as várias faces do riso

18
AS VÁRIAS FACES DO RISO THE MANY FACES OF LAUGHTER Fernando Moreno da Silva 1 RESUMO: O riso se confunde com a própria historia do homem. Desde a Antigüidade, sabe-se que sempre houve o interesse de estudar esse fenômeno tão presente na raça humana. Neste trabalho, pretendeu-se traçar um percurso do riso ao longo da história para mostrar sua riqueza e complexidade. Nessa viagem, far-se-á um registro dos teóricos que dele se ocuparam, além dos recursos que o suscitam no homem. PALAVRAS-CHAVE: Riso, história, humor. ABSTRACT: The laugh if confuses with the proper history of the man. Since the Antiquity, one knows that always it had the interest to study this so present phenomenon in the race human being. In this work, it was intended to trace a passage of the laugh to the long one of history to show to its wealth and complexity. In this trip, a register of the theoreticians who of it if had occupied, beyond the resources will become that excite it in the man. KEY WORDS: Laugh, history, mood. 1. Introdução Definir o riso talvez seja uma das tarefas mais penosas, já que se trata de um assunto ambíguo. Sua ambivalência é tamanha a ponto de imputar a seus criadores, ou seja, comediógrafos e escritores, um comportamento não condizente com suas respectivas obras. É sabido que esses autores, que lidam com o riso, têm a fama de ser criaturas extremamente amargas. Entre eles estão Molière, Swift, Hogarth e outros. Há uma passagem brilhante em que Balzac (apud MINOIS, 2003, p. 566) descreve Bixiou: “Sombrio e triste consigo mesmo, como a maior parte dos cômicos”. Ao mesmo tempo em que pode ser facilmente compreendido e definido — estímulo desencadeador do reflexo motor, fruto da contração coordenada de 15 músculos faciais —, sua complexidade pode irromper em milhares de páginas, nunca alcançando uma definição consensual. Em virtude de sua grandiosidade e abrangência, o riso atingiu a interdisciplinaridade. Ele é estudado por Literatura, Semiótica, História, Psicologia, Filosofia, Sociologia, etc. Uma das tendências atuais, sobretudo entre historiadores, é de considerar o riso como um dos elementos 1 Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa (UNESP/Araraquara-SP). E-mail: [email protected] Fernando Moreno da Silva 211

Upload: primolevi

Post on 26-Sep-2015

39 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

.

TRANSCRIPT

  • AS VRIAS FACES DO RISO

    THE MANY FACES OF LAUGHTER

    Fernando Moreno da Silva1

    RESUMO: O riso se confunde com a prpria historia do homem. Desde a Antigidade, sabe-se que sempre houve o interesse de estudar esse fenmeno to presente na raa humana. Neste trabalho, pretendeu-se traar um percurso do riso ao longo da histria para mostrar sua riqueza e complexidade. Nessa viagem, far-se- um registro dos tericos que dele se ocuparam, alm dos recursos que o suscitam no homem.PALAVRAS-CHAVE: Riso, histria, humor.

    ABSTRACT: The laugh if confuses with the proper history of the man. Since the Antiquity, one knows that always it had the interest to study this so present phenomenon in the race human being. In this work, it was intended to trace a passage of the laugh to the long one of history to show to its wealth and complexity. In this trip, a register of the theoreticians who of it if had occupied, beyond the resources will become that excite it in the man. KEY WORDS: Laugh, history, mood.

    1. IntroduoDefinir o riso talvez seja uma das tarefas mais penosas, j que se trata de um assunto

    ambguo. Sua ambivalncia tamanha a ponto de imputar a seus criadores, ou seja,

    comedigrafos e escritores, um comportamento no condizente com suas respectivas obras.

    sabido que esses autores, que lidam com o riso, tm a fama de ser criaturas extremamente

    amargas. Entre eles esto Molire, Swift, Hogarth e outros. H uma passagem brilhante em que

    Balzac (apud MINOIS, 2003, p. 566) descreve Bixiou: Sombrio e triste consigo mesmo, como a

    maior parte dos cmicos.

    Ao mesmo tempo em que pode ser facilmente compreendido e definido estmulo

    desencadeador do reflexo motor, fruto da contrao coordenada de 15 msculos faciais , sua

    complexidade pode irromper em milhares de pginas, nunca alcanando uma definio

    consensual.

    Em virtude de sua grandiosidade e abrangncia, o riso atingiu a interdisciplinaridade. Ele

    estudado por Literatura, Semitica, Histria, Psicologia, Filosofia, Sociologia, etc. Uma das

    tendncias atuais, sobretudo entre historiadores, de considerar o riso como um dos elementos

    1 Doutor em Lingstica e Lngua Portuguesa (UNESP/Araraquara-SP). E-mail: [email protected]

    Fernando Moreno da Silva

    211

  • fundamentais para compreender costumes e hbitos do passado. J existe, inclusive na Holanda,

    uma Associao Internacional de Historiadores do Humor.

    curioso notar que o riso, algo natural e comum, to antigo quanto o prprio homem,

    continua a atrair audincia. Quanto mais dele se apropriem, mais indecifrvel ele permanece.

    Como objeto de estudo, ele remonta Antigidade, quando Aristteles provavelmente o teria

    desenvolvido no segundo livro da Potica. O fato de nunca ter sido encontrado tal livro talvez

    fosse um pressgio do interesse que o riso despertaria nos sculos vindouros. Ainda que o tenha

    tangenciado no Livro I da Potica, a verdade que esse fenmeno careceu de maiores detalhes no

    tratamento dado pelo filsofo grego.

    Saindo da Antigidade, chega-se ao perodo contemporneo de sorte enigmtica. Somos

    todos filhos de O Capote, de Gogol, disse Dostoievski. Por que o escritor russo teria construdo

    essa afirmao? A despeito de tratar-se de uma colocao que busque parmetros literrios, por

    concernir a uma narrativa fantstica, Akaki Akakivich, personagem principal do conto

    gogoliano, concorre para definir o fenmeno do riso: dialtico, uma mixrdia de alegria e tristeza,

    como a esquisitice do trabalho engajado de um copista-expedidor e a dor de ter toda sua

    satisfao roubada, depois de depositada num capote.

    No obstante seu carter contraditrio, o fenmeno do riso est intimamente ligado ao

    prazer. E o prazer um dos pilares da felicidade. Segundo o psiclogo americano Martin

    Seligman, da Universidade da Pensilvnia, a felicidade a soma de trs elementos: prazer,

    engajamento e significado.

    Engajamento seria a dedicao a uma atividade na qual se possa usar todo o talento,

    buscando desafios a serem conquistados; significado, buscar o sentido para a vida, em geral pela

    religio, o modo mais tradicional. Prazer, entre outras coisas, seria uma sensao agradvel e de

    alvio. Rir uma das formas de conquistar prazer.

    V-se, por conseguinte, que o riso e os objetos risveis so complexos, mas fascinantes.

    2. Origem e vicissitudes

    O riso confunde-se com a prpria histria do homem. Antes de qualquer coisa, ele um

    fenmeno psicofisiolgico, sendo, portanto, inato ao ser humano. No toa que desde a

    Antigidade Clssica desperta o interesse de estudiosos.

    Fernando Moreno da Silva

    212

  • Entre as vrias histrias que relatam seu nascimento, o vnculo com a mitologia grega se

    destaca. Hera, mulher de Zeus, depois de uma briga com o marido, abandona-o, escondendo-se

    nas montanhas. Zeus, para provoc-la e a fazer voltar, espalha o boato de que encontrou uma

    nova mulher, anunciando seu prximo casamento. Para insult-la ainda mais, manda construir

    uma esttua, que coberta por um vu, representando a nova noiva. Curiosa e em fria, Hera

    retorna para conhecer a suposta noiva. Sem perder tempo, aproxima-se da esttua. Ao retirar o

    vu que encobria a escultura, para seu espanto, a esttua no representava mulher alguma.

    Descobrindo a farsa, cai em gargalhadas. Eis, segundo a mitologia, o nascimento do riso.

    Na Antigidade, o riso sempre esteve ligado aos deuses, tendo um significado divino.

    Presente nas festas, esse riso no possua o sentido de diverso, como se conhece hoje. Dantes,

    ele correspondia aos preparativos de sacrifcios. O riso festivo era a manifestao da orgia e sua

    autodestruio. Nessas comemoraes, os escravos desfrutavam de liberdade, portando-se at

    como senhores, sempre com muita zombaria e brincadeira. Ao final, um escravo era escolhido e

    sacrificado para representar o fim do caos e a volta da ordem e da norma. Na Babilnia, o

    mesmo ritual se repetia. Um escravo se tornava um rei cmico: dava ordens e desfrutava das

    concubinas reais. As regalias eram gozadas por cinco dias. Ao cabo do perodo, o escravo era

    executado. Todas as festas eram em homenagem ao deus Dioniso, o deus grego e risonho da

    vinha e da embriaguez.

    Houve tambm o riso como ritual, em ocasies de morte. Na Trcia, o falecimento no

    era visto como uma perda, uma tristeza. Pelo contrrio, as mulheres morriam rindo sobre o

    tmulo de seus maridos. E o nascimento no era celebrado, mas recebido com lamentao, pois a

    vida era considerada um mal.

    Juntamente com as grandes festas dionisacas, o teatro grego antigo v seu esplendor. Em

    501 a.C., inicia-se o concurso de tragdias; quatro anos mais tarde, o de comdias.

    A tragdia era a grande arte; objetivava melhorar o homem, aproximando-o dos deuses. A

    comdia surge como uma arte secundria, cuja funo era descontrair os espectadores, afinal, era

    apresentada nos intervalos das grandes peas. Procurava mostrar o homem rebaixado, lidando

    com figuras inferiores, tanto no sentido moral (polichinelo, tolo, ignorante, etc.), quanto no

    mbito social (servos e escravos). Tendo como desgnio exagerar os defeitos humanos, a comdia

    explorava o ridculo.

    Fernando Moreno da Silva

    213

  • Pode-se dizer que o surgimento da comicidade se associa ao incio da comdia, na Grcia.

    E o grande gnero dramtico se enriquece ao assistir miscelnea, culminando com a

    tragicomdia. Para esse enriquecimento, h o trabalho de grandes figuras.

    Uma delas, Aristfanes (445 a 386 a.C.), ensejou a independncia do teatro do riso, com o

    riso agressivo e devastador; de suas crticas mordacssimas no escapava nenhum personagem

    pblico: nem Scrates nem Zeus. Com mpeto, ia de encontro aos maus homens polticos,

    demonstrando-se assaz conservador, pois almejava atacar os desvios e os inovadores para manter

    a ordem.

    Menandro (342 a 292 a.C.), qui o mais famoso da nova comdia, tratou o riso num tom

    bem prximo do veio moderno, ou seja, o entretenimento. O riso agora era um alvio para as

    angstias e temores, permitindo ao pblico esquecer seus problemas.

    Esse novo tratamento foi muito bem percebido por Herdoto (apud MINOIS, 2003, p.

    46): no sabeis que s se estica um arco quando h necessidade e que, depois que foi usado,

    precisa ser afrouxado? Se ns o mantivermos sempre tenso, ele arrebenta e no poderemos mais

    utiliz-lo quando for necessrio. Essa parbola figurativiza a necessidade do homem de relaxar,

    olvidando-se, s vezes, das coisas srias. No se hesita ao dizer que a obra de Menandro foi

    precursora no trabalho do entretenimento.

    A despeito desse trabalho com o riso de alguns autores, por outros ele no era benquisto.

    o caso de Plato. Alis, a mais antiga formulao terica sobre o riso e o risvel encontra-se

    num trecho de sua obra Filebo. Em Plato, tem-se um conceito negativo do riso. O prazer

    cndido e a nica forma de apreenso da verdade esto na Filosofia. Para ele, o riso seria um

    prazer falaz, prprio da multido medocre de homens despojados de razo.

    Aristteles, nos passos de Plato, adverte que preciso usar o riso com parcimnia. Em

    sua poca, a tragdia era o grande gnero, estando a comdia ainda em desenvolvimento. Na obra

    Partes dos animais, Aristteles define o diafragma como o elemento que separa o alto e o baixo do

    homem, constituindo o centro frnico. Uma das clebres frmulas que lhe atribuda, o riso

    prprio do homem, na verdade, nunca teria sido pronunciada por ele. Duas mximas que

    deveras foram de sua autoria so: o homem o nico animal que ri e que nenhum animal ri,

    exceto o homem. Em que pese similitude entre as frases, h distino. Na primeira, o riso

    pertence ao homem, no sendo homem o ser que no rir. Na segunda, o riso to-somente uma

    caracterstica humana, havendo a possibilidade de ser homem quem nunca sequer riu.

    Fernando Moreno da Silva

    214

  • Nas obras de Plato e Aristteles no h um tratamento exclusivo do riso. Ele

    desdobramento de outros objetos. Na Antigidade, Ccero e Quintiliano so os primeiros autores

    em cujos textos h tratamento exclusivo do riso. Ccero, com a obra De Oratore, escrita em 55

    a.C., e Quintiliano, com Institutio Oratoria, escrito entre 92 e 94 d.C.

    A bufonaria igualmente teve incio no sculo V a.C. Os bufes, um espcime de bobo da

    corte, era uma figura muito popular. Estavam sempre presentes nos fartos banquetes a fim de

    alegrar e divertir os convivas. Afora a Grcia, eles marcavam presena na Prsia, Egito, entre os

    filisteus e outras naes. Um dos bufes mais clebres foi Eudikos, famigerado, entre outras

    coisas, por imitar intrpidos lutadores, assistiu na Grcia, no sculo IV a.C. A bufonaria foi

    apreciada e bastante vista at o Baixo Imprio Romano.

    Como prova de que o riso estava arraigado na sociedade antiga, h registros em

    manuscritos dos sculos IV e III a.C. que constituem manuais de chalaa e compilaes de

    pilhrias. Um exemplo: o professor de medicina responde ao paciente que tem vertigens durante

    meia hora depois de acordar: s acordar meia hora antes!.

    Uma outra prova so as festas saturnais. Institudas no Imprio Romano, evocando e

    enaltecendo Saturno, as comemoraes eram repletas de alegria, simulando um mundo s

    avessas. Tal balbrdia figurava um retorno ao reino de Saturno, que, segundo a lenda, foi a era da

    felicidade. Em razo de suas extravagncias, despertando a desconfiana dos altos escales, a

    comemorao findou no Baixo Imprio.

    Alis, o riso no mundo romano sofreu uma degradao contnua. Tipificado como um

    riso satrico, nos sculos III e IV ele comea a ser perseguido pelas autoridades. Alm disso, com

    o fortalecimento do Cristianismo e o mito de que Jesus nunca riu, a Idade Mdia, em seu

    limiar, apregoa a imagem do riso diablico. V-se, ento, a embate entre cristos e pagos. As

    festanas passam a ter um significado pago.

    Na Antigidade, os deuses riam, contudo o riso era condenado pelos filsofos,

    porquanto, segundo estes, afastava o homem da filosofia, considerada a fonte pura de prazer,

    consoante salientado alhures. Na Idade Mdia, no entanto, em textos teolgicos, o riso diferencia

    o homem de Deus. O riso prprio do homem, visto que no havia registro na Bblia de que

    Jesus teria rido. Por conseguinte, tanto filsofos quanto telogos condenavam a fraqueza humana

    do riso.

    Voltando Sagrada Escritura, ela dividida, como se sabe, em duas partes: Velho e Novo

    Testamento. Neste est a doutrina do cristianismo. Naquele, anterior ao nascimento de Cristo,

    Fernando Moreno da Silva

    215

  • esto as histrias do povo hebreu. S no Velho Testamento h o relato do riso. E uma das

    passagens mais marcantes quando Deus promete um filho a Abrao e a Sara, ambos na velhice.

    Ao ouvir que conceberia um filho, Sara, em virtude de sua idade avanada, ri. Este

    comportamento ressoa como uma troa ao Todo-poderoso. Por conseqncia, o filho da

    promessa recebe o nome de Isaac, que em hebraico significa Deus ri, em lembrana do

    cepticismo de Sara.

    Vrios outros exemplos poderiam ser enumerados, como a passagem em que o profeta

    Elias zomba das preces dos profetas de Baal, ou quando Ham, prncipe-mor do rei Assuero, foi

    obrigado a humilhar-se, puxando um cavalo no qual se assentava seu maior mulo, o judeu

    Mardoqueu, gritando e o exaltando por toda a cidade.

    No tocante ao Novo Testamento, o riso condenado por ser diablico. Sat aflora como

    uma potncia do mal, como uma fora que deve ser rechaada. Ele citado 188 vezes,

    desnudando a aproximao do Juzo Final. A partir de ento, proibido rir.

    O mais ferrenho adversrio do riso, entre os seguidores do Cristianismo, foi Joo

    Crisstomo (344 a 407 d.C.), qualificando o riso como satnico. Se colocassem em prtica seus

    sermes, jamais o homem exibiria seus dentes. Nos mosteiros na Alta Idade Mdia, era

    violentamente punido, lanando mo at de chicotes para infligir os transgressores.

    Embora se tenha imposto toda uma rigidez coercitiva, o riso no parou. Ainda que no se

    recomende o uso de lugar-comum, aqui profcuo mencion-lo: o feitio virou contra o

    feiticeiro. A igreja, nesse novo estgio, esteve na berlinda. Enquanto os gregos e romanos

    assistiram, respectivamente, aos risos divino e satrico, a Idade Mdia se caracterizou com o riso

    parodstico. A imitao ridcula medieval provinha, maiormente, de elementos sagrados, sendo os

    ritos do catolicismo, alm de passagens bblicas, os principais alvos. O testemunho advm de um

    texto latino annimo Coena Cypriani , escrito entre os sculos V e VIII, que escarnece dos

    atos e ditos de personagens bblicos.

    Alguns diziam que essas pardias possuam uma funo didtica, facultando a

    memorizao dos episdios religiosos. Eis um dos motivos para o advento do riso entre os

    pregadores. Devido a missas enfadonhas, implicando o sono dos fiis durante o culto, foi iniciada

    entre esses homens de plpito a prtica do riso para despertar os fiis e manter sua ateno.

    Essa nova postura precedida pela Festa dos Bobos, que responsvel pela introduo

    do riso nos meios eclesisticos. Nasce entre os estudantes dos conventos, que comearam a

    zombar da liturgia. Como no rito catlico tudo rgido e repetitivo, qualquer deslize que sasse

    Fernando Moreno da Silva

    216

  • do normal era prontamente ridicularizado: comportamento do clero, hinos, oraes... a

    autoderriso clerical aceita pela igreja at por volta do sculo XVI.

    A verdade que a Idade Mdia soube manipular o riso, fazendo dele um instrumento

    para suas necessidades. Foi a partir do sculo XIII que telogos distinguiram dois tipos de riso: o

    bom e o mau. Este a zombaria e, simultaneamente, o riso fsico descontrolado e barulhento;

    aquele exprime alegria, devendo ser moderado e silencioso, quase um sorriso.

    Outra oposio verifica-se concernente ao carnaval, festa popular que se contrape

    viso sria das autoridades. Descrita por Mikhail Bakhtin em A cultura popular na Idade Mdia e no

    renascimento: o contexto de Franois Rabelais, o carnaval, herana das festas saturnais, tornou-se tpico

    da cultura popular, na qual o povo tinha oportunidade de extravasar, de libertar-se de um mundo

    regulamentado e de vencer o medo. Da o uso de mscaras monstruosas para zombar e exorcizar

    os temores e os tabus. Por isso, o riso carnavalesco uma pardia pelas fantasias. O mundo

    rabelaiseano do sculo XVI uma nova cosmoviso. H um processo de rebaixamento,

    elucidando o alto pelo baixo. Nessa inverso, o elevado e o sublime passam para o baixo

    corporal, explorando processos biolgicos fundamentais: absoro dos alimentos, excreo, sexo,

    odores, peido, sujeira, enfim, todas as funes que rebaixam o homem. A todo esse mundo

    hbrido das festividades carnavalescas Bakhtin dar o nome de realismo grotesco.

    Entretanto o riso grotesco no ter um tratamento negativo; simplesmente ser encarado

    como uma recreao. Para entend-lo, basta compreender o contexto histrico da Europa, no

    sculo XIV. Neste nterim, o continente assolado por inmeros infortnios: Guerra dos Cem

    Anos, peste negra, rumores da vinda do anticristo. Por tudo isso, o riso desdobra-se num

    paliativo, uma panacia para o sofrimento do povo. o rir para no chorar.

    Quando ele comea marcadamente a ganhar cunho popular, salta aos olhos o

    distanciamento entre as culturas popular e erudita. Esta busca a instruo, enquanto aquela insiste

    no questionamento e na desordem. Vrios folies, mascarados, fingem estar em festa para atacar

    autoridades e perpetrar saques. No reino de Lus XIII, formaram-se revoltas contra os fiscais de

    Richelieu por meio das festas. O carnaval torna-se suspeito. O riso contestado, sendo visto

    como baderna. Festas de mbito popular comearam a ser interditadas ou controladas, mormente

    depois da aliana entre a igreja catlica e a monarquia absolutista, os quais no mais toleravam as

    confuses. O carnaval acoimado de paganismo e intitulado de o dia do diabo.

    Nem mesmo o bobo do rei se desvencilhou da perseguio. Legado das bufonarias, a

    figura do bobo da corte foi muito querida na Idade Mdia. Mas com o caos vigente, o

    Fernando Moreno da Silva

    217

  • despotismo precisou exacerbar a luta contra a derriso. Destarte, a funo do bobo tornou-se

    insustentvel, desaparecendo perto do sculo XVIII. Afinal, nesta poca predominava a conduta

    sria, racional e cartesiana, rechaando os loucos.

    Por conseguinte, o riso na religio tambm foi terminantemente proibido, representando

    um atentado contra o sagrado. A partir desse momento, riso e f so incompatveis. At mesmo o

    Conclio de Trento, em 1564, condenou os que se valiam de episdios e palavras da Bblia em

    chacotas. Um outro documento Tratado dos jogos e diverses que podem ser permitidos ou que devem ser

    proibidos aos cristos segundo as regras da Igreja e o sentimento dos pais publicado em 1686 por Jean-

    Baptiste Thiers, doutor em teologia, esclarece como o clero deve reprimir o riso. Nele so

    proibidos a festa dos bobos e qualquer tipo de escrnio contra a religio, permitindo apenas o

    sorriso discreto fora do trabalho ou em dia de descanso.

    A igreja at recomendava que os pais no rissem diante dos filhos. E o domingo no

    deveria ser desfrutado para rir nem folgar, mas para chorar. Por subsumir o riso uma blasfmia

    ou ato diablico, um modo depreciativo de ver o mundo e de escarnecer das criaes de Deus,

    at a Contra-Reforma insurgiu-se: No riais nem digais nada que provoque o riso!, assim

    exortava Incio de Loyola (ibid., p. 339).

    No entanto essa onda de interdio no foi capaz de parar o riso. Para sobreviver, ele

    deixa de ser agressivo e grosseiro. Estilos como o burlesco, vergonhoso e ignbil, surgido na

    Frana, no reinado de Lus XIII, com linguagem popular e baixo calo, infringindo todos os

    tabus desmedidamente, no mais encontrou espao para atuar. Era mister refinamento.

    Essa nova tendncia eclode na segunda metade do sculo XVII, quando ele

    domesticado, comportando-se de forma mais moderada. A regra rir com inteligncia, fazendo

    uso de mtodos sutis e perspicazes para suscitar o riso. o momento em que a ironia ganha

    fora.

    A literatura igualmente se beneficia. A Idade Mdia viu a grande literatura explorar

    maciamente a Filosofia, Teologia ou Histria, ficando o riso circunscrito aos gneros populares,

    como a farsa e a comdia. No Renascimento, h um tratamento diferenciado, pois a grande

    literatura recebe outra abordagem. Rabelais, Cervantes, Shakespeare so alguns dos grandes

    escritores em cujas obras o riso privilegiado com grandiloqncia.

    O objeto das chalaas passa a ser a organizao social, no incidindo mais sobre os vcios

    e defeitos individuais. Os ditos sarcsticos, por assim dizer, tornam-se um instrumento pujante

    para atacar as mazelas pblicas. Em consonncia com essa trilha, em meio ao caos vigente, a

    Fernando Moreno da Silva

    218

  • stira poltica se esbalda num campo farto. Proliferam, no sculo do neocolonianismo, veculos

    jornalsticos de tom humorstico: A caricatura (1830), O Riso (1867), O Sorriso (1899), entre outros.

    Apesar da insurreio do riso, ele no consegue frear o descarrilamento da ordem social.

    Com o sculo XX vm as grandes guerras mundiais, grassando terror e insegurana. O riso torna-

    se a escapatria do homem para sobreviver s catstrofes. o pio do povo, a doce droga para

    a humanidade superar suas vergonhas. Depara-se novamente com o retorno dum slogan usado

    pelos romanos para divertir o povo: po e circo.

    Na sociedade da informao, o riso tambm ganha outra conotao, segundo alguns

    pesquisadores, que chegam a afirmar que impera a era do vazio. No avano da sociedade,

    alteraram-se os paradigmas e o modo de se organizar e de se orientar. Nessa sociedade ps-

    moderna, o novo acolhido como o velho: a inovao se banalizou; a indiferena, juntamente

    com o tom ldico, a dominante. Segundo o filsofo Lipovetsky (1989, p. 131), denncia

    trocista correspondente a uma sociedade baseada em valores reconhecidos substitui-se um humor

    positivo e desenvolto, um cmico teen-ager base de despropsito e sem pretenses. Ele defende

    a idia de que a mdia estabeleceu um ambiente relax, distendido, no qual o riso tem papel de

    destaque: Doravante, no h entrada para ningum que se leve a srio, ningum sedutor se no

    for simptico. (ibid., p. 132).

    3. As preocupaes tericas

    Antes de mencionar algumas teorias que discorrem sobre o riso, pertinente introduzir

    uma observao sobre a concepo da comicidade.

    Em virtude da herana do teatro grego, que contrapunha comdia a tragdia, esta

    oposio permaneceu durante os sculos vindouros, concebendo o riso como o contrrio do

    trgico. Segundo Eco (1984, p. 346), ambos se definem como violao de regra. No trgico, o

    texto detm-se longamente no reflexo das regras que so violadas. O trgico justifica a violao,

    mas no elimina a regra. [...] explica sempre por que o trgico deve incutir-nos temor e piedade.

    , tambm, universal, pois lana mo de temas usados em todas as pocas e por todas as culturas.

    J o cmico circunstancial e cultural. Cada pas tem costumes prprios. O engraado para um

    americano nem sempre o para um brasileiro. E as violaes de regra e vcios so

    inofensivamente praticados. O texto cmico no se detm na reflexo das normas, pois j esto

    Fernando Moreno da Silva

    219

  • pressupostas. Justamente porque as regras so aceitas, mesmo que inconscientemente, que sua

    violao sem motivos se torna cmica. (ibid., p. 347).

    A partir do sculo XVIII, a oposio entre trgico e cmico passa a no ser mais vista de

    forma estanque. V-se tanto o riso trgico quanto o riso cmico (ou clssico). A ttulo de

    ilustrao, pode-se citar Dom Quixote. Mistura-se a comicidade de um cavaleiro que ataca um

    moinho de vento, pensando estar lutando com gigantes, com a iluso trgica de um leitor que

    concebe um mundo fora de poca, confinado em biblioteca, dentro da literatura de cavalaria. Os

    exemplos abundam no s na literatura. A stima arte, nos filmes de Charles Chaplin, em que

    tragdia e comicidade se revezam, outro exemplo.

    Portanto, seria mais coerente dizer que o contrrio do riso no o trgico, mas sim o

    srio. Como se nota, o riso ainda se vincula inconseqncia e irrelevncia. Em geral, a

    ideologia da seriedade impe uma postura negativa com relao ao cmico, atribuindo-lhe

    comportamento menos nobre ou menos erudito dentro dos padres sociais. Ele estaria ligado aos

    loucos e s crianas. De acordo com essa idia, o cmico deveria ser banido dos trabalhos

    cientficos, pois seria frvolo, momentneo, sendo em seguida esquecido. Talvez os participantes

    dessa corrente fossem os responsveis pela criao do famoso ditado: Muito riso, pouco siso.

    Alm disso, a comicidade seria incontrolvel, uma vez que resvala em domnios polmicos,

    zomba do divino e infringe tabus.

    J seriedade se imputa um papel inverso, identificando-a com o saber e o bom-senso,

    digna do status de teoria cientfica e nica capaz de assegurar o controle do saber.

    Feita essa ressalva bsica, hora de apresentar autores que se preocuparam em buscar

    uma definio para o riso. bvio que existe um sem-nmero de estudos sobre o riso, todos

    com uma contribuio mensurvel: a teoria do conflito, de Locke; a teoria da contradio, de

    Kant, a preeminncia do sujeito, no cmico de Jean Paul, etc. Sem contar os estudos hodiernos

    que afloram dia a dia nas pesquisas acadmicas. Mas as teorias sobre as quais se far meno

    soem aparecer em quase todos os trabalhos relacionados ao riso.

    O primeiro deles Arthur Schopenhauer. Para ele, somente as pessoas srias e prudentes

    sabem verdadeiramente rir. Em sua terminologia, conceito corresponde a pensamento, e intuio,

    realidade. O riso seria o contraste entre o abstrato e o intuitivo. De acordo com sua teoria, a

    teoria da incongruncia, o riso fruto da percepo do desacordo entre o conceito e o objeto real

    que ele representa. O contraste o estopim para a irrupo do riso.

    Fernando Moreno da Silva

    220

  • Apenas o homem que tem conscincia dessa harmonia entre pensamento e realidade ser

    o portador do riso mais sincero, pois sua convico, que acredita que as coisas so como ele tem

    pensado, sofrer grande surpresa ao descobrir que estava enganado. O homem que no leva nada

    a srio, ao contrrio, no tem condies de revelar um riso autntico, pois ri de tudo e, com

    freqncia, sem nenhuma causa verdadeira.

    A condio da seriedade para o despertar autntico do riso lembra vagamente a teoria de

    Thomas Hobbes, contemporneo de Descartes. Talvez influenciado pela tendncia cartesiana,

    Hobbes (1966, apud ALBERTI, 1999, p. 129), aps definir o riso como o signo de uma paixo

    o orgulho ou a glria , diz que o riso a manifestao da superioridade do homem, imbudo da

    arrogncia ntima de que esse erro eu no cometo: A paixo do riso [...] no outra coisa

    seno a honra sbita (sudden glory) suscitada por uma concepo sbita de alguma superioridade

    em ns, em comparao com a fraqueza dos outros, ou com uma fraqueza nossa anterior, porque

    os homens riem das tolices passadas deles mesmos quando elas lhes vm subitamente

    lembrana, e no trazem consigo alguma desonra presente..

    Outro filsofo influenciado por terico de seu tempo foi Henri Bergson, contemporneo

    do socilogo Durkheim, que o influi na dimenso social do comportamento humano. Enquanto

    Durkheim alertou sobre a diviso do trabalho, concluindo que ela ocasionaria o individualismo e

    a competio entre os indivduos, Bergson (1983, p. 99-100) se eximiu da tarefa de corrigir a

    sociedade, entregando ao riso esse cargo. Dar ao riso uma funo social, que corrige as infraes

    e revela os defeitos: O riso , antes de tudo, um castigo. Feito para humilhar, deve causar

    vtima dele uma impresso penosa. A sociedade vinga-se atravs do riso das liberdades que se

    tomaram com ela. Ele no atingiria o seu objetivo se carregasse a marca da solidariedade e da

    bondade.

    Para esse carter punitivo do riso, h duas condies precpuas: insociabilidade e

    insensibilidade. O maior inimigo do riso a emoo. Por isso, ainda que uma cena ou um motivo

    desperte piedade, necessrio, para que haja o riso, que se anestesie o corao para que a

    indiferena prevalea sobre os sentimentos. Insensvel, o homem poder rir de qualquer desvio

    de norma, defeito ou vcio, sejam eles graves ou leves. O que insocivel passvel de riso.

    Com esse perfil corretivo, o riso ambivalente. Ao mesmo tempo conservador e

    subversivo. Conservador, quando defende a norma e a regra, ridicularizando tudo que contraria a

    viso de mundo do padro vigente; progressista, no instante em que critica padres ultrapassados,

    no condizentes com as necessidades do momento.

    Fernando Moreno da Silva

    221

  • Ainda nos passos de Bergson, o riso recebe uma outra funo: a de desnudamento. O

    filsofo alemo Joachim Ritter (apud ALBERTI, op. cit., p. 12) afirma que o sentido das coisas

    exposto de forma incompleta, ficando a outra metade excluda. Essa face escamoteada pela

    ordem e pelo srio, que dita o certo e o errado arbitrariamente, obriga outras possibilidades a

    viver sob a forma do oposto. O exemplo pode ser o costume. H diversas possibilidades de

    conduta dentro duma sociedade, mas somente algumas so aceitas. A funo do riso

    exatamente tornar visvel esse mundo excludo e reconhecer outras realidades possveis.

    Nem mesmo a psicanlise deixou de tratar do assunto. Sigmund Freud enumerou defesas

    contra a dor: loucura, xtase, embriaguez, meditao, etc. Mas constatou que o riso a mais

    eficiente. Alm do papel de salvaguarda contra as ansiedades e angstias, ele tambm estaria

    relacionado ao princpio do prazer. No obstante os percalos da vida, o riso permite ao homem

    atingir uma sensao agradvel. Chega-se a ela por meio da economia de um desgaste afetivo, que

    proporcionaria a satisfao. Ao contrrio do homem triste, que se enfraquece por seus desgostos,

    o riso economiza a energia acumulada para encarar a dor.

    Essas idias apontadas por Freud coincidem com os estudos recentes que confirmam o

    papel eficaz do riso sade e ao rejuvenescimento. Inevitavelmente, o riso o triunfo do eu,

    recrudescendo a invulnerabilidade, por conta do fortalecimento do homem contra as amarguras

    oriundas da realidade exterior.

    Freud distingue trs formas do risvel: o chiste, o cmico e o humor.

    Ele verificou que havia semelhana entre a linguagem dos sonhos e a dos chistes. Para

    analisar as piadas, valeu-se do processo denominado reduo do chiste, que consiste basicamente em

    substituir o dito jocoso por um outro texto que o explica melhor, dissolvendo as tcnicas

    utilizadas na construo chistosa:

    Quando Costa e Silva era candidato Presidncia da Repblica, um jornalista lhe perguntou:

    Se houver adversrio, o senhor disputa? Digo.

    Na construo desta anedota, por exemplo, se se analisar somente a escrita no se notar

    nitidamente a ambigidade. Mas, se pronunciada em determinada situao, com nfase no

    vocbulo disputa, pode receber uma interpretao capciosa. Analisando-o com o apoio da

    transcrio fontica, tm-se dois sentidos:

    Fernando Moreno da Silva

    222

  • [disputa] = terceira pessoa do singular do verbo disputar : o senhor disputa?

    [disputa] = terceira pessoa do singular do verbo dizer + substantivo puta (interjeio): o senhor

    diz puta!?

    Portanto, a essncia do chiste se faz atravs das palavras, porque, como sabiamente

    Freud j assinalou, o chiste consiste fundamentalmente numa certa tcnica, na forma, e no num

    contedo ou num sentido. (POSSENTI, 1998, p. 17)

    Freud ainda divide o chiste em inocente e tendencioso. Este , na verdade, o chiste capaz

    de provocar um riso franco, pois permite a liberao de impulsos erticos e agressivos. O prazer

    do chiste estaria vinculado economia de inibio, coero esta que demanda grande energia do

    aparelho psquico, que poupada no momento em que se extravasa, descarregando toda tenso

    no riso.

    Numa outra modalidade classificada por Freud, o cmico, a economia de energia

    suscitadora do prazer seria a do pensamento. O cmico no implica o trabalho com as palavras.

    Ele ocasionado pelos movimentos e pelas aes em geral, como o carter e hbito das pessoas,

    enfim, parte da constatao dos contrastes. Nele no se despende raciocnio, apenas constatando

    o ridculo por meio da caricatura, da pardia, da imitao...

    A terceira e ltima categoria estaria sob a forma do humor. Ele tem incio quando

    emoes tentam suprimir o constrangimento, elevando-se sobre as dores e raivas. O humor faz

    do homem um forte, pois brinca com as desgraas. manifestado no exclusivamente pelo riso;

    em geral, por um discreto sorriso. Tambm no seria exagero aproximar o humorista do

    melanclico ou do masoquista, em virtude da sua realizao ou apreciao, que pode ser feita por

    uma s pessoa, na solido de sua existncia. Oscar Wilde, numa situao de extrema gravidade

    na cadeia, algemado, sob forte chuva , diz: Se Sua Majestade trata assim os seus presos, no

    merece ter nenhum!.

    A cada momento surge nova preocupao sobre o riso, devido a sua riqueza e extenso.

    Ele simples e natural no homem, mas coloc-lo no papel no uma tarefa fcil. Conforme

    advertia Ccero (apud ALBERTI, op. cit., p. 169), quando as obras tentam dar a teoria do risvel,

    elas correm o risco de fazer rir por sua insipidez.

    4. O riso e suas expresses Fernando Moreno da Silva

    223

  • O riso pode ser suscitado por diversos recursos, entre os quais se destacam: comicidade,

    humorismo, ironia, caricatura, pardia e stira.

    Cmico a simples constatao do contraste, sem reflexo; exatamente uma advertncia

    do contrrio. Cumpre acrescentar tambm que o riso no nasce apenas da presena de defeitos,

    mas de sua repentina e inesperada descoberta (PROPP, 1992, p. 56). A partir do momento em que se analisa esse contraste, aprofundando-o com empatia, tem-se o humor. Atravs do ridculo

    desta descoberta ver o lado srio e doloroso, desmontar esta construo, mas no apenas para

    rir dela; e oxal que, no lugar de desdenhar-se dela, rindo, compadea-se (PIRANDELLO, 1996,

    p. 156). O humor, portanto, nasce de uma reflexo, o sentimento do contrrio.

    Um exemplo para esclarecer. noite, com intensa tempestade; de repente, avista-se um

    homem de pijama correndo debaixo de chuva torrencial. Esta uma situao, no mnimo,

    estranha. Est-se diante do contrrio, pois, normalmente, ningum sai s ruas de pijama, ainda

    mais sob forte chuva. primeira vista, uma situao cmica. Se se descobre, porm, que o

    misterioso homem saiu daquela maneira por causa do filho que passava mal em casa, estando

    desesperado procura de ajuda, a situao se inverte. Refletindo sobre o fato, desperta-se a

    compaixo naquele que assiste ao fato. Doravante, a tolerncia pelo diferente dilui o ataque e o

    espectador apia a atitude do pai. Passa-se do escrnio comiserao, entrando no humor.

    O humor profundo, reflexivo, mais complexo. mistura do riso e da dor, do riso de

    rejeio e da acolhida. o riso melanclico, e discreto, e complacente, o rir do outro e de si

    mesmo. Pode-se at dizer que, no campo do risvel, o humor o lado mais rico desse

    comportamento humano, uma vez que trabalha com a condio humana, uma reflexo que trata

    com amenidade os temas dolorosos e tristes. O humor deixa entrever, na relao com os outros,

    sua natureza benevolente e positiva, muito prxima ao riso bom.

    Outro recurso para o riso a ironia, muito utilizada para exprimir o contrrio do que se

    pensa. Ela assenta num jogo dialtico: afirma para negar e nega para afirmar. As palavras

    expressam o contrrio da idia que se pretende exprimir, mas se insere na mensagem um sinal

    que, de certa forma, previne o destinatrio das intenes do enunciador, ficando subentendido

    que tal recurso foi usado propositadamente. Dessa forma, o ironista pode muito bem apresentar

    como valorosa uma realidade que ele trata de desvalorizar.

    Conforme enuncia Berrendonner (1982, p. 173), a ironia distingue-se das outras formas

    de contradio pelo fato de ser uma contradio de valor argumentativo. Por isso, alm de estar Fernando Moreno da Silva

    224

  • classificada como figura de pensamento e de palavra, a ironia vista como um importante

    recurso argumentativo, pois confere ao ironista, mediante a argumentao indireta, a

    possibilidade de lanar contra algum alvo suas crticas para porem a nu verdades que no so

    ditas abertamente. Envolve-se, nesse jogo, um trio actancial: o emissor (1) dirige o discurso

    irnico a um receptor (2), para atacar um terceiro (3), o alvo da ironia. O excerto citado abaixo se

    refere a uma reportagem que cobriu o vestibular da Pontifcia Universidade Catlica (PUC-SP),

    observando que no dia em que se realizaram as provas, a igreja da instituio estava

    completamente vazia. Na fala do estudante, lana-se uma boa ironia: No segundo dia de prova

    do vestibular da universidade, nenhum estudante foi ao local [a igreja] apelar para Deus na ltima

    hora. Nessas horas melhor invocar Albert Einstein, brinca estudante Marcos Nogueira, 18 anos.Talvez uma das razes cruciais para o seu uso esteja na grande vantagem de se evitar a

    exposio direta aos ataques e s crticas, ou de outras intenes que se queira atingir. Mas essa

    mesma prerrogativa pode muito bem se transformar numa desvantagem. Isso ocorre quando ela

    mal-interpretada ou quando o seu destinatrio no se der conta do jogo irnico. Ela

    simplesmente no ter lugar, ficando como que ausente no discurso. Por isso, antes de mais nada,

    o primeiro efeito criado pela ironia ser a identificao de sua presena.

    Quanto stira, ela exige pleno conhecimento do satirista sobre o contedo que ser alvo

    de seus ataques, e uma correspondncia de quem os l. A stira explora mais a ideologia, a tica,

    figurando como uma arma crtica e agressiva, que est ligada desmistificao dos costumes, da

    poltica e da ordem vigente. Longe da inteno de analisar uma poesia, esse poema se mostra

    como uma crtica dirigida ao homem capitalista, vaticinando a ele um destino lgubre:

    EPITFIO PARA UM BANQUEIROn e g c i o e g o c i o 0(PAES, 1986, p. 90)

    Muito prxima da stira est a pardia, uma imitao burlesca que explora, sobretudo, a

    esttica e a linguagem. possvel parodiar tudo: movimentos e aes de uma pessoa, a fala, os

    hbitos de uma profisso e tudo o que criado pelo homem no campo do mundo material.

    Contrapondo o racionalismo loucura, Jos Paulo Paes brinca com o princpio cartesiano

    Cogito, ergo sum (Penso, logo existo). Mediante um procedimento de anlise fonolgica

    Fernando Moreno da Silva

    225

  • comutao de fonemas , o poeta procede a um trocadilho com a ltima palavra ao substituir a

    fricativa coronal-alveolar surda /s/ pela oclusiva bilabial surda /p/, introduzindo a interjeio

    com um vocbulo onomatopico: pum!

    O SUICIDA OU DESCARTES S AVESSAScogito ergopum!(PAES, op. cit., p. 108)

    A caricatura acentua, de forma ridcula e hiperblica, os detalhes de uma pessoa ou fato,

    deformando-o. Alm da no-verbal, tpica de figuras e desenhos, h tambm a caricatura verbal:

    Os companheiros de classe eram cerca de vinte; uma variedade de tipos que me divertia. O

    Gualtrio, mido, redondo de costa, cabelos revoltos, motilidade brusca e caretas de smio

    palhao dos outros, como dizia o professor; o Nascimento, o bicanca, alongado por um modelo

    geral de pelicano, nariz esbelto, curvo e largo como uma foice.(POMPIA, 1976, p. 42).

    E cada um dos recursos precitados do riso pode aparecer sob formas variadas: chiste,

    epigrama, sainete, crnica... Em cada uma, um estilo, um charme.

    5. Concluso

    Depois dA sociedade do espetculo, de Guy Dbord (1997), o filsofo francs Lipovetsky

    (1989) tipifica a ps-modernidade como a sociedade humorstica, em que tudo d espao a

    brincadeiras, tornando o riso e a descontrao quase que obrigatoriedades. Por trs dessa

    pseudoleveza, h uma ameaa de exterminar o verdadeiro sentido do riso. Se, na carnavalizao

    da Idade Mdia, o riso representava uma segunda vida para o povo, momento em que era

    permitido extravasar mediante as festas e sair do mundo obscuro e rgido das leis, na

    contemporaneidade preconiza-se a sua morte, pois a seriedade rechaada e o riso, empregado a

    torto e a direito, de forma rotineira, corre o risco de avizinhar-se da era do vazio.

    Thomas Hobbes (1966), por sua vez, discorre sobre a soberba intrnseca do homem, ao

    dizer que o riso um ndice da superioridade humana: o homem ri ou zomba das desgraas

    alheias como se fosse imune a qualquer tipo de deslize igualmente ridculo.

    Fernando Moreno da Silva

    226

  • Mas seja riso de zombaria, seja riso sem motivo algum, subjazem a ele stiras cujos

    desgnios corroboram as teses de Bergson (1983), para o qual o riso um instrumento de

    regulao e de controle dos desvios sociais. preciso ter em mente que a funo primeira do

    riso, conforme afirma Yonnet (1990, p. 152-153), celebrar o ser social. O riso solitrio tem

    um sinal negativo; uma anormalidade patolgica. Diante disto, rir comunicar e, portanto, uma

    forma de participar de uma sociedade. Em todo ato de comunicao, o objetivo final no

    apenas informar, , na verdade, convencer o outro a aceitar o que est sendo proferido. A argumentao um fenmeno que est inscrito no uso da linguagem, pois constitui uma

    atividade estruturante de todo e qualquer discurso.

    Por isso, por mais sincero que se suponha, o riso esconde uma segunda inteno. O riso

    , pois, uma ousadia: causa a estranha para distrair, mas, por trs dessa aparente ingenuidade,

    verdades so escamoteadas. Horcio, poeta da Antigidade Clssica (65 a.C 8 a.C), resumia

    um modo de dizer a verdade: Ridendo dicere verum (Rindo, a verdade dita). A antiga Literatura

    Latina repisa esse pensamento com o mesmo mote: Ridendo castigat mores (Rindo, os costumes so

    castigados).

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ALBERTI, Verena.. O riso e o risvel na histria do pensamento. Rio Janeiro: Zahar, FGV, 1999.

    AMARAL, Nair Ferreira Gurgel do. Rumores do humor: a subjetividade discursiva na produo e na leitura de textos humorsticos. Tese (Doutorado em Lingstica e Lngua Portuguesa) Programa de Ps-Graduao em Lingstica e Lngua Portuguesa, Universidade

    Estadual Paulista. Araraquara, 2002.

    BERGSON, Henri.. O riso: ensaio sobre a significao do cmico. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

    BERRENDONNER, Alain. De lironie: elments de pragmatique linguistique. Paris: Minuit, 1982.

    DEBORD, Guy. A sociedade do espetculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

    ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

    Fernando Moreno da Silva

    227

  • HOBBES, Thomas. Human nature or the fundamental elements of policy. In: MOLESWORTH,

    W (Org.) The English works of Thomas Hobbes of Malmesbury. Londres: Scientia Verlag Aalen, pp. 11-76, 1966.

    LIPOVETSKY, Gilless. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporneo. Trad. Miguel Serras Pereira e Ana Lusa Faria. Lisboa: Relgio dgua Editores Ltda, 1989.

    MINOIS, Georges. Histria do riso e do escrnio. Traduo Maria Elena O. Ortiz Assumpo. So Paulo: Editora UNESP, 2003.

    MORAES, Oswaldo Domingues de. Freud: dos chistes ao cmico. Revista de Cultura Vozes, Petrpolis, v. 5, n. 68, pp. 25-30, 1974.

    NEVES, Luiz Felipe Bata. A ideologia da seriedade e o paradoxo do coringa. Revista de Cultura Vozes, Petrpolis, v. 5, n. 68, pp. 35-41, 1974.PAES, Jos Paulo. Um por todos: poesia reunida. So Paulo: Brasiliense, 1986.PIRANDELLO, Luigi. O humorismo. So Paulo: Experimento, 1996.POMPIA, Raul. O Ateneu: crnicas de saudades. So Paulo: Cultrix; Braslia: INL, 1976.POSSENTI, Srio. Os humores da lngua: anlise lingstica de piadas. Campinas: Mercado de Letras, 1998.

    PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. So Paulo: tica, 1992.TODOROV, Tzvetan. Os gneros do discurso. So Paulo: Martins Fontes, 1980.YONNET, Paul. La plante du rire: sur la mediatisation du comique. Le dbat. Paris, n. 59, pp. 152-172, mars-avril, 1990.

    Fernando Moreno da Silva

    228

    AS VRIAS FACES DO RISO3. As preocupaes tericas