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17 K LÉOS N. 19: 17-48, 2015 AS ARTES DO DISCURSO E O “NATURALISMO” CÍNICO: TEMA E VARIAÇÕES DE UMA ANEDOTA FILOSÓFICA OLIMAR FLORES-JÚNIOR Faculdade de Letras Universidade Federal de Minas Gerais I O ponto de partida destas breves reflexões é a constatação de que uma parte importante do corpus cínico, isto é o conjunto dos textos que fixaram e transmitiram os princípios do Cinismo antigo, se constituiu essencialmente num vasto e muito variado repertório de anedotas. Este anedotário, somado a uma outra parcela menor e igualmente controvertida de fragmentos de obras perdidas ou de referências e citações diversas, nos permite afirmar que, do ponto de vista de sua forma literária, o Cinismo é de fato uma filosofia menor. Pesa aí, sem dúvida, a opinião de alguns autores – antigos e modernos – que, estendendo o diminuto da forma à mensa- gem de seu conteúdo, colocam sob suspeita o real estatuto filosófico do Cinismo. Seja como for, parece certo que o terreno de fixação originário do pensamento cínico da Antiguidade identifica-se, de um modo geral, com o que poderíamos chamar de formas simples ou formas breves. Deixan- do de lado os textos propriamente fragmentários ou doxográficos, cuja brevidade é circunstancial e aparece subordinada a uma contextualização mais ou menos evidente, para nos concentrarmos na anedota filosófica, especificamente na anedota cínica, uma ou duas observações preliminares se fazem necessárias. Em primeiro lugar, no que diz respeito à estrita terminologia, referir-se à literatura cínica como uma literatura de caráter preponderan- temente anedótico seria já uma inflexão moderna do fenômeno antigo: se tomarmos como exemplo a principal fonte antiga sobre o Cinismo, o lon- go e embaraçado compêndio de Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos fi- lósofos ilustres, cuja redação final pode ser situada na primeira metade do III século d. C., constatamos que os feitos e ditos dos filósofos cínicos jamais

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    AS ARTES DO DISCURSO E O NATURALISMO CNICO: TEMA E VARIAES DE UMA ANEDOTA FILOSFICA

    olimar Flores-Jnior

    Faculdade de LetrasUniversidade Federal de Minas Gerais

    IO ponto de partida destas breves reflexes a constatao de

    que uma parte importante do corpus cnico, isto o conjunto dos textos que fixaram e transmitiram os princpios do Cinismo antigo, se constituiu essencialmente num vasto e muito variado repertrio de anedotas. Este anedotrio, somado a uma outra parcela menor e igualmente controvertida de fragmentos de obras perdidas ou de referncias e citaes diversas, nos permite afirmar que, do ponto de vista de sua forma literria, o Cinismo de fato uma filosofia menor. Pesa a, sem dvida, a opinio de alguns autores antigos e modernos que, estendendo o diminuto da forma mensa-gem de seu contedo, colocam sob suspeita o real estatuto filosfico do Cinismo. Seja como for, parece certo que o terreno de fixao originrio do pensamento cnico da Antiguidade identifica-se, de um modo geral, com o que poderamos chamar de formas simples ou formas breves. Deixan-do de lado os textos propriamente fragmentrios ou doxogrficos, cuja brevidade circunstancial e aparece subordinada a uma contextualizao mais ou menos evidente, para nos concentrarmos na anedota filosfica, especificamente na anedota cnica, uma ou duas observaes preliminares se fazem necessrias.

    Em primeiro lugar, no que diz respeito estrita terminologia, referir-se literatura cnica como uma literatura de carter preponderan-temente anedtico seria j uma inflexo moderna do fenmeno antigo: se tomarmos como exemplo a principal fonte antiga sobre o Cinismo, o lon-go e embaraado compndio de Digenes Larcio, Vidas e doutrinas dos fi-lsofos ilustres, cuja redao final pode ser situada na primeira metade do III sculo d. C., constatamos que os feitos e ditos dos filsofos cnicos jamais

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    so nomeados como anedotas. A rigor, nas formas antigas num certo sentido tambm menores do apotegma, do apomnemneuma, e sobretudo da chria, que a essncia do pensamento cnico parece ter preferencialmente se deixado capturar1. 1

    O termo apotegma, em grego !"#$%&'(), traduz-se por sentena, mxima ou preceito; no plural, *+ !",$%-'()*), os preceitos, aparece no ttulo de duas obras atribudas a Plutarco (Apotegmas lacnicos e Apotegmas de reis e imperadores). O !",(.&(#.&/(), substantivo derivado do verbo !",(.0(,.-/1, contar de memria ou trazer lembrana (a presena de uma pessoa, por exemplo), indica a palavra ou ao memorvel; tambm no plural, 2",(.0(,.&3()*), o ttulo da conhecida obra de Xenofonte sobre Scrates, traduzido normalmente como As memorveis de Scrates ou, com o calque latino, como Memorabilia. Enfim, ligado ao verbo 456,()7, cujo sentido engloba, entre outras nuances, as noes de se apropriar, usar ou se servir de alguma coisa, a chria, forma aportuguesada para o grego 45&8), designa, de um modo geral, aquilo de que se faz uso e, no contexto preciso da literatura, o uso que se faz de uma sentena ou uma sentena de que se pode tirar proveito numa situao determinada, donde posteriormente incorpora o sentido mais sinttico de frase ou gesto de efeito, tirada ou, se quisermos, sacada, muitas vezes emoldurada por um entrecho cmico narrado em prosa (a chria equivaleria assim, para utilizar expresses francesas, ao bon mot, palavra oportuna ou ao trait desprit, trao de esprito). A exemplo do que ocorre com o apotegma e com o apomnemneuma, tambm o termo chria, igualmente no plural, foi utilizado como ttulo de certas obras, indicando portanto a exemplo do que ocorre com o termo politea, isto , repblica menos uma obra particular do que um tipo ou gnero de discurso. Ns encontramos, por exemplo, o registro de trs livros de chrias nos catlogos das obras de Aristipo (D. L., II, 84-85); num outro passo, Digenes Larcio (D. L., IV, 40) exemplifica o carter utilitrio da chria: ele conta que Arcesilau, um dos sucessores de Plato na Academia, que ao que parece era um bon vivant, amante contumaz dos prazeres da cama e da boa mesa, tinha o hbito de citar as chrias de Aristipo que , como se sabe, um dos mais reconhecidos expoentes do hedonismo grego, para se defender da censura que lhe faziam por circular abertamente na companhia de duas prostitutas famosas na cidade de lis, chamadas Teodota e Fila. Registrem-se ainda as chrias de Hecaton de Rodes, evocadas cinco vezes por Digenes Larcio, trs no livro VI (dedicado ao cinismo) e uma no livro VII (sobre os estoicos). Enfim, temos a presena de chrias no catlogo de obras de Demtrio de Falero (um livro), dos cnicos Digenes e Metrocles e dos estoicos Zeno de Ctio (quatro livros) e riston de Quios (onze livros). O cnico Metrocles geralmente considerado como o primeiro divulgador do gnero e, em certo sentido, o seu inaugurador. Por outro lado, a atribuio de um livro de chrias a Digenes de Snope levanta um problema relativo autoria desse tipo de texto: possvel que Digenes no fosse o autor das chrias que lhe so atribudas, mas sim o seu personagem. H, portanto, uma confuso entre o autor das chrias ou quem as recolheu, j que se trata a rigor de uma coleo de mximas e o sujeito que as pronunciou; tal confuso seria particularmente compreensvel quando no contexto de uma relao discipular: parece razovel supor que um aluno tivesse todo o interesse em recolher, num volume funcionando como um manual de virtude prtica, aquilo que o mestre tivesse feito ou dito. Mas o mais importante aqui e o que justifica a reviso desse repertrio de ocorrncias confirmar que essas formas literrias breves, enquanto veculo do pensamento filosfico, esto historicamente vinculadas

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    A bem da verdade, o termo grego ankdotos, de onde provm o nosso anedota, ocorre uma nica vez ao longo dos dez livros que compem a obra laerciana, numa passagem que nada tem a ver com a ideia de forma literria ou com o sentido que a palavra posteriormente adquire, mas que ainda assim aponta para a maneira pela qual a tradio cnica se constituiu. Nessa nica ocorrncia do termo2, o bigrafo evoca as prescries testamentrias de Lcon, um dos sucessores de Aristteles no Liceu, que determinava que seus livros inditos fossem publicados pos-tumamente, sob os cuidados de um certo Calino. Aqui, a expresso os livros inditos traduz a frmula grega t ankdota.

    Em suma, a anedota uma categoria que abrange outras formas menores cujo ineditismo entre aspas porque a sua prpria constituio e divulgao so j as marcas de sua publicidade corresponde ao que, a rigor, no foi composto de forma organizada (num livro, por exemplo), mas que foi recolhido e recortado de uma biografia. A anedota seria assim

    tradio cnico-estoica, colocando em evidncia um trao maior do socratismo do qual esta tradio faz parte: o pensamento de Scrates, que nada deixou escrito, permanece justamente no que outros disseram que ele fez e disse. Por fim, voltando ao problema especfico dessas formas literrias, pode-se constatar alguma flutuao ou convergncia na definio de cada um dos trs tipos, uma convergncia que a literatura antiga at certo ponto confirma, encampando a discusso no quadro maior dos estudos retricos. Assim, por exemplo, Hermgenes de Tarso (sc. II-III d. C.) nos seus Progymnsmata, III, 1-14 Rabe, define a chria como um apomnemneuma [isto : a memria] do discurso [lgos] ou da ao [prxis] de algum, para logo em seguida explicar que a principal diferena entre a chria e o apomnemneuma reside na brevidade e maior conciso da chria (cf. tambm LIO TEN. Progymnsmata, III). essa convergncia na definio das trs formas ( exceo talvez do apomnemneuma, em vista de sua maior extenso) que, de certa forma, nos leva a agrup-las no gnero mais abrangente da anedota, sobretudo se tomarmos o termo anedota em sua acepo moderna. Todavia, a, por assim dizer, histria da anedota nos permite melhor vislumbrar o papel desempenhado por estas formas breves a sua especificidade na constituio e transmisso do pensamento cnico. Sobre todo esse assunto, consultem-se KINDSTRAND, J. F. Diogenes Laertius and the Chreia tradition. Elenchos, Napoli, v. 7, p. 217-243, 1986. Volume intitulado Diogene Laerzio storico del pensiero antico; TROUILLET, F. Le sens du mot XREIA des origines son emploi rhtorique. Licorne, Poitiers, fasc. 3, p. 41-64, 1979; HOCK, R. F.; ONEIL, E. N. The Chreia in Ancient Rhetoric. Atlanta, GO: Society of Biblical Literature, 1986. t. 1: The progymnasmata; e ALEXANDRE JNIOR, M. Importncia da cria na cultura helenstica. Euphrosyne, Lisboa, v. 17, p. 31-62, 1989; especificamente, para o contexto da tradio cnica, veja-se GOULET-CAZ, M.-O. Le livre VI de Diogne Larce: analyse de sa structure et rflexions mthodologiques. In: HAASE, Wolfgang; TEMPORINI, Hildegard (Ed.). Aufstieg und Niedergang der rmischen Welt. Berlin: Walter de Gruyter, 1992. Part 2: Principate, v. 36.6. p. 3880-4048.

    2 D. L., V, 73.

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    o registro da ao e da palavra em ato, um registro que tende mxima conciso e que busca preservar o carter intempestivo e improvisado do episdio narrado.

    IIDe um ponto de vista etimolgico, o adjetivo ankdotos forma-se

    a partir do verbo ekdidnai, que significa dar ou entregar (para o exterior), tornar pblico, modificado pelo prefixo de negao an-; ankdotos se diz ento, em princpio, daquilo que no foi entregue: uma mulher anedota, por exemplo, a mulher celibatria, que no foi dada em casamento, que no foi entregue, como na expresso envelhecer em casa sem marido ( )3, que encontramos num orador do sc. IV a. C., Hiprides, numa obra intitulada A Licofrnio4; significa tambm no publicado, indito, como na passagem de Digenes Larcio citada acima, podendo se referir ainda s propriedades no divulgadas ou secre-tas de alguma droga, como em , poder secreto5. Por fim, uma consulta rpida a alguns dos principais dicionrios das lnguas modernas permite destacar alguns usos correntes e mais ou menos con-sensuais do termo anedota: particularidade histrica, um pequeno fato curioso cuja narrativa pode esclarecer a trama das coisas e a psicologia dos homens; o relato de um fato curioso ou pitoresco, um detalhe ou aspecto secundrio, sem poder de generalizao e sem um alcance maior (Le Robert; itlicos meus); ou ainda uma particularidade engraada de figura histrica ou lendria (Aurlio, Caldas Aulete, Houaiss). No conjunto, o que se coloca em evidn-cia na definio moderna de anedota a sua brevidade e o seu carter acessrio, ilustrativo e, frequentemente, jocoso.

    Nesse percurso, resumido muito rapidamente aqui, que leva o termo anedota de sua acepo original como no entregue, no dado publicao, indito at o seu sentido moderno, um nome deve ser es-pecialmente lembrado, o do historiador bizantino Procpio de Cesareia, que em meados do sc. VI comps uma obra cujo ttulo precisamente

    3 Na ausncia de outra indicao, as tradues das passagens em lngua estrangeira so de minha responsabilidade.

    4 HIPRIDES. A Licofrnio, 13 apud LSJ, s.v.5 PHILUMENUS MEDICUS. De Venenatis Animalibus, 10, 9. (sc. III d.C.).

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    Anedotas, ou, conforme sua traduo latina, Historia Arcana; em portugus ela conhecida com o ttulo de Histria secreta. Esta obra tem um percurso curioso, e h mesmo quem duvide de sua autenticidade6. Mencionada na Suda, ela permanece perdida at a primeira metade do sc. XVII, quando, em 1625, foi descoberta na Biblioteca do Vaticano por Nicolo Alamanni, que traduz em seguida o texto para o latim (da o ttulo Historia Arcana). Alguns anos depois, em 1685, o historiador francs Antoine Varillas pu-blica as suas Anedotas de Florena ou A histria secreta da casa dos Mdicis, que, ao que consta, traz a primeira ocorrncia em lngua moderna do termo ankdotos (em francs, anecdote). Varillas assume, logo no prefcio de sua obra, a influncia de Procpio:

    Se Procpio, que o nico autor do qual nos restam anedotas, tivesse deixado por es-crito as regras desse gnero de texto, eu no seria obrigado a fazer um prefcio, porque a autoridade desse excelente historiador, que a Imprensa Real acaba de nos dar to corretamente, seria suficiente para colocar-me ao abrigo de todo tipo de crtica, supondo que eu as tivesse observado com exatido7.

    Procpio aparece ento, por assim dizer, como o pai da anedota enquanto gnero literrio, sem portanto defini-lo explicitamente. Toda-via, a natureza de sua obra e, por consequncia, a do gnero anedtico, aparece com mais nitidez se abordada no conjunto de sua produo. Para o nosso modesto propsito aqui bastaria lembrar os dados mais imedia-tos do problema.

    Ocorre que Procpio, atuando como um historiador oficial do Imprio, havia publicado anteriormente duas outras obras, uma Histria das Guerras, em que narrou as campanhas de Belizrio, general do Impera-dor Justiniano I, e uma Sobre os edifcios, sobre os monumentos e benfeito-rias feitas no imprio pelo mesmo Justiniano. Estas duas obras so, como seria de se esperar, extremamente elogiosas e favorveis tanto a Justiniano

    6 Cf. PROCOPE DE CSARE. Histoire Secrte. Suivi de Anekdota par Ernest Renan; traduit et comment par P. Maraval; prface dA. Nadaud. Paris: Les Belles Lettres, 1990; VILLON, V. R. A histria em desconcerto: as Anekdota de Procpio de Cesareia e a Antiguidade Tardia. Rio de Janeiro: Dep. de Histria da Pontifcia Universidade Catlica, 2014 (tese).

    7 Apud VILLON, 2014.

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    quanto a Belizrio. Pouco tempo depois, ou talvez paralelamente redao dos Sobre os edifcios, mas em todo caso de modo oculto, ele escreve as tais Anedotas que, de certa forma, corrigem as obras anteriores, tal como expli-ca o prprio Procpio logo na abertura do texto:

    , . . . .

    A causa [de ter procedido assim] que no era possvel escrever sobre estas coisas da maneira conveniente enquanto as pessoas envolvidas estivessem vivas. Pois no seria possvel escapar quantidade de espies nem, uma vez descoberto, evitar uma morte cruel. Eu no podia confiar nem nos mais prximos dos meus familiares. Assim, eu fui forado a esconder as causas das muitas coisas ditas nos livros anteriores. Ser necess-rio ento indicar, neste meu livro de agora, as causas do que antes fora demonstrado e as coisas que permaneceram at aqui silenciadas8.

    No intuito de indicar as causas do que narrara nas primeiras obras, Procpio acaba por compor um libelo de rara violncia contra aque-les mesmos que ele antes elogiara, colocando a nu o vcio, a perversidade e a corrupo do Imperador Justiniano e de Belizrio, bem como de suas respectivas esposas, Teodora e Antonina. Em suma, Procpio revela nesta obra aquilo que, por fora das circunstncias, teve que esconder nas outras.

    Se, de um lado, o ttulo desta obra parece se justificar, como ex-plica o autor, pela necessidade bvia de sua redao em segredo e de sua no publicao, o que acabou levando ao seu ostracismo durante tantos sculos, de outro, a obra e seu ttulo levantam algumas questes a respei-to dos elementos que em princpio garantem a especificidade da anedota como forma literria. Em primeiro lugar, a ideia de uma forma breve ou simples s encontra confirmao se atentarmos para o plural do ttulo: o 8 PROCOPIO. Historia Arcana, I, 2-3. WIRTH, G. (Ed.). Procopii Caesariensis opera omnia.

    Leipizig: Teubner, 1963. v. 3.

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    texto de Procpio seria antes uma coleo de anedotas, sugerindo assim que uma anedota pode ser expandida e agenciada com outras na composio de um tecido maior. Depois, o seu carter ilustrativo parece comprometido, e mesmo o seu valor acessrio ganha um contorno particular: as anedotas procopianas constituem na verdade uma histria paralela ou, sob um certo aspecto, uma histria invertida, que, retomando os elementos das obras anteriores, conservam a sua autonomia narrativa. Enfim, cabe ressal-tar a finalidade expressa de uma anedota, conforme lemos nas explicaes de Procpio: indicar, sinalizar ou dar a entender (cf. o uso do verbo semano) as causas ou a razo profunda daquilo que aparece na superfcie dos gestos. Nesse ponto, o juzo de Procpio coaduna-se perfeitamente com uma das definies modernas de anedota, mencionadas h pouco: fato cuja narra-tiva pode esclarecer a trama das coisas e a psicologia dos homens. Dessa perspectiva, entendendo que uma anedota se limita a indicar ou sinalizar os fatos particulares, ela constituiria, transposta para o terreno filosfico, an-tes um gnero indutivo, e no dedutivo ou especulativo (muito embora os cnicos, em especial Digenes, tenham mais de uma vez recorrido ao silo-gismo). Mas h mais: se no caso de Procpio a composio de um discurso anedtico (no um discurso cifrado [num sentido straussiano], mas um discurso que deve esperar o momento oportuno para sua publicao vale dizer: esperar que morram as pessoas envolvidas) se explica por uma ne-cessidade prtica evidente (isto : que o autor no venha a sofrer retaliaes ou mesmo que no venha a ser morto em razo daquilo que ele divulga), por outro lado, da perspectiva da fundao do novo gnero, elas parecem antecipar a sugesto de que uma anedota depende, em alguma medida, de um descolamento entre o episdio que ela narra, e do qual ela apresenta uma verso possvel (ou verossmil), e a realidade ou a existncia ftica da ou das personagens que ela envolve: uma anedota, sem necessariamente se opor ou abandonar a histria, promove uma certa desagregao dos fatos histricos em nome de uma verdade de outra ordem. No h como no ver aqui, posto que se trata de examinar as qualidades da anedota fi-losfica, o eco de uma abordagem aristotlica do confronto entre poesia e histria. O gnero anedtico parece estar em algum lugar entre o gnero histria e o gnero poesia.

    Esse (longo) prembulo me parece til exatamente porque a

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    histria dos usos do termo anedota (que evoquei aqui de forma muito resumida), confrontados com sua acepo moderna (que alis transforma um adjetivo em substantivo), pode nos ajudar a compreender a especifici-dade da literatura cnica, e como, nesse caso mais do que em outros, forma e contedo isto : o registro verbal de uma ao e a mensagem filosfica que ela contm se imbricam e se justificam mutuamente. Todavia, o que se percebe que o Cinismo, preservado essencialmente numa literatura anedtica, subverte a noo mesma de anedota, emprestando a ela uma dimenso absolutamente inovadora, a tal ponto que ns podemos legiti-mamente duvidar da pertinncia desse termo para caracterizar uma parte importante do corpus cnico. Essa dificuldade fica mais clara se compara-mos a especificidade da anedota sobre os filsofos cnicos com as anedo-tas sobre outros filsofos (por exemplo, no contexto de uma obra como a de Digenes Larcio): o que se percebe que as anedotas sobre os outros filsofos podem ser, de alguma forma, controladas por suas respectivas obras (conservadas integralmente ou no), mas no caso dos cnicos uma tal possibilidade fica em princpio excluda. Assim, apenas para evocar um caso mais extremo, ns poderamos dizer que as anedotas que envolvem Plato apontam para a obra platnica, enquanto que as anedotas sobre Digenes s apontam para si mesmas. No h portanto como se falar em carter assessrio ou ilustrativo de uma anedota filosfica quando ela o nico material disponvel sobre a filosofia que ela supostamente ilustraria.

    IIIDuas questes complementares uma mais geral e outra mais

    especfica devem nortear uma investigao sobre a anedota cnica, a sa-ber: qual o possvel valor filosfico de uma anedota?9 E: por que a literatu-ra cnica teve nas formas anedticas o seu terreno preferencial de fixao? De certa forma, ao respondermos a segunda questo estaremos respon-dendo tambm a primeira. Uma hiptese deve de sada ser descartada, a que atribui aos percalos da transmisso material dos textos a causa do confinamento do Cinismo numa literatura dita menor no se trata, nesse

    9 Para uma abordagem geral do problema, consulte-se NIEHUES-PRBSTING, H. Anekdote als philosophiegeschichliches Medium. Nietzschen-Studien, Berlin, v. 12, p. 255-286, 1983.

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    caso, de sorte ou azar. No coube pelo menos no inteiramente ao capricho do tempo ou escolha dos copistas o desaparecimento dos tex-tos cnicos autnticos; a constituio de um corpus anedotrio, como forma de preservao do Cinismo, parece antes dever-se deciso, ela mesma filosfica, dos prprios cnicos. Para usar uma expresso prpria dos estu-dos de religio, ns poderamos dizer que o cinismo no uma filosofia do livro. Ainda que verossimilmente todos os seus representantes te-nham desenvolvido uma atividade literria, o Cinismo antes de tudo um ato de afirmao da vontade que voluntariamente renunciou especulao terica e aos sistemas de pensamento. Sua ptria a vida imediata e sens-vel e sua essncia o gesto, intempestivo e improvisado, forjado no calor do embate direto com as situaes concretas da existncia, um gesto que representa a manifestao visvel de uma razo soberana, mas que se enun-cia segundo outros cdigos e no pela evoluo de argumentos abstratos. bem conhecido o gesto de Digenes narrado em uma anedota que, diante de algum que tentava convenc-lo por meio de um silogismo so-fstico que ele tinha chifres, apenas passou a mo pela cabea e concluiu: quanto a mim, eu no os percebo10. Em outra ocasio, guiado pelo mes-mo esprito, ao fim de uma exposio de Plato sobre o mundo inteligvel, em que o filsofo exemplificava o seu raciocnio com a ideia de mesa, ou seja a mesidade, Digenes pondera: Plato, a mesa eu posso ver, a mesidade no, ao que Plato teria respondido: normal! Voc tem olhos para ver a mesa, mas no tem inteligncia para contemplar [teorizar, ] sobre a mesidade11. Farpas parte, o que se v aqui o con-fronto de duas inteligncias diferentemente orientadas e que fundam, ao menos desse ponto de vista, duas maneiras opostas de filosofar. Se para Plato a busca da verdade depende de um longo processo dialtico rumi-nado pelas faculdades do esprito na forma de um dilogo bem codificado, com regras bem estabelecidas, e que aponta para algo fora do mundo sen-svel, para Digenes a filosofia um embate que se enfrenta com o corpo, cuja pedagogia depende inteiramente do discurso parresistico no qual o sujeito se expe naquilo que expe, ao mesmo tempo em que expe, em

    10 Cf. D. L., VI, 38.11 Cf. D. L., VI, 53.

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    praa pblica, a inrcia dos juzos herdados. A filosofia cnica , por opo e mtodo, uma filosofia escandalosa e incmoda. Compreende-se bem ento o juzo de Digenes sobre Plato, talvez em resposta insinuao de sua pouca inteligncia, que encontramos em Temstio: de que nos serve um homem que, filosofando j h tanto tempo, nunca incomodou ningum?12. V-se portanto que, at certo ponto, a prpria concepo da filosofia determina os meios de sua transmisso. Assim, ns podemos di-zer que, tanto do ponto de vista filosfico quanto do ponto de vista filol-gico (mais, talvez, do ponto de vista filolgico), Digenes para ns tudo o que Plato no ; nesse sentido e apenas para concluir a comparao entre os dois filsofos , no h que se deplorar o fato de que, enquanto o pensamento de Plato se cristalizou em uma das tradies textuais mais bem estabelecidas do ocidente, aquela que preservou o de Digenes se constri ou se reconstri no quebra-cabeas formado pelas anedotas, que so como cacos cados de uma biografia no autorizada. Mas talvez por isso, Digenes parea render uma homenagem maior compreenso que a prpria Antiguidade tinha da histria da filosofia, j que ela e o exemplo aqui obviamente a obra de Digenes Larcio reconheceu a importncia de revelar o ponto para o qual convergem o pensamento e a vida. Nesse sentido, vale lembrar o que Plutarco escreve e que tem valor de uma definio sobre o gnero bos, isto , vida, termo que, convm lembrar, empresta o ttulo tambm obra de Digenes Larcio, e que apenas de modo aproximativo poderia ser assimilado biografia moderna, assim como a historiografia filosfica antiga apenas de modo aproximati-vo pode ser assimilado historiografia filosfica moderna:

    , , , . , , , , .

    12 TEMSTIO. Da alma apud ESTOBEU, III, 13, 68 (SSR V B 61).

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    No escrevemos histrias, mas vidas: a demonstrao da virtude ou do vcio no est toda nas aes mais grandiosas, mas, muitas vezes, um pormenor, uma palavra ou al-guma brincadeira fizeram brilhar um carter melhor do que os combates com mirades de mortos, as maiores expedies e os cercos das cidades. Como os pintores reproduzem a semelhana [de suas imagens] a partir do rosto e da aparncia do olhar, nos quais cintila o carter, se preocupando menos com as partes restantes, assim tambm nos seja dado penetrar antes nos vestgios da alma e atravs deles compor o retrato de cada vida, deixando a outros a grandeza e as guerras13.

    IVH uma passagem em Digenes Larcio justamente uma ane-

    dota que ilustra bastante bem as razes que fizeram o Cinismo se fixar neste conjunto heterclito de historietas de que hoje dispomos. Trata-se da narrativa de um breve dilogo entre Digenes e um de seus discpulos, Hegsias, que, sem dvida em razo do fervor com que seguia o mestre, recebera o carinhoso apelido de klois, ou seja, coleira de cachorro14:

    , , , , , , .

    A Hegsias, que lhe pedia um de seus livros, Digenes disse: s um tolo, Hegsias; os figos, tu no escolhes os pintados, mas os verdadeiros, mas desdenhando a verdadeira ascese, tu te lanas para a [ascese] escrita 15.

    Esta rplica de Digenes a Hegsias, por sua meridiana clareza, poderia dispensar qualquer comentrio, mas destaquemos alguns de seus elementos. Em primeiro lugar, devemos observar que se Hegsias pede emprestado os livros de Digenes porque ou bem Digenes havia escrito algum ou bem Digenes tinha alguns em sua poder. No fica claro do que exatamente se trata, mas fica evidente que o cnico no era inteiramente refratrio escritura. Mas h a uma hierarquia nos processos de aquisio

    13 PLUTARCO. Vida de Alexandre, 1, 2-3.14 Cf. D. L., VI, 84.15 D. L., VI, 48.

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    da sabedoria, e o livro no ocupa a parte mais alta; se no h propriamente uma recusa da escritura, h sim uma crtica a ela: os livros que sejam escritos ou lidos no so inteis, mas jamais podero substituir o gesto que atualiza a virtude e a torna efetiva. claro que esta crtica escrita, que soa em princpio banal, no nova na literatura antiga.

    Numa pgina clebre do Fedro16, Plato pe na boca de Scrates o mito de Teuth, o deus que descobriu, entre outras cincias, a escrita que, em seguida, ele quis ensinar aos egpcios. Scrates ento se apropria da opinio de Thamous, o rei do Egito, a quem Teuth prope sua novidade, mas que a recusa julgando-a intil: a escrita a arte que pinta (cf. o verbo , ao mesmo tempo pintar e escrever) sobre o papel (ou sobre um papiro) o que deveria estar inscrito na alma, e mesmo enquanto ins-trumento para ajudar a memria, ela, a escrita, um poder que o con-trrio daquele que ela possui17, pois ela bloqueia no homem o caminho da reminiscncia que conduz o que se aprende em direo alma. , no geral, o mesmo raciocnio que est por trs da reprimenda que Antstenes (o filsofo socrtico, professor de Digenes, mas no um cnico de pleno direito, segundo alguns18) faz a um de seus alunos que reclamava por ha-ver perdido as notas do seu curso: voc deveria t-las inscrito [cf. o verbo ] na alma ( ), e no em folhas de papel19.

    A lio que Digenes d a Hegsias parece indicar uma mudana de perspectiva na abordagem socrtica desse tema, sutil, sem dvida, mas importante: de uma certa maneira, no se trata mais do lugar para onde vai a virtude e o conhecimento, mas do lugar de onde eles provm. O

    16 Cf. PLATO. Fedro, 274b-275b.17 PLATO. Fedro, 275a.18 Sobre o lugar de Antstenes no movimento cnico e sobre sua eventual relao

    com Digenes, vejam-se DUDLEY, D. R. A history of Cynicism: From Diogenes to the 6th century A.D. Chicago: Ares Publishers, 1980 (1a ed. 1937), sobretudo o primeiro captulo, Antisthenes. No direct connexion with Cynics. His ethic, p. 1-16; GIANNANTONNI, G. SSR, v. 4, p. 223-233; GOULET-CAZ, M.-O. Who was the first Dog? In: BRANHAM, R. Bracht; GOULET-CAZ, M.-O. (Ed.). The Cynics: The Cynic movement in Antiquity and its legacy. Berkeley: University of California Press, 1996. p. 414-415; GONZLEZ, P. P. Fuentes. En defensa del encuentro entre dos perros, Antstenes y Digenes: historia de una tensa amistad. Estudios gregos y indoeuropeus, Madrid, v. 23, p. 225-267, 2013.

    19 Cf. D. L., VI, 5.

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    problema passa a ser ento a origem da virtude e o modo como ela se constitui no homem. Para Scrates (o de Plato) e para Antstenes, tudo o que matria de conhecimento deve ser inscrito na alma; mas para Dige-nes, isso parece bvio: o sujeito que detm um saber qualquer, deve t-lo necessariamente na sua alma, pois t-lo alhures o mesmo que no o ter; e dado que o cnico no separa a alma do corpo, ter uma virtude inscri-ta na alma significa realiz-la com o corpo, significa coloc-la em prtica: ter um conjunto de preceitos morais escritos sobre uma folha ou t-los na memria, e ainda ser capaz de recit-los em voz alta (para ensinar a al-gum), sem os colocar em prtica no vale coisa alguma; seria mesmo uma impostura. Essa epistemologia calcada inteiramente na tica est alis na base da crtica que Digenes lana a Antstenes quando ele o compara a uma trombeta: ele fala alto, mas no escuta o que diz20. Em suma, para o cnico, o fato de que a sabedoria deva de qualquer modo estar gravada na alma uma evidncia. Resta saber onde encontr-la e como busc-la.

    Na sua rplica a Hegsias, Digenes d explicitamente a resposta: praticando a verdadeira ascese ( ), que aparece ento como o objeto de uma escolha necessria. O tema da ascese, convertida no objeto de escolha do filsofo e no alvo de um movimento, central no Cinismo, mas muito complexo pra ser tratado aqui21. Eu apenas indicaria esquema-ticamente algumas de suas caractersticas principais: (1) diferena da ascese tradicional, militar ou esportiva; (2) ela tambm fsica, mas a ideia de uma dupla ascese sujeita a cauo: trata-se antes de uma ascese corporal com finalidade moral, para que o corpo no seja um entrave para a deciso mo-ral da pessoa; (3) o seu carter preparatrio adquire um contorno particular, uma vez que o cnico recusa, de um modo geral, o esforo de antecipao do futuro; e, finalmente, (4) ela um exerccio vital, cotidiano: no dilogo entre Digenes e Hegsias a imagem dos figos na composio da metfora no gratuita. Nesse sentido, considerando-se principalmente este ltimo aspecto, ns poderamos dizer que, entre os cnicos, a ascese, convertida no objeto de escolha do filsofo (cf. o verbo ) e no alvo necessrio do seu movimento (cf. o verbo ) se confunde com a prpria a atividade

    20 DION CRISSTOMO. Or. VIII, Digenes ou Da virtude, 2 (SSR V B 584).21 Cf. GOULET-CAZ, M.-O. Lascse cynique. Paris: Vrin, 1986.

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    filosfica. o que parece confirmar uma das cartas do Pseudo-Crates:

    Filosofem []! Filosofem mais [] do que vocs respiram! Pois prefervel [] o viver bem [ ], que o que d a filosofia, ao [simplesmente] viver, que o que d a respirao [...]. preciso caminhar em dire-o felicidade [], mesmo que seja atravs do fogo22.

    Dessa perspectiva, a reprimenda de Digenes a Hegsias, que, de algum modo, vem projetada sobre o conselho que Crates d a seus discpulos, tem uma sequncia lgica: se a filosofia serve vida, ela deve tambm vir da vida, da vida verdadeira, real e sensvel e no de uma ideia de vida ou de uma teoria sobre a vida, como se ver na sequncia.

    VAssim, de um ponto de vista doutrinal, ns poderamos aceitar

    que a ascese, com os contornos que lhe confere o breve dilogo entre Di-genes e Hegsias, a substncia e o fundamento de todo o pensamento cnico, cuja pedagogia identifica-se com a proposio pelo exemplo de uma tica do mnimo: o filsofo cnico atualiza em sua prpria existn-cia, em seu prprio corpo, e na perspectiva de um hedonismo paradoxal, a reduo dos desejos ao necessrio e a do necessrio ao mnimo. Nesse contexto, a pobreza um valor que se busca, e no um destino que se deve superar pela resignao; ela na verdade o nico recurso que legitima a virtude e garante a felicidade. Assim, segundo Estobeu, Digenes consi-derava que a pobreza (pena) uma virtude que ensina espontaneamente (o termo grego autodidata) e um socorro para a filosofia, pois aquilo que os discursos tentam nos inculcar, ela nos ensina na prtica (en rgois)23. Cra-tes, o mais ilustre dos discpulos de Digenes, comps uma pardia muito engenhosa da clebre Elegia s Musas de Slon, na qual ele contesta o legis-lador ateniense sobre as vantagens de ser rico. Enquanto para Slon toda 22 PSEUDO-CRATES. Carta VI, aos mesmos [scil. a seus companheiros] (SSR V H 93). O

    uso desta literatura reconhecidamente pseudoepigrfica requer cautela. Mas ainda que se trate de um simples pastiche o que pode ser discutido (como se ver adiante) razovel pensar que ela tenha se esforado para reproduzir com a mxima fidelidade os princpios da escola, podendo, inclusive, ter como origem direta os textos autnticos (cf. GOULET-CAZ, 1986, p. 19, n. 8).

    23 Cf. ESTOBEU, IV, 32, 11 (SSR V B 223).

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    riqueza adquirida justamente um bem, para Crates todo acmulo um vcio, e acmulo tudo o que ultrapassa a rao cotidiana, suficiente para contentar um ventre frugal; enfim, o cnico compara o conforto dos ricos felicidade estpida e voraz da formiga e do besouro que, justamente, tm o hbito de amontoar a prpria comida24. Nesse sentido, ilustrativo a descrio que Aristfanes, na Paz, d do besouro (o mesmo kntharos men-cionado por Crates): bicho imundo, fedido e voraz, que rola entre suas patas uma bola de excremento, que ele faz progressivamente aumentar para depois devor-la com avidez25. O mesmo Crates, segundo Apuleio, abandonara toda a sua riqueza, como se fosse um fardo de excrementos [velut onus stercoris], que traz mais problemas do que vantagens26.

    Mas, como bem viu Foucault, o trao original da pobreza cnica, que a distingue da austeridade pregada por outras escolas, e que a coloca como o eixo de uma tica que tem em seu horizonte ideal a autossuficin-cia absoluta do sbio, que a pobreza cnica infinita. Enquanto em outras confisses (por exemplo no cristianismo) ela uma necessidade esttica a que se pode corresponder plenamente, entre os cnicos a pobreza no apenas real, mas ativa e infinita ou indefinida: no h um estado de pobre-za que se considere satisfatrio, porque nesse momento o sujeito poderia se considerar livre de tudo o que suprfluo; ao contrrio, o cnico busca sempre e indefinidamente novas formas de despojamento. Trata-se, en-fim, de uma pobreza inquieta, insatisfeita com ela mesma, uma pobreza progressiva ou, para guardar a fora do paradoxo cnico, uma riqueza re-gressiva, que tanto mais progride quanto menos se tem, at atingir o solo do absolutamente indispensvel. O cnico fabrica para si e para os outros o escndalo da pobreza mxima27.

    24 Cf. JULIANO. Or. VII, Contra o cnico Herclio 9, 213a-214a; Or. IX [VI], Contra os cnicos ignorantes 17, 199c-200b (SSR V H 84 = Crates Thebanus 359 Lloyd-Parsons & Jones = 10 Diels = 1Diehl). Tratei desta pardia de Crates em duas ocasies: FLORES-JNIOR, O. Crats, la fourmi et lescarbot: les cyniques et lexemple animal. Philosophie Antique, v. 5, p. 135-171, 2005; ______. Khortos gasteri ou le bonheur est dans le pr: thique et politique cyniques selon un pome de Crats de Thbes. Dialogue, v. 45, p. 647-677, 2006.

    25 Cf. ARISTFANES. Paz, 1-40.26 APULEIO. Florida, 14 (SSR V H 5).27 Cf. FOUCAULT, M. Le courage de la vrit: Le gouvernement de soi et des autres II. Cours

    au Collge de France. Paris: Gallimard, 2009 (sobretudo as p. 231-246). Abordei alguns

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    claro que essa tica do mnimo que tem na pobreza infinita a sua forma de realizao pareceu a muitos comentadores do Cinismo uma prova a mais do naturalismo do cnico: considerando que, de um modo geral, os elementos da civilizao na medida em que esses elementos tendem a ultrapassar os recursos essenciais subsistncia em direo ao conforto e ao luxo so, de um ponto de vista biolgico, suprfluos, o Cinismo seria, mais do que a adoo de uma tica do mnimo, a pro-posio de um retorno natureza pelo vis de um suposto primitivismo ou, antes, de um suposto animalismo que o nome da escola sugere e que poderia significar a inverso da hierarquia tradicional dos seres: no mais deus-homem-animal, mas deus-animal-homem. Assim, diante do binmio nmos-phsis, que perpassa toda a filosofia antiga, o Cinismo teria escolhido o seu lado, empenhando-se na defesa radical de uma vida kat phsin.

    Mas, como se sabe (e isto vale, de um modo geral, para qualquer esforo no campo dos estudos da Antiguidade), a histria da filosofia an-tiga recomenda que toda formulao moderna dos aspectos doutrinais de uma escola seja confrontada diretamente com suas fontes antigas a partir de uma anlise textual rigorosa que a possa liberar de leituras mais ou menos convencionais sedimentadas pela prpria tradio. o que nos permite, alis, com a retomada constante dos textos, rever at as mais bem fundamentadas convices.

    No caso, uma nica constatao sugere a deflao da rebatida ideia de naturalismo cnico: o fato de que ns no temos um nico re-gistro de um filsofo cnico que tenha, ainda que por um breve perodo, abandonado as cidades para viver no degredo dos campos ou na solido

    aspectos da leitura foucaultiana do Cinismo antigo em FLORES-JNIOR, O. Tersites esquecido (nota sobre a parrsia segundo Michel Foucault). Klos, Rio de Janeiro, v. 13-14, p. 93-109, 2009-2010. Disponvel em: . Ver tambm FLYNN, T. R. Foucault as a parrhesiast: his last course at the Collge de France (1984). In: BERNAUER, J.; RAMUSSEN, D. (Ed.). The Final Foucault. Cambridge, MA: M.I.T. Press, 1991. p. 102-118. Sobre a pobreza cnica em geral, vejam-se ainda DESMOND, W. D. The Greek Praise of Poverty: origins of ancient Cynicism. Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 2005; HELMER, . Les cyniques: une conomie de la frugalit. Revue de Philosophie conomique, v. 15, n. 2, p. 3-33, 2014; e, sobre o tema correlato da mendicncia, que os cnicos consideravam um meio legtimo de subsistncia, HELMER, . Le dernier des hommes: figures du mendiant dans lAntiquit. Paris: Le Flin, 2015.

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    do deserto28. Para uma filosofia que recusou a abstrao das longas de-monstraes teorticas, que fez do exemplo a forma de comunicao da virtude, que transformou o gesto em discurso de exortao e fez da praa pblica seu palco de atuao, a ausncia de qualquer vestgio de escapismo, fora que a compreenso da vida kat phsin seja feita sobre outras bases29.28 A figura do becio Sstrato-Hracles (cf. LUCIANO. Vida de Demnax, 1) talvez seja

    uma exceo, mas no se pode afirmar com certeza que este personagem mencionado por Luciano fosse um cnico de pleno direito, a exemplo alis do que acontece com o prprio Demnax. Os filsofos descritos positivamente por Luciano tendem, no geral, a um certo ecletismo. Vejam-se a propsito KINDSTRAND, J. F. Sostratus-Hercules-Agathion. The rise of a legend. Annales Societatis Litterarum Humaniorum Regiae Upsaliensis, Uppsala, p. 50-79, 1979-1980; GOULET-CAZ, 1986, p. 244.

    29 Cumpre esclarecer que no se trata aqui de reduzir o par nmos/phsis em torno do qual um longo debate se desenvolveu a partir da Antiguidade (e permanece na cincia contempornea) e no qual a tradio cnica, a seu modo, tomou parte a uma antinomia simplista do tipo cidade-campo, isto cultura-vida selvagem. A bem da verdade, o prprio desdobramento deste par no sentido da oposio que modernamente caracteriza seus respectivos elementos o mundo artificial, criado pelo engenho do homem, de um lado, e o mundo natural e espontneo com suas leis universais, de outro j um produto do pensamento ocidental (europeu) de matriz helnica. No fundo, o que est em jogo a consolidao progressiva de certos sistemas de classificao. Para GERNET, L. Recherches sur le dveloppement de la pense juridique et morale en Grce: tude smantique. Paris: E. Leroux, 1917, p. XV-XVI, na esteira dos trabalhos de . Durkheim et M. Mauss (cf. DURKHEIM, E.; MAUSS, M. De quelques formes primitives de classification. Contribution ltude des reprsentations collectives. LAnne sociologique 1901-1902, v. 4, p. 1-72, 1903), a mentalidade grega representaria uma etapa intermediria entre a inteligncia primitiva e as formas de pensamento que floresceram posteriormente na Europa (cf. MAC, A. La naissance de la nature en Grce Ancienne. In: HABER, S.; MAC, A. (Ed.). Anciens et modernes par-del nature et socit. Besanon: Presses Universitaires de Franche-Comt, 2012. p. 47-84). Nesse contexto, compreende-se melhor por que certas passagens de Plato seria o caso, por exemplo, de Leis, 713c-714b escapam esfera de uma oposio acabada entre nmos e phsis, j que a lei parece ser uma expresso da natureza. Sobre o assunto, alm dos ttulos j referidos, consultem-se tambm COLLINGWOOD, R. G. The idea of Nature. Oxford: Oxford University Press, 1945; NADDAF, G. Lorigine et lvolution du concept grec de phusis. New York: The Edwin Mellen Press, 1992; DESCOLA, Ph.; PLSSON, G. (Ed.). Nature and society: Anthropological perspectives. London: Routledge, 1996; HADOT, P. Le voile dIsis: Essai sur lhistoire de lide de Nature. Paris: Gallimard, 2004; e DESCOLA, Ph. Par-del nature et culture. Paris: Gallimard, 2005. No caso que nos ocupa, toda a discusso depende em princpio do sentido que emprestamos aos termos naturalismo e naturalista, e que nos permitir compreender e refutar a ideia de um naturalismo cnico. Assim, HUSSON, S. La Rpublique de Diogne: Une cit en qute de la nature. Paris: Vrin: 2011a, que alis reconhece a inexistncia de qualquer anacorese poltica no Cinismo, justificando contudo a permanncia do cnico na cidade pelo fato de que ele no pode escapar necessria validao da sua virtude pelo conjunto dos homens (cf. ______. La Politeia de Diogne le Cynique. In: DHERBEY,

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    Nesse contexto, quando se trata de ilustrar a pobreza infinita dos cnicos, a anedota que geralmente se evoca e a ela recorreu tambm Foucault, na passagem referida h pouco aquela em que Digenes joga fora seu copo, sua gamela ou os dois, depois de ter constatado que no precisava mais desses utenslios, inspirado pela viso de algum que bebia ou comia com as mos. A banalidade deste entrecho, assim resumido,

    G. Romeyer (Dir.); GOURINAT, J.-B. (Ed.). Socrate et les socratiques. Paris: Vrin: 2011b. p. 411-430), afirma que convm distinguir, entre os cnicos, o natural do originrio. A natureza no est na origem, mas no fim do pnos e do esforo do cnico para atingi-lo. Ela dada e imediata para o animal, mas ela no o jamais para o homem, pois mesmo que eles no o tenham explicitado, os cnicos compreenderam bem que o homem, este animal sempre j desnaturalizado, de fato este ser por meio do qual a cultura vem ao mundo (HUSSON, 2011b, p. 100). De uma perspectiva mais geral, a proposio da autora se justifica (embora possamos nos interrogar sobre de que maneira exatamente, ao contrrio do que ocorre com os animais, a natureza jamais seria dada e imediata para o homem). Por outro lado, a verdadeira questo que se coloca a de saber o que nos autoriza a identificar o fim para o qual tendem o pnos e a ascese do cnico com a natureza, ou, no limite, com uma certa concepo de natureza. Ora, o que emerge desta questo um impasse relativo ao vocabulrio em uso, e isto nos coloca mais uma vez e no poderia ser de outra forma diante dos problemas relativos constituio do corpus cnico: uma vez que os cnicos eles mesmos, em geral, no nos deixaram a exposio terica de sua doutrina nem o registro textual de suas performances, boa parte do que sabemos sobre eles provm de uma experincia alienada. Parece-me natural ento que, em sua fixao e transmisso, os ditos e feitos de Digenes as anedotas em que ele atua tenham sido, de certa forma, contaminados ou mesmo moldados pelo repertrio terminolgico e pela percepo conceitual de suas testemunhas (e neste ponto um dado vem complicar o processo: a probabilidade de que o prprio Digenes tenha voluntariamente se servido desse repertrio comum na elaborao de um procedimento retrico). Cabe ento, partindo sempre da literatura antiga (levando-se obviamente em conta a terminologia e as possveis motivaes de seus autores), tentar determinar a originalidade do movimento cnico em contraste tanto com as outras escolas e correntes que lhe foram contemporneas, quanto com as inflexes modernas das apropriaes de que foi objeto. Nesse sentido, a concluso a que nos parece levar a leitura desapegada das fontes que o Cinismo diogeniano, em suas origens gregas, jamais constituiu uma corrente anti-prometeica, um movimento que tenha sistematicamente recusado o fogo civilizador que o diligente Tit roubou de Zeus para dar aos homens (cf. DETIENNE, M. Ronger la tte de ses parents. In: ______. Dionysos mis mort. Paris: Gallimard, 1998 [1a ed. 1977]. p. 133-160). Se o Cinismo pode, em alguma medida, ser assimilado a uma forma de primitivismo quer este primitivismo represente de fato uma marcha r ou, ao contrrio, constitua, como num oximoro expressivo, um horizonte modelar inatingvel na histria da humanidade no ser por uma razo diferente do que a de ter reinfundido na ordem ontolgica historicamente determinada pelo par nmos/phsis a flutuao no a prevalncia de um de seus polos sobre o outro prpria inteligncia dos povos primitivos, na inteno de propor, a partir desta flutuao, o caminho possvel para uma outra ordem moral. Desse ponto de vista, o Cinismo se impe como um dos primeiros els de um pensamento de vis propriamente antropolgico no mbito da filosofia ocidental.

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    enganadora. Esta anedota recebeu, na literatura antiga, no menos do que nove verses mais ou menos diferentes umas das outras: ela mencio-nada por Sneca, Plutarco, Jernimo, Simplcio, Baslio, duas vezes pelo Pseudo-Digenes (nas cartas pseudepgrafes), no Gnomologium Vaticanum (verso annima) e, finalmente, por Digenes Larcio30. Acrescente-se a este conjunto a verso de Nilo de Ancira, que no traz Digenes como personagem, mas um filsofo cnico no identificado31. Esse nmero rela-tivamente alto de verses vale dizer: da retomada constante de um mes-mo motivo prova o interesse que essa historieta pode despertar. Citarei aquela que parece ser a verso mais completa, a de Digenes Larcio32:

    , , . , , , .

    Tendo visto um dia uma criana bebendo gua com as mos, Digenes tirou a caneca de sua sacola e jogou fora, dizendo: um menino me venceu em simplicidade. Ele jogou fora tambm o seu prato, quando, do mesmo modo, viu uma criana que, depois de ter quebrado a sua gamela, juntava suas lentilhas no furo de um pedao de po33. Observemos brevemente alguns detalhes desse texto. Antes de

    mais nada, convm notar que ns estamos diante de uma anedota dupla: so duas cenas distintas reagrupadas sob um motivo nico; estas duas cenas so, de uma certa maneira, complementares, na medida em que elas tratam de duas necessidades do homem (e de todos os animais), a primei-ra faz referncia sede, a segunda fome. O motivo que as reagrupa o da simplicidade e da frugalidade que o cnico adota para satisfazer essas necessidades. No entanto, no caso presente, a frugalidade do cnico no diz respeito bebida e comida propriamente ditas, mas aos utenslios de que o homem normalmente se serve para os consumir. Uma vez que, de um lado, o uso desses utenslios prprio no exatamente do homem, mas 30 Cf. SSR V B 158-161; 175; 536; 543. 31 NILO DE ANCIRA. De voluntaria paupertate ad Magnam, PG 79, col. 1017.32 Cf. GOULET-CAZ, 1992, p. 4029 et seq.33 D. L., VI, 37.

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    do homem civilizado, e, de outro, que Digenes se livra deles, ns pode-ramos concluir, quase automaticamente, que o gesto do cnico simboliza uma ruptura profunda e radical com o mundo civilizado e que ele exprime o desejo de um retorno a uma vida natural, prxima daquela dos animais e daquela dos primeiros homens.

    Todavia, convm observar certos detalhes que esto presentes nesta anedota e tambm nos detalhes que no esto. Em primeiro lu-gar, nada nos obriga a situar a cena (ou as cenas) que ela descreve fora da cidade, num quadro mais rstico ou mais natural. Supondo que houve, na origem de toda a tradio literria que se constitui em torno desta anedota, um fato histrico, pode-se admitir que bastante provvel que Digenes tenha observado esta criana no interior da cidade, talvez em praa pblica. Por outro lado, nota-se que o gesto terico de Di-genes no , em princpio, programtico: a teoria do cnico se produz conforme a ocasio (cf. o advrbio , uma vez, certa vez por acaso) e a partir de um acontecimento particular e imprevisto, e esta teoria logo posta em ao. Ora, se a atitude cnica consistisse realmente no esfor-o de adotar uma vida segundo a natureza inspirada pelos animais, ns poderamos nos perguntar quantas vezes Digenes teria podido observar um co bebendo ou comendo. Algum certamente objetaria que um co no tem mos com as quais ele possa fazer uma concha para beber. Mas esta objeo no de fato uma, pois ela no faz mais do que confirmar o entendimento de que o cnico no toma sistematicamente seus modelos de comportamento entre os animais, mas tambm entre os homens.

    Na verdade, na primeira cena descrita, o que Digenes v no gesto do menino no a expresso da natureza, mas a sua frugalidade ou simplicidade; mais exatamente, ele v uma atitude que lhe sugere um meio de desenvolver ainda sua prpria frugalidade ou de aumentar sua riqueza regressiva. De um certo modo, o menino mostra ao cnico no a possibilidade de beber sem uma caneca (o que, no fim das contas, qual-quer animal poderia lhe mostrar); o menino mostra a ele uma outra cane-ca que s se manifesta pelo olhar que o prprio Digenes dirige para a cena; ele quem imprime sobre o gesto da criana, em si mesmo, natural, espontneo e autossuficiente, a marca do nmos atravs de um utenslio civilizado; talvez nesse sentido que se deva compreender a frase que

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    Jernimo, na sua verso desta anedota, atribui a Digenes: eu no sabia que a prpria natureza tinha uma caneca (nesciebam quod et natura haberet poculum)34. O cnico descobre a natureza na cidade ao mesmo tempo em que descobre a cidade na natureza. Na vertigem circular desta dupla des-coberta, o Cinismo nos mostra que s h um mundo, real e presente, mas sempre instvel, no qual os homens devem encontrar um meio de viver e onde eles podero ser felizes, desde que aceitem que a oposio nmos/phsis no mais do que uma miragem intil um verdadeiro tphos que deve ser eliminado.

    Pode-se ento admitir que o que est em causa aqui no o rees-tabelecimento de uma Natureza perdida sob o peso nefasto da civilizao; mais uma vez, a estratgia cnica consiste em reduzir e de uma maneira que nada tem de natural os elementos exteriores necessrios ao homem com vistas a facilitar a execuo das operaes que lhe permitem viver. Ele pe em marcha a ascese que conduz subverso, pois o que ele v nas mos da criana , de um certo modo, uma caneca subvertida ou falsificada.

    O segundo episdio narrado nesta anedota acrescenta um as-pecto importante ao gesto que inspira Digenes: aqui o bigrafo no diz simplesmente que um menino comia, como um co ou um outro animal qualquer, seu po com lentilha sem se servir de um prato, nem que ele tinha abandonado voluntariamente seu prato ou gamela, mas que ele a quebrara acidentalmente, sem dvida por um golpe de azar. Por que essa preciso? Porque ao lado da frugalidade de que a criana dera prova no primeiro episdio, o que chama a ateno de Digenes aqui a sua capa-cidade de improvisar, e esta improvisao consiste no em recusar ou con-denar a gamela, mas substitu-la no ato. Seguindo a analogia que confere anedota a sua unidade de conjunto, o gesto espontneo da criana ensina ao cnico no a inutilidade da gamela, mas o uso de uma outra gamela uma gamela subvertida ou falsificada , mais simples, mais fcil e, num certo sentido, mais eficaz do que aquela que ele quebrou.

    Assim, na verso que Digenes Larcio d deste encontro entre Digenes e uma criana, no a phsis que ocupa o centro do palco. O que aparece o exerccio intempestivo da virtude, resultado da disposio

    34 JERNIMO. Adversus Jovinianum, II, 14.

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    permanente para a ascese, que se funda sobre a descoberta repentina de um meio simples e eficaz para facilitar a vida. Deve-se notar que nesta anedota tudo se joga sob o signo do acaso, do acidente, do imprevisto e da improvisao: Digenes v por acaso um menino, que por acaso tinha quebrado sua gamela e que improvisa uma outra. Neste cenrio no h lugar para a reflexo prvia, para um fundamento terico amadurecido e planificado; no h lugar para a natureza universal e imutvel enquanto fundamento e baliza para ao virtuosa. E o prprio Digenes quem o afirma, quando ele define a lio tirada da sua experincia: um menino me venceu em simplicidade ( ).

    VIEu gostaria agora de mencionar muito rapidamente uma outra

    verso deste episdio mas que no textual e nem pertence Antiguidade , apenas para mostrar como a extrema conciso da anedota, prpria de uma forma breve ou simples 35, encerra na verdade uma expansibilidade que pode, muito frequentemente, redesenhar o seu contorno e emprestar-lhe um alcance diverso, num processo que nada tem de ilegtimo; ao contrrio, identifica-se com a prpria natureza deste tipo de literatura. Refiro-me aqui a uma clebre pintura a leo sobre tela, executada provavelmente em 1648 (ou, segundo o historiador da arte e colecionador Denis Mahon, entre 1658 e 1660) pelo pintor francs (italiano por adoo), Nicolas Poussin. Este quadro conhecido com o ttulo de Paisagem com Digenes ou, mais precisamente, Digenes jogando sua tigela, e encontra-se hoje no museu do Louvre. Estamos pois diante de uma verso pictrica da nossa anedota. Por ironia, esta obra, que retrata justamente a disposio do cnico de se desvencilhar de toda posse exterior sua prpria pessoa (o que, no limite, ele considera sempre como algo da ordem do suprfluo),

    35 Sempre que uma disposio mental leva a multiplicidade e a diversidade do ser e dos acontecimentos a cristalizarem para assumir uma certa configurao; sempre que tal diversidade, apreendida pela linguagem em seus elementos primordiais e indivisveis, e convertida em produo lingustica, possa ao mesmo tempo querer dizer e significar o ser e o acontecimento, diremos que se deu o nascimento de uma Forma Simples. JOLLES, Andr. Formas simples: Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado, Caso, Memorvel, Conto, Chiste. Trad. de lvaro Cabral. So Paulo: Cultrix, 1976. Cf. p. 76. (Original alemo: JOLLES, A. Einfache Formen: Legende, Sage, Mythe, Rtsel, Spruch, Kasus, Memorabile, Mrchen, Witz. Tbingen: Max Niemeyer, 1930).

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    N. Poussin, Diogne jetant son cuelle (Paris, Museu do Louvre, Dep. de Pinturas, inv. 7038)

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    teria sido encomendada a Poussin por um certo Lumague, nome de uma tradicional famlia de banqueiros suos, cujo um dos ramos, depois de ter fixado residncia em Paris por longos anos, acabou por se estabelecer na Itlia em meados do sculo XVII36.

    Deixando de lado os pormenores tcnicos de execuo e estilo que no vm ao caso para o nosso propsito aqui, cumpre observar alguns elementos da cena retratada por Poussin. Antes de tudo, percebe-se que o gesto do Cnico, descrito sumariamente por Digenes Larcio, ganha aqui um quadro mais amplo e melhor definido (ainda que, obviamente, lhe falte o essencial do testemunho laerciano, isto , a frase proferida por 36 Sobre a datao e outros aspectos de contextualizao da obra, bem como sobre

    alguns de seus elementos estilsticos, vejam-se KIMURA, S. tudes sur Diogne jetant son cuelle de Nicolas Poussin. Chichkaigaku kenky. Mediterraneus: annual report of the Collegium mediterranistarum, v. 5, p. 51-62, 1982; e ______. Autour de N. Poussin: notes iconographiques sur le thme de Diogne jetant son cuelle. Bulletin de la Socit Franco-Japonaise dArt et dArchologie, v. 3, p. 39-54, 1983. Para uma viso geral sobre as figuraes de Digenes Cnico nas artes plsticas, leia-se o estudo de CLAY, D. Picturing Diogenes. In: BRANHAM; GOULET-CAZ, 1996, p. 366-387.

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    Digenes): toda a ao transcorre num espao distante do urbano, onde o elemento natural se sobressai. Ainda que esta ambientao se deva em par-te orientao estilstica da poca, certos detalhes da composio no po-dem ser neutralizados por uma qualquer tendncia comum; ao contrrio, iluminando, por assim dizer, as zonas de sombra da anedota escrita, esses detalhes revelam o ngulo pelo qual a ao do filsofo percebida. Assim, a massa de vegetao que, num plano intermedirio, se coloca entre a cena propriamente dita, em primeiro plano, e o principal conjunto de edifcios situado ao fundo, no alto e esquerda, parece sugerir, na diagonal que liga os trs blocos, a escolha de Digenes, se no por um degredo radical (no-te-se que os dois personagens esto postos beira da estrada que conduz cidade), ao menos por uma certa evaso mesmo que momentnea ou transitria de um espao propriamente civilizado em direo a outro sugestivamente mais natural e espontneo. Em outras palavras, o grande conjunto formado por rvores, arbustos e troncos, que reala a exubern-cia de uma natureza selvagem, parece separar o cnico da cidade. Alm disso, a prpria figurao corporal de Digenes afeta um movimento de recusa no apenas da urbanidade ele lana fora um utenslio que separa, naquilo mesmo que une todos os seres vivos, ou seja, a alimentao, o ho-mem civilizado e urbano dos animais mas do prprio ambiente urbano: Digenes parece caminhar da cidade, e no para a cidade; com os olhos voltados para baixo, atento ao jovem (no uma criana) que bebe com as mos, o Cnico d as costas para cidade, enquanto deixa cair, num gesto voluntrio de abandono e desprezo, a sua nica tigela que fica no cho, sua direita, em ligeiro recuo com relao linha dos seus ps. Em suma, ao circunstanciar a cena de uma antiga anedota, Poussin tira dela certos elementos que nenhuma de suas fontes contm explicitamente37.

    37 O mais provvel que Poussin tenha se inspirado em outras figuraes do mesmo tema anteriores sua, como por exemplo a Floresta de filsofos de Salvador Rosa (cf. KIMURA, 1983, p. 44 et seq.). Na verdade, o esforo de determinar qual dentre as fontes antigas est, ainda que indiretamente, na base do quadro de Poussin passa necessariamente pela identificao do personagem que, ao beber gua com as mos, d uma lio de frugalidade a Digenes. Nesse pormenor, as fontes divergem: Digenes Larcio traz , Baslio traz ; Nilo de Ancira escreve [...] ; no Gnomologium Vaticanum encontramos ; em Sneca e Jernimo, puerum; Plutarco e Simplcio trazem formulaes mais vagas, um particpio ( ) e um pronome indefinido (), respectivamente. A Carta VI do Pseudo-Digenes ,

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    VIIUma das cartas pseudoepgrafes atribudas a Digenes d uma

    viso mais descritiva desse mesmo episdio. Trata-se provavelmente, como j se sugeriu38, de uma verso tardia cuja composio, inspirada nas anedotas que circulavam na poca, traz, num texto mais desenvolvido, uma pequena histria circunstanciada que Digenes, em primeira pessoa, conta a seu interlocutor:

    . . , [] , , , . (2) , . , . , .

    A Crates.Depois de tua partida para Tebas, eu subia de volta do Pireu; era meio-dia e, por isso, eu sentia uma sede terrvel. Eu me dirigi ento at a fonte de Panopo. Enquanto eu tirava da sacola meu copo, um dos servos dessa gente que trabalha a terra veio correndo e, juntando as mos em concha, tirava assim a gua da fonte e bebia. E eu, parecendo-me ser este um jeito mais sbio de beber do que usando um copo, no tive pejo de tomar aquele sujeito como um professor de belas coisas. (2) A, eu joguei fora o copo que eu tinha e, aproveitando que eu encontrei umas pessoas que estavam indo para Tebas, te envio esta nota de sabedoria, pois nada quero conhecer sem te participar. Mas tu tambm, em vista disto, experimenta em toda ocasio aparecer na praa do mercado, l onde a multido de homens passa o seu tempo. Pois assim ns teremos a ocasio de descobrir muitas outras notas de

    como veremos na sequncia, o nico testemunho que identifica de forma mais precisa o personagem em questo: [] .

    38 Cf. GOULET-CAZ, 1992, p. 4029-230.

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    sabedoria vindas de cada pessoa. Variada a natureza, ela que, expulsa da vida pela opinio, ns restauramos para a salvao dos homens39. Este tipo de texto, por ser reconhecidamente apcrifo, requer

    sempre alguma cautela na sua utilizao, mas no h razo para que sejam impugnados quando se trata de reconstruir os princpios do pensamento cnico. Tomados como uma espcie de pastiche produzido no quadro de exerccios retricos, eles deviam se esforar ao mximo para parecerem autnticos e deviam, por isso, conter elementos autnticos do pensamento diogeniano40. Todavia, uma outra hiptese para a abordagem dessa lite-ratura pode ser formulada, uma hiptese que consiste precisamente em reconhecer a uma verdadeira propaganda cnica: se, de um lado, os cnicos sempre se mostraram refratrios lentido das demonstraes abstratas, por outro, muito provvel que tenham percebido as vantagens de um texto sequenciado no qual o emprego da primeira pessoa, identificada mi-meticamente com alguma autoridade do movimento (Digenes ou Cra-tes), dava mensagem veiculada um colorido mais vivo e realista, sobretu-do diante de uma audincia popular e heterognea, tendendo disperso, no caso de uma leitura pblica41. Trata-se enfim de um tipo de texto que apresenta cenas de vida nas quais a verdadeira ascese pode ser mime-tizada e, como prova o breve dilogo entre Digenes e Hegsias referido h pouco, os cnicos jamais se opuseram de forma sistemtica formula-o escrita da filosofia, embora preferissem o seu exerccio prtico. Assim, no caso especfico desta carta, se aceitamos a ideia de que o seu autor quis fazer a propaganda do Cinismo sob uma forma mais acessvel e agradvel junto a um pblico popular pouco interessado em longas elucubraes ou em mensagens cifradas, e mais permevel a narrativas imagticas, no

    39 PSEUDO-DIGENES. Carta VI, a Crates (SSR V B 536). O texto grego utilizado o de MSELER, E. Die Kynikerbriefe. berlieferung und kritische Ausgabe mit deutscher bersetzung von Eike Mseler. Paderborn: Ferdinand Schningh, 1994. 2 v.

    40 Cf. nota 22 supra.41 Esta hiptese parece encontrar confirmao em certos trabalhos de F. R. Adrados,

    para quem os cnicos teriam se servido das fbulas de fatura espica como um instrumento de divulgao de sua doutrina: cf. ADRADOS, F. R. Filosofia cnica en las fabulas espicas. Buenos Aires: Centro de Estudios Filosoficos, 1986, e ______. Poltica cnica en las fabulas espicas. FILOLOGIA e forme letterarie: Studi offerti a F. Della Corte. Urbino: Univ. degli Studi di Urbino, 1987. v. 1, p. 413-426.

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    impossvel que ele tenha tambm acrescentado histria certos elementos constituintes do pensamento cnico original, tornando explcito o que as anedotas, em razo mesmo de sua brevidade e conciso, deixavam apenas subentender. Age, aqui tambm, o potencial de expanso contido em toda anedota. Assim, o texto em narrativa desenvolvida desta carta seria, de uma certa maneira, o resultado de uma pedagogia associando um recurso esttico a um tipo de exegese filosfica.

    O primeiro elemento que se deve notar, que distingue a verso apresentada por esta carta das outras verses a localizao do episdio. Praticamente ausente dos outros testemunhos, em especial no de Dige-nes Larcio, as indicaes geogrficas aqui so precisas e abundantes; evidente que o autor da carta preenche o silncio das outras verses, um silncio que poderia convidar, como convidou a Poussin, a situar a cena num ambiente campesino e mais natural, afastado da cidade. A carta, ao contrrio, insiste no contexto urbano, plenamente civilizado em que a presena humana, talvez em forte afluncia, se deixa intuir. H, por outro lado, uma mudana na identidade do personagem que Digenes encontra. L onde as outras verses colocam em cena uma criana ou um jovem, o autor da carta evoca um servidor das pessoas que trabalham a terra ( ). Esta mudana se explica talvez pelo desejo de reforar o alcance social da mensagem cnica: no lugar da imagem mais singela de uma sabedoria emanando da inocncia infantil, ns temos na carta uma inverso da opinio equvoca das pes-soas que costumam confundir conhecimento e sabedoria de uma parte e, de outra, valor e classe social. Dando relevo identidade e ao estatuto social da personagem, Digenes torna mais expressiva a sua disposio de aprender a virtude por todos os meios possveis e de extrair de toda parte lies de sabedoria42.

    42 Devo Profa. Camila do E. S. Prado de Oliveira uma objeo interessante, que reformulo de memria nos seguintes termos: a personagem que desempenha o papel do professor de virtude de Digenes representada, no entrecho das diferentes verses desse episdio, alternadamente por duas figuras uma criana e um servidor de trabalhadores da terra que parecem evocar alguma forma de excluso poltica. No seria isso o indcio de uma preferncia pelo domnio da natureza, na medida em que a ordem poltica da cidade se ope ordem natural? No acredito. Em primeiro lugar, ainda que admitamos que uma criana tende a apresentar, tanto menor for a sua idade, um comportamento mais espontneo e natural, ainda relativamente impermevel

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    Mas a segunda parte da carta que apresenta o aspecto mais interessante do desenvolvimento desta anedota. Se nas outras verses Digenes se limita a enunciar a lio que ele aprendeu, aqui ele d um conselho de ordem geral tirado de sua experincia particular e, no quadro dramtico de sua narrativa, ele enderea a Crates (que foi historicamente seu aluno): tu tambm, em vista disto, experimenta em toda ocasio aparecer na praa do mercado, l onde a multido de homens passa o seu tempo. A mensagem clara: o cnico no deve fugir aos homens nem civilizao; ele deve ao contrrio viver nas cidades e, no interior das cida-des, frequentar os lugares onde h a maior afluncia de pessoas, ou seja, a gora, que o epicentro da vida poltica e, portanto, da vida civilizada. Assim, o cnico deve permanecer na cidade no apenas para exercer a sua misso de admoestar os homens, mas tambm porque ali ele apren-de a virtude. , portanto, dessa perspectiva que a frase final do texto, que soa alis como uma verdadeira palavra de ordem, ganha todo o seu significado: variada a natureza, ela que, expulsa da vida pela opinio, ns restauramos para a salvao dos homens. Esta afirmao, posta no fecho de uma narrativa que visa a demonstrar as vantagens obtidas na frequentao dos homens e das cidades, parece confirmar que, da pers-pectiva do cnico, no h para o homem natureza fora da cidade e fora da civilizao ou, ao menos, que a natureza do homem se manifesta na civilizao e no longe dela. Da se conclui que, no contexto do Cinismo, no h razo para se falar de um retorno natureza ou de uma tica

    s injunes do nmos, nos textos originais, que transmitem nosso episdio, os termos que designam esta figura, a criana (ou jovem), variam consideravelmente (cf. a nota 36 supra), nem sempre sendo fcil determinar com preciso a faixa etria que cada uma delas designa. De modo anlogo, o termo , traduzido aqui por servidor, no unvoco e, aparecendo apenas em rarssimas ocorrncias como um sinnimo de (cf. LSJ, s.v.), no designa algum necessariamente margem do espao poltico. O trao que possivelmente une todas essas figuras e que d coerncia e uma certa unidade a todas as verses da histria parece ser mesmo a ideia de que, ao contrrio do que estabelece a dxa, a sabedoria pode vir, para um olhar atento, de qualquer lugar, mesmo do mais simples e humilde dos seres. Nesse sentido, oportuno lembrar a j mencionada referncia feita por Nilo de Ancira a esta anedota (De voluntaria paupertate ad Magnam, PG 79, col. 1017). Na passagem, antes de propriamente aludir lio dada por algum que bebia com as mos no caso, meninos pastores ( ) , Nilo acrescenta que entre os cnicos a observao dos ingnuos ( ) pretende j conter a genuna compreenso ( ) que os coloca ao abrigo das atribulaes que a vida impe.

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    fundada na oposio nmos/phsis: entre os cnicos, a expresso kat phsin tem com certeza uma significao particular, mas ela no se define neces-sariamente em oposio a uma vida kat nmon 43.

    VIIIAo fim desse percurso, e para reat-lo com o problema das for-

    mas literrias que preservaram e transmitiram o Cinismo antigo, eu formu-laria sua concluso em dois nveis distintos, mas evidentemente solidrios. Num primeiro nvel, esta concluso se acomoda, em suas linhas gerais, s consideraes de Marie-Odile Goulet-Caz a respeito desta mesma ane-dota que evoquei (e que ela tambm toma como um estudo de caso exem-plar) em sua detalhada anlise da estrutura do Livro VI de Digenes Lar-cio. Ela reconhece na formao do motivo da lio de sabedoria tirada por Digenes da viso de algum bebendo gua com as mos, e que o leva a abandonar sua caneca, quatro etapas ou camadas44: na origem, um acon-43 Seria interessante, a esta altura, examinar de perto as outras verses desta anedota (cf.

    notas 29 e 30 supra), o que, no entanto, no se far aqui. Dentre essas, por ora deixadas de lado, parecem-me particularmente relevantes para o tema que abordei aqui as trs que, a exemplo da Carta VI do Pseudo-Digenes, trazem explicitamente o termo natureza em seu texto. So elas a do Gnomologium Vaticanum ( ), a de Jernimo (brevemente citado: cf. nota 34 supra; natura) e a de Baslio ( ). No entanto, assim como procurei demonstrar com relao a esta Carta VI mas por outras razes , no acredito que a mera ocorrncia dessas expresses milite em defesa de um naturalismo cnico ou da compreenso de que o pensamento de Digenes tenha inaugurado um movimento anti-prometeico, interpretaes sobre as quais a crtica moderna tem geralmente insistido. De todo modo, observa-se que um dado comum, que caberia aprofundar, une ao menos duas destas trs verses mencionadas (alguma reserva poderia ser feita com relao ao Gnomologium Vaticanum), o fato de provirem de autores cristos (e o interesse dos cristos pela tradio cnica no deve surpreender: cf. nota 44 infra).

    44 Cf. GOULET-CAZ, 1992, p. 4036. M.-O. Goulet-Caz toma, como base metodolgica de sua anlise, os estudos de R. Bultmann em torno da formao dos evangelhos sinticos. Na verdade, o prprio Bultmann j havia observado uma certa similitude entre os evangelhos e a literatura relativa a Digenes (e a Scrates): Une analogie historique gnrale de la formation dune telle tradition se trouve aussi dans la littrature grecque, dans la mesure o il sagit dune tradition de sages et de matres qui, tels Socrate et Digene, neurent pas dactivit littraire et dont la signification eu moins dimportance pour la science que pour la conduite personnelle de la vie [...] (BULTMANN, R. LHistoire de la tradition synoptique, p. 72, apud GOULET-CAZ, op. cit., p. 4028). Por outro lado, cabe notar que as intersees entre Cinismo e Cristianismo no se resumem apenas ao plano da tradio textual e das formas literrias; haveria ainda, entre os dois movimentos, um parentesco histrico de fundo, como defende incansavelmente F. G. Downing em seus numerosos trabalhos (vejam-se, por exemplo,

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    tecimento histrico ou inventado que foi transmitido de boca em boca nos moldes de uma narrativa popular; a partir da, o objeto dessa narrativa teria recebido uma forma literria na literatura cnica mais antiga ou numa outra tradio coeva; a terceira etapa corresponderia ao surgimento de apoteg-mas derivados que trariam variaes mais ou menos importantes; e, por fim, uma composio literria tardia baseada nas verses apotegmticas.

    Essa estratificao, bastante coerente e funcional em seu con-junto, apresenta todavia um ponto de incerteza: a ordem das etapas. A prpria Goulet-Caz reconhece a duas possibilidades: ou bem a forma apotegmtica antecedeu narrativa extensa ou bem foi o contrrio que se produziu, esta dando origem quela. A autora claramente defende a segun-da opo45. Eu, de minha parte, hesitaria na escolha, e o motivo simples: conforme sugere a anedota que traz o breve dilogo entre Digenes e Hegsias, referida acima, a pedagogia cnica devia estimular, em primei-ra mo, a elaborao de textos mais breves e concisos que preservassem exemplos de ascese em seu estado bruto. Os livros escritos por Digenes provvel, e no uma certeza, que Hegsias tivesse pedido emprestado os livros escritos por Digenes seriam de uma outra natureza, e estes (talvez por razes anlogas) no foram preservados, ou o foram apenas em parcos fragmentos. Por outro lado, eu no hesitaria em admitir, em princpio, um ncleo histrico, por tnue que seja, para cada apotegma, e descartaria, com certeza para a maioria dos casos, a possibilidade de uma simples inveno. Admitir alguma historicidade para cada anedota signifi-ca, em ltima instncia, preservar a historicidade do prprio Digenes e, ao mesmo tempo, reconhecer a originalidade de seu mtodo filosfico. Entenda-se contudo o seguinte: a aceitao dessa historicidade no faz

    DOWNING, F. G. Christ and the Cynics: Jesus and Other Radical Preachers in First Century Tradition. Sheffield: JSOT Press, 1988 e ______. Cynics and Christian Origins. Edimburgh: T. and T. Clark, 1992). Trata-se, na realidade, de uma tese que tem se difundido e, de algum modo, se radicalizado no sem alguma polmica, dadas as suas bvias repercusses e conquistado muitos (e fervorosos) adeptos, um fenmeno que pode ser ilustrado pela publicao de LANG, B. Jesus der Hund: Leben und Lehre eines jdischen Kynikers. Mnchen: C. H. Beck, 2010. Recentemente a prpria Goulet-Caz jogou alguma luz nesse intricado problema: GOULET-CAZ, M.-O. Cynisme et Christianisme dans lAntiquit. Paris: Vrin, 2014.

    45 O que significa que, da sua perspectiva, a formao da literatura cnica inverte o processo de formao dos evangelhos sinticos, tal como postulado pelo mtodo de Bultmann. Cf. GOULET-CAZ, 1992, p. 4028.

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    dela uma condio ou um critrio de validao dos aspectos propriamente doutrinais ou filosficos veiculados pelos apotegmas, da mesma forma que a tradio cnica, de matriz diogeniana, no pode estar subordinada a um Digenes histrico objetivamente determinado46. Este ltimo ponto nos leva ao segundo nvel das minhas concluses.

    Trata-se, agora, nesta ltima observao, de sublinhar a dinmi-ca que subjaz ao entrecho da nossa historieta, a lio de Digenes (e o duplo valor do de nesta expresso deve ser preservado), algo que alis se repete em vrias outras passagens da literatura cnica: Digenes observou (cf. o particpio ) algum e algum que observava Digenes recolheu da cena a sua nota de sabedoria; e ns, como os crculos concn-tricos formados na superfcie da gua por um objeto que j submergiu, somos os ltimos recebedores e intrpretes de um relato cujo grau zero de historicidade est irremediavelmente perdido. Na vertigem desse pro-cesso, de que o cnico parece ter plena conscincia ao improvisar sua per-formance, a nica teoria possvel surge no do theoren mas do thesthai: o que vemos irromper nas artes do discurso cnico a lgica teatral como uma forma original de propedutica filosfica.

    46 Seria oportuno citar mais uma vez as palavras de R. Bultmann a propsito de Jesus: Assurment il est une chose quoi il faut renoncer : le caractre de Jsus, limage exacte de sa personnalit et de sa vie nest plus connaissable pour nous. Mais ce quil y a de plus important, le contenu de sa prdication, est ou devient toujours plus clairement connaissable. Sil faut toujours avoir prsent lesprit quon ne peut jamais prouver de faon catgorique lauthenticit de telle parole isole de Jsus, on peut cependant en signaler toute une srie qui appartient la couche la plus ancienne de la tradition et qui nous donnent une image de la prdication historique de Jsus (BULTMANN, R. Linvestigation des vangiles synoptiques. In: ______. Foi et comprhension: Eschatologie et dmythologisation. t. 2, p. 279, apud GOULET-CAZ, 1992, 4027). As palavras de Bultmann fazem eco, de algum modo, as de G. Farinetti a respeito de Digenes: E noi aggiungeremmo che il tipo di umorismo, lintenzione profondamente sarcastica e derisoria che connota coerentemente gli aneddoti ci sembra decisamente significativa per limmagine del personnaggio e per la percezione pubblica delle sue intenzioni culturali e filosofiche. La logica della costruzione del personaggio un oggetto di indagine pi interessante della verit storica relativa allindividuo Diogene e lanalisi delle fonti permette di porre in evidenza una coerenza di fondo (LUISE, F. de; FARINETTI, G. Felicit socratica: Immagini di Socrate e modelli antropologici ideali nella filosofia antica. Hildesheim: Olms, 1997, p. 94; itlicos meus).

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    RESUMO Partindo da constatao de que o Cinismo antigo foi preservado e transmitido essencialmente por um vasto conjunto de anedotas, o pre-sente estudo abordar uma em particular, em suas diversas verses e desdobramentos: aquela que narra o episdio em que Digenes de Snope, inspirado pela viso de algum que bebia gua com as mos, joga fora o seu nico copo. Nesse estudo de caso dois aspectos de-vero ser destacados: (1) a partir de uma visada mais geral, a maneira como a forma de um discurso determina e condiciona a constituio de um pensamento e de toda uma tradio filosfica; nesse sentido, bus-ca-se evidenciar que a compreenso do Cinismo depende, ao mesmo tempo, de duas caractersticas aparentemente contraditrias de uma anedota, a saber: a sua conciso histrica mxima e a sua expansibilidade literria; e (2) de uma perspectiva mais especfica, o modo atravs do qual se constituiu a percepo do cinismo antigo como expresso de um naturalismo filosfico radical.Palavras-chave: Cinismo. Formas do discurso. Anedota. Nmos/phsis. Naturalismo.

    RESUME En partant de la constatation selon laquelle le Cynisme ancien a t prserv et transmis essentiellement par un vaste ensemble danecdotes, cet article en examinera une en particulier, dans ses diverses versions et ddoublements : celle qui met en scne Diogne de Sinope qui, aprs avoir vu quelquun en train de boire de leau avec ses mains, jette sa seule coupe. Dans cette tude de cas deux aspects seront viss : (1) dabord, partir dune perspective plus gnrale, la manire dont la forme dun discours dtermine et conditionne la constitution dune pense et de toute une tradition philosophique ; en ce sens, on cherche dmontrer que la comprhension du Cynisme dpend, en mme temps, de deux caractristiques apparemment contradictoires dune anecdote, savoir sa concision historique maximale et son expansibilit littraire ; et, ensuite, (2) dans une perspective plus spcifique, le mode selon lequel la perception du Cynisme en tant quexpression dun naturalisme philosophique radical sest constitue. Mots-cls: Cynisme. Formes du discours. Anecdote. Nomos/physis. Naturalisme.