as artes de resistir.mulheres na cena anarkopunk (1990-2002)

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Gabriela Miranda Marques ,doutorada do programa de Pos-graduaçom em Historia na Universidade de Santa Catarina,analiça a historia do punk a través do feminismo.

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  • As artes de resistir: mulheres na cena anarcopunk (1990-2002) GABRIELA MIRANDA MARQUES*1

    Introduo

    O que entendemos por punk algo que na historiografia em geral remonta dcada de 1970 e aos Estados Unidos e Inglaterra, onde este teria surgido. Nesta dcada o punk, como estilo musical e atitude, ficou conhecido atravs de bandas como Sex Pistols e Ramones, ambas com acordes rpidos e letras que falavam de uma juventude sem futuro. O visual2 composto por cabelos espetados e coloridos, roupas velhas, smbolos, rebites, coturnos e acessrios de couro eram algo que destacavam os/as punks das demais pessoas. O visual tambm era muito prprio de uma classe operria, de uma sociedade empobrecida e de um mundo que vivia as vsperas de uma hecatombe nuclear. Suas vestimentas em uma esttica agressiva, buscam causar o desconforto a quem v, roupas sujas, rasgadas, remendadas, com spikes, rebites, patches so a lembrana ambulante de que as coisas no vo bem, que roupas no deveriam ser mais prezadas do que pessoas. Essa forma de vestir entendida, aqui, como violncia esttica 3.

    O punk chega ao Brasil ainda na dcada de 1970, mas na dcada de 1980 que ganha visibilidade principalmente nas grandes capitais como Rio de Janeiro e So Paulo. Visibilidade foi gerada em parte pela grande mdia e pelo festival Comeo do fim do mundo realizado em So Paulo, no ano de 1982, que acabou com uma grande confuso amplamente noticiada. Neste perodo grupos punks se reuniam em shows e pontos de encontro especficos nas periferias, desde ento se produziam fanzines e trocavam-se material musical de diversas partes do mundo (CAIAFA, 1985: 32).

    1 * Doutoranda do Programa de Ps Graduao em Histria da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista

    da CAPES/DS. 2 Visual um termo mico que corporta as vestimentas e acessrios ligados ao punk. Visual remete tambm a

    uma certa performatividade no sentido Butleriano, onde este visual, em sua maior parte, algo que pode ser colocado e retirado, no entanto, o visual tambm composto por caracteres imutveis a curtssimo prazo, como tatuagens, pircings, alargadores, e cortes de cabelo. BUTLER, Judith. Problemas de Gnero: Feminismo e subverso da identidade. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 2003. 3 Trabalharei com o conceito de violncia de acordo com o apresentado por Hannah Arendt, mesmo que a autora

    trabalhe o conceito mais ligado s relaes no estado, aqui ele pode ser expandido para outras esferas como relaes culturais. ARENDT, Hannah. 2007. A condio humana. Rio de Janeiro: Forense universitria, e ARENDT, Hannah. 1985. Da violncia. Braslia: Ed. Universidade de Braslia.

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    Estabeleceu-se, aqui no Brasil, algo entendido como uma cultura punk, esta caracterizada primordialmente pela mxima faa-voc-mesmo, em ingls do it yourself- DIY (O HARA, 2005). Esta lgica transposta para todos os aspectos da vivncia no punk, desta forma, se uma pessoa quer tocar s pegar instrumentos e sair tocando4, se o instrumento no existe improvisa-se com o que se tem. Em entrevista ao documentrio Botinada(Gasto Moreira, 2006, cor, 152min) um integrante da banda Replicantes, uma das primeiras bandas punks de visibilidade no Brasil, conta que na falta de uma bateria, eles ensaiavam com um sof. O que vale para a msica, e para as roupas e acessrios, vale tambm para a mdia. A cultura punk tem uma forte vertente anticapitalista, a crtica social de grande importncia para essas pessoas que, muitas vezes, no tinham espao de fala e devido a isso passaram a criar seus prprios espaos. Foi nessa perspectiva que o principal meio de difuso de informao e comunicao punk se tornaram os zines5 (fanzines). Sobre estes falaremos mais adiante.

    O que poderia ser apontada como uma cena desarticulada, somente musical, ganguista e pouco poltica na dcada de 1980, passa no final da mesma, a ter em seu interior grupos mais ativos politicamente. A dcada de 1990 trouxe, portanto, novos questionamentos e novas prticas no interior da cena6 punk no Brasil.

    Uma corrente que se fortalece e amplia denominada de anarcopunk, esta, junta os ideais anarquistas em suas diversas correntes a luta de diversos movimentos sociais: movimento negro, movimento LGBTTT, Sem-teto, passando a conviver e trocar experincias, categorias e vivncias com outros setores da sociedade, isso aliado a vivncia da cultura punk. Para aquelas e aqueles que assumem uma vivencia completa no anarcopunk prope-se

    constantemente questionar e desconstruir subjetividades, e um viver, em sua complexidade, aquilo que se assume enquanto luta. Desta forma, para este artigo interessam principalmente

    as vivncias de pessoas anarcopunks que assumem esta como sua forma de vida. Fazendo de 4 Interessante notar que as musicas punks so compostas em geral por trs acordes tocados de forma rpida e no

    passam de um minuto na maior parte das vezes tornando-as possveis de serem tocadas por quase qualquer pessoa disposta a faz-lo, sem necessidade de treinamento tcnico. 5 Contrao de fan+magazine, publicao independente de baixo custo e qualidade tcnica. Estes so, em geral,

    feitos de acordo com o lema faa voc mesmo; assim, todo o processo de construo, cpia e distribuio ficam a cargo daquele indivduo ou coletivo que se responsabilize pelo mesmo. Pode-se grafar fanzine ou zine para designar o mesmo suporte. 6 Cena um termo mico, utilizado para designar o conjunto de prticas culturais ligadas pela proposta musical

    punk. Poder-se-ia, ainda, falar em uma cena anarcopunk, metal, straidh edge, etc.

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    seu cotidiano a luta por idias que acreditam, indo para alm das propostas musical e esttica do incio dos anos 1980, muitas/os sujeitos hoje aderem a questionamentos de moradias, morando em ocupaes ou squatts7, questionando o capitalismo e suas fronteiras, vivendo de forma freegan8, questionando outras relaes de poder em relacionamentos amorosos e de amizade.

    As artes de viver

    Entendemos por forma-de-vida, a vida que no pode se separar de sua forma. Esta vida , sobretudo, possibilidade de viver e potncia: uma vida poltica. Para Foucault(2011: 59), a prtica no deve ser separada da teoria e no est baseada na verdade do saber. Como o autor afirma em A coragem da verdade, podemos falar de uma forma-de-vida cnica que diretamente ligada a parressa9 tica, que ao mesmo tempo prtica, discurso, vivncia. Para que o parresasta possa, de fato, abraar seu modo de vida, a crtica se faz um instrumento importante necessria a problematizao dos aspectos da vida e de si mesmo(FOUCAULT, 2011: 30). Esta forma de vida cnica apresentada por Foucault muito prxima, guardada as devidas propores e anacronismos, a forma de vida anarcopunk.

    Sobre se delimitar em uma forma de vida e a importncia da verdade, Saly Wellausen(1996:113) chama ateno para a no essencializao desta verdade, essa verdade uma produo, a definio nica de um sujeito do que verdadeiro para si. A autora ainda nos ajuda a lembrar que o que d credibilidade a forma-de-vida escolhida por um sujeito a

    7 Squatt pode ser definido hoje como habitao comunitria de artistas e intelectuais e estudantes, que inclusive

    se presta para recepo de turistas na Europa. Mas a palavra tambm empregada para designar uma ocupao formada por grupos heterogneos em regime de autogesto. Na Inglaterra do sculo XVII, os squatters eram um segmento na categoria de homens sem senhores que ocupavam ilegalmente os terrenos comunais, as reas incultas e as florestas e com as suas aes resistiam aos cercamentos, s determinaes reais e s leis restritivas propriedade comunal e pobreza. Ver HILL, Christopher. O mundo de ponta cabea: idias radicais durante a revoluo inglesa de 1640, So Paulo: Companhia das Letras, 1987 Apud GALLO, Ivone. Punk: cultura e arte. Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 24, n 40: p.747-770, jul/dez 2008 8 Freegan se remete a palavra de origem inglesa free e comporta todas as possibilidade de se viver sem dinheiro.

    9 Parresa pode ser definida como o ato corajoso do dizer verdadeiro. Para Saly Wellausenm (Michel Foucault:

    parrhsia e cinismo. Tempo Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 8 (1): 113-125, maio de 1996.) O conceito parrhsia ato corajoso do dizer-verdadeiro constitui o fio condutor doncleo terico da trans-historicidade da crtica da razo cnica, permitindo iluminar a questo tica do sujeito livre, entendido como forma vazia sempre pronta a ontologizar-se no cho do solo social.

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    coerncia entre o que diz e a maneira como vive. Assim cnicos10 pensados por Foucault e este grupo especfico de anarcopunks, que estamos analisando aqui, tm esta coragem de estabelecer correspondncia entre viver e dizer (WELLAUSEN,1996:116) o que tornam ambos prximos em sua forma de vida parresastica. Exploremos um pouco mais esta afirmao.

    Os cnicos, assim como estas/es punks, fazem de sua prpria vida, de seu prprio corpo, o teatro escandaloso de uma verdade insuportvel, no convencional e provocadora (GROS, 2008: 293-302). Esta verdade torna-se ento uma prtica, uma atitude de parresa que assume os riscos de se dizer a verdade na sociedade. Dizer a verdade, o falar verdadeiro, da atitude parresisata e crtica, so parte de uma forma de vida a ser cultivada. Algo que deve-se viver com todo o corpo e em todos os aspectos da vida. Para isto os cnicos travavam um combate,

    (...) combate contra costumes, contra convenes, contra instituies, contra leis, contra todo um estado da humanidade. um combate contra vcios, mas esses vcios no so simplesmente os do individuo. So os vcios que afetam o gnero humano inteiro, so os vcios dos homens, e so vcios que tomam forma, se baseiam [em] ou so a raiz de tantos hbitos, de maneiras de fazer, de leis, de organizaes polticas ou de convenes sociais que encontramos entre os homens. (...) O combate cnico um combate, uma agresso explcita, voluntria e constante que se enderea humanidade em geral, humanidade em sua vida real, tendo como horizonte ou objetivo mud-la, mud-la em sua atitude moral (seu thos), mas, ao mesmo tempo e com isso mesmo, mud-la em seus hbitos, suas convenes, suas maneiras de viver. (FOUCAULT, 2011: 247).

    Para as/os punks em um novo contexto histrico, bastante diferente daquele do perodo helenstico dos cnicos, a experincia de fazer de sua vida o teatro espetacular da verdade assume novas e desafiantes formas, ainda que, em muito se aproxime do afirmado na citao anterior sobre os cnicos. Os punks tambm combatem leis, costumes e o estado de inrcia e destruio que atribuem a humanidade. Neste sentido as mulheres inseridas nesta cena travam uma batalha ainda mais dura, para alm de criticar a sociedade e buscar o

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    O Cinismo foi uma corrente filosfica fundada por volta de 400aC. definido por Michel Foucault como um modo de vida, muito mais, que uma simples corrente filosfica. Para os Cnicos, a vida virtuosa consiste na independncia, obtida atravs do domnio de desejos e necessidades, para encorajar as pessoas a renunciarem aos desejos criados pela civilizao e pelas convenes. Os cnicos empreenderam uma cruzada de escrnio anti-social, na esperana de mostrar, pelo seu prprio exemplo, as frivolidades da vida social.

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    enfrentamento a coragem-da-verdade destas mulheres toca ainda um campo movedio. A crtica delas se remete tambm ao interior da prpria cena.

    Se a forma de vida anarcopunk tem relao com o enfrentamento direto as desigualdades e opresses, as mulheres foco neste texto, escolheram como principal frente de batalha a luta pelo fim da opresso de gnero/ sexista. Ser anarcopunk e assumir isso como forma de vida, trata-se de desconstruir e questionar a todo tempo o que da sociedade de controle biopoltica vive ainda dentro de si. No entanto, como falamos de pessoas reais em tempos histricos, e contextos culturais especficos, temos em vista que por mais libertrio que seja esse discurso, na prtica diria algumas opresses se perpetuam.

    As mulheres anarcopunks escolhem, como muitas mulheres em organizaes de esquerda revolucionria escolheram (WOLFF, ) denunciar violncia e opresses dentro de seus prprios coletivos, de suas frentes de luta, e como aquelas mulheres dcadas antes foram acusadas de divisionismo, de serem feministas separatistas, de no se importarem com o que de fato era mais importante uma luta mais geral(PEDRO, WOLFF), de acusar os companheiros que j se entendiam como pessoas livres de preconceitos. sobre estas mulheres anarcopunks que vamos nos debruar, seus fanzines, suas escritas-de-si, nos do pistas sobre formas de enfrentamento e resistncia, que diferentes daquelas praticadas por outras feministas anos antes, so diretamente vinculadas a prtica anarquista e aos ideais de faa-voc-mesma trazidos pela cultura punk.

    As minas do rol ou as feministas na cena punk.

    O Rock and roll visto como um ritmo masculino (SOUZA, 2005: 37); a cena punk, cunhada neste universo, no poderia estar dissociada desse carter macho. Dentro do punk, as associaes com o que definido como masculino, em nossa sociedade, ficam ainda mais visveis: a msica e o visual so extremamente agressivos, punk tem a ver com violncia, com

    choque, com enfrentamento; essas caractersticas foram em nossa ocidentalidade, foradas e reforadas como ligadas ao que masculino. No era de se estranhar, portanto, que, no incio do punk e ainda nas dcadas de 1970 e 1980 surgissem poucas mulheres na cena. Outra hiptese, apresentada em algumas produes punks feministas (Zine Libido #01, DIAS,2011),

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    de que elas foram invisibilisadas na prpria cena. No que elas no estivessem ali, mas como eram vistas, somente, como as minas dos caras, ou, ainda, no ocupassem nenhuma posio de destaque frente a uma banda conhecida, elas no mereceram nenhum destaque nas narrativas sobre o punk. Essa invisibilisao das mulheres, na histria, foi apontada ainda pelos feminismos (PEDRO, 2005: 85); logo o punk no seria uma exceo. Assim, para evitar o completo esquecimento de sua histria as mulheres comear a dar maior circularidade aos seus zines. Estes, eram coletivos ou individuais e para alm da visibilidade do feminismo anarquista, tratavam de assuntos diversos ligados a luta das mulheres. importante delimitar a forma como estou lendo estes fanzines, como trabalhei com esta escrita como fonte histrica11. O fanzine uma escrita de si (FOUCAULT, 2006: 144-162) ou seja, uma escrita que revela para o outro algo de si mesmo e constitui, tanto para quem escreve quanto para quem l, uma tcnica modificadora do eu. Ao escrever o fanzine, a(s) autora(s) pensa a sua prtica e faz a leitora pensar sobre aquilo que l, buscando imagens ou construindo imagens que transitam da busca do repdio simples pardia sarcstica, objetivando, sobretudo violentar o comodismo de se ler sem pensar sobre o que se l. uma escrita da subjetividade, mas que se coloca tambm nas intersubjetividades, buscando conectar-se com a subjetividade de quem l, expondo a sua prpria (GUATTARI; ROLNIK, 1996:15-45).

    Por outro lado, o fanzine funciona de certa forma como objeto normatizador dentro do punk. A prpria forma de escrita e de construo do material implica na formao de uma esttica da escrita punk, que deve seguir uma espcie de esttica, prxima ao pastiche e tida como ais geral, para que seja respaldada dentro da cena. Assim teramos aquilo que autorizado, reconhecido como punk e o que no legtimo dentro do meio. Ao comear a escrever um novo fanzine comum que a norma seja reproduzida. Desta forma, mesmo que contraditoriamente, o fanzine se constitui concomitantemente como uma escrita de si, como exposio de uma subjetividade e tambm como normatizador dentro da prpria cena. Nesse sentido a esttica da escrita anuncia muito sobre como aquele zine foi recebido e como pode

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    Metodologia semelhante j foi aplicada em MORAES, Everton de Oliveira. Deslocados, desnecessrios : o dio e a tica nos fanzines punks (Curitiba, 1990-2000). xii, 203 p. Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Cincias Humanas, Programa de Ps-Graduao em Histria, Florianpolis, 2010.

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    ser lido e identificado com uma vertente especfica do punk. Neste sentido aqui usaremos somente zines anarcofeministas12.

    Construindo uma imagem de si - Anacofeminismo atravs dos zines

    O anarcofeminismo no uma prtica nova, mesmo que silenciado muitas vezes pela histriografia, algumas autoras buscaram visibilisar mulheres anarquistas e experincias anarcofeministas do passado. Como o caso das historiadoras Margareth Rago (2001; e 2007) e Miriam Moreira Leite(2005), isso somente para citar algumas obras. No entanto, se fizermos o esforo de pensar quantas mulheres anarquistas so notoriamente conhecidas teremos alguns nomes como: Maria Lacerda de Moura, Emma Goldman, Luci Fabbri, etc, nmero este que extrapolado as centenas quando pensamos em homens, que deixaram seus livros escritos para a posteridade, diferentemente de muitas destas mulheres.

    As anarcofeministas da dcada de 1990 reconhecem o legado histrico destas mulheres, o Zine Anarco-feminista (sem nmero: 1994/5) cita em sua contracapa algumas frases de Maria Lacerda de Moura; j o zine Resist@ (1;2002) traz em sua capa uma frase de Emma Goldman, e em seu interior uma chamada para o lanamento do livro de Margareth Rago, Anarquismo e Feminismo no Brasil. Dito isso, pontua-se aqui que estas mulheres

    anarcopunks formam sua compreenso do que anarcofeminismo tambm em relao a uma histria das mulheres anarquistas, todavia compreendem-se em um outro espao e tempo histrico de ao, no interior da cena punk algumas novas caractersticas anarcofeministas so ressaltadas. Destacamos inicialmente a prpria construo esttica destes zines, suas imagens e textos, oras em forma de pastiche, ora devidamente diagramados, sempre em preto e branco, so um contraponto direto as sempre belas e coloridas revistas feitas por e para mulheres (MIGUEL, 2009). A profanao como forma de interferncia no mundo tambm uma caracterstica deste feminismo ligado a cultura punk. Entendemos por profanao o deslocamento que realizado com alguns dispositivos de controle e cerceamento, que passam

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    Os zines aqui utilizados foram coletados no arquivo pessoal de uma das entrevistadas para minha pesquisa de doutorado, e encontram-se na casa da mesma na cidade de So Paulo. Os Zines foram fotografados e encontram-se disponveis para consulta em meu arquivo pessoal.

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    a ser reconfigurados e realocados em uma funo que no era sua original, tirando-os de seu carter sagrado. Assim o dispositivo passa a ter outro uso, sendo deslocado da lgica para o que foi pensado, liberado ao uso comum, um uso diferente e no controlado como o definido para este dispositivo (AGAMBEN, 2009: 44).

    A construo esttica dos zines, repleta de imagens e textos foram pensadas como forma de arte e inteferncia no mundo constitutivas de uma forma de vida anarcopunk. Os textos e imagens so uma clara profanao da mdia para mulheres. Abaixo apresentamos a capa do Zine Pandora (3; 1993):

    A diversidade de signos que compem esta imagem demonstram, de certa forma, a construo de uma identidade do grupo Coletivo Anarco-feminista (CAF), afinal, como diria Sandra Pesavento as imagens so portadoras de significados para alm daquilo que mostrado (2008:99). Nela vemos uma medusa que sangra. Este sangramento menstrual que algo do aspecto biolgico ligado ao ser mulher pode ser pensado enquanto smbolo de enfrentamento. Quantas vezes vimos na arte clssica e na fotografia contempornea figuras de mulheres que menstruam? O corpo da mulher tambm foi higienizado na sociedade biopoltica. E neste sentido, para Graciela Natansohn (2005:287-304), a menstruao tida em nossa sociedade como algo perigoso, e as mulheres seriam, portanto as portadoras desse perigo.

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    A menstruao, o sangue vermelho que escorre por entre as pernas, como na imagem

    acima, foi substitudo em nossas propagandas televisivas por um lquido azul, higienizado (NATANSOHN, 2005:295). Retomar o sangue menstrual como algo poderoso uma profanao do dispositivo higienizador, desta higienizao forada que sofreram os corpos femininos ao longo da histria. O perigo a ser retomado e utilizado pelas mulheres representado, acima, tambm pela figura da medusa, aquela que na mitologia transformava quem a olhasse em pedra. Fazendo uma analogia pessoal, esta imagem diz muito sobre um dos lemas das anarcofeministas contemporneas que : nenhuma agresso ficar sem resposta.

    A imagem acima um exemplo daquilo que apresentamos como uma violncia esttica. O apreo por uma imagem que choca a maior parte das pessoas, tem relao direta com a esttica punk que prope o choque visual como ferramenta para fomentar o

    questionamento da sociedade, e nesse caso, do papel atribudo s mulheres nesta sociedade. Esta edio do zine Pandora (#3, 1993), traz diversos textos com as temticas aborto,

    violncia contra a mulher e estupro Algumas imagens trazem a Igreja como uma das grandes reguladoras dos corpos femininos, bem como apresentado na charge final do zine. Uma caracterstica interessante dessa edio do zine a linguagem utilizada, diferente de outros zines publicados em outras partes do mundo. O Pandora utiliza a forma as/os para designar homens e mulheres, em outros zines da mesma poca, como o Mulibu (1994), publicado em Portugal, j vemos a utilizao do @. Mais tarde torna-se comum na cena punk e nos zines punks a utilizao do x no lugar das letras a e o, no sentido de romper com o binarismo de gnero e abarcar todas as pessoas. O que possivelmente veio atrelado popularizao dos escritos acadmicos neste sentido (teorias queer, por exemplo), que demoraram um pouco a ser introduzidos no Brasil.

    Apresentamos abaixo uma construo relativa linguagem, mas, que na construo desse zine, englobada tambm na dimenso esttica. Mesmo com a imagem desfocada temos uma idia clara do conjunto de frases:

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    Sob o ttulo de Quotaes temos apresentadas trs frases de feministas. As duas primeiras frases so de acadmicas, logo, suas frases so elaboradas e trazem conceitos e explicaes. A terceira, assinada por Alcia non Grata, diz somente Foda-se o patriarcado!. O claro contraste entre as frases tem sua dimenso sarcstica, e tambm uma dimenso imagtica que iguala a importncia do contedo de suas sentenas, sendo, portanto no hierrquica com contedos. Explico: esto as trs juntas, a ltima bem poderia ser o resumo das duas primeiras, esse um exemplo da pardia sarcstica que debatemos anteriormente; a escritura de si que provoca a reflexo sobre aquilo que se l.

    J abaixo apresentamos a capa do zine Sarcastic Smile( #1, 1997):

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    Nesta capa podemos ver um exemplo de colagem punk (ou pastiche), onde diversos signos so somados. Junto s imagens esto smbolos e palavras soltas que constituem uma figura que pode ser agrupada, e na qual so somados diferentes aspectos relacionados ao anarcofeminismopunk (como grafado no zine). Destacam-se quatro imagens de protesto, sendo que a imagem do meio de uma punk, com visual carregado - moicano levantado, camisa pintada, cinto de rebites - com o rosto coberto. Esta uma atitude comum em mobilizaes punks e anarcopunks. Como estas/es pregam a ao direta, o que caracteriza tambm o anarcofeminismo do qual falamos, o rosto coberto uma forma de no ser identificada/o e evitar sofrer as consequncias legais dessa coragem da verdade.

    A palavra auto-defesa ali grafada nos remete tambm a ao direta, e mais uma vez a uma caracterstica do anarcofeminismo, a busca pelo empoderamento das mulheres. Que estas possam, se agredidas, responder a agresso e conseguir se livrar de uma situao de violncia, individualmente. Estas mulheres pregam que cada uma deve saber se defender, dado que a sociedade ainda machista.

    Uma outra imagem, que tambm remete ao empoderamento das mulheres, a foto de uma banda, localizada no alto esquerda, onde uma mulher aparece ao microfone. No incio deste texto falamos da importncia da msica para a cultura punk e como, em seu incio, poucas mulheres participavam de bandas. Na dcada de 1990 este contexto muda, apoiadas pelos coletivos de mulheres e pelo anarcofeminismo, muitas mulheres punks comeam a formar suas bandas e cantar msicas com temas feministas. Temos o exemplo das bandas Bulimia e Cosmogonia, ambas de Braslia, formadas na dcada de 1990 somente por mulheres.

    Como j dissemos, mesmo que o anarcofeminismo apresentado aqui e situado na dcada de 1990 tenha relaes e reivindique tambm aquele anarcofeminismo do incio do sculo, ele possui caractersticas que o associam ao anarcopunk. Para ser identificado como parte da cena, para alm da esttica, era necessria a crtica quilo que se vive no chamado meio libertrio. Este meio seria a priori um lugar onde no se reproduziriam as opresses da sociedade em geral, onde as pessoas que o constituem j teriam lido, refletido e desconstrudo seus preconceitos. Todas essa pessoas na cena anarcopunk lutariam contra o

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    machismo, o sexismo, a homofobia, o racismo, o especismo, o capitalismo e as relaes hierrquicas de poder. Desta forma, nada mais haveria de ser feito, a no ser a revoluo na sociedade, para usar um termo conhecido.

    As mulheres vieram questionar toda esta lgica, acusando os companheiros de machismos e violncias contra as mulheres, estes mesmos companheiros que em suas letras e

    falas pblicas falavam de feminismo e de como a esquerda marxista foi sexista. Neste sentido, os zines Anima(#1, 1997), zine Sarcastic Smile ( #1, 1997) e Zine Anarco feminista(sem nmero,1994/95?) trazem reflexes sobre a cena. Neste ltimo lemos:

    Este excerto fala da necessidade da autocrtica e dos perigos de se acreditar uma pessoa completamente despida de preconceitos. Elas tambm apontam o machismo por parte de homens e mulheres. Na primeira pgina do zine nima (#1,1997) as anarcofeministas afirmam:

    Estamos aqui para encher a pacincia, incomodar e desafiar o coro dos contentes machistas, pois nunca estamos contentes. Podem nos odiar, mas dificilmente vo estar livres de ns, a gente quer ser uma pedra no sapato, somos terrveis mocrias feministas que esto a para horrorizar as noites de qualquer macho. Aos que nos apreciam, o nosso sincero amor e amizade. Esperamos de corao, que as feministas no fiquem s no que escrito, mas que suas atitudes prevaleam inspiradas de vontade, coerncia e luta prtica. HASTA LA LUCHA!(zine nima, #1,1997:1)

    Nesta citao do zine nima podemos observar novamente, o recurso do cinismo ou do riso. Elas se colocam como as mocrias feministas, forma pela qual provavelmente foram chamadas. Podemos aproximar esta atitude do rir-se de si, e de um giro trpico como aquele que experimentamos hoje com a palavra queer. O que gostaramos de ressaltar aqui , mais uma vez, o apelo prtica como necessria para a transformao social.

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    Os feminismos na dcada de 1990 ganharam novamente uma visibilidade, principalmente no meio punk, com a emergncia de um feminismo Riot Grrrl13, que surge inicialmente nos Estados Unidos, mas logo chega ao Brasil, influenciando bandas como a conhecida Dominatrix e criando zines relacionados a ele (MARQUES, PEDRO, 2012:web). Preocupao esta que tambm se estendida cena punk em geral.

    A perspectiva de viver o anarcopunk como modo-de-vida estava sendo abandonada na medida em que o punk era cada vez mais comercializado, cooptado pelo sistema capitalista e pela mdia (ESSINGER, 1999; SINKER,2008). Muitas pessoas se aproximavam do punk, anarcopunk e anarcofeminismo, mas algumas delas no correspondiam ao ideal de vivncia prtica daqueles ideais.

    A escrita de si nos zines d conta de demonstrar a importncia da coerncia entre a prtica diria e aquilo que se acredita enquanto ideal. Mesmo que a esttica e o visual sejam muito importantes, quando se deixa de olhar as falhas em si e em sua cena, este deixa de ser um modo de vida para ser somente reproduo sistemtica de algo que se leu ou ouviu. A arte de resistir destas mulheres consiste tambm em reinventar-se e descobrir novos meio de profanar os dispositivos que nos capturam.

    Algumas consideraes

    Temos consincia que neste breve artigo no damos conta de discutir todos os aspectos que relacionam o anarcofeminismo enquanto arte e esttica de resistncia. Este extrato se insere no mbito maior de minha pesquisa de doutorado onde ser possvel elaborar mais profundamente as diversas intersees que so apresentadas nos zines e, principalmente, aquilo que caracteriza o feminismo destas mulheres e suas formas de resistncia.

    A necessidade da prtica para a mudana algo muito prprio cena punk e anarcopunk principalmente, onde a idia do faa-voc-mesm@ pode ser colocada como uma premissa definidora das mesmas14. esse parmetro que, de certa forma, empodera as 13

    Riot Grrrl uma expresso em ingls, amplamente utilizada no Brasil e em outros pases. Pode ser traduzida como garota rebelde ou motim das garotas. A utilizao da grafia e pronuncia Grrrl, em contraponto ao girl, funciona como um grunido, o som de sua revolta. 14

    DIAS, Mabel. Mulheres anarquistas vol.2. So Paulo: Imprensa Marginal,2011.; OHARA. Op Cit..

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    mulheres presentes na cena anarquista e punk a fazer algo como: bandas de mulheres, fanzines de mulheres, shows para mulheres, tudo por iniciativa delas e com o dinheiro/tempo/criao das prprias mulheres da cena. Essa caracterstica de criao de alternativas e incitamento ao, to pulsante na filosofia punk, apontada por Beatriz Preciado como uma das caractersticas destes novos feminismos, onde o anarcofeminismo contemporneo pode ser lido. Para ela:

    Este nuevo feminismo posporno, punk y transcultural nos ensea que la mejor proteccin contra la violencia de gnero no es la prohibicin de la prostitucin sino la toma del poder econmico y poltico de las mujeres y de las minoras migrantes. Del mismo modo, el mejor antdoto contra la pornografa dominante no es la censura, sino la produccin de representaciones alternativas de la sexualidad, hechas desde miradas divergentes de la mirada normativa. As, el objetivo de estos proyectos feministas no sera tanto liberar a las mujeres o conseguir su igualdad legal como desmantelar los dispositivos polticos que producen las diferencias de clase, de raza, de gnero y de sexualidad haciendo as del feminismo una plataforma artstica y poltica de invencin de un futuro comn. (PRECIADO: web).

    relevante o destaque feito pela autora do campo de embate se traar diretamente no campo das artes e dos diversos dispositivos15 de controle de corpos e sexualidades. A esttica punk das garotas na cena, de seus zines e de sua msica so nelas mesmas um enfrentamento ao feminismo burgus. As msicas so gritadas e seu visual foi criado para no fazer parte do sistema burgus de mercadoria. Estas mulheres buscam no s acabar com o sexismo e a sociedade patriarcal, mas buscam em sua forma-de-vida existir de maneira diferente daquela imposta pela sociedade biopoltica atual. Assim criaram formas de resistncia e de vivncias para alm daquelas midiatizadas e tidas como adequadas s mulheres. Esperamos ter incitado, com este trabalho, a nsia por conhecer mais desta corrente feminista to esquecida pela historiografia.

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    A autora trabalha os dispositivos no mesmo sentido que Giorgio Aganbem (2009), o qual j foi citado anteriormente.

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