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BORN TO RUN

BRUCE SPRINGSTEEN

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BORN TO RUN

BRUCE SPRINGSTEEN

AUTOBIOGRAFIA

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Copyright © 2016 by Bruce Springsteen© 2016 Casa da Palavra/ LeYa

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998. Publicado mediante acordo com a editora original Simon & Schuster, Inc.

É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

Tradução João ReisMaria do Carmo Figueira

PreparaçãoAna Kronemberger

RevisãoBárbara AnaissiFlávia MidoriMaria Clara Antonio JeronimoMariana Bard

Projeto gráfi co de miolo e diagramaçãoFiligrana

Crédito de capa Jacket Photograph © Frank StefankoJacket Design by Jackie Seow

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Springsteen, Bruce Born to run / Bruce Springsteen; Maria do Carmo Figueira e João Reis – Rio de Janeiro: LeYa, 2016. 496 p. ISBN 978-85-441-0492-7 Título original: Born to run

1. Springsteen, Bruce, 1949- Biografi a 2. Músicos de rock Estados Unidos – Biografi a I. Título II. Figueira, Maria do CarmoIII. Reis, João

Índices para catálogo sistemático: 1. Músicos de rock Estados Unidos – Biografi a CDD 782.42166092

Todos os direitos reservados àEditora Casa da PalavraAvenida Calógeras, 6 | sala 70120003-070 – Rio de Janeiro – RJwww.leya.com.br

1ª edição Novembro de 2016 papel de miolo Pólen Soft 70g/m² papel de capa Cartão Supremo 250g/m² tipografi a Dante MT Std gráfi ca Lis Gráfi ca

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Para a Patti, o Evan, a Jess e o Sam

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SUMÁRIO

PREFÁCIO 15

LIVRO UM“Growin’ up” 17

Minha rua 19Minha casa 23

A igreja 27Os italianos 33

Os irlandeses 38Minha mãe 45

O Big Bang (Vocês ouviram as notícias?) 50A era do rádio 55

A segunda vinda 59Showman (O deus da dança) 64

Blues de operário 67Onde as bandas estão 70

Os Castiles 76Era uma vez um garoto chamado Steven 94

Terra 101O Upstage Club 108

Tinker (O safári do surfe) 116Os Steel Mill 122

Voltando para casa 138Um verão interminável 145

Beatnik de luxo 151Sonhando com a Califórnia (Take 2) 157

É um bar, idiotas 163Ao infi nito e além 168

Perdendo minha religião 176Trabalhos na estrada 181

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The Wild, the Innocent and the E Street Shuffl e 185O Satellite Lounge 194

LIVRO DOIS 123“Born to Run” 199

“Born to Run” 201Jon Landau 206

“Thunder Road” 213Jackpot 217

E Street Band 227Clarence Clemons 233

Novos contratos 238Vivendo com a lei 246

Darkness on the Edge of Town 251O golpe 258

Tempo de descanso 261The River 265

Cidade dos sucessos 276Olá, paredes 284

Nebraska 287Livrai-me de lugar nenhum 290

Califórnia 296“Born in the USA” 301

Buona Fortuna, Fratello Mio 306Os grandes grandes tempos 309

Indo para casa 323Regresar a México 327

Tunnel of Love 332Indo pra Califórnia 341

LIVRO TRÊS 123“Living Proof” 347

“Living Proof” 349A revolução ruiva 352

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Mudanças 355LA em chamas 358

Indo para a igreja 360Terremoto Sam 367

“Streets of Philadelphia” 375The Ghost of Tom Joad 379

O homem do Oeste 383A mulher do Leste 391

O rei de New Jersey (Dias de Hollywood) 394Trazendo tudo para casa 396

Renascimento 398The Rising 411

O Leste selvagem 417The Seeger Sessions 422

Magic 427Domingo de Super Bowl 431

Seguindo em frente 435Wrecking Ball 438

Perdendo a chuva 441A turnê Wrecking Ball 445

Do zero aos 60 num piscar de olhos 452Bandas de garagem 456

“High Hopes” 459Frente de batalha em casa 464

“Long Time Comin’” 468

EPÍLOGO 473

AGRADECIMENTOS 475

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS 477

LEGENDAS 478

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PREFÁCIO

Nasci numa cidade à beira-mar onde quase tudo é contaminado por uma certa dissimulação. Incluindo eu. Aos 20 anos, sem qualquer espírito de rebeldia materializada em corridas loucas de carros, tocava guitarra nas ruas de Asbury Park e já era um membro de pleno direito do grupo dos que “mentem” a bem da verdade… artistas, com “a” minúsculo. Mas tinha quatro grandes vanta-gens: era jovem, tinha quase dez anos de experiência em bandas de bares de má reputação, um bom grupo de músicos meus conterrâneos, habituados ao meu estilo, e uma história para contar.

Este livro é, ao mesmo tempo, uma continuação dessa história e uma tentativa de descoberta das suas origens. Adotei como parâmetros os acon-tecimentos da minha vida que acredito terem dado forma a essa história e à minha trajetória como músico. Uma das perguntas que os fãs me fazem vezes sem conta é: “Como é que você toca desse jeito?” Nas páginas que se seguem vou tentar explicar como e, mais importante ainda, por quê.

Kit de sobrevivência do rock ’n’ roll

DNA, habilidade natural, estudo das técnicas, desenvolvimento e devoção a uma fi losofi a estética, puro desejo de… fama? Amor? Admiração? Atenção? Mulheres? Sexo? Ah, claro, e uns trocados. E depois, caso queiram continuar noite afora, um fogo voraz aqui dentro que nunca se apaga, eterno.

Estes são alguns dos elementos que poderão dar jeito quando se está frente a frente com 80 mil (ou 80) fãs de rock ’n’ roll que estão à espera de que façamos o nosso truque de mágica. À espera de que tiremos qualquer coisa de dentro da cartola, que façamos algo a partir do nada, que lhes ofereçamos algo nunca antes visto, qualquer coisa que, antes de toda a congregação se ter reunido, era apenas um rumor alimentado por uma canção.

Estou aqui para apresentar a minha prova de vida perante o “nós”, esse con-ceito fugidio e nem sempre aceitável. É esse o meu truque de mágica. E, como todos os bons truques de mágica, começa com uma encenação. Assim sendo…

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LIVRO UM“GROWIN’ UP”

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UM

MINHA RUATenho dez anos e conheço todas as rachaduras e buracos das calçadas em Randolph Street, minha rua, onde sou ora Aníbal vencendo os Alpes, um fuzileiro num combate terrível numa montanha ou todos os caubóis possíveis e imaginários atravessando os caminhos rochosos de Serra Nevada. Rastejando com a barriga no chão, ao lado dos minúsculos montes de formigas que se erguem como vulcões onde a terra e o cimento se encontram, meu mundo estende-se até o infi nito ou, pelo menos, até a casa de Peter McDermott, na esquina da Lincoln com a Randolph, um quarteirão acima.

Fui transportado por essas ruas no meu carrinho de bebê, foi nelas que dei meus primeiros passos, que meu avô me ensinou a andar de bicicleta e que tive as minhas primeiras brigas. Foi lá que conheci a profundidade e o conforto das verdadeiras amizades, que me senti sexualmente excitado pela primeira vez e que, de noitinha, antes de existir ar-condicionado, via os alpendres das casas se encherem de vizinhos desejosos de conversar e descansar do calor do verão.

Foi aqui que, em torneios épicos de boliche improvisado, destruí a pri-meira de uma centena de bolas de borracha nas bordas afi adas dos bueiros. Subi em montes de neve suja amontoados por limpa-neves que trabalhavam durante a noite, como um Edmund Hillary de New Jersey. Minha irmã e eu costumávamos espreitar pela gigantesca porta de madeira da nossa igreja, como “penetras”, para assistirmos ao infi ndável desfi le de batismos, casamentos e funerais. Ia sempre atrás de meu avô, lindo e elegante, mesmo que malvestido, quando ele percorria o quarteirão, meio cambaleante, com

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o braço esquerdo paralisado, para fazer “exercício”, depois de um AVC que o deixou com sequelas graves, das quais nunca conseguiu se recuperar.

No nosso jardim da frente, a poucos metros do alpendre, fi ca a maior árvore da cidade, uma faia gigantesca. Ela é tão alta, mas tão alta que se um raio a atingisse, poderia matar a todos nós, como caracóis esmagados pelo dedo mindinho de Deus. Nas noites de tempestade, em que os trovões ecoam e os relâmpagos tingem os nossos quartos de azul-cobalto, vejo seus ramos se moverem e ganharem vida em meio ao vento e aos clarões, enquanto fi co acordado, preocupado com meu querido monstro que está lá fora. Nos dias de sol, suas raízes são um forte para meus soldados, uma estábulo para meus cavalos e minha segunda casa. Tive a honra de ser o primeiro das redondezas a subir até o galho mais alto dessa árvore. É onde me abrigo de tudo o que existe lá embaixo. Fico horas passando de um galho ao outro, sob o som das vozes abafadas de meus amigos, vindo lá de baixo, da calçada, enquanto tentam acompanhar minhas manobras. Nas noites lentas de verão, nos sentamo em seus galhos adormecidos, meus amigos e eu. O batalhão chega ao anoitecer, à espera das campainhas que nos chamam a essa hora: o sorveteiro e a cama. Ouço a voz de minha avó me chamando para casa, o último som dos meus dias longos. Vou até o alpendre, com as janelas de nossa casa brilhando à luz do crepúsculo de verão; abro a pesada porta da rua, depois a fecho e, durante mais ou menos uma hora, na frente do fogão a querosene, eu e meu avô, sentado na sua cadeira grande, vemos a pequena tela da tevê em preto e branco iluminar a sala, projetando os seus espectros nas paredes e no teto. Depois adormeço, no aconchego do maior e mais triste refúgio que alguma vez conheci: a casa de meus avós.

Vivo aqui com minha irmã Virginia, um ano mais nova do que eu, com meus pais, Adele e Douglas Springsteen, com os meus avós, Fred e Alice, e com meu cachorro, Saddle. Vivemos, literalmente, no seio da Igreja Católica, com a casa paroquial, o convento das freiras, a igreja de Santa Rosa de Lima e a escola à distância de um arremesso de bola num campo coberto de relva.

Apesar de pairar acima de nós, aqui Deus está cercado por homens — mais precisamente, homens loucos. Minha família se espalha por cinco casas dispostas em L, a partir da esquina junto à igreja de tijolo vermelho. São quatro casas de irlandeses da velha guarda, as pessoas que me criaram — os McNicholas, os O’Hagan, os Farrell — e, do outro lado da rua, um posto avançado de italianos, que apimentaram a minha educação. São os Sorrentino e os Zerilli, que vieram de Sorrento, na Itália, passando pelo Brooklyn e Ellis Island. É lá que mora a mãe de minha mãe, Adelina Rosa Zerilli, a irmã mais velha de minha mãe, Dora, o marido de Dora, Warren (obviamente, irlandês),

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e a fi lha deles, minha prima mais velha, Margaret. Margaret e meu primo Frank são campeões de jitterbug, vencendo concursos de dança e ganhando prêmios por toda a costa de Jersey.

Embora não antipatizem uns com os outros, também não é costume os dois clãs atravessarem a rua para conviverem.

A casa onde vivo com meus avós pertence à minha bisavó “Nana” McNicholas, mãe de minha avó, que está viva e muito bem. Disseram-me que a primeira missa e o primeiro funeral da cidade aconteceram lá em casa. Vivemos aqui sob o olhar permanente da irmã mais velha de meu pai, minha tia Virginia, que morreu com cinco anos, atropelada por um trator quando estava andando de triciclo perto da bomba de gasolina. O retrato dela paira sobre a sala, emanando um ar espectral e relembrando o seu triste destino nas nossas reuniões familiares.

É um retrato formal, em tons sépia, de uma menina com um vestido antiquado de linho branco. À luz dos acontecimentos, seu olhar bondoso parece dizer: “Cuidado! O mundo é um lugar perigoso e implacável, capaz de fazer vocês caírem dos triciclos e de mandar vocês para a escuridão dos mortos, e só essas almas, pobres, desorientadas e infelizes, sentirão a sua falta.” A mãe dela, minha avó, ouviu bem essa mensagem. Passou dois anos de cama depois que a fi lha morreu e mandou meu pai, negligenciado e raquítico, viver nos arredores da cidade com outros membros da família enquanto ela se recuperava.

O tempo foi passando. Meu pai deixou a escola aos 16 anos e come-çou a trabalhar como contínuo na Karagheusian Rug Mill, uma fábrica barulhenta, cheia de teares e máquinas ensurdecedoras, que ocupava os dois lados de Center Street, numa parte da cidade chamada “Texas”. Aos 18 anos, foi para a guerra, partindo de Nova York no Queen Mary. Foi motorista de caminhão na Batalha das Ardenas, viu o pequeno canto do mundo que o mandaram visitar e voltou para casa. Jogou bilhar para ganhar algum dinheiro, e o fazia com grande perícia. Quando conheceu a minha mãe, apaixonou-se por ela, prometendo-lhe que, se aceitasse casar com ele, arranjaria um emprego de verdade (perigo!). Trabalhou com o primo, David “Dim” Cashion, na fábrica da Ford em Edison, e depois nasci eu.

Para minha avó, fui o primeiro neto de seu único fi lho e o primeiro bebê em casa desde a morte da fi lha dela. Meu nascimento devolveu à vida dela um objetivo. Dedicou-se totalmente a mim. Sua missão passou a ser me proteger do mundo. Infelizmente, sua devoção cega e obsessiva acabou por criar ressentimentos em meu pai e uma enorme confusão no seio da família, que arrastou a todos nós.

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Quando chove, a umidade do ar toma conta de nossa cidade junto com o cheiro de café moído, que vem da fábrica da Nescafé, nos limites da cidade, a leste. Não gosto de café, mas gosto daquele cheiro. É reconfortante, une a cidade numa experiência sensorial comum. É uma fábrica importante, como a barulhenta fábrica de tapetes que nos massacra os ouvidos; é uma fonte de trabalho e um sinal da vitalidade de nossa cidade. Há aqui um lugar — podem ouvi-lo, cheirá-lo — onde as pessoas vivem, sofrem, desfrutam de pequenos prazeres, jogam beisebol, morrem, fazem amor, têm fi lhos, embebedam-se nas noites de primavera e fazem tudo o que podem para manter afastados os demônios que querem destruir a todos nós, a nossas casas, a nossas famílias, à nossa cidade.

Aqui, vivemos à sombra do campanário, e é aí que a confusão se estabe-lece, porque somos todos ilicitamente abençoados pela misericórdia de Deus, nesse lugar que nos tira o fôlego, que nos deixa de boca aberta, que explode em confl itos raciais, que odeia a diferença, sacode nossas almas, que desperta amor e medo e nos deixa desolados: a cidade de Freehold, em New Jersey.

Que a cerimônia se inicie.

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DOIS

MINHA CASAÉ noite de quinta-feira, noite de caça ao lixo. Estamos mobilizados e prontos para sair. Nós nos amontoamos no carro dos anos 1940 de meu avô, espe-rando sermos distribuídos pelos vários montes de lixo que transbordam nas calçadas da cidade. Primeiro, vamos para Brinckerhoff Avenue, onde o dinheiro está e o lixo é mais seleto. Vamos à procura de rádios, quaisquer rádios, independentemente do estado em que estejam. Vamos revirar o lixo e, quando os encontramos, os jogamos na mala do carro para levá-los para casa, para a “ofi cina”, o cubículo de madeira de meu avô, de dois metros por dois, sem aquecimento, num canto do terreno de nossa casa. Lá é o lugar onde a mágica acontece. Sento-me ao lado dele, naquele espaço cheio de fi os elétricos e válvulas, observando atentamente, enquanto ele liga, solda e troca as válvulas, ambos à espera do mesmo momento: o instante em que um sus-surro, o maravilhoso zumbido da estática e o brilho quente e evanescente da eletricidade voltam a emanar dos esqueletos mortos dos rádios que salvamos da destruição.

Aqui, na bancada de trabalho de meu avô, a ressurreição acontece mesmo. O vazio e o silêncio são substituídos pelas vozes distantes e crepitantes dos pregadores de domingo, pela tagarelice dos anunciantes, pela música das big bands, pelos primórdios do rock ’n’ roll e pelas radionovelas. É o som do mundo lá fora tentando chegar até nós, à nossa pequena cidade e, ainda mais perto, ao nosso universo hermeticamente fechado aqui no número 87 da Randolph Street. Depois de voltarem à vida, todos os aparelhos serão vendidos a cinco dólares nos acampamentos de migrantes que, mal chega o verão, nascem em

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todas as plantações nos limites do nosso distrito. O “homem do rádio” está chegando. É assim que meu avô é conhecido entre a população migrante, majoritariamente negra, vinda do Sul, que todos os anos chega de ônibus para as colheitas nas zonas rurais de Monmouth County. Minha mãe leva meu avô, com a sua cabeça avariada pelo AVC, de carro pelas estradas de terra das fazendas até os casebres ao fundo onde se continua a viver como no tempo da grande seca dos anos 1930, para ele poder fazer negócio com “os pretos” nos seus miseráveis acampamentos. Fui com eles uma vez e fi quei morrendo de medo, ao me ver cercado ao anoitecer por todos aqueles rostos negros exaustos. As relações inter-raciais, que nunca foram muito boas em Freehold, explodirão dez anos mais tarde, em tumultos e tiroteios, mas, àquela época, havia apenas uma calma aparente e desconfortável. Sou apenas o neto e o protegido do “homem do rádio”, aqui, entre seus fregueses, onde a minha família tenta arranjar uns trocados para esticar o dinheiro até o fi m do mês.

Éramos quase pobres, embora eu não me sentisse obrigado a pensar no assunto. Tínhamos roupa, comida e cama. Eu tinha amigos brancos e negros que viviam em condições bem piores. Meus pais trabalhavam, a minha mãe como secretária numa fi rma de advogados e meu pai, na Ford. Nossa casa era velha e, dentro de pouco tempo, se tornaria visivelmente decrépita. O fogão de querosene da sala era a única coisa que tínhamos para aquecer a casa toda. No andar de cima, onde toda a família dormia, quando acordávamos nas manhãs de inverno, dava para ver nossa respiração. Uma de minhas primeiras recordações da infância é o cheiro de querosene e meu avô, de pé, enchendo o depósito na parte de trás do fogão. A comida era feita na cozinha, num fogão a carvão. Quando era criança, costumava disparar a minha pistola de água na superfície de ferro do fogão quente, para ver o vapor subir. Costumávamos levar as cinzas, pela porta dos fundos, para o “monte de cinzas”. Todos os dias, eu chegava em casa pálido, depois de brincar nesse monte de cinzas. Tínhamos uma geladeira minúscula e fomos os primeiros na cidade a ter televisão. Muitos anos antes de eu nascer, meu avô tinha sido dono da Springsteen Brothers Electrical Shop. Por isso, quando a televisão apareceu, chegou logo à nossa casa. Minha mãe me contou que vinham vizinhos de todo o quarteirão para ver aquele milagre e assistirem aos programas de Milton Berle, Kate Smith e ao Your Hit Parade. Para ver as lutas entre o Bruno Sammartino e o Haystacks Calhoun. Aos seis anos, sabia de cor a música do programa de Kate Smith, “When the Moon Comes Over the Mountain”.

Nessa casa, devido à ordem dos nascimentos, mas também a outras cir-cunstâncias, eu era ao mesmo tempo senhor, rei e messias. Como fui o primeiro

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neto, minha avó se agarrou a mim para substituir minha tia Virginia, que tinha morrido. Ninguém me impunha limites. Era uma liberdade terrível para uma criança, e eu a aproveitei completamente. Com cinco ou seis anos, fi cava acordado até as três da manhã e dormia até as três da tarde. Via televisão até o fi m da programação e, depois, fi cava sozinho, de olhos esbugalhados, olhando para o padrão de teste, aquelas faixas que apareciam na tela da tevê fora do ar. Comia o que queria quando queria. Eu e os meus pais nos tornamos parentes distantes, e minha mãe, no meio daquela confusão e levada pelo desejo de manter a paz, foi me entregando ao domínio total de minha avó. Eu me tornei um pequeno tirano tímido, que rapidamente concluiu que as regras eram para os outros, pelo menos até meu pai chegar em casa. Ele seria o senhor absoluto, com o seu ar taciturno, se não fosse um monarca destronado pelo próprio fi lho com a anuência de sua própria mãe. Nossa casa em ruínas, as minhas excentricidades e o poder que eu tinha com aquela idade me envergonhavam e constrangiam. Via que o resto do mundo funcionava segundo outras regras e meus amigos do bairro me criticavam constantemente pelos meus hábitos. Adorava o meu poder, mas sabia que aquilo não estava certo.

Quando cheguei à idade de ir para a escola e tive que obedecer a horários, nasceu em mim uma raiva que durou a maior parte da minha vida de estu-dante. Minha mãe sabia que todos nós devíamos ter passado a agir de forma diferente há muito tempo e, justiça lhe seja feita, tentou me resgatar. Mudamos da casa de minha avó para uma outra, retangular e estreita, uma casa típica do sul dos Estados Unidos, no número 39 ½ da Institute Street. Sem água quente, com quatro quartos minúsculos e a quatro ruas de distância da casa de meus avós. Minha mãe tentou estabelecer algumas regras. Mas era tarde demais. Aquelas quatro ruas pareciam até um milhão de quilômetros. Eu estava mor-rendo de raiva, experimentava uma profunda sensação de perda, e, sempre que podia, voltava para a casa de meus avós. Era a minha verdadeira casa e, para mim, eles eram meus verdadeiros pais. Não queria — nem ia — sair dali.

Entretanto, a casa agora se resumia à sala. O resto dos quartos, abandona-dos e com a mobília coberta, estavam caindo aos pedaços. Havia apenas um banheiro, por onde entrava o frio e o vento, mas sem banheira. Meus avós se abandonaram a um estado de falta de cuidados e de higiene que me chocava e repugnava. Lembro-me da roupa de baixo encardida de minha avó, recém--lavada e estendida numa corda no quintal dos fundos — um susto e uma vergonha, pois, para mim, era símbolo de uma intimidade, física e emocional, que considerava imprópria, mas que tornava a casa de meus avós tão confusa e irresistível. Eu os adorava e adorava aquela casa. Minha avó dormia num

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sofá de molas velho e eu dormia aconchegado ao lado dela, enquanto meu avô tinha um pequeno catre do outro lado da sala. E era isso. Era nisso que tinha dado a ausência de limites da minha infância. Era aqui que eu precisava estar para me sentir em casa, seguro e amado.

O poder hipnótico dessa casa em ruínas e dessas pessoas me prendeu para sempre. Hoje em dia, visito essa casa em meus sonhos, voltando para lá vezes sem conta, desejoso de voltar para sempre. Foi um lugar onde senti uma segurança infi nita, uma enorme liberdade e um amor incondicional terrível e inesquecível. Ela me destruiu, mas também fez de mim a pessoa que sou. Me destruiu, porque passei o resto da vida tentando estabelecer limites para mim mesmo, para que, em minha vida, possam existir relacionamentos com alguma normalidade. Fez de mim a pessoa que sou porque me fez passar a vida à procura de um lugar “especial” só meu e me despertou um desejo dolo-roso que me conduziu inexoravelmente à minha música. Foi com um esforço desesperado e de toda uma vida que consegui reconstruir, sobre as cinzas da memória e da saudade, o meu próprio templo de segurança.

Por amar minha avó, abandonei meus pais, minha irmã e muitas das coisas que o mundo teria para me oferecer. E, depois, esse meu mundo desabou. Os meus avós adoeceram. Minha família mudou toda para outra casa, no número 68 da South Street. Passado pouco tempo, nasceu a minha irmã mais nova, Pam, meu avô morreu, e minha avó descobriu que estava com um câncer em estado terrivelmente avançado. Minha casa, meu quintal dos fundos, minha árvore, minha terra, meu refúgio estavam condenados. O terreno acabou por ser vendido para se fazer um estacionamento para a igreja católica de Santa Rosa de Lima.

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TRÊS

A IGREJAHavia um caminho que podíamos fazer de bicicleta, contornando a igreja e a casa paroquial, passando pelos fundos do convento e continuando pelo maravilhoso caminho das freiras com suas pedras azuladas. As extremidades ligeiramente salientes das pedras faziam trepidar os punhos do guidão, levando a nossas mãos uma espécie de pulsação — pum, pum, pum —, e fi cávamos indo e vindo. Passávamos as tardes sonolentas a serpentear pelas casas que pertenciam à igreja de Santa Rosa, com as freiras ralhando conosco e nos mandando para casa pelas janelas do convento, e a desviar de gatos vadios que perambulavam entre o porão da igreja e a sala de estar de minha casa. Meu avô, que a essa altura já não tinha grande coisa para fazer, passava o tempo no quintal dos fundos a chamar pacientemente aqueles seres selvagens para junto dele. Conseguia aproximar-se de gatos ferozes que não aceitariam a presença de nenhum outro ser humano e até os domesticava. Às vezes, pagava um preço bem caro. Uma noite chegou em casa sangrando, com um arranhão de mais de 30 centímetros no braço, feito por um “gatinho” que ainda não estava preparado para receber o amor dele.

Os gatos perambulavam entre nossa casa e a igreja, da mesma forma que nós perambulávamos entre a escola, nossa casa, a missa e a escola, mantendo nossas vidas indissociavelmente ligadas à vida da igreja. A prin-cípio, os padres e as freiras eram apenas rostos bondosos que olhavam para dentro dos carros, todos cheios de sorrisinhos e mistérios agradáveis, mas, quando entrei para a escola, fui lançado no tenebroso salão da comunhão. Chegou o incenso, os homens crucifi cados, o catecismo que era uma tortura

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memorizar, a Via Sacra das sextas-feiras (os trabalhos de casa!), os homens e mulheres de vestes pretas até os pés, o confessionário com a sua cortina e a janela de correr, a expressão sombria do padre e o desfi ar das transgressões da infância. Quando penso nas horas que passei a conceber uma lista de pecados aceitáveis que pudesse disparar mal recebesse a ordem… Tinham de ser sufi cientemente maus para serem críveis… mas não muito maus (o melhor ainda estava para vir!). Que pecados é que uma criança da segunda série podia cometer? A certa altura, eu não aguentei mais o sagrado ajuste de contas com Santa Rosa de Lima de segunda a domingo. Só queria que me tirassem dali! Mas para onde? Não havia saída possível. Era ali que eu vivia! Que todos nós vivíamos. Toda a minha tribo. Estávamos abandonados na ilha deserta daquela esquina, todos no mesmo barco. Um barco que, como me ensinaram os meus catequistas, está eternamente no mar, com a morte e o Dia do Juízo Final separando os passageiros, enquanto o barco segue de uma barragem de questões metafísicas à outra, perdido numa confusão sagrada.

E, por isso… construí meu outro mundo. Um mundo de resistência infantil, um mundo de recusa passiva interior, a minha defesa contra o “sistema”. Era a recusa de um mundo onde não era reconhecido, segundo a visão de minha avó e a minha própria, porque era um pequeno rei perdido, diariamente obrigado a exilar-se do seu reino. Da casa de minha avó! Para aquela gente pretensiosa, eu era mais uma criança mimada que se recusava a se adaptar àquilo que, em última análise, todos teríamos que nos adaptar, à doutrina “de acordo com as circunstâncias”, ao reino das COISAS SÃO O QUE SÃO! O problema é que eu não sabia, nem queria saber, “como é que são as coisas”. Eu vinha da terra exótica das COISAS COMO EU GOSTO QUE SEJAM. Ficava mesmo ali no alto da rua. O melhor era mesmo ir para CASA!

Por muito que quisesse, por muito que me tentasse, esse conceito de “as coisas são o que são” me escapava. Tentava desesperadamente me encaixar nesse mundo, mas a excessiva liberdade que me era dada pelos meus avós me transformara num rebelde involuntário, num garoto inadaptado, estranho e medroso. Tinha me isolado, não pertencia a lugar nenhum, era um sem-teto… aos sete anos de idade.

Meus colegas da escola eram, em geral, pessoas de bom coração. Mas havia alguns que eram violentos, agressivos e antipáticos. Fui vítima de bullying como todos os aspirantes a astros do rock têm de aguentar, num silêncio raivoso, cruel e humilhante, a terrível solidão de fi car observando enquanto o mundo gira à nossa volta, para além de nós, e nos rejeita ostensivamente, combustível para o fogo que há de vir. Em breve, tudo isso arderá, e o mundo fi cará de pernas para o ar… mas, por enquanto, ainda não.

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Por outro lado, as meninas, chocadas por descobrirem entre elas um sonhador tímido e de coração mole, invadiram o território de minha avó para cuidarem de mim. Acabei, assim, por criar um pequeno harém, que amarrava meus sapatos, fechava meu casaco e me enchia de atenções. É uma coisa que todos os “fi lhinhos da mamãe” italianos sabem fazer muito bem. Nesses casos, ser rejeitado pelos outros meninos é uma marca de sensibilidade, que pode funcionar como um trunfo que nos leva a usufruir dos privilégios dos jovens geeks. Claro que, alguns anos depois, quando o sexo começou a dar sinais de sua força, acabei por perder esse estatuto especial e me tornei apenas um perdedor entre tantos outros, mas, pelo menos, era gentil e educado.

Os próprios padres e as freiras são seres de grande autoridade, cercados de um mistério sexual intransponível. Eram meus vizinhos de carne e osso e a ponte para a outra vida, e exerciam uma forte infl uência na nossa existência diária. Quer na dimensão do cotidiano, quer numa dimensão transcendental, eram os guardiães de um mundo obscuro e beatífi co que eu temia e desejava conhecer. Era um mundo onde tudo o que se tinha corria perigo, um mundo repleto das bênçãos desconhecidas da ressurreição e da eternidade, mas também do fogo do inferno, das torturas excitantes, com matizes sexuais, de concepções imaculadas e milagres. Um mundo onde os homens se transformavam em deuses e os deuses em demônios… e eu sabia que esse mundo era real. Tinha visto deuses se transformarem em demônios em minha casa. Tinha visto na minha frente o que, com certeza, era a face possessiva de Satanás, o pobre do meu pai destruindo a casa em acessos de raiva incendiados pelo álcool na calada da noite e todos nós morrendo de medo. Tinha sentido essa força das trevas que nos visitava sob a forma da ira de meu pai… ameaças físicas, caos emocional e o poder de não amar.

As próprias freiras da igreja de Santa Rosa também conseguiam ser bastante violentas nos anos 1950. Certa vez, quando estava na oitava série, me man-daram de castigo para a sala da primeira série por causa de uma brincadeira qualquer. Eu me sentei na pequena carteira e fi quei ali em banho-maria. Estava até achando graça daquela tarde de folga. Então, reparei no refl exo do sol nas abotoaduras de alguém dançando na parede. Segui a luz distraído à medida que ela subia da janela em direção ao teto. De repente, ouvi a freira dizer a um garotinho gorducho sentado na primeira fi la: “Mostre ao nosso convidado o que é que fazemos nesta turma com quem não está prestando atenção.” O jovem estudante atravessou a sala com uma expressão vazia no rosto e, sem pestanejar, me deu um tapa na cara com toda a força de sua pequena mão rechonchuda. Ainda ouvindo o eco daquele tapa na sala em silêncio, eu mal

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conseguia acreditar no que tinha acontecido. Meu rosto estava vermelho, mais por causa do choque e da humilhação do que do tapa em si.

Antes que eu tivesse terminado o ensino fundamental, já tinham me batido com a régua nos nós dos dedos ou apertado minha gravata até que eu sufocasse. Já tinham me dado cascudos e me colocado de castigo num armário ou na lata do lixo enquanto alguém dizia que aquele ali era o meu lugar. Tudo bastante normal para uma escola católica nos anos 1950. Ainda assim, me deixou um gosto ruim na boca, que acabou por me afastar defi nitivamente da minha religião.

Na escola, mesmo que conseguíssemos escapar incólumes às agressões, o catolicismo se apoderava de nós até os ossos. Eu era coroinha e tinha que acordar na sagrada escuridão das quatro da manhã, percorrer as ruas géli-das do inverno, vestir minha batina no silêncio da sacristia ao amanhecer e cumprir os rituais na casa de Deus, no altar de Santa Rosa, onde os “civis” não podiam entrar, onde fi cava sentindo o cheiro do incenso, enquanto ajudava nosso monsenhor razinza, de 80 anos, diante de um público cativo de parentes, freiras e pecadores madrugadores. Mas demonstrava uma tal inaptidão para decorar em que lugar deveria fi car e para estudar minhas frases em latim que inspirei o nosso monsenhor a me agarrar pela batina, numa missa às seis da manhã, e me empurrar com força para o altar, para consternação e espanto geral. Nessa tarde, no recreio, a irmã Charles Marie, minha professora da quinta série, que tinha assistido à agressão, me deu uma pequena medalha de um santo. Foi um gesto que nunca esqueci. Durante os anos em que estudei na escola da igreja de Santa Rosa, senti a tensão física e emocional do catolicismo, num nível mais do que sufi ciente. No dia em que concluí a oitava série, me afastei de tudo aquilo, não aguentava mais, e disse a mim mesmo: “Nunca mais.” Estava livre, livre, fi nalmente livre… E acre-ditei nisso… Durante algum tempo. No entanto, à medida que os anos iam passando, havia certas coisas na forma como pensava, agia e reagia que me levaram a perceber, contrariado mas, ao mesmo tempo, me divertindo, que, quando se é católico, se é católico para toda a vida. E, por isso, deixei de me enganar. Não participo ativamente na minha religião, mas sei que em algum lugar… bem lá no fundo… ainda faço parte do time.

Foi nesse mundo que descobri os primeiros acordes da minha música. No catolicismo, havia uma poesia, um perigo e uma escuridão que refl etiam minha imaginação e o meu eu interior. Descobri uma terra de beleza enorme e agreste, de histórias fantásticas, de castigos inimagináveis e recompensas infi nitas. Era um lugar glorioso e patético, para o qual eu tinha sido forjado ou onde me encaixara naturalmente. Me acompanha ao longo da vida como um

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sonho que tenho acordado. E, por isso, ainda durante a juventude, tentei que fi zesse sentido para mim. Tentei corresponder a seus desafi os pelas mesmas razões pelas quais existem almas perdidas e um reino de amor a ser conquis-tado. Tentei trazer tudo o que tinha absorvido para a vida difícil de minha família, de meus amigos e de meus vizinhos. Transformei isso em algo com que conseguia lidar, que conseguia compreender, algo em que até tinha fé. Por estranho que pareça, tenho uma relação “pessoal” com Jesus. Ele continua a ser um dos meus pais, apesar de, exatamente como acontece com meu próprio pai, eu já não acreditar no seu poder divino. Acredito profundamente em seu amor, em sua capacidade de salvar… mas não de condenar... chega disso.

Para mim, comemos todos a maçã. Adão, Eva, o rebelde Jesus, em toda a sua glória, e Satanás fazem todos parte do plano de Deus para fazer de nós homens e mulheres, para nos dar os preciosos dons terrenos, da sujeira, do suor, do sangue, do sexo, do pecado, da bondade, da liberdade, do cativeiro, do amor, do medo, da vida e da morte… o dom de nossa humanidade e de um mundo só nosso.

Os sinos da igreja tocam. O meu clã sai de suas casas e sobe apressada-mente a rua. Alguém vai se casar, ser enterrado ou nascer. Ficamos na frente da igreja, à espera, minha irmã e eu apanhando fl ores ou o arroz do chão que vamos guardar em sacos de papel para atirar num outro dia em pessoas que não conhecemos. Minha mãe está entusiasmada, com o rosto iluminado. A música do órgão, as portas de madeira da igreja se abrindo, os noivos recém--casados. Ouço minha mãe suspirando: “Que vestido lindo...” A noiva joga o buquê. O futuro está traçado. A noiva e seu herói são levados numa enorme limusine preta, que vai deixá-los na porta de sua nova vida. Na esquina está um outro carro que observa a cena, à espera do dia em que, em meio a lágrimas, alguém será transportado na curta viagem entre a Th rockmorton Street e o cemitério de Santa Rosa, na saída da cidade, onde, nos domingos de primavera, enquanto outras pessoas visitam ossos, caixas e montes de terra, minha irmã e eu corremos felizes, brincando por entre as lápides. De volta à igreja, o casamento já acabou e dou a mão a minha irmã. Com nove ou dez anos, já assistimos àquilo muitas vezes. Arroz ou fl ores que voam de um lado para o outro, o céu ou o inferno, aqui na esquina da Randolph com a McLean, ninguém escapa.

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