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1 AS MARCHAS DA FAMÍLIA COM DEUS PELA LIBERDADE: IDEOLOGIAS E PRÁTICAS CATÓLICAS NO GOLPE MILITAR DE 1964 Anderson José Guisolphi Mestrando no PPGH-UPF 1. 1. A Marcha em debate. A presente pesquisa ocupa-se em investigar a manifestação católica conhecida em 1964 como a “Marcha da família com Deus pela liberdade”, até então uma das maiores manifestações públicas da história política. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade tornou-se notável em um momento de grande tensão, pois, diversos setores da sociedade se manifestavam. Enquanto os movimentos sociais se aproximavam do presidente da República e suas ações em favor das reformas de base, a Marcha da Família com Deus pela liberdade, liderada por autoridades civis e religiosas, defendiam a tradição familiar e a propriedade privada. Os manifestantes católicos saíram às ruas em repúdio ao governo nacionalista de João Goulart, que, segundo acreditavam, possuía um viés comunizante e caminhava para a destruição dos valores religiosos, patrióticos e morais da sociedade. Tal evento legitimou uma espécie de pedido às Forças Armadas por uma intervenção salvadora das instituições e, posteriormente ao golpe, passaram por uma re-significação de seu discurso, transformando-se numa demonstração de legitimação do golpe militar. Ainda existem lacunas não respondidas acerca da Marcha, ou pelo menos não foram abordadas claramente na historiografia. Quem os patrocinou? Que interesses estavam em evidência ou subjacentes aos grupos que apoiaram a Marcha? É possível estabelecer relações da Marcha de 1964 no Brasil com a posição do catolicismo frente às ditaduras militares na América Latina? Por que a CNBB inicialmente apoiou os militares e alguns anos depois mudou de opinião? Buscando metodologias diferenciadas para tal abordagem, esses e outros questionamentos podem dimensionar o campo da História Social, procurando revitalizar a pesquisa histórica voltada para a História política. 1.2. A nova história política e a Marcha.

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AS MARCHAS DA FAMÍLIA COM DEUS PELA LIBERDADE: IDEOLOGIAS E PRÁTICAS CATÓLICAS NO GOLPE MILITAR DE 1964

Anderson José Guisolphi

Mestrando no PPGH-UPF

1. 1. A Marcha em debate.

A presente pesquisa ocupa-se em investigar a manifestação católica conhecida

em 1964 como a “Marcha da família com Deus pela liberdade”, até então uma das

maiores manifestações públicas da história política.

A Marcha da Família com Deus pela Liberdade tornou-se notável em um

momento de grande tensão, pois, diversos setores da sociedade se manifestavam.

Enquanto os movimentos sociais se aproximavam do presidente da República e suas

ações em favor das reformas de base, a Marcha da Família com Deus pela liberdade,

liderada por autoridades civis e religiosas, defendiam a tradição familiar e a propriedade

privada.

Os manifestantes católicos saíram às ruas em repúdio ao governo nacionalista de

João Goulart, que, segundo acreditavam, possuía um viés comunizante e caminhava

para a destruição dos valores religiosos, patrióticos e morais da sociedade. Tal evento

legitimou uma espécie de pedido às Forças Armadas por uma intervenção salvadora das

instituições e, posteriormente ao golpe, passaram por uma re-significação de seu

discurso, transformando-se numa demonstração de legitimação do golpe militar.

Ainda existem lacunas não respondidas acerca da Marcha, ou pelo menos não

foram abordadas claramente na historiografia. Quem os patrocinou? Que interesses

estavam em evidência ou subjacentes aos grupos que apoiaram a Marcha? É possível

estabelecer relações da Marcha de 1964 no Brasil com a posição do catolicismo frente

às ditaduras militares na América Latina? Por que a CNBB inicialmente apoiou os

militares e alguns anos depois mudou de opinião? Buscando metodologias diferenciadas

para tal abordagem, esses e outros questionamentos podem dimensionar o campo da

História Social, procurando revitalizar a pesquisa histórica voltada para a História

política.

1.2. A nova história política e a Marcha.

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É comum os dicionários apontarem o significado da palavra “política” atrelada à

idéia de poder. Esse poder pode ser confundido com Estado. Já Foucault1 afirma que o

poder não é unicamente o Estado, pois está disseminado por toda a sociedade. E

também a atividade política não ocorre exclusivamente na esfera do Estado. Partindo

dessas considerações, vou construindo a temática desta pesquisa sobre a Marcha da

Família com Deus pela Liberdade e suas relações com os diversos grupos que podem

compor o poder como a Igreja Católica, os partidos políticos, a imprensa, as sociedades

femininas e outras.

Para Bobbio2 o conceito de poder, em seu significado mais geral,

designa a capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos. Tanto pode ser referida a indivíduos e a grupos humanos como a objetos ou a fenômenos naturais (como na expressão Poder calorífico, Poder de absorção). Se o entendermos em sentido especificamente social, ou seja, na sua relação com a vida do homem em sociedade, o Poder torna-se mais preciso, e seu espaço conceptual pode ir desde a capacidade geral de agir, até à capacidade do homem em determinar o comportamento do homem: Poder do homem sobre o homem. O homem é não só o sujeito mas também o objeto do Poder social. E Poder social a capacidade que um pai tem para dar ordens a seus filhos ou a capacidade de um Governo de dar ordens aos cidadãos. Por outro lado, não é Poder social a capacidade de controle que o homem tem sobre a natureza nem a utilização que faz dos recursos naturais.

Já o termo política remonta a Grécia na antiguidade. Embora naquela sociedade,

a atividade social da política estava reservada apenas para homens adultos e livres,

portanto, uma democracia bastante limitada.3

Na transição das eras medieval-moderna, Maquiavel4 aponta a função da política

como estratégias para conquistar e manter o poder sobre os principados, enfatizando um

conceito de política ligado ao Estado.

1 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999. 2 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nocola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Plítica. Brasília: Ed. UnB/Linha Gráfica, 1991. 3 FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2001. 4 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

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Já a História Política, entre os séculos 16 e 18 foi usada como ferramenta de

poder, onde o Estado é o ponto de partida. Serve para legitimar o poder do príncipe

sobre seus súditos com lições históricas. Seus temas abordavam sempre as monarquias

nacionais. Era centrada na idéia de Estado-Nação.5

Durante a hegemonia positivista, onde o esplendor a pujança técnico-industrial

da sociedade burguesa estava em evidência, a história política continuou sendo usada

para enaltecer heróis e seus grandes feitos. Preocupados com o método e as fontes,

julgavam verossímeis apenas os documentos oficiais, descartando o que não estava

nestes critérios.

A chamada primeira geração dos Analles na década de 1930, na França,

criticava as produções tradicionais da historiografia metódica da escola Rankiana que,

associada a uma escrita essencialmente política (ou de Estado), descritivista e

nacionalista – embora se definisse como imparcial -, a história política passa a sofrer de

todos os ataques destinados àquela historiografia que se preocupava em falar dos

grandes acontecimentos, grandes homens e feitos heróicos; a história política era

associada à história dos governos e de seus feitos, uma história do Estado.

Nas décadas seguintes (1960-70) surgem novos intelectuais com outros pontos

de vista sobre a história política. Gramsci6, com seu conceito de hegemonia e bloco

histórico, assim como as produções de Thompson7 nas décadas de 1960 e 1970 sobre as

ações das massas nas lutas de resistência e Michel de Foucault (op cit.) sobre os micros

poderes, constatando assim, que o poder estaria em todo o social. Com essa geração

houve uma reconsideração sobre a política na sociedade. Ela passa a ser percebida como

pertencente ao social, assim como a economia, a cultura, a família, o cotidiano etc.

A historiografia passou a ver a política como resultante direto de uma sociedade,

existindo, assim, uma cultura política, com suas representações e simbologias próprias,

embrenhada no imaginário social, relacionada ao cotidiano das cidades com suas

próprias formas de resistência e apropriação dos valores tradicionais, os usos dessas

5 FALCON, Francisco. História e Poder. In CARDOSO, Ciro e VAINFAS, Ronaldo (org.) Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.6190. 6 PORTELLI, Hugues. Gransci e o Bloco Histórico; RJ: Paz e Terra. 5ª Ed.: 1977 7 THOMPSON, E.P. Costumes em comum. Tradução: Rosaura Eichemberg. Companhia das Letras, SP, 1998.

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tradições pelos mais variados grupos; sem falar dos micros poderes de Michel de

Foucault, onde, segundo o mesmo, o poder cria saberes, disciplina os corpos e mentes e

embrenha-se no cotidiano popular então, a política estaria em tudo, pois se poder é

relações de poderes, podemos falar, então, da política familiar, da política dentro das

mais variadas instituições, da política do dia-a-dia etc.

A política portanto, conforme Foucault estaria em tudo. Peter Burke8 porém

discordou de Foucault, provocando-o no sentido de que se a política estaria em tudo,

não haveria necessidade de estudá-la. Já René Rémond9 propôs um “resgate” da história

política. Sugeriu novas formas de se abordagem do político. Influenciou muitas

produções no Brasil.

Enfim, não se pode negar que há uma “nova” história política reclamando seu

espaço. Vista com preconceito por várias correntes historiográficas recentes, a nova

história política não as renegou, agregou delas aspectos como ferramentas necessárias

ao seu desenvolvimento.

Em processo de construção, a nova história política ainda precisa delimitar-se,

pois afinal, o que é o político? Se o político é o poder e, se concordarmos com Foucault,

onde o poder está em tudo, tudo é relação de poderes; é difícil para tendência

historiográfica denominar-se política. Se seguirmos essa linha e partirmos para o

conceito de cultura, onde segundo teorias contemporâneas toda ação humana é uma

ação eminentemente cultural, pois estará inevitavelmente relacionada ao universo

simbólico, chegamos à mesma conclusão, pois se tudo é produzido culturalmente

porque definir uma história como política? O mesmo aplica-se ao conceito de

imaginário, de social, e outros.

A nova história política aponta para as singularidades nas relações de poder

entre eleitorado e Estado, entre candidatos e eleitores etc., que as distingue das relações

de poderes dentro de uma prisão, um prostíbulo, uma escola, na família, nas fabricas

etc. Se for verdade que tudo é poder e, conseqüentemente, política, também é verdade

que há diferentes formas e níveis de relações de poder ou política, dessa forma, o que

8 BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: Novas perspectivas. Universidade Estadual de São Paulo,

São Paulo, 1992. 9 RÉMOND, René. Por uma História política. Tradução: Dora Rocha. UFRJ. Rio de Janeiro. 1996

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distinguimos como política, propriamente dita, é a política relacionada à administração

pública com seu imaginário e cultura própria da mesma.

Com a renovação da história política, surgem novos problemas, novas temáticas

ou temáticas já consolidadas, mas que passam a ser abordadas por metodologias

diferentes, ou fontes novas. As campanhas eleitorais, os simbolismos dessas campanhas,

o comportamento das massas nesses momentos, o imaginário político, a tradição

política, a apropriação dessas tradições pelos diferentes grupos, sem falar nas ideologias

partidárias e nas práticas políticas e as intenções por traz das mesmas, pois se tudo é

poder e, conseqüentemente, política, então se faz necessário distinguirmos as diferentes

formas e níveis de poder. Nesse contexto, é terra fértil problematizar a Marcha da

Família com Deus pela liberdade. Novas ferramentas metodológicas podem ser

utilizadas e a nova história política passou por uma revalorização. Dessa forma, posso

analisar a “marcha” em si e as relações dos sujeitos que organizaram/participaram dela

com os diversos níveis e mecanismos de poder.

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1.3. Os antecedentes – o populismo de Juscelino a Jango.

Após a morte de Getúlio Vargas, a democracia no Brasil foi seriamente

ameaçada. Membros da UDN quiseram impedir a posse de Juscelino Kubitschek e João

Goulart, eleitos pelo povo presidente e vice-presidente. Mas o general Henrique

Teixeira Lott, ministro da Guerra, colocou suas tropas nas ruas e garantiu a posse dos

eleitos.10

Durante o governo de Juscelino Kubitschek ocorreu um grande aumento da

produção industrial no setor de bens de consumo duráveis como automóveis e

eletrodomésticos. A política econômica de Juscelino é vista por alguns historiadores

como desenvolvimentismo. Foram anos de estabilidade política e crescimento

industrial. Em contrapartida foram características os altos índices de inflação, o

crescimento da dívida interna e externa e de aprofundamento das desigualdades sociais

e regionais. 11

O mandato de Juscelino foi finalizado em 1960 com eleições presidenciais que

deram vitória eleitoral a Jânio Quadros. Jânio foi um típico líder populista. Para ganhar

votos prometia que, se eleito, iria “varrer” a corrupção existente no governo. Para

reforçar essa imagem de administrador honesto e decidido, usava uma vassoura como

símbolo de sua campanha contra a corrupção.

Em meio à chamada “guerra fria”, o governo de Jânio usou uma política

internacional independente. Recusou-se a obedecer à orientação política dos Estados

Unidos ou da União Soviética. Reatou relações diplomáticas com a União Soviética e

com a China, colocando-se contra a invasão de Cuba pelos Estados Unidos. Talvez seu

ato de maior ousadia foi o de condecorar o então ministro cubano Ernesto “Che”

Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais alta honraria da nação brasileira.

Essa postura política fez com que Jânio descontentasse os Estados Unidos,

chefes militares brasileiros e políticos como Carlos Lacerda (UND), que era governador

da Guanabara, então Distrito Federal. Acusado pelos opositores de ser aliado dos

10 SKIDMORE, Thomas E., Uma história do Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1998. p.202. 11 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Ediusp, 1996. p. 429.

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comunistas e de pretender instalar uma ditadura no Brasil, renunciou à presidência da

República.

Boris Fausto interpreta a renúncia de Jânio Quadros como uma tentativa de

golpe. Afirma que ele pretendia conseguir ampliar seus poderes para governar sem ter

que consultar o Congresso. Porém, sua estratégia falhou: a população não saiu às ruas

para exigir a volta dele ao poder, e o Congresso aceitou seu pedido de renúncia. 12

A Constituição vigente deixava claro que com a renúncia de Jânio, o governo

deveria ser entregue ao vice-presidente João Goulart. Mas havia uma particularidade

política aí, pois a constituição de então permitia que o eleitor votasse no candidato à

presidente e em separado escolhesse o vice-presidente. Assim, Jânio e João Goulart

eram oponentes políticos. Goulart estava em visita oficial à China e o poder foi entregue

provisoriamente ao presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli.

A sociedade brasileira se dividiu entre os que eram favoráveis e os que eram

contrários à posse de João Goulart. Em meio à crise política conflituosa o Congresso

propôs que João Goulart assumisse desde que aceitasse o parlamentarismo. Nesse

sistema, o chefe do governo é o primeiro ministro, não o presidente da República. Foi

realizado um plebiscito que legitimou o parlamentarismo, com João Goulart como

presidente.

Para tentar combater a inflação, incentivar o crescimento econômico e melhorar

a distribuição de renda, o governo Goulart pôs em prática estratégias conhecidas como o

“Plano Trienal”, que previa a reforma agrária, redução dos gastos públicos e

investimentos estatais. Mas os que lucravam com a inflação sabotavam as medidas do

governo; os políticos aliados aos grandes latifundiários (PSD e UDN) votavam sempre

contra as propostas de Jango. Os líderes sindicais não se conformavam com o controle

sobre os salários. Os Estados Unidos negaram-se a emprestar dinheiro para o Brasil.

Com o plano trienal abortado, o governo Goulart foi perdendo apoio.

Ao mesmo tempo, emergiam movimentos sociais que pressionavam para

reformas profundas na sociedade brasileira. Os estudantes através da UNE (União

Nacional dos Estudantes) queriam o fim do analfabetismo. As Ligas Camponesas

desejavam uma reforma agrária que limitasse a quantidade de terras que cada pessoa

podia possuir e propunham a criação de um imposto progressivo sobre as terras não

12 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Ediusp, 1996. p. 467.

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cultivadas. Os operários também estavam representados pela CNTI (Confederação

Nacional dos Trabalhadores da Indústria). A Igreja Católica estava longe de ter uma

posição única. Surgiram em seu interior grupos como a Juventude Universitária

Católica (JUC) e Ação Popular (AP).

Os grupos católicos tinham tendência socialista e se juntavam aos estudantes nas

manifestações, embora houvessem expressivos grupos católicos conservadores como a

Cruzada do Rosário em Família e membros do alto clero como Dom Sigaud. A Igreja

Católica atuava na Câmara dos Deputados através do Senador Padre Calazans (UDN).

A postura política do Padre Calazans era visivelmente conservadora e reacionária. Em

discurso no Senado no dia 19/02/1964, ele critica o governo federal com acusações de

comunismo, apóia Carlos Lacerda que era o então Governador da Guanabara. Repudia

greves, sindicatos, deforma agrária. Critica a eleição de João Goulart que, segundo ele,

não deveria ter tomado posse. 13

1.4. O presidente João Goulart e a Guerra Fria.

A Segunda Guerra Mundial pode ser considerado o fator que desencadeou os

conflitos ideológicos antagônicos no Brasil e no mundo. Ao seu término disputavam

espaço no cenário mundial as ideologias capitalista e socialista. No país, o capitalismo

tardio estava sustentado pelo estado ou por organizações transnacionais. Era necessário

garantir a continuidade do desenvolvimento do modelo econômico e, para tal, foram

organizadas várias agências e agentes utilizados pelos interesses multinacionais e

associados, assim como da formação de novos sujeitos políticos que garantissem o

combate à proliferação de idéias socialistas, consideradas perigosas ao modelo

vigente.14

Por causa das injustiças sociais, o povo despertava da submissão que levou ao

enriquecimento das elites que controlavam a economia, agrupando-se em inúmeras

organizações de esquerda. O presidente João Goulart havia assumido uma posição

nacionalista-reformista. Nos primeiros meses de 1964, ele procurou mobilizar as massas

13 Publicação no DCN2 de 20/02/1964 - página 350 14: DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe.Petrópolis: Vozes, 1981. P.66

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para a implementação, ainda naquele ano, das chamadas reformas de base - agrária,

bancária, administrativa, universitária e eleitoral -, bloqueadas pelo Congresso, e para a

extensão do direito de voto aos analfabetos, soldados, marinheiros e cabos, assim como

a elegibilidade para todos os eleitores.15

O principal meio utilizado para evidenciar o caráter socialista das ações do

presidente João Goulart foi à televisão. Ela havia se tornado o meio de comunicação das

massas e, portanto, um instrumento eficaz para atribuir uma imagem subversiva,

antipatriótica do presidente e suas ações em favor das reformas.

Chiavenatto afirma que

“A grande ofensiva do poder econômico contra o governo Goulart começou com o uso da imprensa. (...) Houve um processo de demonização em que se acusou o governo até de ofender a Virgem Maria: as figuras do governador Ademar de Barros e da deputada Conceição da Costa Neves rezando o terço em defesa da Virgem são tópicos característicos (e atualmente um tanto surrealistas) dessa campanha.16 O discurso do Padre Calazans no Senado Federal em 28/08/1963 repudia a uma charge publicada, no vespertino Última Hora “...com inscrição blasfema e racista, tendo por motivo a padroeira do Brasil”. No mesmo pronunciamento protesta contra a visita do Presidente da Iugoslávia, Marechal Tito, ao Brasil. 17

Embora com o auxílio de um instrumento eficaz para a doutrinação das massas

como a televisão, a elite conservadora utilizou-se de outros meios de propaganda de

seus interesses como o rádio, a guerra psicológica através de cartuns e filmes, revistas e

jornais. Havia a necessidade de uma articulação desse grupo conservador, que

financiasse e mantivesse a continuidade da propaganda ideológica. Diretores e

presidentes de associações comerciais e industriais, com o apoio da Câmara de

Comércio dos Estados Unidos, criaram o IBAD: Instituto Brasileiro de Ação

15 SKIDMORE, Thomas E. Uma história do Brasil. São Paulo: Paz e terra, 1998. P.215. 16 CHIAVENATTO, Júlio José. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 1994. p. 29 17Cf.http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/Consulta_Parl.asp?p_cod_senador=1506&p_ano=1963

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Democrática. Esse órgão tinha como função arrecadar e distribuir fundos para forte

campanha publicitária anticomunista contra o governo.18

1.5. A Igreja Católica contra o presidente.

Se politicamente de 1946 a 1964 o país viveu o período populista e

desenvolvimentista em antagonismo às ideologias de esquerda, a igreja católica também

não estava em uniformidade de pensamento. Parte do clero se preocupava com a

situação precária do povo e, principalmente através da organização dos jovens,

procurava melhorar essa situação. Assim foram organizados grupos católicos ligados a

vários setores: a Juventude Estudantil Católica (JEC), a Juventude Universitária

Católica (JUC), a Juventude Operária Católica (JOC) e a Juventude Agrária Católica

(JAC).

O alto clero possuía seus mecanismos de controle político, mesmo que nas

aparências fossem apenas doutrinários. O instrumento de ação política da Igreja foi a

LEC, Liga Eleitoral Católica, um grupo de politização pensado pelo alto-clero

brasileiro, utilizado como instrumento de pressão sobre os fiéis.

O alto clero recomendava aos eleitores católicos que eles poderiam votar em

qualquer partido desde que comprometidos com a defesa das “reivindicações da Igreja”.

Embora essa liberdade de escolha não fosse tão irrestrita assim, pois ao mesmo tempo

em que afirmava isso, fazia um pacto de cooperação com o governo, que garantiria o

ensino religioso nas escolas públicas, assistência religiosa nas forças armadas, e a

questão do casamento civil, pautado pelos princípios da Igreja.19

Havia um notável desconforto, beirando a intolerância da hierarquia católica

brasileira com os grupos católicos que se politizavam cada vez mais, apoiando as

reformas de Goulart. Os setores mais conservadores da sociedade organizaram vários

grupos que denunciavam o ‘progresso e subversão’ em curso no Brasil.

18 DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe.Petrópolis: Vozes, 1981.p.257. 19 BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965, São Paulo : Paulinas, 2005.p.43.

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Com os mesmos fins do Ibad, D. Jaime de Barros Câmara trouxe das

Filipinas, em 1963 o padre Peyton. Com grande cobertura da mídia, ele promoveu a

Cruzada pelo Rosário em Família, associando em seus discursos os males do mundo e

do Brasil, aos políticos ateus que queriam mudar a ordem natural das coisas. Segundo

Chiavenatto

“Historiadores norte-americanos, como Jerome Levinson e Juan de Onis ... Demonstraram, na década de 70, que o padre Peyton não só era agente da CIA como as várias marchas, promovidas em 1964 por associações femininas católicas, foram financiadas por empresas norte americanas e pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos.”20

De forma eficaz, a elite dominante conseguiu se articular com o catolicismo,

especialmente o alto clero, para implantar suas ambições. Já haviam conseguido o apoio

financeiro dos empresários e, através do Ibad manipulavam a opinião pública. Um

expressivo número de católicos aderiu às idéias do Padre Peyton. Outros grupos

católicos ajudaram a implementar tais idéias, como a Associação dos Antigos Alunos do

Sagrado Coração de Jesus, o Grupo de Reabilitação do Rosário, os Cursilhos da

Cristandade, a Opus Dei.21

Havia o padre Calazans, que era Senador e a julgar pelos seus pronunciamentos

e proposições, extremamente conservador. 22

Nas ruas, Plínio Corrêa de Oliveira organizava a TFP: Tradição Família e

Propriedade. Essa organização também estava ligada ao setor conservador da igreja

católica. Fizeram procissões com orações e jaculatórias anticomunistas. Foi um ensaio

para a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. 23

A Marcha da Família com Deus pela liberdade foi um movimento urbano

ocorrido em março de 1964 e que consistiu numa série de manifestações ou “marchas”,

organizadas por setores conservadores do clero articulados com as elites hegemônicas.

20 CHIAVENATTO, Júlio José. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 1994. p.31 21 21 DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe.Petrópolis: Vozes, 1981.p.335. 22 http://www.pedacodavila.com.br/materia.asp?mat=104 acesso em 11/04/2009 23 OLIVEIRA, Plínio Corrêa. Meio século de epopéia anticomunista. São Paulo: Editora Vera Cruz, 1980.

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Foi uma resposta ao comício do presidente Goulart em 13 de março de 1964.

Congregou segmentos da classe média que temia o perigo comunista. Eram favoráveis à

deposição do presidente da república.

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1.6. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade.

Para Boris Fausto “O primeiro ato das reformas de Jango marcou o começo do

fim de seu governo. Um sinal de tempestade veio com a Marcha da Família com Deus

pela Liberdade...”. 24

Cerca de meio milhão de pessoas saíram às ruas em 19 de março de 1964, em São Paulo, como podemos analisar no acervo on-line do jornal A Folha de São Paulo: “Ontem, São Paulo parou. E foi à praça publica - porque "a praça é do povo" - numa mobilização que envolveu meio milhão de homens, mulheres e jovens, também de outros Estados: a "Marcha da Família com Deus, pela Liberdade". (...) Foi a maior manifestação popular já vista em nosso Estado. O repudio a qualquer tentativa de ultraje à Constituição Brasileira e a defesa dos princípios, garantias e prerrogativas democráticas constituíram a Tonica de todos os discursos e mensagens dirigidos das escadarias da catedral aos brasileiros, no final da passeata.”25

Embora a Marcha da Família com Deus pela Liberdade fosse o sinal definitivo

de que grande parte da classe média e alta do Brasil era abertamente favorável ao golpe,

as grandes manifestações públicas seriam virtualmente banidas depois que os militares

tomaram o poder. Curiosamente, em 02 de abril de 1964, a Marcha da Família com

Deus pela Liberdade foi realizada no Rio de Janeiro. Com cerca de meio milhão de

pessoas participantes, teria sido a marcha da vitória dos militares. Carlos Lacerda, um

dos principais oponentes de João Goulart estava presente. Embora tenha sido uma

manifestação favorável aos militares, foi uma das últimas vezes que as pessoas puderam

sair livremente às ruas no regime militar que estava sendo iniciado. As demais

manifestações a partir daí, seriam duramente reprimidas.

24 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Ediusp, 1996.p.460. 25 FOLHA DE S.PAULO, sexta-feira 20 de março de 1964. Arquivo on-line: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_20mar1964.htm, acessado em 22/09/2008.

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1.7. O trajeto da marcha.

Os jornais paulistas publicaram como manchete de capa, no dia 20 de março de

1964, dia seguinte ao evento.

“Durante hora e meia, com a cidade adquirindo aspectos de feriado, um caudal humano correu, ininterruptamente, da praça da República para a praça da Sé, passando pela rua Barão de Itapetininga, praça Ramos de Azevedo, Viaduto do Chá, praça do Patriarca e rua Direita, até se represar ante as escadarias da catedral metropolitana. (...) Com bandas de musica, bandeiras de todos os Estados, centenas de faixas e cartazes, numa cidade com ar festivo de feriado, a "Marcha" começou na praça da Republica e terminou na praça da Sé, que viveu um dos seus maiores dias. “Meio milhão de homens, mulheres e jovens (...) foram mobilizados pelo acontecimento.” Com "vivas" à democracia e à Constituição, mas vaiando os que consideram "traidores da patria",”26

O Jornal A Última Hora, trazia na sua edição vespertina do dia 20 de março de

1964, como manchete “REVOLUÇÃO CONTRA AS REFORMAS. Plínio Salgado

prega nas ruas de São Paulo: Dirigindo-se à multidão, que num movimento de fé cristã,

saiu ontem, às ruas de São Paulo, o Sr. Plínio Salgado (foto) pregou a revolução do

povo contra as reformas, no que foi secundado por outros líderes da revolução e do

fascismo.” 27

A multidão chegou na Praça da Sé por volta das 18:30 horas. Nas escadarias da

Catedral, vários líderes políticos e religiosos usaram o microfone e discursaram

insuflando a multidão a manifestar o apoio respondendo às orações ou com palmas e

gritos.

26 FOLHA DE S.PAULO, sexta-feira 20 de março de 1964. Arquivo on-line: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_20mar1964.htm, acessado em 22/09/2008. 27 ÚLTIMA HORA, 20 de março de 1964. capa.

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1.8. Quem usou o microfone e o que disseram aos presentes?

Segundo o Jornal Folha de São Paulo, antes mesmo de a multidão chegar, o

senador Padre Calazans já ocupava o microfone, organizando a multidão que chegava.

Quem iniciou a série de discursos aos presentes foi o Sr. Amaro César, que discorreu

sobre os objetivos da Marcha. Depois, o padre Calazans voltou a ocupar o microfone,

dizendo:

"Hoje é o dia de São José, padroeiro da família, o nosso padroeiro. Fidel Castro é o padroeiro de Brizola. É o padroeiro de Jango. É o padroeiro dos comunistas. Nós somos o povo. Não somos do comício da Guanabara, estipendiado pela corrupção. Aqui estão mais de 500 mil pessoas para dizer ao presidente da Republica que o Brasil quer a democracia, e não o tiranismo vermelho. Vivemos a hora altamente ecumênica da Constituição. E aqui está a resposta ao plebiscito da Guanabara: Não! Não! Não!". (...) "aqui estamos sem tanques de guerra, sem metralhadoras. Estamos com nossa alma e com nossa arma, a Constituição".28

Foi anunciado a chegada de dona Leonor Mendes de Barros, esposa do então

governador da Guanabara Ademar de Barros. Depois de muitos aplausos, a banda da

Força Publica tocou o Hino Nacional, que foi cantado por todos os manifestantes

enquanto acenavam com lenços brancos.

Em seguida, discursou o Sr. Geraldo Goulart, ex-combatente na Revolta

Constitucionalista de 1932, dizendo da semelhança entre a situação atual e aquela que

originou a Revolução Constitucionalista. Depois, uma mãe paulista leu a mensagem da

mulher bandeirante ao povo brasileiro.

Ao ocupar o microfone, a professora Carolina Ribeiro, ex-secretária da

Educação, entoou o Pai-nosso e a multidão respondeu. Ouviram-na dizer: "Temos que

pedir a Deus, neste momento em que nossos corações fervem de indignação, que não

28 FOLHA DE S.PAULO, sexta-feira 20 de março de 1964. Arquivo on-line: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_20mar1964.htm, acessado em 22/09/2008

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caiamos na tentação da revolta, porque só a Deus compete levar-nos pelo caminho

certo". Ao Pai-Nosso, o Padre Clazans deu continuidade, entoando a Ave-Maria e a

seguir: "Repudio as ofensas lançadas ao Rosário no comício da Guanabara". Era a hora

do "Angelus". Todos deram um “viva à Rainha do Brasil".

O deputado Ciro Albuquerque, que era o então presidente da Assembléia

Legislativa paulista, se dirigiu aos presentes com o discurso: "A liberdade é como a

saúde: somente lhe damos valor depois que a perdemos. Queremos paz, tranquilidade.

E, sobretudo, exigimos respeito à Constituição e às instituições democráticas". Em

seguida, conclamou todos os membros das casas legislativas brasileiras a "estudar as

reformas, que o povo deseja e merece, mas que devem ser feitas dentro do respeito à

soberania do Congresso Nacional". Encerrou seu discurso lendo uma mensagem dos

prefeitos paulistas, dando conta da assinatura de um manifesto, em que conclamam os

brasileiros a lutar por aqueles princípios.

Seguiram-no na tribuna o deputado Arnaldo Cerdeira, ressaltando: "não

admitiremos a transgressão à lei, a agressão à Constituição" e o Sr. Amaro Cesar; que

leu outra mensagem de alerta, dirigida pelos integrantes da "Marcha" ao povo brasileiro.

Em seu discurso, o deputado Everardo Magalhãoes,

tocou no nome do Sr. Leonel Brizola e não pôde continuar o discurso por alguns

minutos. Todos os manifestantes gritavam: "1, 2, 3, Brizola no xadrez. Se tiver lugar,

vai o Jango também". Vaias estrondaram por toda a praça e, logo depois, o parlamentar

prosseguia: "Vamos dar nossa resposta democrática ao plebiscito da Guanabara". A

multidão levantou os braços, acenando novamente com lenços brancos, "pela

Constituição". E o deputado retrucou: "Obrigado paulistas. Obrigado brasileiros. Esta é

a mensagem que levo para o Rio". Nesse momento, a banda da Força Publica executou

o Hino Nacional, cantado pelos presentes, ainda com os lenços acenando.

O orador seguinte foi o deputado Plínio Salgado, interrogando às Forças

Armadas: "Bravos soldados, marinheiros e aviadores de nossa pátria, sereis capazes de

erguer vossas armas contra aqueles que querem se levantar, aqueles que se levantam

contra a desordem, a subversão, a anarquia, o comunismo? Contra aqueles que querem

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destruir os lares e a soberania da pátria? Esta manifestação não vos comove? Será

possível que permitireis, ainda, que o Brasil continue atado aos títeres de Moscou?"

O deputado Cunha Bueno, em seguida, agradeceu, em nome dos paulistas, o

comparecimento das delegações do interior e de outros Estados. E acentuou: "Os

brasileiros aqui estão reunidos para dizer ao presidente da Republica: Basta! Basta!

Basta (nestas palavras foi seguido pelos manifestantes). O que queremos é paz para

continuar nosso trabalho". Deu "vivas" ao Brasil e à democracia.

Por sua vez, o dep. Herbert Levy acentuou: "Vossa presença neste momento

histórico significa que o povo brasileiro não quer ditadura, não quer comunismo. Quer

paz, ordem e progresso. O povo está na rua revivendo o espírito de 32 em defesa da

Constituição que fizemos com o nosso sangue. E, se preciso, iremos todos, velhos,

moços e até crianças, para as trincheiras de 32. Esta é a advertência para o presidente da

República e seu cunhado, para que não brinquem de comunismo no Brasil". Foi

interrompido várias vezes pelos populares, que gritavam: "1, 2, 3, Brizola no xadrez" e

"Verde-amarelo, sem foice e martelo". E a banda da Guarda Civil atacou a marcha

"Paris Belfort", o hino da Revolução de 32.

A deputada Conceição da Costa Neves também dirigiu saudação aos brasileiros,

dizendo: "Aqui, mercê de Deus, se encontra o Brasil unido contra a escravatura

vermelha. De São Paulo partirá a bandeira que percorrerá todo o país, para dizer a todos

os partidos que a hora é de união, para dizer basta ao Sr. presidente da República".

Depois, houve outros oradores - estudantes e representantes de outros Estados -,

todos ressaltando a necessidade de união pela preservação do regime, e o deputado

Camilo Aschar afirmou que "a Assembléia Legislativa de São Paulo estará alerta para o

que der e vier". Discursou também o prefeito de Campinas, Sr. Rui Novais, e um

representante da delegação paranaense lembrou que "32 e 32 somam 64", fazendo

alusão à Revolta Constitucionalista de 1932, que naquele momento, em 1964 teria

objetivos semelhantes.

O último orador a ocupar a tribuna foi o Sr. Auro Soares de Moura Andrade,

presidente do Congresso Nacional. E disse: "Sentimos que hoje é um dia de importância

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histórica para o Brasil. O povo veio à praça pública para demonstrar sua confiança na

democracia. Veio para afirmar perante a Nação que os democratas não permitirão que

os comunistas sejam os donos da Pátria. Democratas do Brasil confiem, não desconfiem

das gloriosas Forças Armadas de nossa pátria. Dentro de cada farda, não está somente

um corpo, mas também uma consciência e um juramento feito. Que sejam feitas

reformas, mas pela liberdade. Senão, não. Pela Constituição. Senão, não. Pela

consciência cristã do nosso povo. Senão, não". E todos os presentes o acompanharam no

"senão, não".

Logo em seguida, a banda tocou a Canção do Soldado, cantada pelos

manifestantes, que, depois, repetiram os "slogans" contra Leonel Brizola e o

comunismo. Terminado este último discurso, a multidão foi se dispersando. Eram por

volta de 18h45 e, muitos, entraram na catedral para assistir à missa vespertina, outros

tomaram ônibus para seus destinos. A praça ficou quase vazia, apenas alguns

vendedores ambulantes e alguns mendigos, moradores de rua, permaneceram ali.

Plínio Salgado foi um jornalista que ajudou a fundar a Ação Integralista

Brasileira, tornando-se o chefe deste movimento nacional. O Integralismo de Plínio

Salgado configurou-se como o maior movimento nacionalista da história do Brasil.

1.9. Houveram resistências à Marcha?

Certamente, pois toda a opressão gera resistência. Existem poucos registros

sobre a resistência aos participantes da Marcha da Família com Deus pela liberdade.

Esse silêncio acerca das resistências nos leva a outras indagações: a) Não houveram

manifestações contrárias ou que criticaram a marcha? b) Se houveram críticas, por que

os jornais da época não deram importância?

Busquemos algumas pistas que nos levem a dar visibilidade às formas de

resistência.

O jornal a Folha de São Paulo apontou que o deputado Murilo de Sousa Reis

acompanhado de policiais efetuou a interdição de um prédio comercial, na Rua Barão de

Itapetininga, e, revistou todos os conjuntos. Isso porque de um deles haviam atirado um

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balde de água nos transeuntes componentes da passeata. Numa das janelas, aquele

deputado constatou que o seu batente estava molhado e efetuou a detenção do

responsável pelo escritório e de um outro elemento que o acompanhava. Ambos foram

conduzidos ao DOPS e só à noite foram dispensados.

A polícia efetuou na Praça da Sé durante a Marcha a detenção de dois jovens que

portavam dentro do carro grande quantidade de ovos de galinha. Apontados por alguns

participantes da Marcha, que disseram que os rapazes iam jogar os ovos na multidão, os

dois foram detidos e encaminhados ao DOPS. Só então foi constatado que as caixas se

destinavam a um supermercado. Os dois foram dispensados.

Esses dois fatos podem em um primeiro momento parecer isolados e não

configurar uma resistência organizada à Marcha da Família com Deus pela liberdade.

Mas são fatos curiosos e reveladores. Demonstram que não havia unanimidade de apoio

da população aos manifestantes e aos seus líderes. Talvez o grande número de

participantes intimidou àqueles que com visão política diferente, destoavam dos que

“marchavam” pela “família e a liberdade”. Ou quem sabe, não teria dado tempo de

organizar uma resistência expressiva? O fato é que, alguns, corajosamente, ousaram, ou

pelo menos tentaram, demonstrar resistência.

1.10. Quem eram e quais as opções e expressões políticas de alguns dos que

discursaram na Praça da Sé durante a Marcha?

Comecemos pelo deputado Padre Calazans. Foi eleito Senador pela UDN na 42ª

legislatura (1963-1967) também foi o fundador de movimentos católicos de leigos como

Lareira Instituição a Serviço da Família e do Movimento de Emaús - Instituto das

Comunidades Missionárias de Emaús. Esses dois movimentos atendiam aos apelos de

Roma sobre a participação dos leigos na Igreja, embora direcionava-os para uma

participação política em defesa da família e dos princípios do catolicismo.29

Já Plínio Salgado, foi deputado federal pelo estado do Paraná em 1958 e por São

Paulo em 1962, ambos pelo Partido de Representação Popular (PRP), fundado por

29 Cf.http://www.senado.gov.br/sf/atividade/1963 acesso em 12/04/2009

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Plínio após voltar do exílio em Portugal no ano de 1946. Foi também candidato à

presidência da República, em 1955, obtendo cerca de 8% dos votos. Após o Golpe de

1964 e a extinção do PRP, ele juntou-se ao partido político Arena e teve mais dois

mandatos de deputado federal: um em 1966 e outro em 1970. Aposentou-se da vida

política em 1974. Foi opositor do comunismo, do nazismo e do liberalismo.

Estava do lado das elites e, foi duramente criticado. O escritor Jorge Amado

descreve o que ele pensa ser Plínio Salgado na obra "Vida de Luis Carlos Prestes - O

cavaleiro da esperança":

“Nunca, em todo mundo, incluindo o futurismo de Marinetti no fáscio italiano, incluindo as teorias árias do nazismo alemão, nunca se escreveu tanta idiotice, tanta cretinice, em tão má literatura, como o fez o integralismo no Brasil. Foi um momento onde maior que o ridículo só era a desonestidade. Plínio Salgado, führer de opereta, messias de teatro barato, tinha o micróbio da má literatura. Tendo fracassado nos seus plágios de Oswald de Andrade, convencido que não nascera para copiar boa literatura, plagia nesses anos o que há de pior em letra de fôrma no mundo. É a literatura mais imbecil que imaginar se possa.” 30.

Mas talvez a investigação do mentor da Marcha da Família com Deus pela

Liberdade deva estar direcionada a alguém que não esteve presente no evento. Um ano

antes, estivera no Brasil, o padre Patrick Peyton, fundador do movimento católico

intitulado Cruzada pelo Rosário.

As forças que se juntaram contra o presidente João Goulart na Marcha da

Família com Deus pela liberdade não eram exclusivamente católicas, ou pelo menos, do

clero. O comício do presidente na Central do Brasil, no dia 13 de março tinha sido uma

demonstração de força e de arregimentação popular por parte dos que apoiavam a

política do governo. Os setores conservadores desejavam agora realizar uma

manifestação popular ainda mais impressionante de repúdio ao governo Goulart. E

conseguiriam.

30 AMADO, Jorge. O cavaleiro da esperança: Vida de Luis Carlos Prestes. 34ª ed. Rio de Janeiro, Record. 1987. p. 143

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Figura 01: A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em São Paulo (19/03/1964).

Acervo: CPDOC/FGV (on-line)

Figura 02: A Marcha da Vitória. Rio de Janeiro, 02/04/1964. Acervo: CPDOC/FGV

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AMADO, Jorge. O cavaleiro da esperança: Vida de Luis Carlos Prestes. 34ª ed. Rio de Janeiro, Record. 1987. p. 143 BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965, São Paulo : Paulinas, 2005, BOBBIO, Norberto; METTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de

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