assim ouviu cândido aspásio

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Será que o sábio persa, que desceu a montanha para transmitir seus conhecimentos após dez anos de solidão, no clássico livro do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra, pode transformar a vida de um homem ao ponto de tirar-lhe a noção do que é real? Nunca antes o pensamento de Zaratustra entrou de maneira tão intensa na mente de um homem quanto na de Cândido Aspácio. Seria possível alguém perder a sanidade ao estudar os ensinamentos deste profeta? Em Assim ouviu Cândido Aspácio, esta surpreendente história, o protagonista – acompanhado de Severino, seu fiel servo e discípulo – acredita ter sido escolhido pelo próprio Zaratustra para dar seguimento aos seus princípios, em todos os cantos da terra. E, em meio a um cenário construído entre alucinações e realidade, Aspácio vai se deparar com as mais inusitadas situações para tentar realizar essa missão... ... Uma vez que, aqui, a loucura é apenas um mero detalhe.

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a s s i m o u v i u

c â n d i d oa s p á s i o

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i v a m a r p i n h e i r o

a s s i m o u v i u

c â n d i d oa s p á s i o

São Paulo. 2013

coleção novos talentos da literatura brasileira

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Copyright © 2013 by Ivamar Pinheiro

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

Coordenação editorial

diagramação

Capa

preparação

revisão

Nair FerrazDimitry UzielMonalisa MoratoEquipe Novo SéculoDenise Camargo

DaDos InternacIonaIs De catalogação na PublIcação (cIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índice para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura Brasileira 869.93

2013impresso no brasilprinted in brazil

direitos cedidos para esta edição à novo século editora ltda.

cea - Centro Empresarial Araguaia IIAlameda Araguaia, 2190 - 11º Andar

Bloco A - Conjunto 1111CEP 06455-000 - Alphaville - SP

Tel. (11) 3699-7107 - Fax (11) 3699-7323www.novoseculo.com.br

[email protected]

Pinheiro, Ivamar Assim ouviu Cândido Aspásio / Ivamar Pinheiro.-- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2013. -- (Coleção novos talentos da literatura brasileira)

1. Ficção brasileira I. Título. II. Série

13-09522 CDD-869.93

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A ZArAtustrA.

E A todos os Amigos E fAmiliArEs.

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“Se minhas loucuras tivessem explicações, não seriam loucuras.”

Friedrich Nietzsche

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OESCOLHIDO

– Dona Lurdes, meus sentimentos! – diz o homen-zarrão que surge à porta.

– Oh! Sr. Souza, ainda bem que chegou. Estava aguar-dando-o desde ontem! Meu filho, nem sei como expressar tamanha tristeza.

Com o tom de voz pausado, e nitidamente abalada, a senhora se emociona ao falar com o visitante. Eles se olham por alguns segundos e com um longo abraço parecem se confortar.

– Vamos, entre, vou lhe preparar um café! Ainda emocionada, lentamente ela o vai conduzindo

para dentro. – Nossa! A senhora não tem ideia do quanto eu fiquei

sentido por não ter comparecido ao sepultamento, mas é que só consegui passagem para hoje!

– Sr. Souza, foi uma tristeza só! Além de mim, tinha apenas o destrambelhado do Severino e o coveiro.

– Eu imagino o quanto foi sofrido, principalmente para a senhora! Sabe, Dona Lurdes, às vezes fico me perguntando como essa tragédia foi acontecer. – Em tom de surpresa e com os olhos cheios d’água, o homem prossegue. – Afinal, Aspásio ainda era um homem novo e parecia ter uma saúde de ferro!

– Sim, meu filho, ele era! Mas esse negócio de cabeça é assim, nunca se sabe quando vai começar!

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– Bom, é verdade. Meu Deus, como aconteceu ta-manho desvairamento? Isso não me entra na cabeça! Até hoje não consigo acreditar nesses enormes disparates que dizem que ele cometeu!

– Pois acredite! Só eu sei o que sofri com as maluquices do seu irmão e do doido do Severino, a quem ele chamava de discípulo.

– Por favor! A senhora poderia me contar como se deram tais insanidades, Dona Lurdes?

– Bem, meu filho, lembra que há algum tempo eu venho lhe relatando por telefone as atitudes estranhas do Sr. Cândido? Pois é, as coisas só foram piorando. Há meses ele vinha passando dias inteiros trancado no quarto, saindo apenas para comer. Achava esquisito mas, mesmo com esses mais de quarenta anos trabalhando aqui, nunca fui de ficar xeretando a vida de patrão, nem quando a senhora sua mãe era viva. Sim, porque mesmo ela me tratando como se eu fosse da família sempre soube o meu lugar. Enfim, as poucas vezes que lhe perguntei alguma coisa a respeito, ele dizia que estava estudan-do. Realmente, quando eu entrava em seu quarto para faxinar, havia livros jogados para tudo quanto é lado, principalmente do tal Frederico Nitchu, que foi o que tirou o juízo do pobre do seu irmão.

– É Friedrich Nietzsche, Dona Lurdes!– Pois é, esse mesmo! Como eu já havia lhe relatado

por telefone. – Sim, mas me conte as loucuras que o Aspásio andou

aprontando!– Então, meu filho! Tudo começou numa fria madru-

gada de sexta-feira, longe ainda do alvorecer. Naquela noite, eu dormia um sono profundo, quando, de súbito, fui despertada pelo imenso alvoroço no meio da casa. Depressa me levantei para ver o que se passava e deparei-me com a figura do Sr.

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Cândido completamente nu e segurando em sua mão direita uma enorme vela acesa. Ele me parecia transtornado! Apenas gritava: – Fui escolhido! Fui escolhido! Era uma cena muito constrangedora para mim, e eu não sabia o que fazer. Então comecei a lhe perguntar o que estava acontecendo. E também mandei que fosse se vestir. Ora, veja só, que falta de respeito. Mas ele parecia não me ouvir e continuava a pular e a gritar: – Fui escolhido! Fui escolhido! Aquilo para mim não fazia o menor sentido. Alguns minutos se passaram e ele começou a se acalmar. Dei-lhe uma toalha para que ele a amarrasse na cintura e tornei a lhe perguntar o que havia acontecido.

– Dona Lurdes, a partir de hoje sei qual é a minha missão na Terra! – disse-me ainda emocionado, mas bastante seguro.

– Ora, homem, do que estás falando?– Zaratustra, Dona Lurdes! Zaratustra me escolheu! –

exclama ele com a voz bastante centrada.– Que sandice é essa, Sr. Cândido! Quem é esse tal de

Zaratruta?– Oh! Pobre criatura que nasceste para obedecer. Za-

ratustra está além do seu conhecimento. Às almas superficiais Zaratustra é a incompreensão. Ainda há pouco estive com ele, Dona Lurdes! Ele contou-me que devo dar continuidade à anunciação do Super-homem e mostrar que a Lei do Eterno Retorno é uma realidade. Portanto, tão logo rompa o dia, eu devo partir! E saiba a senhora que, a partir de hoje, este não é mais o meu lar! Meu lar agora é o mundo, pois meu desejo não é mais meu, e sim do meu mestre!

– Pois bem! Ao raiar do dia, ele partiu. Posteriormente eu fiquei sabendo que havia convencido o Severino, o sapa-teiro aqui da região, a acompanhá-lo nessa empreitada. Após algumas semanas, tive as primeiras notícias a seu respeito. Era inacreditável o que ouvia dizer que ambos andavam fazendo. Foi então que percebi que seu irmão estava realmente pinel, e, o pior, encontrara outro tão doido quanto ele.

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– Mas deixe-me pegar um café para o senhor! Pois a história está apenas começando. Severino me contou muita coisa! No entanto, a fama e as aventuras do seu irmão são conhecidas em toda a região. São coisas de cair o queixo, meu filho. Vamos, acomode-se na cadeira, não quero que o senhor tenha um troço...

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A SUBIDA

O sol o castigava há horas, e as gotas de suor que es-corriam pelo seu rosto começavam a incomodá-lo. Cândido mantinha-se sempre à frente, porém suas passadas tornavam-se mais inseguras devido ao cansaço. Não era fácil manter o ritmo; a subida em determinados pontos era íngreme, e os pés protegi-dos apenas por velhas sandálias de couro latejavam a cada passo. Mas seu pensamento se mantinha firme e isso lhe dava força para continuar. Ele acreditava que era necessário chegar ao topo, do que achava ser uma montanha, antes do anoitecer e para que isso acontecesse não podia parar neste momento.

Tudo estava dando certo e, dessa forma, não tardaria a chegar. Todavia, nem tudo estava tão bem assim, se ele ainda estava com toda aquela disposição, não se podia dizer o mesmo do pobre Severino, que vinha aos trancos e barrancos cerca de quinze metros atrás. O infeliz já havia esfolado um dos joelhos no último escorregão que tomara e quase perdido uma das unhas do pé, em uma pisada em falso. Daí se tira os seus maldizeres, que não foram nem são poucos, mas não são altos, não quer que seu mestre os escute, com exceção de quando esfolou o joelho, pois dera um grito amaldiçoando a tudo e a todos, sorte sua que Cândido se encontrava bem mais à frente e suas palavras não chegaram com muita clareza aos seus ouvidos. Nesse momento, Cândido deu uma parada, secou o suor do rosto com o manto que o protegia do sol, levantou a

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cabeça e percebeu uma parte plana logo à frente, pensou que talvez ali fosse um bom lugar para passarem a noite, afinal, o sol começava a deitar-se ao horizonte e logo anoiteceria. Sem dizer nada, ele segurou o seu cajado com a mão esquerda, apoiou firme o pé direito sobre uma pedra, que parecia estar bem segura em meio às outras, e deu seguimento à sua marcha rumo à parte plana do morro.

Porém, para sua infelicidade, ou melhor, para a infeli-cidade de Severino, que vinha logo atrás, a pedra não estava tão firme assim e, após sua pisada, ela se solta e rola. A pedra, que tinha o tamanho de uma batata, adquire uma incrível ve-locidade e acerta em cheio a testa do pobre servo, que tanto lutava para alcançar o mestre. Com o impacto, ele se dese-quilibra e cai de bunda no chão, estatelando-se para trás. Suas pernas, como se fossem feitas de borracha, rodopiam sobre a cabeça, forçando-o a fazer um contorcionismo de dar inveja a qualquer artista de circo. Tal qual uma enorme bola de neve, o miserável declina morro abaixo, numa espantosa sequência de cambalhotas. Ele desce, rolando a ladeira, disparando grunhi-dos e abrindo caminho entre as pequenas árvores e pedregulhos que encontra pela frente. Parecia infindável a queda do infeliz. Mas, de repente, sua cabeça, já atordoada pela inesperada pe-drada que tomara, se choca contra um tronco de árvore, uns dez metros abaixo. A pancada é tão forte que faz com que o seu corpo inteiro trema incontrolavelmente.

Após um rápido passamento estendido ao chão, algu-mas lamúrias e com as vistas ainda turvas, ele começa a se re-cuperar e lentamente vai se levantando e começa a catar seus pertences espalhados trilha acima. É nesse momento também que reconhece o quanto é um homem de sorte e dá graças por isso, pois, se não fosse a árvore que quase lhe quebra o pescoço, ele continuaria rolando e sabe-se lá em que estado estaria naquele momento, sem contar que teria de subir tudo de novo. Sim, realmente se considerava um homem sortudo.

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– Severino, que fazes aí embaixo, homem? – grita Cân-dido.

– Eita, mestre, tô aqui procurando o saco de farinha que me caiu das mãos...

– Ara... pois sobe logo e me trazes essa água. Estou sedento!

– Tá mestre, já tô indo! Das coisas que caíram, só faltava Severino recolher a

rapadura que havia ficado um pouco mais acima, e só mais tarde se deu conta de onde ela estava. Ele pega o velho e em-poeirado chapéu de palha e o atola na cabeça; nesse momento, sente o latejar dos galos que afloraram nos locais das pancadas. Mas isso não o faria fazer corpo mole. Estava acostumado com a dureza; aquelas pancadinhas não eram nada! Tomaria a trilha novamente e encontraria o seu mestre, que deveria estar tam-bém com fome.

Lá em cima, na parte plana, observando o pôr do sol sentado em uma pedra, Cândido espera a chegada do seu ser-vo. Erguendo a cabeça ao céu, vê uma figura planando, muito alta, lentamente, como se estivesse voando em círculo e pre-parando-se para pousar. Observa-a com admiração e dá um leve sorriso de satisfação. Seus pensamentos estão a mil, anseia pela hora de chegar ao topo para, enfim, pôr em prática seus planos. Subitamente abaixa a cabeça, como se acordasse de um sonho. Ele é surpreendido pelo barulho do cantil, arremessado por Severino, se chocando contra as pedras. O barulho lhe causa um pequeno susto, mas apenas olha para o seu servo que acabara de chegar e cumprimenta-o com simpatia.

Pegando o cantil que caiu próximo aos seus pés, fecha um pouco a mão direita, deixando-a em formato de concha. Enche-a com água e lava o rosto, onde se formam algumas manchas escuras, devido à grande quantidade de sujeira e o pouco líquido utilizado que, ao invés de limpar a empoeirada

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cara do agora pensativo andante, apenas espalha a sujeira, deixan-do-o com o aspecto de quem não toma banho há meses. Não que lembre realmente qual foi seu último banho, é bem pos-sível que tenha sido na última chuva. Severino já havia, dias atrás, reclamado do cheiro de cachorro molhado perto dele. Na ocasião, não atribuiu a catinga ao mestre, mesmo desconfiando de que não pudesse vir de outro lugar. Agora, com esse pouco d’água, Cândido sente-se mais refrescado e menos ofegante. Então olha para Severino, que se encontra arriado ao seu lado, morto de cansado, escorado em um pequeno pedregulho, e diz:

– Severino, é melhor pegar alguma lenha para fazer-mos fogo, iremos pernoitar aqui e parece que vai esfriar.

– Sim, mestre, eu irei! Realmente aqui parece ser um bom lugar pra passar a noite!

– Mas vê se não demora, ainda tens que preparar al-guma coisa para comermos; parece que não vejo comida há um bom tempo! – diz Cândido.

– Claro mestre, serei rápido, também estou faminto! Aqui não deve ser difícil conseguir lenha.

Após responder ao seu mestre, um pensamento lhe intriga: não lembra qual foi a última vez que viu Cândido comer algo, hoje mesmo ele não tocou em comida, mesmo tendo sido lhe preparado o café da manhã e o almoço. Então, seria melhor aproveitar esse apetite dele, já que nem sempre isso acontece.

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