as infancias nas tramas da cultura visual

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1 AS INFÂNCIAS NAS TRAMAS DA CULTURA VISUAL Susana Rangel Vieira da Cunha Em direção aos Estudos da Cultura Visual Começo este capítulo narrando como me aproximei dos Estudos da Cultura Visual buscando entender como as diferentes Infâncias, sejam elas contemporâneas ou de “outros tempos”, estão sendo vistas, expostas, narradas e produzidas pelas materialidades simbólicas da cultura visual. Faço esta breve retrospectiva sobre minhas vivências pessoais e meus caminhos e atalhos teóricos, com o intuito de mostrar as imbricações entre uma história mais geral e as nossas “historinhas” pessoais, bem como mostrar situações cotidianas que foram transformadas em objetos de estudo. Minha trajetória, como pesquisadora e professora universitária na área de Educação Infantil e Artes Visuais, me direcionaram, por muitos motivos, a pensar a cultura como constitutiva dos aspectos da vida social. Foi um processo longo compreender que “a cultura penetra em cada recanto da vida social contemporânea, fazendo proliferar ambientes secundários, mediando tudo” (HALL, 1997, p.22). Muito mais do que compreender a cultura como produtora dos nossos modos de ver e de agir, foi entender que ela está imbricada com as disputas de poder entre os diferentes grupos sociais. Assim, meus olhares sobre o mundo, sobre qualquer produção cultural, como um filme, uma revista, propaganda televisiva ou moda, foi transformado, pois anteriormente impregnada das teorias críticas e entendendo o mundo como uma imensa luta de classes, não me dava conta do quanto as diversas produções culturais geravam práticas culturais e, que estas afetam nossas vidas, as formas como compreendemos o mundo, nós mesmos e como nos relacionamos com os outros. Embora não compreendesse mais o mundo como uma grande luta de classes e a arte como tendo o papel de agudizar e perpetuar as diferenças sociais, algumas idéias ainda reverberavam, entre elas: a dimensão política da educação e da arte, a ampliação dos conceitos sobre cultura, a crítica em relação às formas culturais hegemônicas, a imposição a determinados modelos estéticos, a desvalorização das produções culturais não sacralizadas, e, de um modo geral, os territórios da cultura e da arte.

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Page 1: As infancias nas tramas da cultura visual

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AS INFÂNCIAS NAS TRAMAS DA CULTURA VISUAL

Susana Rangel Vieira da Cunha

Em direção aos Estudos da Cultura Visual

Começo este capítulo narrando como me aproximei dos Estudos da Cultura Visual

buscando entender como as diferentes Infâncias, sejam elas contemporâneas ou de “outros

tempos”, estão sendo vistas, expostas, narradas e produzidas pelas materialidades

simbólicas da cultura visual. Faço esta breve retrospectiva sobre minhas vivências pessoais

e meus caminhos e atalhos teóricos, com o intuito de mostrar as imbricações entre uma

história mais geral e as nossas “historinhas” pessoais, bem como mostrar situações

cotidianas que foram transformadas em objetos de estudo.

Minha trajetória, como pesquisadora e professora universitária na área de Educação

Infantil e Artes Visuais, me direcionaram, por muitos motivos, a pensar a cultura como

constitutiva dos aspectos da vida social. Foi um processo longo compreender que “a cultura

penetra em cada recanto da vida social contemporânea, fazendo proliferar ambientes

secundários, mediando tudo” (HALL, 1997, p.22). Muito mais do que compreender a

cultura como produtora dos nossos modos de ver e de agir, foi entender que ela está

imbricada com as disputas de poder entre os diferentes grupos sociais.

Assim, meus olhares sobre o mundo, sobre qualquer produção cultural, como um

filme, uma revista, propaganda televisiva ou moda, foi transformado, pois anteriormente

impregnada das teorias críticas e entendendo o mundo como uma imensa luta de classes,

não me dava conta do quanto as diversas produções culturais geravam práticas culturais e,

que estas afetam nossas vidas, as formas como compreendemos o mundo, nós mesmos e

como nos relacionamos com os outros. Embora não compreendesse mais o mundo como

uma grande luta de classes e a arte como tendo o papel de agudizar e perpetuar as

diferenças sociais, algumas idéias ainda reverberavam, entre elas: a dimensão política da

educação e da arte, a ampliação dos conceitos sobre cultura, a crítica em relação às formas

culturais hegemônicas, a imposição a determinados modelos estéticos, a desvalorização das

produções culturais não sacralizadas, e, de um modo geral, os territórios da cultura e da

arte.

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Em meados dos anos 90, na condição de Coordenadora Pedagógica de uma oficina

de arte1 direcionada à crianças e jovens, junto com os/as artistas/professores/as, comecei a

prestar atenção às produções visuais das crianças, tanto nas temáticas quanto nos modos de

constituição das linguagens visuais, marcadas pelos universos imagéticos com que elas

conviviam, como a TV, as histórias em quadrinhos e as produções de arte contemporânea

que elas tinham acesso naquele espaço cultural. Destas observações e constatações, me

perguntava sobre como as crianças estavam constituindo seus imaginários na

contemporaneidade, dizendo:

Uma nova percepção está sendo elaborada, advinda de um contexto social conflitante, violento, atomizado que pode ser lido através dos meios de comunicação de massa, dos videogames, dos farrapos humanos que nos abordam nas ruas. Qual a leitura que nós arte-educadores, fazemos das imagens e do cotidiano? Como entendemos e reagimos aos apelos sensoriais e cognitivos que o mundo contemporâneo nos impõe? Quais as relações de conhecimento que estabelecemos com as imagens historicamente construídas? Que suportes teóricos necessitamos para uma melhor compreensão do mundo infantil e adulto? Podemos elaborar estratégias de intervenção social via arte-educação? (CUNHA, 1995, p.3).

Nos cinco anos, de intensa convivência com artistas/professores/as, crianças

pequenas e adolescentes, meus questionamentos aumentavam, porém, sem um apoio

teórico que me desse sustentação para aquilo que via nas produções infantis. Também neste

período, vivia a experiência da maternidade e adentrava no infindável mundo dos artefatos

culturais direcionados à infância: todos em tons rosados, Minnies e Mônicas bêbes,

utensílios, roupas, calçados (todos com arabescos, borboletas e muitos laços e flores). Uma

infindável quantidade de objetos-coisas invadia cotidianamente minha casa, sem que me

desse conta sobre o quanto eles afetavam minhas visões sobre a infância, minhas escolhas e

comportamentos como mãe. A respeito de como nos relacionamos com as representações

sobre a infância, David Buckingham (2002) assinala que:

(...) a infância - e o adulto - atualmente está entrelaçada com a cultura do consumidor. As necessidades sociais e culturais das crianças se expressam e definem inevitavelmente através de suas relações com os produtos materiais e através dos textos midiáticos produzidos comercialmente que impregnam suas vidas. O significado da infância, como também da “juventude”, se constrói social e historicamente, e se trata de um processo onde o mercado comercial desempenha um papel

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cada vez mais importante (p. 185).

Nestas interações, comecei a perceber a forma como minha filha pequena e eu nos

posicionávamos frente aos brinquedos, roupas, alimentos, adereços, livros, móveis, lençóis,

pasta de dente, decorações de suas festas de aniversário, jogos, filmes, vídeos, materiais

escolares. Notava que os bens de consumo, com seus padrões visuais estabelecidos e

disseminados pelas grandes indústrias sejam elas de entretenimento, moda, alimentação,

brinquedos ou de móveis, mantinham uma uniformização estética que impossibilitavam

sermos singulares.

Freqüentemente, quando necessitava de um simples objeto utilitário, como uma

colher plástica, notava que a maioria dos cabos das colheres para crianças era adornada em

alto-relevo com personagem de Walt Disney ou de Maurício de Souza infantilizados, assim

como também qualquer outro objeto sempre trazia os personagens/símbolos das

corporações de entretenimento. Em relação ao vestuário também havia uma uniformidade

quanto ao estilo e tipos de roupas, cores e materiais, sendo que a maioria das peças do

vestuário dos bebês indicava, através de suas cores, o gênero: o azul para os meninos e o

rosa para as meninas.

A respeito da lógica da produção dos bens de consumo e como nos sujeitamos a

uma ordem do consumo que obedecemos sem questioná-la, Jean Baudrillard (1997)

salienta:

(...) os objetos não existem absolutamente com a finalidade de serem possuídos e usados, mas sim unicamente com a finalidade de serem produzidos e comprados. (...) eles não se estruturam em função das necessidades e nem de uma organização mais racional do mundo, mas se sistematizam em função exclusiva de uma ordem de produção e de integração ideológica. De fato, não existem mais objetos privados: através de seu uso multiplicado, é a ordem social de produção que persegue, com sua própria cumplicidade, o mundo íntimo do consumidor e de sua consciência (grifo do autor) (p. 172).

Na condição de mãe-usuária-consumidora desta ampla “cultura material”, não me

dava conta que estes produtos através de suas cores pastéis, materiais de consistência

macia, aromas adocicados, formas arredondadas, estampas com flores multicoloridas,

corações saltitantes e personagens-bebês estavam me ensinando o que é bom, bonito e

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saudável para minha filha a partir dos pontos de vista dos designers de grandes empresas.

Para Mike Featherstone (1995) o trabalho dos designers de hoje se compara à influência

que os artistas exerciam sobre as preferências estéticas de determinados grupos sociais, no

sentido que ambos são modeladores e criadores de mundos. Para o autor: “(...) de muitas

maneiras declaradas ou sutis, eles [os designers de vários campos] também transmitem

disposições e sensibilidades estéticas (...). Com efeito, enquanto intermediários culturais,

eles desempenham um papel importante na educação do público para novos gostos e

estilos” (p. 111).

Percebia que havia um discurso visual com a intenção de provocar a sedução,

elaborado por cromatismos, formas, texturas que direcionavam minhas escolhas a produtos

que eram considerados como sendo da infância, uma infância inventada, normatizada,

comportada. Deste modo, não me perguntava, por exemplo, sobre a cadeia de significados

que construímos em torno das cores pastéis na primeira infância e adotamos para nossos

bebês cores tonalizadas para dizer que nossos filhos são “suaves”, “dóceis”, “puros”.

Há todo um arcabouço visual de formas, cores, tamanhos, texturas, aromas que

sinalizam para percebermos a primeira infância como um lugar sem conflitos, suave,

pacífico, calmo, confortável; enfim, há um conjunto de elementos visuais que nos levam a

formar determinadas visões sobre infância. Nesse sentido, há um consenso sobre o universo

visual infantil. Ele é aceito e compartilhado em várias instâncias sociais e, assim, passa a

ser “naturalizado” como se fosse parte constitutiva das infâncias contemporâneas. Das

pastas de dentes aos lençóis, dos jogos pedagógicos aos talheres, dos relógios às camisetas,

há uma parafernália de objetos/imagens que se institui como associados, colados,

representativos da infância, ou sendo a “própria infância”. Ou seja, a infância passa a ser

vista pelos artefatos.

As infâncias podem ser compreendidas a partir de seus modos de ser e de seus

códigos simbólicos que permeiam e constituem os grupos dando-lhes visibilidade. Ao

utilizarem seus códigos, os grupos estão demarcando seus “territórios”, dizendo a si

próprios e aos outros o que são. Castro (1998) diz que

(...) a infância “esta aí” - este “estar aí” é entendido aqui pela materialização da infância na “cultura das coisas” que são produzidas especialmente para este público consumidor. Assim, por um lado, a

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corporificação da infância no tecido social se faz através de uma presença que se referencia e se remete a determinados objetos, sejam eles bens materiais, como também serviços, lazer, programas culturais etc, onde uma determinada inscrição específica da infância emerge como força no imaginário social. A infância-presença que está aí no nosso cotidiano, ao alcance do nosso olhar, aparece modelizada pelo mundo de bens materiais e simbólicos destinados a ela pela cultura de consumo (p. 192).

Fui percebendo que um inofensivo marcador - a cor da roupa infantil - elabora um

campo de significações classificando meninos, meninas, comportamentos, interdições.

Nesse sentido, os artefatos, e as imagens estampadas neles, cumprem a função de

representar, apresentar, nomear, situar, identificar, etiquetar e traduzir tanto os sujeitos

quanto grupos sociais, para outros grupos. Muito mais do que representar os sujeitos e os

grupos, os artefatos e imagens instituem os modos de vermos os outros e de nos

relacionarmos com o mundo. Certamente, as roupas vermelhas, amarelo ouro, verde

esmeralda, entre outras cores que escolhia para minha filha, burlavam as prescrições do que

inventaram como as cores da primeira infância e, assim, me colocavam fora do grupo das

mães que acreditam que as cores pastéis representam a infância de nossos filhos.

Muito mais do que efetuar a modelagem do gosto e de estimular minhas

preferências a determinados produtos, tais objetos realizavam uma espécie de pedagogia da

maternidade2 que motivavam minhas ações mais simples, como adquirir determinados

produtos alimentícios como maçãs da Turma da Mônica, acreditando que fossem mais

saudáveis. Ou objetos de uso pessoal como: mochilas, roupas, brinquedos, mamadeiras,

chupetas, fraldas descartáveis e guarda-sol, que me convenciam, pela aparência, que

poderiam proporcionar o bem-estar de minha filha.

A respeito de como os inúmeros artefatos operam sobre nós, Stuart Hall (1997) nos

alerta dizendo: “os significados culturais não estão apenas “na cabeça”. Eles organizam e

regulam as práticas sociais, influenciam nossas condutas e conseqüentemente têm efeitos

reais, práticos” (p. 3). Ou seja, os diferentes artefatos criam modos de agir, eles não são

inocentes objetos/utensílios que apenas cumprem suas funções utilitárias, eles direcionam

condutas, seja para comprarmos alimentos, seja para vestirmos as crianças, seja para

formularmos nossas concepções sobre as infâncias.

Na maioria das vezes, acreditamos que os artefatos criados para os infantis estejam

sob o manto da “inocência”; entretanto, a cada dia, as infâncias, as crianças, estão

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participando e vendo, através de programas televisivos, sites, ou filmes, um mundo que há

muito não é mais inofensivo. Se na década de 50/60 tínhamos apenas bonecas em forma de

bebês, revólveres, estrelas de xerife e autoramas, hoje temos bonecas similares a mulheres

jovens e jogos eletrônicos que simulam guerras. Atualmente encontramos, por exemplo,

soutien e calcinha, uma combinação de roupa íntima para meninas de 18 meses, outdoors

com meninas em poses sensuais com os dizeres “Use e se lambuze” e propagandas de

shampoo com bebês travestidos de Marilyn Monroe.

Inúmeros artefatos têm mostrado a infância como algo a ser desejado sexualmente,

transformando as crianças, principalmente as meninas, em pequenas mulheres sedutoras.

Diante disso, hoje me pergunto: O que isso produz em nossos modos de ver e

conseqüentemente de agir em relação à infância? A respeito de como os artefatos operam,

produzindo determinadas práticas, Felipe (1999; 2000; 2003ª; 2003b) nos fala sobre o

conceito de pedofilização, referindo-se a ele como uma prática social contemporânea. A

autora aponta contradições nas sociedades contemporâneas que, ao mesmo tempo em que

constroem mecanismos de combate à exploração sexual de crianças e jovens, disseminam

“uma espécie de ‘pedofilia’ consentida, amplamente aceita e difundida principalmente

pelos veículos de comunicação de massa, posicionando os corpos infantis, em especial os

corpos femininos, como objetos de desejo e de consumo” (FELIPE, 2007, p.3).

Mas voltando à minha história e aos meus processos de mudança, fui me

aproximando de Michel de Certeau para entender as práticas culturais vividas e as tramas

micro-sociais e culturais que nos compõem. Posteriormente, na metade dos anos 90, como

professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS), um tsunami varreu meus vínculos com as pedagogias críticas e o epicentro foi

quando tive meus primeiros contatos com autores como Stuart Hall, Guacira Louro e

Tomaz Tadeu da Silva, entre outros. Beatriz Sarlo (1997) esclarece sobre nossos

descentramentos, dizendo que:

Os problemas que enfrentamos de fato não têm, como não tiveram os problemas sociais, uma solução inscrita em seu enunciado. Trata-se antes de perguntar para fazer ver do que para encontrar, de imediato, um plano de ação. Não são perguntas sobre o que fazer, mas sobre como armar uma perspectiva para ver (p. 10).

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Nesse período, assisti a uma conferência com Shirley Steinberg onde ela jogava

Barbies à platéia. Sua performance, que não era uma conferência tradicional, centrava-se

nos efeitos educativos dos diferentes artefatos culturais endereçados à infância, a

kindercultura, enfatizando os processos educativos efetuados por uma das bonecas mais

famosas no mundo ocidental, quiçá também do oriental. Sua encenação, bem como a leitura

posterior do artigo “Kindercultura: A construção da Infância pelas grandes corporações”,

publicado nos anais do evento, fizeram uma ponte entre o que vivenciava em minha vida

privada e os questionamentos sobre como as crianças estavam elaborando suas percepções

de mundo.

Se antes do contato com Steinberg eu acreditava que os processos educativos

estavam mais restritos ao contexto escolar e familiar, depois desse encontro comecei a

refletir sobre a força educativa dos artefatos culturais e o quanto eles direcionam os modos

de vermos e compreendermos a infância contemporânea. Desde este “evento”, deflagrador

de outros pensamentos em minha trajetória profissional, tive uma compreensão mais

intensa sobre como as práticas culturais operam nossos modos de pensamento e de ações no

mundo e, em especial, como a cultura, mais especificamente a cultura visual, endereçada à

infância, tem produzido “uma infância”, criando e instituindo, para crianças e adultos,

práticas sociais nestas interações com a cultura.

Mesmo tendo encontrado muitas respostas para minhas preocupações nos Estudos

Culturais, eles não me respondiam sobre as questões específicas do universo visual e os

modos como estão sendo produzidos nossos olhares sobre o mundo através das imagens.

Mirzoeff (2003) aponta uma tênue diferença entre os enfoques dos Estudos Culturais e da

Cultura Visual, dizendo que do mesmo modo que os Estudos Culturais buscam

compreender as formas pelas quais as pessoas dão sentido à cultura, a cultura visual

examina como as experiências cotidianas com o universo visual - dos vídeos às obras de

arte – produzem, criam e disputam significados. O autor entende o universo visual como

um produtor de realidades, dizendo que as imagens têm um forte poder de verdade, um

poder intervencionista que acaba transformando o mundo imagético na própria vida.

Segundo ele:

As imagens utilizam determinados modos de representação que nos convencem de que são suficientemente verdadeiras. Esta idéia não implica de modo algum que a realidade não exista ou seja uma ilusão,

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assim, a função da cultura visual é dar sentido a variedade infinita da realidade exterior mediante a seleção, interpretação e representação da dita realidade (MIRZOEFF, 2003, p. 65).

Os posicionamentos de Mirzoeff me moveram a pensar o quanto as imagens, sejam

elas editadas pelos meios de comunicação ou mesmo as fotografias amadoras que nossos

pais fizeram desde o nosso nascimento, definem realidades, quem somos e quem são os

outros, nos levando a vê-las como sendo “verdadeiras”.

A partir de autores que problematizavam as imagens no mundo contemporâneo,

entre eles Baudrillard, e outros que discutem a centralidade da cultura, pensava sobre como

as imagens produzem nossas visões de mundo. Entretanto, havia a necessidade de situar os

Estudos da Cultura Visual no contexto da educação. Nesse sentido, os trabalhos de

Fernando Hernández foram decisivos para estabelecer os vínculos entre as abordagens da

cultura visual e a educação. O autor afirma a importância de uma outra abordagem em

relação ao ensino das artes visuais, denominada “Educação para a compreensão da cultura

visual” apontando alguns objetivos:

(...) um primeiro objetivo de uma educação para a compreensão da cultura visual, que, além disso, estaria presente em todas as áreas do currículo, seria explorar as representações que os indivíduos, segundo suas características sociais, culturais e históricas, constroem da realidade. Trata-se de compreender o que se representa para compreender as próprias representações. Isso significa que, diante da cultura visual, não há receptores nem leitores, mas construtores e intérpretes na medida em que a apropriação não é passiva nem dependente, mas interativa e de acordo com as experiências que cada indivíduo tenha experimentado fora da escola. Daí a importância, a posição de ponte que a cultura visual exerce: como campo de saberes que permite conectar e relacionar para compreender e aprender, para transferir o universo visual de fora da escola (do aparelho de vídeo, dos videoclipes, das capas de CD, da publicidade, até a moda e o ciberespaço, etc.) com a aprendizagem de estratégias para decodificá-lo, interpretá-lo e transformá-lo na escola. (HERNANDEZ, 2000, p.52)

As reflexões de Hernández contribuíram com algumas questões que vinham me

inquietando3 em minhas andanças nas escolas infantis, entre estas inquietações, os

marcadores visuais recorrentes que anunciavam que naquele lugar eram educadas crianças

pequenas: as famigeradas, antigas e estereotipadas decorações das salas de Educação

Infantil, que posteriormente, em minha tese denominei-as de Cenários da Educação

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Infantil4. (CUNHA, 2005a, 2005b, 2006).

Observava que nas escolas infantis, independentemente do contexto educacional,

social e cultural, estes cenários concorriam com outras formas de ensinar as crianças.

Entendia e entendo que estas ambiências vão além de uma decoração neutra ou natural da

infância onde se desenrolam as ações pedagógicas. Ao contrário, vejo as ambiências nas

escolas infantis como uma das formas pedagógicas em curso, embora as instituições

escolares, professoras e crianças não percebam a dimensão desses ensinamentos. Concordo

com Viñao Frago e Escolano (1998) quando afirmam que “a ordenação do espaço, sua

configuração como lugar, constitui um elemento significativo do currículo -

independentemente de que aqueles que o habitam estejam, ou não, conscientes disso” (p.

63). Minha argumentação foi, e é, que os ‘cenários’ são dispositivos pedagógicos visuais

que atuam como fo(ô)rmas de ensinar junto com as outras modalidades pedagógicas do

currículo explícito.

A tese Educação e Cultura Visual: Uma trama entre imagens e infância, defendida

em 2005, talvez tenha inaugurado, no Brasil, as discussões sobre infância e cultura visual5.

Pode-se dizer que os estudos entrelaçando Infância e Cultura Visual são recentes6, tendo em

vista que tanto os estudos sobre infância, muito marcados anteriormente pelo campo da

Psicologia e, atualmente, pela Sociologia da Infância, quanto os Estudos da Cultura Visual,

preocupados com questões mais amplas sobre os efeitos sociais das imagens, ainda não se

dedicaram com maior afinco sobre a atuação dos dispositivos pedagógicos imagéticos em

relação à infância. Além das discussões inter-relacionando cultura visual e infância serem

iniciais, são raras as pesquisas com crianças e os modos como elas se posicionam em

relação ao universo visual endereçado a elas. A seguir farei um breve apanhado de algumas

pesquisas7 sendo desenvolvidas entrelaçando Cultura Visual e Infância.

Pesquisando Cultura Visual e Infância

Muitos pesquisadores/as, nacionais e internacionais, que têm como foco de estudo

as infâncias, como Steinberg (1997), Buckingham (2002), Ferreira (2004), Jacinto (2000),

Rabello de Castro (1997), Faria (2002), Quinteiro (2002), Felipe (2004), Dornelles (2002),

Bujes (2000), Dutra Pillar (2002), entre outro/as, reivindicam mais ênfase nas pesquisas

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sobre a infância e, especialmente, sobre as crianças e seus modos de compreensão sobre o

mundo. Steinberg (2001), diz: “Infelizmente, a puericultura goza tradicionalmente de

pouco status no mundo acadêmico. Por enquanto, pelo menos, a área dos estudos culturais

tem reproduzido esta dinâmica poder/status em sua negligência pelos estudos da infância”

(p. 12). Essa posição é compartilhada pela pesquisadora brasileira Quinteiro (2002, p.41)

que sublima o estado da pesquisa no campo da infância: “com exceção da psicologia do

desenvolvimento que mantém tradição e regularidade nos estudos sobre a criança, raras são

as áreas de conhecimento que a priorizam em suas investigações. Mais raras ainda são as

pesquisas que buscam articular a relação infância e escola.”

Como pesquisadora no campo da infância e cultura visual, reivindico o papel das

crianças como protagonistas das pesquisas e reflexões, no sentido de procurar decifrar os

territórios infantis a partir das suas falas, pensamentos, ações e representações. Assim, creio

que seja fundamental desenvolver pesquisas no campo da cultura visual tendo como

sujeitos das pesquisas as crianças, procurando entender seus pontos de vista, suas relações

com as representações imagéticas, suas produções gráfico-plásticas, entre outros enfoques.

De antemão, anuncio que não é uma tarefa fácil! Porém, é gratificante, pois há uma

distancia entre o que supomos sobre o que as crianças pensam, agem e o que as crianças

dizem sobre suas relações com o mundo, no caso, o mundo da cultura visual, e como as

crianças apreendem, questionam, criam possibilidades e reformulam o universo visual. A

respeito de como nos posicionamos como pesquisadores e “conhecedores” da infância,

Jorge Larrosa (1999) diz:

(...) a infância é um outro: aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento. Pensar a infância como um outro é, justamente, pensar essa inquietação, esse questionamento e esse vazio. (...) Não se trata, então, de que – como pedagogos, como pessoas que conhecemos as crianças e a educação – reduzamos a infância a algo que, de antemão, já sabemos o que é, o que quer ou do que necessita (p. 184-188).

Faria (2002) levanta uma série de questionamentos sobre as possibilidades e

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dificuldades da pesquisa com crianças, entre elas, a autora nos desafia com a seguinte

pergunta: “o que as crianças têm feito ao longo da história, continuamente e até mesmo

repetitivamente, que os adultos ainda não conseguem entender?” (p. 8). A partir de várias

situações de pesquisa com crianças, acrescento outras perguntas: Por que temos

dificuldades em decifrar os territórios infantis a partir das falas, ações e produções visuais

das crianças? Será que muitas vezes, nossas investigações já, de antemão, supõem

determinadas respostas sobre os infantis? Podemos entender as infâncias que não se

inserem nos paradigmas da modernidade?

De um modo geral, estudos empíricos sobre a cultura visual nas escolas, junto às

crianças pequenas, são recentes no contexto acadêmico brasileiro. A respeito das pesquisas

da cultura visual e as análises no campo educacional, Fernando Hernández (2003) alerta

que:

Ainda não está claro como se podem abordar os temas relacionados com o visual por meio de estudos empíricos nas escolas. Mesmo havendo produção sobre as questões visuais, não há quase indicações sobre métodos de interpretações e de como usar estes métodos. Não me refiro aos métodos denominados tradicionais, como os baseados nos estudos da forma e do conteúdo, a iconografia e a iconologia e inclusive a semiótica estruturalista, mas me refiro aos métodos de interpretação que têm surgido a partir dos debates pós-estruturalistas, derivados das abordagens da nova história da arte, dos estudos culturais, sobre a mídia e dos estudos feministas, entre outros referentes disciplinares (p. 4).

Enfim, “criar” e desenvolver pesquisas com crianças sob a perspectiva da cultura

visual é ainda um campo experimental, nômade, povoado mais por dúvidas do que certezas,

instável, mutante, ou como Hernandéz (2007) diz:

(...) uma perspectiva que não considero pronta, acabada, mas em permanente construção. (...) tal abordagem sobre uma prática crítica não nos diz qual é o método (a maneira de) que devemos dialogar – no duplo sentido de travar e de gerar relações – com as imagens e com os artefatos da cultura visual. Por isso podemos perguntar, diante de cada método: até que ponto ele é útil para se obter um posicionamento crítico e performativo em relação à cultura visual? (p. 79-80).

Entretanto, mesmo não tendo “modelos” e denominações, classificações para nossas

pesquisas, as investigações sob a abordagem da cultura visual, devem partir de alguns

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pontos de referência e das experiências investigativas em outras áreas, como a etnografia,

em especial os estudos de Luiz Eduardo Achutti (1997, 2004) sobre Fotoetnografia, os

estudos que envolvem as inter-relações entre sujeitos e imagens, como as reflexões de

mediação cultural desenvolvidas por Mirian Celeste Martins (2008, 2007, 2005,

2003,1997,1998) e a proposta de Fernando Hernandéz (2007) baseada na compreensão

crítica e performativa das representações da cultura visual, entre outras abordagens.

Outros pontos de referências aos quais me refiro, muitas vezes são estabelecidos no

próprio campo, nas interações do pesquisador com as crianças. No meu caso e como

mostrei anteriormente, muitas situações do meu cotidiano pessoal e profissional suscitaram

reflexões e posteriormente investigações. Ressalto que nesta trajetória o que sempre me

causou estranhamento e “solicitou” investigações, foram as recorrências, aquilo que se

repetia incessantemente, naturalizando nossos olhares. A meu ver, qualquer “coisa”,

evento, situação que insiste, e existe, ao longo do tempo, que circula em diferentes locais,

que se multiplica de formas semelhantes, pode ser motivo para reflexões e investigações,

principalmente no campo dos Estudos da Cultura Visual.

Outro ponto a salientar sobre a pesquisa é que, como os Estudos da Cultura Visual

têm um caráter interdisciplinar, ou um “movimento” entre diferentes campos, como a

História da Arte, Estética, Antropologia, Arquitetura, Estudos do Gênero e Étnicos, Estudos

sobre Mídia, Estudos sobre Infância, Estruturalismo, Pós-estruturalismo, Fenomenologia,

Psicologia, Semiótica, Sociologia, entre outros campos disciplinares, cada disciplina

contribui com seus elementos teóricos e metodológicos que, vinculados uns aos outros,

criam modos particulares de análise sobre os materiais visuais e os modos como está sendo

produzida a visualidade. Assim, os focos, temáticas, objetos de estudo, bem como suas

análises, são concebidos a partir da interdisciplinaridade que as próprias temáticas e objetos

suscitam. Em minha tese, por exemplo, para entender o quanto a educação para as crianças

pequenas se faz através das imagens, busquei referências, principalmente, no campo da

História da Educação, do Ensino de Arte e da Arte; dos Estudos sobre Mídia, Gênero e

Infância, entre outros que subsidiaram meus fundamentos teóricos, caminhos

metodológicos e análises sobre as pedagogias visuais e como elas se constituem e se

instituem dentro e fora das escolas.

Outra questão sobre as pesquisas no campo da cultura visual é como serão

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abordadas as imagens e elaboradas as narrativas visuais/textuais, tendo em vista, que na

maioria das investigações trabalhamos com algumas instâncias, sugeridas por Gillian Rose,

no livro Visual Methodologies: An Introduction to the interpretation of visual materials.

Para Rose (2001) as instâncias para a compreensão crítica das imagens, seriam: as imagens

em si; a produção, que está relacionada com os meios e as circunstâncias na qual foram

produzidas e os lugares onde estas imagens circulam para os diferentes públicos. Dentro

destas instâncias, teríamos as modalidades: tecnológicas - que seriam os meios pelos quais

as imagens se constituem; a composicional, - que diz respeito às estratégias formais, de

conteúdo, cor, organização espacial, e a modalidade social - que se refere às cadeias de

relações, instituições e práticas econômicas, sociais e políticas que cercam uma imagem e

através das quais ela é vista e utilizada. Esta última modalidade refere-se, então, ao

contexto onde os significados são aceitos, rejeitados, elaborados e, ainda, negociados pelas

pessoas. A meu ver, esta última modalidade seria a mais importante no campo das análises,

entretanto, conforme nossas preocupações investigativas, outras instâncias e modalidades

poderão ser enfatizadas.

Philippe Áries, por exemplo, em A História Social da Criança e da Família (1973)

se atém aos aspectos da imagem em si e como elas produziram nossos modos de entender a

infância. Assim, ele utiliza várias fontes iconográficas, como lápides, pinturas, esculturas,

afrescos, tapeçarias, vitrais, capitéis, desenhos, gravuras e ex-votos, entre outras, para

analisar as diferentes concepções de infância elaboradas ao longo da história ou o que

seriam as “idades da vida” em diferentes épocas. Através dessas fontes imagéticas, o autor

nos mostra às relações entre adultos e crianças, o sentido de maternidade e paternidade, a

valorização ou não da vida que os adultos davam às crianças, os brinquedos e brincadeiras,

a sexualidade, as festas e comemorações, entre outras atividades cotidianas da infância. As

imagens selecionadas e analisadas por Ariès, assim como tantas outras, para além de nos

dar a conhecer a infância, produzem sentidos sobre ela, fazendo com que nós as vejamos

através dos olhos daqueles que materializam as produções imagéticas. A partir da cultura

visual de determinadas épocas, Ariès examina e desconstrói o conceito de infância como

um fenômeno natural da vida e vai demonstrando como a concepção de infância é uma

construção histórica e cultural, “fabricada” na modernidade.

Na perspectiva de analisar as imagens e examinar seus efeitos, tendo como

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inspiração os estudos de Áries, Aline Becker (2009) focaliza em sua dissertação de

mestrado as imagens sobre as infâncias, da História da Arte aos filmes e propagandas

contemporâneas e nos traz pistas, a partir dos Estudos Foucaultianos, de como a infância

pode ser entendida através das mais diversas produções visuais. Segundo a autora:

Desta forma não podemos separar as manifestações culturais destinadas aos infantis e sobre eles, da construção dos modos de vê-los. As identidades, os imaginários visuais, as noções de si, o senso estético, valores e seus lugares na sociedade são construídos por diversos referenciais, dentre eles as imagens (p.4).

Em sua proposta de dissertação, Becker (2008) faz analogias sobre o uso das

imagens infantis em diferentes épocas, entre elas as pinturas de Gustave Courbet (1819-77)

e as propagandas da Benetton, dizendo:

O impacto [da pintura de Coubert] causado na sociedade da época pode ser comparado, nos dias de hoje, à campanha da Benetton, cujas imagens provocam muitas discussões na imprensa. Guardadas as diferenças inerentes às características histórico-sociais, as pessoas na época de Courbet chocavam-se com os temas de suas pinturas. Enquanto hoje, nós temos a impressão de serem situações prosaicas, o fato de estarem representadas em obras de arte era aviltante para muitos, pois não concebiam esse assunto [crianças comuns em cenas cotidianas] em obras de arte. Semelhante efeito, podemos constatar na campanha publicitária da Benetton, cuja propaganda recebe um grande reforço da mídia em torno dela causado pelas polêmicas geradas em torno dos seus temas, que envolvem problemáticas contemporâneas que são bastante comuns, como as questões de gênero e raça (p. 35).

As instâncias e modalidades escolhidas por Becker, ou “requisitadas” por sua

temática, centram-se nas imagens e nas suas recorrências nas representações visuais, sejam

elas as egípcias, sejam elas no filme Monstros S.A, pinturas de Gauguin ou nas fotografias

de Anne Guedes.

Em outras duas pesquisas, que trazem discussões acerca de como as crianças

pequenas formulam suas concepções sobre a beleza e a feiúra, os enfoques disciplinares, as

instâncias e as modalidades são outros. Luciane Abreu, na pesquisa Cabruxa a Bruxa

Inventada, busca, a partir dos estudos da Literatura Infantil, da Estética, das diferentes

linguagens expressivas e do jogo infantil, compreender como as crianças estão narrando-se

frente ao mundo e como o olhar delas está atravessado pelas questões da cultura e pelas

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imagens produzidas pela mídia, publicidade, cinema. Neste caso, a modalidade social -

como os diferentes materiais visuais produzem as visualidades infantis - passa a ser o foco

do trabalho, e as vozes e as produções das crianças formam o corpus de análise. Luciana

Hahn Brum, na investigação O Belo na Cultura Indígena busca entender a construção da

visualidade infantil indígena, examinando o quanto o tempo de vivência e exposição às

pedagogias visuais é determinante para produção dos juízos sobre a beleza em uma tribo

indígena que vive em uma reserva urbana de Porto Alegre. A pesquisa “solicita” os Estudos

Étnicos, da Mídia, da Antropologia para compreender como as crianças indígenas estão

elaborando seus imaginários.

Outras pesquisas em desenvolvimento no eixo temático Infância e Cultura Visual,

como a de Daniela Diefenthäler, problematiza, através de ações pedagógicas junto às

crianças, os estereótipos da casa; a de Anelise Ferreira focaliza a possibilidade de alunos

com deficiência mental utilizarem as imagens como forma de composição de narrativas,

destacando a interpretação e produção de imagens; a de Ticiana Horn examina como os

discursos visuais e textuais sobre as crianças “rurais”, disseminados em diferentes artefatos,

provocam modos de vermos, categorizarmos esta infância de forma diferente e

inferiorizada de outras infâncias; a de Vera Parisotto busca examinar como bebês, nas

interações com adultos, se relacionam com a pintura; a de Alessandra Ilha que estabelece

relações entre o desenho gestual e as formas digitais na constituição da linguagem gráfica.

Todas essas pesquisas são ecléticas em suas formas de abordar e utilizar os Estudos da

Cultura Visual, bem como seus caminhos metodológicos, categorias e corpus de análise.

Em relação aos modos como utilizamos os materiais visuais nas pesquisas, também

há diversidade nas funções que eles assumem, mas de um modo geral as imagens são

utilizadas como argumento visual (HOCKNEY, 2001), texto visual e produtoras de

narrativas que extrapolam as discussões textuais; como registro, documento da pesquisa e

como corpus de análise. Muitas vezes, estas três modalidades se fazem presentes,

entretanto, cada uma tem suas características próprias na elaboração de uma narrativa que

envolve texto/imagem. A seguir, farei um breve relato dos caminhos de uma pesquisa em

desenvolvimento.

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Cultura Visual, Gênero e Infância

Na perspectiva de estar atenta às recorrências, há 3 anos, me detive nos comentários,

insistentes, das estagiárias sobre as produções visuais infantis. Elas diziam: “há um desenho

de meninas e um desenho de meninos”. Destes comentários, de estar continuamente dentro

das escolas infantis e das conversas que tinha com alunas/estagiárias ao analisarmos as

produções das crianças, iniciei a pesquisa Desenhos de meninos e meninas: relações entre

imaginário e gênero8 em Jardins A e B de uma EMEI (Escola Municipal de Educação

Infantil), com o intuito de investigar como as crianças pequenas estão produzindo suas

representações visuais e as possíveis relações entre a cultura visual contemporânea e o

imaginário infantil. Além disso, minha intenção era contribuir com outro enfoque sobre o

desenho infantil, tendo em vista que a grande maioria dos estudos está ancorada no campo

da psicologia do desenvolvimento através de autores como Wallon (1979), Luquet (1969),

Kellog (1945-70) e Arnheim (1954), entre outros. Nestes estudos, observa-se que a ênfase é

em relação à construção do significante, sendo que não há preocupação em

entender/explicar como as crianças controem suas representações simbólicas a partir das

interações culturais e sobre aquilo que é significativo para elas. Nas abordagens pós-

estruturalistas, segundo Hall (1997)

A linguagem é capaz de fazer isto porque funciona como sistema de representação. Na linguagem, utilizamos sinais e símbolos - podendo ser sons, palavras escritas, imagens produzidas eletronicamente, notas musicais, até objetos - que significam ou representam para outras pessoas nossos conceitos, idéias e sentimentos. A linguagem é um dos “meios” através dos quais pensamentos, idéias e sentimentos são representados em uma cultura. A representação através da linguagem, portanto, é central para os processos através dos quais é produzido o significado (p. 1).

Também sobre esta perspectiva teórica, “o significado é uma construção ativa, ele

não existe como entidade mental separada, anterior e independentemente de sua expressão

material, visível/audível, como marca, como traço, como inscrição. (...) o significante não

se livrará do significado.” (SILVA, 1999, p.40). Embora nesta abordagem não haja divisão

entre o significante e o significado, as análises sobre os materiais visuais têm enfocado

mais as questões relativas aos significados, deixando de lado os aspectos das marcas

materiais. Nesta pesquisa houve a tentativa de refletir sobre como as construções dos

significantes/significados, no desenho infantil, estão imbricados com as interações das

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crianças com a cultura visual contemporânea e com os significados que as crianças

atribuem aos seus mundos. Nossa intenção foi a de examinar como as representações

visuais infantis se constituem nos intercâmbios culturais, partindo do pressuposto que “o

pensar e o sentir são em si “sistemas de representação”, em que nossos conceitos, imagens

e emoções “significam” ou representam, em uma vida mental, coisas que estão ou possam

“estar lá fora” no mundo.” (Hall, 1997, p. 5).

Percebíamos que os desenhos produzidos pelas crianças no período representativo

de situações do cotidiano escolar sejam elas em situações espontâneas ou orientadas pelas

professoras ou estagiárias, apresentavam repertórios estéticos com características definidas

em relação ao gênero, como por exemplo: organização espacial, modos de utilização dos

diferentes materiais expressivos, construção de formas representativas, uso de cores e

materiais, recorrência de signos e símbolos, entre outras características concretamente

observáveis. É interessante salientar que a maioria dos objetos, presente em sala de aula,

sejam pessoais, como: agendas, escovas de dente, sapatos, meias, roupas, ou da escola,

como brinquedos, canecas, pratos, cartazes, entre outros, trazem, em sua maioria,

marcadores de gênero, principalmente no que se refere às cores e aos personagens de

desenhos animados.

Nos desenhos, bem como em outras produções visuais infantis, apareciam alguns

marcadores de gênero presentes nos artefatos culturais com os quais as crianças convivem,

como por exemplo: movimento, cores escuras = meninos; flores, cores claras (o rosa) =

meninas. Nas observações e reflexões sobre as produções visuais infantis, o que chamava

nossa atenção é que marcadores visuais, muitas vezes encontrados nas produções culturais

dirigidas às crianças, eram “transpostos” em suas representações. Ou seja, há uma estética

infantil generificada, produzida pelos diferentes artefatos visuais que, de muitas maneiras,

reverbera no imaginário e nas formas de representações das crianças. Além disso, nós

adultos que deveríamos romper, questionar tais pedagogias culturais, aceitamos como

“natural” que meninos e meninas elaborem suas linguagens expressivas conforme os

ditames dos grandes provedores de imaginários.

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Figura 1

Objetos das crianças e da escola

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Figura 2 À direita: Desenho de meninos em diferentes escolas infantis

Á esquerda: desenhos de meninas em diferentes escolas infantis

Segundo Joan Scott (1995,) “o gênero é um elemento constitutivo de relações

sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” (p. 87). Entre os elementos que

constituem diferenças, a autora aponta as imagens que evocam representações simbólicas,

como, por exemplo, Eva e Maria como símbolos da mulher na tradição cristã ocidental. No

campo da infância existe uma infinidade de representações advindas da cultura visual que

nos remete aos universos femininos e masculinos, como: Homem Aranha/meninos,

Barbie/meninas, Cinderela/meninas, Bob Esponja/meninos e Meninas Super-

Poderosas/meninas. A respeito das representações da feminilidade e masculinidade, Ruth

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Sabat (2004) diz que:

E é precisamente a representação que nos permite relacionar a educação com a produção de identidades. No caso específico das identidades de gênero e sexuais, tais elementos ensinam modos específicos de feminilidade e de masculinidade; ensinam formas corretas de viver a sexualidade; ensinam maneiras socialmente desejáveis para os sujeitos levando o sexo de cada um, de acordo com os modos pelos quais tais identidades são representadas (p. 98).

A imagem da Cinderela, por exemplo, esbelta, loura, magra de olhos azuis, ensina,

entre outras coisas, um modelo de ser mulher através de sua figuratividade e ancora os

significados construídos em torno de um determinado modo do que deve ser o feminino. O

modo de ser mulher seja no plano estético, da identidade ou da subjetividade está sendo

composto a partir de referentes, assim como a visualidade dos meninos também está sendo

produzida a partir destes modelos femininos. Se outros modos de ser mulher não são

disponibilizados às crianças, então este “tipo” passa a ser verdadeiro e válido para todas as

crianças. Conforme Louro (1999): “Os corpos são significados pela cultura e são

continuamente, por ela alternados. (...) De acordo com as diversas imposições culturais, nós

nos construímos de modo a adequá-los aos critérios estéticos, higiênicos, morais dos grupos

a que pertencemos” (p. 14-15). Muito mais do que assinalar as oposições binárias entre os

territórios do masculino como sendo associados à força e energia, e o feminino

relacionados à fragilidade e suavidade, os objetos, roupas, cores e formas demarcam as

relações entre as crianças e os posicionamentos generificados que elas assumem entre si.

Os referentes imagéticos Cinderela, Barbie, Branca de Neve e outras representações

similares que permeiam a cultura infantil, tornam-se as “matrizes” do feminino,

interpelando meninas e meninos. Na maioria das vezes, as imagens da cultura popular

homogeneizam modos de ser, definem o que as pessoas e as coisas devem ser e ao defini-

las dentro de padrões, as diferenças não são contempladas, ao contrário, são excluídas.

Neste sentido, a imagem Cinderela fala às crianças, meninos e meninas, sobre determinados

valores femininos produzidos pela cultura popular servindo como “modelos” para todo o

grupo. Cinderela, entre outras imagens emblemáticas da nossa cultura, cria suas tribos, ora

agregando, ora excluindo aquelas/es que estão dentro dos padrões. Pergunto: Qual a

posição das meninas que não se enquadram no referencial estético Cinderela? Como as

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identidades femininas e masculinas são construídas, tendo os atributos destas “beldades”

como referenciais?

Para Alberto Manguel (2001): “Só podemos ver coisas para as quais possuímos

imagens identificáveis, assim como só podemos ler em uma língua cuja sintaxe, gramática

e vocabulário já conhecemos”(p. 27). A afirmativa de Manguel nos faz pensar sobre o

quanto estamos convivendo com imagens que se repetem e reafirmam narrativas

semelhantes entre si, como por exemplo: as top models, as atrizes globais contemporâneas,

as bonecas Barbies, as Princesas da Disney. E, o quanto esta multiplicação de um mesmo

modelo feminino faz com que outras imagens não sejam vistas e entendidas. Uma sugestão:

prestem atenção, nas revistas de grande circulação nacional, sobre as representações de

infância, mulheres e homens jovens, maduros, idosos e idosas. O que estas imagens,

representações, nos dizem sobre estas diferentes fases da vida? Quais os tipos que são

excluídos? Como formulamos concepções sobre maturidade, juventude e infância através

das imagens?

De muitos modos, estes personagens agregam, ou excluem, meninos e meninas

conforme suas características e modos de ser, mas, sobretudo, muito além de servirem de

“totem”, tais personagens estão, através de sua discursividade visual, contribuindo tanto

para a formulação das identidades femininas e masculinas, quanto para os imaginários

infantis. É comum ouvirmos nas escolas infantis a expressão: ‘isso é coisa de menino’ ou,

‘isso é coisa de menina’, proferida pelas crianças e pelas professoras. Neste sentido, já

presenciei interdições realizadas por adultos ou pelas crianças quando, por exemplo, um

menino tenta utilizar algo que foi convencionado pertencer ao universo feminino, como

utilizar um batom ou colocar uma saia; ou uma menina brincar de luta com uma espada.

Quando acontecem estas invasões territoriais, há uma tentativa entre os pares de fazer com

que o transgressor volte a sua identidade sexual. Há um controle de enquadramento para

que as crianças não ultrapassem as convenções pré-estabelecidas.

Na maioria das salas dos Berçários e Maternais, por exemplo, os nomes das crianças

estão vinculados a determinadas representações simbólicas que culturalmente entendemos

como sendo femininas ou masculinas, como por exemplo, um carro - um símbolo

culturalmente construído em torno da masculinidade e que desencadeia uma cadeia de

significados sobre o que seja especificamente masculino, como: virilidade, potência,

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rapidez. Em uma das salas de uma das escolas, ao notar que os nomes das meninas estavam

relacionados com o coelho da Mônica9 e dos meninos ao carro do Cebolinha, perguntei à

professora por que ela atribuía tais símbolos para as crianças e, segundo a professora: Os

meninos gostaram muito do carrinho, porque é bem o símbolo para menino, no caso, a

figura do carrinho, não por ser do Cebolinha. E o das meninas (representadas pelo coelho

da Mônica), elas também não escolheram, no caso, elas nem sabem o nome dele (do

coelho).

Quando a professora afirma que o carrinho é bem o símbolo para menino, ela está

repetindo construções sociais que constantemente e insistentemente são realizadas em torno

dos processos de identificação sexual. Imagens, objetos, cores e formas definem nossos

olhares sobre o gênero infantil e as escolas através de inocentes imagens, reafirmam estas

construções sócio-culturais. Segundo Felipe e Guizzo (2004): “A escola, em geral, não

disponibiliza outras formas de masculinidade e feminilidade, preocupando-se apenas em

estabelecer e reafirmar aquelas já consagradas como sendo “a” referência. Tudo o que se

distanciar dela poderá ser interpretado como anormal e desviante” (p. 33). Portanto, as

pequenas imagens, recorrentes nas salas de aula da Educação Infantil, encaradas como

simples “adornos” que as professoras vinculam, constantemente, aos nomes das crianças,

associadas a outros tantos símbolos que circulam socialmente, contribuem para que as

crianças construam suas identidades sexuais de um modo fixo e estereotipado.

Nesta pesquisa, de caráter participativo e formativo, elaboramos uma série de ações

pedagógicas e materiais didáticos com imagens para provocarmos discussões junto às

crianças e às professoras, pois nossa intenção era questionar, problematizar os olhares em

relação às imagens que estão “coladas” na infância. A metodologia da pesquisa consistiu

em observações do cotidiano escolar e em situações pedagógicas desenvolvidas pelas

professoras e pesquisadoras, onde problematizávamos as questões de gênero.

Em uma situação da pesquisa, por exemplo, a professora mostrou as crianças alguns

posters que foram confeccionados por nós, misturando a cabeça e os corpos de alguns dos

personagens que eles mais gostavam como, Scoby-doo, princesas, Meninas Super-

Poderosas e Homem Aranha. A professora iniciou mostrando a cabeça do personagem e o

corpo ficava escondido por uma folha. A partir daí, ela indagava sobre quem era o

personagem, se era homem ou mulher, suas qualidades e características. As crianças, por

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sua vez, ficavam intrigadas quando viam todo o corpo do personagem. Ao se defrontarem

com uma figura híbrida, onde o corpo era de um personagem e a cabeça de outro, a

surpresa era imensa. Diziam que aquilo era ‘mágica’! As crianças se questionavam sobre

como o Salsicha poderia ser o Homem-Aranha ou, se as princesas poderiam ser as Meninas

Super Poderosas, pois as princesas são delicadas e as Meninas Super Poderosas são fortes e

que não teria como elas serem diferentes. Esta situação provocada fez com que a certeza

sobre o sentido fixo dos personagens fosse modificada, bem como se abriram discussões

sobre os estereótipos do feminino e masculino.

Figura 3 Pôster com personagens “adulterados” com o intuito de provocar discussões sobre gênero

As análises estão sendo realizadas a partir dos desenhos produzidos em várias

situações, com o intuito de provocar discussões sobre gênero, dos registros fotográficos e

das conversas gravadas junto às crianças. No início da pesquisa, os materiais e ações

pedagógicas foram preparados a partir das observações do cotidiano escolar.

Posteriormente, estas ações/materiais foram sendo planejados a partir dos encontros e

daquilo que percebíamos nas crianças e professoras nas ações anteriores. Ou seja, a

pesquisa e seus materiais foram sendo reelaborados conforme o seu desenvolvimento.

Optamos por uma análise a partir de uma abordagem descritiva interpretativa, isso

quer dizer que muito mais do que uma descrição dos acontecimentos ocorridos durante a

pesquisa, buscamos entender estes acontecimentos/vivências em seu contexto. Para tanto,

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interpretamos e inter-relacionamos os vários materiais produzidos por nós e pelas crianças

no sentido de capturamos as percepções das crianças. No decorrer da pesquisa, observamos

que as crianças fazem poucas distinções entre meninos e meninas quando estão brincando

espontaneamente. Porém, em contato com alguns símbolos/ídolos da cultura popular

infantil, como Batman, Homem Aranha, Cinderela, Bela Adormecida, as crianças se

colocam frente ao gênero e assumem posições binárias. Em algumas situações, as meninas

flexibilizam este posicionamento, ao contrário dos meninos. Constatamos ainda, seus

pontos de vista sobre a heterossexualidade, e notamos que grande parte considera que quem

está fora dos ‘padrões’ sociais, são ‘freaks’ ou monstros.

Em relação às produções gráficas, verificamos que os marcadores de gênero,

presentes nos diferentes artefatos culturais, continuam em suas manifestações expressivas,

como o uso de cores suaves nos desenhos de meninas, bem como formas padronizadas de

corações, flores, borboletas. Nas produções dos meninos, notamos a utilização de cores

mais fortes e indicações de movimento, intensidade e força, entre outras configurações

visuais.

Observamos que as crianças estão construindo suas representações e identidades de

gênero sobre si e sobre os outros através das interações com os artefatos e objetos visuais

que nos invadem cotidianamente. Entretanto, quando foram propostas ações pedagógicas

que desestabilizavam as certezas sobre o que é ser menina/menino, as crianças

transformavam, parcialmente, seus modos de ver e de representar o feminino e o masculino.

No atual estágio da pesquisa, constatamos que as problematizações que realizamos com

imagens são fundamentais para que as crianças tenham outros pontos de vista.

As imagens enchem tudo.

As imagens descem como folhas.

No chão da sala.

Folhas que o luar acende

Folhas que o vento espalha.

(...) As imagens se acumulam.

Rolam no pó da sala.

São pequenas folhas secas.

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(...) As imagens enchem tudo.

Vivem no ar da sala

Vivem enquanto falo. (RAMIL, 1999)

As imagens, sejam do mundo físico, das representações, do imaginário simbólico,

sejam da virtualidade, nos constituem sem nos darmos conta do quanto elas formulam

nosso modos de ver o mundo. Como Vitor Ramil poetiza na letra A ilusão da casa, as

imagens não nos dão descanso: vivem no ar da sala, vivem enquanto falamos. O roçar das

imagens se faz em todos os lugares, elas solicitam, inquietam, desestabilizam, transformam,

emocionam, incitam desejos e nos levam a conhecer outros mundos. As imagens também

produzem saberes e cegueira, pois estamos tão acostumados com a abundância que

precisamos de mais imagens, provocando assim, paradoxalmente, excessos e deficiências.

Muitas vezes as imagens possibilitam reflexões e desafiam nosso imaginário; outras vezes,

formulam estereótipos que não conseguimos romper. Como lembra Oliver Sachs (2002), no

filme Janela da Alma, ao falar do espaço de criação que se deriva no ato de ver: “O ato de

ver, de olhar, não é só olhar fora para o que é visível, mas olhar também para o invisível, de

certa forma, é isso que quer dizer a imaginação.” Entretanto, nos espaços sociais, entre eles

os escolares, os exercícios do olhar trangressor, criativo, imaginativo é escasso. Por isso,

nos espaços educativos, devemos sugerir e desenvolver um olhar aguçado e crítico sobre as

imagens das mais diferentes produções culturais, lembrando que todas as produções

imagéticas, da Capela Sistina de Michelangelo ao Almanaque da Mônica, apresentam,

formulam, visões sobre o mundo. Portanto, é necessário entendê-las em seus contextos e

circulação e nos perguntarmos: o que geram, o que dizem, e como nos afetam?

No terreno da infância, percebe-se que as crianças são mais suscetíveis aos

encantamentos das pedagogias da visualidade da cultura popular, pois é esta cultura do

prazer, do desejo e da satisfação que elas vivem. Portanto, não se trata de “afastá-las” das

produções culturais contemporâneas, mas disponibilizar e fazer com que experienciem

repertórios culturais variados. Pensar em um trabalho pedagógico que problematize a

cultura visual endereçada à infância, requer um distanciamento, pois muitas destas imagens

fazem parte dos acervos das educadoras e pesquisadoras. Portanto, é importante entender

como adultos e crianças lidam e constroem significados em torno do mundo imagético e em

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como construímos nossas representações sobre nós e sobre os outros através dos artefatos

visuais que participam de nossas vidas cotidianamente.

Também ressalto que para além do campo acadêmico, podemos pensar as funções

das imagens no mundo contemporâneo a partir das produções visuais de alguns produtores

de imagens, como Nadim Ospina, Gottfried Helnwein, Enrique Chagoya, Rogelio Lopez

Cuenca, David Hocney, Nélson Leiner e Lia Menna Barreto; cineastas como Wim

Wenders, Bigas Luna, Peter Greenaway e João Jardim, e escritores como José Saramago e

Oliver Sachs, entre outros, que abordam criticamente as imagens no mundo

contemporâneo, bem como os modos que estamos (des)construindo nossas maneiras de ver

a partir do universo imagético.

Notas 1 Oficina de Arte Sapato Florido da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, RS, 1992-1996. 2 A expressão é derivada do termo pedagogia cultural utilizado por Henry Giroux (1995) e Shirley Steinberg (1998) quando se referem a formas educativas exercidas pelas diversas modalidades da cultura de massa, como os filmes, brinquedos, livros, videogames, TV, imagens da mídia, entre outros, que produzem conhecimentos e moldam as identidades individuais e coletivas 3 Desde 1997 sou supervisora de estágio em Educação Infantil na Faculdade de Educação/UFRGS 4 Atualmente, a acadêmica Ana Cristina Vidal, bolsista de Iniciação Científica, desenvolve sua pesquisa, sob minha orientação, sobre as ambiências escolares como produtoras de territórios generificados. 5 Os estudos da Cultura Visual no Brasil tem focos de produção acadêmica na Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade de Brasília (UnB) e Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), entre outras Instituições de Ensino Superior. 6 Neste momento, ao pesquisar no Google as palavras chaves infância, educação infantil e cultura visual, encontro apenas as discussões do Eixo Temático: Infância e Cultura Visual, da Linha de Pesquisa Estudos sobre Infâncias, do Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS. 7 Atualmente, no eixo temático Cultura Visual e Infância da Linha de Pesquisa Estudos sobre Infâncias, oito pesquisas estão em andamento sobre como a Cultura Visual produz os modos de ser criança, bem como produz nossa visualidade sobre as infâncias e sobre como as diferentes infâncias se vêem nas interações com o universo visual. 8 Esta pesquisa foi desdobrada em outros enfoques pelas Bolsistas de Iniciação Científica (UFRGS e FAPERGS). Camila Bettim Borges pesquisa a importância da Cultura de Pares nas relações infantis e a influência da cultura visual e de seus marcadores de gênero na constituição do imaginário infantil; Ana Cristina Vidal, examina as relações produzidas entre espaços escolares e a formação das identidades masculinas e femininas, buscando entender como os espaços escolares produzem territórios generificados e, ainda, como as crianças estabelecem relações com eles. 9 Apesar do coelho da Mônica ser do sexo masculino e ter o nome de Sansão, sua imagem está associada a uma identidade feminina: Mônica.

Referências Bibliográficas

ACHUTTI, Luiz E. R. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Tomo Editorial, 2004. _____Fotoetnografia: Um estudo de antropologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho em uma vila popular na cidade de Porto Alegre. Porto Alegre: Tomo Editorial e Palmarinca, 1997. BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1997.

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