as comemorações paulistas do centenário da independência do
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As Comemorações Paulistas do Centenário da Independência do Brasil:
o projeto visual de uma epopeia bandeirante 1
Thaís Chang Waldman (USP)
Resumo: Berço dos bandeirantes, São Paulo quer mostrar à nação o seu lugar de proa no
cenário nacional. Poucos meses após a Semana de Arte Moderna, Afonso d’Escragnolle
Taunay (1876-1958), um dos mais atuantes membros do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo, apresenta um projeto visual para a empreitada iniciada por ele
mesmo e pelo instituto histórico paulista -a de destacar, sob o signo da glória, a
particularidade de São Paulo e de seu passado bandeirante-, que será coroada com a
comemoração paulista do Centenário da Independência do Brasil. Este trabalho,
portanto, procura dialogar com o projeto visual apresentado por Taunay: o de construir
visualmente, durante um momento ritual, uma tradição com base na epopeia
bandeirante. Engenheiro dado aos estudos históricos e proveniente de uma família de
artistas, Taunay tenta transformando em imagens os episódios do passado regional, até
então praticamente restritos à representação escrita. As esculturas e a farta iconografia
paulista e bandeirante, encomendadas por ocasião das comemorações do Centenário,
parecem revelar imagens que, a todo momento, ao longo da Primeira República (e para
além dela), se afirmam, se cruzam, se opõem e se sobrepõem, revelando as
ambivalências de um período de tensões marcado por mudanças aceleradas.
Palavras Chave: Centenário da Independência do Brasil; Taunay; projeto visual
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.
A retomada da imagem dos heroicos civilizadores luso-indígenas dos séculos
XVI e XVII - também chamados de "mamelucos", "gente de São Paulo", ou
"portuguêses de São Paulo" -, responsáveis pela incorporação de imensas regiões ao
domínio brasileiro, é resultado e produto de um novo contexto, marcado por extensas e
profundas mudanças que levaram à crise das instituições do Segundo Reinado2.
A capital paulista passa por transformações veementes, diretamente relacionadas
à expansão da lavoura cafeeira, à abolição da escravatura, à imigração e à proclamação
da República que, não por acaso, coincidem com a urbanização e o crescimento da
cidade3. São Paulo transforma-se na dinâmica "capital do café", em um dos primeiros
focos da industrialização no país e no núcleo de um processo de expansão urbana
impiedoso e lucrativo.
Tudo isso revela o alto grau de tensão social reinante e a existência de um
"populacho perigoso e hostilizado", composto não somente por imigrantes mal
assimilados -que em 1920 somavam cerca de 205 mil, em uma cidade de
aproximadamente 579 mil habitantes-, mas também migrantes, negros, mulatos e pelos
demais "párias" da sociedade (DEAN, 1991). Ainda que a oligarquia cafeeira não
quisesse ver essa "cidade popular" que surgia a seu lado (CAMPOS, 2002, p.91), pode-
se dizer que ela começa a enfrentar uma crise imposta por uma sociedade que ela
mesma ajudara a desenvolver4.
São Paulo passa a concentrar não somente proprietários industriais de origem
estrangeira, como também pequenos e médios fazendeiros, e uma grande população
operária, constituídos na maior parte por imigrantes5. Além disso, os próprios setores
dominantes da República Velha formam uma elite em nada homogênea, marcada por
disputas como as que ocorriam entre os fazendeiros do café, a burguesia industrial
urbana em expansão e o capital estrangeiro (PERISSINOTTO, 1994).
2 Há uma extensa bibliografia sobre as transformações da capital paulista na final do século XIX e início
do XX, em seus diversos âmbitos, cf. MORSE (1970); PRADO JR. (1989); ROLNIK (1991);
SEVCENKO (1992); HOMEM (1996); MONBEIG (1998); SEGAWA (2000); CAMPOS (2002),
FREHSE (2005; 2011); entre outros, além de memorialistas como AMERICANO (1957) e BRUNO
(1984). 3 Se no último censo demográfico do século XIX a capital paulista somava cerca de 240 mil habitantes,
oito vezes mais que no censo anterior, em 1920 São Paulo chega a cerca de 579 mil habitantes, em grande
parte devido aos imigrantes recém-chegados. Dados disponíveis em:
<http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/index.php>, acesso em 23/06/2012. 4 Para uma abordagem desse contexto de crise da oligarquia cafeeira, em diversos âmbitos, cf. FAUSTO
(1977); MICELI (1979); CASALECCHI (1987); DEAN (1991); PERISSINOTO (1994); entre outros. 5 Não à toa, iniciam-se as primeiras grandes greves por melhores condições de trabalho e uma melhor
remuneração, das quais a de 1917 fica famosa, colocando a questão social no centro do debate político.
Em uma espécie de resposta a essas transformações em curso, vemos aflorar um
forte sentimento de pertencimento, que se vale do mito bandeirante. Não somente por
parte das elites temerosas, é importante enfatizar, mas também, por exemplo, dos
imigrantes que procuravam afirmar sua própria identidade em contraponto àqueles que
os classificavam como indolentes, boêmios, preguiçosos, grevistas ou anarquistas
(RAGO, 1985)6.
Tudo isso irá levar a um “jogo de se gritar uns para os outros: (...) eu é que sou
parente do Ubirajara da avenida, neto dos bandeirantes barbudos do Brizzolara, primo
daquele caiçara impaludado das praias de Itanhaém” (PRADO, 1927), jogo esse que
deixaria poucas pessoas de fora. Nesse sentido, a imagem do bandeirante parece ser
(re)construída em uma tentativa de se estabelecer algum consenso em uma cidade
marcada pela impossibilidade de se definir.
As Comemorações Paulistas do Primeiro Centenário
Em 1916, Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958), um dos mais atuantes
membros do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP)7 e da Academia
Paulista de Letras (APL) é escolhido para assumir o cargo de diretor do Museu Paulista.
Seu papel seria o de transformar o museu científico -dedicado às ciências naturais e à
exposição de exemplares da fauna e da flora brasileiras- em um museu voltado
prioritariamente à história, dando início às comemorações do Centenário da
Independência do Brasil8.
Berço dos bandeirantes, a São Paulo de 1922 queria mostrar à nação o seu lugar
de proa no cenário nacional. Poucos meses após a Semana de Arte Moderna, iniciam-se
as comemorações do Centenário, em frente ao Museu Paulista, integrando o calendário
nacional das celebrações da Independência, cujo evento-núcleo ocorreu no Rio de
6 Em meio a um movimento na Europa de eugenia, é revelador o fato de São Paulo ter privilegiado a
imigração europeia, impondo graves entraves à introdução de mão de obra africana e asiática no país, cf.
SCHWARCZ (1993). 7 Os paulistas, como sabido, não são pioneiros. Após a fundação do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB), em 1838, no Rio de Janeiro, temos os de Pernambuco (1862), Alagoas (1869), Ceará
(1887) e o da Bahia (1894), fundado no mesmo ano que o paulista. Ao todo, na virada do século, mais de
vinte agremiações regionais se espalham pelo país. 8 Sobre a comemoração do Centenário da Independência do Brasil, cf. MOTTA, M., (1992) e FERREIRA
(2002).
Janeiro, organizado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Projetada
como um espetáculo para multidões, a epopeia paulista é festejada, sob o patrocínio do
governo federal, com muita pompa e ostentação, legitimando assim também a pujança
das elites paulistas ligadas à cafeicultura e ao governo da própria República.
Voltando-se para "um público mergulhado no prosaico da vida cotidiana da
cidade e, por isso mesmo, ávido por rituais coletivos", o espetáculo se estende da colina
do Ipiranga para as praças públicas, escolas secundárias e primárias, estabelecimentos
de ensino superior, igrejas, lojas maçônicas, além do Instituto Histórico, do Tribunal da
Justiça e de muitas cidades do interior (FERREIRA, 2002, p. 271). Reformado às
pressas, o Museu Paulista amplia suas coleções, abrindo ao público oito salas
consagradas, principalmente, à história paulista.
Taunay havia introduzido no interior do Museu Paulista várias novidades9, entre
elas, logo na entrada, no grande peristilo recém decorado, as esculturas monumentais
em blocos de mármore de Carrara dos bandeirantes Fernão Dias Paes Leme e Raposo
Tavares, ambas encomendadas ao italiano Luigi Brizzolara (1868-1937), assim como
seis estátuas menores de bronze retratando figuras simbólicas do bandeirismo de São
Paulo.
Aproveitando o ensejo dos festejos, Taunay apresenta um projeto visual para a
empreitada iniciada por ele mesmo e pelo IHGSP -a de destacar, sob o signo da glória, a
particularidade de São Paulo e de seu passado bandeirante-, que será coroada com a
comemoração paulista do Centenário. Engenheiro dado aos estudos históricos e
proveniente de uma família de artistas, Taunay procura transformar também em
imagens os episódios do passado regional paulista, até então praticamente restritos à
representação escrita10
.
Ao criar um discurso visual bandeirante, Taunay não apenas coleta documentos
iconográficos, como os produz, encomendando-os a pintores e escultores segundo
prescrições bem definidas. Assim, para além das narrativas históricas e literárias já
mencionadas -entre elas, as do próprio Taunay, como veremos-, abre-se espaço a uma
vasta iconografia que narra a história colonial paulista e que pode ser exemplificada
pelas obras de Wasth Rodrigues (1891-1957), Benedito Calixto (1853-1927), Henrique
9 Para uma descrição detalhada da decoração interna do edifício, cf. TAUNAY (1937)
10 Ainda que a Pinacoteca do Estado -o primeiro museu da cidade, inaugurado em 1905-, já possuísse um
acervo de pinturas e esculturas, ele estava mais voltado para a arte brasileira do século XIX (ARAUJO e
CAMARGOS, 2007).
Bernadelli (1857-1936), Rodolfo Amoedo (1857-1941), João Batista da Costa (1865-
1926), Joaquim Fernandes Machado (1875-?), entre outros.
Durante as comemorações no Museu Paulista, é também inaugurado o
Monumento do Ipiranga, escultura de autoria do italiano Ettore Ximenes (1855-1926),
entregue parcialmente em 1922, mas concluída somente quatro anos depois. A escolha
de uma obra de representação histórica nada tem de fortuito: é nas margens do Ipiranga,
em São Paulo, berço dos bandeirantes, que nasce a corrente libertadora que levaria o
príncipe regente lusitano a decidir-se pelo rompimento com Portugal. Assim, a memória
do local que outorgou ao país sua maioridade política deveria ser fixada em bronze, de
modo a ter sua eternidade garantida.
Ainda por ocasião do Centenário, em uma espécie de contracelebração, a
comunidade italiana encomenda a Brizzolara -o mesmo escultor que inicia no peristilo
do Museu Paulista o enredo de uma epopeia bandeirante- um monumento ao compositor
Carlos Gomes. Uma das esculturas que o compunham, o “Guarany”, passa a ser
ironicamente denominada “o índio milanês do Sr. Brizzolara” pela elite que organizava
o evento (PRADO, 1923, p 290). A encomenda italiana ilustra o fato de que várias
entidades e segmentos da população -muitas vezes congregados com seus conterrâneos
estrangeiros em torno de jornais, clubes e associações- também concorrem entre si para
deixar um símbolo coletivo de distinção. Outros enredos disputavam a epopeia paulista
(FERREIRA, 2002).
O extravasamento do ufanismo regional encontra espaço igualmente no extenso
discurso oficial das comemorações, encerrado com um poema sinfônico. Do alto do
Ipiranga, recapitulando a história, o papel dos paulistas é exaltado em diversas fases da
vida do país e, especificamente, no desenrolar da independência de 1822. Os paulistas
são caracterizados como verdadeiros protagonistas da história nacional em seus
sucessivos papéis de desbravadores do sertão, formuladores dos ideais
emancipacionistas, criadores do progresso econômico e artífices do republicanismo.
Tudo isso para mostrar que “o Brasil foi feito pelos brasileiros, ou melhor, pelos
paulistas”, conclui o orador (RIHGSP, 1922, p.43). Ligavam-se assim, mediante laços
de sangue, as elites triunfantes da República e o patriarcado da São Paulo colonial.
Ao anoitecer daquele 07 de setembro, ao longo do antigo Caminho do Mar, cuja
estrada íngreme é repavimentada para a ocasião, são também inaugurados quatro
monumentos: o “Cruzeiro Quinhentista”, “Tropas e Circulação de Produtos”, “Rancho
da Maioridade” e “Rancho de Paranapiacaba”. Em outras palavras: a cruz quinhentista,
símbolo sagrado dos primeiros descobridores; ao lado disso, uma homenagem aos
tropeiros, responsáveis pela circulação e trânsito de riquezas; tampouco é esquecida a
maioridade, símbolo do período que vai da Independência à aparição da riqueza
cafeeira; e, finalmente, Paranapiacaba, representando o tempo presente, rumo a um
futuro promissor.
Foi nesse palco, explica Júlio Prestes (1882-1946) no discurso inaugural dos
quatro monumentos, na "terra mãe", que "surge o primeiro caboclo, misto de duas raças,
com as qualidades superiores do português e a resistência e o sangue quente do
selvagem, forjado para as aventuras e para fazer irradiar a nacionalidade" (RIHGSP,
p.XXII, p.75).
Para encerrar com chave de ouro a comemoração paulista, estava prevista ainda,
entre outras coisas, a construção de um grande monumento em homenagem aos
bandeirantes. Durante os preparativos para as comemorações, Menotti del Picchia,
Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976), Oswald de Andrade (1890-1954) e Hélios
Seelinger (1878-1965), se encantam com as esculturas de Victor Brecheret (1894-1955),
e o elegem responsável pelo monumento (BATISTA, 1985). Pode-se dizer, nesse
sentido, que a Semana de Arte Moderna, que ocorre em fevereiro do mesmo ano de
1922, reforça a crença na superioridade paulista, transformando-a em sinônimo de
identidade cultural11
.
Importante ressaltar que os novos amigos não duvidam da “paulistanidade” do
escultor italiano, nascido Vittorio Brecheret, em uma pequena cidade da província de
Viterbo. Brecheret é um dos "novos mamelucos" de origem italiana aos quais Antônio
de Alcântara Machado (1901-1935) dedica seu livro Brás, Bexiga e Barra Funda
(1927). E como um "novo mameluco", apresenta um projeto para o Monumento às
Bandeiras no qual os homenageados são todos despersonalizados -eram todos
bandeirantes anônimos-, além de estarem, em sua maior parte, nus, despojados de
adornos ou caracteres identitários e/ou étnicos (AMARAL, 1998; BATISTA, 1985).
Brecheret, contudo, não teve a acolhida esperada junto à presidência do estado.
Lembremos que além de ser o então presidente do estado, Washington Luís (1869-
1957) era também um estudioso das bandeiras paulistas, responsável pela publicação
dos vinte e sete volumes da Nobiliarquia Paulistana de Pedro Tacques -uma longa
11
Tal engate dos modernistas com uma "tradição bandeirante" parece nos fornecer pistas para
repensarmos a imagem desse evento como um marco na renovação cultural do país. Cf. principalmente
PRADO (1983); IGREJA (1989); HARDMAN (1992); CHIARELLI (1995); MICELI (2003).
genealogia que glorifica e traça uma linha de continuidade entre os bandeirantes dos
séculos XVI e XVII e seus descendentes paulistanos. Washington Luís não somente
estava à frente de toda programação paulista das comemorações do Centenário, como
contribuiu com verbas extraordinárias, com doações feitas às coleções históricas e,
também, opinando sobre os elementos que deveriam pertencer ao acervo do museu.
Em meio à euforia do pré-centenário, o projeto do "novo mameluco" de origem
italiana foi adiado pela elite que organizava o evento, ainda por demais associado às
antigas elites de origem colonial e seus supostos descendentes. Somente em 1936 -
quando "o personalismo e o excessivo vínculo com os heróis individuados da década de
1920 cede[m] espaço a uma caráter mais elástico e abrangente" (MARINS, 1999, p.17)-
o monumento de Brecheret é finalmente aceito e encampado pelo poder público, que
assume os custos de sua execução.
O Projeto Visual de uma Epopeia Bandeirante
A figura do bandeirante não é nova nas letras locais, bem o sabemos. Antônio
Candido mostra que, desde o século XVIII, se operava a construção de uma identidade
literária regional baseada na ideia de “orgulho ancestral”, de onde sairia “a primeira
visão intelectual coerente” da empresa bandeirante. Segundo ele, os cronistas Pedro
Tacques de Almeida Paes Leme (1714-1777) e Frei Gaspar Madre de Deus (1714-
1800), juntamente ao poeta Cláudio Manoel da Costa (1729-1789), teriam se
encarregado de acentuar “a lealdade, a magnanimidade, a nobreza dos aventureiros de
Piratininga, traçando-lhes um perfil convencional que passou a posteridade”
(CANDIDO, 2002, p.145).
Ao longo do século XIX, quando as atenções se voltavam para a vida na Corte,
as referências aos aventureiros paulistas aparentemente se limitavam ao viajante e
naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) e a obras historiográficas de
caráter mais geral, como History of Brazil, publicada em Londres, entre 1810 e 1819,
pelo inglês Robert Southey (1774-1843), e História Geral do Brasil (1854-1857), do
sorocabano Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878). Já no início do século XX,
Frei Gaspar e Pedro Tacques são retirados do esquecimento a que tinham sido relegados
durante a maior parte do século anterior, sendo valorizados e popularizados.
Nessa retomada, se destacam historiadores como Afonso d’Escragnolle Taunay
(1876-1958), com os onze volumes de sua História Geral das Bandeiras Paulistas,
iniciada em 1924 e só terminada em 1950; Alfredo Ellis Júnior (1896-1974), em O
Bandeirismo Paulista (1924) e Raça de Gigantes (1926); José Alcântara Machado
(1875-1941), em Vida e Morte do Bandeirante (1929) e também outros, nem sempre
mencionados nesse contexto, como Oliveira Viana (1883-1951), em Populações
Meridionais do Brasil (1920) e Paulo Prado (1869-1943), em Paulística (1925) e
Retrato do Brasil (1928). O bandeirante, desbravador de fronteiras, é eleito um tipo
local que simboliza as qualidades e a origem da nossa terra.
Muitos desses historiadores escrevem também romances históricos voltados para
a mesma temática, como Índios, Ouro, Pedras! (1926), de Afonso Taunay, ou Tesouro
de Cavendish (1928), escrito por Alfredo Ellis em parceria com Menotti del Picchia
(1892-1988). Vemos assim que diversos membros do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo, defensores de uma verdade histórica precisa e rigorosa, são também
fundadores da Academia Paulista de Letras, em 1909.
Estava aberto o caminho para a (re)construção da imagem de uma “raça de
gigantes”, criada por Saint-Hilaire ao viajar pelo Brasil, ainda no início do século XIX.
Representante exemplar desta “raça” seria o bandeirante, talvez a figura mais enaltecida
pelos paulistas da Primeira República (BLAJ, 2002). Nesse contexto no qual quase
todos os intelectuais do período lançam versões próprias do significado do movimento
das bandeiras paulistas, manifestando em seus trabalhos, implícita ou explicitamente,
um orgulho de linhagem - vide os onze volumes escritos pelo próprio Taunay-, temos,
com o projeto visual de uma epopeia bandeirante apresentado pelo então diretor do
Museu Paulista, uma mudança de regime de saber e de suporte material.
Se o discurso histórico e literário trocam temas e formas de representação, esse
intercâmbio se estende também, como nos mostra José Murilo de Carvalho (2006), para
elementos extradiscursivos. O extravasamento das visões de república para o mundo
extraelite, ou as tentativas de operá-lo, dependem, afirma o autor, principalmente, de
sinais mais universais do que o discurso, sinais de leitura mais fácil, tais como as
imagens (IDEM). Tal vinculação dos museus históricos com o domínio estético, como
nota Ulpiano Bezerra de Meneses, não é meramente ocasional, pois “o papel nobilitante
das artes, para comunicar valores cívicos, sempre foi eficaz” (MENESES, [s.d.])12
12
Em uma sociedade majoritariamente analfabeta, tais elementos destacam-se pela maior acessibilidade.
Roquette-Pinto, em 1918, ao comentar as salas de exposição do Museu Paulista voltadas para o passado e
Lembremos que, sobretudo ao longo do século XIX, a questão da visualidade da
história também se funda no valor pedagógico que a imagem adquire como um dos
meios mais eficazes de formar um imaginário popular, principalmente em momentos de
mudança política e social e de redefinição de identidades coletivas. Não é à toa,
portanto, que poucos meses após a Semana de Arte Moderna de 192213
, Afonso Taunay,
um dos mais atuantes membros do IHGSP, apresenta, como visto, um projeto visual
para a empreitada iniciada pelo instituto histórico paulista, fundado em 1894, num
momento em que a República vivia uma turbulenta luta por sua consolidação.
Se Taunay elaborou e desenvolveu seus primeiros trabalhos como membro
assíduo do IHGB e do IHGSP, ao assumir a direção do Museu Paulista, é com seus
pares dos institutos paulista e carioca que ele discutirá a organização da Seção de
História a ser inaugurada para as festas centenárias. Na correspondência institucional do
Museu Paulista no período em que Taunay foi seu diretor, é possível encontrar diversas
cartas trocadas entre ele e outros membros dos institutos, intercambiando informações e
demarcando diretrizes.
Inicialmente dedicado às ciências naturais e à exposição de exemplares da fauna
e da flora brasileiras, o Museu Paulista, ao passar pelas mãos e pelas escolhas de Afonso
Taunay, que o dirigiu entre 1917 e 1946, transforma-se em um lugar de narrativa do
passado nacional necessariamente atrelado à memória paulista. Não à toa, já no primeiro
ano de sua gestão, Taunay monta uma nova sala de exposição inteiramente dedicada à
história de São Paulo, o que indica, logo de saída, o foco de sua gestão.
O objetivo de Taunay ao reproduzir algumas imagens precisamente escolhidas
era contar a história de São Paulo e, a partir dela, a história da constituição da nação
brasileira. Tudo isso "de maneira lógica, linear e, sobretudo, de fácil assimilação para o
público espectador, em razão do caráter didático que a iconografia comporta quando
disposta e articulada ao espaço na produção de significados" (BREFE, 2003, p.113).
Ainda no ano de 1919, Taunay já estabelece contatos com alguns dos principais
artistas encarregados posteriormente da execução das telas históricas, dos retratos e das
estátuas que iriam compor a decoração histórica do Museu Paulista, o que pode ser
a cartografia de São Paulo, afirma: "(...) vendo agora as linhas que a mão venerável do donatário [Martim
Affonso] traçou, para entregar um pedaço de terra brasileira a um dos seus primeiros povoadores, o povo
ingênuo acabará firmemente convencido da realidade de sua existência. É o primeiro passo para a
veneração" (apud MORETTIN, 1998). 13
O ano de 1922 é uma data carregada de peso simbólico. Somam-se à Semana de Arte Moderna, a
fundação do Partido Comunista e do centro Dom Vital, de orientação católica; o episódio do Forte de
Copacabana, marco inicial do tenentismo; e a comemoração do primeiro Centenário da Independência do
Brasil.
observados na leitura de suas correspondências. Entre aqueles que foram contatados,
além de nomes de destaque de São Paulo, como Oscar Pereira da Silva, Benedito
Calixto, Wasth Rodrigues e Domenico Failutti, Taunay fez questão de convidar
renomados pintores e escultores da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro,
como Joaquim Fernando Machado, Rodolfo Amoedo e os irmãos Henrique e Rodolfo
Bernardelli. Isso indica que, rixas e divergências à parte, o meio cultural e intelectual é
reduzido, e todos praticamente circulam pelos mesmos (e poucos) espaços.
A correspondência entre esses artistas e Taunay se torna mais frequente a partir
de 1920, quando o então diretor do Museu Paulista procura estabelecer os detalhes
sobre a confecção das telas, os prazos de entrega e a negociação dos preços dos
serviços. Importante ressaltar que a intervenção de Taunay na confecção dessas
encomendas - e não somente dessas-, foi intensa. Ele não apenas fornecia a fonte a
partir da qual a pintura deveria ser composta, como pedia informações e sugeria
modificações mesmo quando as obras estavam praticamente acabadas14
.
O enredo da narrativa dessa epopeia bandeirante começa a ser tramado já no
grande peristilo do museu, que antecede a escadaria e se comunica com as duas alas
térreas: nele são dispostas à direita e à esquerda, uma de frente pra outra, recebendo os
visitantes, as duas majestosas estátuas dos dois principais bandeirantes": Antônio
Raposo Tavares e Fernão Dias Pais, ambas de 1920. Os dois "titãs", como os descreve
Taunay, simbolizariam os dois grandes "ciclos" do bandeirantismo: o primeiro
representa o ciclo de caça ao índio e devassa do sertão; e o segundo, o ciclo do ouro e
das pedras preciosas. Esculpidos em mármore de Carrara por Luigi Brizzolara, esses
dois personagens, responsáveis pelas primeiras conquistas e pela expansão do território
brasileiro, dão início a narrativa.
Segundo as palavras do próprio Taunay: "está Antônio Raposo Tavares
magnificamente caracterizado num gesto de devassador de terras, com braço alçado ao
nível dos olhos, como quem explora o horizonte. Fernão Dias, não menos
expressivamente, examina um mineral" (TAUNAY, 1937, p.57). Outros bandeirantes de
bronze encontram-se representados na "escadaria monumental" do Museu Paulista, ali
reunidos mediante sugestivo critério: "sobre os pedestais, figuram pois, seis
14
É o caso, por exemplo, do painel em óleo sobre tela "Ciclo da Caça ao Índio", encomendado a Henrique
Bernardelli para ornar um segmento das paredes da escadarias. Taunay reagiu, via correspondência,
contra o cachimbo e a posição anti-heroica do bandeirante Matias Cardoso de Almeida, sobrinho de
Fernão Dias, que Bernardelli apresentou na segunda versão de sua pintura, além de solicitar a inclusão de
barbas na figura do bandeirante.
bandeirantes célebres, como a montar guarda ao fundador da nacionalidade brasileira
[D. Pedro I]" (IDEM, 1926b, p.49).
As seis estátuas menores de bronze simbolizam cada umas das unidades da
Federação que se destacaram do território de São Paulo. Assim, rememorariam as
seguintes figuras capitais e simbólicas do bandeirantismo: Manoel da Borda Gato
(Minas Gerais- 1720), Pascoal Moreira Cabral Leme (Mato Grosso- 1748), Bartolomeu
Buenos da Silva, o Anhanguera (Goiás- 1744); Manuel Preto (Paraná- 1853), Francisco
Dias Velho (Santa Catarina- 1738) e Francisco de Brito Peixoto (Rio Grande do Sul-
1738). Em cada pedestal assinalou-se o nome do estado alcançado pelo bandeirante e a
data de sua separação do estado de São Paulo.
Coube as escultor italiano Nicola Rollo (1889-1970) representar os bandeirantes
Manoel de Borga Gato, para Minas Gerais, e Francisco Dias Velho, para Santa Catarina;
outro italiano, Amadeo Zani (1869-1944), esculpiu Paschoal Moreira Cabral, pelo
estado de Mato Grosso, e Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, que representa a
expansão em direção a Goiás; enquanto ao belga Adrian-Henri-Vital van Emelen (1868-
1943), coube Manuel Preto e Francisco de Brito Peixoto, respectivamente para os
estados do Paraná e do Rio Grande do Sul. Desse modo, Taunay procura ressaltar que,
no passado de outras unidades da federação, havia também o empenho de desbravadores
paulistas.
No relatório referente ao ano de 1919 enviado ao secretário do Interior,
inclusive, Taunay afirma que "essas seis estátuas representarão a incorporação de três e
meio milhões de kms quadrados feita pelos paulistas ao patrimônio nacional" (apud
BREFE, 2003, p.117). Tais esculturas, além disso, ressaltam a indumentária bandeirante
até hoje presente no imaginário popular: "o chapéu com abas largas, botas de canos
altos, bacamartes. polvarinho e facão" (MAKINO, 2003, p.176).
Para a concretização do projeto de decoração para as festas centenárias, Taunay
solicita ainda a colaboração de Rodolfo Bernardelli, para a ornamentação da escadaria, e
Rodolfo Amoedo, para o projeto da Sanca. Já Van Emelen seria o responsável pela
concepção das esculturas dos bandeirantes e dos suportes de bronze das ânforas de vidro
a serem colocadas sobre os pilares que acompanham os diversos lances da escadaria -
expostas, no final da década de 1920, contento as águas coletadas in loco dos grandes
rios do Brasil, especialmente aqueles ligados as Monções.
Muitos anos antes das comemorações do primeiro Centenário, em 1890, a
Comissão de Construção do Monumento do Ipiranga já havia solicitado a Rodolfo
Bernardelli uma escultura de D. Pedro I, no entanto, ela foi entregue somente em 1923,
sendo inaugurada no 07 de setembro do mesmo ano. Para as comemorações de 1922,
Taunay recorreu ao busto de bronze de D. Pedro I, feito por Marc Ferrez (1788-1850)
logo após o 07 de setembro de 1822, emprestada temporariamente ao Museu Paulista
pela Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.
O projeto da Sanca de Rodolfo Amoedo, por sua vez, previa 18 retratos dos
"próceres" da Independência e, nos quatros cantos, medalhões em baixo relevo com
molduras de ramos de louro e carvalho, tendo no centro quatro datas significativas para
os movimentos de libertação do Brasil: 1720 (Filipe dos Santos); 1789 (Inconfidência
Mineira); 1817 (Revolução Pernambucana) e 1822 (Independência).
Os retratos e as esculturas dos medalhões foram encomendados a Oscar Pereira
da Silva e Domenico Failutti, que se comprometeram a entregá-los com molduras antes
das festas do centenário. No entanto, no ano seguinte, em 1923, foram entregues
somente os retratos de Lino Coutinho, Cipriano Barata, Hipólito da Costa, Frei
Sampaio, Vergueiro, Curado, Labatut, Sóror Angélica, e Lima e Silva. A outra metade
das encomendas foi entregue posteriormente, os retratos de Pirajá, Cochrane, Paulo e
Souza, Rebouças, Maricá, Barbacena, Valença, Queluz e Cairu.
Taunay pretendia ainda decorar o saguão com mais duas estátuas, de João
Ramalho e Tibiriça, "patriarcas europeu e americano da gente de São Paulo"
(TAUNAY, 1926, p.60). Como a verba concedida foi insuficiente, ele encomendou em
seu lugar quatro grandes painéis, de Wasth Rodrigues, retratando em 3/4 D. João III,
Martim Afonso de Souza, João Ramalho e Tibiriça. Segundo Taunay, tais retratos, "dos
vultos essenciais do quinhentismo", relembram:
"o Rei povoador e seu grande delegado americano na
colonização inicial, os patriarcas europeu e americano dos mais
velhos troncos vicentinos. Nos dois últimos painéis figura
simbolicamente o mesmo pequenino mamaluco, ao lado de seu
pai luso e do seu avô brasílico" (TAUNAY, 1937, p.57)
"João Ramalho e Filho" e "Tibiriça e Neto", retratados de corpo inteiro, são
posteriores a 1922. O que indica, mais um vez, vale ressaltar, que mesmo após as
comemorações do centenário, Taunay completou a decoração dos espaços monumentais
do museu, isto é, o peristilo e a escadaria, com diferentes aspectos da história
bandeirante.
Taunay propôs, por exemplo, a colocação de sete painéis com temas relativos a
cenas de bandeirismo, que, reformulados, passaram a representar os ciclos econômicos:
"Posse da Amazônia", de Joaquim Fernandes Machado, "Ciclo da Caça ao Índio", de
Henrique Bernadelli, "Creadores de Gado", de João Batista da Costa, e "Ciclo do Ouro",
de Rodolfo Amoedo, todos de 1924. Para um episódio de expulsão dos Holandeses, "A
retirada do cabo de São Roque" (1927), também de Bernadelli. Já para os dois atos
administrativos referentes a mineração: "Extração do Ouro, 1700" e 'Provedor de Minas,
1700", ambos de Joaquim da Rocha Ferreira, acrescentados ao acervo do museu
somente na década de 1960.
Paulo Garcez ressalta que tanto Henrique Bernardelli quanto os anteriormente
mencionados Nicolla Rollo, Van Emelen e Luigi Brizollara, são autores de pinturas e
esculturas do gênero histórico em que a pose monárquica - característica dos reis
franceses da dinastia Bourbon, inaugurada por Hyacinthe Rigaud (1659-1743) nos
célebres retratos que pintava de Luís XV- é utilizada com tal frequência que acaba
consagrando-se como "uma das mais importantes formas de representação e
dignificação dos antigos sertanistas paulistas" (2007, p.80), principalmente durante a
gestão de Taunay no Museu Paulista.
Em 1926, Taunay completaria a decoração do museu preenchendo os pequenos
painéis da caixa da escadaria com nove brasões das mais antigas cidades do estado -São
Paulo, Santos, São Vicente, Itu, Sorocaba, Taubaté, Parnaíba, Porto Feliz e Itanhaém-
símbolos da tradição bandeirante, encomendados a Wasth Rodrigues, graças à doação
do Automóvel Clube São Paulo. Temos, então, mais uma justificativa para a divisa do
brasão da cidade dos bandeirantes - “Non ducor, duco [não sou conduzido, conduzo]” -
criado em 1916 pelo mesmo Wasth Rodrigues, em parceria com Guilherme de Almeida
(1890-1969), por meio de concurso público durante o governo municipal de
Washington Luís (1869-1957).
Cabe lembrar que Washington Luís assumiu o governo do estado de São Paulo
justamente no período em que a decoração histórica do Museu Paulista estava sendo
amplamente realizada, contribuindo com verbas extraordinárias, doações feitas às
coleções históricas e, também, opinando sobre os elementos que deveriam pertencer ao
acervo do museu. A leitura dos relatórios e das correspondências do Museu Paulista
revelam, inclusive, que é justamente em 1920, quando Washington Luís toma posse do
governo do estado, que Taunay de fato encontra espaço e financiamento para organizar
a Seção Histórica da instituição, algo que pretendia realizar desde que assumiu sua
direção, em 1917.
Por fim, essa epopeia bandeirante ganha sentido pleno com a inauguração da
Sala das Monções, em 1929, representando o último ciclo bandeirante. Ali, o rio Tietê,
visto como o principal caminho das entradas para o sertão, sintetiza a grandeza de todos
os feitos bandeirantes do passado e do tempo presente. O caráter grandioso, voraz e
desbravador dos paulistas apareceria, assim, diretamente relacionado à alma desse rio,
cujo leito acidentado só poderia ter sido cruzado e transposto por uma "raça de
gigantes".
Na sala das monções Taunay realoca a tela de grandes dimensões "A Partida da
Monção", de Almeida Júnior (1850-1899), que pertencera anteriormente ao Museu
Paulista, quando encomendada pelo governo do estado ainda em 1897, e posteriormente
transferida para a Pinacoteca. Para valorizar o tema da tela central, Taunay encomenda a
Oscar Pereira da Silva mais cinco telas, que deveriam ser pintadas a partir de quatro
desenhos de Hercules Florence e um de Adriano Taunay, registrados por esses dois
artistas quando participaram da expedição do barão Langsdorff, no início do século
XIX. São elas: "Cargas dos Canoões", "Benção dos Canoões em Porto Feliz", "Pouso de
uma monção no sertão", "Encontro de duas monções" e "Partida de Porto Feliz".
Considerações finais:
A presença bandeirante no Museu Paulista, com a intervenção de Afonso
Taunay nos primeiros anos de sua gestão, se impôs desde o peristilo do museu, com as
duas esculturas de Brizzolara, criando o enredo de uma história contada ao longo de
todos espaços museográficos. Ao arregimentar diversos elementos do passado paulista,
Taunay lhes concede um espaço próprio e lhes dá um significado único:
"São Paulo, sintetizado no Monumento do Ipiranga, era solo da
pátria brasileira, e o paulista, o responsável pelo
transbordamento do território nacional por todos os pontos do
mapa e, ao mesmo tempo, o elemento unificador desses pontos
dispersos" (BREFE, 2003, p.133)
A invenção de uma tradição15
aparece, portanto, como uma solução para uma
cidade a procura de uma identidade, já que, como aponta Nicolau Sevcenko, ao
reconstruir a sociedade e a cultura paulista nos anos 1920:
"São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos e
nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem
americana, nem europeia, nem nativa; nem industrial, apesar do
volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar
da importância crucial do café; não era tropical nem subtropical;
não era ainda moderna, mas já não tinha mais passado" (1992,
p.31)
Muitos estudiosos enxergam nesse (re) aparecimento da figura do bandeirante
dentro do contexto específico da então nova República uma tentativa de construção de
um discurso épico regional que possibilitasse a integração dos segmentos emergentes
em uma mesma identidade histórica16
. Tal recriação do passado bandeirista permite
justamente:
“salta[r] por sobre o passado mais recente, feio e conflitivo, de
uma cidade na qual às mazelas da escravidão vieram somar-se
os estigmas de uma imigração tumultuária, (...) [para] reatar o
fio da continuidade com um passado longínquo e quase mítico”
(SALIBA, 2004, p.570).
A epopeia bandeirante é assim (re) construída em uma tentativa de se estabelecer
uma imagem de consenso numa cidade marcada pela impossibilidade de se definir. No
entanto, recriada na Primeira República como um possível fator de coesão social, a
figura do bandeirante opera também como uma forma de separar uma coletividade
antiga de outra de origem recente, valorizando a primeira em detrimento da segunda.
Bandeirantes são somente “aqueles cujos avós, bisavós, tataravós e demais antecessores
tinham trabalhado e pelejado no mesmo solo que agora abrigava a todos” (QUEIROZ,
1992, p.84).
Há, aqui, a invenção simultânea de um “outro”. Interessante observar que esse
"outro" é tanto interno quanto externo: separa os supostos paulistas de quatrocentos
anos - os quatrocentões -, dos migrantes e imigrantes, assim como dos "não paulistas",
15
A expressão “invenção das tradições” tem sido amplamente utilizada após a publicação do livro
homônimo de Hobsbawm e Ranger (1987). No entanto, ao contrário do que os autores afirmam - ao
diferenciar as "tradições genuínas" das "tradições realmente inventadas" -, pode-se dizer que toda tradição
é inventada. 16
Cf. CAPELATO (1981); LOVE (1982); ABUD (1985); PRADO, M. L. (1986); GLEIZER (2007);
entre outros.
nas disputas pela hegemonia do governo federativo e, mais marcadamente, nas disputas
entre São Paulo e a Capital Federal, entre o regional e o nacional. A narrativa mítica
aqui garante justamente que tais oposições não serão esquecidas: “Como no séc. XVIII,
uma elite autóctone procurava manter sua posição hegemônica, fechando sua
coletividade contra possíveis invasões que a desfigurassem" (QUEIROZ, 1992, p.83).
As esculturas, e a farta iconografia paulista e bandeirante, encomendadas por
ocasião das comemorações do Centenário, parecem revelar imagens que, a todo
momento, ao longo da Primeira República (e para além dela17
), se afirmam, se cruzam e
se sobrepõem, enquanto outras vão surgindo, revelando as ambivalências de um período
de tensões marcado por mudanças aceleradas.
17
É sabido que tal imaginário reaparece, até os dias de hoje, nas mais diferentes ocasiões, mesmo que de
modo difuso. Seja no nome de importantes vias como a Rodovia Raposo Tavares, a Avenida Bandeirantes
ou a Rodovia Fernão Dias; nos diversos monumentos; ou nos discursos sobre a integração nacional como
uma das condições de modernização do país, vide a “marcha para Oeste” do Estado Novo, o
desenvolvimentismo materializado na Brasília de Juscelino Kubitschek, a "Operação Rondon" e a rodovia
Transamazônica, obra maior dos planos geopolíticos do regime militar, dentre vários exemplos.
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