as eleições à luz da história antipovo

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As eleições à luz da história antipovo Leonardo Boff 12/10/14 http://www.jb.com.br/leonardo-boff/noticias/2014/10/12/as-eleicoes-a-luz-da- historia-antipovo/ Nada melhor do que ler as atuais eleições à luz da história brasileira na tensão entre as elites e o povo. Valho-me duma contribuição de um sério historiador com formação em Roma, em Lovaina e na USP de São Paulo, o Pe. José Oscar Beozzo, uma das inteligências mais brilhantes de nosso clero. Diz Beozzo: “A questão de fundo em nossa sociedade é a do direito dos pequenos à vida sempre ameaçada pela abissal desigualdade de acesso aos meios de vida e pelas exíguas oportunidades abertas às grandes maiorias do andar debaixo. Como nos ensina Caio Prado Júnior, nossa formação social desigual repousa sobre quatro pilares difíceis de serem movidos: a) a grande propriedade da terra concentrada nas mãos de poucos, de tal modo que não haja terra “livre” e “disponível” para quem trabalha ou para os que eram seus donos originários, os povos indígenas; b) o predomínio da monocultura; c) a produção voltada para o mercado externo (açúcar, tabaco, algodão, café, cacau e hoje soja); d) o regime de trabalho escravo. A independência de Portugal não alterou nenhum desses pilares. Os que naquela época sonharam com um Brasil diferente, propunham a troca da grande pela pequena propriedade nas mãos de quem trabalhava; da monocultura para a policultura; da produção para o mercado internacional por outra voltada para o autoconsumo e para o abastecimento do mercado interno; do trabalho escravo pelo trabalho familiar livre. Isso pôde acontecer em pequenas regiões periféricas às monoculturas tropicais, na serra gaúcha e catarinense, com colonos alemães, italianos, poloneses, numa propriedade mais democratizada. Houve geral oposição dos grandes proprietários escravistas a qualquer dessas medidas e foram matados a ferro e fogo levantes populares que apontavam para qualquer medida democratizante na economia, na política e sobretudo nas relações de trabalho. Basta rememorar algumas dessas revoltas: a insurreição dos escravos Malês

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As eleições à luz da história antipovo

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Page 1: As eleições à luz da história antipovo

As eleições à luz da história antipovo

Leonardo Boff12/10/14

http://www.jb.com.br/leonardo-boff/noticias/2014/10/12/as-eleicoes-a-luz-da-historia-antipovo/

Nada melhor do que ler as atuais eleições à luz da história brasileira na tensão entre as elites e o

povo. Valho-me duma contribuição de um sério historiador com formação em Roma, em Lovaina e

na USP de São Paulo, o  Pe. José Oscar Beozzo, uma das inteligências mais brilhantes de nosso

clero.  

Diz Beozzo: “A questão de fundo em nossa sociedade é a do direito dos pequenos à vida sempre

ameaçada pela abissal desigualdade de acesso aos meios de vida e pelas exíguas oportunidades

abertas às grandes maiorias do andar debaixo.

Como nos ensina Caio Prado Júnior, nossa formação social desigual repousa sobre quatro pilares

difíceis de serem movidos: a) a grande propriedade da terra concentrada nas mãos de poucos, de tal

modo que não haja terra “livre” e “disponível” para quem trabalha ou para os que eram

seus donos originários, os povos indígenas; b) o predomínio da monocultura; c) a produção voltada

para o mercado externo (açúcar, tabaco, algodão, café, cacau e hoje soja); d) o regime de trabalho

escravo.

A independência de Portugal não alterou nenhum desses pilares.  Os que naquela época sonharam

com um Brasil diferente, propunham a troca da grande pela pequena propriedade nas mãos de quem

trabalhava; da monocultura para a policultura; da produção para o mercado internacional por outra

voltada para o autoconsumo e para o abastecimento do mercado interno; do trabalho escravo pelo

trabalho familiar livre. Isso pôde acontecer em pequenas regiões periféricas às monoculturas

tropicais, na serra gaúcha e catarinense, com colonos alemães, italianos, poloneses, numa

propriedade mais democratizada.

Houve geral oposição dos grandes proprietários escravistas a qualquer dessas medidas e foram

matados a ferro e fogo  levantes populares que apontavam para qualquer medida democratizante na

economia, na política e sobretudo nas relações de trabalho. Basta rememorar algumas dessas

revoltas: a insurreição dos escravos Malês na Bahia, a Balaiada no Maranhão, a Cabanagem na

Amazônia, a revolução Praieira em Pernambuco, a Farroupilha no  Sul.

A revolução de 30, com seu viés nacionalista, mesmo que parcialmente, deslocou o eixo do país do

mercado externo para o interno; do modelo agrário exportador para o de substituição de importações;

do domínio das elites exportadoras do café do pacto Minas/São Paulo, para novas lideranças das

zonas de produção para o mercado interno, como as do arroz e charque do Rio Grande do Sul; do

voto censitário, para o voto “universal” (menos para os analfabetos, naquela época ainda maioria

entre os adultos), do voto exclusivamente masculino para o voto feminino; das relações de trabalho

ditadas apenas pelo poder dos patrões para a sua regulação, pelo menos na esfera industrial, com a

criação do Ministério do Trabalho e das leis trabalhistas voltadas para a classe operária. Não se

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conseguiu tocar o domínio incontornável dos proprietários de terra na regulação do trabalho dentro

de suas propriedades, o que vai acontecer só depois de 1964, com o Estatuto do Trabalhador Rural.

Getúlio implantou uma política corporativista de apaziguamento entre as classes e de “cooperação”

entre capital e trabalho, entre operários e os capitães da indústria em torno de um projeto de

industrialização e defesa dos interesses nacionais.

Nesta  campanha eleitoral, certos meios de comunicação criaram o motto: “Fora PT”. Busca-se

acabar com a “ditadura” do PT para instaurar a “ditadura do mercado financeiro”. O que realmente

incomoda? A corrupção e o mensalão?

A meu ver, o que incomoda, em que pesem todos seus limites, são as medidas democratizantes como

o Prouni, as cotas nas universidades para os estudantes vindos da escola pública e não dos colégios

particulares; as cotas para aqueles cujos avós vieram dos porões da escravidão; a reforma agrária,

ainda que muito aquém de tudo o que seria necessário; a demarcação e homologação em área

contínua da terra Yanomami contra meia dúzia de arrozeiros apoiados pelo coro unânime dos

latifundiários e do agronegócio, assim como todos os programas sociais do Bolsa Família, ao Luz

para Todos, ao Minha Casa, minha Vida, ao Mais Médicos e daí para frente.

Nunca incomodou a estes críticos que o Estado pagasse o estudo de jovens estudantes de famílias

ricas que deram a seus filhos boa educação em escolas particulares, o que lhes franqueou o acesso ao

ensino gratuito nas universidades públicas aprofundando a desigualdade de oportunidades. Esse

estudo custa mensalmente ao Estado nos cursos de Medicina de seis a sete mil reais. Nunca

protestaram essas famílias contra essa “bolsa-esmola” dada aos ricos, e que é vista como “direito”

devido a seus méritos e não como puro e escandaloso privilégio. São os mesmos que se recusam a

ser médicos nos interiores e nas periferias que não dispõem de um médico sequer.

Os que sobem o tom dizendo que tudo no país está errado, em que pese a melhoria do salário

mínimo, a criação de milhões de empregos, a ampliação das políticas sociais em direção aos mais

pobres, a criação do Mais Médicos, posicionam-se contra as políticas do PT que visam a assegurar

direitos cidadãos, ampliar a democratização da sociedade, combater privilégios e sobretudo colocar

um pouco de freio (insuficiente a meu ver) à ganância e à ditadura do capital financeiro e do

“mercado”.

É esta a razão do meu voto para outro projeto de país, que atende às demandas sempre negadas às

grandes maiorias. É por isso, que votei Dilma no primeiro turno e o farei no segundo, respeitando

outras escolhas. Associo-me a esta interpretação, também no voto à Dilma Rousseff.