportunidade de discutir a vida objeto, por excelncia, da

    biologia na contemporaneidade. Nossos alunos acabam sendo privados dapossibilidade de pensar formas outras de existncia.

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    3.2. DNA, a molcula da hereditariedade

    A dupla-hlice uma estrutura sucinta,mas sua mensagem no poderia ser mais prosaica:

    a vida uma simples questo de qumica.Watson e Crick

    A natureza qumica do material nuclear j estava elucidada desde o final do

    sculo XIX. Tendo um forte acento bioqumico, a biologia daquela poca buscava

    desvendar a composio dos diversos materiais celulares. Assim, Johann Friedrich

    Miescher, trabalhando com bandagens utilizadas em ferimentos, isolou glbulosbrancos presentes no pus e, a partir da anlise de seus ncleos, pde perceber ali a

    existncia de um material com caractersticas bem marcadas. Nos ncleos das clulas,

    encontrava-se um componente com comportamento cido, rico em fosfato e em

    nitrognio, que foi chamado de nuclena. Em estudos bioqumicos posteriores, Albrecht

    Kossel demonstrou que a riqueza em nitrognio se devia presena de bases

    nitrogenadas e, s vsperas do sculo XX, Richard Altmann, aluno de Miescher, cunhou

    o termo cido nuclico.

    O DNA s viria a ser assim chamado por volta de 1912, quando Phoebus Levine

    e Walter Jacobs propuseram a existncia de unidades bsicas, os nucleotdeos,

    concluindo que o DNA (cido desoxirribonuclico) era um polmero formado por tais

    unidades nucleotdicas.

    Essa breve descrio pode dar a impresso de que se pretende traar uma histria

    das ideias acerca do DNA. No entanto, no isso que est em questo aqui. A

    apresentao desse breve relato no pretende demonstrar a existncia um caminho linear

    e progressivo de investigaes que culminaram em uma descoberta da verdade, mas

    sim a fragilidade e, talvez, a arbitrariedade com que conceitos ou entidades biolgicas

    assumem determinados papis. Vejamos.

    O vis bioqumico tpico supramencionado era significativo, mas obviamente

    convivia com outras abordagens igualmente bem representadas. Uma dessas variantes

    eram os estudos fisiolgicos.

    As questes moleculares da hereditariedade demoraram muito a fazer parte do

    rol de preocupaes cientficas, tornando-se presentes somente algum tempo depois do

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    resgate dos trabalhos mendelianos. Numa demonstrao da importncia do vis

    fisiolgico, Bateson, no Congresso Internacional de Botnica de 1906, cunhou o termo

    gentica com a seguinte declarao: um novo e bem desenvolvido ramo da fisiologia

    foi criado. A este estudo podemos dar o ttulo de Gentica (KELLER, 2002, p. 13,

    grifos nossos).

    A busca estava direcionada para uma molcula que fosse capaz de explicar o

    funcionamento dos mecanismos hereditrios (a importncia dos trabalhos de Mendel

    sobre a elucidao destes mecanismos ser discutida mais adiante). Naquele momento,

    nenhuma molcula desfrutava de mais prestgio do que as protenas, uma vez que elas

    esto virtualmente implicadas em todas as reaes metablicas das clulas. Na verdade,

    elas esto no apenas envolvidas metabolicamente, mas tambm estruturalmente. Nos

    anos subsequentes ao anncio de Bateson, muitos experimentos tentaram demonstrar

    que as protenas eram as entidades fsicas responsveis pela hereditariedade. No

    entanto, os esforos nesse sentido acabaram por sucumbir diante da evidncia

    experimental de que a molcula em questo era o DNA e no outra. A retirada de cena

    definitiva das protenas como candidatas a molculas da hereditariedade deu-se em

    1952, com os experimentos de Hershey e Chase com bacterifagos T2.

    Iniciou-se, a partir da, uma corrida pela elucidao da estrutura dessa molcula.

    Uma vez que sua natureza qumica j era conhecida, era necessrio agora saber como os

    nucleotdeos deveriam estar organizados e ligados entre si. O modelo, nesse caso, era

    fundamental, pois a partir dele seria possvel inferir os mecanismos de duplicao

    (herana) e, ao mesmo tempo, de salvaguarda da informao. Em outras palavras,

    poder-se-ia saber a fisiologia da herana.

    Foi em 1953, apenas um ano aps a aceitao do DNA como a molcula da

    hereditariedade, que James Watson e Francis Crick propuseram o modelo

    tridimensional da molcula do cido desoxirribonuclico. O que impressiona aqui avelocidade com que a despreocupao quanto s questes da hereditariedade cedeu

    espao a um interesse central em relao s mesmas. Pode-se supor que esse espao

    tenha sido to rapidamente conquistado por conta das numerosas possibilidades

    tecnolgicas que foram imediatamente vislumbradas. A hiptese de largada a de que

    quanto maior o efeito produtivo e afirmativo de um conceito, mais rapidamente ele

    alcana um status de ponta.

    Mas, se o gene j existia desde 1909 e se o DNA apenas foi atrelado hereditariedade mais de 40 anos depois, qual a relao entre ambos? Como conectar

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    os conceitos de gene e a molcula de DNA s noes de informao, conservao,

    mudana e transmisso? A fim de iluminar estas questes, enveredemos pelo conceito

    de gene.

    3.3. A questo do gene

    J era primavera na Inglaterra quando o trem partiu rumo a Londres. O dia era 8

    de maio de 1900 e, assim como o solo primaveril, prenhe e frtil, uma inveno entrava

    em curso alicerando um dos campos mais profcuos e produtivos da cincia

    contempornea: a gentica. Aproveitando o tempo livre, o ilustre passageiro William

    Bateson, professor da Johns College, lia os trabalhos sobre ervilhas que um

    desconhecido monge agostiniano havia escrito acerca do padro de herana de sete

    caractersticas da Pisum sativum. O impacto da leitura o faria declarar:

    Uma determinao exata das leis da hereditariedade provavelmenteter mais influncia sobre a viso que o homem tem do mundo, esobre o poder do homem em relao natureza, do que qualquer outroavano do conhecimento que possamos imaginar [...]. No h a menordvida de que estas leis podem ser determinadas (apud HENNIG,2001, p. 11, grifos nossos).

    No se trata aqui, porm, de elencar as virtudes da Pisum, tampouco as do

    dedicado monge que contou e analisou mais de trezentas mil sementes de ervilhas.

    Pretende-se, antes, situar a histria de uma das fabulaes mais bem-sucedidas da

    biologia: a histria de como uma molcula o DNA tornou-se o cdigo da vida, e de

    como a entidade gene passou a ocupar uma funo explicativa da mais alta ordem sobre

    os seres viventes. Dito de outra forma, pretende-se discutir como os genes alcanaram afora explicativa que congrega no apenas a noo de origem, de programa, mas

    tambm de desenvolvimento.

    O conceito fundamental dessa trajetria obviamente ser o de gene, poro do

    material portador da informao gentica. Mas, o que efetivamente significa

    informao? Quanto um gene capaz dizer sobre ns mesmos? Trata-se aqui de

    iluminar estas questes por meio dos conceitos de biopoltica e bioidentidade, e, ainda,

    de discutir o quanto a difuso dos conhecimentos cientficos especficos da biologia

    molecular acabou por abalar as noes de normalidade e patologicidade.

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    O termo gentica foi cunhado em 1906 por Bateson, o bilogo que alguns anos

    antes havia redescoberto os trabalhos de Gregor Mendel em textos de Hugo de Vries, de

    Carl Correns e de Erich Von Tschermak, publicados simultaneamente no Proceedings

    ofthe German Botanical Society.

    Pensar que os trabalhos mendelianos ficaram esquecidos durante quase 30 anos

    desafia nossa compreenso, dada a importncia de que a gentica desfruta hoje. Poder-

    se-ia supor que o fato de terem sido publicados em alemo, numa obscura revista de

    botnica, por um monge geograficamente isolado, seriam motivos suficientes para

    explicar esse esquecimento; no se deve crer, porm, que toda a m sorte inicial do

    mendelismo possa ser imputada a esses fatores. Em Ordem do discurso (2004),

    Foucault expe uma interessante problemtica acerca desse silncio. Em sua anlise, ele

    toma como condio essencial para o surgimento de uma dada disciplina que suas

    proposies inscrevam-se em certo horizonte terico. A partir deste ponto de vista, no

    basta que uma proposio seja verdadeira de fato; no a verdade que est em jogo,

    mas sua insero numa dada sistemtica de pensamento. Assim, no obstante Mendel

    dizer aquilo que posteriormente seria aceito como a verdade sobre os padres de

    herana hereditria, seus mtodos e objetos situavam-se num horizonte estranho aos

    estudos biolgicos de sua poca. Vale dizer que Mendel foi o pioneiro no uso da

    estatstica como ferramenta produtora de conhecimento cientfico nas cincias

    biolgicas.

    Mendel dizia a verdade, mas no estava no verdadeiro do discursobiolgico de sua poca: no era segundo tais regras que se constituamobjetos e conceitos biolgicos; foi preciso toda uma mudana deescala, o desdobramento de todo um novo plano de objetos na biologiapara que Mendel entrasse no verdadeiro e suas proposiesparecessem, ento, (em boa parte) exatas (FOUCAULT, 2004b, p.35).

    o que Franois Jacob (2001) chama de campo do possvel. Para este bilogo-

    filsofo estudar a histria da biologia , antes de tudo, dar-se conta de como os objetos

    tornaram-se acessveis anlise. Dito de outra forma, podemos entender que estudar a

    histria da biologia investigar o campo do possvel em cada poca, definido pelas

    teorias ou crenas em curso, pela natureza dos objetos acessveis, pela tecnologia

    disponvel para efetuar o estudo, pela maneira mesma de observar e falar sobre os

    objetos.

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    Assim, o discurso gentico surge no momento em que o campo do possvel se

    apresenta a ele, no momento em que a verdade inscreve-se num horizonte terico

    adequado. sobre o nascimento do conceito de gene e, mais, sobre um discurso sobre o

    gene, que se pretende discorrer aqui. Ainda com Foucault:

    O discurso nada mais do que a reverberao de uma verdadenascendo diante de seus prprios olhos; e, quando tudo pode, enfim,tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discursopode ser dito a propsito de tudo, isso se d porque as coisas, tendomanifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar interioridadesilenciosa da conscincia de si (FOUCAULT, 2004b, p. 49).

    Na trilha de Foucault, possvel afirmar que no crivo do pensamento ocidental

    pensamento este que guarda a menor distncia possvel entre o pensamento e apalavra, materializando uma realidade por meio do discurso que se d o nascimento

    do imprio gentico.

    Vale a pena aqui, antes mesmo de dar incio ao nosso percurso analtico sobre o

    gene, retomar a ideia do pioneirismo de Mendel no uso de ferramentas estatsticas

    utilizadas na abordagem de fenmenos do mundo vivo. Dito de outra forma, a mirada

    mendeliana era populacional em termos foucaultianos, tratava-se de biopoltica.

    No parece razovel imputar a utilizao do arsenal matemtico-estatsticosimplesmente ao fato de Mendel ser fsico. O que parece que o ilustre monge

    agostiniano se inseria num movimento mais amplo ligado ao governo dos homens,

    sendo estes entendidos em sua dimenso de espcie biolgica. De novo, trata-se

    precisamente daquilo que Foucault chamou de biopoltica.

    O termo gene aparece somente em 1909 sem que nenhum conceito estivesse

    associado a ele , muito antes de o DNA ser eleito como a molcula da hereditariedade.

    Na verdade, ele surge com um duplo propsito. Primeiramente, parecia necessrio dar