artigohume-animais.pdf

25
Hume e a razão dos animais Silvio Seno Chibeni Departamento de Filosofia e Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, Unicamp. www.unicamp.br/~chibeni - [email protected] Resumo: Este trabalho examina duas breves e instigantes seções do Treatise of Human Nature e da Enquiry concerning Human Understanding, intituladas, ambas, “Da razão dos animais”. Nelas, Hume compara as faculdades cognitivas dos seres humanos e dos animais, com o objetivo de “testar” sua teoria epistemológica acerca da causalidade, desenvolvida nas seções precedentes dessas obras. Tal “teste” torna explícita a aproximação que a teoria humeana efetivamente promove dos homens relativamente aos animais, ao mostrar que as inferências que ambos fazem quanto a toda e qualquer questão de fato não observada – inferências essas essenciais não apenas para a vida comum, mas também para as ciências – não dependem da razão, tal qual tradicionalmente entendida, mas de “uma espécie de instinto ou poder mecânico”.

Upload: carol-dalmeida

Post on 18-Aug-2015

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Hume e a razo dos animais Silvio Seno Chibeni Departamento de Filosofia e Centro de Lgica, Epistemologia e Histria da Cincia, Unicamp. www.unicamp.br/~chibeni - [email protected]

Resumo: EstetrabalhoexaminaduasbreveseinstigantesseesdoTreatiseof HumanNatureedaEnquiryconcerningHumanUnderstanding, intituladas,ambas,Darazodosanimais.Nelas,Humecomparaas faculdades cognitivas dos seres humanos e dos animais, com o objetivo de testar sua teoria epistemolgica acerca da causalidade, desenvolvida nas sees precedentes dessas obras. Tal teste torna explcita a aproximao queateoriahumeanaefetivamentepromovedoshomensrelativamente aos animais, ao mostrar que as inferncias que ambos fazem quanto a toda equalquerquestodefatonoobservadainfernciasessasessenciais noapenasparaavidacomum,mastambmparaascinciasno dependemdarazo,talqualtradicionalmenteentendida,masdeuma espcie de instinto ou poder mecnico. 2 Next to the ridicule of denying an evident truth, is that of taking much pains to defend it; and no truth appears to me more evident, than that beasts are endowd with thought and reason as well as men. The arguments are in this case so obvious, that they never escape the most stupid and ignorant.David Hume (T 1.3.16.1) 1 By what immediate cause they are inclined,In many acts, tis hard I own to find. I see in others, or I think I see, That strict their principles and ours agree. Evil, like us, they shun, and covet good, Abhor the poison, and receive the food: Like us they love or hate; like us they know To joy the friend, or grapple with the foe,With seeming thought their action they intend, And use the means proportiond to the end. Then vainly the philosopher avers That reason guides our deed and instinct theirs. How can we justly different causes frame, When the effects entirely are the same? Instinct and reason how can we divide? Tis the fools ignorance and the pedants pride. Matthew Prior (Solomon on the Vanity of the World, Book I.) 1. Introduo O segundo mote deste artigo so versos do poeta ingls Matthew Prior (1664-1721). A parte final do trecho aqui transcrito citada, em traduo, porVoltairenaseoIIIdoDicionnairephilosophique,intituladaDe lmedesbtes.Demodotpico,nessetextoVoltaireenvolve-senuma polmicavivaemseusdias;etambmcomodecostumeinspira-sena 1AdotareiaquianotaodasediesdasobrasdeHumecitadasnalistade refernciasbibliogrficasdestetexto,segundoaqualTx.y.w.zdenotaA Treatise of Human Nature, livro x, parte y, captulo w, pargrafo z; e EHU r.t denotaAnEnquiryconcerningHumanUndertanding,captulor,pargrafot. Em algumas citaesmais extensas dessas obras a serem feitas neste trabalho utilizarei,compequenasadaptaes,astraduesbrasileirasindicadasnas Referncias bibliogrficas. 3 epistemologiadeLockeparadelinearsuaprpriaposio.2Nestecaso,a posio envolve dois elementos: o ceticismo quanto questo metafsica da essnciadaalma,eaabordagemfenomenolgicadaalma:omtodo histricodiretodeLocke,quesimplesmenteinvestigaasfaculdadesde discernimento do homem, enquanto operam sobre os objetos que lhe dizem respeito (Locke, Essay, I i 2). Embora, tanto quanto se possa julgar a partir deseusescritos,Lockenuncatenhafeitoumainvestigaodetalhadada alma dos animais, ele abordou o tema em diversos pargrafos do livro II do Ensaio.Essespargrafosaparecemsemprefechandooestudodealguma faculdadecognitivadohomem.Assim,porexemplo,nofinaldocaptulo sobre a memria (Of retention, Essay, II x) h um pargrafo cujo ttulo Bruteshavememory(IIx10).Nocaptuloseguinte,sobreo discernimento e outras operaes da mente, h pargrafos especficos em queLockeargumentaqueosanimaiscomparamideias(IIxi5)e compemideias(IIxi7),embora,presumivelmente,sofaamem casosbemsimplesedeformaumpoucodiferentedoqueofazemos. Quanto a outra importante faculdade, a de abstrair, ou seja, usar smbolos pararepresentarclassesdeideias,enoideiasindividuais,Locke reconhece queosanimaisnoa possuem(IIxi10).Maslogo emseguida reafirmasuatesegeraldequeemborahomenseanimaisclaramente difiram quanto ao grau em que exibem faculdades cognitivas, estes ltimos nosomerasmquinas...(comoalgunspretendem),visto 2 Pereira et Descartes soutinrent que Dieu avait donn tous les intruments de la vie etde la sensation aux animaux, afin quilsneussent ni sensation,ni vieproprementdite.Maisjenesaisquelspretendusphilosophes,pour rpondrelachimredeDescartes,sejetrentdanslachimreoppose;ils donnrent libralement un esprit pur aux crapauds et aux insectes: / In vitium ducit culpae fuga (Hor., de Art. poet.) / Entre ces deux folies, ... on imagina unmilieu;cestlinstinct:etquest-cequelinstinct?maisquandvous laffirmerez,jevousdiraiavecPriordanssonpomesurlesvanintsdu monde: . 4 evidenciarem,saciedade,quetmsentidos,ideiase,emcertoscasos, raciocinam (II xi 11).3 Comotodossabem,amaisfamosadefesadatesedequeosanimais somquinasdesprovidasdetodotipodevidamentalideias, sentimentos, desejos, conhecimento, razo, etc. e portanto desprovidas de alma,foifeitaporDescartes.4Masaeruditaanlisedoassunto empreendidaporPierreBaylenoseuDicionnairehistoriqueetcritique mostra que, na verdade, antes de Descartes a tese foi sustentada, em forma igualmente radical, pelo mdico espanhol Gomezius Pereira, no fim do sc. XVI.5Poucoimporta:quemlevouafamafoiDescartes,eopesodesua autoridade,aliadoaumimportantefatorasermencionadologoadiante, tornou a tese amplamente popular nos crculos intelectuais por dois sculos oumais.Diantedisso,depoucoadiantaramasbreves,pormincisivas, crticasdeLockeesuapropagandafeitaporVoltaire,comotambmno adiantariaaextensa,detalhadaebemfundamentadadefesadateseoposta feita por Hume, como veremos a partir da prxima seo deste artigo.6

3 No livro IV, para exemplificar determinado ponto de sua teoria epistemolgica, Lockebrindaoleitorcomestaobservao,cujointeresenoseresumesua finaironia:Thedifferenceisexceedinggreatbetweensomemenandsome animals:butifwewillcomparetheunderstandingandabilitiesofsomemen andsomebrutes,weshallfindsolittledifference,thatitwillbehardtosay, that that of the man is either clearer or larger. (Essay, IV xvi 12.) 4 Ver, por exemplo, o Discours de la mthode, 5eme partie: Et ceci ne tmoigne passeulementquelesbtesontmoinsderaisonqueleshommes,mais qu'elles n'en ont point du tout. 5Bayle,Dicionnairehistoriqueetcritique,verbetePereira.Voltairetambm aludeaesseprecursordeDescartes,quantotesedosanimais-mquinas,na referida seo III do seu Dicionnaire philosophique. 6 Como curiosidade, vale notar que, em seu exame do assunto, Bayle descobriu, nosprimrdiosdamodernidade,precursoresdavisosegundoaqualos animaisso,sim,providosderazo:umdelesfoiJermeRorarius(1485-1566),nnciodeClementeVIInacortedeFerdinando,reidaHungria. Rorariusnosdefendiaqueosanimaispossuemrazo,masiamaislonge, mantendoqueelesraciocinammelhordoqueoshomens.VerBayle, Dicionnaire historique et critique, verbete Rorarius. Neste verbete e no j 5 Ofatorquecontribuiudecisivamenteparaaaceitaoquase generalizada da tese cartesiana, ou pelo menos de sua verso mais fraca, de queapenasohomemcapazderaciocinar,foisuaimbricaocomum conjuntodeposiesmetafsicas,teolgicaseticasqueconfiguravamo panorama da filosofia da poca. Na verdade, tais posies comearam a se delinearmuitoantes;massuapresena,emversesvariadas,emquase todososprincipaissistemasfilosficosdoinciodoperodomodernofez com que se entrincheirassem filosoficamente de tal forma, que as tentativas dequestionamentonotiveramsucesso,mesmotendopartido,como estamosvendo,dealgumasdasmelhoresmentesfilosficasdetodosos tempos. Mas do que se trata? Uma frmula simples e eloqente de dar nome coisafoipropostaporEdwardCraigemseulivrode1987,TheMindof GodandtheWorksofMan.ApartirdaanlisedasposiesdeGalileo, Descartes,Spinoza,Leibniz,MalebrancheeBerkeley,almdeoutros nomes de menor expresso ou de pocas anteriores, Craig argumentou que todoscompartilhavamaquiloquedenominoudedoutrinadaImagemde Deus:ohomem,esomenteele,foicriadoimagemesemelhanade Deus.Evidentemente,Craigseapropriaaquideumaconhecidaexpresso bblica;procuroumostrar,porm,queessadoutrinateolgicafoicomo vriasoutras,alisabsorvidapelocorpusfilosficodapoca,emcujo seio ganhou autonomia, visto que sua defesa no dependia mais, agora, de supostasfontesdeverdaderevelada.Quersejapormeiodoprojetode naturalizaodareligio,comumpoca,querpeloreforoindiretoque recebiadaconfianaentoreinantenospoderesnaturaisdohomemem descobriromundonatural,adoutrinadaImagemdeDeus,emsuas mltiplasvariantes,sefirmoudemodoinequvoconamentalidade mencionadoPereirahrelatosdetalhadosdecomoaquestofoitratada na Idade Mdia e na Antiguidade. 6 filosficadosculoXVIIeinciodoseguinte,independentementede qualquer vinculao com o pensamento religioso ortodoxo. Tal qual explicitada por Craig, a doutrina da Imagem de Deus envolve diversosaspectosdarelaohomem-Deus,oudacomparaodohomem comDeus.OquemaisinteressaaCraigemseulivro,etambmamim nestetrabalho,oaspectoepistemolgico,queelechamoudeIdealdo Insight(InsightIdeal):ohomemseassemelhaaDeusemsuas capacidadescognitivas,namedidaemquepossuiriaacessoinfalvel verdadeem,pelomenos,doismbitosfundamentais:oconhecimento imediatodeseumundomental(contrapartehumanadoconhecimento imediatodeDeusdassubstnciascriadas)eoconhecimentoracional,ou seja,obtidopormeiodaoperaodarazo,cujoparadigmasoas matemticas. Quanto a este ltimo mbito, que o que ser analisado aqui, adiferenaentreohomemeDeusseriaapenasdegrau:esteltimo raciocinadeformainstantnea,enquantoqueohomemprecisadetempo paramontarsuasdemonstraes;Deus,masnoohomem,capazde raciocinarapartirdeumconjuntoinfinitodedados,deconduziras demonstraes em cadeias infinitamente longas, etc. 2. A cincia da natureza humana Evidentemente, Hume no construiu sua filosofia com o propsito de criticaratesedosanimais-mquinas.Masplausvelmanterqueofez tendocomoumdosalvosprincipaisjustamenteatesemaisgeralda ImagemdeDeus.Tambmclaroque,emboraatenhaatacadopor diversosflancos,inclusiveoteolgico,seusargumentosnoforam montadosapartirdeconsideraesteolgicas.Esteseramdenatureza principalmenteepistemolgicaemoral.AabordagemdeHumeera,como elemesmosalientoujnosub-ttulodesuaprincipalobra,oTratadoda 7 Natureza Humana, determinada pela convico de que questes filosficas, especialmenteasdessasduasreas,deveriamsertratadassobuma perspectivaanlogadafilosofianatural.Props,assim,queafilosofia fosseentendidacomoumacinciadanaturezahumana.Nessacincia dohomemficavamexcludasquaisquer supostasfontes deconhecimento porrevelao, bemcomoquaisquerconcepesmetafsicas a priorisobre sua essncia.Este ltimo aspecto da abordagem humeana tem semelhana evidente commtodohistricodiretodeLocke,aquejfizreferncia anteriormente.Humedeixaclaroquetambmelenosepropea investigaraalmaquantosuanaturezantima,limitando-seaoestudode suasmanifestaesempricas.Parasalientaresseponto,Humelanamo dacomparaodesuacinciadohomemcomdoisramosigualmente fenomenolgicos da cincia, a anatomia e a geografia.7 Caberia ao cientista danaturezahumanarestringir-se,oupelomenospriorizar epistemologicamente,adelineaodasdiversaspartesepoderesda mente (EHU 1.13). Hume no tenta, ao contrrio de Locke, fazer esse inventrio de forma sistemticaeexaustivanumnicotexto.Identificaediscuteasdiversas faculdadesdamenteaufuretmesure,aoabordarasdiversasquestes epistemolgicas.E,dentreelas,aqueconduzaonossotemaaquesto centraldesuateoriaepistemolgica:acausalidade.NoTratado,essa questo ocupa toda a parte 3 do livro 1. Hume comea distinguindo, como Locke,anoodeconhecimentodadecrena,ouprobabilidade. Conhecimento,nessesentidoestrito,aquiloqueresultadecertas operaesaprioridamentesobreasideiasquetem.Taisoperaesa 7Paraacomparaocomageografia,verAbstract2eT1.4.6.23;paraa anatomia,verEHU1.13e4.4.Paraumestudodessascomparaes,ver Chibeni 2007. 8 priorisoasreconhecidaspelatradiofilosfica:intuioe demonstrao.Pelaprimeira,amenteperceberelaesentreideiasde forma imediata; pela segunda, a relao s percebida pelo encadeamento de diversos passos intuitivos, que formam uma demonstrao.ParaLocke,amontagemdedemonstraesera,porexcelncia,a tarefadarazo;masessafaculdadeseriatambmaresponsvelpela estruturaoderaciocniosprovveis,emqueaconexoentreasideias intermedirias no assegurada por passos intuitivos.justamenteaquiqueHumedivergedeLockedeformamuito significativa(verOwen1994).ParaHume,afaculdadedefazer demonstraeseadeestabelecerprobabilidadessoessencialmente distintas.Aprimeira,queeleconcordaemchamarderazo,lidaapenas comrelaesdeideias.Pormeiodelaamenteobtmcerteza,ou conhecimento, no sentido estrito do termo. Seguindo tambm o plano geral deLocke,Humeinvestigadetalhadamenteaextensodesse conhecimento,chegandoconclusodequeele,defato,aindamais limitadodoqueainvestigaodeLockehaviaindicado.Ficamforado mbito do conhecimento vrios dos tpicos mais fundamentais para a vida comumeparaacincia:estritamente,nosabemosseasregularidades naturaisobservadascontinuarovalendoparaoutroscasossemelhantes; no sabemos o que conecta as causas e efeitos, se que h alguma ligao realentreeles;nosabemossehcorposfsicos,ouseja,objetos ontologicamente autnomos relativamente nossa mente; e, quanto a esta, igualmentenosabemosoqueaconstitui,paraalmdofluxode percepes,nemtampoucopodemossabersehalgumaentidade metafsicaquegarantanossaidentidadepessoal;nosabemosseDeus existe; etc. Nopodemos,porm,prescindirdetudoisso(compossvelexceo doltimoitem),semquenossavidaprticaenossacinciasejam 9 destrudas.AfrmulaencontradaporLockeeHumeparaacomodaressa tensofoitransferirtodosessesitensparaoutraesferacognitiva:ada crena,ouprobabilidade.Comojmencionei,humadivergnciasria entre Locke e Hume acerca da abordagem desse domnio. Locke mantinha queamesmarazoqueestabelecedemonstraespoderiatambm estabelecer bases para a crena, determinando os graus do assentimento. Humediscordouepropsumasoluotoinovadoraquenopdeser percebidacorretamenteporseusleitoresporcercadedoissculos.Eles pensaramque,nessepasso,Humeefetivamenteabandonaraotrabalho filosfico, dedicando-se, antes, ao estudo psicolgico da mente humana.Hoje, depois de um sculo do aparecimento da primeira interpretao alternativadoprojetofilosficodeHume(KempSmith1905,1941), parececlaroqueestaltimaafirmaoumameia-verdade. Inegavelmente,amaiorpartedacontribuiodeHume,almdoreforo dos argumentos cticos de seus predecessores imediatos, , sim, um estudo cientficodamentehumana.MasissonoeravistoporHumecomoo abandonodafilosofia,esimaimplementaodesuapropostaoriginalde umacinciadanaturezahumana,apartirdaqualasquestesfilosficas deveriamserabordadas:noapenasquestesepistemolgicas,mas tambm ticas. E a partir desse ncleo de uma filosofia naturalizada (para aplicarumaexpressocunhadaemnossosdias),Humeprocurouestender seuestudoparaasdemaisreasdainvestigaohumana:ahistria,a economia,apolticaeatmesmo,dentrodecertoslimites,ateologiaea metafsica. 3. Hume e o entendimento humanoFocandoatenoagoranaporodateoriaepistemolgicadeHume quedizrespeitoaoprocessodeformaodecrenas,querosintetizar,em 10 poucas linhas, a primeira e mais significativa de suas implicaes. Trata-se, comojlembrei,doestudodarelaocausal.Essarelaosesingulariza, dentrodateoriahumeana,porque,dentreasrelaesfilosficasqueno envolvemapenasideiasidentidade,relaesdeespaoetempoe causalidade a causalidade a nica que permite que faamos inferncias no mbito das questes de fato.NoinciodoestudodessepontoHumeesclareceanoode raciocnio. Comea sugerindo que todos os tipos de raciocnio no passam deumacomparao,edeumadescobertadasrelaes[...]quedoisou maisobjetosguardamentresi(T1.3.2.2).Maslogonotaqueessa caracterizaodemasiadamentegeral,poisquandoosdoisobjetosesto presentesaossentidostrata-seantesdepercepodoquederaciocnio propriamente dito. Desse modo,no devemos considerar raciocnio nenhuma das observaes que faamos sobre identidade e relaes de tempo e lugar, visto que em nenhuma delas a mente pode ir alm do que est imediatamente presente aos sentidos [...]. somente a causao que produz uma conexo capaz de nos assegurar, a partirdaexistnciaouaodeumobjeto,queumaoutraexistnciaou ao a precedeu ou seguiu. (T 1.3.2.2) Hume conclui, ento, que de todas as relaes filosficas a nica que podeserprolongadaalmdenossossentidos,enosinformaracercade existnciasouobjetosquenovemosousentimosacausao.Esse pontoimportantereaparecenaInvestigao:Todososraciocniossobre questesdefatoparecemfundar-senarelaodecausaeefeito(E4.4), princpio que a justificado apenas com a exposio de alguns exemplos, e no, como no Tratado, por um exame terico geral do assunto, que parte de uma enumerao exaustiva de todas as relaes filosficas.Dessepontoemdiante,oobjetivoprincipaldeHumeestudaresse tipoespecialderaciocnio,deefeitosapartirdecausasouvice-versa 11 (raciocnios que chamarei, por simplicidade, de raciocnios causais). Uma cuidadosa anlise levaHumeadoisresultados,ambos decunhonegativo: 1)osraciocnioscausaisnosoapriori,ouseja,nofuncionampela simplesanlisedasideiasdosobjetosenvolvidosnarelaocausal;e,2) nemmesmo quando amente tem a experincia da conjuno constante de causas e efeitos de um determinado tipo ela pode, a partir disso e das ideias envolvidas, fazer inferncias racionais dessas causas para esses efeitos, ou vice-versa. Nas palavras de Hume: Assim, no apenas nossa razo nos falha na descoberta da conexo ltima entre causas e efeitos, mas mesmo aps a experincia ter-nos informado de suaconjunoconstanteimpossvelnosconvencermos,pelarazo,de quedevemosestenderessaexperinciaparaalmdoscasosparticulares que pudemos observar. Ns supomos, mas nunca conseguimos provar, que deve haver uma semelhana entre os objetos de que tivemos experincia e os que esto alm do alcance de nossas descobertas. (T 1.3.6.11) [M]esmo aps havermos tido a experincia das operaes de causa e efeito [pelaobservaodaconjunoconstantedosfenmenos],nossas conclusesapartirdessaexperincianosefundamemraciocnios,ou qualquer processo do entendimento. (E 4.15) Essaumaconclusodegravesconsequncias,vistoqueas inferncias causais so, como Hume mostrou, a nica forma que temos para preverquestesdefatoou,nalinguagemmaistcnicaqueadotou,para estabelecercrenasnaocorrnciadequestesdefatoqueestoalmdo testemunhopresentedosnossossentidosouaosregistrosdenossa memria (E 4.3).Aocontrriodoqueentenderamseusintrpretesclssicos,porm, Humenoseacomodouaessaposioctica,eenfrentouodesafiode buscarbasesparatoimportantesinferncias.Encontrou-asnumaesfera 12 ignoradaportodasasteoriasepistemolgicasatentopropostas:os mecanismos instintivos da mente humana.Arazojamaispodenosmostraraconexoentredoisobjetos,mesmo comaajudadaexperinciaedaobservaodesuaconjunoconstante emtodososcasospassados.Portanto,quandoamentepassadaideiaou impresso de um objeto ideia de outro objeto, ou seja, crena neste, ela noestsendodeterminadapelarazo,masporcertosprincpiosque associam as ideias desses objetos, produzindo sua unio na imaginao. Se asideiasnofossemmaisunidasnafantasiaqueosobjetosparecemser no entendimento, nunca poderamos realizar uma inferncia das causas aos efeitos,nemdepositarnossacrenaemqualquerquestodefato.(T 1.3.6.12) Logo, a imaginao, uma faculdade at ento no reconhecida como epistemicamenterelevante,quedesempenha,segundoHume,afuno central na formao das crenas causais. Ela alimentada pela experincia daconjunoconstantedecausaseefeitosemcasossimilares,conjuno essa que estabelece um costume ou hbito intelectual: Arazojamaispodenosconvencerdequeaexistnciadeumobjeto qualquer implica a de outro; de modo que, quando passamos da impresso de um ideia de outro, ou crena nele, no estamos sendo determinados pela razo, mas pelo costume ou um princpio de associao. (T 1.3.7.6) E,noentanto,comtodasuaexperincia[daconjunoregularde fenmenos],ela[apessoa]noteradquiridonenhumaideiaou conhecimentodopodersecretopeloqualoprimeiroobjetoproduzo segundo,enonenhumprocessoderaciocnioqueafazrealizaressa inferncia. Ainda assim, ela se sente levada a realiz-la; e, embora viesse a seconvencerdequeoentendimentonotomapartenaoperao,seu pensamentocontinuariaafazeromesmopercurso.Haquialgumoutro princpioqueaestfazendochegaratalconcluso./Esseprincpioo 13 HBITOouCOSTUME.Poissemprequearepetiodealgumatoou operaoparticularesproduzumapropensoarealizarnovamenteesse mesmoatoouoperao,semqueseestejasendoimpelidopornenhum raciocnioouprocessodoentendimento,dizemosinvariavelmenteque essa propenso o efeito do Costume. (E 5.4-5) UmadasprimeirasobservaesqueHumefazsobreessaproposta que a operao da mente que nos leva, a partir do hbito, a crer em certas questes de fato uma espcie de instinto natural, que nenhum raciocnio ou processo do pensamento ou entendimento capaz quer de produzir, quer de evitar (E 5.8). Esse instinto comparado s paixes, por seu carter automtico, e tambm por ser, como elas, essencial vida humana: O costume , ento, o grande guia da vida humana. s esse princpio que tornanossaexperinciatilparans,efaz-nosesperar,nofuturo,uma sequenciadeeventossimilaresaosqueapareceramnopassado.Sema influnciadocostumeseramosinteiramenteignorantesacercadetoda questodefatoalmdasqueestoimediatamentepresentesmemriae aossentidos.Jamaissaberamoscomoadequarmeiosafins,nemcomo empregarnossospoderesnaturaisparaproduzirumefeitoqualquer.Pr-se-iadeimediatoumfimatodaao,bemcomoparteprincipalda especulao. (E 5.6) Apshaverchegadoaessepontocentraldesuateoriasobrea causalidade,Humededica-se,comoseriadeesperar,aodesenvolvimento ulteriordessateoria.Nopossoaquimealongarsobreisso.Voume restringir,parachegarlogoaotemaprincipaldesteartigo,sobservaes deHumesobreascredenciaisepistemolgicasdesuainovadorateoria.A primeira delas diz respeito ao escopo limitado de suas pretenses: No pretendemos ter fornecido, com o emprego dessa palavra [costume], a razoltimadeumatalpropenso;apenasapontamosumprincpio universalmentereconhecidodanaturezahumana,equebemconhecido 14 pelosseusefeitos.Talveznopossamoslevarnossasinvestigaesmais longedoqueisso,nempretenderofereceracausadessacausa,mas tenhamosdenossatisfazercomesseprincpiocomosendooprincpio maisfundamental,quenospossvelidentificar,detodasasconcluses que tiramos da experincia. J uma satisfao suficiente termos chegado at a, sem nos queixarmos da estreiteza de nossas faculdades por no nos levarem mais adiante. (E 5.5) Talmodstiaepistemolgicasereforanasequnciaimediatadesse pargrafo.NoapenasHumedeclinaapretensodedescobrirporquea mente opera desse modo,8 mas reconhece que, na verdade, sua proposta de explicao paraaformapela qualelaoperanas inferncias causais uma hiptese,visto,conformepodemosdepreender,noserinteiramente redutvel experincia: o hbito, enquanto tal, inobservvel.9

Ecertoqueestamospropondoaquiumaproposioque,seno verdadeira,pelomenosmuitointeligvel,aoafirmarmosque,apsa conjunoconstantededoisobjetoscalorechama,porexemplo,ou peso e solidez exclusivamente o costume que nos faz esperar um deles a partir do aparecimento do outro. Essa hiptese parece ser mesmo a nica queexplicaaseguintedificuldade:porqueextramosdemilcasosuma inferncia que no somos capazes de extrair de um nico caso, que deles no difere em nenhum aspecto? A razo incapaz de variar dessa forma; asconclusesqueelaretiradaconsideraodeumnicocrculosoas mesmasqueformariaapsinspecionartodososcrculosdouniverso.(E 5.5; grifo meu) 8 Em Chibeni 2007 procuro mostrar que, na verdade, Hume por vezes se permitiu especular sobre possveis mecanismos inobservveis, de natureza neurolgica, quepoderiamcontribuirparaaexplicaodospadresfenomenolgicosde funcionamentodamente.Passagensinteressantesencontram-se,porexemplo, em T 1.2.5.20, 1.3.8.2 e 1.3.10.7. 9 Esse ponto sutil foi explorado de forma original por Monteiro 1984, cap. 1. 15 ComojlembreinaIntroduo,aabordagemfilosficahumeana prope uma adaptao do mtodo de investigao das cincias naturais ao estudodasquestesrelativascognio,moral,etc.Poisbem:estamos aquidiantedeumpontoemqueoapeloaosprocedimentoscientficosse tornaexplcitoeimportante.Aoqualificardehipteseaexplicaodo modopeloqualasinfernciascausaissofeitas,Humeprocura, coerentemente, avali-la segundo procedimentos de avaliao de hipteses comumente empregados nas cincias naturais.UmadasprimeirasprovidnciasdeHumetornarmaisprecisae completaasuahipteseouteoria,examinandoasespinhosasnoesde crenaedeconexonecessria,oupodercausal(T1.3.7e14,E7).A tarefaseguintefoiinvestigardetalhadamenteassituaesemquecrenas surgem,aparentemente,deoutrascausas,quenoaexperinciada conjunoconstante(T1.3.8,9e13).Depois,Humetratadeencontrar aplicaesdahipteseasituaesemqueosfatoresdesencadeantesda crenanoseapresentamdaformaidealaconjunoperfeitamente regulardecausaseefeitos;issolevaaseesespecficassobre probabilidades,tantonoTratado(T1.3.11e12)comonaInvestigao (E 6). Examina ainda a influncia das crenas em diversas esferas de nossa atuaointelectualeprtica,bemcomosuasimplicaesparaalgumas questesfilosficasclssicas(T1.3.10,E8).Porfim,vmas consideraesquemaisdiretamenteinteressamaopresenteartigo:a extenso da hiptese para a cognio de animais no-humanos (T 1.3.16 e E 9). 4. Hume e a razo dos animais Hume dedica sees especficas ao tema da razo dos animais em suas duasprincipaisobrasepistemolgicas,oTratadodaNaturezaHumana 16 (1739-40) e a Investigao sobre o Entendimento Humano (1748). Ambas essassees levamomesmottulo,Darazo dosanimais,eambastm extenso aproximada de trs pginas. A seo do Tratado vem bem no final daparte3,queversasobreacausalidade(T1.3.16).Aseoda Investigaotambmvemfechandooestudosobrecausalidade,jquase no final do livro (E 9). H algumas diferenas entre ambas, mais de forma do que de contedo. No Tratado, Hume comea com a afirmao de forte tom retrico que serviu de primeiro mote ao presente artigo. Que, como os homens,osanimaissejamdotadosdepensamentoerazoseria,diz Hume,algobvio,snoreconhecidopeloshomensmaisestpidose ignorantes.Masnopargrafoseguinteeleabaixaotom,ecomea argumentarafavordessatese.Adotandoumaposiofenomenolgica, registraagrandesemelhanadasaesdosanimaisedoshomens, quandosetratadeadaptarmeiosparafins.Daconclui,porum raciocnioanalgico(comoreconheceexplicitamentebemnoinciodo textodaInvestigao),quetaisaesdevemprovirdeumacausa semelhante.Essacausaomecanismodaimaginaoenvolvendoa experincia da conjuno constante e o hbito, ou seja, a hiptese proposta por Hume para explicar os raciocnios causais humanos.O resto do texto consiste em uma aplicao dessa hiptese ao caso dos animais. O objetivo principal no , porm, o de explicar o funcionamento damentedosanimais,masodetestarahipteseouteoriasobestudo num caso diferente daquele para o qual ela foi especificamente concebida. Essa,comotodossabem,umaprovidnciatipicamentemuitovalorizada pelos filsofos naturais, na medida em que mostra, se a extenso da teoria for bem sucedida, que essa teoria no pode ser acusada de ser ad hoc. Portanto,quandoapresentamosumahipteseparaexplicarumaoperao mentalcomumaoshomenseaosanimais,devemosaplicaramesma hiptese a ambos. Qualquer hiptese verdadeira sobreviver a esse teste, e 17 arrisco-me a afirmar que nenhuma hiptese falsa jamais resistir a ele. (T 1.3.16.3) Essaaplicaocinciadanaturezahumanadeumrecursode avaliaotericaemprestadodascinciasnaturaisexibe,nestecaso,uma virtudeadicionaldateoria,paraalmdesuacapacidadedeexplicarfatos no levados em conta na formulao da teoria: que, assumindo-se que os animais no tm capacidade de raciocinar demonstrativamente (e esse um pontoimportante,asercomentadologoabaixo),ficaclaroquese,apesar disso, fazem inferncias causais (quase) to bem como ns, tais inferncias independemdenossafaculdaderacional,nosentidoreconhecidopela tradio filosfica. Hume acha aqui, portanto, mais uma arma para atacar a visoaindacomumemseutempo,dequecausaspoderiamser demonstradas de seus efeitos, e vice-versa. Odefeitocomumatodosossistemasapresentadospelosfilsofospara explicarasaesdamentequesupemumpensamentotosutile refinado que no apenas ultrapassa a capacidade dos simples animais, mas inclusive das crianas e pessoas comuns de nossa prpria espcie que, no obstante, so suscetveis das mesmas emoes e afetos que as pessoas demaiorgenialidadeeinteligncia.Talsutilezaumaprovaclarada falsidadedeumsistema,enquantoasimplicidade,aocontrrio,uma prova de sua verdade. (T 1.3.16.3) Vemos aqui que a aproximao efetiva que a teoria de Hume promove dascapacidadescognitivasdoshomensedosanimaissedpela identificao, em ambos os casos, dos mecanismos de inferncia no mbito das questes de fato que so inferncias causais, como Hume argumenta de forma convincente. No h nenhum indcio nos textos de Hume de que eletenhapretendidoqueosanimaispossamfazerinferncias demonstrativas,nombitodasrelaesdeideias.Assim,emboraestas ltimascontinuemdemarcandoumadistinoimportanteentrehomense 18 animaisno-humanos,10aassimilaodeambosnoquedizrespeito provnciamaisamplaerelevantedacogniohumanarepresentou,sem dvida, um passo de grande ousadia intelectual por parte de Hume. A relevncia dessa aproximao levou Hume a efetivamente ampliar a extensodoconceitoderazo,paraquecubranoapenasosraciocnios demonstrativos,mastambmosraciocnioscausaisqueele apropriadamentechamouderaciocniosexperimentais(E9.1); raciocnios morais, ou referentes a questes de fato e existncia (E 4.18); raciocniosprovveis(T1.3.6.6);ou,finalmente,deargumentos provveis(Abstract,14).Essetipoderaciocnionodaaladado entendimento, tal qualclassicamenteconsiderado, nosentidode noser feitoporumafaculdadeintelectual,mobilizvelvoluntariamenteparaa estruturaodeargumentos,emqueexplicitamentepremissassejam apontadascomofundamentoparacertasconcluses.Osraciocnios experimentaisso processosautomticos,que sedo poralguminstinto outendnciamecnica(E5.22),deformaqueacrenanarealidadede causas a partir da observao dos efeitos, ou vice-versa oresultadonecessriodacolocaodamenteemtaiscircunstncias. Trata-se de uma operao da alma que, quando estamosnessa situao, to inevitvel quanto sentir a paixo do amor ao recebermos benefcios, ou a do dio quando nos deparamos com injrias. Todas essas operaes so umaespciedeinstintosnaturaisquenenhumraciocnioouprocessodo pensamento ou entendimento capaz de produzir ou de evitar. (E 5.8) 10Deve-setambmsalientarquemesmoquantoaosraciocnioscausaisHume reconheceu,numalonganotadaseo9daInvestigao,umadistinode grauentrehomensebichos.quejustamenteporteremcapacidades cognitivasmaisamplaseaperfeioadas,oshomenspodemfazerinferncias causaisdeformamaissistemtica,sofisticadaemesmoconsciente,casohaja necessidade (o que, felizmente, no comum).19 Ambasasseessobrearazodosanimaiscontm,emseus pargrafosfinais,consideraesinteressantessobreanoodeinstinto, evocadanessapassagemeemoutrassemelhantes.Humenota,com perspiccia,queasaesdosanimais,comvistasconsecuodecertos objetivos,sodedoistipos.H,primeiro,asaescondicionadaspela experinciadaconjunoregularoufreqentedefenmenos,comoado cachorro que evita o fogo, ou acaricia seu dono. Alm dessas, h as aes incondicionadas, como a do pssaro que constri seu ninho na estao certa echocaosovospelotempocerto.11Humenotaqueasaesdoprimeiro tipo se do a partir de um raciocnio que, em si, no difere, nem se funda em princpios outros, dos que aparecem na natureza humana (T 1.3.16.6) So, como vimos, os raciocnios experimentais ou provveis, envolvendo a relao causal. J o segundo tipo de ao o que ordinariamente atribumos aoinstinto.Almdenotaressadistino,Humetambmobservaque, curiosamente,omesmohbitoqueestenvolvidonosraciocnios experimentaisfazcomqueordinariamentenopercebamosasua influncia,deformaqueasinfernciascausaisquefazemosnonos parecemnadaintrigantes;nemsequersonotadas.Emcontraste,os instintosanimaisproduzemadmirao.Ora,dizHume,ofilsofoque compreendeoquesepassanoprimeirocasodeveconsiderarambosos fenmenos da mente humana e animal como igualmente admirveis: Mas,aseconsiderardevidamenteaquesto,arazo[i.e.afaculdadede raciocinarsobrecausaseefeitos]nosenoummaravilhosoe ininteligvel instinto de nossas almas, que nos conduz atravs de uma certa sequncia de ideias, conferindo-lhes qualidades particulares, em funo de suassituaeserelaesparticulares.verdadequetalinstintosurgeda observaoeexperinciapassada;masquempoderdararazoltima 11OsexemplossodeHume(T1.3.16.5),masno,claro,ostermos condicionadas e incondicionadas. 20 que explique por que deve ser a experincia e a observao passada, e no a natureza por si mesma, o que produz tal efeito? A natureza certamente capazdeproduzirtudoaquiloquepodesurgirdohbito.Ouantes:o hbito no seno um dos princpios da natureza, e extrai toda a sua fora dessa origem. (T 1.3.16.9) Estamosdiantedeumaobservaofilosficatosagaz,quevalea penaveraversodessemesmopontoqueaparecenaInvestigao.Eisa ntegra do ltimo pargrafo da seo 9: Mas embora os animais aprendam muitas partes de seu conhecimento pela observao, h tambm muitas outras que obtm originalmente da mo da natureza,partesqueexcedememmuitoaquotadehabilidadesque possuememocasiesordinriasequepoucoounadaseaperfeioam mesmopelamaislongaprticaeexperincia.Aessascoisas denominamosinstintos,ededicamo-lhesnossaadmiraocomoalgode extraordinrioeinexplicvelportodasasdisquisiesdoentendimento humano.Mastalveznossoassombrocesseoudiminuaseconsiderarmos queoprprioraciocnioexperimental,quecompartilhamoscomos animais e do qual depende toda a conduo da vida, nada mais que uma espcie de instinto, ou poder mecnico, que age em ns sem que disso nos demoscontaeque,emsuasoperaesprincipais,noestdirigidopor quaisquerrelaesoucomparaesdeideias,queformamosobjetos prprios de nossas faculdades intelectuais. Aquilo que ensina um homem a evitarofogouminstinto,aindaquesejauminstintodiferentedaquele que, com tanta exatido, ensina a um pssaro a arte da incubao e toda a economia e organizao de seu ninho. (E 9.6) Comosenota,haquiumganchomuitointeressanteparaos desenvolvimentosfuturosemfilosofiadabiologia.Comoadventoda teoriadaevoluo,eaexplicaodaevoluodasespciespelaseleo natural,maisdeumsculoapsHumehaverescritoisso,podemos entenderadistinoentreosdoistiposdeinstintoaqueelesereferea 21 partirdeumabasebiolgica,oquecertamentenoestemconflitocom sua abordagem para a cincia do homem (e dos animais), antes o contrrio. Hindicaes,paraquemsouberprocurar,dequeemboraessacincia propostaporHumetenhaseufocononvelfenomnico,eleachava possvelfazerumacomplementaodateoria,nosentidodabuscade explicaesmaisfinasparaosfenmenoseleisfenomenolgicas(ver Chibeni2007).Nopresentecaso,essereforoveiodabiologia, principalmente.Combasenela,acreditamoshojequeosdoistiposde instintonaverdadetmumaorigemcomum.12Enquantoquenumcasoa informao emprica que treina a mente obtida e usada pelos organismos individuaisemseuprprioproveitoimediato,nooutroainformaose fixa,porassimdizer,naespcie,aolongodoprocessofilogentico,pelos mecanismos de seleo natural.Mas essa uma outra e conhecida estria e no ser recontada aqui.13 OqueeuquisnotaraadmirvelcapacidadedeHumede,trabalhando numcontextofilosficoextremamenteadverso,haverdadoincio exploraodeumfilofilosficoecientficoquessetornariaalvode atenoeestudomuitomaistarde.Comovimos,suacontribuio, medianteoprojetodeumacinciadanaturezahumana,paraoefetivo rompimento da barreira qualitativa que se imaginava existir entre o homem 12Essepontofoi,claro,lucidamenteexploradoporDarwin.Emsua colaboraoparaopresentevolumedaColeoCLE,C.A.Doriadiscute aspectosimportantesdesseassunto,apartirdaanlisedeumtextopouco conhecidodeDarwinintituladoInstinct,queporlimitaodeespaono figurouemTheOriginofSpecies,sendopublicadoporJohnRomanesem 1883, como anexo de seu livro Mental Evolution of Animals.13Umainteressanteportadeentradaparaaliteraturaatualemfilosofiada biologia o livro recente de G. Caponi (2011). Ver tambm a colaborao do autor para o presente volume da Coleo CLE, que uma detalhada exposio eanlisedaformapelaqualaperspectivabiolgicaatualdesautoriza cabalmenteoantropocentrismoquecaracterizouopensamentocientfico-filosfico combatido por Darwin e, antes dele e por vias diferentes, por Hume (como vimos neste trabalho).22 e os animais no-humanos se deu pela deflao das pretenses dos filsofos em reduzir a mente humana a uma mquina lgica. Segundo eles, o que nos faz pensar seria, recorrendo a uma metfora, uma fagulha da Divindade que existe em ns.14 Na verdade, isso apenas metade do trabalho feito por Hume. A outra metade,quenofoiexaminadanesteartigo,aaproximaodohomem relativamenteaosanimaisquantoaoutraimportanteesferadesuavida mental:ossentimentos,ou,maisespecificamente,aspaixes.Valenotar queolivro2doTratado,dedicadoaoestudodaspaixes,contmduas sees quecumprempapelanlogoseosobrearazo dosanimais,no livro1. Sosees decurta extenso, quefechamduas dastrspartesem queolivrodividido:aparte1,sobreoorgulhoeahumildade,conclui com a seo 12, Of the pride and humility of animals; e a parte 3, sobre o amor e o dio, encerra-se com a seo 12, Of love and hatred of animals. Opropsito de ambasessas sees semelhante,embora no idntico,ao das sees sobre a razo dos animais: verificar se a teoria proposta poderia serestendidaparaoutrosseres,quenooshumanos.Aresposta afirmativa,emambososcasos,emborasedevareconhecerquea argumentao deHume,neles,menosrobustae desenvolvidado queno caso da razo dos animais. VouconcluircomumatraduolivredosversosdePriorcolocados como mote do presente artigo, e que tm, fora o encantador charme potico (irremediavelmenteperdidonestatraduo,claro),aadmirvel capacidadedesintetizar,empouqussimaspalavras,oquedemais 14Emboraparaaspessoascomalgumaculturacientficaefilosficaa inexistnciadeumabarreiraqualitativaentrehomenseanimaisno-humanos sejahojeinquestionvel,opontoestlongedeserefetivamentereconhecido peladapopulaoemgeral,emesmoporseuslderespolticosepelosassim chamadosformadoresdeopinio,comreflexosbastantenocivossobre,por exemplo, a forma pela qual a questo dos direitos dos animais tem sido tratada (ou melhor, ignorada) em nossa sociedade.23 importantecontmateoriahumeanadamentedosanimais(incluindoos animais humanos). Por que causas imediatas so os animais movidosem muitos de seus atos? Difcil dizer, eu confesso. Vejo neles, ou penso ver,princpios concordes com os nossos. Do mal, como ns, fogem; e desejam o bem; Temem o veneno, e aceitam o alimento. Como ns, amam e odeiam; como ns,alegram-se com o amigo, e lutam com o inimigo. Suas aes, com aparente pensamento se motivam, ao adequarem meios aos fins. , pois, em vo que os filsofos proclamam que a razo nos guia as aes, e, as deles, o instinto. Como podemos, com acerto, supor causas diferentes, quando os efeitos so os mesmos? Como separar o instinto e a razo?S com a ignorncia dos tolos e o orgulho dos pedantes.15 Referncias bibliogrficas 1.CAPONI,G.Lasegundaagendadarwiniana:contribucinpreliminar aunahistoriadelprogramaadaptacionista.Mxico:Centrode EstudiosFilosficosySocialesVicenteLombardoToledano,2011. 15GostariadeagradeceraomeucolegaJooQuartimdeMoraesoconvitee incentivo para que elaborasse este artigo, com vistas sua apresentao no III Seminrio sobre materialismo e evolucionismo. Sou igualmente grato a Regina Rebollo e Livia Guimares pela leitura crtica de verses preliminares do texto.24 DisponvelnositedaAssociaoFilosficaScientiaeStudia (www.scientiaestudia.org.br ). 2..Tipologayfilogenadelohumano.TextoapresentadonoIII SeminrioMaterialismoeEvolucionismo:Evoluoeacasona hominizao.Unicamp,24a26 de outubrode2011.Publicado neste mesmo volume da Coleo CLE, p. ..... 3.CHIBENI,S.S.Akindofmentalgeography:RemarksonHumes scienceofhumannature.TextoapresentadonoIIIColquioHume, Grupo Hume, Departamento de Filosofia, UFMG. Belo Horizonte, 28 to31August2007.Submetidoparapublicao;disponvelem www.unicamp.br/~chibeni . 4.CRAIG,Edward.TheMindofGodandtheWorksofMan.Oxford: Clarendon Press, 1987. 5.DORIA, C. A. O acaso no ninho da andorinha. Texto apresentado no III SeminrioMaterialismoeEvolucionismo:Evoluoeacasona hominizao.Unicamp,24a26 de outubrode2011.Publicado neste mesmo volume da Coleo CLE, p. ...... 6.HUME, D. A Treatise of Human Nature. D. F. Norton and M. J. Norton (eds.), Oxford: Oxford University Press, 2000.7..TratadodaNaturezaHumana.Trad.DborahDanowski.So Paulo, Edunesp, 2000. 8.. An Enquiry concerning Human Understanding. T. L. Beauchamp (ed.), Oxford: Oxford University Press, 1999.9.. Investigao sobre o Entendimento Humano. Trad. Jos Oscar de A. Marques. So Paulo, Edunesp, 1999. 10. LOCKE, J. An Essay concerning Human Understanding. P. H. Nidditch (ed.) Oxford, Clarendon Press, 1975. 11. MONTEIRO, J. P. Hume e a epistemologia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1984. 25 12. OWEN,D.Humesdoubtsaboutprobablereasoning:wasLockethe target? In: Hume and Humes Connexions, Stewart, M. A. & Wright, J. P. (eds.). University Park, The Pennsylvania State University Press, 1994. Pp. 140-159. 13. . Humes Reason. Oxford, Oxford University Press, 1999. 14. PRIOR,M.SolomonontheVanityoftheWorld,APoem.InThree Books. - Knowledge. Book I. In: www.poemhunter.com. 15. VOLTAIRE,DicionnairePhilosophique,.Versoeletrnicaintegral disponvelemhttp://www.artistasalfaix.com/doc/Voltaire%20-%20Dictionnaire%20philosophique.pdf.