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BETINA REZZE BARTHELSON
RELAÇÕES DE SENTIDO NO PROCESSO DE
AQUISIÇÃO E USO DA LEITURA E DA ESCRITA
CAMPINAS
2014
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
BETINA REZZE BARTHELSON
RELAÇÕES DE SENTIDO NO PROCESSO DE
AQUISIÇÃO E USO DA LEITURA E DA ESCRITA
Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Linguística.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry Coorientadora: Profa. Dra. Sonia Maria Sellin Bordin
CAMPINAS
2014,
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À MT e às crianças da escola que me
possibilitaram tantas reflexões.
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AGRADECIMENTOS
Ao CNPq, pelo apoio a esta pesquisa.
À Profa. Maza, por ter aberto as portas para um novo caminho e por ter
compartilhado comigo tanto conhecimento, a minha admiração.
À Profa. Sonia, pela paciência, perseverança e dedicação na leitura de meu texto.
Às Profas. Fernanda e Lílian, pela leitura atenta, pelas reflexões e fundamentais
intervenções.
Ao Julio, meu amor e companheiro, minha enorme gratidão pela paciência e
parceria. Você foi fundamental para que as dificuldades não parecessem tão difíceis e
para que o caminho ficasse mais doce.
À Isa, pelas escritas, reescritas e pela palavra amiga.
À Laura, pela disponibilidade e importantes contribuições para o meu texto.
À Judith, por sempre estar ao meu lado.
Ao CCazinho, uma grande oportunidade de aprendizado.
A todos da escola que compartilham comigo o dia a dia, obrigada pela
companhia e parceria.
Ao Erivaldo.
À minha família.
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RESUMO
A pesquisa em questão apresenta e analisa dados referentes a um estudo longitudinal realizado com um menino de 12 anos de idade, com dificuldade no eixo fala, leitura e escrita, e portador do diagnóstico de Retardo Mental Moderado. Esse acompanhamento foi realizado no Centro de Convivência de Linguagens (CCazinho/IEL/Unicamp), fundamentado na abordagem da Neurolinguística Discursiva (doravante ND). O acompanhamento deste sujeito põe em evidência a necessidade de refletir sobre a importância da interlocução como processo de constituição do sujeito. Será posto em relevo que, a partir das concepções de língua, de linguagem e de interlocução adotadas pela ND, torna-se possível, no trabalho realizado com esse sujeito, a socialização de memórias, a ampliação do sistema de referências e de operações de construção de sentido, processos estes que desencadearam sua entrada no mundo das letras. Nesta dissertação, abordarei também a relação entre esse acompanhamento e minha prática docente na Educação Infantil (EI), com crianças de aproximadamente cinco anos, o que provocou reflexões relativas à patologização da educação no Brasil. Buscarei compreender, sobretudo, o que faz com que uma criança que não apresenta problemas na EI passe a fracassar no processo de aprendizado de leitura e escrita na continuidade de seu processo escolar no EF.
Palavras – chave: Neurolinguística Discursiva; Fala; Leitura; Escrita;
Educação Infantil; Interlocução
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ABSTRACT
This research presents and analyzes a longitudinal follow-up of a boy with learning difficulties. He is about 12 years old and has a hard time speaking, reading and writing. He also was diagnosed with Moderate Mental Retardation. The longitudinal follow up took place at the Center of Language, also known as CCazinho, (IEL/UNICAMP) and based on the Discoursive Neurolinguistics (hereafter ND) approach. The longitudinal follow up here presented puts in evidence the need to reflect on the importance of interlocution as a process of constitution of the subject. This research aims to point that, from the conceptions of language, language and dialogue adopted by the ND, it is possible, during the follow up, the socialization of memories, the expansion of the reference system and the building of meaning. This reasearch also points that these processes can lead the subjetc into the world of letters. Through this research, we also discuss the relationship between this follow up and my teaching practice in Early Childhood Education (EI), with children of approximately five years. Through my practice, I could see many aspects of the pathologizing of education in Brazil. Above all, this reasearch aims to understand what makes a child that has no problems in Early Childhood Education can fail when learning how to read and write in the continuity of their schooling process in Elementary Education. Keywords - Keywords: Discoursive Neurolinguistics; Speech; Reading; Writing; Early Childhood Education; Interlocution
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LISTA DE DADOS
Dado 1: Cópia no caderno da escola
Dado 2: Complete a frase, descubra a palavra, separe as sílabas
Dado 3: Conversando na praça do Ciclo Básico
Dado 4: Jogando Palavras cruzadas
Dado 5: Palavras cruzadas na revista Coquetel
Dado 6: Caderno de figuras
Dado 7: Trocando o pneu
Dado 8: Preparação para a escrita do texto: Como trocar pneu
Dado 9: Escrita do texto: Como trocar pneu
Dado 10: Digitação do texto: Como trocar pneu
Dado 11: Incêndio no IEL: preparação para a escrita do texto
Dado 12: Diálogo sobre o incêndio no IEL entre Ibb e MT
Dado 13: Texto final: Incêndio no IEL
Dado 14: Atividades realizadas por MT na escola
Dado 15: Animais extintos e animais em extinção
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 1
CAPÍTULO 1 - A história da Educação: da popularização do ensino à sua
patologização ........................................................................................................... 9
1.1. Contexto histórico da Educação no Brasil ........................................................ 10
1.2. Abordagem tradicional de linguagem x abordagem discursiva: uma breve
reflexão. .................................................................................................................. 14
1.3. A escola e as dificuldades escolares como sintomas de patologias ................... 20
1.4. Fundamentação teórica e metodológica da ND ................................................. 26
CAPÍTULO 2 - A constituição de MT na e pela linguagem: seu lugar na família e na
escola ..................................................................................................................... 33
2.1. A chegada de MT ao CCazinho ....................................................................... 33
2.2. A interferência das Políticas Públicas Educacionais na vida de MT .................. 39
2.3. A relação entre a escola e a família de MT ....................................................... 44
2.4. O poder do discurso médico e suas implicações no destino de MT ................... 48
2.5. MT é um sujeito incorrigível? .......................................................................... 51
CAPÍTULO 3 - O acompanhamento longitudinal de MT ........................................ 55
3.1. O CCazinho: a realização de um trabalho com MT orientado pela interlocução 55
3.2. As primeiras incursões de MT na leitura e na escrita ........................................ 64
CAPÍTULO 4 - A interlocução na Educação Infantil .............................................. 93
4.1. A Educação Infantil e o Ensino Fundamental: aspectos legais .......................... 93
4.2. O trabalho discursivamente orientado na EI: “Roda de conversa” .................... 96
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 107
Anexos ................................................................................................................. 117
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1
APRESENTAÇÃO
A presente pesquisa1 é desenvolvida a partir dos pressupostos teóricos e
metodológicos da Neurolinguística Discursiva (doravante ND) envolvidos no
acompanhamento longitudinal do processo de aquisição e de uso da leitura e da escrita
de MT, sujeito deste estudo, realizado no Centro de Convivência de Linguagens
(CCazinho), situado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.
O interesse na realização desse estudo surgiu através de minha prática como
docente concursada na Educação Infantil (doravante EI) na Prefeitura Municipal de
Campinas, a partir de minha formação em Pedagogia pela Universidade Estadual de
Campinas em 1999, ano em que atuei no Ensino Fundamental (EF) na rede privada de
ensino. Ao longo do exercício desta prática, junto a crianças que ingressam na EI e que
seguem no EF, diferentes questões me afetaram:
a) Por quê crianças que apresentam um histórico de sucesso no período da
EI passam a ter problemas em sua sequência escolar quando o processo de alfabetização
entra em cena?
b) Há uma ruptura entre esses dois momentos sem que nada indicie no
percurso da criança na EI para tal acontecimento?
O período da EI é considerado, teoricamente, como um espaço físico e
psíquico de instauração e de fortalecimento dos vínculos da criança com a imagem do
professor, da escola e, principalmente, do saber formalizado que circula em diferentes
gêneros de escrita e de memória social. Isso acontece através de diferentes atividades
cotidianas realizadas em sala, que visam aproximar a experiência que a criança traz de
sua vida familiar e social a diferentes práticas formais de leitura e de escrita, por meio
da leitura de diferentes gêneros, de contação de histórias, de rodas de conversa, do
trabalho com textos intersemióticos. Assim, busca-se, por um lado, instaurar na criança
uma relação afetiva e de aprendizagem com a escola e, por outro, a sua imersão no
processo de letramento e do saber acumulado pela cultura da qual faz parte.
1 Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp, sob parecer consubstanciado de número 392.659/2013.
2
Nas últimas décadas, houve um crescimento de oferta de vagas em escolas
públicas e particulares para o ingresso das crianças na EI. Entretanto, observamos que
os índices negativos do aproveitamento escolar de alunos brasileiros estão associados ao
Ensino Fundamental (doravante EF), relacionados, quase sempre, com a aprendizagem
de leitura e de escrita, com raciocínio matemático e com controle de comportamento de
atenção do aluno neste meio, o que tem acontecido sem que a Escola, como instituição,
considere o histórico desses mesmos alunos desde as suas primeiras relações (afetivas e
de aprendizagem) com a própria escola. Parece, portanto, interferir na passagem da
criança da EI para o primeiro ciclo do EF, tanto sob o ponto de vista das Políticas
Educacionais quanto do professor, a falta de práticas reflexivas envolvendo a
intencionalidade pedagógica desse primeiro período educacional, especialmente no
tocante à análise contextualizada das experiências de vida que a criança traz para a
escola e à organização de um trabalho pedagógico como decorrência que inclua a
análise teórico-prática das atividades de sala de aula e do papel do professor.
Buscando mais um curso de formação profissional que possibilitasse refletir
sobre as questões que afetam minha docência, tanto do ponto de vista teórico quanto
prático, ingressei, em 2009, no Curso de Especialização Lato-Sensu: “Linguagem,
práticas discursivas e criança”, oferecido através do convênio IEL - Unicamp e
Prefeitura de Campinas. Durante a realização do curso, interessei-me pela perspectiva
teórico-metodológica assumida pela ND, especialmente, no que tange ao estudo e às
análises de dados oriundos do processo de entrada das crianças na fase inicial da leitura
e da escrita.
Minha identificação com tal abordagem se dá porque ela abrange a teoria e a
prática em um movimento contínuo e recursivo, de modo a contemplar, assim, meu
interesse pelas questões relativas à alfabetização, à mediação e à intervenção do
professor nos processos inerentes à aprendizagem da leitura e da escrita. Especialmente,
foi importante pensar sobre como as experiências da criança na EI podem ser
ressignificadas por ela no EF.
Dando continuidade ao referido curso, optei por fazer o Trabalho de
Conclusão de Curso na área da ND, sob a orientação e co-orientação da Profa. Dra.
Maria Irma Hadler Coudry e da Profa. Dra. Sonia Sellin Bordin, respectivamente. Esse
trabalho teve como proposta o estudo da relação entre as brincadeiras infantis e a
3
construção da linguagem escrita. Procurando, ainda, fundamentação e aprofundamento
teórico para a minha prática docente, através de reflexões suscitadas pela ND, dei
continuidade aos meus estudos cursando as disciplinas eletivas AM 035 e AM 0452, no
ano de 2010, quando passei a acompanhar no CCazinho o sujeito desta pesquisa – MT -
que apresentava sérias dificuldades em sua entrada nos processos de leitura e de escrita.
A ND, nos últimos anos, vem se solidificando como uma perspectiva
teórico-prática3 que propõe reflexões, discussões, análises e acompanhamentos de
sujeitos com dificuldades no eixo fala, leitura e escrita e que, em virtude disso,
frequentemente, recebem diagnósticos médicos (Transtorno do Déficit de Atenção,
Transtorno de Aprendizagem, Déficit de Aprendizagem, Dislexia, Alteração de
Processamento Auditivo, Síndrome do X-Frágil, entre outros). Diagnósticos estes que,
de alguma forma, devido à importância a eles atribuída pelos familiares e pelos
professores, determinam para a escola e para a família o mau funcionamento orgânico
desse sujeito para as questões associadas às aprendizagens escolares.
De tal modo, quando a criança apresenta uma dificuldade, muitas vezes,
natural do próprio processo de aprendizagem da leitura e da escrita, os professores,
quase sempre, sem conhecimento técnico (sobretudo linguístico) suficiente não
conseguem com elas lidar, as relacionam com questões de ordem biológica, vinculada
ao corpo do aluno, como uma incapacidade ou patologia4. As dificuldades escolares,
assim vistas, justificam o encaminhamento desse aluno pela escola a instituições que,
2 AM 035 – Ler e escrever: acompanhamento de crianças e jovens I e AM 045 - Ler e escrever: acompanhamento de crianças e jovens II são disciplinas eletivas oferecidas no IEL aos alunos de graduação da Unicamp e de outras universidades, ministradas pela Prof. Dra. Maria Irma Hadler Coudry com a participação da pós-doutoranda Profa. Dra. Sonia Maria Sellin Bordin. Tais disciplinas de caráter teórico-prático, por um lado, preparam os alunos quanto à perspectiva teórico-metodológica da ND, que privilegia o estudo das relações existentes entre fala, leitura, escrita, cérebro e mente e, por outro lado, possibilita a prática desses alunos no CCazinho junto às crianças e aos jovens, bem como promove a discussão dos casos acompanhados e a análise de dados oriundos de tais acompanhamentos. 3 Dentre os trabalhos realizados encontram-se: Coudry (2010); Bordin (2010); Antônio (2011); Coudry e Bordin (2012); Nakazoni (2012); Muller (2013); Silva (2014); Righi Gomes (2014). 4 A palavra patologia (páthos, doença, e lógos, estudo) define a área da medicina que descreve as alterações anatômicas e funcionais causadas pelas doenças no organismo. Ultimamente, o termo patologia tem sido empregado como sinônimo de doença, o que representa, sob o ponto de vista dos linguistas, um neologismo de significado, ou seja, quando a mesma palavra incorpora outro significado além do primitivo, tradicional, embora em nenhum dicionário, especializado ou não em termos médicos, encontra-se averbado o termo patologia com essa definição. Sendo assim, assume-se nesta pesquisa o termo patologia como sinônimo de doença/distúrbio. Disponível em <http://www.jmrezende.com.br/patologia.htm> (Acesso: 27/04/2014)
4
por razões sócio históricas, se encarregam de avaliá-los (COUDRY e MAYRINK-
SABINSON, 2003).
Nessas instituições vinculadas à área da saúde, frequentemente, as
avaliações são realizadas por meio de testes psicométricos padronizados, que não
consideram o trabalho linguístico do sujeito, sua história e as diferentes formas de
trabalhar com a linguagem (COUDRY, 2010a). Como consequência, tais avaliações
resultam em diagnósticos/rótulos que, atribuídos a essas crianças, as marcam pelas
limitações de uma doença, justificando o fracasso escolar na juventude e a exclusão do
sistema produtivo na vida adulta (COUDRY, 2007).
Essa é a história de MT, sujeito desta pesquisa, uma criança de 12 anos que,
na época de sua avaliação inicial no CCazinho, em 2010, mesmo frequentando o 6º ano
do EF, não se encontrava alfabetizado. Como veremos, MT apresenta também
problemas de ordem sócio-afetiva, tanto na escola quanto na própria família e, por
vezes, tem dificuldade para se expressar e, assim, para se fazer entender.
Devido às dificuldades escolares de MT e relacionando-as a sintomas
patológicos, a escola orientou sua família a buscar ajuda de profissionais especializados.
Inicia-se, assim, a trajetória de MT e de sua mãe na procura de algum encaminhamento
que o ajudasse a transpor suas dificuldades escolares. Em duas instituições, sob a
orientação de especialistas como psicólogos, MT foi submetido a testes psicométricos
que resultaram no diagnóstico de Retardo Mental Moderado (CID F71. 9), marcando-o
como portador de uma doença.
MT e sua família passaram por diferentes instituições, por diferentes
profissionais da medicina e de outras áreas de especialização, sem conseguir mudar a
situação. Em 2010, por sugestão de uma professora de sua escola que conhecia o
trabalho realizado neste Centro, chegam ao CCazinho, buscando ajuda para que MT se
alfabetizasse, quando, então, teve início seu acompanhamento longitudinal realizado
por mim.
As dificuldades experimentadas por mim e por MT no complexo processo
do seu acompanhamento longitudinal me possibilitaram estabelecer um paralelo entre
esse trabalho discursivamente orientado na e pela linguagem (BENVENISTE,
1966/1991) e minha prática docente na EI com relação à importância da criança como
sujeito na relação com o outro. Portanto, é justamente a Interlocução, como conceito
5
norteador do meu trabalho na EI, referente a crianças de até aproximadamente seis anos
de idade e ainda não alfabetizadas, e do trabalho realizado no CCazinho com MT, o que
evidencia a aproximação existente entre esses dois universos aparentemente distantes.
Sendo assim, me parece possível afirmar que as vivências das crianças na
EI, pautadas pela interlocução e pela intervenção nos processos envolvidos na
aprendizagem, e, ainda, por meio da consideração da história do sujeito e das diferentes
formas de trabalho com a linguagem, podem possibilitar ao aluno a continuidade de um
percurso escolar menos conturbado e mais feliz do que o vivido por MT. Dessa forma, a
pesquisa deste mestrado, orientada pela teorização e metodologia da ND, envolve o
acompanhamento longitudinal do sujeito MT, que acontece entre setembro de 2010 e
junho de 2013, e tem como objetivo refletir sobre a relação entre a fala, a leitura e a
escrita antes e durante o processo de entrada das crianças e jovens no mundo das letras.
Para tanto, proponho uma reflexão sobre os conceitos de sistema de
referências e de operações linguísticas ancoradas na linguagem. A concepção de
linguagem tomada como fomentadora da reflexão, do pensamento e da criatividade
(FRANCHI, 1977/1992) relaciona-se com o estudo vygotskyano que centraliza na
fala/linguagem as possibilidades de desenvolvimento afetivo e intelectual da criança
(VYGOTSKY, 1934/1993).
De tal modo, esse estudo é dirigido, por excelência, aos professores,
considerando as questões que regem a realização desta dissertação e que perpassam a
reconsideração do meu lugar de pedagoga: quais, dessas crianças que agora não
apresentam problema algum, serão as próximas a serem diagnosticados como
portadoras de alguma patologia? O que promove essa terrível transformação? Onde
estão os indícios de ruptura da esperada continuidade da suposta normalidade da criança
que frequenta a EI: na estrutura escolar, na formação do professor, na relação escola e
família? Para responder a tais perguntas, a pesquisa está organizada em quatro capítulos.
No Capítulo 1, “A história da Educação: da popularização do ensino à sua
patologização”, a partir dos fundamentos teóricos da ND e dos estudos realizados na
área, apresento uma breve reflexão sobre o aspecto histórico da Educação no Brasil,
com os objetivos de contextualizar, na sociedade atual, algumas das causas da baixa
qualidade do ensino oferecido hoje em nosso país, bem como o de discutir o olhar
equivocado que a própria Escola, a Medicina e a Família vêm mantendo sobre as
6
dificuldades escolares apresentadas pelas crianças e jovens. Este processo de
patologização do ensino resvala no largo consumo de medicamento pela população
escolar.
O Capítulo 2 “A constituição de MT na e pela linguagem: seu lugar na
família e na escola” tem por objetivo apresentar MT, sujeito desta pesquisa. O primeiro
momento do processo do acompanhamento longitudinal de MT, realizado por mim no
Centro de Convivências de Linguagens – CCazinho, entre setembro de 2010 e junho de
2013. A queixa principal de MT, 12 anos, trazida pela família, era a sua impossibilidade
de entrar nos processos de leitura e de escrita. Entretanto, os primeiros encontros com
MT acabam por evidenciar uma questão de fala, mais especificamente, de interlocução,
que redireciona o acompanhamento longitudinal para as questões de interlocução e de
memória, isto é, processos de subjetivação na língua/linguagem.
O Capítulo 3, “O acompanhamento longitudinal de MT”, dá visibilidade ao
segundo momento do acompanhamento longitudinal de MT e sua finalização. Nele,
serão privilegiadas as possibilidades do vir a ser desse sujeito. Trata-se de uma aposta
de que esse sujeito pode se constituir a partir de diferentes interlocuções em diferentes
experiências, principalmente, de fala/linguagem, ampliadas por outras que envolvem a
leitura e a escrita, por estar ele imerso em uma cultura letrada. O acompanhamento
longitudinal de MT, então, é analisado a partir dos conceitos de sistema de referências,
de operações de construção de sentidos, de consciência e de conhecimento de mundo,
além dos processos de leitura e de escrita, propriamente ditos.
No Capítulo 4, “A interlocução na Educação Infantil”, se apresenta a
estrutura escolar da EI como um momento do percurso da criança, em que ocorrem suas
primeiras significações baseadas nas interlocuções oriundas de um ambiente diferente
do ambiente familiar, incluindo outro sistema de relações (com o professor e com seus
pares) e também de outro sistema de regras (escolares). Além disso, é na EI que
ocorrem as primeiras experiências da criança, ainda que de forma indireta, com a leitura
e com a escrita significadas, principalmente, na interlocução com o professor. Para
evidenciar a importância das vivências5 da criança na EI, apresento, a partir de minha
5 O conceito de vivência usado por Vygotsky é discutido por Zoia Prestes (2010) em sua tese de
doutorado defendida em 2010 na UNB: “Perejivanie, para a criança, é exatamente uma unidade simples, relativa à qual não se pode dizer que represente uma influência do ambiente sobre a criança ou uma especificidade da criança; perejivanie é exatamente uma unidade da personalidade e do ambiente, assim
7
experiência como professora e dos aportes teóricos da ND, a análise de uma atividade
comumente realizada nas salas de EI - “Roda de conversa”-, como uma prática
discursiva de interlocução que interfere no processo de subjetivação dos alunos.
como está representada no desenvolvimento. Por isso, no desenvolvimento, a unidade dos aspectos da personalidade realiza-se numa série de perejivanie da criança. Perejivanie deve ser entendida como uma relação interna da criança como pessoa com um outro aspecto da realidade” (PRESTES, 2010, p.120).
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CAPÍTULO 1 - A história da Educação: da popularização do
ensino à sua patologização
A partir dos fundamentos teóricos da ND e dos estudos realizados na
área, apresento, neste capítulo, uma breve reflexão sobre o aspecto histórico da
Educação no Brasil, com o objetivo de contextualizar, na sociedade atual, algumas das
causas da baixa qualidade do ensino oferecido hoje em nosso país, bem como o de
discutir o olhar equivocado que a própria Escola, a Medicina e a Família fazem sobre as
dificuldades escolares apresentadas pelas crianças e jovens.
O propósito deste capítulo é refletir sobre a condição precária em que se
encontra o ensino público – do qual faço parte como professora – não como um
acontecimento atual, mas como uma confluência de fatores externos, como os políticos
e sociais, e os internos, a prática em sala de aula e a formação do professor. A crítica
construída pela ND aponta que, ao longo dos anos, estes fatores são encobertos pelo
excesso de patologias, como a Dislexia, o Déficit do Processamento Auditivo, o
Distúrbio de Aprendizagem, entre outras, que são atribuídas às crianças, sobretudo de
escola pública. Vemos que essas crianças, por vezes, fazem uso de medicamentos à
base de metilfenidato6, especialmente aquelas que são diagnosticadas, especialmente,
com o chamado Transtorno do Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade.
O Governo Federal Brasileiro7, com o objetivo de ampliar o acesso de
toda a população aos medicamentos que considera imprescindíveis para a saúde,
disponibiliza, para a rede básica de saúde, uma relação de medicamentos oferecidos
gratuitamente, dentre estes, o metilfenidato. Assim, com a legitimação do governo, esse
medicamento tornou-se tão necessário quanto aquele indicado para doenças crônicas,
como, por exemplo, a insulina para o diabetes. Este processo acaba por gerar uma
questão econômica entre o investimento da verba pública destinada a esse fim e o lucro
de laboratórios e patentes. Dessa forma, devido ao uso disseminado do metilfenidato,
6 O Brasil é o segundo maior consumidor de metilfenidato. Em primeiro lugar, estão os Estados Unidos. A venda desse medicamento começou em 1998 e, de acordo, com Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), apenas entre 2009 e 2011, seu consumo triplicou de 156 milhões miligramas para 413 milhões. O Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos (IDUM) estima que o crescimento das vendas desse medicamento foi em torno de 3.200% nos últimos 11 anos. Não há estudos sobre a quantidade de metilfenidato que gira pelo mercado negro no Brasil. Disponível em: <http://www.ascoferj.com.br/noticias/consumo-de-metilfenidato-triplicou>. Acesso em: jan. 2014. 7 Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/07/sp-restringe-acesso-remedio-para-crianca-com-deficit-de-atencao.html>.Acesso em:15 jul/2014
10
algumas prefeituras, como a de São Paulo, passaram a exigir, além da receita do
especialista neurologista ou psiquiatra, uma avaliação psicológica para a autorização do
uso desse medicamento.
Neste capítulo, portanto, se dará relevância ao uso da abordagem
tradicional de linguagem que embasa a prática escolar. Em função de o arcabouço
teórico da ND se constituir como um contraste a tal concepção de linguagem, ele
perpassará toda essa reflexão, no entanto, será no último item do presente capítulo que
este aporte teórico será exposto.
1.1. Contexto histórico da Educação no Brasil
Verificam-se, atualmente, no cenário Educacional Brasileiro, diferentes
problemas que comprometem o percurso escolar dos alunos, especialmente o de
crianças em processo de alfabetização. Muitas crianças não conseguem se alfabetizar
ou, se conseguem, enfrentam, até o final do seu percurso escolar, problemas em relação
à escrita de textos, ao sistema ortográfico da língua e à leitura com compreensão.
A Escola tem, como responsabilidade e função, a transmissão dos
conhecimentos historicamente construídos pela humanidade, a promoção do
aprendizado formal da leitura e da escrita, além de assumir a dianteira dos processos de
socialização e de aprendizado de papéis e normas sociais (COUDRY e FREIRE, 2005).
Em nosso país, veem-se, através dos altos índices de evasão escolar e pelo baixo nível
educacional brasileiro alcançado nos índices internacionais8, que a Escola não tem
cumprido com sucesso a sua função e responsabilidade.
A escrita e a leitura são processos que devem ser ensinados pela escola,
uma vez que possibilitam, às crianças, acesso aos conhecimentos formais: um bem
coletivo que permite a apropriação do patrimônio cultural, histórico e político
construído pelas sociedades (KLEIMAN, 2005). Assim, aprender formalmente a
escrever e a ler “envolve não só a aprendizagem de símbolos gráficos, mas, sobretudo o
8 O PISA - O Programme for International Student Assessment (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) realiza avaliações e compara os sistemas de ensino de vários países com o objetivo de subsidiar políticas de melhoria no ensino básico. A partir do último índice de avaliação realizado em 2012, o Brasil ocupa a 55ª posição no ranking de leitura dentre os 65 países participantes. Segundo os índices do programa, quase metade (49,2%) dos alunos não alcança o nível 2 de desempenho na avaliação que tem o nível 6 como o seu indicador máximo. De acordo com a avaliação realizada esses alunos não são capazes de deduzir informações e de estabelecer relações entre as diferentes partes do texto. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/pisa-programa-internacional-de-avaliacao-de-alunos>. Acesso em: 15 jul. 2014.
11
acesso ao universo criado pela circulação da produção escrita, especialmente o acesso
aos conteúdos e saberes culturais veiculados” (ALKMIM, 2005, p.12).
Nesse sentido, “ler e escrever tornaram-se práticas extremamente
valorizadas no mundo de hoje” (Ibdem, p.13) constitutivas das “novas formas de
relações sociais” e dos “novos tipos de relação com o mundo e com o outro” presentes
em nossa sociedade (LAHIRE, 1993, p.15).
Historicamente, somente no século XIX a escrita adquiriu uma grande
importância social, como consequência do advento da Revolução Industrial.
Anteriormente, “somente alguns membros de uma elite social tinham a necessidade de
ler e escrever” (ALKMIM, 2005, p.14)9.
Em nosso país, a relação do acesso da população ao saber não tem
acontecido de forma democrática, o que está diretamente associado aos interesses
políticos e às decisões relativas à Educação: o direito de aprender a ler e a escrever é,
sobretudo, uma questão de Política Educacional, que determina “o modo como o saber é
aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo
atribuído” (FOUCAULT, 1970/2010, p.17).
No Brasil, a escolarização, até o século XIX, foi precária e insuficiente para
a população em geral. Os fatos de seus habitantes se concentrarem na zona rural e de a
economia ser de base agrícola, assentada em técnicas arcaicas de cultivo, não exigiam
um saber escolar na preparação dos trabalhadores, o que se constituiu em um fator
determinante para os altos índices de analfabetismo no país. Contribui, para isso, o fato
de a educação no Brasil ser vedada aos escravos. Somente com a vinda da corte
portuguesa para o Brasil, em 1808, é que se torna relevante pensar em questões
referentes à Educação, em função da necessidade da ocupação de cargos nos quadros da
política, da administração pública e, principalmente, para formar a ‘inteligência’ do
regime” (ROMANELLI, 2012).
Com a vinda da corte portuguesa, também surgem outras preocupações,
como a criação de manuais para as aulas dos professores; a criação de colégios modelos
com o objetivo de oferecer um padrão de ensino a ser seguido e, ainda, a instalação da
Impressão Régia no Rio de Janeiro, criando condições para a edição de obras de autores
9“A escrita era restrita e controlada pelos espaços tradicionais de poder, como a Igreja e o Estado”. (ALKMIM, 2005, p.14).
12
brasileiros (SOARES, 2002). Sendo assim, a estrutura e a organização social durante o
século XIX determinou “a permanência da velha educação acadêmica e aristocrática e a
pouca importância dada à educação popular” (ROMANELLI, 2012, p.46).
A partir do século XX, houve a deterioração das formas de produção no
campo e a intensificação do processo de urbanização e industrialização, exigindo a
necessidade de recursos humanos e mão de obra qualificada, e, como consequência, a
ampliação da rede pública escolar. De tal modo, até 1950, apenas as classes
privilegiadas social e economicamente tinham acesso à Educação. Somente depois
dessa década, e durante o Regime Militar, é que ocorre a ampliação do sistema
educacional brasileiro, como resposta à reivindicação das camadas populares pelo
direito à escolarização e pela democratização do ensino. Tal ampliação se dá de “forma
atropelada, improvisada, agindo o Estado mais com vistas ao atendimento das pressões
do momento do que propriamente com vistas a uma política nacional de educação”
(Ibidem, p.65). No entanto, devido à urgência de suas contratações, os novos
professores foram escolhidos de forma rápida, pouco seletiva, formados em cursos
curtos e desprovidos de profundidade teórica (MOLINA, 1987).
Nesse contexto, o programa curricular escolar de caráter amplo e erudito foi
reduzido para que alunos oriundos de diferentes classes sociais pudessem atingir
minimamente os objetivos acadêmicos da época: “O aumento da rede de escolas
públicas concretamente se traduziu em prédios escolares improvisados, sem
equipamento e sem segurança, (...) o aumento das crianças nas salas de aula significou a
multiplicação dos períodos de funcionamento da escola fazendo surgir, por exemplo, o
período intermediário” (SILVA, 1986, p.12). Como consequência deste tipo de
expansão do sistema educacional, verificam-se o rebaixamento do nível educacional das
escolas, a redução do salário do professor e as péssimas condições de trabalho
oferecidas (SOARES, 2002).
Segundo Silva (1986), a ampliação do atendimento escolar às camadas da
população marginalizadas representou, primordialmente, a tentativa do Estado em
divulgar uma imagem política democrática, ainda que as condições de ensino
continuassem de baixa qualidade e excluíssem, de fato, as camadas carentes da
população.
Nos anos de 1970 e 1980, o crescimento da população escolar nas escolas públicas do Estado de São Paulo foi da ordem de 1 milhão e
13
meio de crianças. Esse crescimento foi um primeiro resultado da política educacional do governo, implantada no período que sucedeu a revolução de 64 em nosso país e que, ampliando o número de anos de escolaridade a um contingente da população, pretendeu fazer passar a ideia de uma educação que se “democratizava” porque fazia aumentar as chances de igualdade de condições (SILVA, 1986, p.11).
É importante ressaltar, também, que entre os anos de 1985 e 1990, em busca
de ensino de melhor qualidade, houve a migração das classes com maiores condições
econômicas da rede pública para a rede particular de ensino.
A partir dessa breve retomada histórica, observa-se que a situação
comprometedora do ensino público se mantém até os dias de hoje e reflete o descaso
dos responsáveis legais pela Educação em nosso país. Descaso que se evidencia no
interior da sala de aula, pela baixa qualidade da formação do professor10, dificultando-
lhe o entendimento dos processos envolvidos na aquisição da leitura e da escrita, assim
como o impossibilita de propor atividades que despertem no aluno o interesse em
aprender.
Além disso, diferentes fatores agravam o quadro já debilitado do ensino
brasileiro: o número excessivo de alunos em sala de aula; a má qualidade do material
didático; a falta de estrutura física das escolas; a gestão incompetente quanto à
administração de verbas destinadas à compra de materiais (giz de lousa, máquina para
fotocópia, computadores, aparelhos de DVD, livros para biblioteca); a ausência de
Políticas Educacionais favorecendo o trabalho do professor em relação à avaliação e à
promoção da aprendizagem do aluno; a baixa qualidade da gestão pedagógica escolar; a
desvalorização social e econômica do trabalho do professor. Nesse contexto, professor e
aluno estabelecem uma relação muitas vezes desrespeitosa, o que vem sendo constante
nas escolas em nosso país. A Escola vem se definindo como um palco de relações
pautadas pela violência, tanto do aluno para com o professor, quanto do professor para
com o aluno.
Nesse cenário escolar, perdem-se de vista a função e a responsabilidade da
Escola quanto a transmitir conhecimento e se fazer interessante para o aluno. Além
disso, inviabiliza-se a implantação de práticas pedagógicas condizentes com o tempo
10Castilho (2000) considera que uma das causas da crise instaurada no ensino de escrita na escola é a formação ainda conservadora oferecida pelas universidades que não prioriza a reflexão do professor quanto a: “o que devem ensinar, como devem ensinar, para quem ensinar e para quê ensinar” (Idem, p.13).
14
histórico do aluno e do professor. Como consequência, antigos recursos pedagógicos,
como a cópia, passam a ser usados frequentemente pelos professores sem que se
priorizem os processos de aprendizagem dos alunos: há apenas o propósito, por um
lado, de controlar o comportamento da classe e de minimizar a indisciplina dos alunos
e, por outro, talvez, de que o professor, supostamente, exerça o seu ofício. Atreladas a
essa temática, diferentes pesquisas11 têm indicado que o professor em sala de aula passa
a maior parte do seu tempo controlando o comportamento de seus alunos ao invés de
ministrar os conteúdos previstos.
1.2. Abordagem tradicional de linguagem x abordagem discursiva: uma breve
reflexão.
A cópia, cotidianamente, tem como função social a reprodução de uma
receita culinária, de um endereço, de um número de telefone, de alguma informação que
se queira lembrar posteriormente. O que vemos, porém, através dos cadernos das
crianças do CCazinho, é que a cópia não tem sido usada na escola como instrumento da
memória: ela tem sido usada de forma descontextualizada, apenas para preencher o
tempo da aula, possibilitando ao professor certo controle sobre o comportamento dos
alunos. Ainda assim, mesmo quando usada na escola de forma descontextualizada, a
cópia pode ser um exercício de reflexão sobre a escrita se o aluno já souber ler.
Esta discussão tem relevância frente às raríssimas experiências da criança
na escola com a produção de texto, em detrimento da grande quantidade de atividades
de escrita realizadas de forma mecânica, descontextualizada, repetitiva e sem sentido
para o aluno. Essas atividades não possibilitam, assim, aprendizagens significativas para
o processo de ler e escrever (COUDRY e FREIRE, 2005). É o que pode ser visto na
análise do dado em seguida.
11 Ferreira, A. M. “Gênese da Indisciplina na relação professor-aluno”. Disponível em: <http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/1899_1921.pdf>. Acesso em: 18 mai. 2011; Pereira, M. A. S. “Indisciplina Escolar: Concepções dos professores e relação com a formação docente”. Disponível em: <http://site.ucdb.br/public/md-dissertacoes/8123-indisciplina-escolar-concepcoes-dos-professores-e-relacoes-com-a-formacao-docente.pdf>. (Acesso: 25 jul. 2013).
15
Dado 1: 08/02/2013 – “Cópia no caderno da escola”: dado retirado do caderno de MT usado em sala de aula. O texto copiado pelos alunos foi passado na lousa pela professora da disciplina de história.
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0.
16
A realização da cópia com o baixo número de erros apresentados e o
capricho do traçado das letras são reveladores de um controle de MT sobre a função da
atenção e mostram o seu envolvimento com a atividade proposta pela professora, o que
permite pensar nesses fatos como indícios do seu desejo de aprender a ler e a escrever.
Desta forma, embora MT ainda não leia, mas copie bem todo o texto da lousa, essa
proposta apenas lhe oferece a oportunidade de treino motor de escrita, que então, se
revela desnecessária, uma vez que ele não tem problema algum para realizar os traçados
das letras. A cópia, neste contexto, pode ser entendida também como uma prestação de
serviço dos professores aos pais que valorizam, e cobram destes, os cadernos de seus
filhos preenchidos de escrita, fato comumente associado por esses pais à competência
do professor e à dedicação e ao rendimento escolar do filho.
08/2/13
HISTÓRIA DO CARNAVAL O CARNAVAL É UMA FESTA QUE SE ORIGINOU NA GRÉCIA EM MEADOS DOS ANOS 600 A 520 A.C. ATRAVÉS DESSA FESTA OS GREGOS REALIZAVAM SEUS CULTOS EM AGRADECIMENTO AOS DEUSES PELA FERTILIDADE DO SOLO E PELA PRODUÇÃO. EM ROMA, A SATURNÁLIA SERIA A FESTA EQUIVALENTE AO CARNAVAL. NELA UM “CARRO NAVAL” PERCORRIA AS RUAS DA CIDADE ENQUANTO PESSOAS VESTIDAS COM MÁSCARAS REALIZAVAA JOGOS E BRINCADEIRAS COM O PASSAR DO TEMPO, O CARNAVAL PASSOU A SER UMA COMEMORAÇÃO ADOTADA PELA IGREJA CATÓLICA QUE OCORREU DE FATO EM 590 D.C. ATÉ ENTÃO, O CARNAVAL ERA UMA FESTA CONDENADA PELA IGREJA POR SUA (S) REALIZAÇÕES EM CANTO E DANÇA QUE AOS OLHOS CRISTÃOS ERAM ATOS PECAMINOSOS A PARTIR DA ADOÇÃO DO CARNAVAL POR PARTE DA IGREJA. A FESTA PASSOU A SER COMEMORADA ATRAVÉS DE CULTOS OFICIAIS, O QUE BANIA OS ATOS PECAMINOSOS TAL MODIFICAÇÃO FOI FORTEMENTE ESPANTOSA AOS OLHOS DO POVO. JÁ QUE FUGIA DAS ORIGENS DA FESTA. COMO O FESTEJO PELAS CONQUISTAS. EM 1545, DURANTE O CONCÍLIO DE TRENTO, CA APROXIMADAMENTE 1723, O CARNAVAL CHEGO (U AO) BRASIL SOB INFLUÊNCIA. OCORRIA ATRAVÉS DE
17
Nota-se, no dado acima, que é extenso o texto a ser copiado. Os alunos,
preocupados em conseguir copiar tudo o que foi passado na lousa pelo professor, não
refletem sobre a escrita através da leitura do texto e da observação da ortografia das
palavras devido ao tempo delimitado para a realização dessa atividade.
Nem mesmo considerando o objetivo da professora como o registro do
conteúdo trabalhado seria justificada a atividade de cópia apresentada no Dado 1.
Atualmente há nas escolas diferentes formas pelas quais o aluno pode arquivar as
informações (fotocópias, materiais impressos) que não necessariamente precisam ser
por intermédio da cópia da lousa que se torna, assim, uma atividade repetitiva, exaustiva
e desnecessária. Desta forma, a cópia é um recurso pedagógico que poderia dar lugar a
experiências significativas e à intervenção/mediação do professor na escrita de textos
com sentido para o aluno, como afirma Coudry:
Os cadernos das crianças mostram cópia, cópia e mais cópia. E quando se encontra um bom texto as tarefas propostas ficam aquém dele e reproduzem uma visão limitada de língua, linguagem e escrita, além de bastante desinteressantes considerando a sociedade em que vivemos. Textos que poderiam render escrita caem no vazio e as respostas das crianças são sempre melhores do que a atividade proposta (COUDRY, 2007, p.4).
A frequência com que os professores propõem que os alunos copiem -
textos muitas vezes extraídos dos livros didáticos dos próprios alunos - parece indicar
também que o professor entende que essa atividade, de alguma maneira, pelo exercício
de uma memória visual, pode favorecer o aluno em seu aprendizado de leitura e de
escrita.
Outro fator determinante para a baixa qualidade de ensino oferecido na
escola é a hegemonia da abordagem mecânica de aprendizagem da leitura e da escrita.
Essa abordagem está relacionada a uma concepção tradicional de ensino em que os atos
de ler e de escrever são vistos como ações de codificação e de decodificação, cuja noção
de aprendizagem se vincula às estratégias de memorização do sistema ortográfico da
língua escrita através de atividades metalinguísticas (e da própria cópia). Para elucidar
essa reflexão, apresento o Dado 2 a seguir.
18
Dado 2: “Complete a frase, descubra a palavra, separe as sílabas”. Atividade retirada do caderno de uma criança de nove anos cursando o 3º ano do EF (4ª série).
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0.
O padrão dos exercícios propostos nessa atividade é muito semelhante ao
que é comumente encontrado nas cartilhas, nos livros e nos cadernos das crianças na
fase inicial da alfabetização. Observa-se que seu principal objetivo é a
memorização/fixação da ortografia das palavras com o dígrafo LH. A proposta é a de
que a criança separe e una sílabas, coloque-as na ordem esperada, forme frases a partir
de palavras que tenham o dígrafo LH e, em seguida, copie novamente a mesma frase.
Esses exercícios estão assentados em uma abordagem tradicional, em que a linguagem é
19
tomada como um código, cuja repetição permitirá a aprendizagem tomada como
memorização das regras fixas e internas da língua.
De tal modo, o ensino da língua, organizado a partir de exercícios
metalinguísticos se relaciona a uma “concepção de língua como sistema de formas”,
como “um objeto do mundo regular e estanque”, com “regras definidas”, concepção que
consolida a ideia de que “conhecer a língua é só conhecer as regras internas ao sistema”,
no entanto, a metalinguagem “é apenas uma das funções da língua” (COUDRY e
POSSENTI, 1983/2010, p.2-4).
Para Coudry e Possenti (ibdem) a hegemonia do uso da metalinguagem no
currículo escolar, talvez, tenha prevalecido sobre as suas demais funções pela longa
tradição escolar de uma concepção de língua que privilegiou a escrita. Em decorrência
disso, parece que os professores, ao priorizarem os exercícios metalinguísticos que
implicam necessariamente uma reflexão sobre a língua, imaginam que estão “ensinando
a língua”, quando na verdade, “as informações sobre a linguagem acabam se
confundindo com a própria linguagem” (COUDRY e MORATO, 1990, p.55).
Diferentemente da concepção de “língua como um sistema de formas”, para
a Linguística Moderna, é a fala que merece destaque em seus estudos. Nessa
abordagem, “saber uma língua é constituir pessoalmente enunciações e constituir-se
através dela” quando entram em funcionamento as suas regras gramaticais (COUDRY
e POSSENTI, 1983/2010, p.3). Ainda seguindo Coudry e Possenti (1983/2010), parece
que nem todos foram ainda convencidos de que falar sobre uma língua é diferente de
saber essa língua, e, por isso, “a escola pede muito mais que o aluno fale sobre a língua
do que se expresse como sujeito” (Ibdem, p.4).
Para a ND, os objetivos da atividade proposta no Dado 2 poderiam ser
trabalhados durante a escrita de textos que abrangem a linguagem em sua dimensão
social e que façam sentido para a criança (COUDRY e MORATO, 1990), à medida que
essa ortografia e a divisão silábica se tornassem uma questão para os alunos. Desta
maneira, com o objetivo de proporcionar uma reflexão quanto à forma ortográfica de
escrita, se poderia, por exemplo, realizar uma lista comparando algumas palavras como
Júlio e julho, cavalheiro e cavaleiro – palavras que, embora na fala não mostrem
diferença significativa quanto ao som, na escrita, a opção por uma ou outra ortografia
leva a significados diferentes.
20
Com relação à proposta de separar sílabas, a ND assume que esta reflexão é
necessária apenas diante da necessidade de separar as sílabas ao se escrever um texto, o
que acontece, por exemplo, quando há uma delimitação no papel em que se está
escrevendo. Assim, não há sentido na realização de treinos através de exercícios
repetitivos e descontextualizados como os propostos no Dado 2. Em detrimento da
proposta de atividades metalinguísticas sem sentido, a ND adota como referência as
atividades epilinguísticas12. Essas atividades possibilitam a reflexão sobre os recursos
linguísticos na própria interlocução e se manifestam nas negociações de sentido, em
hesitações, autocorreções, reelaborações etc., presentes nas atividades verbais
(GERALDI, 1991/2003).
No entanto, as críticas realizadas às atividades metalinguísticas não
diminuem sua importância, mas é preciso modificar a forma como são empregadas
pedagogicamente. Para Geraldi (1991/2003), os professores antecipam as atividades
baseadas na metalinguagem em relação às atividades linguísticas e epilinguísticas. Isso
não possibilita que o aluno reflita sobre as expressões em uso no discurso, seja na fala
ou na escrita, o que lhes causa a sensação de que “saber a língua é saber usar a
metalinguagem aprendida na escola para analisar a língua. Essa percepção é fruto do
trabalho escolar: o aluno, falando em português, diz não saber o português” (Ibdem,
p.191).
O interesse das crianças por atividades que façam sentido para elas, bem
como a desmotivação promovida por atividades desinteressantes como as apresentadas
no Dado 2, podem ser observados no relato de uma professora da rede pública de
ensino de Campinas: “As crianças se interessam em ler, até brigam por causa de
livrinhos, mas as lições da lousa, ‘separe as sílabas’ ou ‘forme frases’, levam mais de
meia hora para fazer... são muito lentas” (COLLARES e MOYSÉS, 1994, p.30).
1.3. A escola e as dificuldades escolares como sintomas de patologias
A ND, através dos trabalhos realizados na área13, consolida-se como um
arcabouço teórico e metodológico de reflexão e de crítica frente ao excesso de
diagnósticos médicos realizados com a população escolar (como já citados: Dislexia,
12 O conceito de epilinguismo como atividade do sujeito na linguagem foi formulado por Culioli (1968/1999) e retomado por Franchi (1977/1992), por Coudry (1986/1988) e por Geraldi (1991/2003). 13 Cf. nota nº 3.
21
Transtorno do Déficit de Atenção, Dificuldade de Aprendizagem, Distúrbio de
Aprendizagem, Aliteração do Processamento Auditivo Central, entre outros.). Assume,
portanto, o papel de contradispositivo em relação à banalização de sintomas e a
inadequação de formas de avaliação e acompanhamento (escolar ou clínico) que
presenciamos hoje e que desconsideram a relação do sujeito com a linguagem, a família,
a escola e a sociedade (COUDRY, 2010b).
Assim, a ND incorporou, em seu aporte teórico, o conceito de
dispositivo formulado por Foucault (1969/2000) e ampliado pelo filósofo Agamben
(2010), que o define como:
“Qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões, e os discursos dos seres viventes. Em outras palavras: um conjunto de práxis, saberes, medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens. Tal posição se origina de Foucault, que define o dispositivo como um conjunto heterogêneo, que recobre o dito e o não dito e implica discursos, instituições e estruturas arquitetônicas. De natureza estratégica, o dispositivo está inscrito em um jogo de poder que condiciona saberes e práticas”. (AGAMBEN, 2010, p. 40)
A presente pesquisa14 surge motivada pelo papel social, político e
profissional que exerço como professora do ciclo escolar do Ensino Infantil da rede
municipal de Campinas. Nesta condição, a prática diária de sala de aula me remete
constantemente ao exercício reflexivo de me desvencilhar de uma noção de linguagem
tradicional, vinculada ao percurso de minha formação e às imposições, derivadas de tal
abordagem, que inclui o modo como se deve ministrar os conteúdos segundo o
Programa de Ensino da Educação Infantil (EI). Dessa forma, meu percurso na área da
ND, que se desdobrou em estudos teóricos e na atuação prática no acompanhamento de
MT, me possibilitou repensar minhas práticas pedagógicas a partir da abordagem
discursiva de linguagem, um dos pilares que sustenta a posição de contradispositivo
assumida pela ND. Estudar esta concepção de linguagem favoreceu a construção de um
14 Embora reconhecendo que diferentes dispositivos (Políticas Educacionais, Formação do Professor, Aprovação Automática do aluno, Patologização do Ensino etc.) contribuem para que a Escola Pública permaneça na condição precária em que se encontra e o quanto os estudos realizados pela ND sobre tais dispositivos são importantes, não é objetivo desta pesquisa abordar com profundidade a reflexão sobre todos eles.
22
novo olhar para a o ciclo da Educação Infantil, agora como um lugar possível de
prudência e de intervenção15 no processo de despatologização dessas crianças.
Retomo, assim, os desdobramentos implicados na prática pedagógica de um
professor que se vincula a uma concepção tradicional de linguagem e a possibilidade de
se pensar a linguagem sob uma perspectiva discursivamente orientada. Ressalvo que o
exercício de se pensar a própria filiação em uma ou outra perspectiva de linguagem, não
é dada, mas descoberta a partir de um confronto íntimo e do estranhamento quanto à
naturalização com que assumimos uma concepção de linguagem tradicional que está
posta, quase sempre, em nossa formação acadêmica em Pedagogia e nas práticas de sala
de aula. Ainda que, em paralelo, possamos, como professores e pesquisadores, repetir
um discurso contrário a isso, tal discurso não se materializa, quase nunca, em mudança
pedagógica em sala de aula.
Continuando a reflexão iniciada no item anterior sobre a concepção
tradicional de linguagem alinhada à ideia de desenvolvimento biológico humano,
afirmei que tal abordagem se aproxima de uma visão mecânica e técnica de
alfabetização (BORDIN, 2010) e privilegia o ensino das letras como “uma habilidade
motora e não como uma atividade cultural complexa” (VYGOTSKY, 1979/1998,
p.156). Nessa esfera de pensamento, Vygotsky, um dos autores que compõem a base
teórica da ND, afirma que todo aprendizado se dá nas relações sociais mediadas pela
linguagem. Nesse sentido, o desenvolvimento humano não pode ser vinculado a ciclos e
nem a um padrão biológico ideal.
Para a ND, inserida nos estudos de linguagem da Linguística Moderna, o
que está em jogo no uso e nas práticas com a linguagem é a “relação significativa entre
sujeitos”, sendo a escrita “um desdobramento da práxis linguística”, possibilitando os
“traços de uso e de pessoalidade da linguagem” (COUDRY e MORATO, 1990, p.53).
Neste contexto, não cabe o ensino da escrita enquanto código que desfavorece o
encontro entre sujeitos e sua constituição pela intersubjetividade (Ibdem, p.53).
Para Moysés (2001), a Escola, ao desconsiderar a importância da relação
com o outro para a constituição do sujeito, marginaliza a função social da linguagem no
processo de aprendizado da leitura e da escrita e se insere em uma concepção
15 O termo intervenção é empregado aqui não no sentido de antecipar a ideia de uma possível patologia, mas de valorizar para o professor que é somente pela interlocução que a criança poderá ser vista como um sujeito, de fato, não assujeitado a um sintoma de uma patologia.
23
biologizante, genética e inata de aprendizagem e de inteligência. Assim, o sujeito,
desconsiderado de sua singularidade, passa a ser um sujeito idealizado e universal
(ABAURRE et al., 1997).
Diante disso, os professores, por não saberem como lidar e como intervir
pedagogicamente diante de alunos que não respondem ao processo de ensino-
aprendizado como se espera, solicitam a ajuda de profissionais da área da saúde, como
médicos, psicólogos, fonoaudiólogos e psicopedagogos, encaminhando essas crianças
para avaliação. Sobre esta questão, Collares e Moysés afirmam que “os professores, que
deveriam ser também os responsáveis por analisar e resolver os problemas educacionais,
assumem uma postura acrítica e permeável a tudo; transformam-se em mediadores,
triando e encaminhando as crianças para os especialistas da saúde” (COLLARES e
MOYSÉS16, 1994, p.30).
Segundo Moysés (2001) a preferência dos professores (e, também, muitas
vezes, dos pais) por esse encaminhamento médico ou especializado tem origem
histórica, uma vez que a medicina é, no imaginário social, a ciência responsável pela
cura da doença. Nas palavras de Clavreul, a medicina, é o “mito de um saber tudo, de
um saber absoluto, que permitiria o acesso a um saber total do corpo do doente”
(Clavreul 1983/1978, p.142). A medicina é depositária, portanto, de todas as soluções e
a sua presença é indispensável nos “ambientes escolares como garantia de
aprendizagem adequada” (MOYSÉS, 2001, p. 182).
Ademais, ainda de acordo com Collares e Moysés, é possível estabelecer um
paralelo entre a formação do médico e a formação insuficiente do professor que tanto
prejudica os rumos da educação em nosso país. Para as autoras, a formação do médico
também se caracteriza como insuficiente:
“Não se pode atribuir um caráter perverso e mercenário ao médico, na verdade, um agente pouco consciente desse processo. A ausência de contato com questões sociais dentro de uma perspectiva crítica e histórica, a valorização exagerada das especialidades no mercado de trabalho, a formação baseada em literatura de língua inglesa sem a necessária revisão de conceitos para nossa realidade, a falta de discussões sistematizadas sobre o papel social da medicina, entre inúmeras outras questões, tornam o médico bastante receptivo, acriticamente, à difusão de ‘novas teorias’ sobre ‘novas doenças’, com
16 As autoras Collares e Moysés não são da área da Linguística e estudam a patologização da educação a partir das áreas da Pedagogia e da Medicina, respectivamente.
24
‘novos tratamentos’, enfim, uma ‘nova morbidade”. (COLLARES e MOYSÉS, 1985, p.10).
A área clínica, seja ela fonoaudiológica, psicológica, psicopedagógica,
mantém uma dependência do saber médico, incorporando dessa área seu modus
operandis, com base na concepção tradicional de linguagem, para a realização de
avaliações e diagnósticos de fala, de leitura e de escrita. Como já visto, é uma
concepção que vai ao encontro do ensino da leitura e da escrita também na escola que
“banaliza a relação som/letra e desconsidera outros tantos fatores envolvidos no
processo de aquisição e uso da leitura/escrita” (COUDRY, 2007, p.4).
A reflexão realizada por Coudry (1986/1988) quanto ao uso dos testes
psicométricos para a avaliação da linguagem, especialmente nas áreas médica e
psicológica, evidencia as tarefas de linguagem descontextualizadas, “simulando
situações artificiais para uma suposta atividade linguística” (Ibdem, p.6), de modo a não
considerar o trabalho linguístico do sujeito na linguagem em funcionamento, sua
história e o uso que faz da língua/linguagem. Trata-se, como vimos na atividade escolar
apresentada no Dado 2, de tarefas que exigem do sujeito um trabalho metalinguístico
com a língua/linguagem, em substituição de processos epilinguísticos. Ou seja, nos
testes, as crianças são avaliadas por critérios que desconhecem, condição em que “elas
não têm quaisquer indícios para interpretar os comandos, fazer inferências, apreender a
intenção significativa dos examinadores, o que as exclui do papel ativo como
interlocutores” (COUDRY e FREIRE, 2005, p.11).
Portanto, os diagnósticos emitidos a partir desses testes, por profissionais da
área médica e/ou clínica, despreparados para avaliar a linguagem, acabam por
patologizar processos normais da aquisição da leitura e da escrita, avaliando,
equivocadamente, como erros/sintomas, as hipóteses de escrita de crianças e de jovens
em processo de aprendizado. Nesse contexto, torna-se relevante a discussão a respeito
do que se considera erro ou acerto, a partir de análises assentadas em diferentes
concepções de linguagem, como a tradicional e a de base discursiva.
Coudry e Scarpa (1991), sob a perspectiva da abordagem discursiva,
abordam o erro ou desvio linguístico como episódios esperados no processo de
aquisição da linguagem escrita e, portanto, parte integrante do “trabalho” do sujeito com
e sobre a língua (FRANCHI, 1977/1992). Para as autoras, dados de escrita como de
25
repem te (por de repente), eraumaves um omen (por era uma vez um homem), groria
(por glória), rezouvel (por resolveu), são, muitas vezes, interpretados equivocadamente
como erro. Entretanto, quando discursivamente considerados a partir da história do
sujeito e de sua variedade linguística17, são analisados apenas como “uma transposição
da variedade de fala na qual a criança adquiriu a linguagem oral para o aprendizado da
escrita” (COUDRY e SCARPA, 1991, p.86). Dados como esses são considerados erros
na abordagem tradicional de linguagem porque fogem da variedade padrão que se
espera encontrar na escrita.
Esse é o raciocínio que permite a correlação entre as dificuldades normais
da criança em lidar com a complexidade do processo de leitura e de escrita com quadros
de patologia. O examinador, por estar preocupado em investigar a “normalidade” ou a
“patologia”, deixa de perceber “indícios de possibilidades” (PADILHA, 1997, p. 29),
muitas vezes não reconhecendo nem valorizando o conhecimento do sujeito. A ênfase
na avaliação psicométrica despreza os “indícios de possibilidades” do sujeito à medida
que valoriza e quantifica apenas o que o sujeito “não tem, não sabe e o que lhe falta”
(Ibdem, p.29).
Coudry (2007), instaurando o papel da ND como um contradispositivo,
aponta para a urgência da “despatologização de processos normais, enfrentando a
corrente hegemônica – psicométrica, desinformada, idealizada que ainda domina a
escola pública e a clínica tradicional” (Ibdem, p.3). Para a autora, não se trata de negar a
existência de patologias, mas de argumentar contra o excesso de patologização que
toma conta dos dias atuais (Ibdem, p.3).
Para Collares e Moysés (2009) a patologização de crianças em idade escolar
têm como objetivo encobrir uma realidade de fracasso e de exclusão escolar, que, ao
conferir a culpa à criança, isenta a sociedade e a política do papel social da escola. Para
as autoras:
“A busca por causas e soluções para os problemas não médicos no campo médico é uma tendência das sociedades ocidentais que reduzem os conflitos sociais em questões biológicas e individuais,
17 O preconceito linguístico está “rigidamente arraigado em uma visão corretiva e normativa de língua e de linguagem” e pode ser aproximado da discussão quanto ao padrão homogêneo e uniforme de conceber a aprendizagem da leitura e da escrita. O estigma dirigido à variedade oral permite a aproximação da singularidade desse processo ao sintoma de patologia: “quem fala errado pensa também errado ainda é um lema nos dias atuais para excluir pessoas e desqualificá-las para certos domínios do sistema produtivo” (COUDRY, 2007, p.2).
26
orgânicas, sem levar em conta as circunstâncias sociais, políticas, econômicas e históricas: o indivíduo seria o maior responsável por seu destino, sua condição de vida, por sua inserção na sociedade, desresponsabilizando o sistema sociopolítico” (COLLARES, e MOYSÉS, 1994, p. 26).
1.4. Fundamentação teórica e metodológica da ND
Conforme vimos, ao longo deste capítulo, em diferentes momentos e por
diferentes questões, foi apresentado um delineamento teórico-metodológico da
abordagem sustentada pela ND, tanto em relação à sua concepção de sujeito, de
linguagem, de língua, bem como de aprendizagem. Apresentarei, neste item, outros
conceitos articulados pela ND que serão cruciais para compreender as questões de MT
em sua relação com a fala, a leitura e a escrita. São eles: interlocução, subjetividade,
sistema de referências, processos de aprendizagem e memória.
A ND, desenvolvida no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp,
teve início com a tese de doutorado Diário de Narciso: discurso e afasia, defendida por
Coudry em 1986, e propõe o estudo da relação mente/cérebro e linguagem em contextos
patológicos ou não patológicos, a partir de uma concepção de linguagem, de sujeito e
dos demais processos cognitivos como construtos produzidos pela história humana. Para
esta reflexão, toma-se a linguagem “como histórica e cultural e o caráter previamente
indeterminado dos processos de significação, assumindo-se que a língua resulta da
experiência e do trabalho dos falantes com e sobre a linguagem” (COUDRY,
1986/1988, p.55).
Para teorizar sobre fenômenos patológicos e não patológicos, a ND se
assenta em conceitos e teorizações propostos por autores da Linguística: a concepção de
linguagem como atividade constitutiva, de Franchi (1977/1992); a concepção de
subjetividade na linguagem e a inter-relação dos níveis de análise linguística de
Benveniste (1966 /1991); a virtualidade da língua de Maingueneau (1979/1993) e a
heterogeneidade do discurso de Authier-Revuz (1982).
A partir de Franchi (1977/1992), a noção de linguagem assumida pela ND é,
para além do seu caráter comunicativo, concebida como uma atividade, como uma ação,
como um trabalho histórico e social que ocorre na dimensão contextual e social, em que
o homem, pela linguagem, atua sobre o outro e se constitui como sujeito na dimensão
27
cognitiva e subjetiva que estrutura a sua realidade no mundo. Assim, a ND assume,
desse autor, a linguagem como uma atividade indeterminada e o conceito de sistema de
referências18:
Não há nada imanente na linguagem, salvo sua força criadora e constitutiva, embora certos ‘cortes’ metodológicos e restrições possam mostrar um quadro estável e constituído. Não há nada de universal, salvo o processo - a forma, a estrutura dessa atividade. A linguagem, pois, não é um dado ou resultado; mas um trabalho que dá forma ao conteúdo de nossas experiências, trabalho de construção, de retificação do “vivido” que ao mesmo tempo constitui o sistema simbólico mediante o qual se opera sobre a realidade e constitui a realidade como um sistema de referências em que aquele se torna significativo (FRANCHI, 1977/1992, p.31).
A linguagem como atividade indeterminada é assim considerada porque a
intercompreensão/compreensão só é possível no momento da interlocução em que o
sistema de referências possibilita a construção de sentidos entre os interlocutores. Para a
ND, portanto, o conceito de interlocução é fundamental, já que é considerada como um
lugar privilegiado de produção de linguagem que permite a constituição do sujeito
através da interação humana e de suas experiências pela linguagem. Assim, a
interlocução é “condição sine qua non na apreensão de conceitos que permitem aos
sujeitos compreender o mundo e nele agir” e é “fundamental no desenvolvimento de
todo e qualquer homem” (GERALDI, 1991/2003, p.5).
Além de autores da Linguística, a ND incorpora e articula a teorização de
Sigmund Freud (1891/1977); a de Lev Semenóvich Vygotsky (1979/1998; 1926/2004) e
a de Alexander Romanovich Luria (1979), que partilham de uma concepção de
funcionamento cerebral marcadamente histórica19, entendendo o cérebro como um
órgão biológico e comum a todos, mas que revela sua singularidade determinada pelas
experiências do sujeito no contexto histórico-cultural que o interpela. Além disso,
Freud, Vygotsky e Luria, por motivos diferentes, nos estudos que realizam, têm em
comum a relação entre a aquisição de linguagem, os processos de aprendizagens
/psicoafetivos e o funcionamento cerebral.
18 Não serão discutidas nesta pesquisa as questões envolvidas nas duas formas usadas por Franchi quanto ao conceito sistema de referências/sistemas de referência em seu texto Linguagem – Atividade Constitutiva (1977/1992), que então será assumida nesse trabalho como sistema de referências. 19 A abordagem funcional de cérebro foi primeiramente elaborada pelo neurologista H. Jackson, (1835-1911) e considerada por Freud, Vygotsky e Luria em seus estudos.
28
Freud (1891/1977) contesta a visão localizacionista de cérebro, majoritária
até os dias atuais, a partir dos estudos que realiza em “La Afasia”, publicação
correspondente ao período pré-psicanalítico do autor, como neurofisiologista. Freud,
como contraponto à visão localizacionista, propõe uma visão de cérebro em que as
regiões estão coordenadas (dentre elas, a auditiva, a motora e a visual) entre si de modo
plástico, dinâmico e funcional e sofre a influência das experiências de vida do sujeito.
Nessa concepção, a lesão de uma região cerebral acarreta uma reorganização
neurológica, fazendo com que neurônios de regiões vizinhas assumam a função da
região lesionada.
Assim, para Freud, a afasia20 é uma modificação funcional sujeita a
rearranjos que pode provocar no sujeito um processo de involução21. Para o autor, as
alterações de fala, de leitura e de escrita que o sujeito passa a apresentar na afasia se
assemelham aos processos de aquisição da fala, da leitura e da escrita da criança. Com
vistas no sujeito e na reconsideração, no campo da Medicina, sobre o que se postula
como normal e patológico, e, ainda, no interesse em estudar o aparelho de linguagem
(falada e escrita) como memória é que Freud se propõe a analisar a aquisição de fala,
leitura e escrita da criança. Portanto, esse interesse pontual não se constituiu uma teoria
encontrada em outro momento de sua obra pré ou psicanalítica.
Quanto à ND, sua teorização se inicia como campo teórico com os estudos
da afasia (Coudry 1986/1988) e avança em direção aos estudos dos processos de leitura
e de escrita em crianças com dificuldades escolares, recuperando, assim, nos estudos de
Freud de 1891, um retorno aos aportes teóricos iniciais da ND construídos em sua
relação com a área de Aquisição de Linguagem.
Para Bordin (2010) a relevância da análise que Freud faz do aprendizado da
criança nos processos iniciais da leitura e da escrita está no reconhecimento de que a
criança entra na linguagem pelo sentido veiculado na fala do outro e, ainda, na
dependência concomitante entre o aspecto neurológico e psicológico das vivências no
20 Para Coudry, afasia é (...) quando escapa a linguagem e a língua, o sentido, o reconhecimento do eu e do outro, do corpo, a possibilidade de dizer de novo com as mesmas ou outras palavras, de selecionar e/ou combinar traços, sons, palavras, argumentos e textos. Escapa também a relação na língua entre aquilo que é familiar, conhecido e mesmo automatizado e o que é da ordem da vontade, da iniciativa, da atitude voluntária – que se apresenta como novo e onde a afasia mais se manifesta (COUDRY, 2009, p.1). 21 Para Jackson (1879) o processo de involução se dá quando em consequência de um sofrimento neurológico, o cérebro responde perdendo os registros mais complexos (mais atuais, superassociados aos mais antigos) e conservando os mais simples (antigos ou menos associados).
29
corpo do sujeito, que se estabilizam na memória como associação. É nesse sentido que
Freud constrói, em seu estudo da afasia, um aparelho de linguagem destinado a associar
as palavras a partir das experiências de sentido do sujeito no corpo e na língua. Tal
aporte teórico compreende e explicita a heterogeneidade dos caminhos que as crianças
percorrem para entrar no mundo da leitura e da escrita, ou seja, diferentes entradas em
diferentes ritmos. Para Freud, a entrada da criança na leitura e na escrita remete aos
significados presentes na sua fala e envolve uma concomitância entre o som/acústico
(significante), o visual (significado) e o motor (execução dos movimentos na fala e do
traçado na escrita), o que se dá de forma hierárquica: se tratando da fala, há o
predomínio do acústico e do motor sobre o visual; no caso da escrita, há o predomínio
do motor e do visual sobre o acústico; e, no caso da leitura, há o predomínio do visual e
do acústico sobre o motor (Coudry, 2009b).
Vygotsky (1979/1998; 1926/2004), a partir de uma visão histórico-cultural
de cérebro e de desenvolvimento humano, entende que são as experiências do sujeito,
em determinado contexto sócio histórico, que determinam a variedade do
funcionamento cerebral, comum a todas as pessoas. O autor postula que as estruturas
cerebrais de funções elementares se transformam em complexas de acordo com as
experiências de vida do homem pela linguagem - mediadora dessas experiências. A
linguagem, portanto, possibilita (epistemologia da formação da mente pelo signo), no
decorrer do seu percurso histórico, a formação das funções psicológicas superiores:
linguagem, memória, atenção, percepção, práxis/corpo, raciocínio intelectual,
imaginação, vontade. Portanto, a partir de Vygostky, vemos que os primeiros anos
escolares são determinantes para a entrada da criança na linguagem escrita e não apenas
na correspondência mecânica possível entre som e letra. Para o autor, a escrita é uma
nova forma de linguagem e pressupõe que:
(...) o ensino tem que ser organizado de forma que a leitura e a escrita se tornem necessárias às crianças. (...) uma necessidade intrínseca deve ser despertada nelas e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária para a vida (VYGOTSKY, 2007, p. 141/143).
Além disso, para Vygotsky (1934/1987), é no significado da palavra que
a fala e o pensamento unem-se em pensamento verbal, o que envolve a fala social, a fala
egocêntrica, e, por fim, a fala interior como pensamento reflexivo. A fala interior é
dirigida ao próprio sujeito (linguagem interna), não é dirigida ao outro, e, portanto,
30
caracteristicamente, abreviada. Segundo o autor, é nessa fala que nos baseamos quando
escrevemos, e por ser abreviada, interfere no processo de aquisição da leitura e da
escrita nos primeiros anos escolares.
Luria (1979) inicia seus estudos junto com Vygotsky, assumindo deste autor a
importância da linguagem para o desenvolvimento. Para Luria, os processos mentais
humanos são sistemas funcionais complexos que “ocorrem por meio da participação de
grupos de estruturas cerebrais operando em conjunto” (Ibdem, p.27). Esses grupos de
estruturas cerebrais correspondem a três unidades funcionais, que contribuem
particularmente para a organização desse sistema funcional e que estão presentes em
qualquer tipo de atividade mental (PEREIRA, 2010). Luria (1979) organiza esse sistema
funcional em três unidades: i) a primeira unidade funcional regula o tono cortical, a
vigília e os estados mentais; ii) a segunda unidade tem como função primária a
“recepção, a análise e o armazenamento das informações” (Ibdem, p.49) e, sendo
formada pelas chamadas áreas secundárias e terciárias, tem como função,
respectivamente, distinguir os estímulos visuais, auditivos e táteis e a análise e síntese
dos sons da fala; iii) a terceira unidade funcional faz a programação, regulação e
verificação da atividade, quando compara “os efeitos de suas ações com as intenções
originais, além de corrigir quaisquer erros que tenha cometido” (Ibdem, p.60).
Luria (1988/1995), em sua pesquisa sobre os tempos primordiais da escrita,
privilegia a antecipação da função social da escrita como sendo de registro e de
memória e a criança deverá cumprir duas condições para escrever: as coisas ao seu
redor devem representar algum interesse para ela, assim como ser capaz de controlar sua
própria atitude de atenção.
Os estudos de Vygotsky e de Luria apontam para a necessidade de conhecer
a história da escrita e da pré-escrita na criança, uma vez que elas determinam o modo
pelo qual a criança se relacionará com a escrita e com outras atividades escolares.
Conhecer este período pode ajudar a entender o modo pelo qual as funções psicológicas
se desenvolveram ao longo da vida da criança e, assim, compreender e intervir em suas
dificuldades escolares22.
Por fim, a ND incorpora uma metodologia heurística, de procedimentos de
descoberta no processo de avaliação e no acompanhamento longitudinal de sujeitos
22 Outros conceitos trabalhados por Freud, Vygotsky e Luria serão retomados por ocasião da análise dos dados de fala, leitura e escrita provenientes do acompanhamento longitudinal de MT.
31
(adultos, crianças). Além desta metodologia de investigação, a ND desenvolve o
conceito de dado-achado, que inter-relaciona teoria e dado e ilumina as hipóteses sobre
a relação do sujeito com a linguagem. O dado-achado indica um processo em
andamento, resultado da interação dos interlocutores, frente a frente ou não. Dessa
forma, a partir de um quadro teórico que orienta o olhar do investigador, o dado se torna
fonte de reflexão sobre a linguagem para um refinamento/movimento teórico
(COUDRY, 1986/1988) que se volta para o sujeito na intenção de reorientá-lo no
processo em questão.
Tal movimento, dialético, da teoria para o dado e vice-versa, para a
Neurolinguística de tradição discursiva, se volta, no caso de crianças e de jovens em
processo de aquisição da leitura e escrita, para a análise da elaboração de hipóteses pelo
sujeito. Nesse sentido, o erro é visto pela ND como um dado que pode ser um achado,
pois, iluminado pela teoria, pode orientar a mediação a ser feita pelo interlocutor no
acompanhamento longitudinal do sujeito.
32
33
CAPÍTULO 2 - A constituição de MT na e pela linguagem:
seu lugar na família e na escola
Este capítulo tem por objetivo apresentar MT, sujeito desta pesquisa. O
acompanhamento longitudinal de MT, realizado por mim no Centro de Convivências de
Linguagens – CCazinho, entre setembro de 2010 e junho de 2013, pode ser
compreendido como um processo que se deu em dois momentos. A queixa principal de
MT, 12 anos, trazida pela família, era a sua impossibilidade de entrar nos processos de
leitura e de escrita. Neste caso, imagina-se que as atividades partilhadas entre nós
seriam da esfera da leitura e da escrita. Entretanto, nos primeiros encontros com MT,
uma questão de fala, mais especificamente, de interlocução se impôs e, assim, tornou-se
imprescindível dar um outro rumo ao acompanhamento. Propostas de atividades
priorizando os processos de leitura e de escrita se mostraram menos importantes e
urgentes do que aquelas que envolviam a interlocução, a memória, enfim, seus
processos de subjetivação na língua/linguagem.
2.1. A chegada de MT ao CCazinho
De caráter teórico e prático, o Centro de Convivência de Linguagens –
CCazinho é vinculado ao Instituto de Estudos de Linguagem- IEL/Unicamp e iniciou
suas atividades em agosto de 2004, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria Irma Hadler
Coudry. Academicamente, engloba duas disciplinas eletivas23 e diferentes estudos de
iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado.
É um espaço para crianças e jovens com dificuldades escolares relativas aos
processos de aquisição e de uso da leitura e da escrita e, ainda, para as suas famílias
refletirem sobre como interpretam tais dificuldades e o que fazem em relação a elas. A
maior parte das crianças e jovens que chega ao CCazinho recebeu diagnósticos médicos
(Dislexia, Transtorno do Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade, Déficit do
Processamento Auditivo, Distúrbio de Aprendizagem, Deficiência Mental) e frequenta
23 AM 035 e AM 045 - Cf. nota de rodapé nº2.
34
os encontros coletivos, acompanhada individualmente por um cuidador24. Esse
acompanhamento tem por objetivo levá-los a vivenciar a linguagem através de diversas
práticas discursivas que envolvem a leitura, a escrita, a soletração, jogos, dramatização,
canto, histórias, pintura, dança etc. (COUDRY, 2007). Ainda, o objetivo principal do
trabalho realizado nesse Centro é levar a criança a mergulhar no próprio processo de
leitura e de escrita; refletir sobre o trabalho linguístico que realiza quando está lendo e
escrevendo e valorizar a leitura e a escrita como práticas sociais.
No CCazinho a criança tem respeitados seu próprio ritmo e sua dificuldade
em lidar com a complexidade própria dos processos de leitura e de escrita, sendo o seu
interlocutor quem possibilita que essa entrada seja feita – embora permeada por
situações difíceis de transpor – e não pelas portas da patologização (Idem, 2010b,
p.397). No trabalho realizado no CCazinho, interessam as hipóteses que as crianças
constroem para escrever e ler e a reflexão que fazem sobre elas (BORDIN, 2008).
A família de MT procurou o CCazinho em agosto de 2010, quando ele tinha
12 anos de idade e cursava na época o 6º ano (5ª série) do Ensino Fundamental (EF).
MT chegou acompanhado da mãe, BT, que trouxe a queixa de que ele não conseguia
aprender a ler e a escrever. BT explicou a dificuldade do filho atribuída a um déficit
intelectual confirmado pelo diagnóstico de Retardo Mental Moderado.
A partir das informações relatadas por BT, na entrevista inicial realizada no
CCazinho com as Investigadoras Ibb e Imc25, o percurso escolar de MT pode ser assim
descrito: ele entrou na escola em 2004, com seis anos de idade, para cursar o último ano
da Educação Infantil; em 2005, aos sete anos, cursou a primeira série do EF (2º ano) em
escola estadual localizada na região onde mora, na periferia da cidade de Campinas,
onde permaneceu até o ano de 2011. Assim, em 2006, aos oito anos de idade, MT
cursou a segunda série do EF (3º ano); em 2007, aos nove anos, cursou a terceira série
do EF (4º ano); em 2008, aos 10 anos, cursou a quarta série do EF (5º ano). Em 2009,
aos 11 anos, refez a quarta série do EF (5º ano); e, por fim, em 2010, aos 12 anos, é
aprovado para a 5ª série do EF (6º ano).
24 Baseado em pressupostos vygotskyanos, o termo cuidador, usado no CCazinho, é atribuído ao investigador que assume o papel de mediador na relação com o sujeito acompanhado longitudinalmente, por meio de práticas com a linguagem discursivamente orientadas. Para Vygotsky (1932/1993) é pela mediação do outro que o sujeito passa a ter autonomia para realizar o que antes precisava de ajuda. 25 Ibb: Investigadora Betina R. Barthelson, autora dessa dissertação e Imc, Investigadora Maria I. H. Coudry, orientadora dessa dissertação.
35
Por ocasião da chegada de MT ao CCazinho, sua mãe nos informou também
que buscava, junto à Diretoria de Ensino de Campinas, autorização para que MT
retornasse à 4ª série (5º ano), diante da condição de seu filho em relação à leitura e à
escrita. Além do fato de o filho não estar alfabetizado, BT se preocupava com as
mudanças e exigências presentes no 6º ano que MT cursava. Para entender a
preocupação de BT, é preciso ressaltar que o 6ª ano pertence ao ciclo 2 que abrange do
6º ao 9º ano do EF. É organizado de maneira que as disciplinas do currículo escolar,
antes ministradas somente por três professores26, passam a ter cada uma seu respectivo
professor, totalizando agora oito professores. Além disso, o horário das aulas que,
anteriormente se dava de forma contínua, interrompido apenas pelo intervalo e pelas
aulas de Educação Física e de Artes, seria agora dividido em intervalos de 50 minutos.
A escola, quando reprovou MT pela primeira vez em 2008, levando-o a
refazer este ano em 2009, havia antecipado o fato de que essa nova organização escolar
própria do 6º ano (5ª série) seria um complicador para a vida escolar de MT, reprovação
que está diretamente vinculada às normas vigentes nas Políticas Públicas Educacionais
da época, que permitiam a reprovação do aluno no 5º ano escolar. No entanto, a
Diretoria de Ensino de Campinas não autorizou seu retorno para o ano anterior. Sendo
assim, BT entra em acordo com o diretor da escola para que novamente MT refizesse a
4ª série (5º ano), agora, pela terceira vez, ainda que nos documentos oficiais ele
continuasse cursando a 5ª série (6º ano).
Na continuidade de seu percurso escolar, agora em uma escola municipal,
também localizada na região onde mora, em 2012, MT cursa a 5ª série (6º ano), e em
2013 cursa a 6ª série (7º ano). Entretanto, a escola não leva em consideração o processo
de aprendizagem de MT em relação à leitura e à escrita, uma vez que ele permanece
todos esses anos na escola sem aprender a ler e a escrever27.
Nessa avaliação inicial, MT demonstrou não conhecer letras, ter pouca
familiaridade com a leitura e com a escrita e se expressar com dificuldade devido ao que
interpretamos como falta de recursos expressivos. Quando as investigadoras
26 As 4 disciplinas do currículo escolar – Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Geografia e História são ministradas por um mesmo professor, sendo os outros dois professores referentes às disciplinas de Arte e de Educação Física. 27
Durante o acompanhamento de MT no CCazinho, entramos em contato e tentamos uma aproximação das escolas frequentadas por MT. Todavia, foi somente com a segunda escola que conseguimos um encontro com a professora que o acompanhava quando procuramos mostrar o trabalho realizado no CCazinho.
36
comentaram este fato com BT, esta reconheceu que isso acontecia também em suas
relações familiares. Na entrevista com as investigadoras Ibb e Imc, MT não conseguiu
dar informações simples sobre si mesmo ou relativas ao seu dia a dia como, por
exemplo: o nome do bairro em que mora, o nome da sua escola, dos estabelecimentos
comerciais próximos à sua casa, o número do seu telefone. Além disso, sua fala se
caracterizou por uma desorganização sintática e uma dificuldade semântica, impedindo
que seu interlocutor atribuísse sentido a ela. Assim, MT não respondia às perguntas que
lhe eram feitas ou as respondia aleatoriamente. De tal modo, MT causou às suas
interlocutoras a impressão de apresentar algum problema de memória, de estar alheio ao
que acontecia à sua volta, parecendo não saber sobre o mundo em que vive,
comportamentos esses que, em princípio, iam de encontro à confirmação de seu
diagnóstico de Retardo Mental.
Ainda seguindo o relato de sua mãe, as relações partilhadas por MT na
escola eram permeadas por agressividade verbal e física. Ela considera que ele sofria
bullying28 na escola, pois apanhava dos colegas no futebol, chegando a ser agredido
também em sala de aula. BT conta que tomou conhecimento destas ocorrências quando
observou que MT apresentava marcas nos braços, explicadas por ele como decorrentes
da atitude de um colega de classe que quebrava pontas de lápis em seus braços.
Outro fato desse tipo foi referido pela mãe de MT. Ela explica que, quando
o filho cursava a segunda série (3ª ano), em 2006 (com 8 anos de idade), foi chamada
pela escola em virtude de MT ter sido acusado de furto. Segundo ela, MT foi acusado
por um colega de classe de ter lhe furtado o dinheiro e guardado em seu próprio estojo
escolar. A professora de MT acatou a denúncia desse aluno, não acreditando na recusa
de MT em assumir a responsabilidade por tal acontecimento. MT continuou negando o
fato e se revoltou contra a professora e o colega. Entretanto, quando a mãe de MT foi à
escola, explicou que o dinheiro que MT tinha no estojo havia sido dado por ela.
Posteriormente, descobriu-se que outro aluno havia pegado esse dinheiro. Nas palavras
de BT, esse episódio o marcou profundamente, quando passou a se negar
28 Bullying se caracteriza por atos agressivos verbais ou físicos de maneira repetitiva por parte de um ou mais alunos contra um ou mais colegas. O termo inglês refere-se ao verbo “ameaçar, intimidar”. Basicamente, a prática do bullying se concentra na combinação entre a intimidação e a humilhação das pessoas, geralmente mais acomodadas, passivas ou que não possuem condições de exercer o poder sobre alguém ou sobre um grupo. Em outras palavras, é uma forma de abuso psicológico, físico e social. Disponível em: < http://www.cecb.edu.br/index.php/ensino-fundamental-i/315-o-que-e-bullying.html>. Acesso em: 26 set. 2013.
37
veementemente a ir para a escola. Além disso, a relação entre MT e sua professora
passou a ser cada vez mais agressiva verbalmente.
Se dentro de sala de aula, a situação se consolidava assim, fora das
relações de aprendizagem, marcada por questões de relacionamentos, na família não era
muito diferente disso. O relato da mãe dava conta de que as agressões sofridas por MT
também aconteciam em casa, sendo ela sua principal agressora. Ela própria se
reconhecia cansada, desgastada para lidar com as frequentes questões de
comportamento e de aprendizagem apresentados pelo filho. MT resistia em ir à escola,
mas ela o obrigava a frequentá-la todos os dias porque em nosso país cursar a escola é
obrigatório e o descumprimento da legislação vigente29 resulta na penalização dos
responsáveis.
Na continuidade desse processo, após a avaliação inicial, MT, desde
22/09/2010, passou a frequentar semanalmente os encontros coletivos às 3ª feiras entre
15 e 17 horas, dos quais participam crianças, jovens, cuidadores e as Profas. Dras.
Maria Irma Hadler Coudry e Sonia Sellin Bordin. Além dos encontros coletivos, MT
iniciou também neste dia o acompanhamento longitudinal individual, com a duração de
uma hora, realizado inicialmente por mim e por Imc e, a partir de fevereiro de 2011,
apenas por mim.
Como foi citado anteriormente, o CCazinho se estrutura como um espaço
que acolhe crianças/jovens com dificuldades escolares e em, paralelo, oferece aos
familiares dessas crianças um espaço chamado “Grupo de Familiares”. Conforme
Bordin, a condução do Grupo de Familiares não prioriza orientações ou a formação de
regras de conduta: “Não fazemos orientação ou aconselhamento, apenas explicamos,
baseado na nossa proposta teórico-metodológica, traduzida em termos menos técnicos,
que consideração é feita sobre os fatos de leitura, escrita e de linguagem trazidos pelo
seu filho (BORDIN, 2008, p.5)”. Trata-se, portanto, de acontecimentos simultâneos.
Assim, enquanto as crianças estão em acompanhamento em grupo, os familiares
29 O direito à educação e a obrigatoriedade da matrícula e da frequência da criança/jovem no EF é assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente art.56, Conselho Tutelar e pela Constituição Federal, § 3º do artigo 208, que prescreve: “compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola”. Conforme o Código Penal Brasileiro (2004), Decreto-Lei nº. 2.848 de1940, art. 246, acarretará aos responsáveis pena de detenção de quinze dias a um mês, ou multa; impossibilidade de exercer função pública ou ocupar emprego em sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público. Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13384>. Acesso em: 27 abril 2014).
38
(mães, pais, avós ou responsável pelo processo escolar vivido pela criança) estão
também reunidos, partilhando as reflexões que fazem sobre o processo pelo qual o filho
está passando; como conduzem o uso que fazem da leitura e da escrita em suas vidas;
suas angústias, alegrias e tristezas. Esse grupo é conduzido pelas Profas. Dras. Maria
Irma Hadler Coudry, Sonia Sellin Bordin e Monica Filomena Caron.
BT iniciou sua participação no Grupo de Familiares no mesmo dia em que
MT iniciou suas atividades coletivas e individuais. De tal modo, relatos, reflexões e
desabafos de BT sobre a própria vida e a vida familiar e escolar de MT, iniciados por
ocasião da entrevista, continuam a acontecer no Grupo de Familiares. O que segue nesta
dissertação, portanto, se ancora na participação de BT no referido grupo.
A família de MT é constituída pelos pais e três filhos, sendo MT o terceiro
deles. Sua gravidez não foi planejada e, de acordo com BT, ela sempre teve uma relação
difícil com esse filho. Já a relação de MT com seu pai é de muita afetividade, embora
ele não tome conhecimento das dificuldades escolares do filho e nem dos
encaminhamentos feitos pelos profissionais envolvidos nas avaliações de
aprendizagem de MT e, além disso, se mostra indiferente às discussões travadas entre o
filho e a mãe.
Em relação à escolaridade dos pais de MT, o pai não completou o EF e a
mãe tem o Ensino Médio completo. Ele tem a profissão de caminhoneiro e faz
diariamente transporte de mercadorias em viagens curtas e a mãe não trabalha fora
(neste momento).
A família demonstra um descompasso entre o poder econômico (que inclui
casa própria, carro, produtos eletrônicos, alimentação, roupas boas) e a prática cultural
letrada. Os pais leem e escrevem, mas fazem pouco uso da leitura e da escrita, sendo a
televisão e os encontros familiares as principais formas de lazer da família. Os dois
irmãos mais velhos de MT, um menino de 20 anos e uma menina de 16 anos, estudam e
o mais velho trabalha. Nenhum deles apresentou na escola problemas de
comportamento ou de aprendizagem. Observando MT, nota-se que é uma criança bem
cuidada, tem acesso a brinquedos e livros, mas passa muito tempo do dia vendo
televisão. Ele se encontra acima do peso e sua mãe tenta controlar a quantidade de
comida que ele come, o que agrava a relação dos dois.
39
É importante registrar que, nesse momento dos encontros, bem como, em
outros, ao longo do acompanhamento de MT, foi solicitado a BT, pelas professoras
responsáveis pela condução do grupo de familiares, que ela, juntamente com o filho,
procurassem por avaliação e acompanhamento psicológico. Notou-se uma grande
resistência por parte de BT com relação a esse tipo de acompanhamento, o que é
possível que esteja associada à sua dificuldade em lidar com as questões envolvidas em
seu relacionamento com MT e com as causas das dificuldades de aprendizagem por ele
apresentadas.
2.2. A interferência das Políticas Públicas Educacionais na vida de MT
Retomando a história familiar de MT, BT conta que, antes do nascimento
desse filho, ela e o marido estavam empregados e prosperando financeiramente. Os dois
primeiros filhos cumpriam suas jornadas escolares sem problema. Com a chegada
inesperada de MT, tentou-se manter essa dinâmica, no entanto, aos 8 anos, logo após o
episódio do furto, ele passou a apresentar resistência para ir à escola e não avançava nos
processos de alfabetização.
Não se pode perder de vista que, de uma criança de 8 anos, cursando, na
época (2006), o terceiro ano (2ª série) em escola pública, não era exigido que ela
dominasse os processos de leitura e de escrita. Considerava-se que conhecimentos
rudimentares desses processos seriam suficientes para que ocorresse a sua alfabetização.
Diante do reconhecimento de que as crianças não se alfabetizam como é esperado, o
Governo Federal lançou em 2012 um Plano Nacional envolvendo todos os estados e
municípios, chamado Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa30, cujo objetivo
principal é o de que todas as crianças estejam alfabetizadas ao final do terceiro ano (2ª
série) do EF, aos 8 anos de idade. Por este motivo, nessa época, MT não chamava a
atenção da escola e da família por não estar aprendendo, pelo fato de ele não destoar
tanto de outras crianças de sua sala de aula.
Quando, então, a escola passa a chamar os familiares para falar sobre o
comportamento de MT e também sobre a sua dificuldade de aprendizagem, instala-se
uma desconfiança no interior da família. Diante do desenvolvimento neuropsicomotor
30 Diferentes portarias regulamentam o PACTO, são elas: Portaria n° 1458, de 14 de Dezembro de 2012; n° 867, de 4 de Julho de 2012; nº 90 de 6 de fevereiro de 2013. Disponível em: <http://pacto.mec.gov.br/documentos-importantes>. Acesso em: 04/02/2014.
40
de MT sem nenhuma intercorrência, a família estranhou os dizeres da escola, já que até
então, ele sempre se mostrou “normal”, ou seja, dentro do esperado para uma criança de
8 anos. Afinal, o que está acontecendo com essa criança, já que psiquicamente, a criança
costuma ser vista, quase sempre, como um reflexo das relações que estabelece nos
ambientes que frequenta, no caso de MT, são a escola e a família?
A partir do relato da mãe, pode-se inferir que a resposta encontrada para as
questões envolvidas na aprendizagem de MT circulava em torno de uma resistência que
a família e a escola interpretaram e descreveram como um “problema de
comportamento” que impedia seus processos de aprendizagem.
Assim, o comportamento de MT, de desinteresse pelas atividades escolares
e de se envolver em conflitos com os colegas e com o professor dentro e fora de sala de
aula, atrapalhava o cotidiano da escola; por outro lado, sua resistência em ir para a
escola atrapalhava o cotidiano da família que, até então, cuidava e gerenciava com
equilíbrio a independência e a autonomia de seus membros. Assim, MT quebra as regras
da escola e as da família, não se submetendo a elas.
Sem que a mãe consiga entender o que acontece com o filho e sem uma
explicação da escola sobre isso, o problema de MT passa a ser visto como uma questão
relacionada a sua personalidade e ao seu comportamento: MT precisa ser educado de
uma maneira mais rígida, aprender a obedecer, melhorar o comportamento na escola.
Sem conseguir controlar MT, a escola passa a chamar a mãe para levá-lo para casa
diante de mau comportamento. Então, especialmente, a mãe o ameaça, o coloca de
castigo, tira e lhe dá presentes e sobremesa, desliga a televisão e quase rotineiramente o
agride fisicamente. Seus pais, especialmente sua mãe, também conversam com ele
habitualmente, antes de ele sair de casa para ir à escola. Ele garante que não vai
“arrumar confusão”, mas, ao chegar diante do prédio da escola, começa a chorar. Essa
situação se prolonga por muito tempo. Nem a família, nem a escola conseguem
controlá-lo.
O dia e a noite, a semana e o final de semana, são regulados pelo fato de MT
ir à escola, e, aparentemente, ele fica cada vez mais fortalecido em sua determinação de
evitá-la. Nesse contexto, sua mãe sai do trabalho, perde sua independência financeira,
fato pelo qual se sentia valorizada e, a partir de então, passa por diferentes momentos:
frequenta a escola assistindo às aulas com ele, o tira da escola, bate nele, o obriga a
41
frequentar a escola novamente. Fica com raiva da escola, faz parceria com a escola,
desanima de tudo, acredita de novo. Dito isso, quero situar o leitor diante desses
acontecimentos para que considere que o problema escolar de MT não é novo, começou
muito antes de ele chegar ao CCazinho e vai tomando uma proporção cada vez maior.
Sua relação com os pais gira em torno de ele frequentar ou não a escola. Sua relação
com a escola não passa pelo saber ou por sua identidade de aluno, mas se a escola
consegue mantê-lo ou não dentro da sala de aula, para cumprir a legislação e a
estatística governamental que regulam a matrícula e a frequência escolar do aluno.
Diante do que foi exposto até agora, através do discurso familiar sobre MT e
do estranhamento das Investigadoras do insucesso das primeiras tentativas de
interlocução com MT, diferentes questões surgiram: Quem é MT? Como ele se constitui
em meio a essa história contada pelo outro? Ele tem um problema de memória para falar
de si, como pareceu?
A relação existente entre as questões sócio-afetivas pautadas pela
agressividade de MT e por suas dificuldades escolares são importantes, mas é
primordial saber como MT se constitui como um sujeito da linguagem, o que se dá a
partir da reflexão sobre o papel constitutivo da linguagem realizada por Coudry
(1986/1988) no texto inaugural da ND. No estudo realizado pela autora, considera-se
que a língua não é determinada e que há, nela, um espaço para a atividade do sujeito,
atividade que deixa marcas dos papéis que representa na linguagem, na relação com o
interlocutor e que serão reveladas pelo discurso. Assim, para compreender MT,
importam os papéis por ele assumidos determinantes na sua constituição como sujeito
da/na linguagem.
Benveniste (1966/1991), sobre a constituição da subjetividade do sujeito na
e pela linguagem, compreende a subjetividade “não pelo sentimento que cada um
experimenta de ser ele mesmo (...) mas como a unidade psíquica que transcende a
totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da
consciência” (Ibdem, p.186). Para o autor, a consciência de si mesmo só é possível na
relação com o outro, na condição do diálogo constitutivo da pessoa, no contraste do uso
do eu – para se dirigir a si mesmo – e do tu – para se dirigir ao outro. Por conter as
formas linguísticas apropriadas à sua expressão, a linguagem possibilita a subjetividade,
42
segundo Benveniste: “é, portanto, verdade ao pé da letra que o fundamento da
subjetividade está no exercício da língua” (Ibdem, p. 288).
Essa, sem dúvida, parecia ser a questão de MT. Como ele percebia a si
mesmo? Como alçar a subjetividade desse sujeito que parecia fora do contraste
possibilitado pelo uso do eu e do tu, conforme revelado por ocasião da entrevista
inicial?
Para Benveniste (Ibdem), assim como para Saussure (1916/2006), o nível
semiótico diz respeito à língua, como um sistema no qual cada signo só existe e
significa a partir de um sentido que lhe é intrínseco, e, portanto, que lhe dá identidade, o
diferenciando dos demais em um sistema de oposições. Para Benveniste (1966/1991), o
nível semântico, por sua vez, abrange os estudos das ações linguísticas. É por meio das
formas fornecidas pela língua que o falante constrói seu enunciado em um processo de
enunciação. Portanto, é somente pelos processos enunciativos que se dá a relação entre
sentido e referência quando o falante, ao elaborar seu discurso, institui o outro, em um
contexto determinado, no qual a língua é mediadora entre o homem e o homem, o
espírito e as coisas (Ibdem, p.229).
Coadunando-se com Benveniste, Franchi (1977/1992) atribui à linguagem, a
função primordial quanto à constituição do sujeito e de suas experiências com o mundo:
“é por meio da linguagem que o homem ‘dá forma’ ao mesmo tempo a si mesmo e ao
mundo, ou melhor, torna-se consciente de si mesmo, projetando um mundo no exterior”
(p.28). Para Geraldi (1991/2003) a constituição da consciência e do conhecimento de
mundo é visto como “produto” das interações entre os sujeitos.
Tais reflexões, oriundas da Linguística Moderna, nos orientam a pensar nas
dificuldades de MT quanto ao uso da língua/linguagem, como resultado de suas
interações psicoafetivas e sociais, especialmente, as familiares, onde estão seus
principais interlocutores. São dificuldades que se perpetuam e se projetam em sua vida
por serem constantemente reafirmadas pela família e, posteriormente, pela escola: essas
são, então, as interações que resultaram como produto, segundo Geraldi, da constituição
da consciência e de conhecimento de mundo de MT.
A escola é um lugar onde problemas de diferentes ordens são enfrentados.
E, no caso de MT, diz respeito, como vimos, às Políticas Educacionais da época em que
cursou os primeiros anos do EF. Além do que já foi dito, até o ano de 2014, o sistema
43
escolar31 somente permitia a reprovação quando o aluno estivesse cursando o quinto ano
do EF. Até então, era aprovado automaticamente, ainda que não tivesse atingido os
objetivos propostos no ano letivo.
Dessa forma, alunos com grandes dificuldades com as de MT, não
conseguem realizar as mesmas atividades que os demais alunos e acabam excluídos na
própria sala de aula. São muitas e complexas as questões relativas a esses alunos que
não apresentam um processo de aprendizagem dentro dos “padrões de normalidade
esperados pela escola”. A escola sempre apresentou dificuldades em lidar com as
diferenças inerentes ao processo de aprendizagem vivenciado por cada um, o que inclui
diferentes maneiras de aprender e diferentes ritmos.
No intuito de buscar soluções para os problemas enfrentados, observam-se,
ao longo da história da Educação, repetidas reorganizações do Sistema Educacional de
Ensino. É nessa direção que acontece a implantação do Programa de Progressão
Continuada (PPC). O objetivo primeiro desse programa era o de possibilitar um olhar
diferenciado do professor ao aluno que precisaria de um período maior que o ano letivo
para cumprir os objetivos mínimos do currículo. Através do PPC, a organização do
sistema educacional, que se dava por série, passa a ser por um só ciclo, na tentativa de
direcionar os professores para o prosseguimento ao processo de alfabetização dessas
crianças no ano posterior. O PPC, que representa um grande avanço na organização do
sistema de ensino brasileiro, tenta evitar que esses alunos reiniciem o programa
curricular repetindo o ano letivo, o que pode ser interpretado como uma forma de
encorajar o aluno a prosseguir os seus estudos.
O PPC é formulado também com o intuito de minimizar os entraves com os
chamados “alunos problema”32, que repetiam inúmeras vezes o mesmo ano escolar, se
tornando estigmatizados por serem “alunos repetentes” quando eram encaminhados para
uma “classe especial”33. No entanto, a solução encontrada para esse problema, através
31 No ano de 2014 houve uma mudança na LDB estipulando o 3º ano do EF como possibilidade de o aluno ser reprovado. 32Uma das questões surgidas pelos altos índices de reprovação escolar era a disparidade entre a idade desses alunos “repetentes” e a idade das demais crianças que frequentavam a série na idade prevista. Essa questão foi resolvida pela aprovação automática. Observa-se uma relação entre a lei que implanta o PPC e os interesses nos dados estatísticos quanto à redução dos altos índices de repetência existentes no sistema de ensino. Índice que interfere nos investimentos econômicos internacionais destinados ao Brasil. 33 Padilha (1997), em seu livro “Possibilidades de história ao contrário”, estuda o encaminhamento dos alunos à classe especial realizado por professores. O aluno que permanecesse por pelo menos dois anos nas séries iniciais (antigo Ciclo Básico), passava a ser um possível portador de deficiência mental. Porém,
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da mudança na legislação é ineficiente e, a escola, sem conseguir intervir efetivamente
nas dificuldades de aprendizagem desses alunos, é obrigada a conduzi-los à
continuidade de seu percurso escolar, ainda que não tenham condições para isso.
Com o PPC e o dispositivo de aprovação automática, os alunos repetentes e
a classe especial deixam de existir, mas as dificuldades nos seus processos de
aprendizagem permanecem. Parece possível afirmar que no ambiente escolar houve a
substituição dos chamados “alunos repetentes” pelos “alunos diagnosticados” de alguma
patologia, que, nesse contexto, ocuparão o lugar dos “alunos especiais”, quando então,
houve somente uma mudança da nomenclatura. Os alunos especiais, diferentemente do
que ocorria com os alunos repetentes, não são encaminhados a uma “classe especial”,
mas permanecem em uma “sala de aula comum”, conforme determinado pela LDB
9394/96,34. Esta Lei orienta que os alunos especiais frequentem a escola em turmas
regulares, pois parte do pressuposto de que a escola deve promover o convívio para a
construção do respeito de toda a sociedade às diferenças e individualidades existentes.
No caso de MT, seja ele denominado como “repetente” ou como “aluno
especial”, frequentando a escola em uma “turma especial” ou na sala de aula “regular”,
o sistema educacional não consegue propor intervenções e soluções efetivas para a
superação de suas dificuldades e de outros como ele. Nesse contexto, a escola não se
constitui como um interlocutor de MT, e nem ele a marca como um lugar de
interlocução. A escola passa, então, a orientar a mãe para buscar atendimento médico
para MT.
2.3. A relação entre a escola e a família de MT
As questões relativas à família e à escola, determinantes na constituição da
subjetividade de MT, também podem ser pensadas a partir das reflexões de Lahire
(1995/2008), sociólogo francês, que estuda a importância da significação pela família de
vivências escolares de crianças/jovens. Em seu livro “Sucesso escolar nos meios
populares”, o autor discute a relevância da orientação familiar para o enfrentamento das
“regras do jogo escolar” e das “formas escolares de relações sociais”. As diferenças e o
nem todos os municípios tinham um serviço público com atendimento especializado, assim, havia dificuldade de se conseguir um diagnóstico realizado por um psicólogo. O encaminhamento de muitos alunos para a classe especial era feito, então, pelo próprio professor e/ou pelo diretor da escola. 34 A Lei de n. 9394/96 da LDB pode ser consultada em sua íntegra no endereço eletrônico: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei9394_ldbn2.pdf>. Acesso em: 21 abril 2014.
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distanciamento entre a escola e a família não permitem que esses alunos respondam
adequadamente às exigências escolares. A escola, muitas vezes, não consegue a
adaptação desse aluno ao seu contexto, o que resulta na “solidão do aluno no universo
escolar” (Ibdem, p.19). Esses alunos, ao voltarem para casa, permanecem sozinhos
diante do distanciamento das pessoas de seu convívio familiar do contexto da escola.
Lahire trata do sucesso e do fracasso escolar a partir da relação entre os
grupos sociais e a socialização escritural escolar, discussão que abarca e que relaciona
as contradições, dissonâncias e consonâncias que existem entre a família e a escola.
Para ele, a escola é um universo de cultura escrita porque se organiza a partir dela, que,
diferentemente da fala, é adquirida por instrução formal e pela inserção do sujeito no
universo escrito contemporâneo. Para o autor:
A escola e a pedagogização das relações sociais de aprendizagem estão ligadas à constituição de saberes escriturais formalizados, saberes objetivados, delimitados, codificados, concernentes tanto ao que é ensinado quanto à maneira de ensinar, tanto às práticas dos alunos quanto àquela do mestre. (...) O modo de socialização escolar é, então, indissociável da natureza escritural dos saberes a transmitir: a formalidade dos saberes e as formas de relações sociais no meio das quais eles são ‘transmitidos’ estão profundamente ligados. (LAHIRE, 1993, p.24).
A partir de Lahire, pode-se afirmar que a escola é, portanto, palco de
relações mais formais, burocratizadas e hierárquicas, do que as relações que acontecem
no interior da família. Para ele, a escola é considerada como um lugar de aprendizagem
de formas de exercício de poder. Assim, mesmo com o trabalho e com o esforço dos
professores junto à adaptação do aluno na escola, muitos apresentam dificuldade na
compreensão e na adaptação às regras a serem cumpridas, como também no que tange à
formalidade e à hierarquia envolvidas nas relações escolares. Em sua reflexão, Lahire
relaciona o significado das práticas escritas no interior da família à compreensão e à
aproximação das formas de organização e de funcionamento escolar, o que pode ser
determinante no aprendizado da escrita:
A forma escolar sendo captada como uma forma escolar escritural nos permite recolocar o problema (...) do fracasso escolar ao colocar a questão da relação dos grupos sociais com a socialização escritural escolar. Os seres sociais dos diferentes grupos que compõem nossas formações sociais se distinguem, assim, pela frequência mais ou menos prolongada das formas sociais escriturais (e, especialmente das formas escriturais-escolares de relações sociais) (LAHIRE, 1993, p.41).
46
A discussão realizada por Lahire (1993; 1995/2008) afina-se à
abordagem feita pela ND quanto ao sentido atribuído pela família às experiências
vivenciadas pela criança na escola, bem como à sua adaptação à instituição escolar. É
nessa direção que caminham os objetivos do trabalho realizado no CCazinho com o
Grupo de Familiares (COUDRY, 2007; BORDIN, 2010): ajudar os pais a
compreenderem as relações envolvidas no processo de leitura e de escrita; valorizar a
aprendizagem escolar da criança; refletir com os pais as possibilidades de criarem uma
relação positiva com a escola e com os professores de seu filho.
Lahire analisa a relação família e escola no sentido de que “as conversas
com pelo menos um membro da família possibilitam à criança, verbalizar uma
experiência nova, não vivenciá-la sozinha, não carregar sozinha uma experiência
diferente” (LAHIRE, 1995/2008, p.343). Para o autor, a criança que é “escutada
atentamente”35 pelos pais ocupa um “lugar efetivo” no seio da “configuração familiar”,
o que representa o reconhecimento do seu papel de sujeito e de um membro importante
na família, através das relações vivenciadas em casa. Seguindo ainda Lahire, ele
descreve outras situações em que a aproximação família e escola são importantes para a
vida escolar e familiar da criança. Por exemplo, ele se refere ao fato de que quando a
criança ouve na escola as mesmas histórias contadas em casa, o envolvimento afetivo
referente a essas histórias contadas, pelos pais, é revivido na escola.
Em relação a MT, o que se pode dizer é que no momento de chegada de sua
mãe ao Grupo de Familiares, apesar das suas tentativas para adaptá-lo ao contexto
escolar - comparecia às reuniões; cumpria os compromissos exigidos pela escola; fez-se
presente nos momentos em que foi chamada para resolver os problemas de
comportamento do filho; aceitou a orientação da escola quanto ao encaminhamento
médico para o filho; ou ainda, quando assiste às aulas com ele - permanecia
respondendo à escola, ou melhor, à permanência de MT na escola, como se isso fosse
suficiente para que ele aprendesse a ler e a escrever. Não há, por parte dela, reflexões
suscitadas pelo próprio MT, não há a significação da Escola como lugar de saber, mas
como lugar de se comportar e de permanecer. A relação de MT com o saber não é
valorizado pela família. Assim, tanto para a escola como para a família, MT ocupa o
35 Em seus estudos sociológicos, Lahire usa a expressão “escuta atenta” e não faz nenhuma referência à abordagem psicanalítica, área em que o termo “escuta” é comumente encontrado.
47
lugar daquele que não consegue, ou não pode, aprender. BT reconhece que não
conseguia realizar com MT algumas tarefas que a escola mandava para que ele fizesse
em casa. Nessas ocasiões, ela dizia que tentava fazer com ele, mas logo começavam a
brigar e ela desistia, a primeira dificuldade era descobrir onde estava o material escolar
do filho. MT, com frequência, perdia seu material escolar. Diante desse contexto, é
possível dizer que a parceria feita por BT é com a escola, e não com o seu filho.
Um dos trabalhos realizados no CCazinho com os pais é vivenciar com eles
a leitura em grupo. Assim, selecionado um gênero de leitura (notícia, crônica, carta,
material pedagógico do filho etc), a partir de temas de interesse dos pais, essa leitura é
feita em partes por cada um dos presentes no encontro. Todos participam, apenas BT se
recusa. Ela solicitou às condutoras do grupo para que pudesse, inicialmente, fazer as
leituras em encontros individuais. BT não apresenta problemas importantes de leitura,
embora apenas nem sempre consiga regular a entonação com a pontuação do texto.
De fato, como já abordado, não é fácil o percurso vivenciado pela mãe de
MT, um caminho percorrido solitariamente, sem ajuda de nenhum outro familiar,
repleto de idas e vindas, conflitos e persistência. No entanto, MT também vivenciava
sozinho suas experiências escolares, angustiado e sem parceria de intermediadores
significativos.
Paralelamente à questão do compartilhar com a escola e a família, o sentido
das aprendizagens escolares de MT, era preciso maior compreensão de sua família
quanto à importância da aproximação entre a organização familiar e a organização
escolar36, que se apresenta mais formal, refletida e hierárquica e repercute nos usos de
linguagem típicos da escola e da língua escrita. A partir dessa observação, proponho a
reflexão que apresento em seguida.
No acompanhamento longitudinal de MT, além de interlocutora, ocupo
também um lugar privilegiado de observadora. Nos momentos iniciais desse
acompanhamento, fui assolada pelas questões de interlocução de MT e também pela sua
desorganização dele em relação ao seu material escolar, bem como em relação à
sequência desorganizada para a realização de qualquer atividade. Buscando ajudá-lo e à
sua família quanto a esse fato, entendendo que o direcionamento de algumas de suas
36 Essa discussão é abordada pela Profª Drª Monica Filomena Caron no trabalho que realiza sobre o Grupo de Familiares do CCazinho junto ao programa de pós-doutorado do IEL ( Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0).
48
atitudes, em relação às atividades escolares e cotidianas, favorecia sua maior autonomia
e consciência das situações vividas por ele, propus, discutindo sobre isso com ele e com
a sua mãe, uma organização familiar que orientasse MT quanto a uma rotina cotidiana,
proposta considerada muito interessante por MT e BT. Subjaz a tal proposta a intenção
de que tal organização favoreceria a sua vivência de uma rotina mais planejada, que, por
ser pautada em ações refletidas, ajudaria na execução com autonomia de tarefas
domésticas e, por consequência, refletiria na organização das atividades escolares.
O que está ainda vinculado a tal proposta é a possibilidade de valorização,
pela família, dos aprendizados e das experiências vivenciadas por MT, as quais,
segundo Lahire (1995/2008) representam a importância dessa criança na configuração
familiar. Além disso, como desdobramento, tal proposta possibilitaria a MT vivências
como sujeito experimentadas na relação com o outro na e pela linguagem; a formação
da consciência e a constituição da subjetividade como alguém que importa ao outro, o
que seria marcado na linguagem, revelado através do discurso (BENVENISTE,
1966/1991) e observado em outra forma de se assumir como interlocutor. Entretanto,
essa proposta, no momento, não é posta em prática pelos dois e, posteriormente, na
sequência do acompanhamento, será retomada.
A partir da abordagem da ND e dos autores que a ancoram, a minha busca,
então, é de olhar para MT como um sujeito com possibilidades de contar a própria
história. A partir dessa reflexão, observa-se que nem sempre é percebida, pela família, a
relevância do sentido compartilhado às vivências e às aprendizagens das crianças. As
interlocuções na família podem ser, portanto, facilitadoras das relações vivenciadas na
escola, à medida que há um compartilhar de sentidos construídos nas vivências na
família e na escola.
2.4. O poder do discurso médico e suas implicações no destino de MT
Antes de MT chegar ao CCazinho, cumprindo o encaminhamento escolar,
sua mãe buscou explicações médicas e clínicas para suas dificuldades escolares.
Inicialmente, procurou pela Clínica de Psicologia da PUC-Campinas. Nessa clínica, ele
fez acompanhamento psicopedagógico por um ano que não teve continuidade, devido ao
encerramento deste tipo de atendimento na referida clínica (Cf. anexo nº1). BT, então,
procurou por novos profissionais em um estabelecimento que, desta vez, oferecia
acompanhamento como apoio escolar (Cf. anexo nº2). Durante dois anos, MT
49
permaneceu nesse acompanhamento, mas, como suas dificuldades em aprender a ler e a
escrever permaneciam, BT buscou ajuda em uma clínica especializada em dificuldades
de aprendizagem, vinculada à área médica e ao setor público da saúde (Cf. anexo nº1).
Além disso, ela esteve em outra clínica que realiza avaliação das dificuldades
apresentadas pelas crianças/jovens, esta vinculada ao setor privado (Cf. anexo nº2).
Nessas duas últimas instituições – a pública e a privada – foram aplicados
testes psicométricos37 para a avaliação de MT, dentre eles, o Teste Gestáltico Visomotor
Bender (B-SPG); as Matrizes Progressivas Coloridas de RAVEN Escala Especial; o
Teste de Desempenho Escolar (TDE); o Teste de Luria Nebraska (TLN-C); a Escala de
Inteligência Wechsler para Crianças (WISC-III); o Desenho da Figura Humana (DFH-
III); as Provas Projetivas Psicopedagógicas, além de provas Piagetianas. Os relatórios
relativo às avaliações (cf. anexos 1 e 2) dão conta de que MT apresentou um
desempenho abaixo da média esperada para a sua faixa etária, o que foi relacionado a
um déficit cognitivo e ao diagnóstico de Retardo Mental Moderado (CID F71.9 – pela
classificação do DSM – IV). Esse diagnóstico foi emitido pelo neuropediatra que
acompanha MT em um hospital público da cidade de Campinas (Cf. anexo 3). Como
pode ser visto no anexo nº2, há ainda a sugestão de que a família busque por uma
escola especializada para que MT possa se alfabetizar.
Esses testes largamente usados por psicólogos são instrumentos que, muitas
vezes, apresentam resultados contraditórios diante da má avaliação dos aspectos
positivos mostrado pelo sujeito, e de uma análise incoerente das suas dificuldades. É o
que se pode observar através da leitura do anexo nº1, item V. Resultados Gerais da
Avaliação, no qual é relatado que MT apresenta limite abaixo da média esperada em
relação à Compreensão Verbal. Contraditoriamente, em relação à Fala Expressiva e
Receptiva, MT é avaliado com resultado plenamente satisfatório38. Resultados
inconsistentes como esse corroboram os diagnósticos emitidos a partir do DSM-IV de
1994 (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders)39, ou seja, o Manual de
37 Patrícia Aquino (2014), ao analisar materiais elaborados para darem suporte aos diagnósticos emitidos a partir de testes psicométricos, como o teste WISC, conclui que neles não há consideração do conhecimento produzido pela Linguística em relação à alfabetização, à produção escrita e à leitura no uso de ferramenta linguísticas. A autora também afirma ter observado, no material analisado, equívocos com relação às concepções de língua, de linguagem e de sujeito. 38 No 3º capítulo desta dissertação as questões relativas às dificuldades de MT serão aprofundadas. 39 No ano de 2013, foi lançado o DSM-V, entretanto, não alterei a edição usada nesta dissertação, pois não houve variação quanto à descrição do diagnóstico em questão. O DSM é vinculado à Associação
50
Diagnósticos e Estatísticas de Distúrbios Mentais, um instrumento de classificação e de
referência para médicos no diagnóstico de doenças mentais que inclui critérios e
descrições de diagnóstico e de tratamento.
O manual do DSM-IV reitera a medicina como lugar privilegiado de
avaliação de dificuldades escolares (principalmente as que dizem respeito à leitura e à
escrita) e, portanto, de presença fundamental na área educacional (MOYSÉS, 2001),
colocando-se em uma posição superior em relação às outras áreas de conhecimento,
como a Linguística e a Pedagogia, por exemplo.
Ainda de acordo com o DSM-IV, o diagnóstico “Retardo Mental
Moderado” de MT corresponde à referência F71.9, e tem a seguinte descrição:
“O Retardo Mental Moderado equivale, basicamente, ao que costumava ser chamado de categoria dos "treináveis", em termos pedagógicos. Este termo ultrapassado não mais deve ser usado, pois implica, erroneamente, que as pessoas com Retardo Mental Moderado não podem beneficiar-se de programas educacionais. Este grupo constitui cerca de 10% de toda a população de indivíduos com Retardo Mental. A maioria dos indivíduos com este nível de Retardo Mental adquire habilidades de comunicação durante os primeiros anos da infância. Eles beneficiam-se de treinamento profissional e, com moderada supervisão, podem cuidar de si mesmos. Eles também podem beneficiar-se do treinamento em habilidades sociais e ocupacionais, mas provavelmente não progredirão além do nível de segunda série em temas acadêmicos. Estas pessoas podem aprender a viajar independentemente, em locais que lhes sejam familiares. Durante a adolescência, suas dificuldades no reconhecimento de convenções sociais podem interferir no relacionamento com seus pares. Na idade adulta, a maioria é capaz de executar trabalhos não qualificados ou semiqualificados sob supervisão, em oficinas protegidas ou no mercado de trabalho geral, e adaptam-se bem à vida na comunidade, geralmente em contextos supervisionados”.
Do texto apresentado anteriormente, ressalto dois aspectos que serão
analisados à luz da ND. O primeiro se refere à delimitação colocada pelos critérios
médicos quanto às possibilidades de aprendizado e ao desenvolvimento do sujeito:
“com moderada supervisão, podem cuidar de si mesmos; não progredirão além do nível
da segunda série em temas acadêmicos”. O segundo é a descrição da linguagem apenas
Americana de Psiquiatria e desde a sua publicação original, em 1994, passou por diferentes revisões. Explicações sobre o manual e o texto reproduzido nessa dissertação descrevendo o diagnóstico de Retardo Mental Moderado encontram-se disponíveis em: <www. psicologia.pt/instrumentos/dsm_cid/dsm.php>. Acesso: 31 maio 2013.
51
como função de comunicação: “a maioria dos indivíduos com este nível de Retardo
Mental adquire habilidades de comunicação durante os primeiros anos da infância”.
Em contraposição à abordagem assumida pelo DSM-IV, como já
anteriormente abordado, esta pesquisa se ancora na concepção discursiva de linguagem,
que a considera para além da comunicação, como lugar de constituição da subjetividade
do sujeito, de sua consciência e de seu conhecimento de mundo. Nesse sentido, não há
um sujeito “pronto”, mas um sujeito que se constitui através de suas experiências
com/pela linguagem, durante toda a vida e não somente nos primeiros anos de vida, tal
como referencia o DSM-IV.
Instrumentos como o DSM-IV conferem o estatuto de patológico ao que
não é padrão ou tido como normal. Tal patologização produz um efeito negativo na vida
escolar das crianças, que passam a ser vistas como parte de um grupo que caminha em
oposição àquilo e àqueles considerados normais, dificultando ainda mais o
acompanhamento escolar (COUDRY, 2007). Padilha (1997) se alinha com a reflexão de
Coudry, afirmando que os rótulos atribuídos ao sujeito a partir dos diagnósticos, seja de
“deficiente mental”, “discrepante” ou “desviante”, o marcam ideologicamente.
Watzlawick (1994), em “A Realidade Inventada”, trata do estigma
determinado pelo diagnóstico/rotulação como profecias que se autocumprem. Para o
autor, crianças estigmatizadas, porque têm suas dificuldades atribuídas a uma
incapacidade, patologia ou a um comportamento que se repete, se comportam de
maneira a corresponder ao que se supõe ou ao que se espera delas. Este ciclo vicioso
transforma a não superação da dificuldade em realidade, como que por profecia,
confirmando a previsão.
De fato, a história de MT passa a ser justificada pela família como uma
doença que define seu passado e seu futuro, nos dizeres de BT: “Ele não tem jeito, não
tem saída, ele não muda”.
2.5. MT é um sujeito incorrigível?
É possível estabelecer um paralelo ainda entre a constituição dos sujeitos
marcados socialmente por rótulos estigmatizantes e a necessidade humana de
estabelecer um padrão de normalidade e de limites para as suas próprias condutas.
52
Foucault, em sua obra “Os Anormais” (1975/2001)40, reflete sobre o
incômodo causado pelos que não seguem o padrão de conduta estabelecido e sobre a
necessidade de “encontrar um lugar” social para esse “sujeito problemático” (O que
fazer com ele? Qual o seu lugar na sociedade?). Em sua reflexão, o autor aborda os
domínios da anomalia na transição do século XVIII para o XIX. O “sujeito
problemático” é representado em sua obra pelo “sujeito incorrigível”, de difícil
determinação porque é comum e frequente na sociedade:
“O indivíduo a ser corrigido vai aparecer nesse jogo, nesse conflito, nesse sistema de apoio que existe entre a família e, depois, a escola, a oficina, a rua, o bairro, a paróquia, a igreja, a polícia, etc. Esse contexto, portanto, é que é o campo do aparecimento do indivíduo a ser corrigido” (Ibdem, p. 72). O incorrigível se apresenta como sendo aquele que é preciso ser corrigido “na medida em que fracassaram todas as técnicas, todos os procedimentos, todos os investimentos familiares e corriqueiros de educação pelos quais se pode ter tentado corrigi-lo” (Ibdem, p.73).
Para Foucault, o sujeito incorrigível do século XVII-XVIII é, de forma
esboçada, o que será no século XIX o indivíduo anormal, que servirá de base para a
criação das instituições especializadas e da aparelhagem de correção para os
denominados anormais. Tal reflexão aproxima a discussão realizada por Foucault no
século XIX à realidade que encontramos hoje, no século XXI. Os anormais seriam hoje
as crianças equivocadamente diagnosticadas por patologias e estigmatizadas em suas
dificuldades. Nessa direção, também é possível estabelecer um paralelo entre a clínica
como “lugar de correção” desse sujeito anormal, e sua “aparelhagem de correção” como
os recursos usados pela clínica no trabalho com essas crianças: jogos, brinquedos,
testes, programas computacionais. Dentre esses recursos, temos o DSM-IV, que não
somente classifica essas crianças, mas também determina os limites para seus
aprendizados (BORDIN, 2010; ANTONIO, 2011).
Nesse sentido, é importante observar que MT chega ao CCazinho trazendo
dois relatórios sobre as avaliações realizadas. Nas Clínicas onde esses dois relatórios
foram emitidos, não houve a proposta de um trabalho com MT relacionado às suas
dificuldades, nem à orientação familiar. As explicações passam pela falta de vaga, como
40 Essa reflexão teve seu início na disciplina Neurolinguística I, oferecida no programa de pós-graduação em Linguística no IEL – Unicamp, ministrada pelas Profª Drª Maria Irma Hadler Coudry e Profª Drª Fernanda Maria Pereira Freire, no 1º semestre de 2012.
53
no centro vinculado ao setor público, e pelo alto custo, no caso do centro vinculado ao
setor privado, inviabilizando as possibilidades da família.
Embora estigmatizado socialmente como um sujeito portador de Retardo
Mental, um sujeito que “não tem jeito”, ou, ainda, pela cobrança social que incide na
família, sua mãe não desiste da busca de alguma solução para as questões apresentadas
por MT. Esse fato se evidencia nos diferentes momentos do acompanhamento de MT,
quando ela contou sobre a cobrança que percebia ao conversar com pessoas que
perguntavam por MT: “Ele já está lendo? Ele está escrevendo? As coisas na escola já
estão melhores? Você ainda não conseguiu encaminhar isso?”, perguntas que BT
interpreta como direcionando a ela a responsabilidade pelo fracasso escolar de MT.
Assim, o CCazinho, a 5ª instituição procurada pela família, parece
representar a busca por uma estrutura diferente que possibilite o “milagre” da cura.
54
55
CAPÍTULO 3 - O acompanhamento longitudinal de MT
Este capítulo dá visibilidade às possibilidades do vir a ser de MT. Trata-se
de uma aposta de que ele pode se constituir a partir de diferentes interlocuções em
diferentes experiências, principalmente, de fala/linguagem, ampliadas por outras que
envolvem a leitura41 e a escrita, por estar imerso em uma cultura letrada.
Tais atividades envolverão os conceitos reunidos no Capítulo 2: sistema de
referências, operações de construção de sentidos, consciência e conhecimento de
mundo, etc. Portanto, a partir dos aportes teóricos da ND, a proposta de trabalho
realizado pela investigadora, nos encontros individuais, e pelo CCazinho, nos encontros
coletivos com MT, privilegia a constituição de sua subjetividade como o que lhe
favorecerá em seu distanciamento do lugar estático em que a família e a escola, por
diferentes motivos, o tem colocado e no qual ele tem se mantido.
3.1. O CCazinho: a realização de um trabalho com MT orientado pela interlocução
No início do acompanhamento longitudinal individual discursivamente
orientado de MT no CCazinho, conversamos sobre o compromisso com o trabalho a ser
realizado nesse Centro, o que exigiria dele dedicação e esforço. Essa conversa é
realizada com a criança/jovem no início de seus acompanhamentos, porque representa a
opção que é dada ao sujeito em dar ou não continuidade à sua frequência nesse Centro,
escolha que não é possível de ser feita em relação à escola. Faz parte também desses
encontros iniciais explicar para o sujeito as atividades que serão feitas ao longo do
desenvolvimento do trabalho e o quanto tais atividades dependem de sua escolha, ou de
ele descobrir ou expor o que gosta de fazer, enfim, quais são seus interesses na vida.
Os primeiros encontros com MT foram marcados, conforme abordado no
capítulo anterior, pela sua dificuldade em se expressar, dificuldades estas em relação à
seleção lexical e à organização sintática de sua fala. MT falava muito pouco, de forma
“truncada”, ou seja, com frases condensadas e incompletas; assim, pronunciando uma
ou duas palavras, parecia expressar o que queria dizer. MT frequentemente silenciava
diante de perguntas feitas pela interlocutora sobre, por exemplo, o que ele havia feito no
41 Neste capítulo, não será dada ênfase às atividades específicas de leitura, uma vez que a leitura se deu em conjunto com a escrita.
56
final de semana. Quando respondia a tais perguntas, suas respostas, muitas vezes, não
mantinham uma relação de sentido com o que lhe havia sido perguntado, o que causava
a impressão, em seu interlocutor, de que ele não entendia ou não sabia responder o que
lhe era perguntado. É importante explicitar, também, que em alguns momentos MT se
mostrava um sujeito comunicativo que ocupava os turnos conversacionais, embora não
fosse fácil e, às vezes, nem possível que seu interlocutor compreendesse as referências e
o contexto de suas falas. Esta dificuldade de MT se manteve ainda por um muito tempo
no acompanhamento longitudinal.
Sendo assim, era preciso retomar com MT os assuntos/conteúdos,
abordando-os de outra maneira. Se por um lado, esses comportamentos me levaram a
pensar na hipótese de ele apresentar um problema de memória, de compreensão, ou de
saúde mental, por outro, tais comportamentos nos impediam de travar um conhecimento
mútuo. Para Coudry (1986/1988) “o conhecimento mútuo constitui o conjunto de
pressuposições indispensáveis ao diálogo, sendo fundamental a afetividade para o
estabelecimento de uma relação intersubjetiva entre os participantes” (Ibdem, p.79).
Por algum tempo ainda tive a impressão de que MT era um sujeito
“impermeável”, que não se afetava pelas minhas proposições e que não me contava
nada sobre si. Além disso, a postura de seu corpo revelava um desconforto: deitava o
tronco sobre a mesa, segurava a cabeça com uma das mãos inclinando-a lateralmente,
mexia-se constantemente, espreguiçava-se, olhava dispersamente para a sala e mantinha
pouco contato visual com seu interlocutor.
Nesse sentido, reconheço que as dificuldades apresentadas por MT não são
condizentes com o que se costuma esperar de um jovem da sua idade (na época, 12
anos), como em relação aos conhecimentos que apresenta frente à leitura e à escrita
quando não sabe escrever o próprio nome, a ter dificuldade de manter uma conversa ou
falar, minimamente, sobre seus interesses e, ainda, a seu absoluto desinteresse em saber
algo sobre mim. Além disso, a postura de corpo que mantém dificulta a aproximação de
outra pessoa e revela sua disposição de se manter afastado. De fato, considerar apenas
esses aspectos torna o diagnóstico de Retardo Mental Moderado que lhe foi conferido,
possível, pois tais comportamentos se fazem presentes na descrição do referido
diagnóstico.
57
Entretanto, no trabalho discursivamente orientado que se realiza no
CCazinho, é fundamental o conhecimento da história do sujeito e como ele revela sua
subjetividade na relação dialógica com outro, para que se torne possível, então, sua
inserção no mundo das letras através da escrita com sentido e da leitura com
compreensão (COUDRY, 2009a). Portanto, nesta abordagem, não é valorizado o
diagnóstico como determinante do sujeito, mas valoriza-se a sua inscrição no mundo: o
que ele gosta de fazer; pelo que demonstra interesse; quais são seus amigos; quais
lugares frequenta; do que gosta de brincar/jogar; que filmes/livros lhe interessam etc.
Enfim, é a história do sujeito que molda as atividades que partilhará com sua
cuidadora/investigadora em seu acompanhamento longitudinal no CCazinho.
Na tentativa de encontrar respostas a tantas perguntas, e, na tentativa de
conhecer esse sujeito e de estabelecer um conhecimento mútuo, passei a insistir nas
perguntas que não tinham sido respondidas por ele, retomando, assim, suas respostas
desconexas para mostrar-lhe que estas não respondiam ao que lhe havia sido
perguntado. É importante esclarecer, no entanto, que foi explicado a MT o motivo da
minha insistência em compreender o que ele falava, saber o que ele pensava sobre as
coisas, para que, então, pudesse ajudá-lo em suas dificuldades, bem como para que esse
trabalho fosse interessante e prazeroso para nós dois.
Dando continuidade a esse processo, muitas vezes, o retorno de MT às
minhas tentativas de desdobrar sua fala era somente uma palavra ou alguma expressão
que funcionavam como pistas para que eu compreendesse o que ele dizia. Ou seja,
embora ele não conseguisse elaborar a sua ideia e torná-la pública, o que exigia dele
uma organização sintática e semântica de sua fala, que ele não tinha, havia um querer-
dizer (BAKHTIN, 1952-53/1997). Assim, buscando descobrir mais sobre esse sujeito, a
partir da palavra ou expressão falada por ele, eu formulava enunciados que julgava
próprios para aquilo que ele parecia querer dizer, dando, também, outras opções de
respostas, até que chegássemos ao sentido pretendido por ele em sua fala.
No entanto, MT não aceitava qualquer enunciado dado por mim como
alternativa de resposta à pergunta feita a ele. Ele, portanto, sabia o que queria e o que
não queria dizer. Nesse momento, passei a questionar seu suposto problema de memória
ou de alienação em relação às coisas que aconteciam à sua volta. Passei a questionar,
então, o fato de ele conseguir estabelecer relações entre os fatos vivenciados e
58
lembrados e não falar sobre eles. Também, em muitas situações em que eu tentava
recuperar o sentido do querer-dizer de MT, ele se mostrava irritado, incomodado. Passei
a considerar, dessa forma, se essa irritação se devia a não conseguir se expressar ou a
não querer lembrar. Essa dúvida permaneceu por todo o acompanhamento.
O dado que apresento a seguir se deu em 2013, dois anos e meio após o
início do trabalho voltado, entre outros objetivos, aos seus processos discursivos,
quando MT já apresenta mais facilidade de se manter em uma relação dialógica. Assim,
este dado foi selecionado para dar visibilidade aos recursos expressivos que MT, mais
recentemente, usa na interlocução com o outro.
Dado 3: 03/04/2012 – “Conversando na praça do Ciclo Básico”: diálogo entre Ibb e MT sobre o que estaria sendo construído na reforma do lago da praça do Ciclo Básico da Unicamp. Turno Sigla do
Locutor Transcrição42 Observações
sobre o enunciado
verbal
Observações sobre o enunciado não
verbal
1 MT Isso aqui é \: um laguinho E começa a querer descer no tanque que está sem água
2 Ibb Não, não vai descer aí não porque a gente não sabe se pode entrar. Um laguinho?
3 MT É, olha lá o negócio. Esse negócio aqui é no meio
Apontando para a manta impermeabilizadora
4 Ibb Vamos pensar é \ // MT. Tem \ // lugar para as pessoas circularem em volta, certo? Você acha que é um lago? Sabe o que tá me parecendo isso aqui, um teatro, sabe teatro... assim, para apresentar uma peça no meio
Referindo-se a um teatro de arena
5 MT Mas \ // 6 Ibb Mas eu acho que você tem razão,
pode ser um lago sim.
7 MT Por que teatro não vai por isso aqui
Apontando para uma manta impermeabilizadora
8 Ibb Exatamente... Muito bem... Esse negócio, como é que chama isso aqui?
9 MT Manta \ // é pra por no chão 10 Ibb Como é que chama? Mas serve
pra quê?
42 Na transcrição o símbolo \ // refere-se a uma pausa longa e o símbolo \: refere-se ao prolongamento de uma vogal, segundo tabela do Banco de Dados em Neurolinguística (DEFANTI, B.; SILVA, M. A, 2003).
59
11 MT Pra água não vazar pra baixo. Faz gesto indicando embaixo de alguma coisa
12 Ibb Pra água não infiltrar no chão. Não é isso?
13 MT É ali, também vai por, ó! Aponta para a outra parte da construção onde estavam
14 Ibb Pode ser... Então chama uma manta para impermeabilizar. Olha lá ó, tá escrito, ó! Nas letrinhas pequenininhas. Im-per-me-a-bi-li-zan-te, entendeu?
Apontando para o rótulo da manta impermeabilizadora
15 MT Meu tio pôs isso lá, e ele pôs um piso em cima
Saindo da construção em direção ao gramado da praça
16 Ibb Seu tio pôs isso lá aonde? \ // Entendi. E me explica o que o seu tio fez... ele pôs essa manta impermeabilizadora...
17 MT Na casa dele 18 Ibb Mas em que lugar?
19 MT No floresta 20 Ibb Na floresta? 21 MT Floresta 22 Ibb Como assim? 23 MT No Floresta 24 Ibb Hã? 25 MT É no mesmo ele mora... Fez os gestos
indicando o trajeto que se deve fazer para chegar no Floresta
26 Ibb Ah! Floresta é o bairro! Referindo-se ao bairro da cidade de Campinas, o Parque Floresta
27 MT É 28 Ibb Ã? Mas ele pôs aonde isso? O
que ele não queria...
29 MT Na casa dele! 30 Ibb Não, mas isso eu já entendi! 31 MT Prá água na, na \: ele pôs na laje. 32 Ibb Ah, agora eu entendi \: ele pôs
na laje, pra água não ir pra onde? Pra água da chuva não ir pra onde?
33 MT Pra casa. 34 Ibb Pra que lugar da casa? 35 MT Dentro da casa. 36 Ibb Pra dentro da casa...
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
60
Na condução dessa análise, ressalto inicialmente o turno 3, em que MT
estabelece a relação entre a presença da manta impermeabilizante e a possibilidade da
construção de um lago no lugar em que estão ele e a sua cuidadora. MT revela
compreensão da função da manta impermeabilizante na vedação de uma construção que
tem contato com a água. No turno 15, MT estabelece outra relação de uso com a manta
impermeabilizante, ao se lembrar desse material na laje da casa construída por seu tio.
Considerando, ainda, que informações a respeito de uma manta impermeabilizante não
fazem parte de um repertório habitual de jovens na idade de MT, é evidente que ele
conseguia estabelecer relações entre o que percebia e o que se lembrava de suas
vivências, o que mostra não estar alheio às situações das quais participava.
Tais constatações são importantes na compreensão de como se dá a
aprendizagem de MT. Para Vygotsky (1979/1998), estabelecer relações representa um
importante processo em que estão envolvidos categorias de comparação e diferenciação
responsáveis pela generalização, uma função superior diretamente relacionada à
formação do pensamento e, portanto, ao aprendizado.
Nesse sentido, a partir da construção de uma proximidade com MT e de um
olhar mais cuidadoso para com ele, foi possível percebê-lo como um sujeito com
possibilidades de aprender, mas que, se encontrando pouco envolvido nos processos de
interlocução, portanto, sozinho em suas dificuldades, teve prejudicadas a continuidade e
a regularidade no desenvolvimento de sua aprendizagem.
Continuando com a análise, considerando agora os turnos 3, 7, 13, 15 - em
que MT usa os termos “esse”, “isso aqui”, “ali”, “lá”- , é muito difícil para ele tornar
público o seu pensamento. A expressão de um pensamento ou de uma ideia é algo
complexo que exige a fala externa. A fala externa é mais detalhada e desdobrada
sintaticamente do que aquela pela qual o pensamento se organiza, que se caracteriza por
ser agramatical e reduzida. Assim, dizer sobre o que se pensa requer da língua um
conjunto de recursos expressivos para que se possa ser compreendido pelo outro.
Ainda nesse dado, analiso que os termos usados por ele, essencialmente
elementos dêiticos, se vinculam ainda a uma falta de recursos expressivos da língua em
direção a construir e a compartilhar o sentido daquilo que queria dizer. Coudry afirma
que o uso de dêiticos “impede uma análise em termos de condições de verdade por
procedimentos puramente composicionais do sentido de suas palavras, sem recorrer-se
61
às relações que os dêiticos estabelecem entre o enunciado e o contexto, isto é, a situação
de enunciação” (COUDRY, 1986/1988, p.50).
Assim, é possível afirmar que MT não percebe a relação de dependência que
os dêiticos estabelecem entre o enunciado e o contexto, assim como não percebe
também que o outro não entende o que ele quer dizer, o que, por vezes, só é possível se
ambos, ele e seu interlocutor partilharem a mesma situação de enunciação.
Completando a análise do turno 3, MT usa a expressão esse negócio para se referir à
manta impermeabilizante. É a participação de Ibb na situação da enunciação que
permite a ela compreender o sentido presumido por MT (manta impermeabilizante). O
sentido da expressão esse negócio está diretamente relacionado ao contexto, sendo
preciso que Ibb recorra à relação que o dêitico estabelece entre o enunciado e o contexto
para acessar o sentido.
Para Franchi (1977/1992) o sentido atribuído ao termo “situação” com
relação à enunciação é o que permite a significação das expressões, mas não como um
“lugar real fisicamente delimitado” ou uma “situação imediata” e sim as “condições de
uso significativo da linguagem”. Essas condições de uso da linguagem, também
compreendidas como “instâncias e condições da situação discursiva”, “das quais
nenhuma língua natural pode dispensar-se”, permitem que as expressões adquiram
sentido por remeterem a “um referencial em que essas correspondências se atualizam (o
tempo, o lugar, as instâncias pessoais do discurso, a indicação demonstrativa dos
objetos, a atitude do locutor frente a seu próprio discurso, etc.)” (Ibdem, p.34). Nessa
direção, com relação ao dêitico esse seguido de negócio, usado por MT, seria preciso
que a cuidadora participasse da situação da enunciação no sentido da situação imediata
e do lugar real e fisicamente delimitado para perceber o sentido atribuído à expressão,
mas seria suficiente o uso significativo da linguagem pelos recursos expressivos da
língua, de forma que as expressões situassem a interlocutora em um mesmo referencial,
no caso, a indicação demonstrativa do objeto: a manta impermabilizadora.
Uma análise nessa mesma direção pode ser feita em relação ao turno 15,
ocasião em que MT usa o dêitico lá, para se referir a um contexto do qual Ibb não
participou. Novamente, recorro às considerações de Coudry sobre os elementos dêiticos:
“são como coordenadas (...) que orientam a interpretação para certos aspectos das
condições de produção”, embora esses elementos “estabeleçam relações bem precisas
62
com um elemento do contexto (a pessoa que fala, o lugar de onde se fala, o momento
em que se fala) fica inteiramente dependente desse contexto (entendido enquanto
correspondência de referencial pelos interlocutores) a identificação da referência ou
mesmo da predicação a ser apreendida pela relação dêitica” (Idem, 1986/1988, p.50).
Essa reflexão permite explicar o fato de eu estar impossibilitada de entender
a que se referia o uso, por MT, do dêitico lá. Esse dêitico não permite que a cuidadora
acesse o seu sentido, por não haver uma correspondência de referentes entre os
interlocutores – Ibb não compartilha com MT a situação de enunciação em que esse
dêitico tinha um sentido, e, portanto, ela não identifica a sua referência quando, então,
ele é usado sem a função de dêitico. Daí a razão da pergunta da cuidadora no turno 16:
seu tio pôs isso lá aonde? Nesse momento de elaboração da resposta à pergunta da
cuidadora, a dificuldade do sujeito para selecionar palavras por meio das quais
conseguisse se expressar orienta a sequência dos turnos 19 a 26, que analisarei a partir
das palavras de Franchi:
Deve-se observar que a linguagem nem sempre (ou poucas vezes) se utiliza de recursos expressivos suficientes para identificação precisa dos objetos singulares referidos; nas expressões em geral se indicam os limites de uma certa ‘regionalidade’, a ser precisada com recurso à situação ou às regras implícitas do jogo de fatores no sistema de referências, pressuposto comum. (FRANCHI, 1977/1992, p. 35)
Passo agora à análise do turno 19 ao turno 26. MT mora em um bairro
próximo ao bairro Parque Floresta, chamado pelas pessoas que nele moram ou as quais
o frequentam somente como Floresta. Por se tratar de um bairro conhecido da
cuidadora, mas distante do contexto vivido por ela, Ibb demora a perceber no diálogo a
que MT se refere quando responde no turno 19 “no floresta”. Ibb se orienta pelo sentido
“cheio” de floresta e não se atém ao fato de MT usar a palavra como se fosse masculina,
“no (bairro) Floresta”, enunciado que traz a palavra bairro implícita. Por essa razão, Ibb
o questiona.
Segundo Franchi (1977/1992), o desconhecimento de Ibb do sentido
atribuído ao termo Floresta (como bairro) por MT, a remete aos limites de certa
regionalidade sugerida pela palavra floresta (como bosque, por exemplo), o que faz com
que o termo, no contexto e no gênero usado por MT, não faça sentido para ela, porque o
sentido usado por ele não estabelece relação com as expressões correspondentes ao
sistema de referências acionado pela cuidadora.
63
Esse cenário possibilita compreender o caráter indeterminado da linguagem
enquanto “um sistema aberto e criativo e, por isso, disponível ao entendimento das
necessidades e intenções das mais variadas condições de comunicação” (Ibdem, p.26).
MT, por não ter – naquele momento – os recursos expressivos suficientes para poder ser
compreendido pelo seu interlocutor, faz uso dos gestos como sugestão de um caminho
para se chegar a algum lugar, nesse caso, o bairro Parque Floresta. A partir da reflexão
de Franchi, é possível dizer que a linguagem, como um sistema aberto e criativo,
permite que os gestos possibilitem o acesso de Ibb ao sentido pretendido por MT ao
termo floresta, quando então, os interlocutores podem compartilhar o mesmo sentido. É
importante ressaltar que, o uso dos gestos junto aos elementos dêiticos como
possibilidade da construção de sentidos entre os interlocutores Ibb e MT, também se fez
presente em turnos anteriores.
O caráter indeterminado da linguagem enquanto sistema aberto e criativo
permite, ainda, que pensemos acerca da ambiguidade do termo floresta usado na
interlocução entre MT e Ibb, com relação ao conceito de contrabandeio das expressões
abordado por Franchi (1977/1992). Para o autor, a criatividade como uma possibilidade
da linguagem, permite o contrabandeio que ocorre com as expressões naturais da língua
por meio da analogia “a outro predicado alheio que não se contém no predicado básico
que delimita esses domínios” (Ibdem, p.33). Nessa direção, o termo floresta em seu
predicado básico – no sentido de bosque – permite o seu contrabandeio ao ser usado
como um predicado alheio - no sentido do nome do bairro a que MT se referia. Tal
sentido é construído pelos sujeitos na interlocução: “a relação interlocutiva se concretiza
no trabalho conjunto, compartilhado, dos seus sujeitos, através de operações com as
quais se determina, nos discursos, a semanticidade dos recursos expressivos utilizados”
(GERALDI, 1991/2003, p. 13).
Esses recursos expressivos, além de permitirem a construção de sentidos na
interlocução, são depositados pela fala (SAUSSURE, 1916/2006) – como recursos da
língua – na memória dos falantes. Sendo assim, a fala, através da interlocução, teria
possibilitado a MT a formação da sua memória como um tesouro (composto por signos)
de recursos que o possibilitariam tornar público o seu pensamento – um processo
complexo que requer uma organização das palavras de forma “sintaticamente articulada
e inteligível para os outros” (VYGOTSKY, 1934/1993, p.184) e que pressupõe opções
64
na seleção/escolha dos termos (eixo paradigmático) a serem usados/combinados na
organização sintática da frase (eixo sintagmático) (JAKOBSON, 1954/1981).
A partir desta análise, é possível pensar que a formação de memória de MT
em relação ao uso da língua, no sentido proposto por Saussure (1916/2006), de fato,
dificulta a seleção e a combinação dos termos necessários para elaborar os seus
enunciados diante do que fala ou responde. Como se pode observar, “Conversando na
praça do Ciclo Básico” é um dado que dá visibilidade a um sujeito com dificuldades
importantes de construir e de compartilhar sentidos com seu interlocutor e com o
mundo. São dificuldades, possivelmente, associadas às poucas oportunidades de
interlocuções que vivenciou ao longo de sua história e que o impossibilitaram de se
colocar como sujeito em suas relações frente à alteridade marcada pelo outro. Nesse
contexto, o trabalho assumido com MT foi norteado pela fala, implicado também na
ampliação de seu sistema de referências, como categorias que possibilitam a construção
de sentidos aos recursos expressivos no discurso, modificando sua amplitude e
constituindo a variedade e a diferenciação do sistema de referências em que a
linguagem se torna significativa (FRANCHI, 1977/1992).
Finalizando esta análise, recupero brevemente os recortes dos turnos 10, 11
e 12, para mostrar como é feito o trabalho quanto à retomada da fala de MT. Os
recursos expressivos dos quais faço uso quase sempre põem em questão a relação de
sentido ou a relação gramatical, para, então, provocar em MT outra forma de dizer,
outra forma de organização sintática, ancoradas em um repertório sempre em expansão,
que mobiliza outras operações de construção de sentido.
3.2. As primeiras incursões de MT na leitura e na escrita
A resistência apresentada por MT, na entrevista, diante de qualquer material
que representasse a leitura e a escrita (lápis, caneta, papel, livro, caderno), se estendeu
pelos primeiros meses de acompanhamento. Por esse motivo, as atividades voltadas
para a leitura e para a escrita foram inseridas ludicamente, através de jogos, desde o
início do acompanhamento longitudinal de MT. Assim, passo a apresentar um dado que
mostra as primeiras reflexões de MT quanto à imagem visual e à imagem sonora das
letras (Freud, 1891/1977). Entretanto, essa não foi a primeira vez que o jogo “Palavras
cruzadas”, com letras móveis de madeira do alfabeto do Português Brasileiro e um
tabuleiro quadriculado, foi usado por MT. Em uma sessão anterior, do dia 28/09/2010,
65
houve uma atividade utilizando esse mesmo jogo. Nesse dia, escrevemos e montamos
nossos nomes no tabuleiro com as letras móveis, quando MT demonstrou não ter
conhecimento sobre nenhuma das letras dispostas sobre a mesa. Para a ND, escrever o
próprio nome tem grande significado para a aprendizagem da escrita com sentido e da
leitura com compreensão.
Dado 4: data:09/11/2010 – “Jogando Palavras cruzadas”:
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
Como MT não sabia o nome das letras e não estabelecia relação entre elas,
priorizamos esse aprendizado durante o jogo à medida que montávamos as palavras no
tabuleiro. Então, retomávamos várias vezes o nome dessas letras, pedindo para que MT
as identificasse. Assim, na escrita da palavra carne, retomávamos o nome das letras: ce,
a, erre, ene, e, e fazíamos a correspondência/associações a outros nomes: M de Mateus,
R de rato, N de navio etc.
Coudry (2009a) reflete sobre a ação de soletrar, a partir do estudo de Freud
sobre as afasias (1891) e afirma que, apesar de parecer uma ação mais oral do que
escrita, envolve também as relações entre a escrita (coordenadas viso-espaciais e
temporais) e a fala (aspectos acústicos, motores e visuais). Essas relações implicam a
representação mental ou escrita da letra, a sua relação com o desenho da letra e o
conjunto de gestos articulatórios envolvidos para pronunciar o nome da letra, que não
são os mesmos que usamos para pronunciar o som que a letra adquire na palavra. Sendo
assim, ler a palavra carne é diferente de soletrá-la: [se], [a], [εRe], [ene], [e].
R I T A
T U D O
S M
B C A R N E
S O P A I
L A
A
66
Para Coudry (2010a), ainda a partir de Freud (1981/1977, p.18), “é preciso
apagar o nome da letra para escrever e ler a letra na palavra”, ou seja, é preciso não se
ater ao nome e à representação gráfica da letra para que se consiga atribuir um sentido à
leitura da palavra, sentido este que deve coincidir com o que está presente na fala da
criança e do outro, invocando o objeto ausente. Ou seja, é pela fala que é possível se
estabelecer a relação entre o som da palavra e seu significado, porque é pelo que já se
conhece (o que é carne) que se atribui um sentido ao que se está lendo (carne).
A fala, aprendida pela repetição na relação com o outro, possibilita que se
chegue a um sentido coincidente: da fala do sujeito e da fala do outro, portanto, é
possível que se chegue à língua. Ao contrário, se a essa palavra não fosse atribuído um
sentido, ela ficaria vazia de significado, o que daria a ela o estatuto somente de som e de
representação gráfica (BORDIN, 2008). Essa reflexão é aprofundada por Coudry
(2010b) a partir de Freud (1891/1977), estabelecendo, como visto no capítulo 2, uma
relação entre a possibilidade de saída do sujeito afásico dos sistemas da
língua/linguagem e a entrada da criança na linguagem. O que foi falado pelo outro se
torna o já ouvido pela criança, processo em que acontecem novas cadeias associativas
entre o que ela já sabe e um novo conhecimento. É pela linguagem, “falada e lembrada
(memória)” que o que é velho e novo na língua podem ser reconhecidos. O velho da
língua representa o que já é conhecido, e por isso “automatizado” e “irrefletido”. De
forma diferente, o novo aparece como “indeterminado” e representa o que ainda não se
conhece (COUDRY, 2009a; COUDRY, 2010b).
O trabalho para que MT estabelecesse relações entre as letras e seus nomes
se fazia importante porque, embora não se escrevam e nem se leiam os nomes das letras,
conhecê-los é um recurso fundamental para o aprendizado da leitura e da escrita. É
preciso saber o nome das letras para soletrar, um complexo exercício que corresponde a
decompor e combinar a palavra em sua menor unidade na escrita: a letra. Só
conseguimos soletrar porque temos a representação mental da palavra por inteiro,
atividade que envolve, além de conhecer a escrita da palavra, “conhecer o nome das
letras que a compõe, falar ordenadamente o nome das letras (...), conhecer o traçado de
cada letra que corresponde a cada nome e saber o conjunto de gestos articulatórios que
representam o nome das letras” (GOMES et al., 2010, p.268).
67
As letras, por terem nomes diferentes, permitem que as usemos com
autonomia, possibilitando esse uso sem vinculação a um registro gráfico para
indicarmos a qual letra está sendo referida. Por exemplo, é possível corrigirmos a escrita
de uma palavra que tenhamos nos enganado quanto à sua ortografia somente pela
soletração dessa palavra por outra pessoa, não sendo necessária, portanto, a visualização
do desenho das letras para sabermos a quais letras essa outra pessoa se refere.
Essa atividade possibilitou analisar com MT a questão envolvendo o som
que a letra adquire conforme sua posição na palavra e na sílaba. Assim, quando
escrevermos a palavra rua a partir da letra r encontrada no meio da palavra carne,
retomamos a questão da diferença de som do /r/ na posição de coda da sílaba, que é
produzida em nossa região como uma consoante retroflexa alveolar vozeada (como em
/car/ de carne) e o r na posição de início da palavra, que, por sua vez, é produzida como
uma vibrante alveolar vozeada (como em rua).
De tal modo, nessa etapa do trabalho, através do jogo Palavras Cruzadas,
buscamos levar MT a vivenciar atividades com a escrita que favorecessem sua
percepção quanto à estabilidade/repetição do sistema de escrita e a recursividade nele
existente, relativa às suas possibilidades de combinação para formar unidades de sentido
– a palavra (FREUD, 1891/1977; VYGOSTKY, 1934/1993).
Ainda com relação ao nome e som da letra na palavra, na situação do jogo
“Palavras Cruzadas”, tentamos mostrar que somente em alguns momentos há
coincidência entre eles. Ou seja, a letra p na palavra sopa não tem som de [pe], mas o de
[pa], porque se encontra na mesma sílaba, ao lado da letra a. O mesmo ocorre com a
sílaba (so) em que a letra o se une à letra s e não ao seu nome, dito como [εse]. Esses
exemplos evidenciam a diferença existente entre o nome da letra e o som que ela
adquire na palavra. Entretanto, a semelhança muitas vezes existente entre o nome da
letra e o som que ela tem na palavra pode causar equívocos na escrita/leitura, como
apresentado no Dado 5, que se deu seis meses após o início do acompanhamento de
MT.
68
Dado 5: 29/03/2011 – “Palavras cruzadas na revista Coquetel”.
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
A escrita de palavras cruzadas encontradas em revistas como “Coquetel”,
destinada ao público infantil/jovem, foi usada como atividade com MT. O propósito de
tal atividade envolvendo a escrita e a leitura foi o de incentivá-lo a procurar, por sua
própria vontade, por atividades como essas que são mais condizentes com a sua idade, o
que, também ampliaria o seu processo de aprendizado nesses processos. Além disso,
fazer palavras cruzadas pode ser um recurso interessante a ser usado em determinado
momento do processo de aquisição da leitura e da escrita, porque as instruções para
preencher os espaços destinados às letras orientam a própria escrita no sentido de
antecipar, por exemplo, quantas letras tem a palavra.
A imagem do Dado 5 mostra a escrita da palavra gema. MT, após escrever a
palavra junto com a cuidadora, volta ao registro para conferir a sua escrita. Ele aponta
com o dedo a letra g e lê (ge), e, em seguida, aponta a letra e, e lê (ma). A letra g, por ter
o seu nome coincidente ao som da sílaba a ser escrita [�e] faz com que MT pense que a
sílaba já está escrita somente pela representação da letra g. Por isso, a letra seguinte da
palavra (e) é lida como [ma], momento em que há a intervenção da cuidadora para que
ele perceba que para escrever a sílaba (ge) seria preciso não somente a letra g, como
também a letra e.
B G
G A V E T A
N M
D A
E D
I L E Ã O
R D S
R A D I O T
R
L U V A
69
Diante de atividades desse tipo, inicialmente MT se mostrava muito confuso
e tenso e, posteriormente, ao longo da atividade e do acompanhamento, demonstrava
maior conforto e mais tranquilidade, o que se deve à familiaridade que foi construindo,
no ritmo dele, com as regras do sistema de escrita que passam invariavelmente pelo
conhecimento das letras. Entretanto, essa familiaridade com as letras precisa se tornar
memória, o que envolve um complexo funcionamento do sistema cerebral da criança/do
jovem.
Para Freud (1891/1977), como vimos, aprendemos a falar associando a
imagem sonora da palavra à impressão da sua inervação nos órgãos da linguagem, ou
seja, à sua imagem cinestésica43. Para ao autor, a repetição é uma possibilidade de
retorno do que foi associado pelos registros psíquicos e neurológicos do sujeito, ou seja,
uma possibilidade de memória. Com o intuito de favorecer a repetição/memória da
relação som/letra, realizei, entre muitas outras, a atividade do Dado 6 com MT.
Dado 6: 18/09/2011 – “Caderno de figuras”
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
BORBOLETA, BALEIA, BOCA, BARALHO, BATOM, BONÉ, BANANA O “Caderno de Figuras” é um caderno de desenho em que eu e MT
marcamos, em cada folha, as letras em ordem alfabética. Recortamos várias figuras de
revistas e as colamos nas folhas de letras correspondentes à inicial do nome da figura.
As figuras recortadas foram selecionadas por MT e a condição para isso é a de que ele a
43 Freud (1891/1977, p.87) usa a expressão “imagem cinestésica” para se referir às impressões sensoriais precedentes dos órgãos da linguagem.
CAMISA, CENOURA, COPO, CEBOLA, CINTO, CHINELO
70
conhecesse e soubesse seu nome, para assegurar a associação entre a imagem que
representa o objeto e sua imagem sonora – palavra, para Freud.
A partir dessa associação (mais antiga e mais automatizada), outras
seriam favorecidas, nas palavras de Freud, em um processo de superassociação: à figura
do objeto e ao seu nome se somaria o desenho das letras (imagem visual/representação
gráfica) e sua imagem sonora (quanto ao nome da letra e ao som da letra na palavra).
Configurou-se como um trabalho realizado, então, com as duas impressões sonoras e
motoras da letra, relativas ao nome da letra, ao soletrar, e ao som da letra na palavra,
conforme Freud. É importante ressaltar, ainda, que nesse momento inicial do processo
de alfabetização de MT, era preciso a mediação do interlocutor para que ele conseguisse
escrever a palavra.
Os momentos iniciais no processo de aquisição da escrita vividos pela
criança, mais precisamente com relação à sílaba, são objeto de reflexão de Abaurre
(2001), quanto ao lugar central de organização dos segmentos que a sílaba ocupa para as
teorias fonológicas atuais. Composta por um núcleo que deve obrigatoriamente ser
preenchido por uma vogal, a sílaba pode também ser preenchida por uma ou por mais
consoantes na posição de ataque e na posição de coda (que, no português brasileiro,
mais frequentemente é preenchida por uma consoante). Para a autora, é preciso que a
criança analise a estrutura interna das sílabas para optar pelo número e posição das
letras na sílaba, o que se torna mais complicado com relação às sílabas complexas
diante da hierarquia interna da sílaba (quando primeiro acontece a construção das
estruturas CV e V e posteriormente CVC e CCVC).
Como desdobramento da reflexão realizada por Abaurre (2001), na escrita
do nome das figuras, primeiramente a palavra era falada em voz alta, silabando, a fim de
que MT percebesse a segmentação da palavra em unidades que correspondem às
sílabas. Em seguida, cada sílaba era escrita, uma a uma, de forma que na análise da
sílaba fosse estabelecida a relação entre seu som e as letras que a constituem.
Na oralização, a vogal é a letra de sonoridade mais marcante. A associação
da imagem sonora do nome de uma vogal ao seu som na palavra é facilitada por terem
alguma coincidência44. Sendo assim, o início da escrita com MT, nesse momento, partia
44 Em relação às vogais, embora haja coincidência entre o som da letra na palavra e o seu nome, há também variações nessa relação. Assim, no caso da letra e, o seu nome pode não coincidir com o seu som na palavra caso se refira ao som é, por exemplo.
71
da percepção da vogal, com a qual eram feitas as associações posteriores. É o que se
pode perceber na escrita da palavra camisa, quando, ao ser escrita a sílaba (ca), a letra a
era facilmente percebida. O passo seguinte seria que MT associasse a imagem sonora da
letra a à sua imagem visual (aspecto gráfico) e percebesse que a letra c precisava ser
escrita antes da letra a, para a formação da sílaba (ca), o que constitui uma estrutura de
sílaba CV (consoante/vogal) - a mais comum no português brasileiro. Com esse
objetivo, a cuidadora dizia várias palavras que se iniciam com a letra c, fazendo
referência às palavras já usadas em outros momentos do acompanhamento e que se
iniciam com essa mesma letra, como cavalo, casa, coruja. MT, então, chegava à
representação da letra c usada para a escrita da sílaba (ca) referente à palavra camisa.
A proposta de atividades como essas, que promovem a repetição da análise
envolvida no ato de escrever, é contexto favorável para a ocorrência de memória,
possibilitada, segundo Freud, pelo encurtamento funcional, ou seja, quando o esquema
neuronal (relação do fisiológico com o psíquico) não precisa mais “percorrer todo o
caminho neuropsíquico para realizar uma atividade”, o que torna o seu percurso
facilitado (COUDRY e BORDIN, 2012).
Vimos, com Freud (1891/1977), a importância das superassociações que se
dão entre o que é da ordem da fala e o que é da ordem da escrita. Vygotsky (1934/1993)
é outro autor que focaliza essa relação em seus estudos. Assim, as atividades propostas
para MT na sequência de seu acompanhamento longitudinal também passaram a
contemplar essa referida relação.
A reflexão de Vygotsky considerando a escrita e a leitura como
desdobramentos da relação entre a fala e o pensamento, referidos por ele como
pensamento verbal e por rascunho mental, subsidiou a elaboração do trabalho com MT
e desencadeou a escrita conjunta do texto “Como trocar um pneu”, apresentado
posteriormente.
A escrita conjunta desse texto dá visibilidade à formação do pensamento
como um desdobramento dos planos interpsíquico e intrapsíquico, dos quais Vygotsky
se utiliza para explicar a aprendizagem. As estruturas da fala dominadas pela criança,
adquiridas em sua experiência social, internalizam-se e “tornam-se estruturas básicas do
pensamento”: “o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, ou
72
seja, pelos instrumentos linguísticos do pensamento e pela experiência sócio–cultural da
criança” (Ibdem, p.62).
O trabalho realizado com MT ao longo de seu acompanhamento
longitudinal, conforme já mencionado, começa pela instauração de espaços de
interlocução, então, retomo Vygotsky para explicitar que os processos de fala e de
linguagem em relação aos processos de aprendizagem que MT vivencia, em muitos
momentos, nos pareceram semelhantes ao dos experimentados por crianças pequenas no
trajeto de aquisição da linguagem que cumprem. Minha intenção, abordando os estudos
vygotskyanos, é identificar que, além dos processos de interlocução que MT agora
mantém, a escrita é um espaço privilegiado para ampliar suas possibilidades de
interlocução e, por outro lado, o leva a ter um contato mais íntimo com análise dos
diferentes sistemas que compõem a fala.
A palavra, constituída por um significado, tem sua formação na
compreensão de um conceito ou em uma generalização, considerados por Vygotsky
como atos do pensamento. Desta forma, a formação de um significado é um fenômeno
do pensamento construído a partir das vivências do sujeito:
O significado das palavras é um fenômeno do pensamento apenas na medida em que o pensamento ganha corpo por meio da fala, e só é um fenômeno da fala na medida em que esta é ligada ao pensamento, sendo iluminada por ele. É um fenômeno do pensamento verbal, ou da fala significativa – uma união da palavra e do pensamento (VYGOTSKY, 1934/1993, p.151).
A internalização das estruturas da fala para a formação do pensamento
verbal acontece mediante mudanças estruturais e funcionais no pensamento. Essas
mudanças são explicadas por Vygotsky a partir de três momentos diferenciados do
processo de formação do pensamento verbal: a constituição interna e externa da
formação dos significados das palavras, a relação entre os aspectos semânticos e os
aspectos gramaticais na fala e, por fim, a elaboração da fala interna e a sua relação com
a aprendizagem da escrita.
Sobre a formação dos significados das palavras, Vygotsky (1934/1993) que
não os considera conceitos estáticos e definidos. Os significados constituem relações
frágeis, inconstantes e dinâmicas, que se modificam e que se sofisticam quanto maior a
inserção do sujeito na linguagem. O autor define um significado de uma palavra como
“um conceito ou uma generalização”, um “critério da palavra”, um “componente
73
indispensável” de modo que, sem ele, a palavra se tornaria um “som vazio” (Ibdem,
p.150). Esses significados, por serem conceitos dinâmicos, passam por transformações,
inerentes ao sujeito, antes de serem expressos em palavras. Para explicar esse
movimento o qual os significados percorrem até se tornarem palavra, o autor,
didaticamente, divide a fala em dois planos distintos. No primeiro plano, o aspecto
semântico e significativo do interior da fala, e, no segundo plano, o aspecto fonético
exterior à fala. Embora estes dois planos da fala formem uma só unidade, para o autor,
eles não caminham juntos quanto à aquisição do repertório linguístico da criança
(Ibdem, p.157).
Com relação ao aspecto exterior da fala, nas primeiras tentativas de
oralização da criança, uma única palavra é suficiente para expressar seu pensamento,
que, neste momento, se assemelha a um “todo homogêneo”. À medida que seu
pensamento se torna mais completo e mais definido, essa palavra não é mais suficiente
para expressá-lo. Neste momento, a criança precisa de mais palavras para dizer o que
pensa e passa a relacionar essas palavras entre si, elaborando primeiramente “frases
simples e depois complexas”. Aos poucos, consegue uma estruturação da sua oralidade
mais coerente, quando o seu pensamento pode ser expresso com mais adequação
sintática. Quanto ao plano interno da fala - aspecto semântico e significativo -, o
pensamento da criança, primeiramente, se constitui por um “complexo significativo”,
quando “uma palavra corresponde a uma frase completa”. No decorrer desse processo, o
pensamento se torna mais específico e diferenciado e acontece uma maior “separação
das unidades semânticas” relativas aos significados distintos das palavras. (Ibdem,
p.157 e 158).
Esse pensamento da criança, agora mais específico e diferenciado, permite
que os seus enunciados possam ser mais completos. Para Vygotsky (1934/1993), os
enunciados não surgem “plenamente formados”. O autor explica essa relação da
formação dos enunciados e da diferenciação semântica das palavras a partir da
“interdependência dos aspectos semânticos e gramaticais da linguagem” quando reflete
acerca da união entre a forma verbal e o significado na “consciência linguística
primitiva” da criança. Para a criança pequena, o “nome dos objetos” 45 está muito
45 Nesse momento, o uso das palavras pela criança coincide com o dos adultos em sua referência objetiva, mas não em seu significado (VYGOTSKY, 1934/1993, p. 162).
74
atrelado aos seus “atributos” 46: “a palavra é parte integrante do objeto que denota”. Aos
poucos, acontece a separação entre eles, quando a criança passa a distinguir referente de
significado, semântica de fonética (Ibdem, p.160). Neste momento, a elaboração dos
enunciados se torna mais flexível e ela já é “capaz de formular seu próprio pensamento
e compreender a fala dos outros” (Ibdem, p.162): “a capacidade que tem uma criança de
comunicar-se por meio da linguagem relaciona-se diretamente com a diferenciação dos
significados das palavras na sua fala e na sua consciência” (Ibdem, p. 161).
Vimos que a dificuldade de MT em lidar com a diferenciação dos
significados das palavras, dada a pouca diversidade de seus recursos expressivos,
justifica a sua procura por outras formas de se expressar, especialmente pelo uso de
expressões que não favorecem o compartilhar de um sentido comum entre os
interlocutores, conforme a análise apresentada em relação ao Dado 3. Esta reflexão
permite uma aproximação entre as dificuldades enfrentadas por MT para se expressar à
insuficiente diferenciação do seu pensamento em unidades semânticas, o que se
relaciona à organização sintática de sua fala, e tem, em contrapartida, o excesso de
indeterminação semântica.
Em função do que acabo de expor, passo a apresentar em seguida o Dado 7,
um diálogo entre MT e mim, que aconteceu enquanto simulávamos uma troca de pneu
usando os equipamentos do meu carro, que habitualmente fica estacionado próximo ao
CCazinho. Essa dinâmica foi realizada como parte da proposta de escrita do texto
“Como Trocar Pneu”, momento em que minha intervenção nos diálogos com MT teve
por objetivo proporcionar a retomada, por ele, de suas falas, buscando uma maior
adequação sintática, a ampliação do léxico e a busca de um refinamento nos
conceitos/significados usados.
46 É reveladora da estreita aproximação que a criança faz entre o nome dos objetos e seus atributos à situação vivenciada em minha sala de aula na EI: após conversarmos sobre o ornitorrinco – um animal de características físicas exóticas – uma criança me perguntou se o ornitorrinco era esquisito, ao que respondi que sim. Em seguida, questionei-a sobre por que ele era esquisito, e ela me respondeu que ele era esquisito porque ele é o ornitorrinco.
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Dado 7: 12/06/2012 – “Trocando o pneu”
Turno Sigla do Locutor Transcrição Observações sobre o
enunciado verbal
Observações sobre o enunciado não-
verbal
1 Ibb Então, qual a primeira coisa que a gente faz depois que parou o carro e ligou o pisca alerta?
2 MT Triângulo Tentando montar o triângulo de segurança do carro
3 Ibb O que é que tem o triângulo?
4 MT Põe o triângulo
5 Ibb Põe o triângulo aonde?
6 MT Atrás do carro
7 Ibb No vidro de trás? Tom de ironia Fala com o intuito de provocar o detalhamento na resposta de MT
8 MT Não, longe do carro
9 Ibb Isso, a mais ou menos uns 5 metros, certo?
Coloca o triângulo montado no chão
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
Analiso, então, este dado, a partir da reflexão de Vygotsky, que permite
inferir que MT, ao dizer somente a palavra triângulo - no turno 2 -, acredita que a sua
resposta tenha sido suficiente para expressar o seu pensamento, um pensamento que se
assemelha a um “todo homogêneo” ou a um “complexo significativo”. Nesse contexto,
é necessária a intervenção da cuidadora para que ele fosse desdobrado em palavras e
organizado sintaticamente, intervenções que tinham o objetivo de possibilitar que MT
percebesse que uma palavra não corresponde a uma frase completa e, assim, ajudá-lo na
reformulação de seus enunciados que não surgem plenamente formados.
Vygotsky (1934/1993) reformula o conceito de “fala interior”, a partir do
conceito de “fala egocêntrica”, usado inicialmente por Piaget. Para Piaget, a fala
egocêntrica não exerce nenhuma função no pensamento da criança, limitando-se a
acompanhá-lo. Essa fala se estabeleceria entre um “autismo primitivo” e a “socialização
gradual” do seu pensamento. Ela diminui com o crescimento da criança, juntamente
com a redução do egocentrismo no seu pensamento e em sua fala. Já para Vygotsky, a
constituição do pensamento pela fala percorre o mesmo caminho da formação das
76
funções psicológicas superiores: a partir da atividade social, situada no plano
interpsíquico da aprendizagem, em que se dá a relação entre sujeitos, a fala,
anteriormente social, se individualiza através da fala egocêntrica. Esse momento
representa a transição da função interpsíquica para a intrapsíquica da linguagem, quando
acontece a internalização da fala e a formação do pensamento.
Sendo assim, a fala egocêntrica transforma-se em fala interior e se
assemelha a ela quanto à sua função: “não se limita a acompanhar a atividade da
criança, mas está a serviço da orientação mental, da compreensão consciente; ajuda a
superar as dificuldades; é uma fala para si mesmo, íntima e convenientemente
relacionada com o pensamento da criança” (Idem, 1934/1993, p.166). Com a imersão
cada vez maior da criança na linguagem, a fala social se consolida, e a criança passa a
diferenciá-la da fala egocêntrica. A fala egocêntrica, que tem sua estrutura difícil de ser
socialmente compreendida, se torna cada vez mais isolada, independente e autônoma.
O silenciamento característico da fala interior lhe confere uma sintaxe
especial. Parecendo ser desconexa e incompleta ao ser comparada à fala exterior, a fala
interna demonstra uma regularidade que tende “para uma forma de abreviação
específica, em que se omite o sujeito de uma frase e todas as palavras com ele
relacionadas, enquanto se mantém o predicado” (Idem, 1934/1993, p. 172).
Considerando que “a fala interior é para si mesmo; e a fala exterior é para os outros”
(Ibdem, p.164), para o autor, a fala interna “não é de forma alguma fala, mas antes uma
atividade intelectual e afetivo-volitiva, uma vez que inclui os motivos da fala e o
pensamento expresso em palavras” (Ibdem, p.163). Nesse sentido, ela se constitui como
um plano do pensamento verbal que só pode ser compreendido realmente através da
análise de outro plano: o pensamento. O autor ainda afirma que o pensamento tem sua
própria estrutura e dispõe de um fluxo que não é acompanhado por uma manifestação
simultânea da fala. Dessa forma, fala e pensamento são unidades separadas. Não há
correspondência rígida entre pensamento e fala, o que permite que, por trás das
palavras, exista um subtexto, um pensamento oculto, já que não há um equivalente
imediato em palavras.
As reflexões de Vygotsky acerca da fala interna têm relevância para esta
pesquisa a partir do conceito de “rascunho mental” desenvolvido por ele, ao afirmar que
a fala, mas principalmente a escrita, requerem um planejamento - o que acontece pela
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fala interna. Por isso, segundo Vygotsky, a sintaxe da escrita se utiliza de um número
muito maior de palavras do que a da fala, o que justifica a sua maior complexidade com
relação à organização sintática.
A reflexão do autor quanto à importância do rascunho mental para a escrita
e para a fala leva a perceber a complexidade envolvida no eixo fala, leitura e escrita
assumida nesta pesquisa. Nesse sentido, o trabalho com a diferenciação dos significados
para que MT conseguisse maior elaboração de sua fala (e de seus enunciados), a partir
da reflexão de Vygotsky, consistia na principal preocupação no encaminhamento do seu
acompanhamento.
A fala pública, considerada como um desdobramento da fala interna,
convoca a organização do pensamento e o pensamento, por sua vez, permite o
planejamento do que se vai escrever. De acordo com Vygotsky (1934/1993), o
pensamento verbal é gerado pela motivação, pelos interesses e emoções. Por trás de
cada pensamento há uma “tendência afetivo-volitiva” que, quando considerada, permite
a compreensão plena e verdadeira do pensamento do outro (Ibdem, p.187). Essa
reflexão orientou a escolha do tema da proposta que seria realizada com MT.
MT sempre teve muito interesse por carros, motos e mal pode esperar pelo
momento em que poderá dirigir. Conseguir a carteira de habilitação é um dos incentivos
para a superação das suas dificuldades no aprendizado da leitura e da escrita. Esse
desejo é fruto de uma experiência muito próxima de MT, pois, além de gostar de dirigir,
seu pai47 é caminhoneiro e o contexto que envolve a imagem do “caminhão” (mecânica,
limpeza, manutenção), lhe desperta interesse.
Na simulação da troca do pneu experienciada pela fala, descrevemos e
narramos oralmente como manipular e como usar cada equipamento envolvido na
operação, a partir das informações que eu e ele tínhamos sobre o assunto: como montar
o triângulo de segurança, a necessidade de colocá-lo a uma distância do carro que dê
certa segurança ao procedimento da troca do pneu (com relação a um suposto carro que
venha na direção do carro em manutenção); como girar a manivela do macaco (pois o
47 Nesse momento, como preparação para o encontro que iria acontecer na semana seguinte, pedi a MT que conversasse com seu pai para que ele lhe mostrasse como se troca um pneu de caminhão. As informações que ele traria poderiam ampliar a nossa discussão sobre a troca do pneu. No entanto, o pai de MT não deu importância a esse pedido que lhe havia sido feito e, desta forma, não conversou com MT sobre o assunto. Já foi discutido anteriormente, a partir de Lahire (1993; 1995/2008) e da ND, a importância do sentido atribuído pela família às vivências e aprendizagens de crianças/jovens.
78
seu encaixe é de difícil manipulação, sendo preciso liberar a manivela para poder usar o
macaco) e onde ele deveria ser encaixado no carro; como proceder com a chave de roda
(no caso de não se ter força para destravar o parafuso é preciso subir sobre a chave de
roda para conseguir girá-lo, o que deve ser feito somente o suficiente para destravar o
parafuso a fim de não desencaixar o pneu antes de elevar o carro com o macaco); quais
procedimentos realizar primeiro; quais as consequências de realizá-los em momento
errado (como por exemplo, girar os parafusos do pneu depois do carro suspenso com o
macaco, pode fazer com que o carro sofra uma queda).
Enquanto imaginávamos como se daria a troca do pneu, os equipamentos
foram sendo retirados do porta-malas do carro e colocados na calçada. Nesse momento,
contamos até com a atenção da vigilância do campus, quando um vigilante de moto,
vendo a cena da troca do pneu, parou e nos perguntou se estava tudo bem e se
precisávamos de ajuda.
Nomeamos e separamos os equipamentos envolvidos na operação, momento
em que verifiquei qual era o léxico e os significados que já eram do domínio de MT, o
que me permitiu orientar o trabalho para a formulação dos enunciados.
Para proporcionar mais um momento de reflexão e pensamento a partir
da fala, elaboramos uma lista dos nomes dos equipamentos envolvidos na operação
(Dado 8), quando retomamos oralmente o que já havíamos discutido sobre cada etapa da
operação da troca do pneu.
Dado 8: 12/06/2012 – “Preparação para a escrita do texto: Como trocar pneu”.
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
COMO TROCAR PNEU
PNEU TRIÂNGULO MACACO CHAVE DE RODA SETA PISCA ALERTA FREIO DE MÃO
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A escrita das palavras desta lista aconteceu pela mediação da linguagem
através da cuidadora que, palavra por palavra, orientou a sua escrita. Nesse momento,
MT já apresentava mais autonomia para estabelecer a relação entre a percepção do som
da letra na palavra e a letra que deveria usar. Dessa forma, ao escrevermos a primeira
sílaba da palavra macaco, MT já associava as letras m e a. No entanto, ainda era preciso
orientá-lo na escrita da palavra quanto à ordenação das sílabas e também ajudá-lo a
perceber quando deixava de colocar uma letra na palavra.
A continuidade do trabalho aconteceu com a escrita do texto, momento em
que foi orientado para a transição da variedade de fala de MT para a variedade padrão
(conforme já abordado no primeiro capítulo), representada pela norma padrão da língua.
Dado 9: 16/08/2012 – “Escrita do texto: Como trocar pneu”
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
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1- DÊ SETA E ENCOSTE O CARRO 2- LIGUE O PISCA-ALERTA 3- COLOQUE O TRIÂNGULO (A MAIS OU MENOS) 5 METROS (DE DISTÂNCIA) LONGE DO CARRO 4- SEPARE O ESTEPE, A CHAVE DE RODA E O MACACO E DEIXE AO LADO DO CARRO 5- SOLTE OS PARAFUSOS E LEVANTE O CARRO COM O MACACO. TIRE OS PARAFUSOS, TIRE O PNEU E COLOQUE O ESTEPE 6- COLOQUE OS PARAFUSOS 7- ABAIXE O CARRO E APERTE BEM OS PARAFUSOS 8-GUARDE O MACACO E A CHAVE DE RODA 9-POR ÚLTIMO GUARDE O TRIÂNGULO
Em mais quatro encontros, finalizamos o texto. No entanto, era preciso
que o digitássemos no computador para que fosse publicado na Revista do CCazinho48,
momento em que algumas reelaborações foram realizadas.
Dado 10: 27/11/201249 - “Digitação do texto: Como trocar pneu”
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
O trabalho com a digitação foi muito importante diante de algumas
observações que foram norteadoras da elaboração das etapas seguintes do
48 Como finalização do trabalho dos encontros coletivos do CCazinho do ano de 2012, foi realizada uma compilação dos textos escritos pelos participantes do grupo que seriam publicados na Revista do CCazinho. Em meio à realização dessa atividade houve, nos encontros coletivos do CCazinho, como atividade de escrita para o grupo, a proposta de se fazer uma revista. Essa revista tem por finalidade a socialização e circulação das produções textuais das crianças/jovens do CCazinho tanto dos acompanhamentos individuais quanto de grupo. 49 O distanciamento de mais de 3 meses entre o início da escrita deste texto e a sua finalização aconteceu pelas faltas consecutivas de MT ao CCazinho (por diferentes motivos).
COMO TROCAR PNEU 1- DÊ SETA E ENCOSTE O CARRO 2- LIGUE O PISCA-ALERTA 3- COLOQUE O TRIÂNGULO A MAIS OU MENOS 5 METROS DE DISTÂNCIA DO CARRO 4- SEPARE O ESTEPE, A CHAVE DE RODA E O MACACO E DEIXE AO LADO DO CARRO 5- SOLTE OS PARAFUSOS E LEVANTE O CARRO COM O MACACO. TIRE OS PARAFUSOS, TIRE O PNEU E COLOQUE O ESTEPE 6- COLOQUE OS PARAFUSOS 7- ABAIXE O CARRO E APERTE BEM OS PARAFUSOS 8-GUARDE O MACACO, A CHAVE DE RODA E O PNEU 9-POR ÚLTIMO GUARDE O TRIÂNGULO
MT
81
acompanhamento longitudinal de MT: embora já tivéssemos realizado outras atividades
usando o computador, foi nesse momento que observei que o conhecimento de MT
sobre os procedimentos e estratégias de uso desse equipamento havia sido ampliado, de
modo que valorizar tal conhecimento passou a ser o objetivo dos nossos encontros.
Dessa forma, era ele quem ligava o equipamento, localizava os arquivos, salvava-os no
pen-drive (que ele mesmo providenciou, emprestado de uma prima), além de usar de
forma autônoma os recursos do Word para a escrita do texto. O uso e a autonomia de
MT em relação à tecnologia foram elementos que muito contribuíram para a
continuidade do seu processo de aprendizagem de leitura e de escrita que, nesse
momento, depois de tantas dificuldades, se mostrava fortalecido. Assim, a sua
autonomia em lidar com o computador tinha o pen drive como um elemento importante.
Dessa forma, MT, ao chegar ao CCazinho, antes do início dos encontros, usava o seu
pen drive para mostrar informações que eram do interesse dele e dos amigos, como
imagens de carros e de motos, o que também acontecia na escola quando lhe era
permitido o acesso ao computador.
Retomo brevemente que, diante de suas complicadas relações psicoafetivas
envolvendo a escola e a família, neste ano de 2012, houve uma nova conformação de
seus relacionamentos escolares e sociais. MT começou a ter amigos, relações, agora
motivadas também pela sua nova relação com a leitura e com a escrita e com o uso de
computador. No entanto, mesmo sabendo do uso do pen drive em nossos encontros e da
sua importância para MT, BT, o devolveu à prima de MT sem a preocupação de me
avisar antecipadamente (para que eu providenciasse outro), ou de acordar com MT a
compra de outro. Ela justificou para mim que compraria outro pen drive, o que não
aconteceu. Esse episódio aparentemente sem importância é revelador das situações
vividas por MT quanto ao investimento afetivo que faz em seu processo de
aprendizagem que continua não sendo valorizado pela família. É, portanto, um episódio
que, a partir das considerações de Lahire (1993; 1995/2008) sobre a importância da
criança não vivenciar sozinha as suas experiências, evidencia também as contradições
das atitudes de BT que, nesse momento, por algum motivo, se mostra desrespeitosa em
relação às conquistas de MT, pelas quais tanto lutou.
Finalizando este capítulo, apresento um conjunto de dados falados e
escritos, ocorridos em virtude do incêndio na biblioteca do IEL, em março de 2013. MT
82
conhece essa biblioteca, já estivemos em suas dependências algumas vezes para realizar
atividades de leitura e de escrita. Por ocorrência do acidente, ele me perguntou o que
havia causado o incêndio, o que havia sido incendiado etc., interesse que norteou o
planejamento dos encontros subsequentes.
Para orientar e para enriquecer nossa discussão quanto ao episódio do
incêndio, selecionei alguns textos, como reportagens de jornal e o e-mail enviado aos
alunos pelo responsável pela biblioteca do IEL, sobre os encaminhamentos e
andamentos da investigação sobre o incêndio. Como eram muitas as informações,
elaboramos em tópicos, como um esquema, uma síntese das informações relevantes
sobre o que havíamos lido. Esta atividade teve como objetivo que MT retomasse
oralmente os diversos aspectos abordados sobre o assunto. Nesse momento, não havia a
preocupação com a escrita (por isso fui eu quem escreveu o texto/esquema) e nem com
a ordenação desses assuntos (o que foi feito com a numeração das frases).
Dado 11: 02/04/2013 - “Incêndio no IEL: preparação para a escrita do texto”
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
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INCÊNDIO NO IEL
2- REDE ELÉTRICA DO COMPUTADOR 1- NO TÉRREO – NA SALA DA DIRETORIA, ÀS 5 DA MADRUGADA 5- PEGOU FOGO NOS LIVROS QUE ESTAVAM NA PARTE DA FRENTE DO PRÉDIO 6- VAI DAR PARA SUBSTITUIR OS LIVROS PERDIDOS 3- TERIA QUE TER ALARME DE INCÊNDIO, DETECTOR DE FUMAÇA, MANGUEIRA DE INCÊNDIO E SAÍDA DE EMERGÊNCIA 8- NA BOATE KISS, O COMBUSTÍVEL ERA O ISOPOR, E NO IEL ERAM OS LIVROS 7- OS ALUNOS DO IEL FIZERAM PROTESTO PARA ARRUMAREM LOGO A BIBLIOTECA 4- SE UM ALUNO ESTIVESSE COM FONE DE OUVIDO NO COMPUTADOR NA HORA DO INCÊNDIO, IRIA MORRER 9- BIBLIOTECA FUNCIONANDO PARA A BIBLIOTECA VOLTAR A FUNCIONAR, FORAM INSTALADAS DUAS PORTAS DE EMERGÊNCIA ANTI-PÂNICO E UMA ESCADA EXTERNA PARA EVACUAÇÃO RÁPIDA
Esse esquema com as informações sobre o que havíamos lido teria a função
de organizar o texto que escreveríamos em seguida, quando, através de um “rascunho
mental”, planejaríamos a sua escrita. Entretanto, em função da continuidade do trabalho
com MT quanto aos desdobramentos de sua fala em enunciados que permitissem ao
outro compreendê-lo, direcionei a atividade para este fim. Apresento, então, o Dado 12,
que mostra as minhas intervenções no processo de elaboração de fala de MT como um
“falar não somente de um saber prévio de recursos expressivos disponíveis, mas de
operações de construção de sentidos destas expressões no próprio momento da
interlocução” (GERALDI, 1991/2003, p.9).
Dado 12: 23/04/2013 – “Diálogo sobre o incêndio no IEL entre Ibb e MT”
Turno Sigla do
Locutor Transcrição50 Observações sobre o
enunciado verbal Observações sobre o enunciado não verbal
1 Ibb Então vai lá, conta pra
mim, é sobre o quê?
2 MT Um incêndio Olha para baixo e mexe constantemente o ombro para frente e para trás
3 Ibb Um incêndio...
4 MT No IEL Permanece olhando para baixo e mexendo constantemente o ombro para frente e para trás
5 Ibb No IEL. E aí, o que você sabe sobre esse incêndio? O que causou esse incêndio?
50 Cf. nota nº42.
84
6 MT É, a rede elétrica... Diminuindo a tessitura da frase
Levanta o olhar e continua mexendo constantemente o ombro para frente e para trás
7 Ibb Fala tudo!
8 MT A energia... Mexe na cadeira em que está sentado
9 Ibb A energia... da rede elétrica
10 MT O fio do computador.
11 Ibb Hã? O que aconteceu?
12 MT Pegou fogo Mexe na cadeira em que está sentado
13 Ibb Por quê? Pára de mexer! Deu um \ //
14 MT Curto Apoia a cabeça sobre a mão
15 Ibb Isso. Um curto circuito. Pegou fogo, e aí?
16 MT Na sala da diretoria Permanece com a cabeça apoiada sobre a mão
17 Ibb Isso. Pegou fogo na sala da diretoria... quando, que horas?
18 MT Ah, que horas eu não sei! Levantando a cabeça para falar
19 Ibb Às 5 da manhã?
20 MT Domingo Fala quase inaudível 21 Ibb Hã? Com a intenção de que ele
levantasse a sua cabeça
22 MT Domingo! 23 Ibb No domingo. E aí, como é
que foi?
24 MT Aí chamou o corpo de bombeiros... e \:
Abaixando a cabeça Sentado com o corpo solto sobre a cadeira
25 Ibb E? 26 MT Apagou o fogo. Mexe na orelha 27 Ibb Aí eles apagaram o fogo.
Quem que chamou o corpo de bombeiros?
28 MT Os... os [g]... Os guardas 29 Ibb Os guardas da \: Permanece mexendo na
orelha 30 MT Do IEL 31 Ibb Daqui da Unicamp, né?
Muito bem. E aí, o que o fogo fez, como é que foi o estrago?
32 MT Queimou tudo. 33 Ibb Então me fala, você sabe
bastante coisa sobre isso
34 MT Queimou... Queimou livros... computador... umas pastas
Tom de enumeração
Ibb E \ :
85
5
6 MT Só
7 Ibb Mas foi no IEL inteiro?
38 MT Não, na sala da diretoria e lá na frente.
39 Ibb Então foi só numa parte do IEL
40 MT No térreo 41 Ibb No térreo, muito bem. E
quanto de livro queimou, como é que é?
42 MT De livro eu não sei não Apoia a cabeça sobre a mão
43 Ibb O que precisa ter no IEL... 44 MT Na biblioteca? Permanece com a cabeça
apoiada sobre a mão 45 Ibb Na biblioteca 46 MT Entra + saída de
emergência Fala a palavra entrada até a 2ª sílaba, quando inicia a palavra saída
47 Ibb Hum... 48 MT Sa \: \ // alarme Fala a 1ª sílaba da palavra
saída, pára, e inicia a fala da palavra alarme
49 Ibb Hum, hum... 50 MT Detector de fumaça e
mangueira Olha o texto que
havíamos lido 51 Ibb Mangueira de incêndio,
né?
52 MT Só 53 Ibb E por que que no e-mail
que a gente leu ele fala da Boate Kiss51lá do... o que aconteceu, explica pra mim
54 MT As pessoa morreu Apoia a cabeça sobre a mão
55 Ibb As pessoas morreram 56 MT Intoxicadas 57 Ibb Na boate 58 Ibb Na boate, que fica? 59 Ibb Faz sinal
com a cabeça de que não sabe a resposta
60 MT No sul do Brasil... Ao mesmo tempo em que responde faz sinal de que não sabe com a cabeça
61 Ibb Sul do Brasil Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
51 Lemos um artigo escrito por um estudante, comparando as causas do incêndio acontecido na biblioteca do IEL na Unicamp com o acontecido na Boate Kiss, no sul de nosso país, acidente que ocorreu no mês anterior ao da biblioteca e sensibilizou todo o país pela morte de muitos jovens.
86
Minhas intervenções na fala de MT, as leituras e discussões dos textos sobre
o episódio do incêndio, possibilitaram a ampliação de seu sistema de referências, o que
pode ser observado através do uso que faz com sentido de novos recursos expressivos,
como os itens lexicais mais complexos: detector de fumaça e mangueira (turno 50), e
intoxicadas (turno 56). Resgato ainda, através desse dado, sua grande mudança com
relação à memória, imaginação, criatividade, atenção, regulação do próprio
comportamento (as chamadas Funções Psicológicas Superiores).
Chamo atenção, também, para o turno 46 do dado apresentado, como
representativo, nesse momento, da organização de pensamento de MT a partir da fala
reveladora da atividade linguística e das operações interiores realizadas pelo sujeito
(FRANCHI, 1977/1992): MT, querendo dizer a palavra saída, primeiramente pensa na
palavra entrada, chegando a dizer parte dessa palavra (entra), interrompendo sua fala e
dizendo em seguida, saída (para se referir à saída de emergência). Nesse episódio, é
possível observar a reorganização daquilo que MT queria expressar ao retomar sua
própria fala. Este aspecto da linguagem que permite que o sujeito remaneje o que seria
fixo e definitivo é chamado por Franchi de atividade epilinguística52, atividade, como
vimos, que supõe um retorno da atividade linguística a si mesma e que estabelece
“relação entre os esquemas de ação verbal interiorizados pelo sujeito e a sua realização
em cada ato do discurso” (Ibdem, p.32).
Um acontecimento relevante nesse ano é que MT iniciou um
acompanhamento psicológico. Sua mãe, embora tenha conseguido também a vaga para
ser atendida em uma clínica do setor público, não se propõe a fazer o acompanhamento.
MT, constituído, agora, também, por novas referências e, portanto, com
novas possibilidades de aprender, consegue, enfim, encontrar função social da escrita. O
Dado 13 ilustra o texto multimodal elaborado por mim e MT para ser partilhado com as
crianças/jovens do acompanhamento em grupo.
52 Cf. nota nº 12.
87
Dado 13: 18/06/2013 – “Texto final: Incêndio no IEL”
INCÊNDIO NO IEL
PEGOU FOGO NA BIBLIOTECA DO IEL, NA SALA DA DIRETORIA QUE FICA NO TÉRREO DO PRÉDIO.
O INCÊNDIO ACONTECEU POR CAUSA DE UM CURTO CIRCUITO NA REDE ELÉTRICA DO COMPUTADOR
ENTRADA DA BIBLIOTECA INTERDITADA SALA DA BIBLIOTECA INCENDIADA
É PRECISO QUE O PRÉDIO TENHA ALARME DE INCÊNDIO, DETECTOR DE FUMAÇA, MANGUEIRA DE INCÊNDIO E SAÍDA DE EMERGÊNCIA, PORQUE SE UM ALUNO ESTIVESSE COM FONE DE OUVIDO NO ÚLTIMO ANDAR NA HORA DO INCÊNDIO, IRIA MORRER.
A FALTA DE EQUIPAMENTOS DE SEGURANÇA FEZ COM QUE MUITAS PESSOAS MORRESSEM EM UM INCÊNDIO QUE ACONTECEU NUMA BOATE NO SUL DO BRASIL. NA BOATE O COMBUSTÍVEL DO FOGO ERA O ISOPOR DO TETO, E NA BIBLIOTECA DO IEL ERAM OS LIVROS.
SALA DE ESTUDO – 3º ANDAR
88
NA BIBLIOTECA, O FOGO QUEIMOU SOMENTE OS LIVROS QUE ESTAVAM NA PARTE DA FRENTE DO PRÉDIO E QUE PODERÃO SER SUBSTITUÍDOS.
LIVROS INCENDIADOS
ENTRADA DA BIBLIOTECA
OS ALUNOS DO IEL FIZERAM PROTESTO PARA QUE A BIBLIOTECA FOSSE LOGO
ARRUMADA. 49 DIAS DEPOIS DO INCÊNCIO, A BIBLIOTECA VOLTOU A FUNCIONAR. FORAM
INSTALADAS DUAS PORTAS DE EMERGÈNCIA ANTI – PÂNICO E UMA ESCADA EXTERNA PARA EVACUAÇÃO RÁPIDA
PORTA ANTI-PÂNICO ENTRADA PROVISÓRIA DA BIBLIOTECA
MT
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
89
Esse texto sintetizou as discussões realizadas sobre o assunto e finalizou
essa etapa do trabalho com MT. O domínio de outra variedade linguística em seu meio
social resultou em muitas de minhas intervenções na elaboração da escrita do texto.
Sendo o uso da tecnologia um elemento que facilitava e motivava MT na
realização das atividades, a escrita desse texto aconteceu diretamente no computador
usando o programa Word. A escrita no computador, como já mencionei, possibilitava
que fosse priorizada a correspondência entre o som da letra na palavra e o desenho da
letra, sem precisar ser considerado, nesse momento, o traçado da letra (em relação às
impressões motoras recebidas pela mão) que é fornecido pelo teclado do computador.
As relações entre o desenho da letra, o seu som na palavra, o seu nome e seus aspectos
motores ainda precisavam, por vezes, de orientação para que se concretizarem em
escrita, embora ele se mostrasse, em relação a isso, cada vez mais autônomo.
Esse trabalho teve relevância pelo uso da tecnologia que envolveu: o uso do
celular para tirarmos as fotos do entorno da biblioteca; a escrita do texto diretamente no
computador e o uso dos recursos do Word para seleção, edição e inserção das fotos no
texto. A leitura dos recursos do programa computacional utilizado se faz por meio de
ícones, por inteiro, ou seja, uma leitura que lê a palavra sem decompô-la em unidades
menores53, o que abrange uma relação de espacialidade na visualização/leitura da
palavra como um todo - mas em alguns momentos é preciso uma leitura mais
minuciosa. Nessa situação, a mediação da cuidadora permitiu que MT percebesse que
conseguia – com o que já sabia sobre leitura e escrita – transitar no universo dos
recursos tecnológicos.
Enquanto isso na escola...
53 Ver discussão realizada sobre soletração no início desse capítulo quanto à importância da combinação e decomposição das palavras em unidades menores.
90
Dado 14: (23/02/2012) - “Atividades realizadas por MT na escola”
Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
... MT realiza atividades encontradas em “Revistas de Passatempo”
vendidas em bancas de jornal. Atividades estas que não proporcionavam novas
aprendizagens a ele e por isso são reveladoras da concepção presente em grande parte
das escolas que não consideram possível o aprendizado de crianças e jovens como MT,
estigmatizadas socialmente como sujeitos incapazes de aprender.
A finalização do texto apresentado no Dado 13 tinha como proposta a sua
apresentação ao grupo de crianças do CCazinho (nos encontros coletivos), quando seria
elaborada uma exposição usando os recursos do computador e também seria entregue a
cada criança uma cópia do texto. Para tanto, seria proposto a MT a reescrita desse texto,
o que seria produtivo para o trabalho com a elaboração da linguagem padrão e com o
uso dos recursos compatíveis com essa variedade. Infelizmente, esse trabalho não foi
possível de ser efetuado, porque, em agosto de 2013, MT desistiu de frequentar o
CCazinho. Ele alegou não querer mais ir aos encontros individuais e coletivos, decisão
que foi apoiada por sua psicóloga mediante o argumento de que era preciso respeitar as
vontades de MT. Em consonância com essa decisão, houve a opinião de seu
neurologista que, nas palavras da mãe de MT, afirmou que “fazer o que não temos
vontade não nos leva a nenhum aprendizado”.
O que será que vai aparecer? Descubra ligando os numerais de 1 a 5.
JOGO DOS ERROS Descubra as OITO diferenças entre os dois desenhos.
91
Durante o acompanhamento de MT, 3 anos incompletos, em alguns
momentos, ele desanimava, como é natural em processos longos e complexos como o
seu. Como vemos pelos dados, MT se tornou um interlocutor diferente, com diferentes
histórias para contar e ultrapassou muitas de suas dificuldades tanto em relação à
aprendizagem quanto em ganho de autonomia: desde abril, ele vinha sozinho para o
CCazinho de ônibus e isso só foi possível porque passou a transitar também pelo
universo escrito. A autonomia de MT está mais ampliada e reconhecida também pela
família: sua mãe conta que agora MT consegue entrar em uma loja e pedir a roupa ou
sapato que quer experimentar, além de fornecer ao vendedor as informações necessárias
(como o número de seu calçado e de sua roupa).
A interação com MT, como mencionado na apresentação dessa dissertação,
além de me inserir como pesquisadora nos estudos da ND repercutiu diretamente no
meu papel social de professora da Educação Infantil, como passo a relatar no próximo
capítulo.
92
93
CAPÍTULO 4 - A interlocução na Educação Infantil
A Educação Infantil (EI) é um momento do percurso da criança em que
ocorrem suas primeiras significações baseadas nas interlocuções, oriundas de um
ambiente diferente do ambiente familiar, incluindo outro sistema de relações (com o
professor e com seus pares) e também outro sistema de regras (escolares). É na EI que
ocorrem as primeiras experiências da criança, ainda que de forma indireta, com a leitura
e com a escrita significadas, principalmente, na interlocução com o professor. Sabe-se
que a alfabetização não é a proposta principal desse período, mas as significações que a
criança atribui às atividades que envolvem ler e escrever podem ser determinantes para
a sua relação com a Escola como instituição.
Para evidenciar a importância das vivências da criança na EI apresento, a
partir de minha experiência como professora e dos aportes teóricos da ND, a análise de
uma atividade comumente realizada nas salas de EI - “Roda de conversa”-, entendendo-
a como uma prática discursiva que prioriza a interlocução como condição diferenciada
para o processo de subjetivação dos alunos.
4.1. A Educação Infantil e o Ensino Fundamental: aspectos legais
A EI abrange o primeiro período da criança na escola entre as idades de
quatro meses e seis anos54. Para se compreender os objetivos e a forma como a Política
Educacional voltada para a EI a estrutura, se faz necessário também conhecer os
princípios que orientam o Ensino Fundamental (EF), segmento posterior à EI. A
mudança no Plano Nacional de Educação orientada pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional nº 9394 do ano de 1996, institui a transferência do último ano de
escolarização da criança na EI para o primeiro ano do EF, que passa a receber crianças
aos seis anos de idade. Assim, o EF passou a ser organizado para ter a duração de nove
anos. A implantação desse plano em território nacional coaduna com a busca do
Governo Federal em avançar mais um passo em direção à universalização do ensino no
Brasil.
54 No sistema escolar organizado pela Prefeitura Municipal de Campinas, as crianças que completam 6 anos até o final de março são encaminhadas para o Ensino Fundamental, diferentemente, aquelas que completarem 6 anos depois desse mês permanecem no último ano da Educação Infantil.
94
Assim, nesse contexto Político Educacional, as crianças, aos cinco anos de
idade, se encontram em uma fase educacional que antecede a formalização e a
sistematização da alfabetização a ser iniciada no primeiro ano do EF. Desta maneira, na
Rede Municipal de Ensino da cidade de Campinas, a EI se constitui como um período
no percurso escolar da criança que objetiva a familiarização destas com as práticas de
leitura e de escrita e, sobretudo, busca promover o contato com diferentes gêneros
textuais.
De maneira geral, o trabalho realizado na EI é norteado pelas brincadeiras e
atividades que priorizam o jogo simbólico. Entretanto, o caráter lúdico e menos formal
dessas atividades e brincadeiras não diminui a importância de tais propostas em relação
às oferecidas no EF, por priorizarem a alfabetização; ao contrário, os processos
subjetivos nelas envolvidos são os alicerces para o enfrentamento, pela criança, das
dificuldades inerentes ao percurso escolar propriamente dito.
Além disso, a grande importância da EI está no fato de que é nela que
acontecem as primeiras experiências da criança com um ambiente marcado como
diferente do que ela frequentou até então, ou seja, ambientes familiares. Portanto, para
além do contato da criança com atividades tipicamente escolares mediadas pelo
professor e permeadas pela leitura, escrita e matemática, trata-se também de a criança se
adaptar a novas regras vinculadas à Escola, como instituição, ao professor e aos colegas
de classe. Este novo ambiente passa, então, a ser significado não só pelas possibilidades
de aprendizagem, mas pelas significações psicoafetivas que dele emanam. Retomando
os estudos de Vygotsky (1928/1997), não podemos pensar a Escola relacionando-a com
um espaço destinado apenas a processos de cognição/intelecto, pois a promoção na
criança de processos do intelecto é indissociável do afeto.
No entanto, no Brasil, a EI não é valorizada historicamente nem pela área de
Educação e nem pela família como um lugar de aprendizagens importantes. A ideia
consensual sobre este período escolar carrega ainda uma visão paternalista de que os
profissionais nela envolvidos exercem o papel de apenas cuidar e proteger fisicamente a
criança enquanto os pais trabalham. Com isso perde-se de vista que é justamente nos
primeiros anos de vida que acontece o ápice da plasticidade cerebral (GOLDBERG,
2006), no qual a linguagem e os processos de mediação têm fortíssima influência.
95
Contudo, costuma-se entender o início do processo de alfabetização da
criança a partir da sua relação direta com o lápis e com as letras, como se as diferentes
linguagens vivenciadas por ela não fizessem parte desse processo. Segundo Luria
(1979/2001), a aprendizagem da escrita pela criança está relacionada ao período que ele
denomina de “pré-história” da escrita, no qual a criança elabora técnicas primitivas que
se assemelham à escrita, técnicas que são culturalmente elaboradas e podem explicar
sobre as circunstâncias que tornaram a escrita possível:
“Se formos capazes de desenterrar essa pré-história da escrita, teremos adquirido um importante instrumento para os professores: o conhecimento daquilo que a criança era capaz de fazer antes de entrar na escola, conhecimento a partir do qual eles poderão fazer deduções ao ensinar seus alunos a escrever” (LURIA, 1979/2001, p.144).
Entretanto, quando a EI (Escola, professor) fica marcada culturalmente pelo
exercício da função cuidadora, ocupando-se, quase que exclusivamente, dos cuidados
dirigidos ao corpo da criança, se reproduz historicamente uma desvalorização da voz
dos profissionais que dela se ocupam. O retorno da fala desses profissionais às famílias
sobre seus filhos fica, assim, reduzido às informações quanto à condição física da
criança e seu comportamento. Ainda, ressalto que observar o desenvolvimento
neuropsicomotor infantil é muito importante, afinal, a surdez, o autismo ou outras
doenças degenerativas podem sinalizar seus sintomas na fala, na linguagem, na parte
motora da criança.
Observa-se, então, que, na EI, frequentemente, a noção da criança como um
sujeito que se desenvolve e que se descobre intelectual e afetivamente em meio a
diferentes atividades e diferentes relações dialógicas, fica apartada, por vezes, de uma
observação pedagógica destinada a regular o comportamento e o desenvolvimento físico
da criança: ela está dentro do esperado diante de seus pares, ela se adaptou bem, ela se
alimenta na escola etc. De tal modo, não é fácil tornar compreensível para a família e,
muitas vezes, para os próprios professores, a relação complexa e/ou específica existente
entre as inúmeras atividades lúdicas e as aprendizagens desenvolvidas com as crianças
na EI, principalmente, as que se referem à linguagem, à imaginação e à interpretação do
mundo em que vivem, que comumente são consideradas como naturais do
desenvolvimento biológico de uma criança normal.
96
4.2. O trabalho discursivamente orientado na EI: “Roda de conversa”
O conceito de interlocução vem sendo referido em diferentes momentos
neste trabalho, especialmente, na apresentação e discussão do acompanhamento
longitudinal de MT. Vimos, então, a partir de Benveniste (1966/1991) que a
interlocução instaura a subjetividade pela presença do sujeito na linguagem marcado
pelo uso do eu frente à alteridade instaurada pela relação com o outro. Neste
acontecimento, entram outros aspectos linguísticos mantenedores do espaço de
interlocução como a demonstração de interesse, a manutenção do olhar entre os
interlocutores.
Assim, a ND, como vimos, se afina com Geraldi (1991/2003) quando este
autor afirma que a interlocução é entendida como um espaço de produção de linguagem
e constituição de sujeitos que acontece pela fala, quando são acionados os vários
processos constitutivos e cognitivos responsáveis pela possibilidade de aprendizagem da
criança. Ainda, segundo Coudry e Freire:
(...) na interlocução importam as relações que nela se estabelecem entre sujeitos falantes de uma língua, dependentes das histórias particulares de cada um; as condições em que se dão a produção e interpretação do que se diz; as circunstâncias histórico-culturais que condicionam o conhecimento partilhado e o jogo de imagens que se estabelece entre os interlocutores (COUDRY e FREIRE, 2010b, p.23 e 24).
Considerando, assim, a perspectiva discursiva como norteadora do trabalho
que realizo na EI, tomo a interlocução como ponto de partida para organização, análise
e avaliação de várias atividades que proponho à minha turma infantil, tais como: jogos
de montar, pintura, desenho, receitas culinárias, dramatização etc. Porém, dentre tais
atividades, a “Roda de conversa” é a proposta que prioriza, por excelência, a relação
entre os interlocutores e os processos nela envolvidos.
Para compreendermos historicamente a proposta “Roda de conversa”,
retomarei, brevemente, os estudos de Celestian Freinet datados de 1920. Para Freinet, a
atividade “Roda de conversa” é voltada para a promoção da proposição livre expressão,
que tem como fundamento o respeito e a valorização à maneira como cada criança dá
sentido à sua relação com o mundo, seja pela fala ou por outras linguagens como
desenho, pintura etc. Nessa proposta, o diálogo, a voz dos alunos e suas necessidades
são os norteadores de ações educativas na escola, princípios que rompem de forma
97
radical com a prática de ensino tradicional, concepção hegemônica nas escolas da
época, pautada no monólogo do discurso do professor e nas suas decisões em relação à
organização do processo de aprendizagem do aluno.
Em contrapartida aos objetivos norteadores da concepção tradicional de
ensino, a “Roda de conversa”, tal como proposta freinetiana, começou a ser difundida
no Brasil por volta de 1970. No entanto, a forma como atualmente é usada por muitos
professores se distanciou da proposta originalmente elaborada por Freinet, adquirindo
outro contorno sendo, de maneira geral, destinada a discussão ou apresentação de uma
tarefa a ser realizada em sala de aula.
Ryckebusch (2011) também analisa as práticas atuais da atividade “Roda de
conversa” na EI, entendendo que a concepção de linguagem oral assumida pelos
professores é uma visão naturalizada de linguagem vinculada a uma concepção
espontaneísta considerada como suficiente para que os processos linguísticos presentes
na interlocução sejam trabalhados. Na reflexão da autora, tal atividade fica caracterizada
como um “bate papo” sem que haja, por parte do professor, intenções ou
direcionamento para diferentes temas apontados pelos processos dialógicos, nos quais o
grupo (crianças e professor) se encontra envolvido. Ainda para a autora, nesse contexto,
as crianças, sem serem reconhecidas como sujeitos e sem terem suas falas significadas
pelo professor, perdem a vontade de falar e silenciam, aderindo, assim, aos sentidos
impostos pelo monólogo do professor, o que representa a anulação desta criança
enquanto sujeito na relação.
De fato, observo tal acontecimento na realidade escolar que partilho com
outros professores e essa prática que deveria proporcionar a troca de experiências, o
diálogo e a reverberação de uma memoria social torna-se uma “falação” endereçada a
nenhum interlocutor, o que ainda assim é considerado por esses professores um trabalho
com a linguagem oral.
Entretanto, nas práticas do grupo (professor e crianças), falantes naturais de
uma mesma língua, percebe-se que há um ponto de divisão tênue, muito fácil de ser
perdido de vista, distinguindo a “falação” de uma “Roda de conversa”. A participação
ativa da criança na roda de conversa implica em aguardar o seu momento para falar,
além disso, compreender o que o outro está dizendo, relacionar a ideia ouvida ao que já
se sabe e já se conhece, não esquecer aquilo que queria dizer enquanto espera a sua vez
98
de falar e, por fim, querer socializar o que pensou e enfrentar essa exposição, o que para
muitas crianças é difícil.
Interferem, nesse processo, a possibilidade de cada participante do grupo
escutar o outro e ser escutado, o que em nossa cultura não parece muito valorizado pela
Escola e pela Família. Desde a EI, o aluno brasileiro convive com o cenário em que as
falas se sobrepõem umas as outras e os próprios participantes não conseguem se escutar.
Na continuidade do percurso escolar da criança em ciclos posteriores quando a atenção
à fala do professor é imprescindível, aquele comportamento socialmente construído,
torna-se, por parte das crianças, sintomas de déficit de atenção ou distúrbio de
aprendizagem e, em contrapartida, por parte dos professores, distúrbios vocais e/ou
psíquicos devido aos desgastes provocados pelas tentativas de controlar o
comportamento de seus alunos em classe.
Freinet (1977) orienta que o professor faça intervenções na prática da Roda
de Conversa favorecendo a troca de experiência, o diálogo entre os interlocutores
devendo ser considerada a história de vida de cada um, bem como, o papel que cada
criança exerce dentro do grupo. De tal modo, o professor pela interlocução, atribui
sentido à fala da criança ao considerá-la como sujeito na relação com ele e com o grupo,
possibilitando o diálogo e a troca de experiências entre as crianças. Diferentemente, em
uma roda que se assemelha a uma falação ou a um bate-papo, as diversas falas das
crianças não teriam efeito sobre o professor e nem sobre as demais crianças.
Conforme explicitado antes, o trabalho do professor na “Roda de conversa”
não se resume em deixar as crianças falarem inconsequentemente, por outro lado, não é
o de assumir o lugar da voz determinante, mas, sobretudo de validar o papel do
professor como o do adulto mais experiente desta relação, do formador, daquele que
possibilita, à criança, vivências de aprendizagens em relação a certo saber formalizado,
portanto, escolar.
Trata-se, também, de desenvolver, com sutileza, a aproximação entre as
vivências familiares e as práticas escolares, sem que haja um engessamento, por parte
do professor, gabaritando todos os temas desenvolvidos pelo grupo em propostas
escolares. O que está em jogo aqui é o conhecimento do professor em relação aos
processos linguísticos envolvidos nessa prática e a sua habilidade em aproximar o
99
conteúdo a ser trabalhado dos interesses e necessidades da criança, o que é descoberto
através da construção do conhecimento mútuo, como já visto anteriormente.
Sendo assim, assuntos trazidos pelas crianças como, por exemplo, o
acontecimento do machucado que ardeu ao ter sido devidamente lavado - possibilitaria a
discussão, adaptada à idade e experiências cotidianas das crianças, sobre a ação das
bactérias em nossa vida. Relembrando que a EI é a porta de entrada da criança para a
instituição Escola, atividades assim conduzidas costumam favorecer positivamente a
significação da Escola pela criança, bem como a sua adaptação a essa instituição como
uma ponte que possibilita a continuidade entre saberes cotidianos e formais.
Na sala que assumo na EI, é pela “Roda de conversa” que acolho as crianças
e inicio os trabalhos do dia e, na maioria das vezes, sentamos todos em círculo no chão.
A proposta é a de que cada criança tenha a oportunidade de falar a partir de seus desejos
e necessidades daquele momento, contar alguma coisa que tenha acontecido em sua
casa ou sobre um passeio que realizou, uma brincadeira divertida etc. Nesse momento
de acolhimento, almeja-se que cada criança tenha um espaço para falar livremente de si.
Mantendo o objetivo da “Roda de conversa” e buscando a efetivação de um
dos conteúdos que devem ser contemplados nesse período escolar, ou seja, a
aproximação da criança a diferentes gêneros textuais através da leitura realizada pelo
professor, apresento o Dado 15.
Dado: 15 – set/2013: “Animais extintos e animais em extinção”
O livro “Ana e Ana” 55 conta a história de duas irmãs gêmeas que são
idênticas fisicamente, mas completamente diferentes em suas preferências quanto às
brincadeiras, cores, comidas etc. A história descreve essas diferenças desde que eram
pequenas até o momento em que crescem e escolhem suas profissões: uma delas escolhe
trabalhar em uma estação de rádio e a outra viaja para longe para trabalhar com animais
em extinção. A história continua até o momento do reencontro das duas irmãs, quando
matam a saudade e percebem o quanto uma é importante para a outra.
Durante a leitura que faço para as crianças, intercalo paradas estratégicas
para retomar a história lida, momentos em que as crianças precisam resgatar os fatos
55 “Ana e Ana”. Autora: Célia Cristina Silva, Ilustrações Fê. 2ª Ed. São Paulo: Difusão Cultural do Livro, 2007.
100
narrados e compartilhá-los pela fala com as demais crianças. Nesses casos,
frequentemente, a fala de uma criança se completa pela fala de outra criança ou da
professora. Em meio a essa dinâmica de retomada da história, no momento da narrativa
em que uma das irmãs faz a opção pelo trabalho com animais em extinção, questionei as
crianças quanto ao sentido dessa expressão e obtive como resposta, de uma delas, que
“animais em extinção eram os animais que não existem mais, como os dinossauros”.
Era evidente que havia uma confusão entre o que são animais em extinção e
o que são animais extintos. Então, abordei a diferença entre os dois conceitos
explicando às crianças que os dinossauros são animais extintos e, por isso, não existem
mais. Expliquei também que os animais em extinção são os que estão ameaçados de não
existirem mais, mas que ainda existem em nosso planeta, embora em número reduzido.
Abordei ainda, de forma resumida, que na maioria das vezes a extinção dos animais
acontece porque o ser humano destrói a natureza matando muitos animais que nela
vivem, não dando tempo para que se reproduzam. A questão da extinção dos animais e
da destruição da natureza não era uma discussão nova para as crianças que,
frequentemente, demonstram interesse por este tema.
Atendendo aos interesses das crianças, no dia seguinte ao da leitura do livro
“Ana e Ana”, essa mesma história foi retomada na Roda de conversa, através das
ilustrações presentes no livro. Minha intenção pedagógica nesse momento era a de, além
de recuperar as reflexões já realizadas, verificar o que haviam apreendido em relação ao
conceito de “animais em extinção”, assim, perguntei a todos: “O que é um animal em
extinção?”. As falas a seguir se referem às respostas que obtive de duas crianças:
Turno Sigla do Locutor Transcrição 1 MA Bichos que mataram faz tempo. 2 AZ É um bicho que morre logo logo e não vai ter mais porque não vai ter
pai nem mãe pra cuidar dos filhotes. Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0
As falas das crianças, acima transcritas, à primeira vista são expressões de
fácil compreensão, entretanto, em uma análise posterior e mais detalhada, verificamos
que revelam a complexidade envolvida no trabalho linguístico discursivo do sujeito, na
tentativa de tornar público o seu pensamento. Por exemplo, na fala de AZ, vemos
marcas de uma relação de tempo na repetição de “logo logo” quanto à sobrevivência dos
101
animais. Observa-se que a relação de tempo, nessa fala, fica sobredeterminada
envolvendo diferentes gerações, tal qual pressupõe o termo extinção.
A complexidade do trabalho linguístico da criança em processo de aquisição
de linguagem revela-se também na fala de MA: “Bichos que mataram faz tempo”.
Figueira (1994), em sua análise sobre a incidência de verbos causativos e não
causativos, argumenta em relação às trocas de um item verbal por outro na mesma área
de significados, como, por exemplo: sair e tirar; cair e derrubar; morrer e matar. Para
a autora, há a ocorrência divergente ou idiossincrática desses itens verbais na fala da
criança em idade correspondente à de MA (5 anos), resultado da não distinção das
marcas de oposição lexical. Dessa forma, em relação à fala de MA, é possível dizer que
há a troca do verbo morrer por matar, o que marca a relação de causatividade e não
causatividade dos verbos. Nesse sentido, MA faz uso do recurso sintático
(semanticamente motivado) para tentar se fazer compreender pelo seu interlocutor.
A partir desta análise, é possível pensar que MA queria dizer “bichos que
morreram faz tempo”, o que possibilita inferir que ele não compreendeu o conceito
“animais em extinção”. De qualquer forma, não se pode afirmar se a criança entendeu
ou não o conceito abordado, ou se ela quis ou não dizer o que disse. Nesse sentido,
dispor dos recursos expressivos da língua não garante a construção de sentido no
momento da interlocução: “os recursos expressivos utilizados não são suficientes nem
para produzir ‘obviamente’ o que se pretende, tampouco para compreender
‘obviamente’ o que o outro pretendeu. Em outras palavras, os sujeitos trabalham
linguisticamente para produzir significações” (FREIRE, 1999, p.152; FRANCHI, 1977;
COUDRY, 1986/88; GERALDI, 1991/1993; POSSENTI, 1995).
O trabalho do sujeito na significação da fala do outro pode ser percebido
pelo episódio narrado sobre a fala de uma criança, na contextualização do dado anterior,
em que associa, equivocadamente, os dinossauros ao conceito de animais em extinção:
animais em extinção eram os animais que não existem mais, como os dinossauros.
Nesse episódio é possível observar a atribuição de sentido pela criança a um novo
recurso expressivo, um novo conceito (animal em extinção), a partir de outro conceito já
compreendido por ela (dinossauro como um animal extinto) e que, portanto, pertence ao
seu sistema de referências. É esse o trabalho orientado pela interlocução na Roda de
102
conversa: possibilitar a ampliação dos recursos expressivos e das possibilidades de
construção de sentidos na relação com o outro e com o mundo.
Para evidenciar um pouco mais a importância do trabalho do professor com
a linguagem e com aquilo com que ela faz interface, passo a descrever uma situação que
foi partilhada comigo por outra professora da escola em que trabalho.
A situação vivenciada diz respeito a uma atividade que ela pediu para que as
crianças realizassem, na qual teriam que descobrir, dentre um emaranhado de desenhos,
o objeto que estava sendo procurado pelo pirata, ou seja, um baú de tesouros. Ao final
do dia de trabalho, diante de sua preocupação com a falta de compreensão da atividade,
por parte de uma das crianças da sala, essa professora veio até minha sala de aula e
comentou sobre o desempenho dessa criança que não conseguiu realizar a atividade. A
professora se mostrava indignada dizendo que mesmo mostrando a figura
correspondente à resposta esperada (figura do baú de tesouro), a criança não
compreendia a relação entre o pirata e o baú de tesouros. Diante da dificuldade
observada, a professora levantou a hipótese de que essa criança pudesse apresentar
algum problema de aprendizagem, pois a considerava apática e mais quieta que as
demais.
Considerando que piratas e baú de tesouros não são elementos que fazem
parte do cotidiano de todas as crianças, levantei junto à professora a possibilidade de
essa criança não saber o que é um pirata, um baú e, nem mesmo, um tesouro. Essa
hipótese me pareceu possível, pois para ter acesso a esse repertório, seria preciso que
alguém tivesse lido para ela um livro sobre piratas ou que ela tivesse visto um filme
com esse mesmo personagem. Com essas vivências, seria possível, então, que tais
expressões passassem a fazer parte de seu sistema de referências e atribuíssem sentido à
atividade solicitada pela professora. Portanto, sem conhecer a história da criança, a
professora não poderia fazer a avaliação que fez – ela não conhece o que é um pirata,
um baú e um tesouro; ela não entende a relação entre pirata e baú – e, além disso,
realizar um “pseudodiagnóstico” – ela tem dificuldade em seu processo de
aprendizagem.
Realizo, nesse momento, uma aproximação da reflexão realizada por Lahire
(1993) sobre a característica escritural dos saberes escolares, mais formais e distantes de
situações práticas cotidianas da criança. Hoje, sabemos que a criança de uma sociedade
103
letrada, como a nossa, não chega à escola sem saber nada sobre a escrita (BORDIN,
2008). Em contrapartida, muitos dos saberes trazidos pelos alunos que têm suas famílias
mais distantes das práticas escriturais da escola não são os saberes esperados pela
própria escola. Ou seja, o sistema de referências constituído a partir dos saberes dos
alunos não se aproxima do sistema de referências trabalhado pela escola, dificultando
que esses alunos atribuam sentido ao que a escola está querendo ensinar. Assim, fica
dificultado o encontro entre os dois.
Como já discutido no 2º capítulo desta dissertação, a distância entre a
família e a escola, evidenciada no entrave entre o compartilhar ou não os sentidos das
aprendizagens proporcionadas por essas instituições, é disparadora de difíceis
momentos enfrentados pelas crianças, como as dificuldades em sua adaptação à forma
escritural escolar de organizar o processo de ensino-aprendizagem. É o que pode ser
observado na situação acima descrita: a dificuldade da criança em aproximar o que sabe
(porque certamente sabe alguma coisa), ao que é esperado que ela saiba – que localize o
pirata e seu baú de tesouros – foi interpretada pela professora como indício de um
problema de aprendizagem.
Vimos que, para a ND, a associação das dificuldades escolares da criança,
por vezes, próprias do processo de aprendizagem, quando interpretadas como problemas
da ordem da patologia, acabam por estigmatizá-la. A fala naturalizada da professora,
que pode parecer um comentário inocente, pode começar a marcar a vida escolar dessa
criança como sem possibilidades de aprender. Como já foi dito, uma criança, ao ser
vista como impossibilitada de aprender, incorpora rótulos de incapaz ou portadora de
uma patologia e passa a corresponder ao que esperam dela, o que é determinante para
sua relação com os obstáculos inerentes ao processo de aprendizagem (FOUCAULT,
1970/2010; WATZLAWICK, 1994).
Apresento, ainda, um trabalho realizado na/pela linguagem sobre as lendas
folclóricas brasileiras, mais propriamente a lenda do “Boto Cor-de-rosa”, pautado na
ampliação dos recursos expressivos. Esse trabalho tomou amplas proporções que
envolveram discussões sobre alguns costumes da região norte do Brasil, costumes estes
que têm relação com a organização do povo em função do clima e dos recursos naturais
encontrados. Mais especificamente, falamos do hábito de alguns ribeirinhos de tomarem
banho nos rios, que existem em abundância na região, junto aos botos. O encantamento
104
das crianças por essa lenda se deu por saberem que o boto é um animal que existe
verdadeiramente e que uma das variedades de sua cor é o cor-de-rosa.
O direcionamento tomado pela discussão, a partir do interesse das crianças,
foi o de refletirmos sobre as condições que seriam necessárias para realizar uma viagem
à Amazônia, quando passamos a pesquisar quais seriam as formas de chegar a este
lugar, tão distante de onde vivemos, embora pertençamos ao mesmo país. A fim de
tornar menos abstratas as questões abordadas a partir da dimensão tomada pelo trabalho,
utilizei recursos que me eram disponíveis, como o mapa político, o globo terrestre, fotos
e filmagens a partir da internet, o que contribuiu para as especificidades e amplitudes
das relações que pudemos trabalhar.
Relaciona-se à análise que passo a apresentar o caráter livre, ativo e criador
da linguagem, que permite os mais variados caminhos e suporta devaneios na realização
de um trabalho como o que aconteceu sobre o “Boto Cor-de-rosa”. Refiro-me ao
trabalho discursivamente orientado que prático em sala de aula da EI como um
interlocutor privilegiado, priorizando a construção de sistema de referências que
possibilitam a essas crianças significar os recursos expressivos usados para a operação
de construção de sentidos.
Em uma reunião de pais, ao atender a mãe de um de meus alunos,
conversamos em relação ao envolvimento da criança com as questões trabalhadas na
escola, o que era observado pela sua motivação em contar, em casa, sobre os seus novos
aprendizados realizados. Em meio à nossa conversa, a mãe contou que sua filha, minha
aluna, referiu em casa “um tal” de boto cor-de-rosa e uma viagem para a Amazônia que
ela gostaria de fazer. Pude observar, na fala dessa mãe, certa conotação de quem não
estava conseguindo perceber coerência na fala da filha, atribuindo a essa fala um caráter
fantasioso comum a algumas histórias contadas pelas crianças nessa faixa etária.
Considerando que a escola em que leciono se localiza na periferia da cidade, diante das
famílias de meus alunos, observo um descompasso entre suas possibilidades
econômicas e o investimento cultural que realizam a partir dessa condição. Dessa forma,
embora não haja uma demasiada carência econômica, a pouca diversidade de vivências
possibilitadoras de uma ampliação cultural pode ser a responsável por provocar
situações como a que relatei, em que não há um compartilhar de sentidos construídos
entre a mãe e a filha com relação à referência “boto cor-de-rosa”.
105
A situação descrita pode ilustrar a reflexão realizada por Lahire (1993,
1995/1998), quanto às dificuldades muitas vezes enfrentadas pelas famílias de atribuir
sentido às aprendizagens e vivências das crianças realizadas na escola. Essas famílias,
sem tantas possibilidades de acesso aos bens culturais e aos conhecimentos baseados em
um saber escritural - que fundamentam as atividades propostas pela escola -, encontram
dificuldades em atribuir sentido às vivências e aprendizagens realizadas pelas crianças.
Essa criança, pela constituição na linguagem através da interlocução presente na escola,
além de assumir-se como sujeito na relação com a sua mãe, assume também a dianteira
de seu processo de aprendizado à medida que não aceitou que tal aprendizado fosse
desconsiderado pelo outro. Nesse caso, a mãe imaginou que a filha estivesse inventado
algo sobre “um tal de boto cor de rosa”. Assim, o trabalho de ampliação com o sistema
de referências, simbolizado agora no aprendizado da menina, ultrapassa os limites da
escola e chega à família, que, conseguindo atribuir sentido à fala da criança, reconhece a
importância da sua vivência escolar e possibilita a aproximação entre família e escola.
106
107
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso desta dissertação se inicia com o trabalho realizado com MT no
CCazinho. Como vimos, o acompanhamento longitudinal e as dificuldades que MT
encontrava para ler e escrever revelaram as dificuldades vividas por um jovem que não
encontrou um lugar para se subjetivar - nem na escola, nem na família. A análise dos
dados apontou que a ausência de um interlocutor comprometeu a estrutura sintática e
semântica de sua fala. Tal comprometimento teve um efeito negativo na vida de MT,
uma vez que ele não consegue tornar público o que pensa e nem tornar particular o que
é público. Sem conseguir dizer o que pensa, passou a se expressar como lhe era
possível, através do mau comportamento. Conforme apresentado pela teorização, essa
impossibilidade de interiorização e exteriorização limitou seu acesso a outros processos
da linguagem, como é o caso da leitura e da escrita. Diante de suas dificuldades para
falar, ler e escrever, MT foi avaliado e recebeu o diagnóstico de Retardo Mental
Moderado. O diagnóstico implicou na construção de um estigma que MT passou a
carregar: sujeito doente e sujeito que não pode aprender. A partir da consolidação deste
estigma por ele próprio, pela escola, pela clínica e pela família, MT responde a
“profecia” de que é um sujeito incapaz e passa apresentar muita resistência diante das
possibilidades de aprender já que estava acomodado com o lugar de quem não sabe, e
de quem não conseguirá aprender porque é doente.
Essa situação se agravou quando MT se deparou com as Políticas Públicas
que orientam a estrutura do ensino escolar do qual faz parte, a qual não se importa com
os seus indícios de possibilidades para aprender a ler e a escrever e valoriza as
impossibilidades apontadas pelo diagnóstico. Desta maneira, vimos que as Políticas
Públicas acabam por se eximir da responsabilidade que têm sobre o aprendizado de MT,
usando seu laudo médico como justificativa para não investir nem intervir em seu
aprendizado. A partir da valorização do diagnóstico e da suposta impossibilidade de
aprender, também a escola lhe marca como um sujeito doente, determinando-lhe a
impossibilidade de atribuir sentido na aquisição e no uso da leitura e da escrita, e de
atribuir sentido à própria escola (o que é evidenciado pelo Dado 14).
A análise do desempenho de MT na escola e nas atividades individuais e
coletivas no CCazinho mostraram que ele foi capaz de superar muitas de suas
108
dificuldades e iniciou seu processo de alfabetização no contexto da interlocução
comigo, enquanto cuidadora. Desta maneira, vemos que o diagnóstico que lhe foi
atribuído não se confirma, e, que a dificuldade de aprender na escola só acontece
porque, nesta instituição, é esperado um padrão de sujeito e um padrão de aprendizado:
não há lugar para a singularidade das crianças. É nesse cenário que se contextualiza o
principal papel da ND: mostrar que o processo de aprendizado de leitura e de escrita é
singular e que tal singularidade não é sintoma de patologia.
No enfrentamento dos detalhes e da complexidade do acompanhamento
longitudinal de MT, através do aporte teórico e metodológico da ND, pude refletir sobre
a minha própria concepção de linguagem e ressignificar minhas práticas em sala de
aula. Assim, apresentei um recorte da minha prática na EI, através da dinâmica da Roda
de Conversa, orientada discursivamente e norteada pela interlocução, ou seja, pelo que
faz sentido para a criança. São situações em que, como professora e mediadora, tenho a
oportunidade de intervir na fala e, portanto, na possibilidade de aprendizado dessas
crianças, dando condições para a construção de sentidos, ampliando seus sistemas de
referência em favor das aprendizagens atuais e das que estão por vir, uma vez que, o que
está em jogo, é a possibilidade de patologização à que estão sujeitas.
Dessa forma, gostaria de ressaltar a importância do papel do professor na
formação e constituição de crianças e jovens, e para a necessidade do seu compromisso
para com essa profissão que, pelo despertar, no outro, do prazer em aprender, abre a
possibilidade de futuros diversos.
109
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Anexos
1.
118
119
2.
120
121
122
123
3.
124
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