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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA BEATITUDE E SABEDORIA EM AGOSTINHO: Estudo sobre as fontes pagãs no De Beata Vita a partir do uso do termo philosophia Adriano Cesar Rodrigues Beraldi Dissertação de Mestrado em Filosofia Vitória, Julho de 2010

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    BEATITUDE E SABEDORIA EM AGOSTINHO: Estudo sobre as fontes pags no De Beata Vita a partir

    do uso do termo philosophia

    Adriano Cesar Rodrigues Beraldi

    Dissertao de Mestrado em Filosofia

    Vitria, Julho de 2010

  • 1

  • 2

    Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

    Beraldi, Adriano Cesar Rodrigues, 1967-

    B482b Beatitude e sabedoria em Agostinho : estudo sobre as fontes pags no De beata vita a partir do uso do termo philosophia / Adriano Cesar Rodrigues Beraldi. 2010.

    113 f. Orientador: Jorge Augusto da Silva Santos. Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Esprito Santo,

    Centro de Cincias Humanas e Naturais. 1. Felicidade. 2. Sabedoria. 3. Razo. 4. F. 5. Vontade. 6.

    Autonomia. I. Santos, Jorge Augusto da Silva. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias Humanas e Naturais. III. Ttulo.

    CDU: 101

  • 3

    A Isabela e Alcida, sempre

    presentes na minha vida.

    A Argemiro, sempre presente

    na minha memria.

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    A todo corpo docente do departamento de Filosofia da Universidade Federal do Esprito

    Santo; minha famlia pela compreenso diante das interminveis horas de ausncia; ao Bento

    pela permanente disponibilidade e dedicao; ao Abdo, ao Antnio, ao Christiano e ao Wellis pela

    amizade e valiosos debates, que contriburam decisivamente para essa realizao.

  • 5

    Nemo... potest quisquam alias beatus esse, alias miser; qui enim existimabit posse se miserum esse

    beatus non erit; nam cum suscepta semel est beata vita; tam permanet quam ipsa illa effectrix

    beatae vitae sapientia neque expectat ultimum tempus aetatis.

    Ningum... pode algumas vezes ser feliz e outras infeliz; aquele que pense que pode vir a ser

    infeliz, j no feliz; mas, quando pela sabedoria se alcana a vida feliz, esta to permanente

    quanto a prpria sabedoria de que produto, nem h que se esperar para tal o derradeiro momento

    da vida. CCERO, De finibus bonorum et malorum, II, 87

    Quid enim prohibet nos beatam uitam dicere liberum animum et erectum et interritum ac stabilem,

    extra metum, extra cupiditatem positum, cui unum bonum sit honestas, unum malum turpitudo,

    cetera uilis turba rerum nec detrahens quicquam beatae uitae nec adiciens, sine auctu ac

    detrimento summi boni ueniens ac recedens?

    O que impede de dizer que uma vida feliz uma alma livre, elevada, intrpida, estvel,

    inacessvel, tanto ao medo como cobia, cujo nico bem a honestidade, e o nico mal, o

    aviltamento, e tudo o mais, um monte de coisas vis, que no tiram nem acrescentam nada

    felicidade da vida, indo e vindo, sem aumentar nem diminuir o sumo bem? SNECA, De vita

    beata, IV, 3.

    ... , , .

    Fujamos, ento, para a nossa querida ptria... Nossa ptria o lugar de onde viemos, e nosso Pai

    est l. PLOTINO, Enadas, I, 6.

  • 6

    SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................................................ 08

    1. CAPTULO I BEATITUDE E SABEDORIA NA TRADIO FILOSFICA

    ANTERIOR.....................................................................................................................................12

    1.1 Felicidade: uma etimologia..................................................................................................... 12

    1.2 Itinerrio espiritual em busca da beatitudo............................................................................18

    1.3 A virtude para a felicidade em Ccero................................................................................. 22

    1.4 A vida feliz senequiana............................................................................................................ 27

    1.5 A eudaimonia em Plotino........................................................................................................ 32

    2. CAPTULO II BEATITUDE E AS IMAGENS DA PHILOSOPHIA NO DE BEATA

    VITA.................................................................................................................................................39

    2.1 Algumas diferenas entre Agostinho e a tradio pag....................................................... 41

    2.2 Beatitudo agostiniana: panorama geral................................................................................ 48

    2.3 Philosophiae portus e arx philosophiae........................................................................................ 53

    2.4 O problema da felicidade......... 68

    2.4.1 Nutrio para a alma........... 70

    2.4.2 Nequitia e frugalitas................................................................................................................73

    3. CAPTULO III A SABEDORIA............................................................................................76

    3.1 Posse de Deus e a felicidade.................................................................................................... 79

    3.1.1 Carncias (egestas e stultitia) e plenitude espirituais............................................................. 81

    3.2 Suma Medida e Trindade...................................................................................................... 86

    3.3 A felicidade no tempo no De beata vita.............................................................................. 91

    CONCLUSO.............................................................................................................................. 101

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................... . . . . . . . . . 106

  • 7

    RESUMO

    O objetivo desse texto uma anlise acerca dos influxos do pensamento pago sobre

    Aurlio Agostinho (354-430), dentro dos limites de sua obra De beata vita. Trata-se de um dos

    primeiros escritos do ciclo inicial (de novembro de 386 a maro de 387), os dilogos do chamado

    jovem Agostinho. Para tanto, nos valemos do emprego que o autor faz do termo philosophia ao

    longo da obra, como fio condutor de nossa pesquisa. As imagens da philosophia desenvolvidas a

    partir desse uso permitem expor tanto as influncias do pensamento pago anterior ao nosso

    filsofo, quanto destacar sua original concepo sobre a questo central do dilogo: a felicidade.

    Nesse esforo, lanamos mo de outras de suas obras desse perodo inicial, uma vez que pertencem

    ao mesmo mbito especulativo. Com isso, procuramos tambm demonstrar como neste primeiro

    Agostinho, reside uma possibilidade para a noo da felicidade no exclusivamente escatolgica,

    mas ainda nessa vida.

    Palavras-chave: Philosophia. Felicidade. Sabedoria. Ecletismo. Estoicismo. Neoplatonismo. Alma.

    Plenitude.

    ABSTRACT

    The aim of this paper is to provide an analysis concerning the influxes of pagan thought

    about Aurelius Augustine (354-430), within the limits of his work De beata vita. This is one of the

    earliest writings of the initial cycle (from November of 386 to march of 387), the dialogues of the

    called young Augustine. For this, we resorted to the employ that the author makes of the term

    philosophia throughout the book as a conductor thread of our research. The images of philosophia

    developed from that use allow to expose the influences of pagan thought prior to our philosopher,

    as much as to feature his original conception on the central issue of the dialogue: the happiness. In

    this effort, we used others of his works of this initial period, once belong to the same speculative

    range. With this, we also tried to demonstrate how in this first Augustine, lies a possibility for

    the notion of happiness not only in an eschatological way, but even in this life.

    Key-words: Philosophia. Happiness. Wisdom. Ecletism. Stoicism. Neoplatonism. Soul. Plenitude.

  • 8

    INTRODUO

    O tema a que nos propomos aqui se estabelece dentro do quadro de uma investigao de

    algumas das bases filosficas da noo de felicidade de Agostinho de Hipona (354-430) ou, mais

    especificamente, daquele que se convencionou chamar de jovem Agostinho, isto , o Agostinho

    dos primeiros dilogos, ou ainda o Agostinho dos Dilogos filosficos. Dentre estes est o

    ncleo do nosso estudo: o De beata vita (A vida feliz).

    O que nos motiva nessa empreitada a convico de que essa noo ajuda a explicar em

    boa medida que, se existe uma grande originalidade no pensamento deste que se constituiu em um

    dos principais representantes da Patrstica latina, ela no se d descolada de toda uma tradio

    filosfica de natureza pag, e que em suas influncias mais diretas trabalharemos aqui. Neg-lo,

    atribuindo exclusividade de fontes crists aos elementos fundamentais do pensamento agostiniano,

    relegando ao nvel do meramente acessrio aspectos da filosofia greco-romana que o antecedeu,

    teria como conseqncia imediata vetar-lhe o carter propriamente filosfico, atribuindo-lhe a

    condio exclusiva no pequena, mas que o descreveria, convenhamos, de modo muito

    insuficiente de um dos inaugurais telogos do Cristianismo. No , em absoluto, apenas desta

    maneira que devemos entender a profunda contribuio de Agostinho no quadro geral do

    pensamento ocidental.

    Se os representantes daqueles influxos pagos foram para Agostinho, e continuaram sendo

    para toda a tradio filosfica do Ocidente, imprescindveis, inevitveis fontes de um dilogo

    permanente que deve caracterizar a prpria concepo de filosofia, ento, de modo idntico para

    esta mesma tradio, nosso pensador ocupa, quando pouco, um equivalente status. Porm, se o

    suscitar de seu pensamento se apresenta acerca de um tema to inaugural quanto a prpria

    filosofia, ou seja, a questo da felicidade, a a importncia de sua pesquisa assume propores

    verdadeiramente definitivas.

    A concepo do tema da felicidade ou, nos termos de nosso autor, da beatitudo dentro

    dos limites daquelas obras iniciais de Agostinho abordada mais propriamente nesse tratado

    supracitado denominado De beata vita. Trabalho em forma dialogal, esta reflexo faz, explcita e

    implicitamente, indelveis referncias s concepes da tradio que o antecede. No prprio

  • 9

    prembulo da obra1 estas referncias j comeam de um modo ou de outro a surgir. Nele, veremos,

    Agostinho urde uma alegoria na qual a beatitudo o objetivo a ser alcanado pelos navegantes em

    um vasto oceano, metfora2 para a nossa condio existencial.

    Mas para que possamos compreender essa abordagem inicial do tema da felicidade em

    nosso pensador fundamental que tenhamos em conta que, uma vez deparados com a filosofia

    agostiniana, nos havemos tambm com um momento de transio do pensamento ocidental que

    acompanhava as grandes mudanas histricas processadas em seu tempo.

    medida que o Cristianismo, desde o governo ocidental de Constantino (312-324),

    conquistava internamente o Imprio Romano, este era, em concomitncia, ameaado externamente

    por brbaros germnicos. Aps a morte de Constantino ocorrida em 337, diviso do Imprio

    entre seus trs filhos seguiu-se um perodo de intermitente conflito dinstico, acentuado por

    diferenas religiosas. Nesse nterim nasce Agostinho, em Tagaste, no norte da frica, filho de pai

    pago e me crist.

    Ao trmino dessa fase do Imprio, surge como vitorioso o ltimo dos litigantes, Teodsio,

    cujo vigoroso combate quelas ameaas externas conferiu-lhe o ttulo de o Grande, e que

    governou entre 379 e 395. Justamente durante seu governo que Agostinho converte-se ao

    Cristianismo (em 386) e vai para o retiro de Cassicaco onde produzir os acima referidos

    Dilogos filosficos fato que retomaremos mais frente. Foi tambm sob Teodsio que o

    Cristianismo torna-se oficialmente, por decreto (em 380), a nica religio do Imprio Romano.

    Era, portanto, indubitavelmente, uma poca de grandes transformaes e rupturas e o nosso

    filsofo no escapava desse contexto3.

    Porm, o que coloca Agostinho numa posio inaugural da teologia crist medieva e pea

    chave da Patrstica latina o fato de que, apesar de utilizar as especulaes filosficas greco-

    1 Dedicada a seu companheiro de converso Manlio Theodoro, fato lamentado mais tarde em suas Retractationes. Sobre M. Theodoro, cf. infra, n. 168. 2 O estilo metafrico percorre praticamente toda a obra, sendo uma de suas mais interessantes marcas. Esse aspecto do De beata vita valeria, certamente, um estudo prprio. Mas aqui tal signo aparecer mencionado somente de passagem, pois, levado a cabo na profundidade que merece, extravasaria e muito nosso propsito especfico. 3 De fato, os acontecimentos do seu tempo esto de tal forma misturados na sua vida e nas suas concepes filosficas e teolgicas, que, mais tarde, justamente enquanto o visigodo Alarico I invadia e saqueava Roma, em 410, Agostinho escrevia sua De civitate Dei contra paganos, onde apontava para a salvao da Cidade Celestial ultramundana, ao passo que ardia na decadncia a outrora mais poderosa cidade dos homens. Era o prenncio do fim: Bispo de Hipona (sua ordenao data de 395), Agostinho morre em 430, enquanto a cidade era assediada pelos vndalos. O Imprio Romano do Ocidente no o ultrapassaria de muito: em 476, d-se sua queda final sob um aglomerado de foras germnicas chefiadas por Odoacro e que, aps invadirem novamente Roma, depem seu ltimo Imperador, Rmulo Augstulo.

  • 10

    romanas na construo da razo da beata vita, ele evitou, ao mesmo tempo, aquilo que foi, para

    ele, o maior engano daquelas: acreditar que a felicidade verdadeira possa ser fruto apenas do

    prprio esforo, ainda que reto e virtuoso, da ratio (razo) e da voluntas (vontade) humanas. Ora,

    como o pensamento pago por motivos bvios no conhecia a Graa crist, simplesmente no

    reunia, para Agostinho, todas as condies necessrias para atingir o Sumum Bonum, o Bem

    Supremo, s encontrado em Cristo.

    Contudo, tal no impede que Agostinho tenha em comum com aquele pensamento um

    ponto de partida essencial: a certeza de que todos ns tendemos para a felicidade, o que significa,

    em termos agostinianos, um tender Verdade4, como haveremos de constatar. E, ainda que no de

    forma exclusiva, veremos que a matriz de sua reflexo ser, mesmo no cristo Agostinho, ou ao

    menos neste primeiro Agostinho, recm-convertido ao Cristianismo, indelevelmente

    logocntrica: a chave para a vida feliz o conhecimento. A sabedoria uma conditio sine qua non

    para a beatitudo nesse tratado. Os modelos, as caractersticas e as condies que concorrem para

    construo e o entendimento dessa sabedoria so, na realidade, toda a base do De beata vita.

    Portanto, so tambm elementos incontornveis de nossa investigao.

    Metodologicamente, desenvolvemos essa pesquisa em trs nveis:

    Ao nvel filolgico, buscamos fixar a evoluo do conhecimento textual concernente s

    fontes de Agostinho quanto ao tema da felicidade, o que significou evocar algumas das idias da

    filosofia clssica greco-romana.

    Ao nvel hermenutico, num primeiro momento, procuramos interpretar os elementos

    fundamentais da noo mais inaugural de felicidade em Agostinho. Para tanto, nos valemos do uso

    do termo philosophia como nosso fio condutor ao longo da obra De beata vita, objeto especfico

    do presente esforo. Tambm nos utilizamos de outros de seus trabalhos, na medida em que

    contribussem para a compreenso daqueles elementos. Num segundo momento, examinamos

    fontes pags prximas ao nosso autor (e algumas mais remotas), para identificar o contexto de sua

    recepo.

    Finalmente, ao nvel crtico, nos propusemos individualizar os elementos originais da

    noo de felicidade de Agostinho e as questes que dizem respeito s imagens da philosophia

    4 Certeza que, de todo, no destoaria, por exemplo, da notria frmula com a qual Aristteles abre sua Metafsica: Todo homem tende, naturalmente, para o saber ( Metafsica I, 1, 980 a 22), que, na teleologia da tica aristotlica, significava um tender tambm para a felicidade.

  • 11

    presentes no De beata vita. Contamos, aqui, com o auxlio de autores nossos contemporneos que

    se dedicaram ao tema. Esse procedimento visou estabelecer, o mais nitidamente possvel, at que

    ponto esse jovem Agostinho encontra-se, realmente, eivado dos influxos da filosofia pag. A

    partir disso, pudemos entrever a possibilidade para uma concepo da felicidade agostiniana ainda

    nesta vida.

    Assim, no incio do primeiro Captulo do nosso trabalho procuramos esclarecer a acepo

    agostiniana do termo beatitudo atravs de um recurso etimolgico, bem como fixar brevemente

    seu itinerrio espiritual at a converso e a subseqente produo das obras de Cassicaco, em

    especial, claro, o De beata vita. Em seguida, esse Captulo traz algumas das mais emblemticas

    influncias da filosofia anterior sobre Agostinho acerca do tema em seus contedos e elementos

    prprios. Trata-se da noo geral de felicidade em Ccero, Sneca e Plotino.

    Comeamos o segundo Captulo, assinalando algumas das mais importantes diferenas

    entre Agostinho e suas influncias apresentadas no Captulo anterior. Em seguida, procuramos

    desenvolver as imagens que a philosophia assume no De beata vita, compreendidas em dois

    grandes grupos: o do philosophiae portus (porto da filosofia) e o da arx philosophiae (pice da

    filosofia), onde surgem, mais propriamente, as aproximaes com a tradio filosfica pag.

    Dentro desse quadro referencial analisamos como Agostinho lida com as especificidades

    relacionadas ao problema da felicidade no texto.

    O terceiro e ltimo Captulo, dando continuidade s imagens da philosophia, trata da

    questo da sabedoria, seu alcance na teleologia da felicidade desenvolvida no De beata vita e sua

    relao com a plenitude espiritual na posse de Deus e a Suma Medida, idias trabalhadas por

    Agostinho na obra. Finalmente, a partir dos frutos da investigao dessas idias e das anlises dos

    Captulos anteriores pretendemos conduzir uma reflexo sobre a interpretao do De beata vita

    como um caminho para a possibilidade do homem pensar a felicidade, no apenas fora do

    tempo, mas ainda nesta vida.

  • 12

    1. CAPTULO I

    BEATITUDE E SABEDORIA NA TRADIO FILOSFICA ANTERIOR

    1.1 Felicidade: uma etimologia

    Antes de qualquer coisa, para comearmos a empreender a investigao a que nos

    propomos, parece-nos apropriado um breve recurso em carter preliminar, que visa justamente o

    esclarecimento da palavra que designa o objeto da reflexo de Agostinho sobre o tema, isto , o

    horizonte etimolgico deste termo felicidade5, desde onde nosso pensador articula-se para

    construir sua reflexo. Esse procedimento permitir o melhor entendimento do emprego do termo

    em nosso texto, bem como o de outros que a tradio filosfica anterior adotou para significar a

    sua noo.

    O latim possui pelo menos dois termos para identificar aquilo que podemos entender por

    felicidade que, embora no estejam totalmente desarticulados, guardam entre si notveis

    diferenas: felicitas e beatitudo6. O primeiro vem diretamente da palavra tambm latina felix, cujo

    significado imediato, por sua vez, frtil ou fecundo, a prpria circunstncia da abundncia da

    produtividade. Originariamente, a fertilidade que o termo felix indica estendia-se s terras e seus

    frutos, dotando-o, nos seus primrdios, com uma reverberao talvez feminina, o que poderia

    encontrar no sufixo ix (como em imperatrix ou matrix), um vestgio dessa condio7. De todo

    modo, felix acabou por tornar-se, por derivao de sentido, aquele que beneficiado pela opulncia

    da fertilidade, ou seja, afortunado, prspero, donde feliz, sendo o seu estado o da felicitas. 5 Para este excurso etimolgico cf. BEVENISTE, mile. O vocabulrio das instituies indo-europias. Vol I. Traduo de D. Bottmann. So Paulo: Editora da Unicamp, 1995; FREUND, William, ALLEN, Andrews. A copious and critical Latin-English lexicon. New York: Harper & Brothers Publishers, 1851; LALANDE, Andr. Vocabulrio tcnico e crtico da filosofia. Traduo de F. Correia, M. Aguiar, J. Torres e M. Souza. 3 ed.. So Paulo: Martins Fontes, 1999; LEVERETT, Frederick P., TORREY, Henry W. A new and copious lexicon of the Latin language. Boston: Wilkins and Carter, 1838; REALE, Giovanni. Histria da filosofia antiga: Vol. V Lxico, ndices, Biografia. Traduo de H. C. de Lima Vaz e M. Perine. 10 ed.. So Paulo: Edies Loyola, 1995; SANTOS, Bento S. Virtude e eudaimonia nos dilogos socrticos. In Sntese, V. 37, n. 117. Belo Horizonte: 2010, pp. 5-26; SPICQ, Ceslas. Noti di lessicografia neotestamentaria. Brescia: Paideia Editrice, 1994 e VALPY, Francis E.J.. An etymological dictionary of the Latin language. London: Elibron Classics, 1828. Cf. tambm HARPER, Douglas: . 6 Vale lembrar ainda o adjetivo fortunatus que, originariamente, designava a feliz circunstncia de se estar agraciado pela sorte ou fortuna. 7 Alis, sendo dhe sua raiz indo-europia como ocorre no vocbulo latino femina (mulher, fmea) e que significa mamar, essa especulao se refora. De fato, alm de felare (mamar), deriva daquele mesmo radical indo-europeu o termo grego (fmea).

  • 13

    J a situao de quem beatus, ou seja, a beatitudo deriva (como aquele seu cognato) do

    verbo beo que significa completar, satisfazer, encher, no sentido de nada faltar, de absoluta

    plenitude, em que tudo est em seu lugar, perfeito. O adjetivo beatus denota, portanto, cumulado

    de bens, bem-aventurado. Da a natureza da felicidade da beatitudo, isto , uma felicidade

    vinculada com a plenitude ou a perfeio. Veremos que essa perfeio que para o Estoicismo,

    por exemplo, podia se realizar na natureza humana em conformidade com uma razo inerente

    Natureza tomada universalmente , com o pensamento cristo de Agostinho assume a dimenso de

    uma contemplatio (contemplao) divina, desde onde a prpria plenitude de Deus a condio da

    felicidade para o homem.

    Mas h mais. A tradio que influencia Agostinho, mesmo que indiretamente, traz ainda

    pelo menos mais dois vocbulos sobre os quais vale a pena refletir. So eles os termos gregos

    e 8. A composta dos timos , o advrbio bem, isto ,

    com propriedade, e , originalmente algo como um ser etreo, um esprito situado

    entre deuses e homens, cuja funo era exatamente a de intermediao entre as instncias humana

    e divina. Assim a palavra , significando o estar sob a proteo de um

    apropriado que ordena exteriormente um agir com correo (vale dizer, virtuoso), j possua uma

    carga tico-religiosa desde sua gnese. Com o tempo esse interiorizou-se, o que permitia

    a garantia de uma paz ntima identificada com a felicidade. Posteriormente o termo foi empregado

    sob ngulos distintos ao longo da tradio filosfica greco-helenstica, mas que, de um modo geral,

    manteve a noo de satisfao completa da alma humana desde que tal estado estivesse vinculado

    intimamente (virtude), seja esta entendida como o agir adequado, ou como a virtude

    humana por excelncia, isto , segundo a sua faculdade notica.

    Por sua vez, a condio do , um composto de , bem-

    aventurado ou feliz, no sentido de se estar repleto por uma doao, mais a partcula

    designativa do adjetivo9. Este sentido de plenitude se explicita quando observamos que ao mesmo

    8 H ainda indicando felicidade em grego a palavra , mas que num paralelo com os termos latinos seria o correlato de fortuna, uma vez que diz respeito prosperidade advinda do favor da , deusa da fortuna, sendo a ventura da decorrente relativa obra do acaso. O mesmo d-se em relao a , que denota uma felicidade proveniente da riqueza, da posse de bens materiais. 9 Efetivamente, ambos, e so adjetivos sinonmicos no grego. Vale notar que o termo se encontra ligado ao divino desde Homero: , isto , deuses bem-aventurados, o modo como ele

  • 14

    campo semntico de pertencem tambm (graa, benefcio)10 e

    (obsquio, dom, mostra de benevolncia). Com efeito, no texto neotestamentrio a

    palavra empregada para identificar a felicidade prpria da bem-aventurana: na Bblia,

    tem o sentido de abenoado11, o que, em tese, faz se identificar mais propriamente

    com a beatitudo latina e, portanto, com o emprego agostiniano do termo.

    Ocorre que Agostinho, poca de seus dilogos iniciais, tocado no apenas pelas

    Escrituras (das quais, alis, possua um conhecimento ainda no muito aprofundado), absorvera

    um amplo influxo daquelas acepes acima descritas com as doutrinas filosficas que delas se

    utilizaram de um modo ou de outro. Isso concorreu para promover, ao menos entre as noes de

    (sobretudo em sua concepo neoplatnica) e de beatitudo (do Estoicismo latino e

    em certo Ecletismo) uma sntese que culminar, no referido tratado agostiniano sobre a felicidade,

    na sua identificao com a posse de Deus, conforme veremos. O Neoplatonismo, o Neoestoicismo

    e o Ecletismo constituiro, justamente, parte significativa do objeto dessa nossa anlise, o que nos

    permitir, mais frente, identificar o ncleo de suas respectivas noes de felicidade nas suas

    convergncias e afastamentos em relao a Agostinho.

    Mas para encerrar essa breve apreciao preliminar vale ainda assinalar, en passant, ao

    menos dois exemplos de momentos anteriores queles influxos diretos, quando o tema mereceu

    relevantes reflexes dentro da tradio filosfica: a concepo de Plato, retrabalhada

    posteriormente no iderio neoplatnico, e a posio de Aristteles, que pela via ecltica acabou por

    alcanar a noo agostiniana sobre o tema. Para tanto, observemos duas passagens de obras mais

    do que consagradas dentro da histria da filosofia.

    A primeira, um trecho da Repblica onde Plato, atravs do dilogo entre Scrates e

    Trasmaco acerca da (alma) em sua relao com a (virtude) da

    (justia), a mais elevada entre as virtudes platnicas, diz o seguinte: se refere s potestades olmpicas (Ilada, XXIV, 99 e passim). Tambm Hesodo (Os trabalhos e os dias, 120; 139 e passim) os chama da mesma maneira. Por isso adquiriu j nos primrdios da literatura grega uma conotao quase de imortalidade, caracterstica essencial dos deuses. E como a divindade no est sujeita s vicissitudes terrenas, passou a associar-se queles mortos que desfrutavam de uma condio especial, como o caso dos heris hesidicos: em Os trabalhos e os dias, 171, eles merecem de Zeus o dom de viver , ou seja, na Ilha dos bem-aventurados. 10 Gratia, em latim. O prprio termo grego contribuiu para a evoluo etimolgica da gratia latina. 11 Beatus, na Vulgata; em portugus, feliz, como em Mt 5, 3-11 (no plural beati, felizes). A partir daqui, para todas as citaes bblicas utilizaremos a edio da Bblia de Jerusalm. So Paulo: Paulus, 2002.

  • 15

    [...] Considere isto. A alma tem como sua obra () o que no se poderia realizar com nada mais no mundo, como, por exemplo, direo, governo, deliberao, e quejandos, existindo qualquer outra coisa alm dela ao que se poderia justamente atribu-las (aquelas funes), e dizer que so sua funo especfica ? A nenhuma outra. E quanto vida? Devemos dizer que tambm uma funo da alma? Mais certamente ainda Ele disse. E no diremos tambm que existe uma excelncia ou virtude da alma? Diremos. A alma algum dia realizar bem sua funo prpria se privada de sua prpria virtude, ou isso impossvel? impossvel. Ento, necessariamente, uma alma m ir governar e dirigir mal as coisas, enquanto a alma boa ir bem em todas elas. Necessariamente. E no concordamos que a justia a excelncia ou virtude da alma e seu defeito a injustia? Sim, concordamos. Logo, a alma justa e o homem justo vivero bem e o injusto mal? Assim parece disse ele segundo seu raciocnio. Mas, alm disso, aquele que vive bem bem-aventurado () e feliz () e o que vive mal o contrrio. Claro. Ento o justo feliz () e o injusto miservel ()12.

    com alguma singeleza que Scrates demonstra que a injustia jamais poderia ser

    considerada mais vantajosa que a justia, como antes Trasmaco queria fazer crer no dilogo.

    Todavia, o trecho acima reproduzido nos permite, para o nosso caso especfico, uma constatao.

    A de que o Scrates platnico parte de um pressuposto, no ainda explicitamente declarado

    altura desse que , afinal, apenas o primeiro Livro da Repblica, mas de modo algum inaudito, que

    o seguinte: em ltima anlise, o da alma, sua funo mais prpria at aqui13, tem que ser a

    justia, a maior das virtudes, o que carreia necessariamente a felicidade. Nesse contexto, como

    podemos verificar no prprio texto platnico, tanto quanto encontram-se

    conjugadas sob a gide do viver bem, da da justia, a obra, nesse mbito, mais apropriada

    da alma.

    J a segunda importante passagem qual podemos nos reportar acerca da natureza da

    felicidade aquela da tica a Nicmaco, onde Aristteles declara:

    12 PLATO, Repblica, I, 353 d - 354 a. 13 Mas a este ponto j prefigurando a noo do Bem, estando, de fato, de algum modo, nele subsumida. A considerao da justia d azo ao prprio modo de ser do agir moral, negando a (erro) radical do desacordo tico-ontolgico, que subjaz a este discurso socrtico e, de resto, toda a concepo platnica, inclusive sobre a felicidade: esta deve ser o resultado de uma converso para o Bem.

  • 16

    Mas se a felicidade [] consiste na atividade de acordo com a virtude [' ], razovel que seja uma atividade em conformidade com a maior delas; e esta ser a virtude da melhor parte de ns. Se esta parte o intelecto [], ou qualquer outra que seja considerada, por natureza [ ], nossa lder e governante, e tenha o conhecimento das coisas nobres e divinas, ou ela mesma seja tambm efetivamente divina, ou como sendo relativa nossa parte mais divina, a atividade dessa parte de ns de acordo com a virtude apropriada constituir a felicidade perfeita; e como j declarado [no livro VI] essa atividade a da contemplao []14.

    Assim, Aristteles indica que a consistiria no bem final de uma cadeia de

    aes, definindo-a como uma (ato, atividade)15 da que se d segundo o

    (razo) e de acordo com a mais perfeita, o que redunda na vida contemplativa16, num

    refinado entendimento do papel da prtica virtuosa na consecuo do melhor fim. Ento, para

    encontrar o sentido de , fim ltimo de todo agir humano, devemos considerar o

    homem nele mesmo, compreender sua obra mais prpria, seu , aquela atividade que o

    distingue enquanto homem17. H aqui, portanto, uma teleologia do acabamento, da perfeio, do

    completar-se nisso que se prprio da noo de (Do adjetivo , concludo,

    completo, perfeito) no pensamento do Estagirita. Portanto, podemos depreender do texto

    aristotlico que a aquela atividade, tanto quanto possvel para o homem, que se

    adqua virtude dianotica sumamente superior, o , cuja realizao se d pelo .

    desde tal atividade de realizao da contemplao que o homem se depara com sua possibilidade e

    seu limite para ser feliz18: de fato, o atua como estando presente em ns algo de divino e

    que, em ltima instncia, constituiria a perfeita e acabada felicidade19.

    14 ARISTTELES, tica a Nicmaco, X, VII, 1. 15 Palavra que deve ser entendida como movimento de realizao do que mais apropriado, pois essa atividade, no grego, j traz em si tambm a significao de vigor, de eficcia e da prpria virtude. 16 O que no significa, absolutamente, apatia; ao contrrio: a contemplao () pura atividade, a ao mais elevada da alma humana. 17 Cf. HOLTE, Ragnar. Batitude et Sagesse. Saint Augustin et le problme de la fin de lhomme dans la philosophie ancienne. Paris: tudes augustiniennes, 1962 p. 25. 18 Cf. SANGALLI, Idalgo Jos. O Fim ltimo do Homem. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. pp. 81 a 83. 19 No devemos, contudo, deixar de assinalar que Aristteles no ignora as circunstncias adventcias da vida. Podemos ser felizes dentro da completude do fazer mais prprio, isto , o fazer excelente da obra; da Aristteles trazer a completude do homem para o mbito da ao humana, para o que dele depende. Contudo, isso no significa converter absolutamente tudo em nosso alvedrio, o que seria desconsiderar o papel da sorte, da fortuna, dos deuses, etc. Por isso o detentor hipottico de uma felicidade perfeita aparece identificado com o termo e no

  • 17

    Podemos verificar, ento20, que existem elementos da tradio filosfica pag que se

    entrelaam, extrapolando muitas vezes os meros significados etimolgicos usados para a

    designao de felicidade. Se no De beata vita Agostinho elege o termo beatitudo para descrever

    aquilo que nos textos cristos gregos se coadunava com , no o faz nem se distanciando

    totalmente da escolha neoestica do mesmo vocbulo, nem se afastando completamente das

    reverberaes eudaimnicas que as reflexes do Platonismo e do Aristotelismo primitivos

    realizaram sobre o tema: sob a beatitudo agostiniana, ao menos desse primeiro Agostinho sobre o

    qual nos debruamos aqui, restam elementos de todos estes precedentes. Principalmente em dois

    de seus mais fundamentais aspectos: o agir virtuoso e a contemplao, complementos para uma f

    recm-adquirida (trata-se de um neoconverso) e que, como veremos, conjuga os valores morais aos

    teorticos para, junto com o decisivo papel da Graa de Deus, promover o alcance da vida feliz.

    Dentro dos limites do De beata vita aquela posse de Deus citada apenas brevemente mais

    acima, s factvel se uma srie de condies impostas por aqueles valores tambm for observada.

    Ser mesmo possvel perceber elementos de um esforo que j aqui antev aquilo que seria

    estabelecido com rara preciso numa futura e clebre frmula: compreenda para crer, creia para

    compreender21. Ou seja, desde o incio, o propsito beatfico de nosso filsofo j estava posto:

    alcanar pela f nas Escrituras a razo que elas abrigavam, o que inclua, em Agostinho, instncias

    filosficas da tradio pag. Trata-se, enfim, de uma f que busca a sua inteligncia e, assim,

    alcana a felicidade plena em Deus, conforme procuraremos demonstrar ao longo de nossa

    exposio. Podemos, por ora, afirmar que neste primeiro Agostinho a beatitudo, a

    grega, no exclui a ; ao contrrio, a subsume e retrabalha pela via latina, corrigindo-

    a em funo do Cristianismo numa original compreenso da filosofia: uma via de acesso para a

    vida feliz.

    . Em suma: a algo que, a despeito das intervenientes variveis, admitidas pelo Estagirita, o homem tem que poder alcanar por ele mesmo; no pode estar fundada em algo heternomo, tanto quanto no pode ser, mesmo no homem, um algo, uma posse. Da no se resumir a uma virtude, mas se dar de acordo com ela. Da tambm esse termo , estar predominantemente vinculado ao humano, cabendo uma maior referncia vida bem-aventurada dos deuses e dos mortos, ainda que permanea uma proximidade entre ambos os significados (cf. tica a Nicmaco, I, X). 20 O que mais frente continuaremos a demonstrar. 21 Intellige ut credas, crede ut intelligas. AGOSTINHO, Sermones, 43, 9.

  • 18

    1.2 Itinerrio espiritual em busca da beatitudo

    Para o pensamento grego em geral o alcance da , da felicidade como escopo

    ltimo de todo ser humano, implicava o exclusivo exerccio da razo e da vontade. Esta concepo,

    mutatis mutandis, foi aquela herdada por figuras do pensamento pago latino. Uma posio,

    contudo, que ser negada j no incio do tratado pelo nosso autor (como constataremos por ocasio

    do Captulo II). A partir da imagem do philosophiae portus (porto da filosofia) que com outra

    imagem, a da arx philosophiae (pice da filosofia), forma uma complementariedade que

    defendemos aqui22 , Agostinho poder deslindar uma alegoria que, envolvendo a sua prpria

    experincia de vida, descreve sua particular navegao em busca da beatitudo.

    Seu verdadeiro percurso comea com o primeiro contato com a filosofia ainda em sua terra

    natal, Tagaste, no norte da frica, atravs da retrica de Ccero na obra Hortensius de cunho

    protrptico e da qual, hoje, s nos restam fragmentos23 . Com ela, Agostinho, tomado de

    entusiasmo, aventura-se na navegao e enfrenta as primeiras nvoas da rota. Com os

    Maniqueus e sua doutrina materialista-dualista, aps um longo convvio, aos poucos vai se

    desiludindo, descobrindo que as supostas verdades que escondiam no passavam de vacuidades

    veladas. Frustrado, Agostinho segue os ventos rumo aos Acadmicos, e entre eles, sofre o

    fustigar das vagas da incerteza ctica que dominava o ecletismo da Escola nesse perodo.

    Finalmente, depois de oceanos de angustiada busca, percurso que descrever

    pormenorizadamente em suas futuras Confessiones, Agostinho chega a Milo, em 384, onde ocupa

    por algum tempo, e no sem destaque, a funo de professor de retrica24, perodo em que tambm

    trava contato com o Neoplatonismo, bastante presente nos crculos instrudos milaneses, inclusive

    entre aqueles cristos (quanto ao Estoicismo, ao menos em relao a Sneca, certamente j era

    conhecido desde os tempos de estudante). Ali, a partir da concepo transcendental da filosofia

    plotiniana, entrev o porto procurado, e descobre que Deus a idia que est alm de qualquer

    imagem material, do mesmo modo que a alma, a realidade humana mais assemelhada a Ele. L,

    22 s quais voltaremos, em detalhada anlise, no Cap. II. 23 Um dos quais, analisado mais frente, citado de modo textual no De beata vita, II, 10, como sublinha BEIERWALTES, Werner. RegioBeatitudinis. Augustines concept of happiness, in The saint Augustine lecture series Saint Augustine and the agustinian tradition. Villanova: Villanova University Press, 1980. p. 34, n. 68. 24 Tendo lecionado desde 373, sucessivamente, em Tagaste, Cartago e Roma, onde abandona, em definitivo, o Maniquesmo e freqenta a Academia ctica de ento.

  • 19

    ento, umas poucas obras neoplatnicas traduzidas para o latim, cotejando-as com trechos das

    Escrituras, mas, ainda assim, apesar das vrias correspondncias possveis entre ambas as fontes

    como aquelas feitas por Ambrsio, por exemplo25 , sente-se incompleto.

    A propsito dos elementos deste aporte neoplatnico, seja via Porfrio, seja diretamente de

    Plotino de todo modo, ambos na traduo para o latim, dadas as dificuldades para com os textos

    gregos reveladas mais tarde pelo prprio Agostinho26 , eles emergem no s no De beata vita,

    mas claramente ao longo de todo o Contra academicos e em outros dos trabalhos iniciais do

    filsofo, como demonstraremos. A este ponto, vale notar que especificar essas contribuies

    neoplatnicas constitui uma tarefa virtualmente impraticvel, ainda que no faltem argumentos em

    favor de determinados tratados plotinianos, como a Eneada, I, 6, ou escritos de Porfrio, como o

    De regressu animae27.

    Alis, a vexata questio, a controversa questo de quais seriam precisamente os tais Plotini

    paucissimis libris (pouqussimos livros de Plotino) mencionados por Agostinho no De beata vita28,

    tem gerado vrias hipteses, muitas no concordes, entre os estudiosos. Um dos maiores bices a

    alguma certeza a esse respeito a prpria declarao agostiniana em seus primeiros escritos de que

    aquelas obras eram tradues de seu contemporneo Mario Vittorino. Este, convertido ao

    Cristianismo em seus ltimos anos, verteu para o latim alguns escritos neoplatnicos, comentrios

    a Ccero e Aristteles, entre outros, alm de compor obras prprias de cunho teolgico. Mas como

    Agostinho no fornece informaes mais pormenorizadas sobre os referidos livros de Plotino,

    impe-se a dvida, dado o carter de traduo feita por Vittorino, se aqueles seriam acompanhados

    ou no pelos comentrios de Porfrio, ou mesmo se seriam no mais que passagens citadas deste

    em alguma de suas obras. De todo modo, quaisquer que tenham sido efetivamente as obras

    plotinianas, o fato que as influncias, diretas ou no do Licopolitano e com ele, aquelas

    platnicas29 so praticamente incontestveis, conforme procuraremos demonstrar, nesse nosso

    25 As homilias De Isaac vel anima e De bono mortis so dois casos, entre outros, dessas correspondncias. Cf. MORESCHINI, Claudio. Histria da filosofia Patrstica. Traduo de Orlando S. Moreira. So Paulo: Edies Loyola, 2008, pp. 430-439. 26 Cf. AGOSTINHO, Confessiones, I, 14, 23. 27 Cf. CATAPANO, Giovanni. Aurlio Agostinho. Tutti I Dialoghi. Itroduzione generale, presentazioni ai dialoghi e note, Milano: Bompiani, 2006. p.CXXVIII. 28 Cf. AUGUSTIN, Saint. De beata vita / La vie heureuse. Introduction, texte critique, traduction, notes e tables par J. Doignon. Paris: Bibliothque Augustinienne, 4/1. Les oeuvres de saint Augustin, 1986. p. 58. 29 E no apenas com Plotino. interessante assinalar aqui a lembrana de G. Catapano, que em Epistolae, 7, I, 2, a doutrina platnica da reminiscncia defendida como notria descoberta socrtica em termos bem aproximados daqueles presentes no Mnon e no Fdon. Entretanto, como no se pode comprovar uma leitura direta destes

  • 20

    primeiro Agostinho. Nesse sentido, vale a pena citar que, em relao referncia que Agostinho

    faria muitos anos depois de que lera um pouco antes da sua converso, em 386, alguns livros

    platnicos30, h quem defenda que teria ele conhecido efetivamente a doutrina neoplatnica em

    junho daquele mesmo ano, atravs das Eneadas de Plotino e alguns escritos de Porfrio.31 Assim,

    pesadas todas essas possibilidades, ser a noo de felicidade no Plotino das Eneadas que

    levaremos em conta aqui, uma vez se tratar da primeira e principal fonte escrita da doutrina

    neoplatnica32.

    Mas voltemos Milo e quele estado de esprito conturbado supramencionados. L

    Agostinho ouve as prdicas do Bispo da cidade, Ambrsio, e trava debates com o sacerdote

    Simpliciano33. At que, como ele prprio relata ao longo do Livro VIII das Confessiones, num

    jardim daquela cidade, em um dia de agosto de 386 logo aps, portanto, das leituras de Plotino

    e/ou Porfrio , durante uma crise de profunda depresso, repentinamente tomado pela revelao

    crist nas palavras de Paulo de Tarso34 e, desse modo, tal qual aquele nufrago da alegoria do

    prembulo do De beata vita que lanado terra pela Graa divina, pode comear a se dedicar ao

    encetamento da serena vida feliz.

    A partir de ento, Agostinho abandona suas atividades docentes (mais especificamente em

    setembro de 386), e passa a se dedicar ao que chamou de otium liberali35. Retira-se com familiares

    e discpulos para Cassicaco, uma propriedade campestre de um amigo nos arredores de Milo, no

    dilogos platnicos por parte de Agostinho, considera-se, amide, que ele teria entrado em contato tanto com a teoria da anamnese quanto com a maiutica socrtica, atravs de Ccero (cf. Tusculanae disputationes, I, XXIV, 57-58). J para D. Doucet, citado ainda por Catapano, a fonte de Agostinho nos Soliloquia, quando este critica a opinio dos magni philosophi que no seno a demonstrao socrtica da imortalidade da alma, desenvolvida no Fdon seria o De regressu animae, de Porfrio. Por fim, tambm nos informa Catapano, que para Franco De Capitani, as possveis influncias de Porfrio no excluem as de Plotino. Cf. CATAPANO, 2006, p.CXXXVII, e ns. 368, 371 e 374. 30 Cf. Confessiones, VII, 9, 13. Devemos ter em conta que por livros platnicos Agostinho estava certamente se referindo ao que hoje chamamos de neoplatnicos. Sobre esse ponto cf. B. da Silva Santos in AGOSTINHO, Santo. Contra acadmicos, A ordem, A grandeza da alma e O mestre. Traduo de Frei Agustinho Belmonte. So Paulo: Paulus, 2008. p. 21, n. 32. 31 Cf. COSTA, Marcos Roberto Nunes. O problema do mal na polmica antimaniquia de Santo Agostinho. Porto Alegre: EDIPUCRS/UNICAP, 2002. p. 155, n. 36. 32 O alexandrino Amnio Sacas (c. 175-242), mestre de Plotino, nada escreveu, tendo este se incumbido de desenvolver por escrito suas idias algo como Plato em relao a Scrates . Alm de Plotino, outros discpulos de Amnio escreveram sobre a doutrina de seu mestre, como Hernio, do qual nada restou, e Orgenes, o pago, do qual se preservaram apenas os ttulos das obras. Permanece, portanto, Plotino como a nica fonte direta do provvel esprito da escola de Amnio. 33 Cf. Confessiones, VIII, 2, 3. 34 Cf. Rom 13, 13-14. 35 CF. AGOSTINO. De ordine. I, II, 4. Trata-se do notrio otium philosophandi, o cio filosfico, conforme esclarece B. da Silva Santos in AGOSTINHO, 2008. p. 10, e n. 2.

  • 21

    norte da Itlia, onde escreve, entre novembro de 386 e maro de 387, quatro de seus trabalhos

    filosficos iniciais, dentre os quais figura, exatamente, o fulcro de nosso estudo: o De beata vita.

    Como dissemos, o texto possui a forma de um dilogo e foi composto por ocasio do 32

    aniversrio de Agostinho, no fim do outono daquele ano de 386. Presentes esto sua me, Mnica,

    seus amigos e discpulos, Alpio, Licencio e Trigsio; seu irmo, Navgio; e seu filho, Adeodato,

    alm de seus primos, Lastidiano e Rstico. Nele, Agostinho desenvolve um debate filosfico

    justamente sobre a questo da beatitudo. Esse, de fato, ser um tema recorrente ao longo de sua

    vasta obra, mas que aqui surge no vigor inaugural, a reflexo em sua origem, ainda recentemente

    impactada por um significativo conjunto de influxos do pensamento pago: entre outros, o

    Ecletismo de Ccero36, o Neo-estoicismo de Sneca37 e o Neoplatonismo de Plotino38. Todos

    36 Nascido em Arpino, na regio do Lcio, Itlia central, em 106 a.C., Marcus Tullius Cicero desde jovem se interessou pela filosofia, mas no se dedicou somente a ela: foi prioritariamente poltico eleito Cnsul em 63 a.C. e jurisconsulto. Notvel tanto por sua retrica quanto pela oratria, acabou por ser envolvido nas turbulncias da Roma de sua poca, sendo assassinado por ordem de Marco Antnio, em 43 a.C. Deixou numerosas obras, escritas principalmente no fim de sua vida, entre elas, De finibus bonorum et malorum, Tusculanae disputationes e De officiis. Sua maior importncia para a histria da filosofia foi o fato de ter desempenhado o papel de elo de ligao entre o pensamento grego e o latino. Sobre a biografia de Ccero, cf. REALE, Giovani. Histria da filosofia antiga, Vol. III. Traduo de Marcelo Perine e Henrique C. de Lima Vaz. 10 ed. So Paulo: Edies Loyola, 1994, p. 454 e passim; e HUISMAN, Denis. Dicionrio dos filsofos. Traduo de C. Berliner, E. Brando, I. C. Benedetti e M. E. Galvo. So Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 209 a 216. 37 Lucius Annaeus Seneca, nasceu na provncia da Btica, em Crdoba, no sul da Espanha, em 4 a.C., mas foi iniciado na filosofia em Roma pelos mestres esticos talo e Paprio Fabiano, e o neopitagrico Socion. Recebeu tambm em Roma formao como retrico. Apesar de enredado em intrigas palacianas que o obrigaram a um exlio na Crsega entre os anos de 41 e 49 teve grande influncia na poltica romana, sendo preceptor e conselheiro do Imperador Nero. Em 62, retirou-se definitivamente da vida pblica devido ao desgaste de suas relaes com Nero. Nesse retiro, escreveu a maior parte de suas obras. Porm, talvez imerecidamente, acaba envolvido na represso que sucedeu a descoberta da conspirao de Calprnio Piso e, por isso, condenado ao suicdio por ordem do Imperador em 65, fim que enfrentaria de modo coerentemente estico. De sua admirvel produo muito se perdeu, sendo conservados alguns fragmentos. Entre os principais ttulos que chegaram at ns na ntegra esto De vita beata, De otio, De ira e uma coleo de 124 cartas divididas em 20 livros, intitulada Epistulae Morales ad Lucilium. Sobre sua biografia cf. REALE. Histria da filosofia antiga, Vol. IV. Traduo de Marcelo Perine e Henrique C. de Lima Vaz. 10 ed. So Paulo: Edies Loyola, 1994, p. 68 e passim; e HUISMAN, 2001, pp. 912 e 913. 38 Quase tudo que sabemos hoje sobre a vida e a obra de Plotino devemos clebre Vida de Plotino, escrita por seu discpulo Porfrio de Tiro. De acordo com o Suda, Plotino nasceu em Licpolis, Egito. A data, segundo se extrai de Porfrio, gira em torno do ano de 205. Em Alexandria, em 232, j comea a dedicar-se integralmente filosofia, estudando os Pitagricos, Parmnides, Plato, Aristteles. em Alexandria tambm que conhece Amnio Sacas, de quem se torna discpulo. Em 243 deixa a cidade para seguir a expedio do Imperador Gordiano contra Shapur, Rei da Prsia, no intuito de conhecer de perto a sabedoria dos persas e hindus. Mas a experincia mostrou-se frustrante: morto Gordiano, Plotino, escapa com grande dificuldade, refugiando-se em Antioquia. Dali resolve ir para Roma em 244 (a esta altura provvel que Amnio j tivesse falecido em Alexandria), onde, sob o novo Imperador Filipe, o rabe, funda sua prpria Escola. Durante mais ou menos uma dcada Plotino ensina seguindo o mtodo de Amnio, ou seja, debatendo com os freqentadores, mas sem nada escrever. Somente a partir de 254 que comea a compor sua nica obra: um substancioso conjunto de 54 tratados, divididos em 6 grupos de 9 donde o nome Enadas catalogado, a pedido do mestre, por Porfrio. Gozou de enorme prestgio entre os romanos, sendo admirado pelo prprio Imperador Galiano e sua esposa, que chegaram mesmo a cogitar o projeto plotiniano

  • 22

    amalgamados na f crist do recm-convertido Agostinho. Aqui, veremos, que ele comea

    realmente a construir sua doutrina filosfica para fundamentar a vida feliz.

    Assim, haja vista o carter aglutinador da concepo de Agostinho acerca da felicidade

    devemos indic-la em algumas de suas influncias. Para tanto, adotaremos uma sucinta exposio

    das noes de felicidade dos trs pensadores supracitados, assumindo que estes representem as

    fontes filosficas pags agostinianas mais provveis sobre a questo. Entendemos que tal recurso

    pode no s enriquecer a compreenso das reflexes do Tagastense onde suas perspectivas se

    encontram, mas, de modo equivalente, acentuar as diferenas. Ambas sero demonstradas ao longo

    desse estudo. Os aproveitamentos de categorias dessa tradio indicaro o desde onde Agostinho

    parte; os afastamentos revelaro a contribuio original do filsofo cristo para a questo.

    Passemos, ento, a traar em linhas gerais algumas noes do pensamento pago quanto

    noo de felicidade que freqentavam o ambiente filosfico com o qual nosso pensador entrou

    em contato. Faremos isso destacando alguns elementos, digamos, eudaimnicos, daquelas que

    podemos especular foram as mais emblemticas influncias no crists do Agostinho tanto do De

    beata vita, como dos demais dilogos de Cassicaco, ou seja, o aspecto notadamente protrptico do

    Ecletismo de Ccero; a doutrina neo-estica, sobretudo tica em Sneca; e, claro, como j dito,

    aquela vertente de pensamento ainda pago, mas que mais marcou Agostinho, permitindo o

    confronto promovido por ele entre alguns escritos desta doutrina e textos das Escrituras, isto , o

    Neoplatonismo plotiniano.

    1.3 A virtude para a felicidade em Ccero

    Certamente a autoridade da tradio filosfica presente ao dilogo De beata vita atravs do

    Hortensius, citado literalmente por Agostinho39 a despeito de sua menor estatura filosfica que

    os outros pensadores cujas noes sobre a felicidade sero aqui indicadas (ou seja, Sneca e de fundar uma cidade de filsofos sob as bases da doutrina de Plato. Mas este plano no se realizou. O trabalho das Enadas consumiu suas ltimas energias e, uma vez concludo, Plotino sobreviveu apenas mais um ano: faleceu aos 66 anos, em 270, de um mal no identificado, mas que o levou a abandonar a Escola e retirar-se para a propriedade de um amigo na Campnia, onde morreu em solido. Sobre a biografia de Plotino, cf. REALE, 1994 (Vol. IV), p. 412 e passim; e HUISMAN, 2001, pp. 782 a 790. 39 De fato, o fragmento ciceroniano constante no De beata vita, resta como um dos mais importantes registros preservados do Hortensius pelo contexto em que figura na obra agostiniana. frente ele ser reproduzido na ntegra. Cf. tambm supra, n. 23.

  • 23

    Plotino) em seu empreendimento algo doxgrafico, Ccero constitui-se no mais caracterstico

    representante do Ecletismo latino. Embora carecendo de real originalidade especulativa, seu papel

    foi o de um dos fundamentais liames entre as reflexes gregas e romanas, possibilitando o

    posterior cotejamento entre as vises pag e crist acerca da beatitude, fato do qual se servir

    largamente Agostinho.

    Ao longo das pginas do seu De finibus bonorum et malorum40, Ccero demonstra, desde os

    diferentes pontos de vista estabelecidos entre si, que as ticas dos Epicuristas (com os quais, na

    realidade, polemizou), Esticos, Peripatticos e mesmo Acadmicos, tm algo em comum: todas

    fazem sua concepo de felicidade girar em torno do que julgam a tarefa precpua da filosofia: o

    estabelecimento da natureza do sumo bem, o fim de todo homem. Ele classifica esse sumo bem

    como aquilo a que [...] segundo o parecer de todos os filsofos, h de ser tal que a ele tudo se

    refira e ele no deva referir-se a nenhuma outra coisa [...].41

    Ainda na mesma obra, o Arpinate atravs do que alega ser o depoimento de certo Lcio

    Torquato, defensor do Epicurismo diz que para os representantes do Jardim, o sumo bem

    consiste no deleite (sendo o sumo mal ligado dor) buscado, no pela razo, mas, pela percepo

    sensorial, atravs da qual a natureza de cada um que julga de modo ntegro e puro. Tanto que o

    mais simples animal, quando nasce, portanto ainda inclume de qualquer corrupo, deseja o

    deleite como o que h de melhor e, sempre que pode, afasta-se da dor. Ora, se assim , dado que se

    suprimissem os sentidos aos homens, Ccero observa que nada haveria neles que promovesse

    qualquer discernimento, cabendo necessariamente natureza julgar o que ou no apropriado42.

    Desde a perspectiva do Jardim, mesmo os deleites (e as dores) da alma tm sua origem no sensvel,

    isto , nos deleites (e dores) do corpo. Nestes termos, a sabedoria epicurista seria no mais que a

    arte de viver como meio para alcanar o deleite. Note-se, todavia, que no h um hedonismo puro

    e simples aqui. Para os Epicuristas, o sbio necessariamente temperante, livrando-se da lascvia

    impetuosa dos desejos prpria dos ignorantes. Da a inferncia segundo a qual, se no devemos

    evitar a intemperana em si mesma, tampouco nos convm buscar a temperana porque avessa

    40 Cf. tambm CCERO, Marco Tlio. Do sumo bem e do sumo mal. Traduo de Carlos A. Nougu. So Paulo: Martins Fontes, 2005. 41 [...] quod omnium philosophorum sententia tale debet esse, ut ad id omnia referri oporteat, ipsum autem nusquam [...]. CCERO, De finibus bonorum et malorum, I, 29. 42 Cf. CCERO, De finibus bonorum et malorum, I, 29-30.

  • 24

    ao deleite, mas porque proporciona outro ainda maior43. Ou seja, a sabedoria conduz

    tranqilidade e paz de esprito, o maior deleite possvel, o sumo bem epicrio.

    Portanto, mesmo contra aqueles com os quais polemiza, Ccero sabe que tambm para eles

    a sabedoria o guia seguro para a vida feliz. Contudo, tal concepo de sabedoria resume-se, de

    fato, ao que til, tendo em vista tornar a vida o mais agradvel possvel e, apenas por esse

    motivo, feliz. Ccero nota, por isso, que Epicuro nega que um deleite constante seja maior do que

    aqueles de que se desfruta por breves momentos. E a que est o seu maior problema.

    Para alm de julgar tanto inapropriada sua fsica, emprestada aos Atomistas, quanto

    inconsistentes suas argumentaes44, o que Ccero critica com maior veemncia na doutrina do

    Smio e o que mais nos interessa aqui em relao a Agostinho justamente aquilo que sustenta

    o acomodamento ecltico que combina noes peripatticas e acadmicas45 de um lado e, de outro,

    de modo mais incisivo, a doutrina estica: a verdadeira vida feliz uma vez alcanada, no pode ser

    perdida. No h, para ela, brevidade possvel. A felicidade fundada no mero deleite, ainda que

    comedido, base por demais frgil e efmera:

    Ningum [...] pode algumas vezes ser feliz e outras infeliz; aquele que pense que pode vir a ser infeliz, j no feliz; mas, quando pela sabedoria se alcana a vida feliz, esta to permanente quanto a prpria sabedoria de que produto, nem h que se esperar para tal o derradeiro momento da vida [...]46.

    Por outro lado, assumindo em larga medida as posies esticas47, Ccero considera a

    virtude, remetida exclusivamente razo, suficiente para a beatitude, o sumo bem humano,

    descortinando, para tanto, um critrio de verdade. Segundo ele, o critrio de verdade e a natureza

    do sumo bem, constituem-se nas maiores questes filosficas. Para investig-las, prope o

    emprego do mtodo dialtico dos Acadmicos e Peripatticos. Nesse sentido, declara:

    43 Cf. CCERO, De finibus bonorum et malorum, I, 48. 44 Como quando Ccero pergunta pelo sentido da frase de Epicuro: Nihil haberem, reprehenderem, si finitas cupiditates haberent? Ato contnuo, observa que o mesmo que dizer: [...] Non reprehenderem asotos, si non essent asoti: Nada haveria que censurar os voluptuosos se fossem moderados nos seus desejos? [...] Eu no censuraria os luxuriosos se no fossem luxuriosos. Cf. CCERO, De finibus bonorum et malorum, II, 23. 45 Que so virtualmente assemelhadas por ele. Cf. REALE, 1994 (Vol. III), p. 463. 46 Nemo [...] potest quisquam alias beatus esse, alias miser; qui enim existimabit posse se miserum esse beatus non erit; nam cum suscepta semel est beata vita; tam permanet quam ipsa illa effectrix beatae vitae sapientia neque expectat ultimum tempus aetatis [...]. CCERO, De finibus bonorum et malorum, II, 87. 47 Teremos oportunidade de analis-las melhor logo em seguida, quanto tratarmos de Sneca.

  • 25

    Sempre me agradou o costume dos Peripatticos e dos Acadmicos de defender, em todas as causas as duas partes contrrias, no apenas porque de outra maneira no seria possvel encontrar o verossmil em cada questo, mas tambm por ser este o melhor exerccio do dizer, do qual se utilizou primeiro Aristteles, e depois os que o seguiram. J em nosso tempo, Filo, a quem ouvi muitas vezes, estabeleceu o hbito de ensinar, separadamente, os preceitos dos retricos e os dos filsofos. Seguindo esta prtica por conselho de meus familiares, empreguei nela o tempo de que pude dispor em meu stio, em Tsculo [...]48.

    Como resultado dessa abordagem, dado o probabilismo de matiz principalmente

    filoniano49, alm de um inatismo do tipo prolptico, o critrio de verdade acolhido por Ccero se

    baseia no testemunho dos sentidos; porm, no de modo a dar-lhe total assentimento, mas somente

    o carter de provvel, pois, seu ceticismo moderado, influncia mitigada da ltima Academia,

    obriga-o a conceder que a verdade carreie sempre algo de no verdadeiro. Assim, ele diz que resta

    o provvel, o verossmil, isto , o que mais se aproxima da verdade:

    [...] No somos dos que negam a existncia da verdade, porm sustentamos que h unido em toda verdade algo de falso, to semelhante a ela que no pode nos oferecer qualquer sinal distintivo que permita formular um juzo e dar nosso assenso. Da deriva a existncia de muitos conhecimentos provveis que, mesmo no sendo plenamente certificados, se mostram to insignes e ilustres a ponto de poderem servir de guia para a vida do sbio 50.

    Mas, ento, o que para Ccero ser sbio? Sbio o comportamento virtuoso que, como

    para os Esticos, deve ser apetecvel em si mesmo, pois, [...] h no homem uma probidade inata e

    gratuita, no fundada no deleite nem comprada pela esperana do prmio [...]51. De acordo com o

    Arpinate, a posse da sabedoria, identificada com a virtude, por si s j equivale felicidade para o

    48 Itaque mihi semper Peripateticorum Academiaeque consuetudo de omnibus rebus in contrarias partis disserendi non ob eam causam solum placuit, quod aliter non posset quid in quaque re veri simile esset inveniri, sed etiam quod esset ea maxima dicendi exercitatio. Qua princeps usus est Aristoteles, deinde eum qui secuti sunt. Nostra autem memoria Philo, quem nos frequenter audivimus, instituit alio tempore rhetorum praecepta tradere, alio philosophorum: ad quam nos consuetudinem a familiaribus nostris adducti in Tusculano, quod datum est temporis nobis, in eo consumpsimus [...]. CCERO, Tusculanae disputationes, II, 9. 49 Filo de Larissa, Acadmico-ecltico-estoicizante da segunda metade do sculo II a C, que, rompendo com posies cticas como as dos Acadmicos Arcesilau de Pitana (scs. IV-III a C) e Carnades (scs. III-II a C), reelabora algumas das idias de seu ex-discpulo Antoco de Ascalona (sc. I a C), na direo de um ecletismo que seria, grosso modo, adotado por Ccero e, atravs deste, assimilado por Agostinho. 50 [...] Non enim sumus i, quibus nihil verum esse videatur, sed i, qui omnibus veris falsa quaedam adiuncta esse dicamus tanta similitudine, ut in is nulla insit certa iudicandi et adsentiendi nota. Ex quo exsistit et illud multa esse probabilia, quae, quamquam non perciperentur, tamen, quia visum quendam haberent insignem et inlustrem, his sapientis vita regeretur. CCERO, De natura deorum, I, 12. 51 [...] innatam esse homini probitatem gratuitam, non invitatam voluptatibus nec praemiorum mercedibus evocatam [...]. CCERO, De finibus bonorum et malorum, II, 99.

  • 26

    homem. De fato, ele afirma tambm que no h melhor e mais profunda doutrina do que aquela

    segundo a qual [...] a virtude se encontra satisfeita consigo mesma para a vida feliz [...]52. E no

    sbio, onde reside a faculdade do viver isento de paixes, imperturbvel, em perfeita beatitude, que

    esta inata retido humana se mostra plenamente desenvolvida e em seu maior vigor.

    Quanto ao papel do divino, Ccero no nega sua existncia, ainda que oscile de modo

    ambguo entre sua natureza espiritual ou material; ao contrrio, chega mesmo a afirmar em

    diversas passagens do De natura deorum uma organizao finalista em funo do homem contra

    o mecanicismo epicurista53. E como nota G. Reale, dizer organizao finalista , afinal, dizer

    Providncia54. Num especfico trecho dessa obra ciceroniana tal posio explicita-se

    especialmente, quando o autor pergunta admirado:

    [...] Quem pode ser persuadido a considerar que determinados corpos slidos e individuais movem-se pela gravidade e fora naturais, e que um mundo to belamente adornado tenha sido feito pelo concurso da fortuna? Quem cr nisto pode, do mesmo modo, acreditar que, se uma grande quantidade das vinte e uma letras (do alfabeto), forjadas em ouro ou qualquer outro material, fossem lanadas terra, cairiam de tal modo ordenadas e legveis que formariam os Anais de Ennius [...] 55.

    Ainda assim, mesmo reconhecendo uma Providncia no mundo que o ordena e rege, no que

    concerne felicidade a vida virtuosa, nela mesma, suficiente para seu alcance. Diante daquela

    ambigidade do divino, essa Providncia mais estica (noo descrita a seguir) do que qualquer

    outra coisa. A concepo da beatitude em Ccero , portanto, autrquica: est ao alcance do prprio

    homem se este pautar sua existncia pela virtude. Se assim o fizer, ser sbio. Se for sbio, ser

    feliz, ainda que a verdade, inclusive acerca do que seja ou no virtuoso, permanea inacessvel

    para ele. Em sntese: tendo em vista sua gnosiologia acadmica, as convices ticas de Ccero tm

    que se equilibrar no tnue fio da probabilidade e da verossimilhana.

    52 [...] virtutem ad beate vivendum se ipsa esse contentam [...]. CCERO, Tusculanae disputationes, V, I, 1. 53 Que, por sua vez, tambm criticado no De finibus bonorum et malorum, em I, 17-21. Ccero , alis, a provvel fonte atravs da qual Agostinho tomar conhecimento da teoria da declinao dos tomos adotada junto ao atomismo pelos Epicuristas, e abordada por ele no Contra academicos, em III, X, 23. 54 Cf. REALE, 1994 (Vol. III). p. 460. 55 [...] Qui sibi persuadeat corpora quaedam solida atque individua vi et gravitate ferri mundumque effici ornatissimum et pulcherrimum ex eorum corporum concursione fortuita? Hoc qui existimat fieri potuisse, non intellego, cur non idem putet, si innumerabiles unius et viginti formae litterarum vel aureae vel qualeslibet aliquo coiciantur, posse ex is in terram excussis annales Enni, ut deinceps legi possint, effici [...]. CCERO, De natura deorum, II, 93. guisa de esclarecimento, Quintus Ennius (239-169 a.C.) foi um poeta pico romano que em seus Annales (XVIII Livros em hexmetros), conta a histria de Roma dos tempos mticos at a sua poca. Dessa obra s restam fragmentos.

  • 27

    Passemos agora a outra das influncias pags sobre o jovem Agostinho, esta mais

    peculiarmente estica mesmo que no isenta de certo Ecletismo no que tange a noo da

    felicidade.

    1.4 A vida feliz senequiana

    Assumindo a maior parte das idias centrais do Prtico, a posio senequiana parte do

    princpio estico fundamental de que devemos viver conforme a (Natureza), donde a

    famosa frase: [...] preciso viver de acordo com a natureza [...]56. Para os representantes dessa

    Escola o homem parte integrante da Natureza, sinnimo de ordem csmica intrnseca realidade,

    de harmonia regida pelo universal, e dela depende para conhecer e assumir seu fim, seu

    . Toda a filosofia estica tem como fundamento principal essa compreenso harmnica do

    no todo ordenado (): o (Princpio regente racional) est

    implcito no mundo; no (Razo seminal) tudo j esta contido em germe

    desde o princpio; e, finalmente, atravs da (Providncia) tudo o que existe ordenado57.

    Desde o prprio fundador da Escola, Zenon de Citio (c. 334-262 a.C.), a filosofia estica

    considerava o sumo bem viver em conformidade com essa ordem universal, pois tal adequao nos

    conduziria virtude. E a busca desse sumo bem seria algo ingnito, instintivo, um impulso natural

    em ns. Da todas as especulaes acerca da realidade, mesmo as fsicas e lgicas, convergirem

    neste iderio para a esfera tica58. Claro que a (determinao pelo destino), entendida

    como uma seqncia de causas insopitveis que ligando passado, presente e futuro manifesta

    temporalmente a necessidade do imanente harmonia do real, ao , desempenha um

    importante papel nessa moral: esse destino inelutvel do mundo que o estico chama

    sempre alcanado pela sabedoria da , nsita no prprio real59. Assim, a organizao

    finalista da estica liga todos os seres e todos os campos de sua especulao

    56 [...] Vivere naturae si convenienter oportet [...]. HORCIO, Epistulae, I, X, 12. 57 Cf. SANGALLI, 1998. p. 102. 58 Os Esticos subdividiam a filosofia em fsica, lgica e tica. 59 Cf. SANSON, Vitorino F. Estoicismo e cristianismo. Caxias do Sul: EDUCS, 1988. p. 21.

  • 28

    inevitabilidade dos acontecimentos. De fato, todos esses campos (fsica, lgica e tica)

    compartilham uma mesma matriz doutrinria que, consciente da situao trgica do homem no

    mundo, busca a compreenso deste desde suas razes internas. Este modelo culmina por

    determinar uma filosofia voltada para o mundo da vida: para todo estico, no h bem ou mal que

    no seja moral, e a felicidade, isto , o bem moral, o remate de um processo cuja razo,

    [...] atua na natureza (e na fsica), na comunidade humana (e na tica) e no pensamento individual (e na lgica). O ato nico do filsofo preparando-se para a sabedoria coincide com o ato nico da Razo universal presente em todas as coisas e harmonizando-se consigo mesma60.

    Atento ao providente, imanente e universal, o filsofo deve no meramente teorizar

    sobre, mas viver a lgica, a fsica e a tica, isto , estar constantemente consciente do que pensa,

    como pensa; de seu lugar no ; e da canalizao desses procedimentos para a ao de

    aperfeioar-se em viver o bem. Sua esfera , portanto, a do saber prtico. Como ser racional, que

    participa do , o sbio aquele que procura compreender a ordem do universo, o ,

    para melhor compreender-se e guiar-se eticamente por ele. nesse sentido que Sneca pode

    declarar que a razo a nossa prpria essncia, e atravs dela, ultrapassamos os animais e nos

    aproximamos dos deuses. Em seu total perfazimento, a razo realiza a felicidade humana61.

    Portanto, ainda que sob a gide da e conformado prudentemente pela

    compreenso da necessidade racional da , posto o seu , o estico deve agir social

    e politicamente tendo em vista o bem comum. Sneca proclama essa vocao do Prtico que

    tambm ele assume e acentua:

    [...] nenhuma seita mais benigna e mais branda, nenhuma tem mais amor pelos homens e maior ateno pelo bem comum como a proposta de ser til, de atender com seu auxlio aos interesses no somente seus, mas de todos, em geral, e de cada um, em particular 62.

    60 HADOT, Pierre. O que a filosofia antiga? Traduo de Dion D. Macedo. 2 ed.. So Paulo: Edies Loyola, 2004. p. 204. 61 Cf. SNECA, apud M. POHLENZ, apud SANGALLI, 1998. p.102. 62 [...] nulla secta benignior leniorque est, nulla amantior hominum et communis boni attentior, ut propositum sit usui esse et auxilio nec sibi tantum, sed universis singulisque consulere. SNECA, De clementia, II, V, 3

  • 29

    No obstante sua concordncia com tais fundamentos tradicionais do Estoicismo, tampouco

    devemos perder de vista o carter algo ecltico que tambm a sntese senequiana apresenta,

    embora no de modo to generalizado quanto em Ccero. Em Sneca, em que pese a no

    incondicional fidelidade, parte-se sempre do Prtico: para ele, pela prpria concepo do

    encadeamento temporal da que a Natureza mesma permite a comunho com qualquer

    poca e qualquer tradio filosfica. No seria essa, justamente, uma manifestao das

    propriedades das rationes seminales ( )? Assim, ele est livre para dizer que

    consente-se em disputar com Scrates, duvidar com Carnades, repousar com Epicuro, vencer a

    natureza humana com os Esticos, ultrapass-la com os Cnicos [...]63. Na verdade, o Cordovs

    deixa bem clara essa relativa independncia para com os mestres de sua Escola:

    [...] direito meu dar a minha opinio. Por isso, seguirei este ou aquele; a um outro, pedirei que desdobre a sua proposio, e quando, depois de todos, eu for chamado, talvez no rejeite nenhuma das opinies antes de mim apresentadas e direi Alm disso, eis o que eu penso 64.

    Dando seguimento a essa abertura, o pantesmo estico assume em Sneca, por vezes, um

    carter que, paradoxalmente, parece privilegiar o aspecto da deidade na identificao Deus sive

    natura65, contrapondo-o matria. Do mesmo modo resgata noes que atravs do Mdio-

    platonismo o levam a assimilar instncias platnicas, opondo a alma ao corpo, e que revelam-se

    contrrias ao imanentismo materialista tpico da grega. Um claro exemplo disso encontra-se

    em uma de suas mais clebres obras, onde, quase platonicamente, declara:

    [...] De fato este nosso corpo para o esprito uma carga e um tormento; sob o seu peso o esprito tortura-se, est aprisionado, a menos que dele se aproxime a filosofia para incit-lo a alar-se contemplao da natureza, a trocar o mundo terreno pelo mundo divino. Esta a liberdade do esprito, estes os seus vos: subtrair-se ocasionalmente priso e ir refazer as foras no firmamento66.

    63Disputare cum Socrate licet, dubitare cum Carneade, cum Epicuro quiescere, hominis naturam cum Stoicis uincere, cum Cynicis excedere [...]. SNECA, De brevitate vitae, XIV, 2. 64 [] est et mihi censendi ius. Itaque aliquem sequar, aliquem iubebo sententiam diuidere, fortasse et post omnes citatus nihil inprobabo ex iis quae priores decreuerint et dicam hoc amplius censeo. SNECA, De vita beata, III, 2. 65 Para usar a expresso que no sc. XVII cunharia o tambm pantesta Espinosa. 66 [...] Nam corpus hoc animi pondus ac poena est; premente illo urguetur, in vinclis est, nisi accessit philosophia et illum respirare rerum naturae spectaculo iussit et a terrenis ad divina dimisit. Haec libertas eius est, haec evagatio; subducit interim se custodiae in qua tenetur et caelo reficitur. SNECA, Epistulae Morales ad Lucilium, VII, LXV, 16.

  • 30

    Contudo, Sneca no consegue nem definir com preciso essas idias, nem exprimi-las

    tematicamente, seja pela ausncia de categorias precisas, seja pela prpria insuficincia de vigor

    especulativo67. Mas fato que a sua concepo de um Deus, por vezes, com contornos espirituais e

    uma Providncia quase pessoal extrapola os limites da ontologia estica. De modo algo

    desconcertante, chega a afirmar que

    [...] Deus est perto de ti, est contigo, est dentro de ti. [...] Dentro de ns reside um esprito sagrado que observa e rege os nossos atos, bons e maus; e conforme for tratado por ns, assim ele prprio nos trata. Sem Deus ningum pode verdadeiramente ser um homem de bem: ou ser que algum pode elevar-se acima da fortuna sem auxlio divino? Ele d grandiosos e justos conselhos. Em todo aquele homem de bem [qual seja o deus, ignora-se], mas existe um deus68.

    Alm disso, sua tica, conquanto seguindo uma lgica pantesta, onde a Natureza

    determina tudo o que lcito e justo, aproxima-se efetivamente das prescries crists de

    fraternidade e amor ao prximo quando diz que, em relao ao nosso semelhante, devemos praticar

    o bem e aconselhar a no fazer o mal, pois, [...] pela sua prpria constituio [da Natureza] mais

    terrvel prejudicar do que sofrer prejuzo; de acordo com sua ordem, as nossas mos devem estar

    prontas ao auxlio [...]69. Ou ainda que [...] afvel com meus amigos, brando e flexvel para com

    meus inimigos, cederei antes que me supliquem e me anteciparei aos pedidos honestos [...]70,

    propondo mesmo fazer o bem a quem nos faz o mal71. Essa proximidade chegaria at a levar S.

    Jernimo a relacion-lo entre os santos72.

    De todo modo, viver de acordo com tais prescries e isento da avidez dos apetites,

    contente com o que possui, viver em conformidade com a Natureza, e, portanto, gozando da

    beatitude. Sneca afirma que a referida conformidade promove no homem uma tranqilidade

    67 Cf. REALE, 1994 (Vol. IV). p. 72. 68 [...] prope est a te deus, tecum est, intus est. [...] sacer intra nos spiritus sedet, malorum bonorumque nostrorum observator et custos; hic prout a nobis tractatus est, ita nos ipse tractat. Bonus vero vir sine deo nemo est: an potest aliquis supra fortunam nisi ab illo adiutus exsurgere? Ille dat consilia magnifica et erecta. In unoquoque virorum bonorum [quis deus incertum est] habitat deus. SNECA, Epistulae Morales ad Lucilium, IV, XLI, 1-2. O trecho grifado assinala a citao, no original, de um verso de Virglio: Eneida, VIII, 352. 69 [...] ex illius constitutione miserius est nocere quam laedi; ex illius imperio paratae sint iuvandis manus [...]. SNECA, Epistulae Morales ad Lucilium, XV, XCV, 52. 70 [...] ero amicis iucundus, inimicis mitis et facilis. Exorabor antequam roger, et honestis precibus occurram [...]. SNECA, De vita beata, XX, 5. 71 Cf. SNECA, De ira. III, XLIII, 5. 72 Cf. SANSON, 1988. p. 79.

  • 31

    perptua e uma verdadeira liberdade, posto que j se encontra satisfeito com tudo que tem sem

    estar sujeito aos ditames dos desejos. Nesse sentido, lemos:

    [...] O que impede de dizer que uma vida feliz uma alma livre, elevada, intrpida, estvel, inacessvel, tanto ao medo como cobia, cujo nico bem a honestidade, e o nico mal, o aviltamento, e tudo o mais, um monte de coisas vis, que no tiram nem acrescentam nada felicidade da vida, indo e vindo, sem aumentar nem diminuir o sumo bem? [...] preciso, pois, achar uma sada rumo liberdade. Nada mais a pode dar seno a indiferena aos caprichos da fortuna: nascer, ento, esse bem inestimvel, a calma de esprito posto em abrigo seguro, a elevao moral; e o conhecimento da verdade, afugentando os terrores, dar origem a uma grande e inaltervel alegria, a bondade, o desabafo da alma que a deleitaro, no enquanto bens, mas como efeitos do seu prprio bem73.

    Assim, a liberdade de que fala o Cordovs, assumindo contornos da ataraxia, aquela da

    apatia tpica estica, isto , de se estar fora do alcance das paixes, do prazer e da dor, da fortuna,

    mesmo no que ela guarda para ns no porvir: [...] colhe o instante, e credita o mnimo ao

    amanh, dizia o poeta74. Essa liberdade , enfim, um "gozo da indiferena" diante de todas as

    vicissitudes da vida:

    [...] gozando a plena posse de uma vida feliz, uma vida que, embora se prolongue, no poder ser mais feliz do que j . Quando vir o tempo em que tu [Luclio] percebas como o tempo j no te diz respeito, em que atinjas a mais completa tranqilidade, indiferente ao dia de amanh, perfeitamente satisfeito da vida que j tiveste! Sabes o que torna os homens vidos de futuro? O fato de nenhum conseguir realizar-se [...]75.

    Eis ento, clara e distintamente, a virtude senequiana: um fim em si mesma, pois nada h de

    mais elevado do que a virtude identificada como autonomia. Nela reside, tambm para o neo-

    estico latino, a verdadeira felicidade.

    73 [...] quid enim prohibet nos beatam uitam dicere liberum animum et erectum et interritum ac stabilem, extra metum, extra cupiditatem positum, cui unum bonum sit honestas, unum malum turpitudo, cetera uilis turba rerum nec detrahens quicquam beatae uitae nec adiciens, sine auctu ac detrimento summi boni ueniens ac recedens? [...] Ergo exeundum ad libertatem est. Hanc non alia res tribuit quam fortunae neglegentia: tum illud orietur inaestimabile bonum, quies mentis in tuto conlocatae et sublimitas expulsisque erroribus ex cognitione ueri gaudium grande et inmotum comitasque et diffusio animi, quibus delectabitur non ut bonis sed ut ex bono suo ortis. SNECA, De vita beata., IV, 3-5. 74 [...] carpe diem, quam minimum credula postero. HORCIO, Odes, I, 11, 8. 75 [] in possessione beatae vitae positum, quae beatior non fit si longior. O quando illud videbis tempus quo scies tempus ad te non pertinere, quo tranquillus placidusque eris et crastini neglegens et in summa tui satietate! Vis scire quid sit quod faciat homines avidos futuri? nemo sibi contigit [...]. SNECA, Epistulae morales ad Lucilium, IV, XXXII, 3-4.

  • 32

    1.5 A eudaimonia em Plotino

    Em Plotino, diferente das noes anteriores de felicidade, a aparece

    definitivamente como transcendente. Enquanto a especulao neo-estica de Sneca e o Ecletismo

    fortemente estoicizante de Ccero se caracterizavam, sobretudo, por uma deduo imanente

    natureza humana, com Plotino introduzem-se aspectos inteiramente novos, como a intensa piedade

    e o profundo enraizamento da especulao teleolgica em uma realidade divina absolutamente

    imaterial e transcendente76.

    cosmologia plotiniana, complexa e a-sistemtica, no dispensaremos ateno maior do

    que o que segue exposto. Seria extenso demais e extrapolaria os limites de nossa proposta. Vamos

    nos ater, portanto, ao necessrio compreenso do significado da para o

    Licopolitano77.

    Segundo sua doutrina, a partir do Uno perfeito, o Todo, Primeiro princpio

    e absoluto que a tudo subsume, estando mesmo acima da Inteligncia e do prprio Ser promana

    toda a realidade. Observamos que essa emanao no da ordem da criao consciente, mas uma

    derivao necessria condio sui generis do Uno. Nele, ser e criar-se se confundem. Com

    efeito, o Uno atividade livre e simples que se autoproduz. Auto- existente, sendo em si mesmo na

    sua absoluta perfeio, do Uno decorre uma inevitvel exteriorizao de si, distinta Dele, como no

    fogo, em que h o calor prprio de sua natureza e aquele que emana imediatamente dela; mas o

    fogo permanece inalteradamente fogo, que seu ato essencial78.

    Assim, dessa primeira hipstase, ou seja, da realidade suprema que o Uno, inicia-se uma

    processo que vai do mundo inteligvel at a esfera do sensvel, atravs das demais hipstases a

    saber, o que o Intelecto, a Inteligncia que, contemplando o Uno, pensa a totalidade

    inteligvel; e a , a Alma universal, que contemplando o Intelecto dele procede, sendo, por

    sua vez, o que proporciona vida aos seres materiais79 . Alis, na doutrina plotiniana, essa Alma

    76 Cf. HOLTE, 1962. p. 21. 77 Algo semelhante proposta de I. J. Sangalli em sua obra supracitada (cf. supra, n. 18). Na verdade, seguimos alguns de seus passos metodolgicos nessa nossa apreciao sobre Plotino. 78 Cf. PLOTINO, Enadas, V, 4, 2. 79 CF. PLOTINO, Enadas, V, I.

  • 33

    universal contm o conjunto daquelas rationes seminales esticas e, por isso, no ela que est no

    mundo, nas coisas; d-se exatamente o oposto:

    [A Alma], de fato, deu-se inteiramente matria; seja qual for seu espao, grande ou pequeno, animado. Mas se a matria sempre diversa seja aqui ou ali, e uma parte se encontre em um ponto e outra se encontre em outro ponto, e algumas se achem situadas em lugares opostos, e outras venham a ser separadas entre si, a Alma, ao contrrio, no assim: ela no se reduz em fragmentos para dar vida a cada uma dessas coisas singulares; mas todas as coisas vivem devido Alma ntegra que onipresente [...] 80.

    na Alma onde termina a srie de hipstases e comea o mundo fsico, mbito da

    degradao do que mltiplo, do que apenas derivado, como um limite imposto pela prpria

    imperfeio do que informe, sendo a diametral contrapartida do Uno perfeito, a mxima ausncia

    da suma causa puramente formal que Ele representa. Desse modo, podemos entender o mundo

    sensvel como a extrema segncia da fora produtora: a maior privao possvel da potncia do

    Uno. Ora, como este o prprio Bem, a ltima instncia material tem que ser, a fortiori, m. Mas

    aqui o mal no aparece como negatividade, oposto ao que mais positivo num dualismo do tipo

    maniquesta: apenas a ausncia daquele, isto , trata-se de uma noo de mal pela privao do

    Bem81. Entretanto, na cosmologia plotiniana, o mal acaba por ser necessrio: [...] Ento,

    necessrio que haja um ilimitado em si, um informe em si, e assim pelas outras propriedades j

    recordadas que caracterizam a natureza do mal [...]82. Ou seja, se h uma processo inevitvel que

    comea no Uno, tambm deve haver o termo dessa difuso que a matria, aquilo que no guarda

    mais nada Dele. O sensvel no o no-ser, mas somente o outro do ser83 inteligvel.

    Primeiramente, h em Plotino um movimento do transcendente para o imanente justificado

    por uma difuso, um puro abismar-se irrefrevel do Uno para o mltiplo. De fato, neste primeiro

    80 , , , , , ,

    , ' . ' ,

    , ,

    . PLOTINO, Enadas, V, I, 2. 81 CF. PLOTINO, Enadas, I, 7 e I, 8. 82 [...] ' , [...]. PLOTINO, Enadas, I, 8, 3. 83 [...] [...]. PLOTINO, Enadas, I, 8, 3. Cf. REALE, 1994 (Vol. IV). p. 488. Sobre a mesma questo temos que o mal no seno um corolrio da diversidade essencial e necessria dos seres criados [...]. JOLIVET, 1932, apud COSTA, 2002, p. 181. E, igualmente, que, para Plotino, [...] o mal natural, ele uma necessidade inerente ordem natural, porque as almas caram na misria [matria], da qual os vcios decorrem necessariamente. SCIACCA, 1956, apud COSTA, 2002, p 181, n.92.

  • 34

    axioma se baseia toda a cosmologia plotiniana e com ela, sua filosofia. Entretanto, notemos, o que

    caracteriza sua doutrina da felicidade o movimento oposto, aquele derivado da aspirao do

    mltiplo em retornar ao Uno, ao absoluto, ao repouso no Bem. Ou seja, do que ou est na

    imanncia tendo como meta a transcendncia. Nesse sentido, a de cada indivduo, partcipe

    em certa medida daquela mesma hiposttica84, a nossa alma decada e enclausurada no

    corpo, mas que, interiorizando-se, assumindo-se conscientemente como tal, almeja novamente

    elevar-se ao transcendente. [...] O ato prprio da alma consiste em ser sbio e um ato interior

    seu. A est a felicidade85. Na verdade, esse o incio do caminho para a . Desde tal

    interiorizao, inversa e sucessivamente, atravs da hiposttica inicial, a nossa deve

    ascender ao porque, efetivamente, provm de l: [...] alma e vida so, de fato, traos do

    Intelecto e a este a alma tende [...]86. desta segunda hipstase que a alma individual pode

    alcanar o Primeiro princpio. Em sntese: Plotino concebe o caminho para a felicidade como a

    (retorno) da alma encerrada no sensvel em direo ao Uno, passando inversamente

    pelas hipstases da Alma universal e do Intelecto. O Licopolitano justifica esta aspirao da alma

    humana dizendo que

    [...] nele [no Uno] que a alma encontra seu repouso e escapa dos males, pois retorna ao lugar que est livre de todos eles. a que ela exerce sua atividade intelectual. a que ela impassvel. a que ela vive verdadeiramente, pois a vida que vivemos agora, essa vida sem Deus, apenas uma aparncia de vida, que apenas imita a vida verdadeira, a vida do alto, que a prpria atividade da Inteligncia. [...] E isso para ela o princpio e o fim. O seu princpio, porque ela veio de l; o seu fim, porque l que o Bem est [...] 87.

    A vida perfeita plotiniana, encontrada apenas junto ao Bem que o Uno, o Primeiro

    princpio, aquela vivida segundo a natureza exclusivamente intelectual da alma humana que pode

    84 Que sendo uma e ao mesmo tempo muitas ( ), no perde, contudo, sua unidade. 85 [...] . . PLOTINO, Enadas, I, 5, 10. 86 [...] , [...]. PLOTINO, Enadas, VI, 7, 20. 87 [...] , .

    , [...] , , , [...]. PLOTINO, Enadas, VI, 9, 9.

  • 35

    realizar a volta ao seu verdadeiro lugar na instncia mxima da transcendncia, se