aspiração por reconhecimento

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481 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.37,n.3, p.481 - 496, set./dez. 2011. Aspiração por reconhecimento e educação do amor-próprio em Jean-Jacques Rousseau* Claudio Almir Dalbosco Universidade de Passo Fundo Para Hans-Georg Flickinger** Resumo O artigo procura mostrar a existência de uma filosofia social no Segundo discurso de Rousseau, tomando a aspiração humana por reconhecimento como seu núcleo constitutivo. A investigação so- bre a origem da desigualdade conduz o genebrino à interrogação acerca do próprio homem, descobrindo a liberdade e a perfectibili- dade como forças (faculdades) originárias de sua sociabilidade. Pela liberdade o homem chega à consciência de sua espiritualidade, ou seja, torna-se apto a ir além do mecanicismo causal imposto pela natureza, construindo o universo linguístico, simbólico e cultural. Pela perfectibilidade, o homem adquire a capacidade de tornar-se cada vez melhor e apto não só para lutar pela sua sobrevivência imediata, como também para aspirar ser reconhecido pelos demais. Em síntese, liberdade e perfectibilidade abrem-lhe as portas para a sociabilidade e permitem-lhe ingressar no universo cultural. Con- tudo, simultâneo ao processo de tornar-se um ser livre e capaz de se aperfeiçoar, o homem desenvolve a capacidade de sair fora de si mesmo, sentindo a necessidade da comparação permanente com os demais. Isso marca, do ponto de vista da constituição humana, a passagem do amor de si para o amor-próprio: enquanto o primeiro é representativo do estado natural e está baseado na piedade, o segundo caracteriza o homem civil e está marcado pela propensão do homem de querer ocupar uma posição superior em relação aos demais. Se tal propensão se tornar incontrolável, ela pode conduzir à destruição da sociabilidade. Daí a necessidade de sua regulação jurídica e política, acompanhada, previamente, por um processo de formação pedagógica e moral. Isso justifica então a necessidade de educação permanente do amor-próprio. Palavras-chave Reconhecimento – Educação – Amor-próprio – Educação natural. * Trabalho vinculado ao projeto de pesquisa “Iluminismo e Pedagogia: educação natural e formação humana no Émile de Rousseau”, financiado pelo CNPq na modalidade de Bolsa Produtividade em Pesquisa. ** Agradeço ao Hans-Georg Flickin- ger pelas inúmeras críticas e suges- tões. Além disso, devo ao privilégio de sua parceria intelectual crítica meu interesse por filosofia social e sua indispensabilidade à reflexão sobre problemas pedagógicos. Correspondência: Claudio Almir Dalbosco Rua Independência 1006/81 99010-04 – Passo Fundo (RS) E-mail: [email protected]

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ResumoO artigo procura mostrar a existência de uma filosofia social noSegundo discurso de Rousseau, tomando a aspiração humana porreconhecimento como seu núcleo constitutivo. A investigação sobrea origem da desigualdade conduz o genebrino à interrogaçãoacerca do próprio homem, descobrindo a liberdade e a perfectibilidadecomo forças (faculdades) originárias de sua sociabilidade. Pelaliberdade o homem chega à consciência de sua espiritualidade, ouseja, torna-se apto a ir além do mecanicismo causal imposto pelanatureza, construindo o universo linguístico, simbólico e cultural.Pela perfectibilidade, o homem adquire a capacidade de tornar-secada vez melhor e apto não só para lutar pela sua sobrevivênciaimediata, como também para aspirar ser reconhecido pelos demais.Em síntese, liberdade e perfectibilidade abrem-lhe as portas para asociabilidade e permitem-lhe ingressar no universo cultural. Contudo,simultâneo ao processo de tornar-se um ser livre e capaz dese aperfeiçoar, o homem desenvolve a capacidade de sair fora de simesmo, sentindo a necessidade da comparação permanente com osdemais. Isso marca, do ponto de vista da constituição humana, apassagem do amor de si para o amor-próprio: enquanto o primeiroé representativo do estado natural e está baseado na piedade, osegundo caracteriza o homem civil e está marcado pela propensãodo homem de querer ocupar uma posição superior em relação aosdemais. Se tal propensão se tornar incontrolável, ela pode conduzirà destruição da sociabilidade. Daí a necessidade de sua regulaçãojurídica e política, acompanhada, previamente, por um processo deformação pedagógica e moral. Isso justifica então a necessidade deeducação permanente do amor-próprio.

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481 Educao ePesquisa, So Paulo, v.37,n.3, p.481 - 496, set./dez. 2011.Aspirao por reconhecimento e educao do amor-prprio em Jean-Jacques Rousseau*Claudio Almir Dalbosco Universidade de Passo FundoPara Hans-Georg Flickinger**ResumoOartigoprocuramostraraexistnciadeumalosoasocialno SegundodiscursodeRousseau,tomandoaaspiraohumanapor reconhecimento como seu ncleo constitutivo. A investigao so-breaorigemdadesigualdadeconduzogenebrinointerrogao acerca do prprio homem, descobrindo a liberdade e a perfectibili-dade como foras (faculdades) originrias de sua sociabilidade. Pela liberdade o homem chega conscincia de sua espiritualidade, ou seja, torna-se apto a ir alm do mecanicismo causal imposto pela natureza, construindo o universo lingustico, simblico e cultural. Pela perfectibilidade, o homem adquire a capacidade de tornar-se cadavezmelhoreaptonosparalutarpelasuasobrevivncia imediata, como tambm para aspirar ser reconhecido pelos demais. Em sntese, liberdade e perfectibilidade abrem-lhe as portas para a sociabilidade e permitem-lhe ingressar no universo cultural. Con-tudo, simultneo ao processo de tornar-se um ser livre e capaz de se aperfeioar, o homem desenvolve a capacidade de sair fora de si mesmo, sentindo a necessidade da comparao permanente com os demais.Issomarca,dopontodevistadaconstituiohumana,a passagem do amor de si para o amor-prprio: enquanto o primeiro representativodoestadonaturaleestbaseadonapiedade,o segundo caracteriza o homem civil e est marcado pela propenso do homem de querer ocupar uma posio superior em relao aos demais. Se tal propenso se tornar incontrolvel, ela pode conduzir destruio da sociabilidade. Da a necessidade de sua regulao jurdica e poltica, acompanhada, previamente, por um processo de formao pedaggica e moral. Isso justica ento a necessidade de educao permanente do amor-prprio. Palavras-chaveReconhecimento Educao Amor-prprio Educao natural.*Trabalhovinculadoaoprojetode pesquisaIluminismoePedagogia: educao natural e formao humana nomiledeRousseau,nanciado peloCNPqnamodalidadedeBolsa Produtividade em Pesquisa.**AgradeoaoHans-GeorgFlickin-gerpelasinmerascrticasesuges-tes. Alm disso, devo ao privilgio de suaparceriaintelectualcrticameu interesseporlosoasocialesua indispensabilidadereexosobre problemas pedaggicos.Correspondncia:Claudio Almir Dalbosco Rua Independncia 1006/8199010-04 Passo Fundo (RS)E-mail: [email protected] 482 Educao ePesquisa, So Paulo, v. 37,n.3, p. 481 - 496, set./dez. 2011.Aspiration for recognition and the education of self-love in Jean-Jacques Rousseau*Claudio Almir DalboscoUniversity of Passo FundoTo Hans-Georg Flickinger**AbstractThearticleseekstodemonstratetheexistenceofasocialphilo-sophyinRousseausSeconddiscourse,whichtakesthehuman aspiration for recognition as its constitutive core. The investiga-tion on the origin of inequality leads the Genevan to his questio-nings about men himself, discovering freedom and perfectibility as originary strengths (faculties) of his sociability. Through freedom man arrives at the awareness of his spirituality, that is, becomes capable of going beyond the causal mechanicism imposed by na-ture,constructingthelinguistic,symbolicandculturaluniverse. Throughperfectibilitymanacquirestheabilitytobecomebetter and better, and ready not only to ght for his immediate survival, but to aspire to be recognized by the others. In summary, freedom and perfectibility open to him the doors to sociability, and allow him to enter the cultural universe. However, concomitantly to the process of becoming a free being, capable of perfecting itself, man developstheabilitytostepoutsidehimself,feelingtheneedfor constant comparison with the others. That heralds, from the point of view of the human constitution, the passage from the love of oneself (amour de soi) to self-love (amour-propre): whilst the for-merisrepresentativeofthenaturalstateandisbasedonpiety, the latter characterizes the civilized man, and is marked by mans propensitytowishtooccupyahigherpositionthantherest.If such propensity is not curtailed, it can lead to the destruction of sociability. Hence the need for its juridical and political regulation, anteceded by a process of moral and pedagogical formation. This then justies the need for the permanent education of self-love.KeywordsRecognition Education Self-love Natural education.Contact:Claudio Almir Dalbosco Rua Independncia 1006/8199010-04 Passo Fundo (RS)E-mail: [email protected]* This work is associated to the research projectEnlightenmentandPedagogy: naturaleducationandhumanformation in Rousseaus mile, sponsored by CNPq with a Research Productivity Scholarship.** I wish to thank Hans-Georg Flickinger forhisinnumerablecriticismsandsug-gestions.Also,Iowetotheprivilegeof having his intellectual companionship my own interest for social philosophy and for its indispensability in the reection about pedagogical problems.483 Educao ePesquisa, So Paulo, v.37,n.3, p.481 - 496, set./dez. 2011.IntroduoQuando decide concorrer ao prmio da Academia de Dijon, Rousseau v-se confronta-do com a tarefa de ter que responder pergunta pela origem da desigualdade entre os homens. Sua resposta no de modo algum simples nem direta, pois, ao meditar sobre o problema, con-duzido concluso de que uma explicao ade-quada questo s pode ser alcanada median-teainvestigaoacercadanaturezahumana. Amparando-me na interpretao de Neuhouser (2009),pretendomostrar,nesteensaio,quea resposta formulada por Rousseau contm o es-boo de uma losoa social do reconhecimento humano baseada no conceito de amor-prprio.Emsntese,defendereiatesedeque, paradarcontadainvestigaosobreosfun-damentosdasociabilidadehumana,Rousse-audesenvolveumateoriadoreconhecimen-tohumano,pondoemsuabaseoconceitode amor-prprio.Pensoquealegitimaodetal tesepressupeumtratamentoadequado,pelo menos,daseguintequesto:emquesentido aaspiraohumanaporreconhecimentoexi-geacapacidadedosujeitodesairforadesi e,comparando-sepermanentementecomos outros,desenvolveracapacidadedeassumir sua perspectiva? Buscar uma resposta para esta perguntacombase,primeiro,nareconstruo de algumas passagens do Segundo discurso1 e, depois, na anlise da posio de Neuhouser, o objetivo principal deste ensaio. A constituio do lao social no Segundo discurso: o problema da necessidade de comparao com o outroEm1753,aAcademiadeDijonapre-senta a questo Qual a origem da desigualda-deentreoshomenseserelapermitidapela leinatural?,comopropsitodeorientaro trabalhodosinteressadospeloprmioque seriaoferecidoaoganhadornoanoseguinte. 1.Abreviatura usual da obra Discours sur lorigine et les fondemens de lingalit parmi les hommes.Rousseau decide concorrer e escreve o Segundo discurso. A resposta dada pergunta no de modo algum simples nem direta, pois implica o movimentocomplexodepensamentoquede-lineiaostraosgeraisdeumalosoasocial baseadanofatoantropolgicodaincessante aspirao humana por reconhecimento social. Oleitorfamiliarizadocomalosoa social desenvolvida a partir de Hegel e que de-semboca, no sculo XX, na ampla tradio da teoriacrticadasociedade,logopercebe,no argumentodeRousseau,avinculaoestrei-taentreostraosdesuateoriadasociedade eumaantropologiadeorigememinentemen-telosca.Nessesentido,ogenebrinopen-sa que a resposta satisfatria pergunta pela origem da desigualdade entre os homens deve conduzir investigao acerca dos fundamen-tosdasociabilidadehumana,aqual,porsua vez,remeteperguntamaisfundamentalde quem o prprio homem.A reexo acerca do nexo estreito entre sociabilidade e natureza humana sustenta-se na dupla capacidade humana, da exteriorizao e da comparao, tornada possvel, por sua vez, pela dupla condio humana, da liberdade e da perfectibilidade. Isto , porque se tornou progres-sivamente um agente livre e capaz de se aperfei-oarqueoserhumanoadquiriuacapacida-de de sair fora de si mesmo e, com isso, viu-se permanentemente inclinado a comparar-se com os outros. Contudo, esta complexa dinmica da aspiraohumanaparasecompararincessan-temente com os outros, a qual se encontra ex-postaporRousseauemalgumaspassagensdo Segundo discurso, deve ser objeto de uma an-lise mais cuidadosa, uma vez que tal dinmica decisiva para a compreenso da ambiguidade constitutiva do amor-prprio e da necessidade de sua educao. A justicativa da losoa do reconhe-cimentosocialbaseadanumaantropologiade matriz losca segue a estruturao geral, di-vidida em duas partes, do Segundo discurso. Na primeira,Rousseauexpeohomemprimitivo e o homem natural, assinalando a liberdade e 484 484 Claudio Almir DALBOSCO . Aspirao por reconhecimento e educao do amor-prprio em...a perfectibilidade como faculdades ou foras impulsionadoras do nascimento do homem ci-vil.Aideiatantodehomemselvagemcomo dehomemnaturalumconstrutoadotado para fugir do crculo entre estado de natureza e sociedade, no qual incorriam facilmente, se-gundo ele, os defensores do direito natural de sua poca e, com isso, poder oferecer uma ex-plicao satisfatria para o corrompido estado social atual. Na segunda parte, so descritos os estgios e as caractersticas iniciais da socieda-de, mostrando o desenvolvimento da metalur-gia, da agricultura e o nascimento da proprie-dade e do corpo poltico, este ltimo legitimado pelo contrato entre povo e governante. Com a exposiodestasduaspartes,Rousseauchega concluso de que [...] sendo quase nula a desigualdade no es-tadodenatureza,devesuaforaeseude-senvolvimentoanossasfaculdadeseaos progressos do esprito humano, tornando-se, anal,estvelelegtimagraasaoestabe-lecimento da propriedade e das leis. (OC III 195; 1978, p. 282)2A reconstruo do ncleo constitutivo dalosoadoreconhecimentosocialdispen-sa-me agora de tratar diretamente das dicul-dades inerentes ao procedimento metodolgico adotado por Rousseau e tambm de sua expo-sio do homem selvagem, do homem natural e do homem civil. O que importa, sim, ao meu ponto,areconstruodaquiloquecimenta olaosocialeque,portanto,estnabaseda sociabilidade humana.Com isso ca estabelecido que o estudo da constituio do lao social conduz inves-tigaosobreaconstituiodolaopropria-mentehumano,ouseja,daquiloqueformaa natureza do homem. Mas por que anal po-deramos ainda nos perguntar a antropologia 2. Todas as citaes da obra de Rousseau sero feitas como a que se-guiu, indicando-se primeiro a obra no original, abreviada como OC, seguida dovolumeemromanoedapaginaoemarbico;porm,oanoea paginao da traduo portuguesa empregada.loscadevesustentaraexplicaosobrea origem e constituio da sociabilidade humana e, mais precisamente, de um tipo determinado de sociabilidade? Enm, por que a investigao sobre quem o homem deve ser tomada como condio de possibilidade da compreenso da-quelehomemquevivesocialmentedemodo inautntico e corrompido?Para tratar destas questes precisamos acompanharomovimentotericodeRous-seau,oqualiniciacomoregressohipotti-coparaumasituaoimaginrianaqualo homem teria sado das mos da natureza e, apartirda,ogenebrinoacompanhaopro-cessoevolutivoqueteriamarcado,progres-sivamente,osurgimentodohomemcivil:do estado selvagem passa para o estado natural e deste para o estado civil. Como o percurso de pensamentohipottico,nointeressatanto nemoslivroscientcosenemasverda-des histricas, mas sim a meditao sobre o queteriamsidosupostamenteasprimeirase mais simples operaes da alma humana. Ora, ameditaosobreestasimplicidadeoriginal revela dois princpios constitutivos do homem selvagem, a saber, a autoconservao, susten-tadapeloamordesieapiedade,aqual afontenaturaldocompadecimentohumano pelo sofrimento do outro. Oaspectodeterminantedestalonga evoluoacapacidadeeminentementehu-mana de comparar-se com os outros que tem seu incio ainda com o prprio homem selva-gem. O primeiro ato originrio de comparao d-senodiretamenteentreosprpriosho-mens, mas sim entre eles e os outros animais. Assim arma Rousseau: Mas o homem selvagem, vivendo disperso entre os animais e vendo-se desde cedo na iminncia de medir foras com eles, logo fez a comparao (comparaison) e, verifi-candoquemaisosultrapassaemhabili-dade do que eles o sobrepujam pela fora, aprende a no mais tem-los. (OC III 136; 1978, p. 239)485 Educao ePesquisa, So Paulo, v.37,n.3, p.481 - 496, set./dez. 2011.Deacordocomapassagemcitada,o primeiroconfrontodecisivoqueestnaori-gem da sociabilidade humana marcado pela habilidade humana rudimentar versus a fora fsicasuperiordeoutrosanimais.Comisso, o contato inicial do homem com outros ani-mais,movidopelanecessidadedeconserva-o, coloca-o na condio de observador na-tural e o conduz percepo detida sobre sua posiodesuperioridade.Aoperceberque superior, no em fora, mas em habilidade, o homemperdeprogressivamenteomedodos outros animais e enfrenta-os na luta pela sua autoconservao. Portanto, a condio de ob-servador, ainda que muito rudimentar em seu incio,colocaohomemnaposiosuperior emrelaomesmoquelesanimaisquepela fora fsica lhe so innitamente superiores. NoSegundodiscursoaparece,por-tanto,comopodemosobservar,otemada autoconservaoedasociabilidadehuma-na.Comootemadaconservatiosui,em-borapresentenatradiofilosficaantiga emedieval,torna-secentralmodernidade filosfica, cabe referir aqui, ainda que breve-mente, duas posies de um debate ocorrido nosanossetentadosculopassadonaAle-manha, que foi magistralmente documentado por Hans Ebeling (1996). AprimeiraposiodeDieterHen-rich(1996),oqualmostroucomoateoria modernadasubjetividadedependedeum conceitodesujeitoquetemsuancorano princpiodeautoconservao.Talprincpio estende-separaalmdasignicaobiol-gicaoupsicolgica,assumindoosentidode um princpio racional (losco). Como prin-cpioloscomoderno,aautoconservao noconsiste,comoapensouAristteles,na tranquilidadedogozodeummalcanado, mas sim na alegria do resultado contnuo de alcanar todas as coisas desejadas. Neste sen-tido,avidamovimento,masnodogozo de um m alcanado, seno de m para m. Ora,estaestruturaantropolgicadaauto-conservaosemostratambmnavontade unidadoscidadosnoEstadoe,nestesen-tido, a conservatio sui o princpio racional tanto da vida individual como da vida social (HENRICH,1996,p.98-99).Nasequnciade suaargumentao,Henrichprocuramostrar comoaautoconservaoidentica-se,na modernidade, com a autoconscincia.AsegundaposioadeGnther Buck,aqualestmaisdiretamenterelacio-nadaaonossotema.Rousseauprocurase distanciar, segundo Buck, do pensamento te-leolgicoantigoetalesforoleva-odes-coberta da historicidade, cujo centro repousa na ideia da autoconservao. Neste sentido, o genebrino pensa a conservatio sui a partir do idealdaautonomiacomohistoricidade,pois oprincpiodotresoi-mmespodeser descobertocomoprincpioapartirdaexpe-rinciahistricadoautoestranhamento.Ou seja, tal princpio surge da exegese que o su-jeito faz de sua prpria experincia e situao histrica (BUCK, 1996, p. 219). Estabreverefernciaposiode HenricheBuckavalizaaconclusodeque a autoconservao, no sentido losco mo-derno,sedistanciadosimplesinstintode lutapelasobrevivncia,transformando-se no princpio racional de organizao da vida individualesocial.Noentanto,comonos mostra o Segundo discurso, tal princpio tem uma gnese que comea a se desenvolver efe-tivamente quando se vincula liberdade e perfectibilidade.Retomemos, novamente, o o condu-tor da exposio: a dupla condio da liber-dade e da perfectibilidade empurra o homem para fora de si mesmo, brotando deste movi-mento o desejo de comparao com os outros e a aspirao incessante por reconhecimento. H nesta complexa dinmica o surgimento de um componente decisivo, sem o qual, segun-doRousseau,nosepoderiacompreendero fenmenodasociabilidade:trata-sedosur-gimentodosentimentodoamor-prprio.O aparecimentoprogressivodoamor-prprio tiraohomemselvagemdeseuisolamentoe 486 486 Claudio Almir DALBOSCO . Aspirao por reconhecimento e educao do amor-prprio em...o empurra cada vez mais para a sociabilidade3. Com isso, a capacidade de comparao de sua relaodiretacomosanimaispassaparasua relao com seus prprios semelhantes, e, nesta nova situao, a comparao assume uma din-mica inteiramente prpria. Rousseau descreve magnicamente, na segunda parte do Segundo discurso, o momen-to em que os homens deixam de viver isolados nosbosqueseseaproximamlentamente,for-mando em cada regio uma nao particular, una de costumes e caracteres (OC III 169; 1978, p. 263). Esta aproximao lenta conduz para o intercmbio social, pois, na medida em que as famliasseaproximamterritorialmente,facili-tam o contato pessoal, permitindo que jovens desexodiferentehabitemcabanasvizinhas (OC III 169; 1978, p. 263). Ocorre a, neste mo-mento,apassagemdaquelasituaoemque oshomensprimitivosvagavamisoladamente nos bosques, buscando sua sobrevivncia, para oestadonoqualelescomeamaseaglutinar em famlias, xando residncia. Temos, ento, a condio elementar exigida para um intercm-bio social mnimo. Mas temos dadas tambm, sob estas cir-cunstncias, as condies para o surgimento da comparao social. No contexto de sua reexo sobre o homem selvagem, arma Rousseau: Acostumam-se a considerar os vrios obje-tos e a fazer comparaes (comparaison): in-sensivelmente adquirem-se idias de mrito edebeleza,queproduzemsentimentosde preferncia. fora de se verem, no pode maisdeixardenovamenteseverem.Insi-nua-se na alma um sentimento terno e doce, e, menor oposio, nasce um furor impe-tuoso (fureur imptuese); com o amor surge ocime,adiscrdiatriunfaeamaisdoce paixo recebe sacrifcios de sangue humano. (OC III 169; 1978, p. 263)3.Para evitar que o surgimento do amor-prprio seja interpretado como um sbito aparecimento, preciso considerar que Rousseau o concebe estritamente ligado tanto liberdade como perfectibilidade, e a sociabili-dade s possvel pela ao destas duas foras (faculdades humanas). A passagem citada contm a ideia de que,aosecompararementresi,oshomens tornam-seinsensveis,adquirindosentimen-tosdeprefernciaqueoslevamaescolher esta ou aquela companhia, este ou aquele par-ceiro,emdetrimentodeoutros.Maisainda, umavezestabelecidoovinculoeaprendido a viver em companhia, os homens no conse-guemmaisviverisolados,preferindomesmo suportarduramenteosofrimentoeasdores queaconvivncialhescausadoqueterem que voltar a viver de novo isoladamente. Por m, digno de nota o quanto a sociabilidade emergente j responsvel por causar o misto de sentimento que arrebatar denitivamente ohomemcivil,obrigando-oavivertensio-nalmenteorientadoorapeladocilidade,ora pelo mpeto agressivo. Deste modo, segundo a passagem, j em sua origem, o amor humano encontra-se carregado tanto pelo sentimento terno como pelo furor impetuoso, indican-do-se,comisso,queasociabilidadehumana nopoderiamaisserorientadatosomente pela voz doce do homem selvagem.Nosucederdeideiasesentimentos,o gnero humano foi se domesticando, amplian-do suas ligaes e apertando seus laos. Neste contexto de convivncia mais intensa, aumenta tambm o desejo de comparao, fazendo com que cada um olhe e observe permanentemente o outro. desta dinmica do olhar permanente para os outros e do querer ser tambm por eles olhado que nasce lestime publique. Assim, ar-ma Rousseau: Aquelequecantavaoudanavamelhor,o mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o maiseloqente,passouaseromaiscon-siderado [...]; dessas primeiras preferncias nasceram,deumlado,avaidadeeodes-prezo,e,deoutro,avergonhaeainveja. (OC III 169; 1978, p. 263)Parececarclaro,comisso,queessas primeirasprefernciasjengendramaaspi-rao humana por reconhecimento e, uma vez 487 Educao ePesquisa, So Paulo, v.37,n.3, p.481 - 496, set./dez. 2011.que resultado do procedimento que mais des-taca um sujeito em relao aos outros, tal reco-nhecimento gera, inevitavelmente, sentimentos de vaidade e inveja. Compreendendo-se enquanto compor-tamento baseado no olhar e no deixar-se olhar permanentemente,acomparaocontmem si, portanto, uma dinmica interna que possi-bilitaoserhumanosertomadoemcondio desuperioridadeemrelaoaosoutros.Tal dinmicaimpedequetodossejamreconheci-dossimultaneamenteenamesmaproporo. Ora,issoconduzaumatensoquemarcaa busca por estima pblica (por reconhecimento social) e, como ainda veremos adiante, quan-doseconsolidacomocondutadohomemci-vil, empurra-o para o mundo do parecer e da articialidade.Nessecontexto,Rousseaupe oncleodesualosoasocialnosseguin-tes termos: Para proveito prprio, foi preciso mostrar-sediferentedoquenarealidadese era.Sereparecertornam-seduascoisasto-talmente diferentes (OC III 174; 1978, p. 267). Pelasocializaoohomemformano espritoaidiadeconsiderao,[sendoque] cada um pretendeu ter direito a ela e a ningum foi mais possvel deix-la de t-la impunemen-te (OC III 169; 1978, p. 263). De tal ideia bro-taram os primeiros deveres de civilidade, e toda aafrontavoluntriapassouaserconsiderada como ultraje, uma vez que provocava no ofen-didoumsentimentodedesprezoporsuapr-pria pessoa. A conscincia do desprezo por sua prpriapessoatorna-se,dessemodo,umpeso insuportvel, difcil de ser carregado.Em outra passagem, Rousseau enfati-za a lgica da sociabilidade humana baseada nabuscadesenfreadapeladistinoconsi-derandotalcomportamentocomocausade nossasvirtudesedenossosvcios.Assim, arma ele: Mostraria que a tal nsia de fa-zer falar de si, a esse furor de distinguir-nos, quase sempre nos colocando fora de ns, que devemos o que h de melhor e de pior entre oshomens(OCIII189;1978,p.278).Mas numa outra passagem, j quase no fim do Segundodiscurso,queencontramosformu-lado,lapidarmente,oargumentonuclearda sociabilidade humana: Tal, com efeito, a verdadeira causa de to-dasessasdiferenas:oselvagemviveem simesmo;ohomemsocivel(lhomme sociable), sempre fora de si, s sabe viver baseando-se na opinio dos demais e che-ga ao sentimento de sua prpria existncia quasequesomentepelojulgamentodes-tes. (OC III 193; 1978, p. 281) Ouseja,aopinioeoolhardooutro tornam-se o aspecto constitutivo da sociabili-dadehumana.Umaveztocadopeloolhardo outro, o homem no consegue mais viver em si mesmo e, com isso, precisa buscar no outro asmotivaesparaaconstituiodesimes-mo.Ficaassinaladotambm,comisso,como caracterstica central do homem socivel, que ele s consegue adquirir o sentimento de sua existnciacombasenaestimapblica,ou seja,combasenojulgamentofrequenteque recebe do outro. Emsntese,nabuscaporresposta perguntacolocadapelaAcademiadeDijon, Rousseau levado a ver na capacidade huma-nadesairforadesimesmoenanecessidade dohomemdesecompararpermanentemen-tecomosoutros,visandosermelhordoque eles, a origem da dinmica que marca o incio e o aprofundamento da sociabilidade humana. Comoingressodoamor-prprioemcena,tal sociabilidadeganhadireoecontornosbem especcos.Do carter ambguo do amor-prprio Procureialinhavaracima,emlargos traos, o que poderia ser tomado, no Segundo discurso,comoargumentoprincipalafavor deumalosoasocialbaseadanaaspirao humana por reconhecimento. No entanto, tal -losoa caria muito incompleta sem o recurso 488 488 Claudio Almir DALBOSCO . Aspirao por reconhecimento e educao do amor-prprio em...aoconceitodoamor-prprio;talvezpudsse-mos dizer que sem tal recurso ela no teria sido nem mesmo possvel. O problema que, dado o status que ocupa no pensamento de Rousseau, tal conceito no recebeu dele a consistncia e o esclarecimentomerecidos.Paraagravarainda mais a situao, tambm no impera consenso entre seus intrpretes, destacando-se duas posi-es bem antagnicas: de um lado, h a posio standard, que sustenta apenas o carter destru-tivo do amor-prprio; de outro, a posio que ressalta seu carter ambguo, extraindo disso a possibilidadedeeducaodoamor-prprio.O exemplo da primeira encontra-se no estudo de Fetscher(1975);dasegunda,nainterpretao de Neuhouser (2009). Como j tratei criticamente da primeira posio em outro ensaio (DALBOSCO, 2009, p. 13-33), gostaria de me ocupar agora, especi-camente,comaposiodeNeuhouser(2009), reconstruindoapenasostraosgeraisdesua interpretao que interessam ao ponto em dis-cusso. Desse modo, busco na posio de Neu-houserumargumentoadicionalforteafavor dopapelconstitutivodoamor-prprioemre-lao sociabilidade moral baseada no respei-to social mtuo e no reconhecimento tico do outro.Almdisso,areconstruodeaspectos pontuaisdesuaposioauxilia-meaverque argumentossofavorveistesedaexistn-ciadeumalosoasocialnopensamentode Rousseau. Por m, o recurso sua interpretao contribui tambm justicativa sobre a impor-tncia da educao do amor-prprio. Neuhouser parte da tese de que Rous-seau sustenta sua losoa do reconhecimento socialnoconceitodoamor-prprio;ouseja, esta tese quer dizer, segundo ele, que a aspira-o humana por reconhecimento est baseada no sentimento do amor-prprio. Para investi-gar esse conceito, o autor empreende um duplo movimentoemsuainterpretao,conceben-do-o, por um lado, como fonte do mal e, por outro, como antdoto contra a maldade da qual ele prprio culpado. Como no posso me ater aqui na riqueza de detalhes proporcionada por sua interpretao, devo resumir to somente os aspectoscentraisquecaracterizamaambigui-dade do amor-prprio. Primeiro, no que diz respeito tese de que o amor-prprio a fonte do mal. Para re-construiressadimensonegativaedestrutiva doamor-prprio,Neuhouser(2009,p.28-29) busca deni-lo em oposio ao sentimento do amor de si. Parte da considerao geral de que o amor de si e o amor-prprio so duas formas doamorporsimesmoquepememjogoo sentidoautnticodoserhumano.Ouseja,se-gundo ele, Rousseau pensou que a constituio dosimesmohumanoestavaprofundamente vinculadacomoamplosentimentodeamor quecadaindivduopossuiporsimesmo.Este sentimento de amor por si mesmo adquire, por sua vez, uma dupla dimenso, desdobrando-se no sentimento natural originrio do amor de si (amour-de-soi) e no sentimento eminentemente social do amor-prprio (amour-propre).Aprimeiraoposiontidaentreesses doissentimentosserefereaofatodequeum diz respeito conservao fsica do homem e o outro sua sociabilidade. Enquanto o amor de si est diretamente relacionado com a autocon-servao humana e representativo do homem selvagemenatural,oamor-prpriodenea dinmica da sociabilidade humana, sendo, por isso, constitutivo do homem civil e de suas pro-dues culturais e institucionais. Como consti-tutivodasociabilidade,oamor-prprioesta servio, desde o instante de seu surgimento, da honra e do mrito, relacionando-se com o pro-blema de como o indivduo pode ser bem visto. Nesse contexto, como alerta Neuhouser, um ser que possui amor-prprio se impele exigncia de assumir a posio de ser levado em conta e de ser tomado como algo de valia. Este ser sente a necessidade, portanto, de ser observado e ad-mirado, ou seja, de ser considerado como digno de valor (NEUHOUSER, 2009, p. 29).A segunda oposio entre os dois tipos de sentimento humano consiste no fato de que enquanto o amor de si possui carter absoluto, oamor-prpriorelativo.Neuhouser(2009) 489 Educao ePesquisa, So Paulo, v.37,n.3, p.481 - 496, set./dez. 2011.esclarece que relativo se refere aqui a outros su-jeitos. Nesse sentido, o amor-prprio relativo numaduplaperspectiva,dacomparaoeda dependncia em relao opinio dos outros. No que diz respeito primeira perspec-tiva, o bem que o amor-prprio aspira de na-tureza comparativa no sentido de que querer ser considerado signica desejar uma determinada posio (colocao) que se relaciona diretamen-tecomaposiodeoutrossujeitos.Ouseja, o respeito que o amor-prprio do sujeito quer conquistarumbemposicional(positional good).Terresultadoadquirirprestgiosocial como aspirao do sujeito signica, para tal sujeito,terresultadosempreemcomparao comoutrossujeitos.Aextensoouamplitude emqueanecessidadeporreconhecimentode umsujeitodeterminadosatisfeitadepende, por conseguinte, do modo exitoso ou no com o qual outros tambm conseguem alcanar seu reconhecimento. Ora, algo diferente ocorre com o amor de si, que de modo algum relativo, e, por isso, o bem que ele aspira no depende, em certo sentido, do quanto os outros sujeitos pos-suemounoestebem.Porexemplo,omodo como a alimentao e o sono satisfazem suas ne-cessidades fsicas possui certo grau de indepen-dncia em relao ao modo como outros sujeitos satisfazem suas prprias necessidades. J no que dizrespeitoaoamor-prprio,asatisfaode suas necessidades depende da relao imediata entre quantidade e qualidade da estima que os outros dirijam a ele e a qualidade e quantida-dedeestimaqueosoutrospossuemsobresi mesmos (NEUHOUSER, 2009, p. 29). Em snte-se, esta primeira perspectiva, na qual o amor--prprio relativo, nos permite formular a tese de que o maior bem por ele aspirado consiste em ser reconhecido (estimado) pelo outro.Asegundaperspectivaapontaparao fato de que a aspirao do sujeito de ser estima-do depende diretamente da opinio de outros su-jeitos. O amor-prprio relativo, neste segundo sentido, porque seu objetivo de ser reconhecido pelo outro de natureza essencialmente social. Nesse contexto, ele no somente relativo, seno tambmarticial.ComissoRousseaunoquer dizer, segundo Neuhouser (2009), que a aspira-o por reconhecimento seja uma parte aciden-tal da ao humana ou que sem o amor-prprio ohomemseriamelhor.Aocontrriodisso,ele consideraoamor-prpriocomoumfenmeno socialdeprimeiragrandeza,poissuasformas so diversicadas e dependentes da propriedade do mundo social inerentes aos seus portadores. Neuhouser(2009)tememmenteaqui ofato,decisivoparaasociabilidadehumana, dequeoshomensnopodemexistirsemo amor-prprio e o modo como tal sentimento se manifestanomundodependedasinstituies sociaisapartirdasquaiseleformado.Para se apreender este aspecto constitutivo do amor--prprio,precisoconsider-lo,noentanto, como algo que no xo e imutvel, mas sim plsticoeuido.Nessesentido,comoacentua oreferidoautor,oamor-prpriopossuiuma capacidadedemetamorfose.Reconhecerisso fundamentalporque,docontrrio,lheseria atribudosomenteumaconotaonegativa, cando-seimpedidodebuscarnelemesmoo antdoto contra a maldade que dele prprio se origina. Isto , considerar a capacidade de mu-dana inerente ao amor-prprio signica igual-mente considerar que se ele a fonte principal domal,deoutraparte,noestdeterminado absoluta e irreversivelmente para o mal. Alm disso, como argumenta Neuhouser (2009), esclarecer o fundamento da mutabilidade doamor-prprioimportanteporqueaelese liga seu carter articial. O amor-prprio prefere aceitar formas altamente variadas, porque a in-clinao do sujeito para o prestgio social con-duzido em grande medida por suas opinies, ou seja, pela representao que ele faz de si mesmo. Nessecontexto,arepresentaoqueohomem faz de si mesmo e o lugar que toma em relao humanidade decisivo para saber se a paixo do amor-prpriohumanaouprejudicial,boaou m (NEUHOUSER, 2009, p. 30). Emsntese,dasduasoposiesdo amor-prprio em relao ao amor de si, Neuhou-ser (2009) extrai a tese de queoamor-prprio 490 490 Claudio Almir DALBOSCO . Aspirao por reconhecimento e educao do amor-prprio em...consistenaaspiraohumanaporreconhe-cimentoe,naverdade,emumduplosenti-do:primeiro,porquerepresentaanecessidade inerente ao humana de se comparar com os outros e, segundo, porque depende permanen-temente da opinio e da estima do outro. Masemquesentidooamor-prprio fonte do mal humano? Neuhouser (2009, p. 33-34) elenca e justica seis aspectos (problemas) queotornamperigoso,transformando-oem fonte da maldade humana:a) Por ser fonte da aspirao humana por repu-tao,honraedistino,oamor-prpriope oshomensempermanentedisputaeconcor-rnciaentresi,tornando-osinimigosdecla-radosunsdosoutros.Issoajudaaesclarecer ento, por um lado, por que a necessidade de autoconservaotraduzidaemaspiraopor reconhecimentosocialconstituiedinamizaa sociabilidade humana e, por outro, por que tal sociabilidadeformadaporumgraueleva-do de conitos entre seus membros. Segundo Neuhouser (2009):Noemprimeiralinhaanecessidadena-tural, mas sim a necessidade insatisfeita por reconhecimento(Anerkennung)queres-ponsvel, segundo Rousseau, pelo relaciona-mento belicoso entre os indivduos. (p. 33)4b)Poraspirarumaposiosocialquesempre determinadaemrelaoposiodeoutros sujeitos,adinmicainternadoamor-prprio conduzinevitavelmenteaumconitoinsol-vel.ParaNeuhouser(2009),apropriedadedo amor-prpriotorna-seperigosa,nessesenti-do, porque o homem inclina-se rapidamente a substituir o bem pelo melhor em sua com-parao com os outros, reduzindo, com isso, a buscaporreconhecimentobuscaporquerer 4.Sob este aspecto, o conceito de amor-prprio auxilia na demarcao daenormediferenaentreospensamentosdeRousseaueHobbesno que diz respeito ao conceito de estado de natureza, indicando que o es-tado de guerra de todos contra todos prprio do homem civil e de modo algum do homem natural. Sobre a diferena entre estes dois pensadores, ver Herb (1989).serincondicionalmentemelhordoqueosou-tros. Salta aos olhos, ento, o enorme problema que esta perspectiva perigosa cria:Umadiculdadeevidentequetrazconsigo umaaspiraoporposiosuperior(ber-legener Stellung), ampliada universalmente, tornar impossvel a satisfao sistemtica do amor prprio. (NEUHOUSER, 2009, p. 33)Isso signica dizer que se todos aspiram simul-taneamenteporumaposiosuperior,evi-dente que nem todos podem alcan-la, pois o superior s adquire sentido em relao a uma posio inferior. Orientado por esta lgica, o re-conhecimento social deixa de ser obra possvel de ser alcanada por todos!c) Por conter em si a aspirao por posio su-perioremrelaoaosdemais,oamor-prprio torna-sefontedalutaconcorrencialentresu-jeitos.Oproblemaconsisteaemqueasupe-rioridade conquistada, por estar em permanente dependncia do reconhecimento dos outros, os quais tambm aspiram por superioridade, nunca pode ser uma superioridade absoluta e, por no s-la, transforma-se em fonte de insegurana. Problemtico torna-se a no somente o fato deoamorprprioencontrarsatisfaoin-segura e fugitiva, seno tambm que as ne-cessidades e os desejos se tornam a tal ponto ilimitados que danicam a felicidade huma-na. (NEUHOUSER, 2009, p. 34)d) O amor-prprio tambm problemtico por-quepossuiatendnciadeproduzirvciosou comportamentosamorais.Vciosignica,nes-tecontexto,desprezarosofrimentodooutro, ou sentir-se feliz pela sua infelicidade. Dito de outromodo,porcausadapredominnciada aspirao por posio superior, os homens tor-nam-secompletamenteinsensveisemrelao condio e ao sofrimento dos outros: cada um torna-se inimigo do outro, e o que menos con-ta o sentimento de pertena mesma espcie. SegundoNeuhouser(2009),estapropenso 491 Educao ePesquisa, So Paulo, v.37,n.3, p.481 - 496, set./dez. 2011.paraovcio(HangzumLaster)signica,no contexto argumentativo de Rousseau, a opres-sodosentimentonaturaldepiedade,opres-soqualseexpecadavezmaisohomem civilizado (p. 34). e) Porque a estima conquistada mediante o olhar do outro uma parte do bem que o amor-prprio aspira, isso o coloca na dependncia estrita do olhardooutro.Nessesentido,aopiniopo-sitivadooutroconstitutivadobemqueele aspira. O perigo que est inerente a este aspec-todoamor-prpriosetornacompreensvel luzdoqueRousseaudenominadeperigosda dependnciaemgeral,osquaispememris-coaliberdadehumana.Adependnciaest, nestecontexto,emoposioautonomia:o sujeito encontra-se em estado de dependncia para satisfazer suas necessidades, pois precisa dacooperaodeoutrosindivduos.Arma Neuhouser (2009): O pensamento poltico e social de Rousseau fundamenta-senaidiadequecadamodo de dependncia traz consigo o perigo de que osindivduospodemprejudicarsualiber-dadeaosatisfazersuasnecessidadeseisto ocorre porque precisam estar em cooperao com os outros. (p. 34) Emsntese,oqueRousseautemem mente aqui o fato de que, se a estima pesso-aldependermuitodoolhardooutro,talde-pendncia pode conduzir perda da liberdade, pois submete excessivamente o sujeito von-tade de outros, impedindo-o de obedecer sua prpria vontade5.f)Porm,haindaoutroperigoquesurge do fato de que o amor-prprio aspira um bem que depende do julgamento do outro. Este pe-rigo se deixa descrever melhor pelo conceito 5.Deoutraparte,numaconhecidapassagemdasLettrescritesdela montagne, Rousseau defende a liberdade no tanto com o fazer sua prpria vontade, mas sim como no submeter a vontade de outro nossa prpria vontade.Eleestpreocupadoaquicomarelaoentreliberdadeeleie quer garantir a ideia, central para seu pensamento poltico, de que ningum deve estar acima da lei, inclusive o senhor: Qualquer um que seja senhor no pode ser livre, pois dominar (reinar) obedecer (OC III 841).dealienaoouautoalienao,oqualest vinculado quilo que Rousseau denomina de existir fora de si ou sair fora de si6. Mas emquesentidoosairforadesisignica um estranhamento? No sentido de que o su-jeitosconsegueobterosentimentodesua prpriaexistnciapormeiodojulgamento dosoutros.Nesteponto,Rousseauformula, segundoNeuhouser(2009),umatesecentral sualosoasocial,asaber,dequeafor-mao da identidade, isto , a construo do self,dependedoolhardooutro(p.36).Isso signicadizerqueafontedaexistnciado sujeito como identidade de um self (de um si mesmo) no reside de modo algum s no sujeito, mas tambm no outro e, com isso, o prprioserdosujeitorepousanasopinies incertasecontingentesdeseussemelhantes. Nesse sentido, buscar a estima pblica tendo de se expor ao olhar pblico signica, simul-taneamente,seexporscontingnciasein-certezas deste olhar. Quando este olhar impe-de a autoarmao e o autodomnio pessoal, ento o fenmeno do sair fora de si se torna destrutivo e, nesse sentido, a alienao se tor-na fonte do mal. Este resumo nos oferece boas razes paraconsideraroamor-prpriocomofonte do mal humano. Tais razes servem para es-clareceroquantoele,tomadonestasuadi-mensonegativa,podesetornaraltamente destrutivo s relaes humanas e sociais. No entanto, se o amor-prprio no , de acordo comainterpretaodeNeuhouser,somen-tefontedomale,porisso,nosomente destrutivo,deondeprovmapossibilidade dequesejatambmconstrutivo?Tratarei destaquestopassandoaoltimotpicodo ensaio, pois seu aspecto construtivo depende que se leve em considerao a educabilidade do amor-prprio.6. Embora Neuhouser reconhea o fato de que Rousseau no empregou expressamente o conceito de alienao, arma que tal conceito se encontra formulado nas entrelinhas de seu pensamento. Para legitimar sua interpre-tao, recorre ao estudo de Jaeggi, publicado recentemente (2005). 492 492 Claudio Almir DALBOSCO . Aspirao por reconhecimento e educao do amor-prprio em...Do aspecto construtivo do amor-prprio e da necessidade de sua educaoDainterpretaodeNeuhouser (2009)ficaassegurado,emlinhasgerais, queoamor-prprioconstitudopelaaspira-ohumanaporreconhecimento,assumindo umadimensosignicativamentedestrutiva namedidaemqueseconsolidacomobusca obsessivaporposiosuperior.Considerando isso,duasalternativasseriamaparentemen-te as mais provveis: a primeira, mais radical, concentra-sesomentenadimensodestrutiva do amor-prprio, objetivando sua aniquilao; asegunda,talvezmaisingnua,propeasua educao por meio do retorno do amor de si e do sentimento de piedade a ele associado. Para Neuhouser (2009), estas duas alternativas no encontrariamrespaldomaiornopensamento de Rousseau, pois o genebrino jamais pensou napossibilidadedeeliminaroamor-prprio simplesmenteporqueoconsideravacomo constitutivo do ser humano e de sua sociabi-lidade. Nesse sentido, querer elimin-lo signi-cariaomesmoquequererpensarohomem semsuaspaixesesemsuaracionalidadee, em sntese, sem sua prpria subjetividade. De outraparte,aeducaodoamor-prpriopor meiodapiedadenaturalnoseriapossvel porque a piedade, por si s, sem o auxlio da razo,seriacega,noconseguindoenfrentar sozinha,demodosatisfatrio,osentimento raivosoeodientoprovindodoamor-prprio. Se o amor-prprio no pode ser eliminado das relaes sociais, como tambm no possui s umatendnciadestrutivairreversvele,por ltimo,nopodesersimplesmentecorrigido pela piedade natural, ento sua educabilidade deve ser buscada em outro lugar e ser pensada de outra forma.Parafugirdoaparentedilemade quese,porumlado,nopodemosviversem oamor-prprioe,poroutro,aodeixar-nos orientar por ele, podemos ser levados nossa prpriadestruio,Neuhouser(2009)acentua uma perspectiva imanente posio de Rous-seau, a qual transforma o amor-prprio numa condio necessria, mas no absoluta do mal humano.Talperspectivabaseia-seemdois aspectos bem denidos: a) nacapacidadede mudana e transformao inerente ao amor--prprio; b) no fato de que o amor-prprio no se caracteriza sempre, nem absoluta e nem de-nitivamente, pela aspirao em alcanar uma posio superior.Como estes dois aspectos so decisivos para mostrar o carter ambguo do amor-pr-prio e, portanto, tambm o aspecto construtivo que lhe inerente, precisamos compreend-los maisdeperto.Justamentenestepontoque a interpretao de Neuhouser (2009), se mos-tra decitria e, por isso, precisa ser comple-mentada. verdade que, ao justicar as razes que tornam o amor-prprio fonte do mal hu-mano,oautorcautelosoosucientepara assegurar-lhedinamicidade,atribuir-lhe,com isso,tambmacapacidadedetransformao. Mas de onde provm tal capacidade do amor--prprio?Ameuver,Neuhousernooferece umarespostasatisfatriaparaestapergunta enopdefaz-loporquenodeuateno devidaparaacentralidadequeoconceitode perfectibilidadedesempenhanainvestigao empreendidaporRousseauparaesclareceros fundamentos da sociabilidade humana. Comovimos,Rousseaumostra,jno Segundo discurso, que a sociabilidade humana noteriasidopossvelsemaduplacondio humana,deserumagentelivreedeserca-pazdeseaperfeioar.Nameditaosobreo percursodesenvolvidopelohomem,desdeo instante em que ele saiu das mos da nature-za, Rousseau concebe a liberdade e a perfecti-bilidade como condio da aspirao humana porreconhecimento,aquallevadaadiante pelo amor-prprio. Nesse sentido, a perfecti-bilidade, enquanto faculdade das faculdades, que assegura natureza humana sua plastici-dade e indeterminabilidade7. Ora, para o ponto 7.Ocupei-meamplamentecomoconceitodeperfectibilidadenopen-samentodeRousseaunaconfernciaintitulada Perfectibilit eformao 493 Educao ePesquisa, So Paulo, v.37,n.3, p.481 - 496, set./dez. 2011.quenosinteressa,soestasduascaracters-ticasque,emltimainstncia,garantemao amor-prprio sua capacidade de transformao e,portanto,quepodemimpedi-lodeassumir somenteumadireodestrutiva.Emsnte-se,porqueohomemumserperfectvel,no sentidodeserindeterminado,masaptoase construir,quetambmcaabertaaoamor--prprio uma possibilidade construtiva.Penso que esta complementao in-terpretaodeNeuhousertornasuaprpria posiomaisclaraeconsequente.Combase nisso, podemos analisar agora em que consiste e onde reside essa dimenso construtiva. Para Neuhouser(2009),eladeriva,emltimains-tncia, do fato de o amor-prprio ser o prot-tipo da razo. Mas em que consiste isso? Para justic-la,elerecorrelosoasocialde GeorgHerbertMead,demodoespecialsua teoria do assumir a perspectiva do outro como condiodasociabilidaderacionalhumana. Eu s posso me reportar aqui ao essencial da reconstruo de Neuhouser, sem ter condies de me ater aos detalhes e nem reetir sobre as possveisdiculdadeselimitesquesoine-rentes tanto losoa social de Mead8 como tentativadeinterpretaropensamentode Rousseau luz de tal losoa. Com base nisso, Neuhouser (2009) as-sumeatesedequeoaspectoconstrutivodo amor-prprio brota da prpria capacidade hu-mana originria de sair fora de si e de se com-pararcomosoutros.Estacapacidadeconduz razo e esta, por sua vez, abre ao homem a possibilidadedefazerusonormativodeseu sentimento do amor-prprio. Em sntese, a tese de fundo que Rousseau atribui uma base nor-mativa clara sua losoa do reconhecimento social, a qual repousa na dimenso construtiva do amor-prprio. Aspressuposiesaquiso muitas,assimcomoasnecessidadesdeseu esclarecimento. humana no pensamento de Jean-Jacques Rousseau, proferida no IV Co-lquio Rousseau, ocorrido na UEL/PR, em novembro de 2008. Sobre isso, ver Dalbosco (2010).8. Sobre isso, ver meu recente livro (DALBOSCO, 2010b, p. 27-48; p. 213-243). Para que a razo possa assumir o pa-pel de ordenadora da ao humana, assim reza o argumento, os seres isolados do estado sel-vagem devem abandonar esta sua condio e aprenderaagirsegundoprincpiosmediante osquaisaperspectivadeseussemelhantes deve ser tomada em considerao. Nesse senti-do, o genebrino v no amor-prprio, com seu interesse explcito no ponto de vista do outro, orecursoindispensveldanaturezahuma-na que a conduz a romper com a perspectiva inicialcentradaemsimesma.Oncleoresi-deaqui,comosev,noargumentodequeo amor-prprio s pode se constituir como fonte primeira da sociabilidade humana porque traz consigo a capacidade de assumir a perspectiva dooutro.Maisainda,porqueeleaspirapela boa opinio do outro pois seria um absurdo quealgumemcondiesnormaisdesejasse quelhezessemomal,suasatisfaode-pende,nessesentido,dacapacidadedeante-ciparosdesejoseasnecessidadesdosoutros eproduziraesemcomumacordocomelas (NEUHOUSER, 2009, p. 46). Osaldopositivodissoqueosenti-mentodoamor-prprionospressionaperma-nentemente para aperfeioar nossa capacidade de ver o mundo de outro ponto de vista alm do nosso. Nesse sentido, no h duvida de que ele contribui para a formao da razo na medida emqueestimulaosindivduosaodesenvolvi-mento de sua capacidade de se autorrepresen-tar,tendotambmquecompreendercomoos outros percebem seu prprio mundo e o mundo de seus parceiros (concorrentes).Tal dinmica garantida, segundo Neu-houser (2009, p. 47-48), pelo aspecto especco que constitui o amor-prprio, ou seja, por aque-les dois aspectos, j vistos acima, que o tornam uma paixo humana relativa: a) pelo fato de que a posio aspirada por ele sempre uma posioemrelaoaooutro;b)eporqueo bemporeleaspiradoqueobembasea-do no respeito social (soziale Achtung) de-pende sempre da opinio de outros sujeitos e spodemanifestar-seporintermdiodessa 494 494 Claudio Almir DALBOSCO . Aspirao por reconhecimento e educao do amor-prprio em...opinio.Comoessesdoisaspectostransfor-mamoamor-prprionumsentimentocada vez mais racional, eles auxiliam tambm para mostrarainsuficinciadapiedadenatural comofundamentodaaoracional.Signi-ficandoacapacidadedesentirosofrimento do outro, a piedade deve ser conduzida pela razoparaevitartornar-secega.Pelofato de os indivduos humanos possurem valor e adquirem estima pblica somente em compa-raocomosoutros,daadvmumaspecto racional para a ao humana que possibilita aoamor-prprioserfontederegulaoda piedade natural. Seoamor-prpriodevetrazeruma contribuiodecisivaparaaaoracional, oreconhecimentodasubjetividadedooutro nopodeconsistirsomentenaantecipao de suas alegrias e sofrimentos. Nesse sentido, oamor-prpriodiferencia-sedoamordesi porqueelenosensinaanosinteressarno somentepelaperspectivaqueooutropossui sobreumassuntoemgeral,massobresua perspectiva em relao a um objeto determi-nado, a saber, sobre ns mesmos. Isso signi-ca dizer que, se algum quer fazer com que o outro tenha uma boa opinio sobre si, deve procurar se apresentar com aspectos determi-nados de si mesmo que possam inuenciar os sujeitos que se encontram em outra situao, fazendocomqueosujeitopercebasuarepre-sentao pblica de tal forma que possa avali-la positivamente (NEUHOUSER, 2009, p. 48). Emsntese,oamor-prpriotorna-se construtivoporqueimpeleaaohumanaa racionalizar-seprogressivamente,provocan-donosujeitosuadescentraonumadupla perspectiva,comoexignciadelevarem considerao a perspectiva do outro e, ao fazer isso,depensarsobresimesmo.Comoarma Neuhouser (2009): Comseuinteresseconsistindonomodo como visto por outros sujeitos, parece ser o amor prprio particularmente capaz de exi-girdecadaserhumanoaquelacapacidade deauto-objetivaoqueapressuposio de sua auto-avaliao racional (vernnftige Selbsteinschtzung). (p. 49) Nesse sentido, o amor-prprio torna-se construtivo porque, ao possibilitar a considera-o da perspectiva do outro, conduz o sujeito a reetir sobre si mesmo tomando como parme-tro um ponto de vista externo. Se com isso ca estabelecido o aspecto construtivo do amor-prprio, como se vincula a ele a necessidade de educao? A resposta mais imediata consiste em armar que, se a exign-cia de levar em considerao a perspectiva do outro constitutiva da sociabilidade humana e isto porque contm em germe a possibilidade da autorreexo, qual se ligam tanto a liberdade como a moralidade humana, o fato que nin-gumjnascecomacapacidadeinteiramente pronta de se colocar no lugar do outro e muito menosdesecolocareticamente(normativa-mente) no lugar do outro. Portanto, tal capaci-dade precisa ser educada. No h dvida de que Rousseau empre-endeu, posteriormente ao Segundo discurso, so-bretudo no Emlio, esforos detalhados no sen-tido de mostrar a importncia da educabilidade do amor-prprio e das diculdades inerentes a taltarefa.Oquesepoderiacompreendera comoaspectosdeumaeducaoprtica aparece no esboo de um projeto de educao naturalesocialdesenvolvidoaolongodos cincolivrosquecompemareferidaobra9. Nestadupladimensodeummesmoprojeto, que visa a formao para a maioridade, desta-ca-se o modo singular com o qual o genebrino pensaarelaopedaggicaentreeducadore educando,indicandooslimiteseosdesaos de tal relao. No mbito da educao natural, por exemplo, trata-se de proteger ao mximo a criana da invaso viciosa do mundo adul-to, colocando-a em contato permanente com a 9.Coordeneiumprojetodeinvestigao,duranteosanosde2008e 2009, que teve como o condutor o papel do educador como governante no Emlio de Rousseau. Os resultados de tal investigao sairo em breve numa coletnea (DALBOSCO, 2011).495 Educao ePesquisa, So Paulo, v.37,n.3, p.481 - 496, set./dez. 2011.RefernciasBUCK, Gnter. Selbsterhaltung und Historizitt. In: EBELING, Hans. Subjektivitt und Selbsterhaltung: Beitrge zur Diagnose der Moderne. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, p. 97-121.DALBOSCO, Claudio Almir. Crtica cultura, sociabilidade moral e amour de lordre em Rousseau. In: Contexto & Educao, ano XXIV, n. 82, 2009, p. 13-33.______. Perfectibilit e formao humana no pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Passo Fundo, 2010a. (Ensaio indito) ______. Pragmatismo, teoria crtica e educao: ao pedaggica como mediao de signicados. Campinas: Autores As-sociados, 2010b.______ (Org.). Filosoa e educao no Emlio de Rousseau: o educador como governante. Campinas: tomo & Alnea, 2011. HENRICH, Dieter. Die Grundstruktur der modernen Philosophie. In: EBELING, Hans. Subjektivitt und Selbsterhaltung: Beitrge zur Diagnose der Moderne. 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(Os Pensadores.)Recebido em: 04.08.2010Aprovado em: 11.12.2010Claudio Almir Dalbosco professor do curso de Filosoa e do Programa de Ps-graduao em Educao da Universidade de Passo Fundo (RS).natureza, visando o fortalecimento de seu corpo e o renamento de seus sentidos. nesse sen-tido que a educao natural concebida como educao negativa. No mbito da educao so-cial(moral),porsuavez,quandooeducando jteriaatingidoumaidaderazovel,trata-se deacompanh-loemseuingressodenitivo esoberanonasociedadeadulta.Ora,tantona educao natural como social destaca-se o pa-pel do educador como governante que, para po-der executar adequadamente sua tarefa, precisa saber,antesdetudo,governarasimesmo,e issosignicadizerqueeleprecisaaprendera dominar suas paixes odientas e irascveis.