as representações sociais acerca dos jovens da periferia

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1 As representações sociais acerca dos jovens da periferia: uma breve reflexão sobre o documentário A Ponte Ana Claudia Florindo 1 Resumo O artigo apresenta uma breve análise do documentário A Ponte, elaborado a partir da experiência assistencial da ONG Casa do Zezinho, localizada na periferia da zona sul de São Paulo. A obra parece ter como finalidade a proposição de uma discussão sobre a segregação e os contrastes sociais produzidos pela ponte do rio Pinheiros, marco simbólico da cisão entre a região periférica da cidade e a área elitizada do entorno da Avenida Engenheiro Luis Carlos Berrini. No entanto, conforme as cenas vão se desenrolando, a realidade do filme revela-se marcada pela intenção de divulgação da filantropia desenvolvida pela instituição, além da reprodução de representações ideológicas acerca dos jovens residentes nas áreas marginais da cidade pautadas na valorização de uma educação promotora de sua inserção no mercado de trabalho e de um ensino vinculado a situações de aprendizagem baseadas em atividades práticas, ligadas a experiências cotidianas, distantes de um pensamento reflexivo e crítico, capaz de possibilitar a emancipação política da juventude. Palavras-chave: educação, jovem, emancipação política, documentário, ideologia. Abstract The article show a brief analysis of the documentary A Ponte, made from the experience of NGO Casa do Zezinho, located on the outskirts of the southern area of São Paulo city. The work seems to have intended to propose a discussion about segregation and social contrasts produced by the Pinheiros river bridge, guide symbolic split between the suburb and the rich area around Avenida Engenheiro Luis Carlos Berrini. However, according to scenes, the documentary looks like just to show the philanthropy developed by the institution, beyond the reproduction of ideological representations about the poor young people, linked to an education that seeks to insert 1 Pesquisadora do Projeto de Políticas Públicas: Rappers, os novos mensageiros urbanos na periferia de São Paulo: a contestação estético-musical que emancipa e educa, financiado pela FAPESP (2011/2013). É mestranda na área de Psicologia e Educação, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob orientação da Professora Doutora Mônica do Amaral. Desenvolve o trabalho de pesquisa intitulado O rap como possibilidade de letramento: a construção da identidade e a reflexão sobre a constituição das subjetividades dos jovens da periferia de São Paulo. Realiza oficinas de estudo na Casa do Zezinho, investigando o potencial de letramento dos jovens por meio do rap.

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Page 1: As representações sociais acerca dos jovens da periferia

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As representações sociais acerca dos jovens da periferia: uma breve reflexão

sobre o documentário A Ponte

Ana Claudia Florindo1

Resumo

O artigo apresenta uma breve análise do documentário A Ponte, elaborado a partir da experiência assistencial da ONG Casa do Zezinho, localizada na periferia da zona sul de São Paulo. A obra parece ter como finalidade a proposição de uma discussão sobre a segregação e os contrastes sociais produzidos pela ponte do rio Pinheiros, marco simbólico da cisão entre a região periférica da cidade e a área elitizada do entorno da Avenida Engenheiro Luis Carlos Berrini. No entanto, conforme as cenas vão se desenrolando, a realidade do filme revela-se marcada pela intenção de divulgação da filantropia desenvolvida pela instituição, além da reprodução de representações ideológicas acerca dos jovens residentes nas áreas marginais da cidade pautadas na valorização de uma educação promotora de sua inserção no mercado de trabalho e de um ensino vinculado a situações de aprendizagem baseadas em atividades práticas, ligadas a experiências cotidianas, distantes de um pensamento reflexivo e crítico, capaz de possibilitar a emancipação política da juventude.

Palavras-chave: educação, jovem, emancipação política, documentário, ideologia.

Abstract

The article show a brief analysis of the documentary A Ponte, made from the experience of NGO Casa do Zezinho, located on the outskirts of the southern area of São Paulo city. The work seems to have intended to propose a discussion about segregation and social contrasts produced by the Pinheiros river bridge, guide symbolic split between the suburb and the rich area around Avenida Engenheiro Luis Carlos Berrini. However, according to scenes, the documentary looks like just to show the philanthropy developed by the institution, beyond the reproduction of ideological representations about the poor young people, linked to an education that seeks to insert

                                                            1 Pesquisadora do Projeto de Políticas Públicas: Rappers, os novos mensageiros urbanos na periferia de São Paulo: a contestação estético-musical que emancipa e educa, financiado pela FAPESP (2011/2013). É mestranda na área de Psicologia e Educação, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob orientação da Professora Doutora Mônica do Amaral. Desenvolve o trabalho de pesquisa intitulado O rap como possibilidade de letramento: a construção da identidade e a reflexão sobre a constituição das subjetividades dos jovens da periferia de São Paulo. Realiza oficinas de estudo na Casa do Zezinho, investigando o potencial de letramento dos jovens por meio do rap.

 

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them into the labor market and a teaching bound on practical activities related to day-by-day, far from a critical and reflective thought able of allow the political emancipation of youth.

Keywords: education, young, political emancipation, documentary, ideology.

Um início de diálogo

O cinema documentário é colocado no centro deste trabalho como símbolo de

uma discussão sobre a dimensão ideológica envolvida na construção da imagem dos

jovens da periferia, suas necessidades, aprendizagem e formação, a partir da linguagem

materializada em discurso pelos sujeitos atuantes em seu processo educacional.

A título de referência, utilizo as representações produzidas por uma organização

não-governamental conhecida como Casa do Zezinho, na região do Capão Redondo,

zona sul de São Paulo, a partir de um documentário denominado A Ponte, cujo conteúdo

revela, entre outras ideias, a natureza de funcionamento da instituição e sua finalidade

enquanto espaço de formação de crianças e jovens.

Como pesquisadora de um projeto de políticas públicas, com parceria entre a

Universidade de São Paulo e a Casa do Zezinho, envolvendo o rap e o letramento,

parece-me fundamental analisar o modo como a própria instituição parceira interpreta o

seu projeto educacional. Daí o interesse pelo documentário.

A análise deste material fílmico torna-se, então, o ponto de partida para

compreender a visão de mundo dos sujeitos envolvidos nesta complexa relação: jovens

com dificuldades de aprendizagem na língua escrita, educadores e uma instituição

filantrópica numa área carente de apoio político, recursos financeiros, sociais e

econômicos.

A proposta é pensar como os jovens são representados, em seu processo de

aprendizagem, a partir das vozes e atos intencionais presentes na práxis dos educadores

que lidam com suas dificuldades e não-aprendizagens, mesmo tratando-se de indivíduos

que partilham das condições vividas pelos estudantes e apostam em suas

potencialidades, além de investigar como os jovens são identificados pela ONG, quais

são os impactos das imagens simbólicas construídas nesta interação sobre a identidade

do jovem que, aparentemente, apresenta problemas com a alfabetização e as relações

destas concepções com o processo de ensino implementado nas situações de

aprendizagem.

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O documentário A Ponte

Para a análise teórica de A Ponte no contexto do cinema documentário, avalio

não somente os elementos externos da obra, suas imagens, enredo, musicalidade,

paisagens, mas também seus elementos internos, o sentido social que constrói, a

representação de signos vigentes em uma determinada época e espaço.

O documentário em questão foi produzido pelo Sindicato Paralelo Filmes e

Instituto Hukha, sob direção de Roberto T. Oliveira e João Wainer, com fotografia de

João Wainer e trilha sonora de Zé Gonzales e Daniel Ganjaman.

Os principais responsáveis pela criação e montagem da obra foram João Wainer

e Roberto T. Oliveira.2

Para quem não conhece, a Casa do Zezinho (CZ) é uma instituição não-

governamental, localizada na periferia de São Paulo, mais precisamente no Parque

Santo Antônio, uma das regiões consideradas mais violentas na cidade de São Paulo da

década de 90, dado o elevado número de assassinatos ocorridos na área, equivalentes ao

dobro dos registrados em outros bairros do município (FEIGUIN, 1995; LIMA, 1995).

A ONG foi fundada em 1986 pela educadora Dagmar Garroux, mais conhecida

como Tia Dag. Sua empreitada começa em uma pequena casa de 100 metros quadrados,

numa rua de terra, acolhendo algumas crianças. O primeiro Zezinho3, nome dado às

crianças que ingressam na Casa, foi o Zinho, quando tinha nove anos de idade,

momento em que inicia um trabalho de educação com outras onze crianças e mais cinco

mulheres, baseado no respeito e amor pela periferia. Atualmente a entidade acolhe 1200

                                                            2 João Wainer nasceu em 1976, fotógrafo, foi assistente de Bob Wolfenson e trabalha no jornal Folha de S.Paulo desde 1996. Atuou como diretor de fotografia da série de documentários sobre Chico Buarque, do documentário Sexpress da MTV e dos DVDs Biografite – Rita Lee e Mart’nalia em Berlim. Expôs em 2007 na Bienal de Imagens do Mundo (Photoquai) em Paris, no Musée Quai Branly. Ganhou o prêmio FNAC/Fotosite com o trabalho Marginália e expôs nas galerias Fnac de Paris, Bordeaux e em cinco capitais brasileiras. Suas fotos fazem parte do acervo da coleção Pirelli/MASP e foi agraciado duas vezes com o prêmio Dom Quixote de La Perifa. Roberto T. Oliveira é diretor de videoclipes, programas de TV e DVDs musicais para artistas como Racionais, Cidade Negra, Charlie Brown Jr e Chico Buarque. Fundou em 1999 a produtora Sindicato Paralelo. Venceu o prêmio de melhor clipe do ano no VMB da MTV em 2003, e de melhor clipe de rap em 2001. Em 2007, dirigiu o documentário em média-metragem A Ponte. 3 O nome Zezinho tem relação com a proposta político-pedagógica da ONG intencionalmente voltada para a assistência social do jovem. Segundo a fundadora da instituição, o objetivo maior da casa é fazer as crianças e jovens serem alguém na vida, serem um Zé que é alguém para deixarem de ser um Zé Ninguém, que não tem roupa, não tem as coisas que deseja.  

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crianças e jovens, entre 6 e 21 anos, que frequentam as escolas públicas da região.

Funciona todos os dias da semana desenvolvendo diversas atividades nas diferentes

áreas do conhecimento: Português, Matemática, Ciências Humanas, Ciências Naturais,

Informática, entre outras.

O “filme documentário” parece ter como objetivo questionar o caráter simbólico

da ponte do rio Pinheiros, um espaço que serve como objeto simbólico de divisão

social, confinando os “ricos e os pobres” em seus devidos lugares: os ricos nos prédios

de alto padrão do entorno da “Berrini” e os pobres imersos no mundo periférico do

Parque Santo Antônio.

Discussão legítima considerando a produção do espaço urbano e metropolitano

da cidade de São Paulo em que a população mais pobre foi “forçada” a se locomover e

se estabelecer nos fundões da zona sul, caracterizando verdadeiros espaços de miséria:

“Dispostos geograficamente em locais afastados e próximos às fronteiras

distritais e às zonas de manaciais, a localidade mais distante em relação ao

centro velho e histórico de São Paulo é a favela, encontrada no chamado

‘fundão’, o qual identifica-se com a denominação recente de hiper-periferia

para uma vasta área de crescimento de bolsões de pobreza que continuaram

se expandindo após as políticas de urbanização empreendidas pelo Estado nas

periferias anteriores e que se encontram próximos a áreas ricas da cidade”

(TORRES, 2003, APUD CARRIL, 2006, p. 144).

No entanto, conforme as cenas do documentário vão se traduzindo em imagens,

observa-se que o sentido da produção parece não ser apenas o de promover uma

reflexão sobre as desigualdades sociais e territoriais provocadas pela referida ponte,

mas de oferecer um produto de divulgação da obra realizada pela ONG Casa do

Zezinho.

Frente à hipótese do filme ter sido produzido para dar visibilidade à instituição,

pode-se inferir sobre a intecionalidade da escolha dos produtores de A Ponte: tanto

Wainer como Oliveira, responsáveis por sua criação, são profissionais experientes

ligados à área de promoção social e comercial de artistas nacionais, especializados na

projeção de seus trabalhos.

Além disso, na época, 2006, a ONG mantinha uma forte ligação com o Mano

Brown e o diretor da Sindicato Paralelo Filmes, principal produtor de todos os

videoclipes da banda Racionais Mc’s. Mano Brown, inclusive, além de possivelmente

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funcionar como um elo entre a produtora e a instituição, é um dos personagens

principais da obra.

Com uma música instrumental suave, que libera a consciência para imersão num

universo confortável de sensações, as primeiras imagens apresentadas contrastam com a

nostalgia que se pretende criar: mostram o Parque Santo Antônio na madrugada, com o

céu ainda escuro e com um movimento ininterrupto de pessoas, ônibus e carros.

Em alguns momentos, a música é suspensa para a entrada do som ambiente, com

a finalidade de tornar mais real as imagens.

O bairro só ganha luz quando Tia Dag começa a narrar a sua experiência como

educadora da periferia. É neste instante que aparece a ponte do rio Pinheiros, vista do

lado da Berrini, com tomadas aéreas belíssimas e do lado do Parque Santo Antônio, as

favelas, tendo como plano principal da cena o espaço da Casa do Zezinho.

A CZ é concebida e apresentada, assim, como o lugar simbólico que condensa

todas as desigualdades da periferia e serve como referência para se pensar “novos

rumos” para o enfrentamento das injustiças sociais sofridas pelos pobres. O filme

documentário converte-se na representação de uma relidade representada, segundo a

ótica da instituição.

O rio Pinheiros é comparado ao Muro de Berlim, porque do mesmo modo que

este dividiu um país em parte Oriental e Ocidental, o rio também divide o lugar do rico

e do pobre. Dado geográfico, válido e inquestionável, o que passarei a questionar é o

uso dessa informação no campo estético, em favor de determinada função ideológica e

intencionalidade, porque não, de natureza “capitalista”.

Observa-se em um outra cena de A Ponte, o Secretário do Desenvolvimento

Social, Floriano Pesaro, sentado em uma confortável sala de um prédio localizado

provavelmente em uma área mais central da cidade, analisando a problemática da

ocupação desordenada da região do Parque Santo Antônio: “A zona sul é a pior zona,

em virtude de um processo histórico de ocupação na cidade de São Paulo, em meados

da década de 80, que foi muito prejudicial ao desenvolvimento”.

A ideia transmitida em sua fala pareceu culpabilizar a população pelos

problemas da urbanização, colocando-os como responsáveis por iniciar uma ocupação

que prejudicou o desenvolvimento da zona sul, pelo fato de terem “invadido” as áreas

de mananciais.

Em outro trecho, Pesaro comenta, ainda, que o governo teve que atuar de forma

repressiva para combater a anarquia instaurada pelos pobres porque não conseguia

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chegar até lá, uma vez que as ruas eram muito estreitas para se construir creches,

escolas etc. Em nenhum momento aponta a falta da atuação do governo como

organismo responsável pela implementação de políticas públicas capazes de auxiliar

esta população.

O desenrolar das cenas na montagem consiste na apresentação de vários

depoimentos, que vão desde os da Tia Dag e Mano Brown, até de um pedreiro chamado

Daniel, que edifica a sua casa às margens de um córrego, sempre reforçando a premissa

de que existe uma oposição absoluta entre a população pobre e rica, evidenciando-se o

contraste entre o luxo e a miséria. Este é o palco do material visual.

Uma breve análise

Desconstruindo as imagens de A Ponte, é possível observar que o tom do

material nos é dado, logo no início da sequência de cenas, pela própria Tia Dag, que

aparece em primeiro plano, com a câmera focalizada em seu rosto, relatando uma

experiência de “salvação” de uma jovem que se prostituia, frequentava a CZ e se

transformou, posteriormente, em uma dentista com a sua ajuda.

A mensagem subliminar presente na costura da teia argumentativa tecida pelos

idealizadores da obra pode ser a de atribuir à Tia Dag o simbolismo de heroína da

periferia e mito-fundador da instituição. Seus elementos vinculam-se à tentativa de se

produzir uma história de sucesso a partir da experiência educacional vivida e

protagonizada pela Casa do Zezinho.

Os problemas territoriais materializados pelo rio Pinheiros, responsáveis por

uma complexa segmentação social, racial e, fundamentalmente, étnica são apenas o

cenário da realidade ficional que se pretende criar.

O público do filme pode ser conduzido pela montagem proposta, a entender que

o documentário é uma discussão legítima sobre as desigualdades sociais vividas na

periferia de São Paulo, apontando a obra filantrópica da Casa do Zezinho como uma

possibilidade de superação das dificuldades enfrentadas pelos jovens que buscam ter

voz na sociedade.

No entanto, o cerne da questão parece ser a divulgação da ONG da Tia Dag e a

captação de mais recursos financeiros para o desenvolvimento do projeto social

realizado pela instituição.

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A ONG, concebida como a própria ponte, é apresentada como um caminho de

superação da segregação social, preenchendo o vazio criado pela divisão espacial da

cidade.

De alguma forma, o “ideal da salvação” é compartilhado por todos que

participaram da composição do documentário (rappers, empresários, lideranças da

comunidade, ex-zezinhos), entendendo, também, que a ação social praticada pela

entidade é uma possibilidade de emancipação política, mesmo que não seja posta em

questão ou mesmo em debate a forma de se educar o sujeito baseada numa experiência

do fazer e não do pensar, mais próxima da formação de um trabalhador-consumidor do

que de um cidadão propriamente dito.

Os produtores lançaram mão de diversos recursos técnicos para trazer uma

problematização mais próxima da realidade, apresentando, inclusive, depoimentos de

lideranças do bairro e da região, como o escritor Ferréz, o padre Jaime, o rapper Mano

Brown, sobre a questão do confinamento dos pobres, negros numa periferia desprovida

de qualquer auxílio do Estado, “esquecidos”, há muitos anos às margens do sistema.

Entre as falas mais significativas destacam-se:

“Se o Estado não faz, nós fazemos”, diz João Batista Cardoso, dono do Moinho

Santo André e vice-presidente da instituição.

“O problema é de todo mundo, não é só da favela, todos sofrem as

consequências”, assegura Ferréz, escritor.

“Nós estamos fazendo um trabalho aqui e a sociedade faz o quê?, afirma Tia

Dag, educadora.

“Uma hora o rico tem que descer do carro blindado”, sustenta Floriano Pesaro,

secretário do desenvolvimento social.

“A sociedade não pode perder o espírito de indignação e aceitar a desigualdade

como natural”, acrescenta padre Jaime Crown.

Tia Dag sustenta em determinado trecho que o jovem integrante da ONG não é

paulistano, não é paulista, é periferia, porque a cidade não o recebe, enquanto que, a

identidade dele está associada à Casa do Zezinho.

E segue-se uma série de depoimentos de ex-zezinhos sobre a ótima experiência

educacional vivenciada na instituição, com imagens dos espaços da CZ ou dos ex-

educandos em suas próprias casas. Dentre eles, destacam-se o relato de Nenê, que se

formou em Letras e atua como professor na escola onde foi expulso; escreveu ainda um

livro sobre a periferia e a favela chamado Zona de Guerra, descrevendo fatos reais

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experimentados por ele; Jaciara, uma estudante que saiu das ruas para tentar ser alguém

na vida, ingressando na Casa do Zezinho, diz que seus dias são mais alegres na

instituição; um jovem que se formou em Educação Física, começou uma pós-graduação

em Fisiologia do Exercício e diz se sentir encaminhado profissionalmente.

Enfim, o pobre pode sonhar na CZ. Eis a ideologia da ONG.

A educação dos jovens é vista como possibilidade de inserção no mercado de

trabalho e no consumo de bens. A pedagogia alicerçada sobre bases de uma formação

para uma aprendizagem prática e não para a reflexão, promove situações didáticas

vinculadas a artes manuais, tarefas cotidianas e ligadas à vida diária, além dos cursos

de profissionalização.

O ideal de educação que se concretiza como um instrumento à serviço do

aprender para o fazer e não como forma de emancipação política mostra-se posto em

prática.

Uma outra questão desponta neste contexto: pensando sobre as representações

apontadas pelo filme, inclusive as que dizem respeito ao entendimento dos educadores

sobre como os jovens da Casa do Zezinho podem aprender, que ideia de liberdade é

proposta aos sujeitos submetidos a uma educação que pressupõe o fazer como centro do

processo de aprendizagem?

Apesar da proposta teórica da Casa do Zezinho estar baseada no pensamento de

Paulo Freire, alguns posicionamentos demonstram um certo distanciamento da

concepção de educador.

O autor, em sua pedagogia, deixa claro o papel da ação relacionada à reflexão

na superação da condição de oprimido, à medida que a reflexão sobre a realidade passa

a ser objeto de questionamento nas situações de ensino e a ação do sujeito participante

do processo de aprendizagem passa a ser diferente, interferindo em sua atuação e em

seu entendimento sobre o mundo.

“Quanto mais as massas populares desvelam a realidade objetiva e

desafiadora sobre a qual elas devem incidir sua ação transformadora, tanto

mais se ‘inserem’ nela criticamente” (FREIRE, 2011, p. 54).

Em uma atuação voltada para os jovens de periferia, a problematização sobre os

opressores e oprimidos e as relações complexas envolvidas nesta trama social deveriam

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ser postas no cerne de toda práxis pedagógica e de toda formulação acerca dos fins da

educação.

A ideia de transformação social concebida por Freire fundamenta-se na

necessidade de engajamento, de uma inserção crítica, na ânsia de conhecer e superar a

dinâmica de opressão segundo a qual está estruturada a sociedade, buscando uma

formação que construa a subjetividade do sujeito, criando as condições para a formação

de uma consciência responsável por recriar a realidade e o conhecimento.

Por este motivo, a educação libertadora não pode ser planejada pelos opressores,

que teriam como objetivo não o desvelamento social, mas a reprodução de seus valores

ideológicos, ainda que repletos de boas intenções.

Ao olhar para as parcerias entre a Casa e as empresas, pode-se notar que apesar

de imbuídos na misssão de formar pessoas para a vida em sociedade e sua inserção no

mercado de trabalho, grandes empresas e Casa do Zezinho associadas, fazem circular

pelas diferentes atividades planejadas para a juventude interesses ditados pelos ideais do

capital.

As crenças ideológicas veiculadas, por vezes, rompem com os pressupostos

ligados à ideia de reconhecimento, engajamento e luta por direitos sociais, mobilização

para a participação em movimentos políticos ou por conquistas para a comunidade.

Mais uma vez, Paulo Freire traz contribuições ricas ao discorrer sobre o conceito

de aderência, sugere que, em certos momentos da constituição da subjetividade do

sujeito, a sombra do opressor possa aderir à figura do oprimido, e este, sem ter plena

consciência da opressão sofrida, representar a consciência opressora, temendo a

oportunidade de liberdade e introjetando concepções distantes de sua realidade.

“Ao fazermos esta afirmação, não queremos dizer que os oprimidos, neste

caso, não se saibam oprimidos. O conhecimento de si mesmos, como

oprimidos, se encontra, contudo, prejudicado pela ‘imersão’ em que se acham

na realidade opressora. ‘Reconhecerem-se’, a este nível, contrários ao outro

não significa ainda lutar pela superação da contradição. Daí esta quase

aberração: um dos polos da contradição pretendendo não a libertação, mas a

identificação com seu contrário. O ‘homem novo’, em tal caso, para os

oprimidos, não é o homem a nascer da superação da contradição, com a

transformação da velha situação concreta opressora, que cede seu lugar a uma

nova, de libertação. Para eles, o novo homem são eles mesmos, tornando-se

opressores dos outros. A sua visão do homem novo é uma visão

individualista. A sua aderência ao opressor não lhes possibilita a consciência

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de si como pessoa, nem a consciência da classe oprimida” (FREIRE, 2001, p.

44-45).

No filme pensado pela ONG, o que se observa é que existe uma imposição de

um movimento de aderência dos jovens à figura do opressor, uma vez que,

subliminarmente, o conjunto simbólico das ações dos educadores da casa tende a validar

o sucesso social como uma oportunidade do educando se vincular a alguma empresa

associada ou não à instituição. As imagens sugerem que o jovem da periferia, que

pretende ser bem-sucedido, deve almejar a oportunidade de entrada no mercado de

trabalho, assumindo o padrão de comportamento exigido pelos empresários parceiros.

De quem são, na realidade, estes objetivos: do opressor ou do oprimido? Dos

jovens, das empresas ou da ONG? O que querem na verdade os jovens que vivem no

Capão Redondo? Há uma escuta para estes interesses ou são ensinados a querer o que

querem que eles queiram?

Enfatizo e questiono a possível troca de papéis sociais, em virtude da tendência

criada no documentário a caminhar na contramão do que se propõe a analisar: a situação

de pobreza dos fundões da zona sul.

Mais uma questão: não há como negar que a população mais pobre foi esquecida

pelo poder público, sem criar as condições mínimas de vida em áreas de maior

concentração populacional e mais periféricas da cidade, constituindo verdadeiras

hiperperiferias, como esclarece Carril:

“A concepção de hiperperiferia, nesse sentido, significa a formação de

bolsões de pobreza compostos por famílias que não puderam pagar pela

valorização do bairro urbanizado. Na prática, denota que a população foi

sendo empurrada cada vez mais para espaços de miséria, levada à

imobilidade espacial devido à falta de recursos financeiros até para pagar o

transporte, numa tendência de confinamento territorial” (2006, p 144-145).

Em contrapartida, não há como negar, também, que foi criado o espaço do rico,

que vive do outro lado da ponte.

“Apesar da presença de símbolos que pertencem ao atual período técnico-

científico informacional, paira sobre a metrópole um eclipse que encobre o

olhar para a não-cidade. Um núcleo de requinte, recheado de prédios

inteligentes, instrumentos eficazes de informação e redes que a conectam à

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economia e ao espaço mundial, envolvendo transporte, comunicação, cultura

e consumo que convivem com a miséria. Veja-se o exemplo da valorização

das terras margeadas pelo rio Pinheiros, nas avenidas Engenheiro Luis Carlos

Berrini e Roberto Irineu Marinho (houve troca recente do nome da avenida),

que empurra a favela para o ‘fundão’” (CARRIL, 2006, p. 161).

Todavia, é assim que o documentário dá a direção psicológica ao espectador,

conduzindo-o a uma vivência de emoções capaz de causar a construção de uma

realidade que pode não se vincular a um espaço geográfico e histórico existente. A

aparência do oprimido é retratada e vista, em sua essência, a partir do olhar do opressor.

Parece crucial pensar, com cuidado, sobre o paradigma educacional que pode

estar permeando a trama da estrutura educacional na Casa do Zezinho.

Uma instituição que se mobiliza a promover o jovem, inserindo-o socialmente

num espaço de formação precisa preocupar-se com o discurso que está se

materializando em sua ação de ensino para que o oprimido possa realmente ter voz no

processo de aprendizagem.

O que se evidencia no documentário é que, em alguns momentos, mesmo quem

trabalha a favor do oprimido, pode assumir a condição de opressor, aderindo seus ideais

ao papel representado por eles socialmente.

Uma outra educadora da casa, Corina Macedo, comenta que as escolas de

qualidade eram as “vocacionais” da década de 60, porque além de currículo regular

mantinham aulas complementares que contemplavam as tarefas necessárias para a vida

diária; eram escolas que consumiam a mesma verba das outras, mas investiam num

trabalho prático.

“Mas, se para a concepção ‘bancária’ a consciência é, em sua relação com o

mundo, esta ‘peça’ passivamente escancarada a ele, à espera de quem entre

nela, coerentemente concluirá que ao educador não cabe nenhum outro papel

que não o de disciplinar a entrada do mundo nos educandos. Seu trabalho

será, também, o de imitar o mundo. O de ordenar o que já faz

espontaneamente. O de ‘encher’ os educandos de conteúdos. É o de fazer

depósito de ‘comunicados’ – falso saber – que ele considera como verdadeiro

saber. E porque os homens, nesta visão, ao receberem o mundo que neles

entra, já são seres passivos, cabe à educação apassivá-los mais ainda e

adaptá-los ao mundo. Quanto mais adaptados, para a concepção ‘bancária’,

tanto mais ‘educados’, porque adequados ao mundo” (FREIRE, 2001, p. 88).

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Em muitos relatos os Zezinhos, como são chamados os educandos da entidade,

dizem que aprendem a fazer mosaico, quadros para enfeitar a casa etc. Além das

atividades “artísticas”, existem outras que os alunos realizam e a CZ tem como objetivo

divulgar a qualidade das interações vividas por eles, almejando a sensibilização de

outros patrocinadores: a orquestra, inclusão digital, aulas de inglês e ecologia. “ Seja

você também um amigo do Zezinho”, slogan retirado da página do site responsável por

apresentar os projetos da ONG.

A própria Tia Dag ao falar de sua pedagogia enfatiza que a prioridade é o fazer e

a transversalidade da educação que propõe, como essência do trabalho, revela-se em

atividades centradas no cotidiano dos jovens e nas tarefas realizadas no dia-a-dia.

À guisa de exemplo, o documentário apresenta uma aula de gastronomia situada

na padaria, na qual um grupo fazia pão: “Os alunos conseguem aprender química, física,

matemática com estas aulas”.

Entretanto, para uma educação voltada para a libertação, outros ideais poderiam

ser vislumbrados, como ensina Paulo Freire:

“Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos

oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua

libertação, em que esta pedagogia se fará e refará” (2011, p. 43).

As aulas, com intenção transdisciplinar, poderiam circular por outros espaços e

campos do saber, possibilitando uma reflexão mais ampla a respeito da participação

social destes jovens na comunidade e sua relação com questões políticas, econônicas,

culturais e éticas de maior impacto sobre o conhecimento do contexto em que interagem

e suas possibilidades de transformação.

Parece que a ideia não é questionar a realidade e sim batalhar para fazer os

alunos conseguirem ter uma formação básica que viabilize a entrada no mercado de

trabalho e possa torná-los consumidores, chegando do outro lado da ponte.

Mais uma vez, Freire contribui com sua teoria:

“A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade

roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é a

distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas não

vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é

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vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar

uma atitude cínica de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho

livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como

‘seres para si’, não teria significação. Esta somente é possível porque a

desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém,

destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos

opressores e esta, o ser menos” (2011, p. 40-41).

O ser menos também pode vir disfarçado em outras representações presentes no

filme.

É interessante observar como as imagens da periferia, dos barracos, das vielas,

das roupas estendidas nos varais, das casas mal construídas, uma em cima da outra, sem

definição de espaço, como uma massa uniforme e disforme, selecionadas pelo

documentário contrasta com a estrutura arquitetônica da Casa do Zezinho. Lá existe

piscina, quadra e diferentes espaços de interação.

O jovem que entra na Casa encontra uma realidade muito parecida com as casas

do outro lado da ponte, parecendo ingressar em um outro mundo.

Mas o espaço é para a convivência da comunidade e da coletividade ou para a

configuração de um lugar com interesses privados? Está à serviço do Estado, da

Sociedade, do Capital ou da Periferia, entendida como um território à margem?

Fischman apresenta a seguinte ideia:

“Entender que o olho não apenas vê, mas é socialmente disciplinado pela

ordem, divisão, “criação” das possibilidades da organização do mundo e do

sentido da identidade individual, ao questionar como os olhos veem, é

possível questionar também como os sistemas de ideias “tornam” realidade o

que é visto, pensado e sentido. Tais perguntas sobre a razão – ou seja, a

construção social da razão (e as relações de poder embutidas nesta) – são os

princípios pelos quais o agente “vê” e age para efetuar uma mudança”

(POPKEWITZ, 1992, APUD FISCHMAN 2004, p. 119).

Se formos analisar o símbolo da Casa do Zezinho representado pelo arco íris,

não caberia, ainda, uma outra pergunta: onde está a cor preta?

Grande parte da população negra de São Paulo encontra-se na periferia, a favela

é tida como um dos espaços mais negros da cidade, onde a presença da população

branca é menor do que em outras regiões. Os negros compõem a formação étnica da

Page 14: As representações sociais acerca dos jovens da periferia

14  

população pobre e sofrem um duplo preconceito: econômico e racial, transcendendo a

noção de classe social.

“O afro-descendente vem sendo penalizado não apenas quanto à dificuldade

de ingressar no mercado de trabalho, mas também por localizar-se em

espaços segregados, de miséria e de escola pública sem investimentos. A

baixa escolaridade e a má qualificação profissional lhes restringem

oportunidades no mercado de trabalho. Assim, cabe analisar quais têm sido

as perspectivas, a forma de organização e de luta dessa comunidade no

espaço urbano, sua expressão e seus significados” (CARRIL, 2006, p. 145).

Em dados recentes, é possível notar a condição das populações pobres segundo a

cor no país. O IPEA (2007) aponta que, em 2005, a população negra era de 49,6% da

população brasileira, constituindo cerca de 92 milhões de pessoas vivendo em

condições inaceitáveis.

“Negros nascem com peso inferior a brancos, têm maior probabilidade de

morrer antes de completar um ano de idade, têm menor probabilidade de

freqüentar uma creche e sofrem de taxas de repetência mais altas na escola, o

que leva a abandonar os estudos com níveis educacionais inferiores aos dos

brancos. Jovens negros morrem de forma violenta em maior número que

jovens brancos e têm probabilidades menores de encontrar um emprego. Se

encontrarem um emprego, recebem menos da metade do salário recebido

pelos brancos, o que leva a que se aposentem mais tarde e com valores

inferiores, quando o fazem. Ao longo de toda a vida, sofrem com o pior

atendimento no sistema de saúde e terminam por viver menos e em maior

pobreza que brancos” (IPEA 2007, p. 281).

Não parece que ignorar a cor preta do arco íris é querer negar a origem

afrodescendente desta população, a sua cultura, seus costumes, a exclusão social e sua

relação com a formação da população paulistana, paulista e brasileira?

Carril, mais uma vez, esclarece:

“O conceito de negritude contém tanto um dado biológico, ser negro, quanto

o ideológico, a consciência de pertencer a um grupo de pessoas excluídas da

Page 15: As representações sociais acerca dos jovens da periferia

15  

cidadania não sendo, portanto, usado de forma mecânica e fundado apenas na

carga genética, como se da biologia viesse a cultura” (2006, p. 129).

De acordo com a explicação de Tia Dag, a cor preta não aparece no símbolo da

Casa do Zezinho porque está muito ligada ao conceito de morte, de violência, tudo o

que querem excluir da vida dos jovens zezinhos. Mais uma vez o preto assume um

significado pejorativo.

O fato é que a pobreza tem cor e muitos negros se autodenominam como pretos.

A condição racial se evidencia na reprodução de valores e perpetuação de estereótipos,

neste caso, alimentado pela instituição e pelo documentário.

Segundo Carone, a ideia do que é ser negro no Brasil foi uma construção de

brancos, advinda do ímpeto de branqueamento da população, datado da complexa

desestruturação do sistema escravocrata, com o agressivo incentivo do governo à

imigração dos povos europeus. Pensava-se à época que o processo de miscigenação

seria responsável pela produção de uma raça brasileira mais parecida com os padrões

europeus de homem civilizado: mais branca.

“O branqueamento, todavia, não poderia deixar de ser entendido também

como uma pressão cultural exercida pela hegemonia branca, sobretudo após a

Abolição da Escravatura, para que o negro negasse a si mesmo, no seu corpo

e na sua mente, como uma espécie de condição para se ‘integrar’ (ser aceito e

ter mobilidade social) na nova ordem social” (CARONE, 2002, p. 14).

A condição do ser negro assume para o sujeito o significado psiquíco de

racismo, de discriminação, uma vez que necessita negar a diferença étnica para

conseguir participar socialmente.

Além das características físicas, o pertencimento segundo o padrão da cor

funcionava como elemento de definição das capacidades mentais e cognitivas do povo

negro, sempre acompanhada de um sentido depreciativo.

Carone discute o desdobramento de toda esta trama social sobre a constituição

da identidade negra no Brasil ao explicar:

“Forjada pelas elites brancas de meados do século XIX e começos do XX, a

ideologia do branqueamento foi sofrendo importantes alterações de função e

sentido no imaginário social. Se nos períodos pré e pós-abolicionistas ela

Page 16: As representações sociais acerca dos jovens da periferia

16  

parecia corresponder às necessidades, anseios, preocupações e medos das

elites brancas, hoje ganhou outras conotações – é um tipo de discurso que

atribui aos negros o desejo de branquear ou de alcançar os privilégios da

branquetude por inveja, imitação e falta de identidade étnica positiva. O

principal elemento conotativo dessas representações dos negros construídas

pelos brancos é o de que o branqueamento é uma doença ou patologia

peculiar a eles” (2002, p. 17).

O ator, que desempenha papel de coadjuvante no documentário, mas que aponta

uma espaço de fuga no rizoma de todas estas representações que acabam por reforçar a

condição de oprimido do jovem da periferia e conquista a posição de personagem

principal na revelação de uma intencionalidade verdadeiramente emancipatória e

libertadora dos ‘zezinhos’ é o rapper Mano Brown.

Suas intervenções no filme são aparentemente mais orientadas politicamente. É

o que mais discute a pobreza de forma contextualizada, desmistificando algumas

determinações sociais e desvelando as questões relacionadas à identidade de quem mora

na periferia.

Intencionalmente ou não, suas imagens sempre aparecem em movimento, no

carro, circulando pelo Parque Santo Antônio e dialogando com os transeuntes

anônimos. “Quanto mais esclarecido você é, mais frustrado fica com a realidade da

periferia, não temos escolas, a escola é para poucos, mas se tem escola, tem mais

oportunidade”, afirma Mano Brown.

Em todas as situações em que a Tia Dag reproduz valores de certa imobilidade

social do jovem da periferia e de sua falta de acesso a bens de consumo, o rapper traz a

sua contrapartida e sempre inscreve a juventude no campo da renovação social, da

possibilidade de fazer dar certo. Fica feliz ao ser questionado por um adolescente do

bairro sobre a letra de seu último sucesso e a relação com as questões da comunidade:

“É bom ver que o pessoal está se politizando”.

O rap, neste sentido, se materializa como um estilo musical poderoso no tocante

à politização de uma concepção estética, provocando rotas de escape do “discurso

oficial” e oferecendo um espaço de discussão sobre as perspectivas da periferia e seus

significados sociais.

O potencial crítico do rap, como espaço de contestação, expressando a voz de

quem experimenta a vida na periferia, pode simbolizar o que Benjamim chama de

“reversão dialética”, na qual a massa é capaz de pensar sobre sua condição de indivíduo

Page 17: As representações sociais acerca dos jovens da periferia

17  

consumindo a arte como mercadoria, transformando o valor de uso da música, por

exemplo, como fator de educação e formação dos jovens da periferia, assumindo o

caráter político do movimento Hip Hop.

Gatti aborda as ideias de Benjamim sobre a arte de massa, ressaltando a questão

da dialética de “distanciamento e aproximação”, propulsora do conceito de reversão

dialética. A música, de acordo com tal conceito, entendida e criticada como um

instrumento de reprodução dos elementos ideológicos de uma dada sociedade, revela-se

como uma ferramenta capaz de expor as especificidades do sistema econômico-social

postas em jogo, e ser utilizada como mecanismo de conscientização e emancipação

política da massa.

No caso específico do rap, são verdadeiros atos de linguagem enunciados pelas

letras, na qual o rapper fala na realidade, teatraliza sua palavra, colocando-se no coração

da ação para que o dito tenha força de transformação e conscientização social e que o

recado, dado em forma de poema, convoque a massa à participação na realidade:

“O pensamento aproxima-se mimeticamente de seu objeto de crítica,

assimilando-se perigosamente a ele, até o ponto de sucumbir à sua força

regressiva, como se essa fosse a única estratégia ainda disponível para

sustentar um mínimo de distância crítica capaz de salvar suas potencialidades

salvadoras” (2009, p. 299).

O conhecido rapper dos Racionais MC’s parece produzir algo parecido com esta

reversão dialética em A Ponte, e por meio dela, os discursos mais politizados e

emancipatórios aparecem, como já mencionei anteriormente.

Os desdobramentos teóricos

A ideia de estrutura interna e estrutura externa de uma obra é comumente

utilizada na análise e crítica de obras literárias, no entanto, recorro a estes critérios,

inicialmente, para justificar a minha leitura do documentário, pois entendo que, assim

como o texto, as imagens e a montagem das cenas também conseguem materializar um

dado discurso, revelar um certo pensamento e constituir um significado.

Como explica Antonio Candido:

Page 18: As representações sociais acerca dos jovens da periferia

18  

“Quando estamos no terreno da crítica literária somos levados a analisar a

intimidade das obras, e o que interessa é averiguar que fatores atuam na

organização interna, de maneira a constituir uma estrutura peculiar. Tomando

o fator social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria

(ambiente, costumes, traços grupais, ideias), que serve de veículo para

conduzir a corrente criadora (realização do valor estético); ou se, além disso,

é elemento que atua na constituição do que há de essencial na obra enquanto

obra de arte” (2010, p. 6).

Apresento neste estudo sobre o cinema documentário, principalmente, as

proposições teóricas de T. W. Adorno, no artigo “O Fetichismo da Música” (1996) e W.

Benjamim, em “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução” (1994),

referindo-me às considerações de natureza estética, dentre outros, a respeito da arte,

além de procurar dialogar com as concepções de D. Vertov, no artigo “Variação do

Manifesto” (1983) e V. Pudovkin, em “Métodos de tratamento do material” (1983),

teóricos do cinema russo.

Hoje o vídeo, a fotografia, o filme potencializam dinâmicas sociais e expõem a

especificidade da sociedade contemporânea em relação à saturação e bombardeio da

imagem, fundando uma verdadeira cultura visual. Com isso, tornam-se responsáveis por

construir a percepção do espectador.

Sobre isso, Benjamim salienta que:

“Através da distração, como ela nos é oferecida pela arte, podemos avaliar,

indiretamente, até que ponto nossa percepção está apta a responder a novas

tarefas. E, como os indivíduos se sentem tentados a esquivar-se de tais

tarefas, a arte conseguirá resolver as mais difíceis e importantes sempre que

possa mobilizar as massas. É o que ela faz, hoje em dia, no cinema. A

recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos os

domínios da arte e constitui o sintoma de transformações profundas nas

estruturas perceptivas, tem no cinema seu cenário privilegiado. E aqui, onde a

coletividade procura a distração, não falta de modo algum a dominante tátil,

que rege a reestruturação do sistema perceptivo” (1994, p. 194).

É possível identificar, nas ideias do autor, o conceito de arte assumido pelo

cinema na era da reprodutibilidade técnica em contraposição à arte considerada

autônoma e imersa num contexto de ritual e valor de culto, como era a pintura, a

escultura, entre outras, em meados do século XVIII.

Page 19: As representações sociais acerca dos jovens da periferia

19  

A autenticidade e individualidade da obra de arte eram marcadas pela aura, um

estado mágico que identificava, ao mesmo tempo, a unidade, a presença no espaço em

que estava exposta e a sua duração, mantendo a obra de arte imersa no berço da

tradição.

A partir do século XX as técnicas de reprodução alteraram significativamente o

cenário de produção da arte e o que antes era apreciado de modo contemplativo pela

burguesia, passa a ser objeto de reprodução e perde o caráter de existência única. Como

explica Benjamin:

“No começo, era o culto que exprimia a incorporação da obra de arte num

conjunto de relações tradicionais. Sabe-se que as obras de arte mais antigas

nasceram a serviço de um ritual, primeiro mágico, depois religioso. Então,

trata-se de um fato de importância decisiva a perda necessária da aura,

quando, na obra de arte, não resta mais nenhum vestígio de sua força

ritualística” (1996, p. 16).

O rompimento com o “fascínio religioso” no contexto da arte autônoma,

segundo o autor, tende a emancipar a sua função, construindo uma esfera de politização

da arte: as condições de tempo e espaço de exibição tornam-se diferentes, representam

possibilidades de exposição a um número considerável de observadores. A obra parece

estar mais próxima do coletivo e entra num movimento de endereçamento às massas.

O cinema produzido no contexto de reprodutibilidade técnica assume o sentido

de uma arte revolucionária, que pode, ao mesmo tempo, apresentar a realidade vivida

com lentes de aumento, explicitando fatos e fenômenos da vida cotidiana antes não

considerados como objeto de valor e representar o mundo de acordo com determinados

critérios e crenças ideológicas, alterando significativamente as formas de recepção e

percepção do público.

Sobre isso, Habermas acrescenta:

“Sem dúvida Benjamin, como Marcuse, vê na arte de massa do fascismo, que

surge com a pretensão de ser política, o perigo de uma falsa dissolução da

arte autônoma. Essa arte propagandística dos nazistas liquida efetivamente a

arte como uma esfera autônoma, mas atrás do véu da politização ela está a

serviço, na verdade, da estetização do poder político bruto. Ela substitui o

valor de culto da arte burguesa pelo valor produzido por intermédio de mera

manipulação. O fascínio religioso só é rompido para ser sinteticamente

Page 20: As representações sociais acerca dos jovens da periferia

20  

renovado: a recepção da massa transforma-se em sugestão de massa” (1980,

p. 175).

Adorno não entende a arte na época das técnicas de reprodução como uma

emancipação da arte autônoma, mas sim como uma degeneração da arte, ao constatar

que o mercado, promotor da arte desritualizada, produziu uma indústria cultural capaz

de padronizá-la e oferecê-la como mercadoria ao público visto como consumidor

passivo.

Em seus estudos sobre o jazz, o autor observou a regressão auditiva

experenciada pelos homens, com músicas criadas a partir de acordes e melodias

simplificadas, padrão de notas linear, repetições contínuas, sem qualidade musical,

servindo aos princípios do sucesso comercial e aos comandos dos editores,

compositores e empresários das rádios e gravadoras. Segundo Adorno, instaurava-se a

época de música como valor de troca: o importante não era a qualidade musical, mas o

poder de consumo que assumia o produto musical, a técnica, nesta perspectiva, passava

a atender mais à lógica de reprodução mecânica da arte e a sua comercialização do que à

ideia de imanência da arte.

“O conceito de fetichismo musical não se pode deduzir por meios puramente

psicológicos. O fato de que ‘valores’ sejam consumidos e atraiam afetos

sobre si, sem que suas qualidades específicas sequer compreendidas e

apreendidas pelo consumidor constitui uma evidência da sua característica de

mercadoria” (ADORNO, 1996, p. 180).

Nessa consolidação da arte como mercadoria a escolha do indivíduo se perde e

constitui-se um processo de homogeneização do gosto e da obrigatoriedade de consumo

de um certo padrão de produção se constitui, determinando o que pode ser considerado

bom ou ruim. O sujeito pensa estar selecionando o que deseja, e, na verdade, é levado a

isso pautado pela dinâmica absoluta do capital. A música é retirada de seu contexto

puro, original e fabricada a partir de recortes, arranjos baratos e representações mais

palatáveis ao grande público.

“A consciência da grande massa dos ouvintes está em perfeita sintonia com a

música fetichizada. Ouve-se a música conforme os preceitos estabelecidos

pois, como é óbvio, a depravação da música não seria possível se houvesse

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21  

resistência por parte do público, se os ouvintes ainda fossem capazes de

romper, com suas exigências, as barreiras que delimitam o que o mercado

lhes oferece” (ADORNO, 1996, p. 186-187).

Um ponto comum entre Benjamin e Adorno se refere ao fato de conceberem as

alterações na arte produzidas em sua fase de reprodução como um produto de distração

do público, mantendo-o numa etapa quase que “infantil” de construção do pensamento,

ao não permitir a elaboração do conteúdo exibido, dada a velocidade com que é exposta

e a convencionalidade com que é criada, não se percebem como sujeitos e nem como

indivíduos influenciados pelos padrões de mercado.

Estes pressupostos, ligados à estetização política da arte, podem ser trazidos para

iluminar a leitura do cinema documentário como arte na era da reprodutibilidade

técnica.

Pudovkin comenta que a montagem está a serviço de produzir determinada

reação no espectador e trabalhar sobre as emoções:

“O objetivo é mostrar o desenvolvimento das cenas como se fosse em

relevo, conduzindo a atenção do espectador primeiro para este elemento,

depois para aquele outro, em separado. A lente da câmera substitui o olho do

observador, e as mudanças no ângulo da câmera – dirigida primeiro para uma

pessoa, depois para outra, agora neste detalhe, depois neste outro – devem se

sujeitar a condições idênticas às dos olhos do observador” (1983, p. 59-60).

O documentário A Ponte, neste sentido, anseia por criar uma realidade ficcional

na qual os atores e personagens principais constróem uma ideia de existência humana a

ser superada, apresentando como possibilidade, como ponte, a Casa do Zezinho.

A hipótese de criação da obra com o intuito de promoção do trabalho realizado

pela entidade se reforça.

Sontag comenta a cisão que ocorre entre documentário e filme de propaganda ao

falar dos filmes alemães produzidos por Riefenstahl, reforçando a ideia de que uma obra

pode inscrever-se em determinado lugar dependendo do viés ideológico que se pretende

imprimir. “O documento (imagem) não é apenas o registro da realidade, mas é uma

razão para a qual a realidade foi construída, e deve, eventualmente, suplantá-la”

(1986, p. 67).

Page 22: As representações sociais acerca dos jovens da periferia

22  

A realidade representada pelo filme anseia por propor e estabelecer o lugar da

ONG como um espaço capaz de retirar o jovem da situação de miséria e carência que

experimenta e promover melhores condições de vida, compondo uma verdadeira

“ideologia da salvação”.

Entretanto, cabe aqui uma pergunta: o que realmente o filme mostra a respeito

das possibilidades que a Casa do Zezinho, enquanto organização não-governamental,

oferece às crianças e jovens de liberdade para uma transformação social e política?

De acordo com Kossoy não é possível julgar a obra como realidade, mas sim

como aparência de realidade, no “universo das mentalidades”: há um planejamento de

cenas, um roteiro, uma seleção de imagens e falas, a ideologia, a manipulação das

informações, uma montagem e a construção de um sentido.

Sua contribuição está ligada ao campo da fotografia, mas é interessante

estabelermos algumas comparações com o cinema. Ambas técnicas compartilham o

elemento estruturante da representação visual, o fato de serem consideradas signos

indiciários:

“Este paradigma indiciário, na realidade, derivaria de um antigo saber

caracterizado pela ‘capacidade de, a partir de dados aparentemente

negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável

diretamente” (KOSSOY, 2007, p. 38).

Além do caráter indiciário, a análise de uma obra iconográfica deve considerar o

processo de desmotangem da imagem a fim de se obter as informações não reveladas

pela sua aparência, pelo indício. É fundamental a interpretação e o conhecimento de seu

contexto, de sua significação, de sua história, do tempo e do espaço que definiram a

constituição do objeto. Qual é a vida social em que se insere a obra e o que documenta?

“A partir da abordagem de Ginzburg podemos traçar um paralelo com a

nossa proposição, pois reconstruir o processo que determinou o documento

fotográfico foi a meta que estabelecemos desde o início, com o fito de

compreender a cena registrada, instante da ocorrência do fato e da gênese do

próprio documento; isto significa realizar a operação inversa, buscando

detectar os elementos estruturais do documento – o objeto-imagem, enquanto

um resíduo que nos veio do passado, um fragmento visual da realidade

tomado em determinado lugar e época” (KOSSOY, 2007, p. 39).

Page 23: As representações sociais acerca dos jovens da periferia

23  

Walter Benjamin já colocava a arte num contexto social e discorria sobre a

influência das lentes do produtor do filme sobre a percepção do público e sobre a

confusão gerada pela fusão dos olhos do espectador com a objetiva da câmera.

“A realidade despojada do que lhe acrescenta o aparelho tornou-se aqui a

mais artificial de todas e, no país da técnica, a apreensão imediata da

realidade como tal é, em decorrência, uma flor azul” (BENJAMIN, 1996, p.

26).

E, neste sentido, os teóricos russos podem nos trazer uma grande contribuição

para a análise do cinema ao ensinarem, também, que a linguagem fílmica penetra na

consciência do público, controla suas emoções e altera suas impressões e percepções

sobre a realidade.

Pudovkin traz o conceito de montagem, já empregado neste artigo, que é a arte

de construir um filme cinematográfico a partir de partes separadas, que pode ser

realizada por meio de cenas gravadas, da organização de uma sequência ou mesmo da

elaboração de um roteiro, com recurso de transmissão de uma certa ideologia a partir da

concepção do diretor ou editor da sequência de cenas sobre o que se pretende

representar.

O roteiro, utilizado na montagem, permite, por exemplo, o planejamento do

conteúdo a ser abordado e as ferramentas de composição das cenas que irão revelar uma

forma própria de construção. Tal mecanismo é capaz de conduzir a atenção do

espectador e despertar as emoções previstas pelo diretor.

A montagem da sequência das cenas, por exemplo, conduz o espectador e

direciona-o a sentir e reagir às imagens de acordo com os objetivos estabelecidos na

produção da obra. Neste sentido, Pudovkin coloca que o cinema não é apenas o registro

do que acontece diante da câmera, mas a sua reprodução, a sua representação através

dos meios específicos que compõem esta nova arte.

Vertov complementa a análise de Pudovkin ao comparar a lente da câmera ao

olho humano, discorrendo sobre o cine-olho, ou seja, a tentativa de fazer o espectador

ver o mundo a partir do olho da objetiva a fim de construir um sentido. Em sua

concepção, a filmagem tem sempre uma intenção.

Contemporâneo da era industrial, seu posicionamento contrário a encenação,

advinda do teatro, nas montagens das cenas sempre foi fundamental. O cinema, segundo

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24  

ele, deve se diferenciar do teatro e da literatura e assumir um sentido próprio: o de

educar a percepção para a produção de um novo olhar para a sociedade, mediado pela

máquina.

A câmera possibilita captar aspectos dos objetos filmados que o olho humano

não é capaz, ampliando assim uma certa limitação humana.

“Assim, como ponto de partida, defendemos a utilização da câmera como

cine-olho, muito mais aperfeiçoada do que o olho humano, para explorar o

caos dos fenômenos visuais que preenchem o espaço. O cine-olho vive e se

move no tempo e no espaço, ao mesmo tempo em que colhe e fixa as

impressões de modo totalmente diverso daquele do olho humano”

(VERTOV, 1983, p. 253).

Como Benjamin, o autor russo acreditava que o percepção era condicionada

historicamente e entendia o filme a partir de um posicionamento político, como um

instrumento de educação. As imagens capturadas pela câmera não são a realidade em si,

mas uma aparência de realidade, pois há uma intencionalidade em sua utilização na

construção de um sentido.

“Eu posso forçar o espectador a ver esse ou aquele fenômeno visual do modo

como me é mais vantajoso mostrá-lo. O olho submete-se à vontade da câmera

e deixa-se guiar por ela até esses momentos sucessivos da ação que

conduzem a cine-frase para o ápice ou o fundo da ação, pelo caminho mais

curto e mais claro” (VERTOV, 1983, p. 254).

Vertov se aproxima muito de Pudovkin ao explicar que o truque no cinema é a

montagem, tudo no cinema é montagem e por meio dela é possível construir uma

ideologia. As cenas obtidas, separadamente, não dão o tom à composição no sentido que

se quer revelar. A frase fílmica só é traçada na tecitura da montagem, à medida em que

ocorre a análise dos objetivos e o pensamento assume uma forma, produzindo um

significado.

“É lá que nós trabalhamos, nós, os mestres da visão, organizadores da vida

visível, armados com o cine-olho presente em toda parte e sempre que

necessário. É lá que trabalham os mestres das palavras e dos sons, os

virtuoses da montagem da vida audível. E sou eu que tenho a audácia de

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25  

repassar-lhes em fieira o ouvido mecânico onipresente e o pavilhão, o rádio-

telefone” (VERTOV, 1983, p. 258).

Numa sociedade dominada pelos recursos midiáticos, é difícil de imaginar que

Vertov já produzia videoclipes e encantava a todos os espectadores russos com os

efeitos mágicos de suas edições, ou montagem como ensina, no início do século XX.

Muitas de suas técnicas são utilizadas hoje, como se pode observar na montagem

do documentário em média-metragem objeto deste estudo, que está mais próximo de ser

uma obra ficcicional de que uma obra real.

Finalizando provisoriamente a conversa...

À guisa das considerações finais a respeito do que se pretendeu abordar com o

artigo, é crucial ressaltar o traço marcante que as representações sociais acerca do jovem

da periferia desempenham em sua formação. As mais inocentes proposições

transformam-se num discurso dotado de força, provocador de grande impacto sobre a

constituição de sua identidade e sobre o ensino que é planejado.

A legitimidade aparente do conteúdo de A Ponte se dá, assim, no nosso contexto

histórico, que clama pela promoção de um debate sobre a forma de atuação do Estado

em relação às crianças e jovens moradores das periferias de São Paulo, bastante

marcada cultural e economicamente pelo preconceito racial, social e étnico no processo

de urbanização e metropolização da cidade e que se revela como um problema agudo na

contemporaneidade.

A partir de toda esta proposição “politizada” do material ocorre a edificação de

uma outra ponte, aquela que busca levar o público ao desejo de entrar na Casa do

Zezinho.

No documentário, parece clara a exploração do conceito de um atendimento

assistencialista ao jovem, em sua maioria, negro e pobre, de acordo com um viés

particular, com o intuito de atender a certos interesses.

A discussão proposta tende a estabelecer uma certa linearidade na reflexão sobre

como se concebe a educação destes sujeitos e como ocorreu a produção dos espaços dos

fundões da periferia de São Paulo, reforçando a concepção primeira de simbolizar a

instituição como a imagem da promoção social na periferia.

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26  

Mostra-se desconsiderada a análise do embate ideológico gerado pela atuação

“educacional” da Casa, localizada no Capão Redondo, por vezes a favor das intenções

dos empresários parceiros, responsáveis por financiar a atividade filantrópica.

Qual é a proposta de libertação oferecida pelo cinema documentário, neste caso

específico, tanto do ponto de vista estético como político?

O filme é a realidade ou é uma representação?

Como ponto de partida poderíamos retomar Pudovkin, ao analisar a montagem

de um roteiro, observando-se um direcionamento na condução psicológica do público a

fim de que as emoções sejam despertadas e, porque não o próprio Benjamim, ao pregar

que a percepção estética é condicionada historicamente na era da reprodutibilidade

técnica.

A linguagem utilizada, tanto nas falas como na construção da sequência das

cenas, mostrou-se cuidadosamente planejada visando mobilizar a sensação de amparo

no espectador, além de confiança no trabalho filantrópico realizado pela diretora da

intituição não-governamental.

Com relação à ideologia, não há ilusões, há técnica. A técnica a serviço da

produção de uma aparência de realidade, não a realidade em si, bastante diversa das

imagens materializadas no objeto fílmico.

A magia da técnica a favor da construção de um sentido que pode camuflar, e

não desvelar como muitos pensam, a verdade. Uma verdade compartilhada por todos

aqueles que moram na periferia e não se sentem retratados na sociedade, apesar dos

veículos midiáticos que muitas vezes a comunidade dispõe para este fim.

Referências bibliográficas:

ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da Audição. São Paulo:

Nova Cultural, 1996.

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. Obras

Escolhidas v. 1.

____________. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. São Paulo:

Nova Cultural, 1996.

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