aspectos Éticos nas pesquisas qualitativas

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1 ASPECTOS ÉTICOS NAS PESQUISAS QUALITATIVAS MARIA LUISA SANDOVAL SCHMIDT Associação entre ética e pesquisas qualitativas abre um leque de abordagens possíveis, correspondentes à riqueza e à diversidade de métodos que dão corpo às suas práticas. Embora não se possa afirmar que todas as propostas compartilhem uma única visão do que seja a ética em pesquisa, a eleição de um ponto de partida capaz de interrogá-las é necessária, dada a natureza ampla do tema aqui sugerido. Parte-se, pois, do caráter intrínseco e constitutivo da ética nas metodologias qualitativas em ciências humanas e sociais, quando praticadas a partir de relações de colaboração e interlocução entre pesquisadores e “pesquisados”. A colaboração e/ou interlocução como atmosfera de muitos exemplos de investigações participativas supõe, do pesquisador, uma constante atividade auto-reflexiva, bem como a elaboração da problemática do outro, não mais como “objeto”, mas como parceiro intelectual no exame do fenômeno que se quer conhecer. São exemplos de pesquisa em que não está em jogo estudar ou compreender o outro, mas sim estudar ou compreender um fenômeno ou acontecimento com o outro. Nesse sentido, a experiência deste outro é a referência para a abertura de perspectivas e pontos de vista que confrontam e dialogam com os pontos de vista do pesquisador. A pesquisa desdobrase no diálogo e na confrontação de lugares sociais e culturais e na interrogação sobre diferenças e convergências que circulam o fenômeno estudado. Auto-reflexão e autêntico respeito pela alteridade formam como que um território no qual a pesquisa se instala e acontece. São elementos, por isso, que sugerem ou suscitam o conceito de ética como morada ou modo de habitar o mundo e, mais particularmente, o mundo da produção do conhecimento. A prática da pesquisa contempla, nessa perspectiva, por um lado, a atualização de atitudes e valores quanto à direção e à serventia do conhecimento e, por outro, a interrogação sobre as dimensões políticas e ideológicas do saber produzido no diálogo com um outro. Por dimensão política compreendem-se as relações de poder (dominação ou emancipação) nas práticas de pesquisa, incluindo a geografia dos lugares de escuta, fala e decisão na condução de todas as fases da investigação. Por dimensão ideológica entende-se a produção de efeitos de reconhecimento, desconhecimento, estranhamento e conhecimento no plano das representações do outro (Althusser, 1974; Guilhon Albuquerque 1978, 1980; Schmidt, 1984).

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Aspectos Éticos Nas Pesquisas Qualitativas

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    ASPECTOS TICOS NAS PESQUISAS QUALITATIVAS

    MARIA LUISA SANDOVAL SCHMIDT

    Associao entre tica e pesquisas qualitativas abre um leque de abordagens possveis, correspondentes riqueza e diversidade de mtodos que do corpo s suas prticas.

    Embora no se possa afirmar que todas as propostas compartilhem uma nica viso do que seja a tica em pesquisa, a eleio de um ponto de partida capaz de interrog-las necessria, dada a natureza ampla do tema aqui sugerido.

    Parte-se, pois, do carter intrnseco e constitutivo da tica nas metodologias qualitativas em cincias humanas e sociais, quando praticadas a partir de relaes de colaborao e interlocuo entre pesquisadores e pesquisados.

    A colaborao e/ou interlocuo como atmosfera de muitos exemplos de investigaes participativas supe, do pesquisador, uma constante atividade auto-reflexiva, bem como a elaborao da problemtica do outro, no mais como objeto, mas como parceiro intelectual no exame do fenmeno que se quer conhecer. So exemplos de pesquisa em que no est em jogo estudar ou compreender o outro, mas sim estudar ou compreender um fenmeno ou acontecimento com o outro. Nesse sentido, a experincia deste outro a referncia para a abertura de perspectivas e pontos de vista que confrontam e dialogam com os pontos de vista do pesquisador. A pesquisa desdobrase no dilogo e na confrontao de lugares sociais e culturais e na interrogao sobre diferenas e convergncias que circulam o fenmeno estudado.

    Auto-reflexo e autntico respeito pela alteridade formam como que um territrio no qual a pesquisa se instala e acontece. So elementos, por isso, que sugerem ou suscitam o conceito de tica como morada ou modo de habitar o mundo e, mais particularmente, o mundo da produo do conhecimento.

    A prtica da pesquisa contempla, nessa perspectiva, por um lado, a atualizao de atitudes e valores quanto direo e serventia do conhecimento e, por outro, a interrogao sobre as dimenses polticas e ideolgicas do saber produzido no dilogo com um outro. Por dimenso poltica compreendem-se as relaes de poder (dominao ou emancipao) nas prticas de pesquisa, incluindo a geografia dos lugares de escuta, fala e deciso na conduo de todas as fases da investigao. Por dimenso ideolgica entende-se a produo de efeitos de reconhecimento, desconhecimento, estranhamento e conhecimento no plano das representaes do outro (Althusser, 1974; Guilhon Albuquerque 1978, 1980; Schmidt, 1984).

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    Dessa forma, a concepo de tica como morada no se apresenta como antdoto para os efeitos polticos e ideolgicos produzidos na e pela pesquisa, mas, ao contrrio, como considerao destes efeitos no mbito das escolhas e responsabilidades do pesquisador.

    As conexes entre tica, poltica e ideologia so, portanto, um primeiro aspecto a apreender com e na pesquisa qualitativa de tipo participante.

    As relaes de poder e os efeitos ideolgicos no se situam num tempo posterior ao processo de pesquisa como modos esprios ou corretos de apropriao dos produtos da cincia. Estes efeitos so produzidos no decorrer da pesquisa e constituem as relaes de colaborao e interlocuo. A tica reporta, exatamente, ao modo de lidar, tematizar e agir no interior dessas relaes, quase sempre, de partida, assimtricas e hierrquicas.

    Mtodo e tica convergem na pesquisa participante em que um dos intentos perceber, abrigar e pr em discusso diferenas, principalmente entre pesquisador e colaborador ou interlocutor e, ainda, orquestrar certa pluralidade de vozes, sem que diferenas consolidem posies hierrquicas, valorizadas em termos de mais e de melhor.

    A convergncia de mtodo e tica pressupe, portanto, o encontro de sujeitos autnomos. A autonomia, como aponta Chaui (1994), disposio para discutir consigo e com os outros o sentido dos valores e capacidade de outorgar a si mesmo regras de conduta. Por essa razo, o sujeito autnomo problematiza os valores hegemnicos num tempo e lugar, julgando-os a certa distncia da coao externa: autonomia autodeterminao.

    A autodeterminao, contudo, complementar considerao pelos outros, na medida em que, para o indivduo autnomo, os outros so fins em si mesmos e no meios para sua liberdade ou felicidade.

    A estreita afinidade entre tica e autonomia faz pensar que a tica da pesquisa participante requer pesquisadores autnomos, com aptido para assumir responsabilidade por seus atos na conduo das investigaes, julgar suas intenes e recusar a violncia fsica ou simblica contra si e contra os outros. Requer, de forma complementar, pesquisadores empenhados no respeito autonomia de seus colaboradores e interlocutores.

    O tema da autonomia remete a um problema essencial do debate sobre tica em pesquisa, especialmente a partir da vigncia da Resoluo196/96 do Conselho Nacional de Sade que, construda para regrar procedimentos de pesquisa mdica, passou a interferir numa vasta rea de investigaes em cincias sociais e humanas (Guerriero, 2006).

    Trata-se, pois, das contradies entre o estabelecimento de normas e regras por instncias externas de regulamentao e controle tico e a defesa da autonomia do pesquisador nas pesquisas

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    qualitativas, principalmente nas que abraam metodologias participantes, etnogrficas e com relatos orais.

    No o caso de negar a necessidade das leis, normas e regras para a vida social e, mais particularmente, para esferas da pesquisa cientfica.

    o caso, no entanto, de preocupar-se com a hegemonia de uma mentalidade jurdica e, algumas vezes, infelizmente, meramente burocrtica, em busca de um controle tico das pesquisas cientficas.

    No incio destes apontamentos, mostrou-se que dimenses polticas e ideolgicas perpassam as pesquisas cientficas. As metodologias compreensivas tendem a considerar estas dimenses como constitutivas do processo de construo ou produo do conhecimento, diferentemente de outras abordagens que tomam o mtodo como dispositivo responsvel pela excluso ou controle dessas dimenses.

    Talvez seja possvel pensar que, no plano tico, o formal e o jurdico possam cumprir funo semelhante do mtodo que visa excluir o poltico e o ideolgico do campo de investigaes, ou seja, a de pr a tica numa posio exterior ao processo de investigao, em geral, antes e/ou depois.

    A referncia para essa hiptese so idias que localizam os problemas ticos no momento de convocao de indivduos ou grupos para participar como sujeitos de pesquisa ou, posteriormente, no uso de seus resultados ou produtos, resguardando os procedimentos de pesquisa como neutros ou como legais, caso os sujeitos da pesquisa tenham manifestado sua autorizao.

    Essa direo preocupante porque pode incrementar a heteronomia no lugar da autonomia, no pela existncia de normas e regras em si, mas pelo modo como essas normas e regras podem vir a substituir as atividades de pensamento e julgamento que formam o indivduo autnomo.

    A heteronomia, oposta autonomia, define-se pela incapacidade do indivduo de dar-se a si mesmo regras, normas ou leis e pela necessidade de receb-las de fora, respondendo s suas exigncias de modo irrefletido e automtico, apegando-se formalmente ordem jurdica.

    H, certamente, uma contradio importante na proposta de controle externo da tica de pesquisas envolvendo seres vivos: o controle externo nega a autonomia, definidora da tica, em favor da heteronomia.

    Esta contradio pode ser trabalhada a partir de perguntas cujas respostas so verdadeiros desafios a quem se dedica formao tica, por exemplo: como evitar que normas e regras de conduta na pesquisa se tornem dispositivos de evaso da responsabilidade, da reflexo e do julgamento prprios do indivduo autnomo que tem a tica como forma de habitar o mundo? Ou, ainda, como instituir instncias guardis da tica em pesquisa com vocao formativa e de

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    orientao? Como combater a apropriao exclusivamente jurdica e burocrtica do debate sobre tica em pesquisa? Como formar pesquisadores no esprito da atividade tica?

    Essas perguntas, e outras que se possam formular, so provocaes para as quais as solues

    no se apresentam de maneira fcil. Como indica Chaui (1994), no texto j citado, a tica terreno de um saber prtico, feito de deliberaes e escolhas sobre o possvel e sobre o que depende da vontade dos homens: sua matria-prima so valores e no fatos.

    Parece, porm, claro que a educao tem papel a desempenhar no encaminhamento dessas questes e, nesse sentido, a tradio das pesquisas participantes pode oferecer subsdios interessantes para a formao tica.

    O trabalho de campo, o encontro etnogrfico ou a convivncia com grupos e coletividades como parte da pesquisa participante representam uma experincia formativa preciosa, pois se constituem em experincia prtica que engaja o pesquisador em relaes concretas e cotidianas com outros, como ele, autnomos, obrigando-o a responder pessoalmente pela distribuio democrtica dos lugares de fala, escuta e deciso durante a pesquisa, comprometendo-o com as formas de apropriao e destinao do conhecimento elaborado e com a apreciao crtica de efeitos de dominao ou de emancipao do conhecimento e sua divulgao (Schmidt, 2006).

    No trabalho de campo, a auto-reflexo e a relao com outros so fundadoras da pesquisa. Por outro lado, a forma de pesquisar traduz, ao mesmo tempo, o mtodo e sua tica.

    Como experincia prtica, pessoal e intransfervel, o trabalho de campo exibe de modo mais contundente a insuficincia de normas e regras como determinantes por si da tica, assim como denuncia a precariedade do mtodo que, em geral, reinventado nas situaes concretas de investigao. Na identificao de ambos, mtodo e tica, conta, sobremaneira, o exerccio autnomo da ao e do julgamento do pesquisador.

    O saber acumulado pelas e nas pesquisas participantes permite indicar, no lugar de normas e regras de conduta definidas, princpios norteadores que auxiliam o pesquisador na conduo da pesquisa e no exame de suas atitudes ante os colaboradores e interlocutores.

    Princpios como a busca de interlocuo e dilogo, visando compreender o sentido e os significados da experincia de outros prximos ou distantes; distribuio democrtica de lugares de escuta, fala e deciso entre pesquisadores e interlocutores; disposio para negociar e refazer pactos ou contratos de trabalho entre pesquisadores e interlocutores; empenho no esclarecimento, fidelidade, respeito e solidariedade s formas de viver dos colaboradores e cuidado em suas transposies para texto ou outros modos de inscrio; anteviso e preocupao com eventuais efeitos polticos e ideolgicos nocivos imagem pessoal e social de interlocutores individuais ou coletivos; abertura para, sempre que possvel, revisar com colaboradores transcries de relatos

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    orais e de observaes, bem como de textos interpretativos; atribuio de crditos aos interlocutores; discusso sobre a pertinncia do sigilo e sobre as formas de divulgao de resultados, so exemplos de orientaes advindas da prtica da pesquisa participante.

    O teor dos princpios permite, talvez, visualizar o modo como mtodo e tica esto imbricados, solicitando, em todos as fases da pesquisa e mesmo aps o seu trmino, a atividade e a autonomia do pesquisador.

    REFERNCIAS

    Althusser, L. Ideologia e aparelhos ideolgicos do Estado. Porto: Presena, 1974.

    Chaui, M. Convite filosofia. So Paulo: tica, 1994.

    Guerriero, I. C. Z. Aspectos ticos das pesquisas qualitativas em sade. Doutorado. So Paulo: Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo, 2006.

    Guilhon Albuquerque, J. A. Metforas da desordem: o contexto social da doena mental. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

    . Instituio e poder: anlise concreta das relaes de poder nas instituies. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

    Schmidt, M. L. S. Psicologia: representaes da profisso. Mestrado. So Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo, 1984.

    . Pesquisa participante: alteridade e comunidades interpretativas. Psicologia USP, 17(2):11-41, 2006.

    SCHIMIDT, Maria Luisa Sandoval. Aspectos ticos nas Pesquisas Qualitativas. In: GUERRIERO, Iara C. Z.; SCHMIDT, Maria L. S.; ZICKER, Fbio. (Orgs). tica nas Pesquisas em Cincias Humanas e Sociais na Sade. So Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, p.47-52.