badiou. o comunismo é a ideia da emancipação e toda humanidade

10
Publicado em Esquerda (http://www.esquerda.net ) Início > Alain Badiou: "O comunismo é a ideia da emancipação de toda humanidade" Alain Badiou: "O comunismo é a ideia da emancipação de toda humanidade" 11 de Fevereiro, 2012 - 02:28h O filósofo francês Alain Badiou é um homem que não teme riscos: nunca renunciou a defender um conceito que muitos acreditam ter sido queimado pela história: o comunismo. Nesta entrevista à Carta Maior, Badiou define o processo político atual como uma ?guerra das democracias contra os pobres? e diz que "o amor está ameaçado pela sociedade contemporânea". Alain Badiou não tem fronteiras. Este filósofo original é o pensador francês mais conhecido fora de seu país e autor de uma obra extensa e sem concessões. Filosofia, matemática, política, literatura e até o amor circulam em seu catálogo de produções e reflexões. Sua obra, de caráter multidisciplinar, traz uma crítica férrea ao que Alain Badiou chama de ?materialismo democrático?, ou seja, um sistema humano onde tudo tem um valor mercantil. Este filósofo insubmisso é também um homem de riscos: nunca renunciou a defender um conceito que muitos acreditam ter sido queimado pela história: o comunismo. Em sua pena, Badiou fala mais da ?ideia comunista? ou da ?hipótese comunista? do que do sistema comunista em si. Segundo o filósofo francês, tudo o que estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser humano e da sociedade, merece ser resgatado. Defensor incondicional de Marx e da ideia de uma internacionalização positiva da revolta, o horizonte de sua filosofia é polifónico: os seus componentes não são a exposição de um sistema fechado, mas sim um sistema metafísico exigente que inclui as teorias matemáticas modernas ? Gödel ? e quatro dimensões da existência: o amor, a arte, a política e a ciência. Pensador crítico da modernidade numérica, Badiou definiu os processos políticos atuais como uma ?guerra das democracias contra os pobres?. O filósofo francês é um teórico dos processos de ruptura e não um mero panfletário. Ele convoca com método a repensar o mundo, a redefinir o papel do Estado, traça os limites da ?perfeição democrática?, reinterpreta a ideia de República, reatualiza as formas possíveis e não aceites de oposição e coloca no centro da evolução social a relegitimação das lutas sociais. Alain Badiou propõe um princípio de ação sem o qual, sugere, nenhuma vida tem sentido: a ideia. Sem ela toda existência é vazia. Com mais de 70 anos, Badiou introduziu em sua reflexão o tema do amor em um livro brilhante e comovente, no qual o autor de ?O ser e o acontecimento? define o amor como uma categoria da verdade e o sentimento amoroso como o pacto mais elevado que os indivíduos podem firmar para viver. A sua lucidez analítica o conduz inclusive a dizer que o amor, porque grátis e total, está ameaçado pelo mundo

Upload: alice-peres

Post on 05-Nov-2015

214 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

crítica da sociabilidade contemporânea

TRANSCRIPT

  • Publicado em Esquerda (http://www.esquerda.net)Incio > Alain Badiou: "O comunismo a ideia da emancipao de toda humanidade"

    Alain Badiou: "O comunismo a ideia da emancipao de toda humanidade"11 de Fevereiro, 2012 - 02:28hO filsofo francs Alain Badiou um homem que no teme riscos: nunca renunciou a defender um conceito que muitos acreditam ter sido queimado pela histria: o comunismo. Nesta entrevista Carta Maior, Badiou define o processo poltico atual como uma ?guerra das democracias contra os pobres? e diz que "o amor est ameaado pela sociedade contempornea".

    Alain Badiou no tem fronteiras. Este filsofo original o pensador francs mais conhecido fora de seu pas e autor de uma obra extensa e sem concesses. Filosofia, matemtica, poltica, literatura e at o amor circulam em seu catlogo de produes e reflexes. Sua obra, de carter multidisciplinar, traz uma crtica frrea ao que Alain Badiou chama de ?materialismo democrtico?, ou seja, um sistema humano onde tudo tem um valor mercantil.Este filsofo insubmisso tambm um homem de riscos: nunca renunciou a defender um conceito que muitos acreditam ter sido queimado pela histria: o comunismo. Em sua pena, Badiou fala mais da ?ideia comunista? ou da ?hiptese comunista? do que do sistema comunista em si. Segundo o filsofo francs, tudo o que estava na ideia comunista, sua viso igualitria do ser humano e da sociedade, merece ser resgatado.

    Defensor incondicional de Marx e da ideia de uma internacionalizao positiva da revolta, o horizonte de sua filosofia polifnico: os seus componentes no so a exposio de um sistema fechado, mas sim um sistema metafsico exigente que inclui as teorias matemticas modernas ? Gdel ? e quatro dimenses da existncia: o amor, a arte, a poltica e a cincia. Pensador crtico da modernidade numrica, Badiou definiu os processos polticos atuais como uma ?guerra das democracias contra os pobres?.

    O filsofo francs um terico dos processos de ruptura e no um mero panfletrio. Ele convoca com mtodo a repensar o mundo, a redefinir o papel do Estado, traa os limites da ?perfeio democrtica?, reinterpreta a ideia de Repblica, reatualiza as formas possveis e no aceites de oposio e coloca no centro da evoluo social a relegitimao das lutas sociais.

    Alain Badiou prope um princpio de ao sem o qual, sugere, nenhuma vida tem sentido: a ideia. Sem ela toda existncia vazia. Com mais de 70 anos, Badiou introduziu em sua reflexo o tema do amor em um livro brilhante e comovente, no qual o autor de ?O ser e o acontecimento? define o amor como uma categoria da verdade e o sentimento amoroso como o pacto mais elevado que os indivduos podem firmar para viver. A sua lucidez analtica o conduz inclusive a dizer que o amor, porque grtis e total, est ameaado pelo mundo

  • contemporneo.

    Revolues rabes, movimento dos indignados, mobilizao crescente dos grupos que esto contra a globalizao, a luta ou a oposio contra as modalidades do sistema atual se multiplicaram e sofisticaram. Analisando o que ocorreu, o que voc diria hoje a todos esses rebeldes do mundo para que sua ao conduza a uma autntica construo?

    Eu diria a eles que, para mim, mais importante que a consigna da anti-globalizao, a qual parece sugerir que, por meio de vrias medidas, pode-se re-humanizar a situao, incluindo a re-humanizao do capitalismo, a globalizao da vontade popular. Globalizao quer dizer vigor internacional. Mas essa globalizao internacional necessita de uma ideia positiva para uni-la e no s a ideia crtica ou a combinao de desacordos e protestos. Trata-se de um ponto muito importante. Passar da revolta ideia passar da negao afirmao. Somente no plano afirmativo poderemos nos unir de forma duradoura.

    Um dos princpios de sua filosofia consiste em dizer que uma vida que no est regida pelo signo da ideia no uma vida verdadeira. Agora, como defender hoje essa ideia sob a ameaa do hiper-consumo, das falsidades e injustias da democracia parlamentar e num mundo onde a nossa relao com o outro passa pela relao com o objeto e no com as ideias ou com os indivduos? No mundo contemporneo, a ideia o produto e no a relao humana.

    A verdadeira vida uma vida que aceita estar sob o signo da ideia. Dito de outro modo, uma vida que aceita ser outra coisa do que uma vida animal. Alguns diro que h valores transcendentes, religiosos, e que preciso submeter o animal; outros diro, ao contrrio, que devemos nos libertar desses valores transcendentes, que Deus est morto, que viva os apetites selvagens. Mas, entre ambas, h uma soluo intermediria, dialtica, que consiste em dizer que, na vida, atravs de encontros e metamorfoses, pode haver um trajeto que nos liga universalidade. Isso o que eu chamo ?uma vida verdadeira?, ou seja, uma vida que encontrou ao menos algumas verdades.

    Chamo "ideia" a esse intermedirio entre as verdades universais, digamos eternas para provocar um pouco os contemporneos, e o indivduo. Que ento uma vida sob o signo da ideia num mundo como este? Faz falta uma distncia com a circulao geral. Mas essa distncia no pode ser criada s com a vontade, faz falta algo que nos ocorra, um acontecimento que nos leve a tomar posio frente ao que se passou. Pode ser um amor, um levantamento poltico, uma decepo, enfim, muitas coisas. A se pe em jogo a vontade para criar um mundo novo que no estar baseado na ordem do mundo tal como , com a sua lei de circulao mercantil, mas sim num elemento novo da minha experincia.

    O mundo moderno caracteriza-se pela soberania das opinies. E a opinio algo contrrio ideia. A opinio no pretende ser universal, minha opinio e vale tanto quanto a opinio de qualquer outra pessoa. A opinio relaciona-se com a distribuio de objetos e a satisfao pessoal. H um mercado das opinies assim como h um mercado das aes financeiras. H momentos em que uma opinio vale mais do que outra; mais tarde essa opinio quebra como um pas. Estamos no regime geral do comrcio da comunicao no qual a ideia no existe. Inclusive suspeita-se da ideia e dir-se- que ela opressiva, totalitria, que se trata de uma alienao. E por que isso ocorre? Simplesmente porque a ideia grtis. Ao contrrio da opinio, a ideia no entra em nenhum mercado. Se defendemos nossa convico, o fazemos

  • com a ideia de que universal. Essa ideia , ento, uma proposta compartilhada, no se pode coloc-la venda no mercado. Mas como tudo o que grtis, a ideia est sob suspeita.

    Pergunta-se: qual o valor do que grtis? Justamente, o valor do grtis que no tem valor no sentido das trocas. O seu valor intrnseco. E como no se pode distinguir a ideia do preo do objeto a nica existncia da ideia est em um tipo de fidelidade existencial e vital para a ideia. A melhor metfora para isso encontrada no amor. Se queremos profundamente a algum, esse amor no tem preo. preciso aceitar os sofrimentos, as dificuldades, o facto de que sempre h uma tenso entre o que desejamos imediatamente e a resposta do outro. preciso atravessar tudo isso.Quando estamos enamorados, trata-se de uma ideia e isso o que garante a continuidade desse amor. Para se opor ao mundo contemporneo pode-se atuar na poltica, mas estar cativado completamente por uma obra de arte ou estar profundamente enamorado como uma rebelio secreta e pessoal contra o mundo contemporneo. Esse o principal problema da vida contempornea. Estabeleceu-se um regime de existncia no qual tudo deve ser transformado em produto, em mercadoria, inclusive os textos, as ideias, os pensamentos. Marx havia antecipado isso muito bem: tudo pode ser medido segundo seu valor monetrio.

    Voc um dos poucos filsofos que defende o que voc mesmo chama ?a ideia comunista?. Como possvel defender a ideia comunista quando seu contedo histrico foi desastroso.

    Penso que o contedo histrico das ideias sempre pode ser declarado desastroso. Os democratas nos falam da democracia, mas se olhamos de perto a histria das democracias, ela est cheia de desastres. Para tomar o exemplo mais elementar, se tomamos a Primeira Guerra Mundial, ela foi lanada por democratas, democratas alemes, ingleses e franceses. Foi um massacre inimaginvel, o qual j se demonstrou esteve ligado a apetites financeiros nas colnias africanas, apetites que no diziam respeito queles que seriam massacrados mais tarde. Houve milhes de mortos e de sacrificados em condies espantosas e, aceite-se ou no, isso parte da histria das democracias. Se interrogamos o conjunto das experincias histricas veremos que todo o mundo tem sangue at as orelhas.

    No que se refere palavra ?comunista? em si, da mesma maneira que ocorre com a palavra ?democracia?, sempre se pode argumentar que ambas tem sangue at as orelhas. Mas, por acaso, preciso sempre inventar outra palavra? Tomemos, por exemplo, o cristianismo. O cristianismo So Francisco de Assis, a santidade verdadeira, o advento da ideia de uma verdadeira generosidade para com os pobres, a caridade, etc.,etc. Mas, do outro lado, tambm a inquisio, o terror, a tortura e o suplcio. Por acaso vamos dizer que um crime algum se chamar de cristo? Ningum diz isso. Eu defendo uma espcie de absolvio dos vocbulos. Eles tm o sentido dado pela sequncia histrica da qual falamos.

    De fato, o comunismo conheceu duas sequncias histrias. A sequncia histrica do sculo XIX, quando a palavra foi inventada e propagada para designar uma esperana histrica humana fundamental, a esperana da igualdade, da emancipao das classes oprimidas, de uma organizao social igualitria e coletiva. Depois h outra sequncia muito diferente onde se experimentou o comunismo, ou seja, se construiu uma forma de poder particular que buscou coletivizar a indstria e essas coisas, mas que, no final, se tornou uma forma de Estado desptico.

    Eu proponho que no se sacrifique a palavra ?comunismo? por causa desta segunda

  • sequncia, mas sim que ela seja resgatada com base na primeira sequncia, possibilitando assim a abertura de uma terceira sequncia.

    Nesta terceira sequncia, a palavra ?comunismo? significaria o que sempre significou: a ideia de uma organizao social totalmente distinta da que conhecemos e que j sabemos que est dominada por uma oligarquia financeira e econmica absolutamente feroz e indiferente aos interesses gerais da humanidade. Eu proponho ento voltar ao comunismo sob a forma da ideia comunista: a ideia comunista a ideia da emancipao de toda a humanidade, a ideia do internacionalismo, de uma organizao econmica mobilizando diretamente os produtores e no as potncias exteriores; a ideia da igualdade entre os distintos componentes da humanidade, do fim do racismo e da segregao e tambm a ideia do fim das fronteiras.

    No esqueamos que as fronteiras so uma grande caracterstica do mundo contemporneo. O comunismo tudo isso. Se algum inventar uma palavra formidvel para designar tudo isso, que no seja a palavra comunismo, eu aceito. Mas a histria da poltica no a histria das palavras, mas sim a histria dos novos significados que podem ter as palavras. Em geral se ope a palavra ?democracia? palavra ?comunismo?. Eu digo que uma palavra no mais inocente do que a outra. No lutemos pela inocncia das palavras. Discutamos sobre o que significam e o que significa aquilo que eu digo.

    Agora chegamos a Marx, ou melhor dizendo, aos dois Marx: o Marx marxista e o Marx de antes do marxismo. Qual dos dois voc reivindica?

    Marx e marxismo tm significados muito distintos. Marx pode significar a tentativa de uma anlise cientfica da histria humana com base nos conceitos fundamentais de classe e de luta de classe, e tambm a ideia de que a base das diferentes formas que a organizao da humanidade adquiriu no curso da histria a organizao da economia. Nesta parte da obra de Marx h coisas muito interessantes como, por exemplo, a crtica da economia poltica. Mas tambm h outro Marx que um Marx filsofo, que vem depois de Engels e que tenta mostrar que a lei das coisas deve ser buscada nas contradies principais que podem ser percebidas dentro das coisas. o pensamento dialtico, o materialismo dialtico. No concreto, h uma base material de todo pensamento e este se desenvolve atravs de sistemas de contradio, de negao. Este o segundo Marx. Mas tambm h um terceiro Marx que o militante poltico. um Marx que, em nome da ideia comunista, indica o que fazer: o Marx fundador da Primeira Internacional, o Marx que escreve textos admirveis sobre a Comuna de Paris ou sobre a luta de classes na Frana.

    H pelo menos trs Marx e o que mais me interessa, reconhecendo o mrito imenso de todos eles, o Marx que tenta ligar a ideia comunista em sua pureza ideolgica e filosfica s circunstncias concretas. o Marx que se pergunta pelo caminho para organizar as pessoas politicamente na direo da ideia comunista. H ideias fundamentais que foram experimentadas e que ainda permanecem e, em cujo centro, encontramos a convico segundo a qual nada ocorrer enquanto uma frao significativa dos intelectuais no aceite estar organicamente ligada s grandes massas populares. Esse ponto est totalmente ausente hoje em vrias regies do mundo. Em maio de 68 e nos anos 70, este ponto foi abandonado. Hoje pagamos o preo desse abandono que significou a vitria completa e provisria do capitalismo mais brutal.

    A vida concreta de Marx e Engels consistiu em participar nas manifestaes na Alemanha e em tentar criar uma Internacional. E o que era a Internacional? A aliana dos intelectuais com

  • os operrios. sempre por a que se comea. Eu chamo ento a que comecemos de novo: por um lado com a ideia comunista e, por outro, com um processo de organizao sob esta ideia que, evidentemente, levar em conta o conjunto do balano histrico, mas que, em certo sentido, ter que comear de novo.

    Cado, derrotado no abismo ou simplesmente ferido? Na sua avaliao, em que fase se encontra o capitalismo: em seu ocaso, como acreditam alguns, ou somente vivendo um recesso devido a suas enormes contradies internas?

    O capitalismo um sistema de roubo planetrio exacerbado. Pode-se dizer que o capitalismo uma ordem democrtica e pacfica, mas um regime de depredadores, um regime de banditismo universal. E digo banditismo de maneira objetiva: chamo bandido a qualquer um que considere que a nica lei de sua atividade seu prprio proveito. Mas um sistema como este que, por um lado, tem a capacidade de se estender e, por outro, de deslocar o seu centro de gravidade um sistema que est longe de estar moribundo.

    No o caso de acreditar que, pelo facto de estarmos em uma crise sistmica, nos encontramos beira do colapso do capitalismo mundializado. Acreditar nisso seria ver as coisas atravs da pequena janela da Europa. Creio que h dois fenmenos que esto entrelaados. O primeiro a derrocada da segunda etapa da experincia comunista, a falncia dos Estados socialistas. Essa falncia abriu uma enorme brecha para o outro termo da contradio planetria que o capitalismo mundializado. Mas tambm abriu novos espaos de tenses materiais. O desenvolvimento capitalista de pases do porte da China e da ndia, assim como a recapitalizao da ex-Unio Sovitica tem o mesmo papel que o colonialismo no sculo XIX. Abriu espaos gigantes de manobra, de clientela de novos mercados.

    Estamos a viver agora esse fenmeno: a mundializao do capitalismo que se fez potente e se multiplicou pelo enfraquecimento de seu adversrio histrico do perodo precedente. Esse fenmeno faz com que, pela primeira vez na histria da humanidade, se possa falar realmente de um mercado mundial. Esse um primeiro fenmeno. O segundo o deslocamento do centro de gravidade. Estou convencido de que as antigas figuras imperiais, a velha Europa, por exemplo, a qual apesar de sua arrogncia tem uma quantidade considervel de crimes que ainda aguardam perdo, e os Estados Unidos, apesar do facto de ainda ocupar um lugar muito importante, so na verdade entidades capitalistas progressivamente decadentes e at um pouco crepusculares. Na sia, na Amrica Latina, com a dinmica brasileira, e inclusive em algumas regies do Mdio Oriente, vemos aparecer novas potncias. O sistema da expanso capitalista chegou a uma escala mundial, mas o sistema das contradies internas do capitalismo modifica sua geopoltica. As crises sistmicas do capitalismo ? hoje estamos numa grave crise sistmica ? no tm o mesmo impacto segundo a regio. Temos assim um sistema expansivo com dificuldades internas.

    Mas esses novos polos se desenvolvem segundo o mesmo modelo.

    Sim, e no creio que esses novos polos introduzam uma diferenciao qualitativa. um deslocamento interno ao sistema que d a ele margem de manobra.

  • H duas verses de um de seus livros mais importantes: trata-se do Manifesto para a Filosofia. O primeiro Manifesto foi publicado h vinte anos, o segundo h dois. Se levamos em conta as revolues rabes e as crises do sistema financeiro internacional, o que mudou fundamentalmente no mundo e no ser humano entre os dois manifestos?

    O que mudou mais profundamente a diviso subjetiva. As escolhas fundamentais s quais estiveram confrontados os indivduos durante o primeiro perodo estavam ainda dominadas pela ideia da alternativa entre orientao revolucionria e democracia e economia de mercado. Dito de outro modo, estvamos na constituio do debate entre totalitarismo e democracia. Isso exige dizer quer todo o mundo estava sob o influxo do balano da experincia histrica do sculo XX. O primeiro Manifesto foi publicado em 1989, quase ao final do sculo XX. Em escala mundial, esta discusso, que adquiriu formas distintas segundo os lugares, se focalizou em qual poderia ser o balano deste sculo XX. Por acaso, temos que condenar definitivamente as experincias revolucionrias? preciso abandon-las porque foram despticas, violentas? Neste sentido, a pergunta era: devemos ou no unir-nos corrente democrtica e entrar na aceitao do capitalismo como um mal menor?

    A eficcia do sistema no consistiu em dizer que o capitalismo era magnfico, mas sim que era o mal menor. Na verdade, tirando um punhado de pessoas ningum pensa que o capitalismo magnfico. Mas o que se disse nesse perodo foi que a alternativa era desastrosa. H 20 anos estvamos neste contexto, ou seja, a reativao da filosofia inspirada pela moral de Kant. Ou seja, no o caso de ter grandes ideias de transformao poltica voluntaristas porque isso conduz ao terror e ao crime, mas sim velar por uma democracia pacificada dentro da qual os direitos humanos estaro protegidos. Hoje esta discusso est terminada e est terminada porque toda a gente v que o preo pago por essa democracia pacificada muito elevado. Toda a gente toma conscincia que se trata de um mundo violento, com outras violncias, que a guerra segue rondando todo o tempo, que as catstrofes ecolgicas e econmicas esto na ordem do dia e que, alm disso, ningum sabe para onde vamos.

    Podemos imaginar que esta ferocidade da concorrncia e esta constante submisso economia de mercado durem ainda vrios sculos? Toda a gente sente que no, que se trata de um sistema patolgico. Foi revelado que este sistema, que nos foi apresentado como um sistema moderado, sem dvida em nada formidvel, mas melhor que todos os demais, um sistema patolgico e extremamente perigoso. Essa a novidade. No podemos mais ter confiana no futuro desta viso das coisas. Estamos numa fase de transio e incerteza. Introduziu-se a hiptese de uma espcie de humanismo renovado que poderamos chamar de humanismo de mercado, o mercado, mas humano. Creio que essa figura, que segue vigente graas aos polticos e aos meios de comunicao, est morta. como a Unio Sovitica: estava morta antes de morrer. Creio que, em condies diferentes e num universo de guerra, de catstrofes, de competio e de crise, esta ideia do capitalismo com rosto humano e da democracia moderada est morta. Agora ser preciso no mais escolher entre duas vises constitudas, mas sim inventar uma.

    Dessa ambivalncia provm talvez a sensao de que as jovens geraes esto perdidas, sem confiana em nada?

    Isso o que sinto na juventude de hoje. Sinto que a juventude est completamente imersa no mundo tal como , no tem ideia de outra alternativa, mas, ao mesmo tempo, est a perder

  • confiana neste mundo, est vendo que, na verdade, este mundo no tem futuro, carece de toda significao para o futuro. Creio que estamos num perodo onde as propostas de ideias novas esto na ordem do dia, mesmo que uma boa parte da opinio no saiba disso. E no sabe porque ainda no chegamos ao final deste esgotamento interno da promessa democrtica. o que eu chamo de perodo intervalo: sabemos que as velhas escolhas esto acabadas, mas no sabemos ainda muito bem quais so as novas escolhas.

    Vrios filsofos apontam o fato de que os valores capitalistas destruram a dimenso humana. Voc acredita, ao contrrio, que ainda persiste uma potncia altrusta no ser humano.

    Devemos olhar o que ocorreu nas manifestaes dos pases rabes. Nunca acreditei que essas manifestaes iam inventar um novo mundo de um dia para o outro, nem pensei que essas revoltas apresentavam solues novas para os problemas planetrios. Mas o que me assombrou foi a reapario da generosidade do movimento de massa, quer dizer, a possibilidade de agir, de sair, de protestar, de pronunciar-se independentemente do limite dos interesses imediatos e faz-lo junto a pessoas que, sabemos, no compartilham nossos interesses. A encontramos a generosidade da ao, a generosidade do movimento de massa, temos a prova de que esse movimento ainda capaz de reaparecer e reconstituir-se. Com todos os seus limites, tambm temos um exemplo semelhante com o movimento dos indignados.

    O que fica evidente em tudo isso que esto a em nome de uma srie de princpios, de ideias, de representaes. Esse processo, obviamente, ser longo. O movimento da primavera rabe parece-me mais interessante que o dos indignados porque tem objetivos precisos, ou seja, o desaparecimento de um regime autocrtico e o tema fundamental que o horror diante da corrupo. A luta contra a corrupo um problema capital do mundo contemporneo. Nos indignados vimos a nostalgia do velho Estado providncia. Mas volto a reiterar que o interessante em tudo isso a capacidade de fazer algo em nome de uma ideia, mesmo que essa ideia tenha acentos nostlgicos. O que me interessa saber se ainda temos a capacidade histrica de agir no regime da ideia e no simplesmente segundo o regime da concorrncia ou da conservao. Isso para mim fundamental. A reapario de uma subjetividade dissidente, seja quais forem suas formas e suas referncias, isso me parece muito importante.

    Voc publicou um livro sobre o amor, que de uma sabedoria comovedora. Para um filsofo comprometido com a ao poltica e cujo pensamento integra as matemticas, a apario do tema do amor pouco comum.

    O amor um tema essencial, uma experincia total. O amor est ameaado pela sociedade contempornea. O amor um gesto muito forte porque significa que preciso aceitar que a existncia de outra pessoa se converta em nossa preocupao. No amor, o fundamental est em que nos aproximamos do outro com a condio de aceit-lo na minha existncia de forma completa, inteira. Isso o que diferencia o amor do interesse sexual. Este se fixa sobre o que os psicanalistas chamaram de ?objetos parciais?, ou seja, eu extraio do outro alguns emblemas fetiches que me interessam e que suscitam minha excitao desejante. No nego a sexualidade, pelo contrrio. Ela um componente do amor. Mas o amor no isso. O amor quando estou em estado de amar, de estar satisfeito e de sofrer e de esperar tudo o que vem do outro: a maneira como viaja, sua ausncia, sua chegada, sua presena, o calor de seu corpo, minhas conversas com ele, os gostos compartilhados. Pouco a pouco, a totalidade do que o outro torna-se um componente de minha prpria existncia. Isso muito mais

  • radical que a vaga ideia de preocupar-me com o outro. o outro com a totalidade infinita que representa e com o qual me relaciono em um movimento subjetivo extraordinariamente profundo.

    Em que sentido o amor est ameaado pelos valores contemporneos?

    Est ameaado porque o amor gratuito e, desde o ponto de vista do materialismo democrtico, injustificado. Por que deveria me expor ao sofrimento da aceitao da totalidade do outro? O melhor seria extrair dele o que melhor corresponde aos meus interesses imediatos e aos meus gostos e descartar o resto. O amor est ameaado hoje porque distribudo em fatias. Observemos como se organizam as relaes nestes portais de internet onde as pessoas entram em contato: o outro j vem fatiado em fatias, um pouco como a vaca nos aougues. Seus gostos, seus interesses, a cor dos olhos, o corte dos cabelos, se grande ou pequeno, loiro ou moreno. Vamos ter uns 40 critrios e, ao final, vamos nos dizer: vou comprar este. exatamente o contrrio do amor. O amor justamente quando, em certo sentido, no tenho a menor ideia do que estou comprando.

    E frente a essa modalidade competitiva das relaes, voc proclama que o amor deve ser reinventado para nos defendermos, que o amor deve reafirmar seu valor de ruptura e de loucura.

    O amor deve reafirmar o facto de que est em ruptura com o conjunto das leis ordinrias do mundo contemporneo. O amor deve ser reinventado como valor universal, como relao em direo da alteridade, daquilo que no sou eu e onde a generosidade obrigatria. Se no aceito a generosidade, tampouco aceito o amor. H uma generosidade amorosa que inevitvel. Sou obrigado a ir na direo do outro para que a aceitao do outro na sua totalidade possa funcionar. Essa uma excelente escola para romper com o mundo tal como . Minha ideia sobre a reinveno do amor quer dizer o seguinte: uma vez que o amor se refere a essa parte da humanidade que no est entregue competio, selvajaria; uma vez que, na sua intimidade mais poderosa, o amor exige uma espcie de confiana absoluta no outro; uma vez que vamos aceitar que este outro esteja totalmente presente em nossa prpria vida, que nossa vida esteja ligada de maneira interna a esse outro, pois bem, j que tudo descrito acima possvel isso prova que no verdade que a competitividade, o dio, a violncia, a rivalidade e a separao sejam a lei do mundo.A poltica no est muito afastada de tudo isso. Para voc, h uma dimenso do amor na ao poltica?

    Sim, inclusive pode resultar perigoso. Se buscamos uma analogia poltica do amor eu diria que, assim como no amor onde a relao com uma pessoa tem que constituir sua totalidade existencial como um componente de minha prpria existncia, na poltica autntica preciso que haja uma representao inteira da humanidade. Na poltica verdadeira, que tambm um componente da vida verdadeira, h necessariamente essa preocupao, essa convico segundo a qual estou ali enquanto representante e agente de toda a humanidade. Do mesmo modo que ocorre no amor, onde minha preocupao, minha proposta e minha atividade esto ligadas existncia do outro em sua totalidade.

    O que pode fazer um casal jovem e enamorado neste mundo violento, competitivo, onde o projeto do casal j est ameaado pela prpria dinmica do consumo e da competio?

  • Creio que o projeto de um casal pode ser uma rama se no se dissolve, se no se metamorfoseia em um projeto que acabe se transformando, no fundo, na acumulao de interesses particulares. Na situao de crise e de desorientao atual o mais importante segurar as mos no leme da experincia pela qual estamos passando, seja no amor, na arte, na organizao coletiva, no combate poltico. Hoje, o mais importante a fidelidade: em um ponto, ainda que seja em apenas um, preciso no ceder. E para no ceder devemos ser fieis ao que ocorreu, ao acontecimento. No amor, preciso ser fiel ao encontro com o outro porque vamos criar um mundo a partir desse encontro. Claro, o mundo exerce uma presso contrria e nos diz: ?cuidado, defenda-se, no deixe que o outro abuse de ti?. Com isso est dizendo: ?voltem ao comrcio ordinrio?.

    Ento, como essa presso muito forte, o fato de manter o leme no rumo certo, de manter vivo um elemento de exceo, j extraordinrio. preciso lutar para conservar o excepcional que ocorre em nossas vidas. Depois veremos. Dessa forma salvaremos a ideia e saberemos o que exatamente a felicidade. No sou um asceta, no sou a favor do sacrifcio. Estou convencido de que se conseguimos organizar uma reunio com trabalhadores e colocamos em marcha uma dinmica, se conseguimos superar uma dificuldade no amor e nos reencontramos com a pessoa que amamos, se fazemos uma descoberta cientfica, ento comeamos a compreender o que a felicidade. A felicidade uma ideia fundamental. A construo amorosa a aceitao conjunta de um sistema de riscos e de invenes.

    Voc tambm introduz uma ideia peculiar e maravilhosa: devemos fazer tudo para preservar o que nos ocorre de excepcional.

    A est o sentido completo da vida verdadeira. Uma vida verdadeira configura-se quando aceitamos os presentes perigosos que a vida nos oferece. A existncia nos traz riscos, mas, na maioria das vezes, estamos mais espantados que felizes por esses presentes. Creio que aceitar isso que nos ocorre e que parece raro, estranho, imprevisvel, excepcional, quer seja o encontro com uma mulher ou o maio de 68, aceitar isso e suas consequncias, isso a vida, a verdadeira vida.

    Entrevista de Eduardo Febbro, em Paris. Traduo: Marco Aurlio Weissheimer. Publicado em Carta Maior [1]

    Sobre o/a autor(a):

    BibliotecaAgendaJornal EsquerdaBlogosferaComunidadeRevista VrusWikifugas

  • URL de origem: http://www.esquerda.net/artigo/478alain-badiou-o-comunismo-%C3%A9-ideia-da-emancipa%C3%A7%C3%A3o-de-toda-humanidade

    Ligaes:[1] http://www.cartamaior.com.br/