berman baudelaire o modernismo nas ruas
TRANSCRIPT
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
1/20
,
"
~
-
,.
~ ~
' \
.
"
,
i; t - .
"
•
. ,
J
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
2/20
eCE.
Nas ultimas tres decadas,
uma
imensa quantidade de energia foi
despendida em todo 0 mundo na explorac;ao e deslindamento dos sen
tidos da modemidade. Muito dessa energia se fragmentou em cami
nhos pervertidos e autoder rotados. Nossa visao da vida
modema
tende
a se bifurcar em dois niveis, 0 material e 0 espiritual: algumas pessoas
se dedicam ao
modemismo ,
encarado como uma especie de puro
espirito, que se desenvolve em func;ao de imperativos artisticos e inte
lectuais autonomos; outras
se
situam na orbita da modemizac;ao ,
urn complexo de estruturas e processos materiais - politicos, economi
cos, sociais - que, em principio, uma
vez
encetados, se desenvolvem
por conta propria, com pouca ou nenhuma interferencia dos espiritos e
da alma humana. Esse dualismo, generalizado
na
cultura contempo
ranea, dificulta nossa apreensao de urn dos fatos mais marcantes
da
vida modema: a fusao de suas forc;as materiais e espirituais, a inter
dependencia entre
0
individuo e
0
ambiente t:J1odemo Mas a primeira
grande leva de escritores e pensadores que se dedicaram amodemidade
- Goethe, Hegel e Marx, Stendhal e Baudelaire, Carlyle e Dickens,
Herzen e Dostoievski - tinha m uma percepc;ao instintiva dessa inter
dependencia; isso conferiu a suas vis6es uma riqueza e profundidade
que lamentavelmente faltam aos pens adores contemp oraneos que se
interessam pela modemidade.
Este capitulo emont ado em tomo de Baudelaire, que fez mais do
que ninguem, no seculo XIX, para dotar seus contemporaneos de
uma
consciencia de si mesmos enquanto modemos. Modernidade, vida mo
dema, arte
modema
- esses termos ocorrem freqiientemente na obra
de Baudelaire ; e dois de seus gra n des ensaios, 0 breve Herolsmo da
Vida Moderna e 0 mais extenso 0 Pintor da Vida
Moderna
(1859
60; publicado em 1863), determinaram a ordem do dia para urn seculo
129
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
3/20
· ,
inteiro de arte e pensamento. Em 1865, quando Baudelaire experimen
tava a pobreza, a
d o e n ~ a
e a obscuridade, 0 jovem Paul Verlaine tentou
reavivar 0 interesse em torno dele, encarecendo sua modernidade como
fonte basica de sua grandeza: "A originalidade de Baudelaire esta em
pintar, com vigor e novidade, 0 homem moderno ( .. .) como resultante
dos refinamentos de uma c i v i l i z a ~ a o excessiva, 0 homem moderno com
seus sentidos a g u ~ a d o s
e vibrantes, seu espirito dolorosamente sutil,
seu cerebro satura do de tabaco, seu sangue a quei mar pelo alcoo . ( .. )
Baudelaire pinta esse individuo sensitivo como urn tipo, urn heroi .' 0
poeta Theodore de Banville desenvolveu esse tema dois anos mais tarde,
em um tocante tributo diante do tumulo de Baudelaire:
Ele aceitou
0
homem
modemo
em sua plenitude, com suas fraquezas,
suas
a s p i r a ~ o e s
e seu desespero. Foi , assim,
capaz
de conferir beleza a
visoes que nao possuiam beleza em si, nao por faze-las romanticamente
pitorescas,
mas por
trazer aluz a p o r ~ a o de alma humana ali escondida;
ele pode revelar, assim,
0
c o r a ~ a o triste e muitas vezes tragico da cidade
modema . Epor isso que assombrou, e continuara a assombrar, a mente
do homem
modemo,
comovendo-o, enquanto outros artistas 0 deixam
frio.2
A
r e p u t a ~ a o
de Baudelaire, ao longo dos cern anos apos sua morte,
desenvolveu-se segundo as linhas sugeridas por Banville: quanto mais
seriamente a cuItura ocidental se preocupa com 0 advento da moderni
dade, tanto mais apreciamos a originalidade e a coragem de Baude
laire, como profeta e pioneiro. Se tivessemos de
apontar
urn primeiro
modernista , Baudelaire seria sem duvida 0 escolhido.
Contudo, uma das qualidades mais evidentes dos muitos escritos
de Baudelaire sobre vida e arte moderna consiste em assinalar que 0
sentido da modernidade e surpreendentemente vago, diflcil de deter
minar. Tomemos, por exemplo, uma de suas assertivas mais famosas,
de 0 Pintor da Vida Moderna": Por 'modernidade' eu entendo 0
efemero, 0 contingente, a metade da arte cuja outra metade e eterna e
imutavel".
0
pint or (ou romanci sta ou filosofo) da vida moderna e
aquele que concentra sua visao e energia na sua moda, sua moral,
suas
e m o ~ o e s no
instante que passa e (em) todas as sugest6es
de
eternidade que ele con tern" . Esse conceito de modernidad e e concebido
para romper com as antiquadas f i x a ~ 6 e s classicas que dominam a cul
tura'francesa. "Nos, os artistas, somos acometidos de uma tendencia
geral a vestir todos os nossos assuntos com
uma
roupagem do pas
sado". A
fe
esteril de que vestimentas e gestos arcaicos produzirao
ver-
dades eternas deixa a arte francesa imobilizada em "urn abismo de be
leza abstrata e indeterminada" e priva-a de " or'iginalidade", que
so
13
.
c c ~
ode advir
do
"selo que 0 Tempo imprime em todas as g e r a ~ 6 e s . * Per
cebe-se 0 que move Baudelaire nesse passo; mas esse criterio pura
mente formal de modernidade - qualquer que seja a peculiaridade de
urn dado periodo - de fato 0 leva para longe do ponto onde ele pre
tende chegar. Segundo esse criterio, como diz Baudelaire, "todo mestre
antigo tern sua propria modernidade", desde que capte a aparencia
eo
sentimento de sua propria era. Porem, isso esvazia a ideia de moderni
dade de todo 0 seu peso espedfico, seu concreto conteudo historico. Isso
faz de todos e quaisquer tempos tempos modernos"; dispersar a mo
dernidade
at
raves da historia, ironicamente, nos leva a perder de vista
as qualidades espedficas de nossa propria historia moderna.
J
o primeiro imperativo categorico do modernismo de Baudelai re e
orientar-nos na d i r e ~ a o das for9as primarias
da
vida moderna; mas
Baudelaire nao deixa claro em que consistem essas for9as, nem 0 que
viria a ser nossa postura diante delas. Contudo, se percorrermos sua
obra, veremos que ela contem varias vis6es distintas
da
modernidade.
Essas vis6es muitas vezes parecem opor-se violentamente umas as ou
tras, e Baudelaire nem sempre parece estar ciente das tens6es entre
elas. Mais do que isso, ele sempre as apresenta com verve e brilho e
quase sempre as elabora com grande originalidade e profundidade.
Mais ainda: todas as modernas vis6es de Baudelaire e todas as suas
contraditorias atitudes criticas em rela9ao
a
modernidade adquiri
ram vida propria e perduraram por longo tempo apos sua morte, ate 0
nosso proprio tempo.
Este ensaio COme9ara com as interpreta90es mais simples e acri
ticas da modernidade, aventadas
por
Baudelaire: suas c e l e b r a ~ o e s
-
ricas da vida moderna, que criou form as peculi armente modern as de
pastoral; suas veementes denuncias contra a modernidade, que gerou as
modernas formas antipastorais. As vis6es pastora is de Baudelaire sobre
a moderni dade seriam elab oradas em nosso seculo sob 0 nome de "mo
dernolatria"; suas antipastorais se transformariam naquilo que 0
se-
culo
XX
chama de "desespe ro cultu ral". Seguiremos adiante,
na
maior parte do ensaio, a
partir
dessas visoes l imitadas , no encal90 de
uma
visao baudelaireana muito mais profunda e mais interessante
em bora provavelmente menos conhecida e de repercussao mais escas
(0)
Marx, na mesma docada, reelamava, em termos surpreendentemente similares aos de
Baudelaire das c1assicas e antigas f i x a ~ O e s na politica de esquerda t r a d i ~ a o de todas as ge ra·
~ i i e s monas pesa como urn sonho mau no cerebro das gera,iies vivas. E exatamente quando pa·
recem engajados na revolu,ilo, na c r i a ~ i l o de algo inteiramente novo ( .. ), os homens ansiosamente
conjuram os espiritos do passado, tomam de emprestimo' seuS nomes , seus
slogans
de batalha, suas
fantasia s,
para
apresentar a nova
cena da
hist6ria mundial sob 0 dis farce de um temp o veneravel
e sob uma linguagem de emprestimo . ( 0 Dezoito Brumario de Luis Bonaparte . In : MER
1851·
52, p. 595) .
3
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
4/20
sa - uma perspectiva dificilmente redutivel a uma formula definitiva,
estetica ou politica, que
luta,
corajosa, com suas
proprias
contradi
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
5/20
que ele estava produzindo material de propaganda, ele nao tivesse sido
pago por isso. (Ele teria feito born uso do dinheiro, embora certamente
se recusasse a fazer isso por dinheiro.) Entretanto, essa especie de pas
toral desempenha urn importante papel nao so na carreira de Baude
laire, mas nos cern anos de cultura
modern
a entre
0
seu e
0
nosso
tempo. Existe urn importante corpus de escritos modernos, com fre
qi.ii!ncia produzidos
por
escritores serios,
que
se assemelha
demasiado
a
material de propaganda. Esses escritos veem toda a aventura espiritual
da modernidade encarnada
na
ultima
moda,
na
ultima maquina,
ou
- e isso ja
e mais sinistro - no ultimo modelo de
regimento
militar.
Urn regimento passa, a caminho,
ao
que parece, dos confins
da
Terra,
lan
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
6/20
Baudelaire tern toda a razao em lutarcontra a confusao entre progresso
material e progresso espiritual - confusao que persiste em nosso
seculo e se torna especialmente exuberante em periodos de
boom
eco
nomico. Mas ele se mostra tao estupido quanto aquele espantalho no
cafe
quando salta para
0 p610 oposto e define a arte de modo que esta
parec;:a nao ter qualquer conexao com
mundo
material:
o
pobre homem tornou-se tao americanizado pelas filosofias zoocraticas
e industriais que perdeu toda a
n ~ o
da
diferen
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
7/20
das ruas, dos cafes, das adegas e mansardas de Paris. Ate mesmo suas
visoes transcendentais se
enraizam
em urn tempo e urn espa
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
8/20
amontoam nos subterraneos de uma grande cidade; a Gazette des Tri-
bunaux e 0 Moniteur provam que tudo 0 que precisamos e abrir os
olhos para reconhecer nosso heroismo . 0 mundo da mod a ai esta,
como estara no ensaio sobre Constantin Guys; a penas aparece aqui sob
uma forma nitidamente nao-pastoral, vinculada ao submundo, com
seus sombrios desejos e compromissos, seus crimes e castigos; ganha
assim uma
profundidade
humana muito mais arrebatadora
que
os pa
lidos esbo
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
9/20
tom ada em seu sentido direto de
casar-se,
quer no sentido figurado de
envolver sens ualmente, trata-se de
uma
das mais
banais
experi( ncias
humanas,
e uma das mais universais: trata-se, como diz a canyao fa
mosa, daquilo que faz
0 mundo
girar. Urn dos
problemas
fundamen
tais do modernismo do seculo XX e que nossa arte ten de a perder con
tato com a vida cotidiana das pessoas. Isto, e claro, nao e universal
mente verdadeiro - 0
Ulisses
de Joyce talvez seja a mais nobre ex
ceyao
-
mas e verdadeiro 0 suficiente para ser notado por todos quan
tos
se
preocupam
com a vida mod ern a e a
arte moderna.
Para
Baude
laire, porem, uma arte que nao
se
disponha a epouser as vidas de ho
mens e mulheres
na
muitidao nao merecera ser chamada propriamente
de arte moderna.
o mais rico e profundo pensamento de Baudelaire sobre a moder
nidade comeya a se manifestar logo depois de
0
Pintor da Vida Mo
derna , no inicio dos anos de 1860, e prossegue ate 0
momenta
em que,
pouco antes
da
morte, em 1867, ele se torna demasiado enfermo para
esc rever. Esse
trabalho
constitui uma serie de po em as
em
prosa que ele
planejou
publicar
sob 0 titulo
Spleen de Paris.
Ele
nao
viveu
para
con
c1uir a
serie ou para pubJica-la como urn todo, mas completou cin
qiienta
desses poemas, mais urn prefacio e urn epilogo, que vieram a
luz em 1868, logo apos
sua
morte.
Walter Benjamin, em sua
serie de
brilhantes
ensaios sobre Bau
delaire e Paris,
foi
0 primeiro a se dar conta
da grande profundidade
e
riqueza desses poemas em prosa.1
8
Toda a minha reflexao se inscreve
no caminho aberto por Benjamin, embora eu
tenha
encontrado ele
mentos e componentes diferentes daqueles
apontados
por ele.
Os
escri
tos parisienses de Benjamin consti tuem umaperformance notavelmente
dramatica, surpreendentemente similar ao Ninotchka de Greta Garbo.
Seu corayao e sua sensibilidade 0
encaminharam
de
maneira
irresistivel
para as luzes
brilhantes
da cidade, as bel as mulheres, a
moda,
0 luxo,
seu jogo
de
superficies deslumbrantes e cenas grandiosas; enquanto
isso, sua consciencia marxista esforyou-se
por
mante-Io a distancia
dessas tentayoes, mostrou-lhe que todo esse
mundo
luminoso
e
deca
dente, oco, viciado, espiritualmente vazio, opressivo em relayao ao pro
letariado, con dena do pela hist6ria. Ele faz repetidos comentarios ideo
l6gicos para nao ceder a tentayao parisiense - e para evitar que seus
leitore6 caiam em tentayao
-
todavia nao resiste a lanyar urn ultimo
olhar ao btilevar ou as arcadas; ele quer ser salvo, porem nao ha pressa.
Essas contradiyoes internas, acionadas pagina ap6s pagina, dao a obra
de Benjamin uma luminosa energia e urn
charme
irresistivel.
Ernst
Lu
bitsch, diretor e cen6grafo de Ninotchka, tern
0
mesmo background
judaico, burgues e berl inense de Benjamin e
tam
bern simpatizou com a
esquerda; Benjamin decerto teria apreciado
0
charme e
0 drama
do
142
filme,
mas
sem duvida
teria
conferido a ele urn final mais feliz
que
0 E
seu proprio. Meu
trabalho
nesse sentido e menos tocante como drama,
mas talvez mais coerente como historia. Onde Benjamin oscila entre a
total imersao do Eu moderno 0 de Baudelaire,
0
seu proprio)
na
cidade
moderna
e 0 total
alheamento em
re1a
y
ao a ela,
tento
recapturar as
correntes mais con stantes do fluxo metabolico e dialetico.
Nas
duas
seyoes que seguem,
pretendo
ler, em detalhes e em pro
fundidade, dois dos ultimos poem as
em prosa de
Baudelaire: Os
Olhos dos
Pobres
(1864) e
A
Perda
do
Halo
(1865).19 Veremos de
imediato, atraves desses poemas, por que Baudelai re e universal mente
aclamado como urn dos
grandes
escritores
urbanos.
Em
Spleen de Pa
ris, a cidade desempenha urn papel decisivo em seu drama espiritual.
Com isso, Baudelaire faz por se integrar
na
grande tradiyao de escrito
res parisienses, que
remonta
a Villon, passa por Montesquieu e Dide
rot, Restif de la Bretonne e Sebastien Mercier e chega ao seculo XIX,
com Balzac, Victor
Hugo
e Eugene Sue.
POrt ri1, ao
mesmo tempo Bau
delaire
representa
urn rompimento radical com essatradiyao. Seus me
Ihores escritos parisienses pertencem
exatamente
ao periodo
em
que,
sob a autoridade de
Napoleao e
adireyao
deHaussmann, a cidade
estava sendo remodelada e reconstruida de forma sistematica. En
quanta
trabalhava
em Paris, a tar efa de inodernizayao
da
cidade seguia
seu curso, lado a
lado
com ele, sobre
sua cabeya
e sob seus pes. Ele
po de ver-se nao s6 como urn es pectad or, m as como
participante
e pro
tagonista dessa
tarefa em
curso; seus escritos parisienses expressam 0
drama e
0
trauma ai implicados. Baudelaire nos
mostra
algo que ne
nhum escritor pode ver com tanta clareza: como a modernizayao da
cidade simultaneamente inspira e forya a modernizayao da
alma
dos
seus cidadaos.
importante assinalar
a fo rma pel a
qual
os
poemas
em
prosa
de
Spleen e Paris fizeram sua primeira apariyao: os folhetins que Baude
laire compos para
a imprensa parisiense de grande circulayao,
diaria
ou semanal. 0 folhetim equivalia aproximadamente a urn Op-Ed dos
jornais de hoje.
Normalmente
aparecia
na
primeira
pagina
ou
na
pa
gina
central
do
jornal,
logo abaixo ou ao ladci do editorial, a fim de que
fosse uma das primeiras coisas lidas.
Em
geral era escrito
por
alguem
de fora, em urn tom evocativo e reflexivo, para .contrastar com a com
batividade do editorial - embora 0 seti teor
pudesse
ser escolhido para
reforyar (quase sempre de modo sublimimir) os argumentos polemicos
do editor. No tempo de Baudelaire, 0 folhetim era urn genero urbano
popular
ao extremo, oferecido em cehtenas de
jornais
europeus e norte
0) Op Ed: Optical Editorial.
materia que ganha destaque.pela posi9ao que ocupa na po'
gina. N. T.)
143
http:///reader/full/prosa.18http:///reader/full/prosa.18http:///reader/full/1865).19http:///reader/full/prosa.18http:///reader/full/1865).19
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
10/20
americanos . Muitos dos
gran
des escritores do seculo XIX usaram essa
forma
para
se
apresentar
a urn publico de massa: Balzac, Gogol e Poe,
na geraC;ao anterior
a
de Baudelaire; Marx e Engels, Dickens, Whit
man e Dostoievski, na
sua
geraC;ao.
E fundamental lembrar
que
os
poemas constantes em Spleen de Paris nao se apresentam oomo versos,
uma forma de arte estabelecida, mas como prosa, no formato das
noticias.
2
No prefacio a Spleen de Paris, Baudelaire proclama que
l vie
moderne exige uma nova linguagem:
uma
prosa poetica, musical mas
sem ritmo e sem rima, suficientemente flexivel e suficientemente rude
para adaptar-se
aos impulsos liricos da alma, as modula
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
11/20
tema circulatorio urbano. Tais imagens, lugar-comum hbje, eram alta
mente revolucionarias
para
a vida urbana do seculo XIX. Os novos
bulevares permitiram ao traJico fluir pelo centro da cidade e mover-se
em linha reta, de urn extremo a outro - urn empreendimento quixo
tesco e virtualmen te inimaginavel, ate entao. l t ~ m disso, eles elimina
riam as habitac;oes miseraveis e abri riam espac;os livres em meio a
camadas de escuridao e apertado congestionamento. Estimulariam
uma tremenda expansao de negocios locais, em todos os niveis, e aju
dariam a custear imensas demolic;Oes municipais, indenizac;oes e novas
construc;oes. Pacificariam as massas, empregand o dezenas de milhares
de trabalhadores - 0 que as vezes chegou a urn
quarto
da mao-de-obra
disponivel na cidade - em obras publicas de Iongo prazo, as quais por
sua vez gerariam milhares de novos empregos no setor privado. Por
fim , criariam longos e largos corredores at raves dos quais as tropas de
artilharia poderiam mover-se eficazmente contra futuras barricadas e
insurreic;oes populares.
Os bulevares representam apenas
uma parte do amplo sistema de
planejamento urbano, que incluia mercados centrais, pontes, esgotos,
fornecimento de agua, a Opera e outros monumentos culturais, uma
grande rede de parques. Diga-se, em tributo ao eterno credito do
barao Haussmann
- assim
se
expressou Robert Moses, seu mais ilus
tre e notorio sucessor, em 1942
- que
ele resolveu de
uma v l por
todas, de maneir a firme e segura, 0 problema da modernizac;ao urbana
em larga escala. 0 empreendimento pas abaixo centenas de edificios,
deslocou milhares e milhares de pessoas, destruiu bairros inteiros que
ai tinham existido por seculos. Mas franqueou toda a cidade , pela pri
meira
vez
em sua historia, a totalidade de seus habitantes. Agora, apos
seculos de vida claustral, em celulas isoladas, Paris
se
tornava urn es
pac;o fisico e humane unificado.*
0) Em Classes Operarias e Classes Perigosas cilada na nota
21
, Louis Chevalier, 0 veneravel
hisloriador
de
Paris, faz urn
horripilanle
relato das investidas a que
loram submetidos
os velhos
bairros centrais nas decadas anteriores ao projeto Haussmann: explosan demografica. que dobrou a
i
popula
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
12/20
- quanto mais participavam da "familia de olhos" sempre em expan
sao - rnais rica se tornava sua visao de si mesmos.
Nesse ambiente , a realidade facilmente se tornava magica e
so-
nhadora. As luzes of usc antes da rua e do cafe apenas intensificavam a
alegria: nas gerayoes seguintes,
0
advento
da
eletricidade e do neon s6
faria aumen tar tal intensidade. Ate as mais extremas vulgaridades ,
como aquelas ninfas do cafe, com as cabeyas ornadas de frutas e gulo
seimas, tornavam-se adoniveis em seu romantico t splendor. Quem
quer que
ja
tenha estado apaixonado em
uma
grancie cidade conhece
bern a sensayao, celebrada em centenas de canyoes sentimentais. De
fato , essa alegria privada brota diretamente da modernizayao do es-
payo publico urbano. Baudelaire nos mostra urn novo mundo, privado
e publico, no instante exato em que este surge. Desse momenta em
diante,
0
bulevar sera tao
importante
como a alcova
na
consecuyao do
amor moderno.
Contudo, cenas primordiais, para Baudelaire, como mais tarde
para Freud, nao podem ser idiIicas. Elas devem conter material idilico,
mas no climax da
cena
uma realidade reprimida se interpoe, uma reve
layao ou descoberta tern lugar:
urn
novo bulevar,
ainda
atulhado de
detritos . . .) exibia seus infinitos esplendores". Ao lado do brilho, os
detritos: as ruinas de
uma
duzia de velhos bairros - os mais escuros,
mais densos, mais deteriorados e mais assustadores bairros da cidade,
lar de dezenas de milhares de parisienses - se amontoavam no chao.
Para
onde iria toda essa gente? Os responsaveis pela demoliyao e re
construyao nao se preocupavam especialmente . com isso. Estavam
abrindo novas e amplas vias de desenvolvimento nas partes norte e leste
da cidade; nesse meio tempo, os pobres fariam, de algum modo, como
sempre haviam feito. A familia em farrapos, do
poema
baudelaireano,
sai de tras dos detritos, para e se coloca no centro da cena. 0 proble
ma nao e que eles sejam famintos ou pedintes. 0 probl ema e que eles
simplesmente nao irao embora. Eles
tambem
querem urn lugar sob
a luz.
Esta
cena primordial revela algumas das mais
profundas
ironias
e contradiyoes
na
vida
da
cidade moderna. 0 empreendimento que
torna toda essa
humanidade
urbana
uma grande familia
de olhos",
em expansao, tam bern poe amostra as crianyas enjeitadas dessa fami
lia. 4s transformayoes fisicas e sociais que haviam tirado os pobres do
alcance da visao, agora
os
trazem de volta
diretamente
a vista de
cada
urn. Pondo abaixo as velhas e miseraveis habitayoes medievais, Haus
smann , de maneira invoiuntaria, rompeu a crosta do mundo ate entao
hermeticamente selado da tradicional pobreza urbana. Os bulevares,
abrindo formidaveis buracos nos bairros pobres, permitiram aos po
bres
caminhar
atraves desses mesmos buracos , afastando-se de suas
8
vizinhas arruinadas,
para
descobrir, pel a primeira vez em suas vidas, ~
como era 0 resto da cidade e como era a outra especie de vida que ai
existia. E, a
medida
que veem, eles
tambem
sao vistos: visao e
epifania
fluem nos dois sentidos . No meio dos gran des espayos, sob a luz ofus
cante, nao
ha
como desviar os olhos. 0 brilho ilum ina os detritos e ilu
mina as vidas sombrias das pessoas a expensas das quais as luzes bri -
Ihantes resplandecem. Balzac compa rou esses velhos bairros as flores
tas mais escuras da Africa;
para
Eugene Sue, eles epitomizavam
Os
Misterios de
Paris . Os
bulevares de
Haussmann transformaram
0
exo..
tico no imediato; a miseria que
foi
urn dia misterio e agora urn fato.
A manifestayao das divisoes de c1asse na
cidade
modema implica
divisoes interiores no individuo moderno. Como
poderiam os amantes
olhar os pobres em farrapos, de subito surgidos entre eles? Nesse ponto,
o
amor
moderno perde
sua
inocencia. A presenya dos pobres lanya uma
sombr a inexoravel sobre a cidade i1uminada. 0 estabelec imento da
quele amor magicamente inspirado desencadeia
agora
uma magica
contraria
e impele os
amantes para
fora do seu enclausuramento ro
mantico,
na
direyao de relacionamentos mais
amplos
e menos idilicos .
Sob essa nova luz, sua felicidade pessoal aparece como privilegio de
c1asse. 0 buleva r os forya a reagir politicament e. A re sposta do home m
vi
bra na
direyao
da esquerda
liberal: ele se sente
culpado
em meio
a
felicidade, irmanado aqueles que a podem
ver,porem
nao podem des
frutar
dela; sentimentalmente, ele deseja torna-Ios
parte
da familia.
As
afinidades da mulher - ao menos nesse instante - estao com a di
reita, 0 Partido da Ordem: n6s temos algo que eles querem; logo, 0
melhor e apelar para 0 gerente" , chamar alguem que tenha 0 poder de
nos tornar livres deles. Por isso. a distancia
entre
os
amantes
nao e
apenas uma falha de comunicayao, mas uma radical oposiyao ideol6
gica e politica. Caso se erigissem barricadas no bulevar - como de fato
ocorreu em 1871, sete anos depois da apariyao do poema, quatro apos a
morte de Baudelaire - os amantes poderiam muito bern estar em
lados opostos. .
Urn
par
amoroso dividido pel a politica e razao suficiente de des
gosto. Todavia ha outras razoes: talvez, quando ele olhou fundo nos
olhos dela, tenh a de fato, con forme
esperava,'
:'lido m us pensamentos
ali". Talvez, a despeito de
afirmar
nobremente
sua irmandade
com a
(0 )
Veja·
se
0
comentario de Enge
ls
, no panflelo
Ccntribuit;uo
ao
Problema da Habitat;uo
(1872), a propo
silO
do
m ~ l o d o chamado
Haussmann' (
.. ).
R e f i r o ~ m e
a
pralica, hoje generalizada. de
abrir grandes brechas nas
v i z i n h a n ~ a s
operarias das nossas gf indes cidades . especial mente aq uelas
siluadas nas regi6es cenlrais. (
..
) 0 resul tado
0
mesmo em toda a parte: os becos e alamedas mais
comprometedores desaparecem. para
dar
lugar a a U l o g l o r i f i c a ~ < i da burguesia. com o credito de seu
tremendo sucesso - mas reaparecem logo adianle. muitas vezes no bairro adjacente"
Obras
£ s
o·
lhidas de Marx e Engels.
M
os
cou.
195
5. 2
vols
.
V.
I. p. 559, 606·9.)
149
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
13/20
universal familia de olhos, ele partilhe com ela 0 desprezivel desejo de
negar
relac;5es com os pobres, de po-los fora do a1cance
da
visao e do
espirito. Talvez ele odeie essa mulher porque os olhos del a Ihe revela
ram
uma parte
de si mesmo que ele se recusa a
enfrentar.
Talvez a maior
divisao nao se de
entre
0 narrador e sua amante, mas dentro do pr6prio
homem. Se assim e, isso nos
mostra
como as contradic;5es que animam
a cidade modern a ressoam na vida interior do homem na rua.
Baudelaire sabe
que as
reaC;6es
do homem e
da
mulher, senti
mentalismo liberal e rudeza reacionflria, sao igualmente futeis. De urn
lado, nao hfl como assimilaros pobres no conforto de qualquer familia;
de outro, nao hfl nenhum tipo de repressao que possa livrar-se deles por
muito tempo - eles
sempre
voltarao. S6 a
mais
radical reconstruc;ao da
sociedade moderna poderia comec;ar a cicatrizar as feridas - feridas
pessoais e sociais - que
os
bulevares trouxeram a luz. Assim mesmo,
a soluc;ao radical
muito
freqiientemente vern a ser dissoluc;ao:
por
abai
xo
os .bulevares, apagar as luzes brilhantes, expelir e recolocar as pes
soas, eliminar as fontes de beleza e alegria que a cidade
moderna
trouxe
a existencia. Devemos
esperar,
como Baudelaire as vezes esperou, por
urn futuro em
que
a alegria e a beleza, como as luzes
da
cidade,
ve-
nham
a ser
partilhadas por
todos.
Mas
nossa esperanc;a t en de a ser
diluida pela tristeza auto-ironica que
permeia 0 ar da cidade de Bau
delaire.
I
I
4
0
LODA AL
DE
MACADAME
Nossa
pr6xima
cena
moderna arquetipica
se
encontra
no poem a
em prosa
A Perda
do
Halo
Spleen de Paris, n? 46), escrito em 1865,
mas rejeitado pela
imprensa
e s6 publicado
ap6s
a
morte
de Baude
laire. Como
Os
Olhos dos
Pobres ,
este
.poema
e
ambientado
no bu
levar;
trata
da confrontac;ao que 0
ambiente
imp5e ao sujeito, e ter
mina, como 0 titulo sugere, com a
perda da
inocencia. Aqui, porem, 0
encontro nao se
dfl
entre duas pessoas, ou entre pesSoas de diferentes
classes sociais, mas, antes, entre urn individuo isolado e as forc;as so-
ciais,
abstratas,
em
bora concretamente
ameac;adoras. Aqui,
0
am
biente, as imagens e 0 tom emocional sao enigmaticos e alusivos; 0
poeta parece interessado em promover 0 desequilibrio dos leitores, e ele
pr6prio lalvez esteja desequilibrado.
LA
Perdado
Halo
se desenvolve na forma de difllogo entre urn
poeta e urn
homem comum ,
dialogo que se trava em
un mauvais
lieu,
urn
lugar
sinistro ou de rna reputac;ao, talvez urn bordel,
para
em
barac;o de ambos. 0
homem
comum, que semp're
alimentara uma
ideia
elevada do artista, sente-se frustrado ao
encontrar
urn deles em tal
lugar:
15
~
o que voce aqui, meu amigo? voce em urn
lugar
como esse? voce, degus
( )
tador de amhrosia e de quintessencias Estou escandalizado
o
poeta
entao
prossegue, explicando-se:
Meu amigo, voce sabe como me aterrorizam os cavalos e os veiculos?
Bern, agora mesmo eu cruzava 0 bulevar,
'com muita
pressa, chapi
nhando na lama , em meio ao caos, com a morte galopando na minha
d i r ~ a o de todos os lados, quando fiz urn movimento brusco e 0 halo
despencou de
minha
cabec;a
indo cair
no lodac;al de
macadame. Eu
es
tava muito assustado para recolhe-lo. Pensei que seria menos desagra
davel perdm- minha insignia do que ter meus ossos quebrados. Alem
disso, murmurei para mim mesmo, toda nuvem tern urn forro de
prata.
Agora, eu posso andar por ai inc6gnito, cometer baixezas, dedicar-me a
qualquer especie de atividade crapulosa, como urn simples mortal. As
sim, aqui estou, tal como voce me
ve,
tal como voce mesmo
o surpreso interlocutor
insiste, urn
tanto preocupado:
Mas voce nao vai colocar urn
anuncio
pelo halo? ou notificar a policia?
Nao: 0
poeta
soa
triunfante naquilo
que reconhecemos como
uma
nova
autodefinic;ao:
Que Deus me perdoe Eu gosto disto aqui. Voce e 0 unico que me reco
nheceu. Arem disso, a dignidade me aborrece. Mais ainda, edivertido
imaginar algum mau poeta apanhando-o e colocando-o desavergonha
damente na pr6pria cabec;a. Que prazer poder fazer alguem feliz espe
cialmente alguem de quem voce pode rir. Pense em X, ou em
Z
Voce
nao percebe como isso vai ser
divertido?
urn
poema estranho,
e
podemos
sentir-nos
como 0 interlocutor
sur
preso,
que sabe
que
alguma
coisa
esta
acontecendo,
mas nao
sabe exa
tamente 0 que seja.
Urn dos primeiros misterios
aqui
e
0
pr6prio halo.
Antes de
mais
nada, que faz ele sobre a cabec;a de urn poeta
moderno?
Sua func;ao e
satirizar e
criticar
uma
das
crenc;as mais apaixoriadas do proprio Bau
delaire: a crenc;a na
santidade da
arte. De fato, podemos detectar uma
devoc;ao
quase
religiosa a
arte,
ao longo de
sua
poesia e sua prosa.
Assim, no texto
de
1855, ja citado:
0 artista
nasce
apenas
de si
mesmo. (.. . ) A unica seguranc;a que ele estabelece e para si mesmo.
( .. ) Ele
morre
sem
deixar
filhos, tendo sido seu
pr6prio
rei, seu
pr6prio
sacerdote, seu
pr6prio
Deus".23 A
Perda
do Halo trata
da queda
do
proprio
Deus
de Baudelaire.
Porem,
e preciso
lembrar
que esse
Deus
e
151
http:///reader/full/Deus%22.23http:///reader/full/Deus%22.23
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
14/20
cultuado nao so
por
artist as mas igualmente por homens comuns",
crentes de que a arte e os artistas existem em urn plano muito acima
deles
.. .
A Perda do
Halo
se da em urn ponto para 0 qual convergem 0
mundo da arte e
0
mundo com urn. E nao se trata de urn ponto apenas
espiritual , mas fisico, urn determinado ponto na paisagem da cidade
moderna.
Eo
ponto em que a hist6ria da moderniza
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
15/20
carruagem ou
caminhar
sobre pernas de
pau .
5
Com isso, a vida dos
bulevares, mais
radiante
e excitante que toda a vida
urbana
do pas
sado.
era
tambem mais arriscada e ameac;adora para as multidoes de
homens e mulheres que andavam ape.
E
esse, pois,
0
palco da cena modern a primord ial de Baudelaire:
eu cruzava
0
bulevar. com muita pressa, chapinhando na lama, em
meio ao caos, com a mort e galopando na mi nha direc;ao, de todos
os
lados . 0 homem moderno arquetipico, como
0
vemos aqui, e
0
pedes
tre lanc;ado no turbilhao do triifego
da
cidad e mode rn a, urn homem
sozinho,
lutando
contra urn aglomerado de massa e energia pesadas,
velozes e mortifera s; 0 borbulha nte trafego da rua e do bulevar nao
conhece fronteiras espaciais ou tempora,is, espalha-se na direc;ao de
qualquer espac;o urbano, imp6e seu ritmo ao tempo de todas as pes
soas, tran sforma to do
0
ambiente moderno em caos . 0 caos aqui nao
se refere apenas aos passantes - cavaleiros ou condutores, cada qual
procurando abrir
0
caminho mais eficiente
para
si m esm o - mas
11
sua
interac;ao, atotali dade de seus movimentos em urn espac;o' comum . Isso
faz do bulevar urn perfeito simbolo das contradic;oes interiores do capi
talismo: racionalidade em cada unidade capitalista individualizada,
que conduz a irracionalidade anarq uica do sistema social que mantem
agregadas todas essas unidades.*
o
hom em na
rua
moderna, lanc;ado nesse turbilhao, se
ve
reme
tido aos seus proprios recursos - freqiientemente recursos que igno
rava possuir - e forc;ado a explora-los de
maneira
desesperada, a fim
de sob reviver.
Para
atravessar
0
caos, ele precisa
estar
em sintonia,
precisa adaptar-se aos movimentos do caos, precisa
aprender
nao ape
nas a p6r-se a salvo dele, mas a estar sempre urn passo adiante. Pre
cisa desenvolver sua habilidade em materia de sobressaltos e
movi-
mentos bruscos, em viradas e guinadas subitas,
abruptas
e irregulares
- e nao apenas com as pernas e
0
corpo, mas
tambem
com a mente e a
sensibilidade.
Baudelaire mostra como a vida na cidade moderna for¢a cada urn
a realizar esses novos movimentos; mas mostr a tam bern como, assim
procedendo, a cidade mo derna desencadeia novas formas de liberdade.
Urn homem que saiba mover-se dentro, ao redor e atraves do trHego
(0) 0 lrafcgo de rua nllo foi. evidenlemenle, 0 linieo lipo de movimenlo organizado conhe·
po de ir a qualquer p arte, ao longo de qu alquer dos infinitos corredores
.E
urbanos onde
0
proprio trHego se move livreinente. Essa mobilidade
abre urn enorme leque de experiencias e atividades
para
as massas
urbanas.
Moralistas e pessoas cuItas conde narao essa
popular
perseguic;ao
urbana como baixa, vulgar, sordida, vazia de valor social ou espiritual.
Mas,
quando
deixa seu halo cair e continua
andando, 0
poeta de Bau
delaire realiza
uma grande
descoberta. Descobre,
para
seu espanto,
que a
aura
de pureza e santidade artistica e
apenas
incidental e nao
essencial aarte e que a poesia po de florescer perfeitam ente , talvez me
lhor ainda, no outro lado do bulevar, naqueles lugares baixos,
apoe
ticos , como
0 mauvais lieu
onde esse mesmo poema nasceu. Urn dos
paradoxos
da
modernidade, como Baudelaire a ve aqui, e que seus
poet as
se tornarao
mais
profunda
e autenticamente
p o t i ~ o s quanta
mais se tornarem homens comuns. Lanc;ando-se no caos
da
vida coti
diana do mundo moderno -
uma
vida de que
0
novo trafego e
0
sim
bolo p rimordial -
0
poeta pode apropriar-se dessa vida para a arte.
o mau poeta ,
nesse mundo, e
aqu
'ele que espera conservar
intata sua
pureza, mantendo-se longe das ruas, a salvo dos riscos do trHego. Bau
delaire deseja obras de arte que brotem do meio do trcifego, de
sua
energia anarquica, do incessante perigo e terror de
estar
ai, do precario
orgulho e satisfac;ao do ho mem que chegou a sob reviver a tudo isso.
Assim, A Perda do Halo' vern a ser
uma
declarac;ao de ganho, a
redestinac;ao dos poderes do poeta a
uma
nova especie de arte. Seus
movimentos bruscos, aquelas sub itas curvas e guinadas, cruciais
para
a
sobrevivencia cotidiana nas rua s
da
cidade, vern a ser igualmente fontes
de poder criativo. No seculo seguinte, esses mcivimentos virao a ser
gestos paradigma ticos
da
arte e do pensamento tnodernistas. *
As
ironias proliferam nessa cena
modema
primordial, disfarc;a
das sob as nuanc;as
da
linguagem de Baudelaire. Considere-se uma
frase como
l
lange
de macadam 0
lodac;al de macadame .
La
lange
em frances, e nao s6 a palavra literal para lode,
lama,
mas
tambem
a
palavra figurada
para
insidia, baiXeza, torpeZ:1, corrupc;ao,
d e g r a d a ~
c;ao,
tudo quanto seja abominavel e repugnante. Na dicc;ao oratoria e
poetica
dassica,
trata-se
o
uma
forma e1evada de descrever algo
(0)
Quarenta anos depois, com
0 surgimento
lou melhor, a designa,fto) do, Brooklin Dod
cido
no
seculo XfX
A
ferrovia
fez
sua
a p a r i ~ ~ o
em larga escala, de,de os anos de 1830
.
e conslilui
uma presen,a vilal na literalura europeia, desde Dombey
and
Son de Dickens (1846-48). Mas a
gers (os Dribladores do Brooklin , equipe de beisebol), a cultura popular
p r o u z i r ~
sua pr6pria versfto
ferrovia obedec ia a horarios rigidos e lrafegava em uma rola preestabelecida; assim, por causa de loda
ir6nica dessa fe modemista . 0 nome traduz 0 meio pelo qual as habilidades necessarias Ii 5Obrevi
a sua pOlencialidade demoniac., lomou-se urn dos paradigmas da ordem oilocenlista.
vencia
urbana
- especif icamente a habilidade
para
se desviar do tratego - podem transcender a
finalidade pratica e assumir novas form as de significado e valor, no esporte e na arte. Baudelaire teria
sinais luminosos de lransito. uma inven,Ao desenvolvida nos ESlados Unidos por voila de 1905, slm
Oeve-se obsefY'ar que a e x p e r i ~ n c i a do caos . m Baudelaire. e anterior ao advento dos
adorado esse simbolismo,
como
aconteceu a muitos de seus suces50res do seculo XX (e. e. cummings,
I
ariane Moore).
bolo maravilho
so
das primeiras tentalivas eslatais de regular e racionalizar 0 caos do capitalismo.
154
155
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
16/20
"baixo".
Como tal, envolve toda
uma
hierarquia cosmica,
uma
estru
tura de normas e val ores nao apenas esteticos mas metafisicos, eticos,
politicos.
Lafange
pode representar
0
nascedourode urn universo mo-
ral cujo apice e simbolizado pelo "halo". A ironiaesta em que, caindo
nafange,
0 halo do poeta nao esta perdido por inteiro, pois, desde que
a imagem mantenha alguma f o r ~ a e sentido -
que
e nitidamente
0
caso, no poem a de Baude laire
- , 0
velho cosmos hienirquico estara de
alguma forma present e no
mundo
moderno. Todavia presente de modo
precario. 0 sentido do macadame e radicalmente destrutivo, quer em
r e l a ~ a o
ao
lodarral,
quer em
r e l a ~ a o
ao
halo :
ele
pavimenta por
igual
0
eleva do e
0
baixo.
Podemos ir
ainda mais fundo no macadame: cabe notar , de ini
cio, que a palavra nao e francesa. De fato, a palavra deriva de John
McAdam, de Glasgow,
0
inventor setecentista da m0derna superficie
de p a v i m e n t a ~ a o . Talvez seja a primeira palavra dessa lingua que os
franceses do seculo XX satiricamente chamarao de Franglais: pavi
menta 0
caminho que leva a
e
parking
e
shopping
e
weekend
e
drugsiore , e mobile-home
e muito mais. Essa linguagem e assim vital
e atraente porque e a linguagem internacional da
m o d e r n i z a ~ a o .
S e u ~
neologismos sao po derosos veiculos de novas form as de vida e movi
mento. Tais palavras podem parecer dissonantes e excentricas, con
tudo e tao futil resistir a elas quanto resistir
a
propria
iminencia da
m o d e r n i z a ~ a u .
E
verdade que muitas n a ~ 5 e s e classes dominantes
se
sentem - e com razao - a m e a ~ a d a s pel a invasao de novas palavras , e
objetos, de outras plagas. (Existe uma esplendida e paranoica palavra
sovietica que expressa esse medo: infiltrazya. Porem, e preciso obser
var que aquilo que as
n a ~ 5 e s
em geral tern feito, dos tempos de Bau
delaire ate hoje, e, apos uma breve onda, ou d e m o n s t r a ~ a o de resis
tencia, nao apenas aceitar
0
novo objeto, mas criar uma palavra pro
pria para designa-Io, na e s p e r a n ~ a de eclipsar a memoria e m b a r a ~ o s a
do subdesenvolvimento. (Apos recusar-se nos anos 60 a admitir e
parking meter na lingua francesa, a Academia Francesa cunhou e rapi
damente canonizou
e
parcmetre na decada seguinte.)
Baudelaire
sabia
como escrever no mais
puro
e elegante frances
classico. Aqui, porem, em "A Perda do Halo", ele se projeta em uma
nova e emergente linguagem,
para
criar arte a partir das dissonancias e
incongruencias que permeiam - e paradoxalmente unem - todo 0
mundo moderno. "Em lugar da velha reclusao e auto-suficiencia nacio
(OJ No seculo XIX, 0 principal
tran
smissor de
m i z a ~ A o
foi a
Inglaterr
a, no seculo XX
lem
,i
do os ESlados Unidos . O s
mapas
de (lOder m
udarn
m, mas a primazia da lingua inglesa
a menos pu ra. a mais f1ex ivel e
adapta
vel das linguas m
odemas
- e ma ior do que
nunc
a. T alvez
sobreviva ao declin io do
imp rio
amer ana
nais", diz 0 Manifesto , a modern a sociedade
burguesa
nos traz
"urn
_,
intercambio em ·todas as d i r e ~ 5 e s a universal interdependencia das C;CE
n a ~ 5 e s .
Nao apenas na p r o d u ~ a o material, mas tam bern na intelectual.
As c r i a ~ 5 e s das n a ~ 5 e s se tornarao" - repare-se nessa imagem, para
doxal no mundo burgues - "propriedade comum". Marx prossegue:
"A unilateralidade e 0 bitolamento nacionais se
tornarao
cada vez mais
impossiveis, e das numerosas liter aturas locais e nacionais brotara uma
literatura mundial". 0 l o d a ~ a l de macadame vira a ser urn dos funda
mentos a partir dos quais
brotara
a nova
literatura
mundial do se
culo XX.
26
Mas
ainda
ha
outras
ironias ness a cena primordi al.
0
halo que
cai no
l o d a ~ a l
de macadame se ve a m e a ~ a d o
porem
nao destruido; ao
contrario, e carrega do e incorporado ao fluxo geral do trafego. Urn dos
mais eficazes expedientes
da
economia de trocas , explica Marx, e a
interminavel metamorfose de seus valores de mercado. Nessa econo
mia, tudo
0
que tiver p r e ~ o sobrevivera, e nenhuma possibilidade hu
mana
podera
ser riscada, em definitivo, dos assetltamentos; a cultura
se
torna urn enor me entreposto comercial onde tudo e mantido em es
toque, na
s p e r a n ~ a
de que algum dia, em alguIri lugar , encontre com
prador. Assim,
0
halo que
0
poeta moderno deixa cair (ou atira fora)
como obsoleto talvez se metamorfoseie, em virtude de sua
propria
obso
lescencia , em
urn
icone, objeto de veneraC;ao nostalgica da
parte
da
queles que , como os
"maus poetas"
X e Z estejam tentando fugir
da
modernidade. Todavia
0
artista - ou
0
pensador, ou
0
politico - anti
moderno encontra-se nas mesmas ruas, no mesmo
l o d a ~ a l
como
0
artis
ta moderno. Esse ambiente moder no serve como linha de a ~ a o ao mesmo
tempo fisica e espiri tual- fonte primaria de materia e energia - para
ambos.
A
d i f e r e n ~ a entre
0 modernista e 0
antimodernista:
naquilo que
importa aqui, e que 0 modernista se sente em casa nesse cenario, ao
passo que
0
antimodernista percorreas ruas aprocura de urn caminho
para fora delas.
No
que diz respeito ao trafego , porem, nao
ha
ne
nhuma d i f e r e n ~ a
entre
eles: ambos sao obstaculos e casualidades para
os cavalos e veiculos cujos caminhos eles
cruzam
e
cujoiivre
movimento
impedem.
Entao,
nao importa quao
acirradamente 0
antimodernista
possa apegar-se
a
sua aura de pureza espirituai;ele tambem tendera a
perde-Ia, mais provavelmente cedo do que
tarde,
pelas mesmas raz6es
que levaram 0 modernista a perde-Ia: ele sera f o r ~ a d o a se desfazer do
equilibrio, das mesuras e do decoro e a aprender a
g r a ~ a
dos movi
mentos bruscos para sobreviver. Mais uma vez, nao importa quao
opostos 0 modernista e 0 antimodernista julguem ser: no l o d a ~ a l de
macadame e segundo 0 ponto de vista do tratego interminavel, eles sao
urn so .
156
I
157
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
17/20
Ironias geram mais ironias. 0 poeta de Baudela ire
se
arremessa
de encontro ao
caos do trMego e se esfon;:a nao apenas por sobre
viver, mas
por manter
a propria dignidade em meio ao esfon;o. Con
tucio, seu modo de a ~ a o se assemelha ado
autoderrotado,
pois adiciona
outra variavel imprevisivel a uma totalidade ja instavel. Os cavalos e
seus montadores, os veiculos e seus condutores estao
tentando
ao mes-
mo tempo regular sua propria marcha e evitar 0 choque com os demais.
Se
,
em
meio a isso tudo , eles forem
ainda
f o r ~ a d o s a esquivar-se dos
pedestres que, a qualquer momento, podem arremessar-se na rua, seus
movimentos
se
tornarao
ainda mais incertos e, com isso, mais perigosos
JI
que antes. Logo, tentando opor-se ao caos , 0 individuo so faz agravar
esse mesmo caos.
Mas essa mesma f o r m u l a ~ a o sugere urn
caminho
que talvez con
duza para alem
da
ironia
baudelaireana
e para fora do proprio caos. 0
que aconteceria se as multidoes de hom ens e mulheres, aterrorizados
pelo trMego moderno, aprendessem a enfrenta-lo
unidas?
Isso acon
tecera
exatamente
seis anos apos
A Perda
de Halo
(e
tres anos
apos a morte de Baudelaire), nos dias
da
Comuna em Paris, em 1871,
e novamente em Petersburgo, em 1905 e em 1917, em Beriim, em
1918, em Barcelona, em 1936, em Budapeste,
em
1956,
outra
vez
em Paris, em 1968, e em dezenas de cidades no mundo todo, do tem
po de Baudelaire ate hoje:
0
bulevar sera
transformado
de maneira
abrupta em cenario de uma nova cena modern a primordial. Esta nao
sera.
a especie de cena que Napoleao e Haussmann gostariam de ver,
nao obstante sera
uma
das cenas que a sua forma de urbanismo ajudou
a criar.
A medida que relemos velhas historias, mem6rias e novelas, ou
contemplamos velhas fotos ou noticiarios de cinema, ou encaminhamos
nossas pr6prias fugitivas memorias a 1968, vemos classes e massas in
teiras movendo-se na d i r e ~ a o das ruas, unidas. Sera possivel discernir
duas fases em suas atividades. Primeiro, as pessoas
param
e viram de
roda
para 0 ar
os veiculos em seu caminho, deixando os cavalos em
liberdade: aqui eles se vingam do trMego, decompondo-o em seus iner
tes elementos originais.
Em
seguida, incorporam os
d e s t r o ~ o s
resul
tantes erguendo as barricadas: estao recombinando os elementos iso
lados, inanimados, em novas e vitais formas artisticas e politicas. Du
rante urn momento luminoso, as multid6es de solitarios , que fazem da
cidadE
moderna
0
que ela
e, se
reunem, em uma nova forma de encon
tro , e se tornam povo. As ruas pertencem ao povo : assumem controle
da materia elementar da cidade e a tornam sua . Por urn breve mo
mento,
0
ca6tico modernismo de bruscos movimentos solitarios cede
lugar a urn
ordenado
modernismo de movimento de massa. 0 he
ro ismo da vida moderna , que Baudelaire almejou ver , nascera de sua
158
cena p r i m o r d ~ a l na rua. Baudelaire nao e s p ~ r a que ~ s t a ?u qualquer 6 >. r .,
outra, nova vida
perdure.
Mas ela renascera e contmuara a renascer
0
das
c o n t r a d i ~ e s
internas da rua. Essa possibilidade e urn relance vital
de
e s p e r a n ~ a
para 0
espirito do homem no l o d a ~ a l de
macadame,
no
caos, batendo em retirada.
5 0 SECULO XX: 0 HALO E A RODOVI
Por varios motivos,
0
modernismo das cenas modernas primor
diais de Baudelaire e notavelmente fresco e contemporaneo.
Por o u t r ~
lado,
sua rua
e seu espirito parecem confran gedoramente arcaicos. Nao
porque nosso tempo
tenha
resolvido os conflitos
que
conferem vida e
energia a
Spleen
e
Paris
- conflitos ideologicos e de classe, confIitos
emocionais entre pessoas intimas, conflitos entre
0
individuo e as
f o r ~ a s
sociais, conflitos espirituais dentro do individuo - mas, antes, porque
nosso
tempo
encontrou novos meios de
mascarat
e mistificar conflitos.
Uma das grandes d i f e r e n ~ a s entre os seculos XIX e XX e que 0 nosso
criou
toda
uma rede de novos halos para substituir aqueles de que
0
seculo de Baudelaire e
Marx se
desfez.
Em nenhuma parte esse desenvolvimento e mais claro do que no
ambito do espac;:o urbano. Se tivermos em mente 6s mais recentes com
plexos espaciais
urbanos que
pudermos
imaginar
- todos aqueles
que
foram implementados, digamos, desde 0 fim da Segunda Grande Guer
ra, incluindo os novos bairros urbanos e as novas ddades -
sera dificil
admitir que os encontros primordiais de Baudelaire possam ocorrer at.
Isso nao acontece por acaso: de fato, ao longo de
quase
todo
0
seculo,
e s p a ~ o s
urbanos tern sido sistematicamente plahejados e organizados
para assegurar-nos de
que
confrontos e colisoes serao evitados. 0 signa
distintivo do
urbanismo
oitocentista foi
0
bulevar,
uma
maneira 'de
reunir explosivas f o r ~ a s materiais e humanas;
0
t r a ~ o marcante do ur
banismo do seculo XX tern sido a rodovia,
uma
forma de
manter
sepa
radas essas mesmas f o r ~ a s . Deparamo-nos
aqui
com uma estranha
dialetica, em
que
urn tipo de modernismo ao mesmo tempo
encontra
energia e se exaure a si mesmo, tentando
aniquilar
0
o u t r ~
tudo
em
nome do modernismo.
o que faz a arquitetura modernista do seculo XX especialmente
intrigante para nos e
0
preciso ponto baudelaireano
de que
ela
parte
urn
ponto
que ela logo se empenha em apagaLQuero referir-me a Le
Corbusier, talvez 0 maior arquiteto do seculo XX, com certeza 0 mais
influente, tal como
0
conhecemos em
L Urbanisme
(traduzido em in
gH s com
0
sugestivo titulo de
The City
of
Tomorrow,
A Cidade de
Amanha ), seu
grande
manifest o modernista de 1924. 0 prefac io evoca
uma
experiencia concreta a
partir
da qual,
assimele 0
diz, sua visao se
159
I
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
18/20
desenvolveu.27 Nao e
0
caso de
0
tomarmos ao pe da letra, mas, antes,
de
compreender sua narrativa
como uma
parabola
modernista, formal
mente similar a de Baudelaire. A historia comer;a em urn bulevar _
especificamente 0
Champs
Elysees -
num
fim de
tarde
do verao de
1924. Ele havia saido para uma caminhada ao por-do-sol, apenas para
se ver expulso da rua pelo triifego. Isso acontece meio seculo apos Bau
delaire,
eo
automovel
tinha
feito
sua
aparir;ao nos bulevares, com forr;a
total: "foi como se 0
mundo
tivesse
subitamente enlouquecido .
A cada
momento, assim sentiu Le Corbusier,
a
lUria do triifego crescia. A
cada
dia
sua
agitar;ao
aumentava
. (Aqui a
moldura temporal
e a
in-
tensidade dramatica sao urn tanto rompidas.) Le Corbusier sentia-se
diretamente amear;ado e vulneravel: Oeixar nossa casa significava
que , uma vez cruzilda a soleira da porta, nos estavamos
em
perigo e
podiamos ser mortos pelos carros que passavam . Chocado e desorien
tado, ele
compara
a rua (e a cidade) de entao com a de sua juventude,
antes da Grande Guerra: Recuo vinte anos, a
minha
juventude como
estudante: a estrada entao nos pertencia; cantavamos nela, discutia
mos nela, enquanto os cavalos e veiculos passavam suavemente". 0
grifo e meu.) Isso expressa urn lamento triste e am argo tao velho quanto
a propria cultura, e urn dos temas eternos
da
poesia: U sont les neiges
d 'antan? (Onde
estao as neves de outrora?). Porem,
sua
percepr;ao das
texturas do espar;o
urbano
e do tempo historico
torna sua
nostalgica
visao fresca e nova. A
estrada entao nos pertencia.
A relar;ao dos
jovens estudantes com a
rua
representava a sua relar;ao com
0
mundo:
o mundo era - ou parecia ser - aberto a eles, era deles para que ai se
movessem avontade, em urn ritmo que podia acolher
tanto
as discus
soes quanto a milsica; homens, animais e veiculos coexistiam pacifica
mente em uma especie de Eden urbano; as enormes perspectivas de
Haussmann
dispersaram tudo isso,
na
direr;ao do Arco do Triunfo.
Agora 0 idilio termin ou, as ruas pertencem ao triifego, e a visao precisa
desaparecer, pois assim e a vida.
Como pode
0
espirito sobreviver a esse tipo de mudanr;a? Bau
delaire mostrou urn caminho: transformar os mouvements brusques e
os soubresauts
da
vida
na
cidade
moderna
nos gestos paradigmaticos
de uma nova
arte
capaz de reunir os homens modernos. No extremo
limite da imaginar;ao de Baudelaire, divisamos
outro
modernismo po
tencial: 0 protesto revolucionario que
transforma
a
multidao
de soli
tariqs urbanos em povo e reivindica a
rua
da cidade para vida humana.
Le Corbusier apresentara uma terceira estrategia que
conduzira
a outro
e
extremamente
poderoso tipo de modernismo. Oepois de abrir cami
nho atraves do trMego, mal tendo sobrevivido, ele
da
urn saito subito e
ousado: identifica-se
por
inteiro com as forr;as
que
0 estavam pressio
nando:
16
'
Naquele I? de outubro de 1924, eu assistia ao titanico r e n s ~ i m e n t o d e
urn novo fenomeno ( .. ), 0 trifego. Carros, carros, rapidos,
rapidost
' . .);:....
Uns disparam, repletos de entusiasmo e aiegria ( ..), a alegria do po: '
der. Q simples e ingenuo prazer de
se
encontrar
ern
meio ao poder, a
forc;a.
Qutros participam disso. Qutros fazem
parte
dessa sociedade,
que esta apenas despertando. Qutros confiam nessa sociedade: encon
trarao a magnifica expressao do seu poder. Qutros acreditam nisso.
Esse saito de fe orwelliano e tao rapido e desconcertante (como
0
tra
fego)
que
Le Corbusier
mal
se
da
conta de 0 haver executado.
Num
momento, ele e 0 nosso conhecido homem
baudelaireano na rua,
esqui
vando-se e lutando contra 0 trMego; no momento seguinte, seu ponto
de vista sofreu uma guinada tao radical que ele agora vive, se move e
fala de dentro do triifego. Num momenta ele fala de
si
mesmo, de
sua
propria vida e experiencia - Recuo vinte an os ( ...
):
a
estrada
entao
nos pertencia ; no
momenta
seguinte a voz pessoal desaparece, dissol
vida na vaga do processo historico mundial; 0 novo sujeito e 0 impes
soal on,
uns ,
insuflado de vida pelo novo
poder
mundial. Agora, em
vez de sentir-se amear;ado, ele se sente imerso, crente, participante.
Em
vez dos mouvements brusques e soubresauts, que Baudelaire viu como
a essencia da vida
modern
a cotidiana, 0
homem moderno
de Le Cor
busier
fara
urn movimento gigantesco,
que
tornara
desnecessarios os
movimentos seguintes, urn
grande saito
que sera
0 ultimo.
0
homem na
rua se incorporara ao novo
poder
tornando-se 0
homem
no carro.
A perspectiva do novo homem no carro gerara os paradigmas do
planejamento e design urbanos do
s ~ c u l o
XX 0 novo homem, diz Le
Corbusier, precisa de outro tipo de rua , que
sera
uma maquina para
o triifego", ou,
para
variar a metiifora basica, utha
fabrica para produ-
zir triifego". Uma rua verdadeiramente
o d e r r i ~
precisa ser bern equi
pada como uma fabrica".28 Nessa rua, como na
fabrica
moderna, 0 mo
delo mais bern
equipado
e 0 mais altamenteautomatizado:
nada
de
pessoas, exceto as
que
operam as
maquinas;
nada de pedestres desprote
gidos e desmotorizados para retardar 0 fluxo. Cafes e pontos de recrea
cy3 0 deixarao de ser os fungos que sugam a paviinentacyao de Paris".29
Na cidade do futuro, 0 macadame
pertE!flCera
somente ao trafego_
A partir do relance magico de Le Corbusier nos
Champs
Elysees,
nasce a visao de urn novo mundo: urn mundo
inteiramente
integrado de
torres altissimas,
circundadas
de vastas extens5es de grama e espacyo
aberto
- a torre no parque
-
igado
por
super-rodovias aereas, servido
por garagens e
shopping-centers
subterraneos. Essa visao tern urn argu
mento politico
muito
ciaro, expresso nas palavras finais de Towards a
New Architecture: Arquitetura ou Revoluc;ao. A Revolucyao pode ser
evitada
_
161
http:///reader/full/desenvolveu.27http:///reader/full/fabrica%22.28http:///reader/full/fabrica%22.28http:///reader/full/Paris%22.29http:///reader/full/desenvolveu.27http:///reader/full/fabrica%22.28http:///reader/full/Paris%22.29
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
19/20
As implicac;oes politicas
nao
foram
inteiramente apreendldas
no
momenta
- e nao se
sabe
se Le Corbusier estava de todo atento a
elas
-
mas
nos
agora
temos condic;5es de compreende-las.
Tese,
tese
defendida pela o p u l ~ o urbana, a partir de 1789, ao longo de todo 0
seculo XIX
enos gran
des lev antes revolucionarios do final
da
Primeira
Guerra:
as
ruas pertencem
ao povo.
Antltese,
e eis a
grande
contribui
c;ao
de Le Corbusier: nada de ruas, nada de Povo. Nas
ruas da
cidade
pos-haussmanniana,
as contradic;oes sociais e
psiquicas
fundamentais
da
vida
modern
a
continuam atuantes,
em
permanente
ameac;a de erup
c;ao Contudo,
se essas
ruas puderem
simples
mente
ser riscadas do
mapa
- Le
Corbusier
0
disse,
bastante
claro, em 1929: "Precisamos
matar a rua!"
30 -
talvez essas contradic;oes
nunca venham
a nos mo
lestar. Assim, a arquitetura e 0
planejamento modernistas criaram uma
versao
modernizada da
pastoral: urn
mundo espacialmente
e social
mente segmentado
- pessoas
aqui,
trafego ali;
trabalho aqui,
mora
dias acola; ricos
aqui, pobres la adiante;
no meio,
barreiras
de
grama
e
concreto,
para que
os halos
possam
comec;ar a crescer outra vez sobre
as cabec;as
das
pessoas.
*
Essa especie de modernismo deixou
marcas profundas
nas nossas
vidas. 0 desenvol vimento das cidades nos ultimo s quarenta anos,
tanto
nos paises capitalistas como nos socialistas,
combateu
de forma siste
matica, e
em muitos
casos conseguiu eliminar, 0 "caos" da vida
urbana
do seculo
XIX.
Nos novos
ambientes urbanos
- de Lefrak City a Cen
tury City, do
Peachtree
Plaza, de
Atlanta, ao
Renaissance Center, de
Detro it - a ve lha
rua moderna, com sua volatil mistura de pessoas e
trafego,
negociose
residencias, ricos e pobres, foi
eliminada,
cedendo
lugar a
compartimentos
separados, com
entradas
e saidas estritamente
monitorizadas e controladas, atividade de
carga
e descarga
por
tras
da
cena, de
modo
que
estacionamentos
e
garagens subterraneas
repre
sentam a {mica mediac;ao possive!.
Todos esses espac;os e todas as pessoas
que
os
ocupam
sao bern
mais organizados e protegidos do
que qualquer
espac;o ou pessoa
na
cidade de Baudelaire. Uma nova
onda
de modernizac;ao,
apoiada
em
uma ideologia
de modernismo em
desenvolvimento, neutralizou as for
(0)
Le Corbusier nunca chegou a fazer muitos
v n ~ o s
em seus infatigaveis
e s f o ~ o s
para
destruir Paris. Mas muitas de suas
visOes
mais grotescas
se
concretizaram
na
era Pompidou. quando
vias expressas elevadas dividiram a Rive Droite.
os
grandes mercados de Les HalJes foram demolidos,
dezen'as
de
i'uas prosperas foram eliminadas e
bamos
veneraveis,
na
sua totaJidade. se rransfonnaram
em Ies promoteurs e desaparecera m sem deixar vestigios. Veja·se Nonna Evenson, Paris:
Um
Se·
cufo
de
Mudan,a,
1878-1978 (Yale, 1979); Jane Kramer, "Urn 'lep6rter na Europa: Paris". In:
The
New Yorker. 19
/ 6/1978; Rich; rd Cobb,
0
Assassinato de Paris". In:
New York Review
of
Books,
7/
211980.
e varios dos ultimos IiIrnes
de
Godard, especialmente Duas ou Tres Coisas que eu Sei
Oela
(1973).
162
I .
c;as anarquicas
e explosivas
que
a modernizac;ao
urbana, outrora,
havia
.
reunido. Nova
Iorque e
hoje uma
d_as poucas cidades american
as
em
que ainda
poderiam ocorrer
as
cenas primordiais de
Baudelaire.E essas
velhas cidades,
ou
segmentos
de
cidades, guardam pressoes incomen
suravelmente mais ameac;adoras do que aquelas divisadas por Baude
laire. Sao cidades economica e politicamente condenadas como obso
letas, assediadas
por
uma deterioraC;ao cr onica,
minadas
pelo desinves
timento, vazias de
oportunidade
de crescimentci,
constantemente
per
dendo terreno para areas consideradas
mais "modernas". A
tragica
ironia do urbanismo modernista e que seu triunfo ajudou a destruir a
verdadeira vida urbana
que
ele urn dia almejou Iibertar.
*
Em curiosa correspondencia com esse
achatamento da
paisagem
urbana,
0 seculo XX
produziu
tam bern urn desolador
achatamento
do
pensamento
socia!. 0
pensamento
serio sobre
a vida
modern a polari
zou-se
em duas
antiteses estereis,
que podem ser chamadas,
como su
geri antes, "modernolatria" e "desespero cultural". Para os moderno
latras, de Marinetti, Maiakovski e Le Corbusier a Buckminster Fuller,
o ultimo Marshall
McLuhan
e
Herman Kahn, todas
as dissonancias
sociais e pessoais
da
vida
moderna podem ser
resolvidas
por
meios tec
nol6gicos e administrativos; os meios estao todos
amao,
e
tudo 0 que
e
necessario
sao
lideres dispostos a usa-los.
Para
os visionarios do deses
pero
cultural, de
T. E.
Hulme, Ezra Pound, Eliot
e
Ortega,
a Ellul,
Foucault,
Arendt
e Marcuse,
toda
a vida
moderna
parece oca, esteril,
rasa,
"unidimensional",
vazia de possibilidades :
humanas:
tudo
0
que
se assemelhe a
liberdade ou
beleza e
na verdade l m
engodo,
destinado
(0)
Isso pede
uma
e x p l i c a ~ o Le Corbusier sOnhou com
uma
uItramodernidade capaL
de
cicatrizar as feridas
da
cidade moderna. Mais tfpico do niovimento
modernist.
em arquitetura
foi 0
intenso e desquaJificado odio pela cidade e a incansavel
e s p e r a n ~ a
de que
0
design e
0
planejamento
modemos poderiam risca-Ia do mapa. Urn dos primeiros cliches modemlstas foi a
c o m p a r a ~ ~ o
entre a
metropole e a carruagem ou (depois
da
Primeira Grande Guerra)
0
cabrloie . Uma tipica
o r i e n t a c ; : ~ o
modernist a em r e l a ~ l . o
a
cidade pode
seT
encontrada em Espa90,
TemPI:
e Arquitetura, a obra monu
mental do disclpulo rnais bern-dot ado de Le Corbusier, 0 livro que, mais do que qualquer outro. foi
usado
par duas
g e r a ~ O e s como 0 canone do modemismo. A edic;:lio original do livro, composto em
1938-39,
tennina com a
e x a i t a ~ l i o
do novo complexo rodoviltrio urbano, de Robert Moses. que Gie
dion
ve
como
0
modelo ideal para
0
planejamento e a
c o n s t r u ~ a o
do futuro. A rodovia demonstra que
"nlio
ha
mais lugar para a
rua
urba na, com trMego pes ado corrend.o entre fileiras de casas; nlio
se
pade perrnitir que isso persist
a"
(p.
832).
Essa ideia
vern
diretamente
de L 'Urbanisme; 0
que difere. e
Incomoda,
eo
tom. 0 entusia smo IIrico e visionario
de
Le Corbusier loi substituido'pela truculent a e
a m e a ~ a d o r a
impaciencia do comissario. "Nlio se pode perrnitir que isso
persist.":
a polleia
n ~ o
faria
melbor. Ainda rnais ominoso e0 que vern em seguida: 0 comphixo rodoi-iario urbano "aponta para
urn futuro em que, depois que a necessaria cirurgia for realizada, a cidade artificial sera reduLida a
ICU
tamanho
natural"
. Essa passagem, que tern
0
arrepiante efeito de
uma
nota marginal de Mr.
Kurtz, mostra como a campanha contra a rua, por duas
g e r a ~ O e s
de planejadores.
foi
apenas uma
lase
de uma
guerra ainda mais ampla, contra a pr6pria cidade moderna :
o
antagonismo entre a arquit etura modem a
e
a cidade e
e ~ p l o r a d o
com sensibilidade por
Robert Fishman. em
Utopias Urban
as
no Seculo
(Basic Books,
1977).
163
, .1'
-
8/18/2019 Berman Baudelaire O Modernismo Nas Ruas
20/20
a produzir escr:..viza Yao e horror a ada mais profundos.
E
preciso no· "
tar, antes de
mc.is nada,
que ambas as form as de pensamento passam
ao largo das divisoes politicas em esquerda e direita; segundo, que
muita gente aderiu alternadamente a urn e o u t r ~ desses p610s, em dife-
rentes momentos de suas vidas, e que aiguns tentaram ate mesmo
ade-
rir a ambos, simultaneamente. Podemos encontrar ambas as polarida
des em Baudelaire, que, de fato (conforme sugeri antes), pode reivin
dicar ter side b inventor de ambas. Mas podemos igualmente ver em
Baudelaire algq que falta
a
maioria dos seus sucessores: a vontade de
com bater ate a exaust ao as complexidades e contradi'YOes da vida mo-
dema,
a fim de
encontrar
e criar a si mesmo em meio
a
ang6stia e
a
beleza do caos.
E ironico que, tanto na teoria como na pratica, a mistifica'Yao da
vida modema, bern como a destrui'Yao de algumas das suas mais
atraentes possibilidades, tenha sido levada a termo em nome do pr6
prio modernismo em progresso. No entanto, a despeito de tudo, 0 velho
caos manteve - ou talvez renovou - sua influencia sobre muitos de
nos.
0
urbanismo das duas ultimas decadas conceptualizou e consoli
dou essa influencia. Jane Jacobs escreveu urn livro profetico sobre esse
novo urbanis mo: Morte e Vida das Grandes Cidades Norte-americanas,
publicado em 1961. 0 primeiro, b rilhante, a rgumento de Jacobs e queos
espa Yos urbanos criados pelo modemismo eram fisicamente limpos e
ordenados, mas social e espiritualmente mortos; 0 segundo, que foram
tao-s6 os vestigios
da
congestao, do barulho e da dissonancia geral
do
seculo XIX que mantiveram viva a vida urbana contemporanea; 0
ter-
ceiro, que 0 velho
"caos"
urbano na verdade constituia uma ordem
human a maravilhosam ente rica e complexa, de que os modemistas nao
se deram cont a apenas por que seus paradigm as de ordem eram meca
nicos, redutivos e frivolos; por fim, que tudo 0 que passa
por
moder
nismo, em 1960, pode logo
se
tomar evanescente e obsoleto.* Nas duas
(0)
"£ perturbador pensar que os jovens de hoje, recebendo agora
0
treinamento bAsico para
suas carreiras dev rn aceitar
t
na preSunfQO de que estejam dot ndo um pens mento moderno
c o n c e p ~ O e s sobre cidades e trMego
que
sao nAo apenas inviaveis, mas n30 acrescentam
nada de
significativo aquilo que se sabia quando seus pais eram c r i a n ~ a s . (Morte e Vida das Grandes Cida·
des Americanas. Random House
&
Vintage, 1961. p. 371. -
0
grifo e de Jacobs .) A perspectiva de
Jacobs e desenvolvida de forma interessante por Richard Sennett, em Os Usos da Desordem: Identi·
dade Pessoal e Vida
da
Cidade (Knopf , 1970), e por Robert Caro, em 0 Corretor Poderoso: Robert
Moses e a Queda
de
Nova /orque (Knopf, 1974). Existe ainda urna rica bibliografia europeia nessa
d i r ~ a o
Veja-se, por exemplo,
A Cidade: Nova Cidade ou Cidade Dormit6ri o,
de Felizitas Lenz
Romeiss, de 1970, traduzido do alemAo por Edith Kuestner e Jim Underwood (Praeger, 1973) .
No ambito profissional da arquitetura. a critica a especie de modernismo de Le Corbusier,
e das esterilidades do Estilo Internacional, como urn todo, c o m ~ com Robert Venturi, em Comple·
xidade e ContradifDo
em
Arquitetura.
com i n t r o d u ~ A o de Vincent
ScuUy
(Museu de Arte Moderna.
1966). Na ultima decada isso se tomou nao s6 generalizadamente aceito, como gerou por sua conta
uma nova ortodoxia. Tudo isso foi coelificado claramente por Charles Jencks, em A Linguagem
do
Arquirelura P s -
modem
(Rizz.oli, 1977).
164
ultimas decadas, essa perspectiva granjeou larga aceita'Yao e entu
--'
siasmo, levando milhares de americanos a
lutar
de maneira apaixonada
!
para salvar seus bairro s e cidades da investida furiosa da modemiza'Yao
motorizada. Qualquer movimento para interromper a constru'Yao de
uma rodovia e uma tentativa de fazer que 0 velho caos volte
a
vida. A
despeito de esporadicos exitos locais, ninguem tern demonstrado pos
suir poder suficiente
para
enfrentar 0 vasto poder acumulado do halo e
d rodovia. Entretanto, tern surgido pessoas em numero suficiente, do
tadas de bastante paixao e dedica'Yao, para criar uma forte contracor
rente, capaz de
dar
avida
da
cidade
uma
nova tensao, excita da e como
vida, enquanto esta durar. E existem indicios de que ela pode
durar
bern mais do que qualquer urn - mesmo os que a amam intensamente
- chegou a imaginar. Em meio receio e s ansiedades da atual crise
energetica, a pastoral motorizada parece estar se desfazendo.
A
me
dida que isso acontece, 0 caos das nossas modemas cidades do seculo
XIX parece a
cada
dia mais ordenado e mais atuaiizado. Assim, 0 mo
demismo de Baudelaire, tal como 0 descrevi aqui, talvez se revele
ainda
i
mais relevante em nosso tempo do que 0
foi
entao; os homens e mulhe
res urbanos de hoje talvez sejam aqueles com quem, em sua pr6pria
imagem, ele esteve desde sempre
epouse,
I
Tudo isso sugere que 0 modemismo contem suas pr6prias contra
di Yoes e tensoes dialeticas interiores; que determi nadas form as de pen
samento e visao modemistas podem solidificar-se em ortodoxias dog
maticas e tomar-se arcaicas; que outras formas de modernismo podem
ficar submersas por gera'Yoes, sem chegar a ser suplantadas; e que as
1
mais fundas feridas sociais e psiquicas
da
modernidade podem ser
indefinidamente tampadas, sem chegar a cicatrizar de fato. A asp ra
~ a o contemporanea
por uma
cidade que seja abertamente turbulenta
i
mas intensamente viva corresponde
a
a ~ p i r a ~ a o de voltar a expor
fe-
I
ridas antigas mas especificamente modemas. Ea aspira'Yao de conviver
abertamente com 0 carater dividido e irrecondliavel de nossas vidas e
extrair energia do am ago mesmo de nossos
s f o r ~ o s ,
onde quer que isso
.
nos conduza, no final. Se pudemos aprender, com urn dos modemis
mos, a 'construir halos em tome de nossos e s p a ~ b s e em tome de n6s
mesmos, podemos aprender com 0 outro modemismo - urn dos mais
velhos porem, como acabamos de ver, tambem urn dos mais novos - a
perder nossos halos e encontrar -nos, outra vez.
}
I
I;
' :1
' I
f
i
i
165
.,