artista e obra: indissociÁveis ou independentes? · quanto mais distante o artista ou pensador...

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BALCÃO DE REDAÇÃO ENSINO MÉDIO SÉRIE www.poliedroeducacao.com.br a 1 ORIENTAÇÕES PARA O ALUNO A coletânea a seguir propõe reexões sobre um dilema que há tempos permeia o universo artístico: é possível separar o artista de sua obra? Esse questionamento costuma provocar discussões quando um artista – seja ele escritor, músico, cineasta etc. – se en- volve em alguma polêmica ou tem comportamentos considerados inadequados. Nesses casos, é comum que sua obra, ainda que seja renomada e bem-conceituada, sofra boicotes e protestos. Si- tuações como essas são cada vez mais frequentes na atualidade, já que os aspectos da vida pessoal de artistas são facilmente encon- trados na internet e acompanhados de perto pelo público. Então, se uma pessoa não é mais digna de admiração, como continuar admirando sua arte? A obra perde valor quando seu autor tem atitudes condenáveis? Conra os textos de apoio para realizar a atividade proposta. TEXTO 1 Até que ponto é possível separar a arte do artista? Um homem entra em um restaurante e pede oito alcachofras – quatro fritas no óleo e quatro na manteiga. Quando o garçom traz a refeição, o homem pergunta quais são as fritas em óleo e quais são as fritas em manteiga. O garçom responde que é necessário cheirá- -las para saber a diferença. Inconformado com a resposta, o homem atira o prato no rosto do garçom, ferindo a face esquerda e o olho do pobre coitado. Parece até uma anedota pouco inspirada, mas é uma história real ocorrida em 1604 e registrada pela polícia de Roma. Não seria o primeiro delito desse homem, que já carregava má reputação por se envolver em brigas, perturbar a paz pública, atirar pedras em po- liciais e senhoras de idade e até mesmo assaltar e apunhalar desafe- tos. [...] Esse homem criminoso é Caravaggio, um dos pintores mais inuentes da história e um dos maiores nomes do estilo barroco. Da técnica de Caravaggio, surgiu o tenebrismo, uma das maiores revoluções no uso de sombra e luz na pintura. Suas obras estão pre- sentes nos museus mais importantes e visitados do mundo e seguem servindo como grande fonte de estudo e inspiração artística. Quando confrontamos os diferentes campos da vida de Caravaggio, é impossível não sentir o impacto da dualidade do ar- tista. Ao mesmo tempo que temos o homem bruto que andava pelas ruas da Itália procurando confusão, temos o artista sensível e rena- do, dono de um senso estético único. E Caravaggio não é um caso isolado. Basta uma rápida olhada na biograa de alguns dos maio- res artistas de diversos campos para encontrarmos comportamentos que, hoje em dia ou mesmo à sua época, são condenáveis. ARTISTA E OBRA: INDISSOCIÁVEIS OU INDEPENDENTES? CARAVAGGIO, Michelangelo Merisi. Narciso, c. 1599, óleo sobre tela. Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma. A discussão sobre o ponto de separação entre o artista e sua arte sempre existiu, mas tomou força no ambiente digital nos últimos anos. Com a apropriação da internet como ferramenta de debate, a exposição de falas e atos contraditórios se tornou um caminho para repensar a relação entre o artista e sua obra. Hoje, com manei- ras mais ecazes de fazer nossas opiniões serem ouvidas, podemos questionar o que consumimos. Podemos apoiar (ou refutar) pautas. Movimentos importantes aconteceram interna e externamente na in- dústria do entretenimento, retomando discussões pertinentes [...], ao mesmo tempo que se busca um desmonte de estruturas de poder odiosas nos espaços de produção artística. [...] São mudanças ne- cessárias, que devem continuar existindo para construir ambientes justos e saudáveis de criação. Mas, após revelações indigestas, como lidar com a arte de al- guém que, em sua vida privada, não possui mais o mesmo impacto positivo de sua trajetória artística? [...] A arte de alguém que rompeu com as normas de nossa sociedade pode continuar sendo consumida? [...] Não acredito que exista uma resposta universal para o di- lema. A mim parece que, além de qualquer tipo de racionalização e reexão, no nal prevalecerá o sentimento daquele que aprecia a obra artística. [...] Somos feitos das obras de arte que passam 1 TEMA 9 – 2020 | Entregar até 09 de novembro TEMA 9 – 2020 | Entregar até 09 de novembro

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Page 1: ARTISTA E OBRA: INDISSOCIÁVEIS OU INDEPENDENTES? · Quanto mais distante o artista ou pensador estiver de prega-ções, mais fácil será relevar seus pecados. Quanto mais próximo

BALCÃO DE

REDAÇÃOENSINO MÉDIO

SÉRIE

www.poliedroeducacao.com.br

a

1

ORIENTAÇÕES PARA O ALUNO

A coletânea a seguir propõe reexões sobre um dilema que

há tempos permeia o universo artístico: é possível separar o artista

de sua obra? Esse questionamento costuma provocar discussões

quando um artista – seja ele escritor, músico, cineasta etc. – se en-

volve em alguma polêmica ou tem comportamentos considerados

inadequados. Nesses casos, é comum que sua obra, ainda que

seja renomada e bem-conceituada, sofra boicotes e protestos. Si-

tuações como essas são cada vez mais frequentes na atualidade, já

que os aspectos da vida pessoal de artistas são facilmente encon-

trados na internet e acompanhados de perto pelo público. Então,

se uma pessoa não é mais digna de admiração, como continuar

admirando sua arte? A obra perde valor quando seu autor tem

atitudes condenáveis?

Conra os textos de apoio para realizar a atividade proposta.

TEXTO 1

Até que ponto é possível separar a

arte do artista?

Um homem entra em um restaurante e pede oito alcachofras –

quatro fritas no óleo e quatro na manteiga. Quando o garçom traz a

refeição, o homem pergunta quais são as fritas em óleo e quais são

as fritas em manteiga. O garçom responde que é necessário cheirá-

-las para saber a diferença. Inconformado com a resposta, o homem

atira o prato no rosto do garçom, ferindo a face esquerda e o olho

do pobre coitado.

Parece até uma anedota pouco inspirada, mas é uma história

real ocorrida em 1604 e registrada pela polícia de Roma. Não seria

o primeiro delito desse homem, que já carregava má reputação por

se envolver em brigas, perturbar a paz pública, atirar pedras em po-

liciais e senhoras de idade e até mesmo assaltar e apunhalar desafe-

tos. [...] Esse homem criminoso é Caravaggio, um dos pintores mais

inuentes da história e um dos maiores nomes do estilo barroco.

Da técnica de Caravaggio, surgiu o tenebrismo, uma das maiores

revoluções no uso de sombra e luz na pintura. Suas obras estão pre-

sentes nos museus mais importantes e visitados do mundo e seguem

servindo como grande fonte de estudo e inspiração artística.

Quando confrontamos os diferentes campos da vida de

Caravaggio, é impossível não sentir o impacto da dualidade do ar-

tista. Ao mesmo tempo que temos o homem bruto que andava pelas

ruas da Itália procurando confusão, temos o artista sensível e rena-

do, dono de um senso estético único. E Caravaggio não é um caso

isolado. Basta uma rápida olhada na biograa de alguns dos maio-

res artistas de diversos campos para encontrarmos comportamentos

que, hoje em dia ou mesmo à sua época, são condenáveis.

ARTISTA E OBRA: INDISSOCIÁVEIS OU INDEPENDENTES?

CARAVAGGIO, Michelangelo Merisi. Narciso, c. 1599, óleo sobre tela. Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma.

A discussão sobre o ponto de separação entre o artista e sua

arte sempre existiu, mas tomou força no ambiente digital nos últimos

anos. Com a apropriação da internet como ferramenta de debate, a

exposição de falas e atos contraditórios se tornou um caminho para

repensar a relação entre o artista e sua obra. Hoje, com manei-

ras mais ecazes de fazer nossas opiniões serem ouvidas, podemos

questionar o que consumimos. Podemos apoiar (ou refutar) pautas.

Movimentos importantes aconteceram interna e externamente na in-

dústria do entretenimento, retomando discussões pertinentes [...], ao

mesmo tempo que se busca um desmonte de estruturas de poder

odiosas nos espaços de produção artística. [...] São mudanças ne-

cessárias, que devem continuar existindo para construir ambientes

justos e saudáveis de criação.

Mas, após revelações indigestas, como lidar com a arte de al-

guém que, em sua vida privada, não possui mais o mesmo impacto

positivo de sua trajetória artística? [...] A arte de alguém que rompeu

com as normas de nossa sociedade pode continuar sendo consumida?

[...] Não acredito que exista uma resposta universal para o di-

lema. A mim parece que, além de qualquer tipo de racionalização

e reexão, no nal prevalecerá o sentimento daquele que aprecia

a obra artística. [...] Somos feitos das obras de arte que passam

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por nossa trajetória de vida. E são elas que nos acompanham e

constroem nosso referente, inuenciando a maneira como enxerga-

remos as próximas obras de arte com que entraremos em contato.

Portanto, abandonar a obra é também abandonar parte signicativa

de sua formação artística – se é que é possível fazer isso de forma in-

tencional. [...] Uma vez consumida, a obra estará sempre com você,

conscientemente ou não. [...]CHAGAS, Rodolfo. “Até que ponto é possível separar a arte do artista?”.

Multverso Geek, 15 mar. 2019. Disponível em: <https://multversogeek.

com.br/ate-que-ponto-e-possivel-separar-a-arte-do-artista/>.

Acesso em: 7 out. 2020.

TEXTO 2

O gênio e a perversidade: é possível

separar a obra dos erros do autor?

O ano de 1987 foi devastador para as reputações de Martin

Heidegger e Paul de Man. O livro Heidegger e o nazismo, de

Victor Farias, mostrou a profunda ligação do lósofo alemão, um

dos mais inuentes do século XX, com o movimento sanguinário de

Adolf Hitler, ao passo que uma coletânea de artigos de jornal escri-

tos durante a Segunda Guerra desnudou a maneira como Paul de

Man, uma estrela global dos estudos literários, havia destilado ve-

neno antissemita durante a Segunda Guerra, em sua Bélgica natal.

[...] “Temos o direito de esperar decência comum até mesmo de um

poeta”, disse certa vez o escritor George Orwell. De Man não era

poeta – e muito menos decente. [...] Mas é possível dizer que seus

malfeitos invalidam o que ele escreveu? [...]

Que as pessoas são capazes de julgar o mérito estético ou

intelectual de uma obra de maneira autônoma é um fato. Como

escreveu a professora-assistente de Psicologia da Universidade de

Cornell, Peggy Drexler, [...] “quando assistimos a um lme ou lemos

um livro, estamos procurando entretenimento e cultura, não estamos

apoiando a conduta como ser humano de quem realizou a obra”.

De fato, a história da arte está repleta de canalhas que têm seus

crimes relevados porque o gênio de seus trabalhos se impõe.

Quando a excelência de um trabalho não é universalmente

reconhecida, contudo, traços da personalidade do autor podem in-

terferir na avaliação que se faz dele. Um estudo de psicologia con-

duzido em 2010 e relatado pelo crítico inglês Brian Sherwin ilustra

esse fato. Segundo Sherwin, um grupo de estudantes foi apresenta-

do a dois conjuntos de telas, sem que soubessem quem eram os au-

tores. O primeiro grupo de telas havia sido pintado por Adolf Hitler

em sua juventude artística. O segundo, pelo ex-Beatle John Lennon.

Os alunos observaram as telas de Hitler, uma série de paisagens, e

elogiaram os aspectos arquitetônicos reproduzidos nas obras. Já as

telas de Lennon não zeram tanto sucesso entre os estudantes, que

desdenharam de sua técnica infantil. Uma semana depois, a auto-

ria das telas foi revelada e os alunos foram confrontados com elas

novamente. Dessa vez, vários atacaram a mediocridade das pintu-

ras de Hitler e encontraram motivos para elogiar os desenhos de

Lennon. “O exercício revelou como a personalidade e as ações de

um indivíduo podem inuenciar o olhar sobre a sua arte”, disse

Sherwin, que citou ainda o caso de apreciadores da pintora mexi-

cana Frida Kahlo que admitiram ter gostado ainda mais dos seus

quadros ao conhecer detalhes da sua vida trágica.

Há outro elemento que pode inuir no julgamento: o fato de

o artista ou pensador ter o papel de “líder espiritual”. Para quem

transforma intelectuais e pensadores em gurus, a descoberta de seus

malfeitos pode ser um choque considerável. Nilde Parada Franch,

presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, ar-

ma que “o ser humano precisa idealizar pessoas e situações. Isso é

necessário para sua própria sobrevivência psíquica”. Segundo ela,

carecemos de ídolos e precisamos acreditar que há seres perfeitos,

que vivem de modo esplêndido. Quando nossa própria percepção

aponta para alguma falha ou quando informações denegrindo nos-

sos ídolos são veiculadas, “a nossa tendência é negar, é não levar

esse conhecimento do plano racional para o plano das emoções em

que poderia surgir a indignação ou o repúdio”.

Quanto mais distante o artista ou pensador estiver de prega-

ções, mais fácil será relevar seus pecados. Quanto mais próximo

do doutrinamento, mais relevante mostrar seus defeitos. Mas, ainda

assim, o objetivo não deveria ser tirar de circulação obras tidas como

injustas, cruéis, implícita ou explicitamente “degeneradas” (para

usar a palavra que os nazistas aplicaram a tantos grandes pintores

perseguidos por sua máquina política). Depois de apresentar a obra

do antissemita Richard Wagner em Israel, o maestro judeu Daniel

Barenboim armou à Veja, em 2005: “Nos dias de hoje, Wagner

iria para a cadeia por causa de seus escritos antissemitas, e existe

uma ligação horrível entre a música do compositor e a morte de mi-

lhões de judeus. Mas não acredito em censura. Richard Wagner traz

péssimas lembranças a você? Tudo bem, que em casa e não ouça.

Mas por que um morador de Tel-Aviv, que não tem nada a ver com

o holocausto, deve ser proibido de ouvir essas composições?” [...].

STRUCK, Jean-Philip; NORT, Diego Braga. “O gênio e a perversidade:

é possível separar a obra dos erros do autor?”. Veja, 30 mar. 2014.

Disponível em: <https://veja.abril.com.br/mundo/o-genio-e-a-

perversidade-e-possivel-separar-a-obra-dos-erros-do-autor/>.

Acesso em: 7 out. 2020.

PROPOSTA DE REDAÇÃO

Após a leitura da coletânea e considerando seu repertório pré-

vio, redija uma dissertação argumentativa sobre o tema Artista e

obra: indissociáveis ou independentes?. Delimite um ponto de

vista e procure sustentá-lo por meio de exemplos e argumentos con-

sistentes, atentando para a coesão e a coerência textuais. Lembre-se

de que a coletânea serve apenas para nortear suas ideias, portanto

evite copiar ou parafrasear trechos dela. Respeite a norma-padrão

da língua portuguesa, dê um título ao seu texto e escreva no mínimo

25 e no máximo 30 linhas.

Boa produção!

Professora Andressa Tiossi

Orientações para o professorPara além da conhecida discussão sobre a separação de artista e

obra, essa proposta aborda uma prática que tem se tornado comum

na atualidade: o “cancelamento” de personalidades que expõem

opiniões ou apresentam comportamentos considerados inadequa-

dos. No entanto, ao mesmo tempo que se questiona o “tribunal da

internet”, no qual todos são facilmente julgados, é importante reetir