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Subconsumo ou sobreacumulação? Debate teórico e político para a análise da crise atual 91 Subconsumo ou sobreacumulação? Debate teórico e político para a análise da crise atual GUSTAVO M. DE C. MELLO * Introdução É consenso entre os marxistas que, apesar dos imensos danos que impingiram à população trabalhadora dos países afetados e dos custos que acarretaram, as crises que pulularam pelo mundo nas décadas de 1980 e 1990 constituíam parte estruturante da atual dinâmica da acumulação de capital. Além do mais, longe de ameaçarem a reprodução sistêmica, tais crises se revelaram oportunidades estra- tégicas para a concentração e centralização de capital e para aferição de lucros especulativos por grandes conglomerados financeiros; por meio delas se impôs em escala mundial o “ambiente” propício à reafirmação do mando norte-americano. Entretanto, por sua magnitude, violência e amplitude, e pela heterogeneidade que caracteriza o campo marxista, o significado da mais recente crise econômica está longe de ser interpretado de modo consensual. Neste artigo analisaremos brevemente uma abordagem marxista que talvez seja dominante em língua inglesa. Alguns de seus principais expoentes se reúnem em torno da revista marxista Monthly Review, tendo como principal referência teórica a obra de Paul Sweezy e de Paul Baran. Porém, a influência dessa leitura dentre os marxistas extrapola em muito tal círculo. Grosso modo, trata-se da interpretação da mais recente crise econômica mun- dial como uma expressão da tendência estagnante inerente ao desenvolvimento do “capital financeiro monopolista”. Sem condições de investir seus excedentes, que * Economista e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: gusmcmello@ usp.br. Miolo_Rev_Critica_Marxista-37_(GRAFICA).indd 91 Miolo_Rev_Critica_Marxista-37_(GRAFICA).indd 91 29/10/2013 17:13:10 29/10/2013 17:13:10

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  • Subconsumo ou sobreacumulao? Debate terico e poltico para a anlise da crise atual 91

    Subconsumo ou sobreacumulao? Debate terico e poltico para a anlise da crise atualGUSTAVO M. DE C. MELLO *

    Introduo consenso entre os marxistas que, apesar dos imensos danos que impingiram

    populao trabalhadora dos pases afetados e dos custos que acarretaram, as crises que pulularam pelo mundo nas dcadas de 1980 e 1990 constituam parte estruturante da atual dinmica da acumulao de capital. Alm do mais, longe de ameaarem a reproduo sistmica, tais crises se revelaram oportunidades estra-tgicas para a concentrao e centralizao de capital e para aferio de lucros especulativos por grandes conglomerados financeiros; por meio delas se imps em escala mundial o ambiente propcio reafirmao do mando norte-americano. Entretanto, por sua magnitude, violncia e amplitude, e pela heterogeneidade que caracteriza o campo marxista, o significado da mais recente crise econmica est longe de ser interpretado de modo consensual.

    Neste artigo analisaremos brevemente uma abordagem marxista que talvez seja dominante em lngua inglesa. Alguns de seus principais expoentes se renem em torno da revista marxista Monthly Review, tendo como principal referncia terica a obra de Paul Sweezy e de Paul Baran. Porm, a influncia dessa leitura dentre os marxistas extrapola em muito tal crculo.

    Grosso modo, trata-se da interpretao da mais recente crise econmica mun-dial como uma expresso da tendncia estagnante inerente ao desenvolvimento do capital financeiro monopolista. Sem condies de investir seus excedentes, que

    * Economista e doutor em Sociologia pela Universidade de So Paulo (USP). E-mail: [email protected].

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    se avolumam, e sem pudores em empregar seu crescente poderio em detrimento dos trabalhadores e dos capitalistas no monopolistas o que se articula ao quadro de represso salarial que teria sido verificado em mbito mundial, sob a gide do neoliberalismo , a constrio da demanda efetiva assim produzida teria sido contraposta por uma vigorosa expanso do crdito e do endividamento familiar e empresarial, que por sua vez se relacionaria ao desenvolvimento explosivo dos mercados financeiros e produo de imensas bolhas financeiras, como a imobiliria, que explodiu em 2008. Logo, crescente monopolizao do capital, com seus efeitos estagnantes, ter-se-ia somado a tendncia financeirizao da acumulao, agravando a instabilidade econmica e proliferando as crises.

    Cabe nos determos um pouco na anlise crtica dessa tese, atentando para suas razes tericas imediatas. Depois disso, sem buscar elev-la condio de causa explicativa nica ou ltima das crises, sustentaremos que a anlise da trajetria da taxa de lucro associada ao ritmo da acumulao de capital fundamental para se compreender a mais recente crise econmica mundial. Como resultado desse percurso, salientaremos os limites das respostas reformistas crise e os perigos que elas acarretam.

    Uma leitura subconsumista da criseEm Monopoly Capital, como indica o ttulo, e se valendo de anlises de-

    senvolvidas por vertentes da teoria econmica convencional, Baran e Sweezy propugnavam que o capitalismo havia adentrado sua fase monopolista, na qual as grandes corporaes adquiriram poder de definir seus preos de mercado, ou melhor, de acordo com seu grau de monoplio, essas empresas seriam capazes de adicionar um markup ao preo de custo de suas mercadorias e manipul-lo no sentido de sufocar os concorrentes, e de transferir os custos mais elevados do trabalho sob a forma de preos mais elevados (Baran; Sweezy, 1968, p.71). Assim, tendo sido em grande medida suprimida a concorrncia de preos em funo da emergncia das grandes corporaes monopolistas, a teoria geral de preos apropriada para uma economia dominada por tais corporaes a teoria tradicional de preos de monoplio da economia clssica e neoclssica (Baran; Sweezy, 1968, p.58-59).

    Segundo os autores, sob o domnio do capital monopolista, tornou-se determi-nante a extrao de lucros na esfera da circulao, seja de lucros por deduo, ao pagar salrios abaixo do valor da fora de trabalho, ou de lucros por alienao, pela imposio de preos monopolistas em detrimento dos trabalhadores, e tam-bm do capital no monopolista. De modo geral, no mesmo sentido, o poder do capital sobre o trabalho teria se elevado, o que redundaria em crescentes taxas de mais-valia, ou seja, em maior explorao dos trabalhadores. Por outro lado, seriam constitudas distintas taxas mdias de lucro, tanto mais elevadas quanto maior a referida capacidade monopolista, conduzindo a uma distribuio dos lucros em favor das grandes corporaes.

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    Ademais, haveria uma tendncia generalizada queda daquilo que os key-nesianos designam por propenso marginal a consumir, j que diminuiria a participao dos salrios no rendimento total, e que o consumo dos capitalistas no acompanharia o crescimento de seu rendimento. Outra importante tendncia seria a da diminuio dos estmulos para a realizao de novos investimentos e inovaes tecnolgicas e organizativas (Baran; Sweezy, 1968, p.95-97), em decorrncia do incremento da capacidade produtiva em relao demanda efetiva (o que impli-caria em crescente capacidade ociosa), e do interesse dos grandes conglomerados em refrear a tendncia queda das taxas de lucro, que eliminaria o sobrelucro prprio aos monoplios e aos oligoplios. Nesse contexto, a realizao dos lucros monopolsticos no poderia se dar apenas por meio do consumo de empresrios e trabalhadores; far-se-ia necessrio contar com o consumo de crescentes massas de trabalhadores improdutivos, proprietrios de terra e outros rentistas, e com as intervenes estatais, genericamente tidos como fatores externos acumulao (Sweezy, 1983, p.179-184). Dentre os elementos que retardariam ou reverteriam temporariamente a estagnao se destacam os gastos relativos conquista de clientes, mormente com publicidade (que teria substitudo a velha concorrncia de preos); os investimentos estatais, sobretudo o militarismo; e o desperdcio puro e simples. No obstante, os limites da demanda efetiva cedo ou tarde es-barrariam no relativo excesso de capacidade produtiva, o que conduziria, por sua vez, a crises de superproduo. Por esse motivo, os autores consideram que o estado normal da economia capitalista monopolista a estagnao (Baran; Sweezy, 1968, p.108).

    Desse modo, Baran e Sweezy localizavam nas dificuldades de realizao do valor, e particularmente no subconsumo, o cerne das crises econmicas, voltando seu foco para o problema da demanda efetiva. Como sabido, tal abordagem fez escola, sendo sustentada e desenvolvida h dcadas por um conjunto de marxistas que se renem em torno da Monthly Review, os quais continuam a repetir que o crescimento da monopolizao criou uma economia enviesada no sentido da sobreacumulao e da estagnao, bem como do aumento da taxa de mais-valia custa dos salrios, alm de outros argumentos de seus mestres.1 Seguindo as veredas abertas por Sweezy no final de sua vida,2 esses e outros autores procuram teorizar sobre a tendncia estagnao econmica de longo prazo que vigora sob o capitalismo monopolista. Eles identificam na dcada de 1970 o advento de uma nova fase do capitalismo, no interior da qual a produo mundial crescentemente dominada por umas relativamente poucas corporaes multinacionais capazes de

    1 Cf. Foster; Mcchesney; Jonna, 2011; Foster, 2010; Foster; Magdoff, 2010. 2 Em seu ltimo artigo publicado ainda em vida, Sweezy defende: As trs tendncias mais impor-

    tantes na histria recente do capitalismo, no perodo que comea na recesso de 1974-1975: 1) a diminuio da taxa geral de crescimento; 2) a proliferao das corporaes multinacionais mono-polistas (ou oligopolistas) em escala mundial; e 3) o que pode ser chamado de financeirizao do processo de acumulao de capital (Sweezy, 1997, p.3-4).

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    exercer um considervel poder monopolista (Foster; Mcchesney; Jonna, 2011, s/p). Teria havido assim uma mudana do centro de gravidade da economia da produo para a finana (Foster; Magdoff, 2009, p.18), que implicou no dom-nio do capital financeiro-monopolista global, e em novas rodadas de represso salarial (Foster; Magdoff, 2008, s/p).

    Evidencia-se que os marxistas que compem o crculo da Monthly Review em grande medida embasam suas anlises nas teses de Sweezy e Baran, e por esse motivo a elas que iremos dirigir algumas crticas. Numa elucidativa passagem citada por Kliman, Sweezy assevera que

    o processo de produo e deve permanecer, independente da forma histrica, um processo de produo de bens para o consumo humano [...], qualquer tentativa de escapar desse fato fundamental representa uma fuga da realidade [...]. Os esquemas [marxianos] de reproduo que aparentemente demonstram o contrrio no alteram em nada a questo: produo produo para o consumo. (Sweezy apud Kliman, 2012, p.172 e 224, respectivamente)

    Ao contrrio, segundo Kliman, os esquemas so dispositivos explicativos que revelam, entre outras coisas, que logicamente possvel que a produo intervenha para o bem da produo, indefinidamente, e num grau crescente (2012, p.164). Em oposio a ambas as interpretaes, diramos que os esquemas da reproduo de Marx visam a demonstrar sob quais condies seria possvel a reproduo ampliada do capital no mbito da circulao do capital. No entanto, Marx faz questo de enfatizar que tais condies so de efetivao extremamente difcil, de modo que mesmo nesse mbito circunscrito existe um relevante potencial de desequilbrios. No obstante, evidente que pouco aprenderamos sobre a produ-o e a efetivao das crises e a dinmica geral da acumulao de capital se limitssemos a anlise ao plano da circulao, sem consider-lo junto aos demais momentos do processo global de produo capitalista.

    Em todo caso, com base na constatao bvia e indiscutvel, segundo a qual toda produo produo para consumo, e na prtica abstraindo nada menos que o consumo produtivo e o fato de que o departamento de bens de produo tambm produz mercadorias destinadas reproduo ampliada desse prprio departamento, Baran e Sweezy concluem que toda a dinmica econmica desem-boca na produo de bens de consumo destinados aquisio em troca de renda. Haveria assim um gargalo na capacidade de realizao das mercadorias, o qual no acompanharia o crescente potencial produtivo industrial, em decorrncia das inovaes tecnolgicas reiteradamente introduzidas. No obstante, Baran e Sweezy concedem imaginar um crescimento econmico motivado pelo incremento da par-cela da renda destinada ao investimento no setor de bens de produo, e concluem que isso conduziria a um processo de crescimento explosivo, que mais cedo ou mais tarde excederia as potencialidades fsicas de qualquer economia concebvel

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    (1968, p.81). Enfim, trata-se de um absurdo do ponto de vista econmico, j que, cabe repetir, produo produo para consumo.

    Ora, salta vista o carter dogmtico de tais teses, que se sustentam sobre proposies peremptrias e axiomticas, apresentadas como autoevidentes, e portanto dispensando maiores consideraes. Sem demonstr-lo conceitual e nem matematicamente, Baran e Sweezy convertem suas teses em dogma; nesse sentido, transmutam em aberrao algo que se encontra na base das anlises marxianas e na essncia do modo de produo capitalista. Como enfatiza reiteradamente Marx, to logo abandona a esfera da circulao simples de mercadorias, a produo de mais-valia, que compreende a conservao do valor adiantado inicialmente, apresenta-se assim como a finalidade determinante, o interesse impulsor e o resultado final do processo de produo capitalista, em virtude do qual o valor originrio se transforma em capital (Marx, 1978, p.8). Noutras palavras, a autovalorizao do capital a criao da mais-valia , pois, a finalidade deter-minante, predominante e avassaladora do capitalista, impulso e contedo absoluto de suas aes (Marx, 1978, p.21).3

    Sem se deter diante de tais proposies, cabe destacar, Baran e Sweezy con-sideram obsoleta a lei da queda tendencial da taxa de lucros, que seria prpria ao capitalismo concorrencial; sob o capitalismo monopolista ela perderia sua validade, devendo ser substituda pela lei do excedente crescente (1968, p.67 e 72) entendido, numa palavra, como a diferena entre o que a sociedade produz e os custos dessa produo (1968, p.13), com o que se joga por terra, sub--repticiamente, toda a teoria marxiana do valor. O que, alis, elucida a afirmao de que, sob o capitalismo monopolista, vigora a teoria tradicional de preos de monoplio neoclssica.

    Decerto, os discpulos de Sweezy e Baran discordam dessa assero, afir-mando que o esforo de seus mestres visava a suplementar a anlise [de Marx] em sentidos que remetiam a problemas especficos de nossa era (Foster, 2012, s/p.). Ocorre que em Monopoly Capital os autores no expuseram com preciso o que compreendem por excedente econmico, mas em cartas e num captulo no publicado dessa obra pode-se encontrar essa explicao. Assim, Baran afirma que o excedente consiste na soma dos lucros, juros, rendas + (e isso crucial!) custos de distribuio excessivos, despesas com propaganda + RP [Relaes Pu-blicas] + departamentos legais + faux frais de variao de produtos e mudanas de modelo (Baran, 2012, s/p). E nessa mesma carta, remetida a Sweezy em 1960, Baran arrebata: importante compreender que nosso excedente econmico no o mesmo que a mais-valia de Marx, mas um termo muito mais abrangente e muito mais complexo. Trata-se antes de uma importante contribuio para o pensar alm de Marx (Baran, 2012, s/p).

    3 Cf. Marx, 1973b, p.157 e 216.

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    Ao ver marxistas tomando custos por excedentes, provocando uma mltipla contagem da mais-valia, e tornando esse conceito irreconhecvel, resta a dvida sobre o que seria pensar aqum de Marx. Em todo caso, tamanha extravagncia terica e to graves equvocos conceituais redundam diretamente da percepo de que, sob o capitalismo monopolista, os custos de realizao do capital teriam se tornado indistintos dos custos de produo (Baran; Sweezy, 2012, s/p), numa situao em que a produo de novas necessidades, de novas mercadorias e de novos usos das mercadorias existentes teria se tornado determinante, assim como os esforos de venda, campo em que se concentraria a concorrncia em tempos de monoplio. Dessa maneira, coerentemente com o abandono da teoria do valor, a distino entre trabalho produtivo e improdutivo erodida; e a maneira como Marx teorizou sobre a distribuio da mais-valia entre diferentes setores da produo e nas distintas formas de rendimento tida como obsoleta. Tudo isso, novamente guisa de constatao, e sem maiores explicaes; para justific-lo apenas so levantadas questes, por exemplo, a respeito do estatuto categorial do trabalho do engenheiro que se dedica a tornar a mercadoria mais atrativa aos consumidores, ou de um operrio de cho de fbrica que maquia um produto, introduzindo-lhe adereos extravagantes (Baran e Sweezy, 2012, s/p).

    Ignoram os autores que Marx respondeu a essas perguntas diversas vezes; como sabido, o conceito de trabalho produtivo e improdutivo nada tem a ver com sua utilidade, nem com o contedo determinado do trabalho, com sua utilidade particular ou valor de uso peculiar no qual se manifesta (Marx, 1978, p.75), e tampouco simplesmente com o fato de contribuir ou no com a produo capitalista, como em geral concebe a estreiteza mental burguesa (Marx, 1978, p.71); ao contrrio, so conceitos que dizem respeito forma social em que os trabalhos so realizados. Trabalho produtivo aquele realizado por qualquer membro do trabalhador coletivo, que atue no interior do processo de produo imediato, de modo a valorizar o capital (Marx, 1973b, p.245; 1973a, p.430-431; 1978, p.70 e 75; 1980, p.132, 388 e 391; 1996a, p.138), independentemente da maior ou menor proximidade que exista entre o trabalhador e o objeto de trabalho no mbito do processo produtivo, e do carter concreto da interveno laboral que ele realiza. Trata-se, noutras palavras, do conjunto dos trabalhadores que interferem direta ou indiretamente com a produo da mercadoria e de seus valores de uso. E, cabe acrescentar, isso inclui as atividades que constituem um prolongamento da produo na esfera da circulao, como a indstria de transporte (Marx, 1973a, p.11-12; 1984b, p.43, 100 e 109). Logo, respondendo questo de Sweezy e Baran, diz Marx que,

    como com o desenvolvimento da subsuno real do trabalho ao capital ou do modo de produo especificamente capitalista, no o operrio individual, mas uma crescente capacidade de trabalho socialmente combinada que se converte no agente real do processo de trabalho total, e como as diversas capacidades de

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    trabalho que cooperam e formam a mquina produtiva total participam de maneira muito diferente no processo imediato da formao de mercadorias, ou melhor, de produtos este trabalha mais com as mos, aquele trabalha mais com a cabea, um como diretor (manager), engenheiro (engineer), tcnico etc., outro, como capataz (overloocker), outro como operrio manual direto, ou inclusive como simples ajudante , temos que mais e mais funes de capacidade de trabalho se incluem no conceito imediato de trabalho produtivo, e seus agentes no conceito de trabalhadores produtivos. (Marx, 1978, p.71-72)

    Por seu turno, improdutivo o trabalho diretamente trocado por renda (Marx, 1980, p.137), bem como, em geral, o trabalho comandado diretamente pelo Estado (Marx, 1973b, p.19 e 23; 1980, p.397), e os trabalhos (essenciais produo de capital) concernentes transferncia do direito de propriedade das mercadorias (Marx, 1984a, p.218; 1984b, p.97), ao intercmbio do capital enquanto mercadoria (capital portador de juros) etc. Muitos desses trabalhos, ao serem realizados por empresas especficas, contribuem com a produo de capital na medida em que reduzem os falsos custos de produo, que seriam muito mais elevados se cada empresa tivesse que se haver com tais exigncias da produo por conta prpria. E sua relevncia para o processo global de produo de capital tanta que d a muitos desses setores o direito taxa mdia de lucro, de tal modo que tal taxa calculada sobre a soma do capital industrial e do capital comercial (Marx, 1984a, p.216). Outras dessas atividades especializadas garantem a mobilizao produtiva de grandes montantes de capital que de outra maneira permaneceria ociosa, in-crementam a rotao de capital, e tambm reduzem falsos custos de produo, garantindo s empresas que as executam um importante quinho na distribuio da mais-valia, sob a forma de juros.

    No que tange aos trabalhadores engajados no esforo de vendas que tanto preocupam Baran e Sweezy , mesmo quando eles se encontram no interior da esfera da circulao, quando sua atividade no se restringe a promover modi-ficaes formais (a referida transferncia do direito de propriedade), Marx os insere na categoria de trabalhadores produtivos, como revela o seguinte trecho dos Grundrisse:

    Enquanto o comrcio leva um produto a mercado, outorga-lhe uma nova forma. Cer-tamente, somente modifica sua existncia local. Mas o tipo de modificao formal no nos interessa. O comrcio confere ao produto um novo valor de uso (e isso vlido at para o comerciante varejista, que pesa, mede, empacota e dessa maneira d forma ao produto para o consumo) e esse novo valor de uso consome tempo de trabalho; , portanto, ao mesmo tempo, valor de troca. (Marx, 1973a, p.148)

    Segundo a avaliao de Baran e Sweezy, Marx no teria teorizado devidamente a respeito da natureza do valor de uso das mercadorias, nem da evoluo

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    histrica das necessidades e de sua morfologia concreta (2012, s/p), pois as novas necessidades que emergiam rapidamente e se proliferavam sob o impacto do desenvolvimento capitalista em sua maior parte refletiam necessidades humanas genunas. E mesmo os requerimentos da nova classe alta a ascendente e crescente burguesia ainda estavam longe de ser extravagantes; a inelutvel ne-cessidade de acumular, de lanar o capital de volta aos negcios, coloca limites severos no luxo e no desperdcio (Baran; Sweezy, 2012, s/p).

    Novamente os autores se equivocam. Marx no incorreu no erro fetichista de distinguir entre necessidades genunas e no genunas; ao contrrio, ele fala de necessidades surgidas do estmago ou da fantasia, pois sabia que, igualitria e cnica nata, a mercadoria est sempre disposta a trocar no s a alma, como tambm o corpo, com qualquer outra mercadoria, mesmo quando esta seja to desagradvel como Maritornes (Marx, 1996b, p.210). Da perspectiva do capital, e disso que se trata aqui, tudo que alimenta a roda de Juggernaut da acumulao genuno, mesmo uma arma de destruio em massa.

    Ademais, Marx demonstrou que a verdade do processo de circulao imediata de mercadorias est na valorizao do valor, no prprio movimento do capital, como abstrao real em movimento, que tudo tende a subsumir como momento de sua autoexpanso. Isso inclui uma cada vez mais sistemtica produo de necessidades e uma normatizao do consumo. Por esse motivo, ao contrrio do que asseveram Baran e Sweezy, Marx deu suficiente ateno ao processo de produo de novas mercadorias e de novas necessidades sociais. Por exemplo, num trecho dos Grundrisse pode-se ler que

    a produo de mais-valia relativa [...] requer a produo de novo consumo; que o crculo consumidor dentro da circulao se amplie assim como antes se ampliou o crculo produtivo. Primeiramente: ampliao quantitativa do consumo existente; segundo: criao de novas necessidades, difundindo as existentes em um crculo mais amplo; terceiro: produo de novas necessidades e descobrimento e criao de novos valores de uso. (Marx, 1973b, p.360)

    O mesmo vale para o carter perdulrio adquirido pela burguesia, posto que a reproduo ampliada do capital possibilita ao capitalista incrementar seu prprio consumo, sem modificar o fundo de acumulao, ou mesmo converter parte do seu fundo de consumo em fundo de acumulao (Marx, 1996b, p.237). Isso lhe permite sucumbir tentao do consumismo, distanciando-se do entesourador, cuja ascese lhe tira a manteiga do po. Assim, seu esbanjamento [do capi-talista] cresce, contudo, com sua acumulao, sem que um precise prejudicar a outra. Com isso desenvolve-se, ao mesmo tempo, no corao do capitalista um conflito fustico entre o impulso a acumular e o instinto do prazer (Marx, 1996b, p.227). Alm disso,

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    com o desenvolvimento do modo de produo capitalista, da acumulao e da riqueza, o capitalista deixa de ser mera encarnao do capital. Ele sente um enternecimento humano por seu prprio Ado e torna-se to culto que chega a ridicularizar a paixo pela ascese, como preconceito do entesourador arcaico. Enquanto o capitalista clssico estigmatiza o consumo individual como pecado contra sua funo e abstinncia da acumulao, o capitalista moderno capaz de conceber a acumulao como renncia a seu instinto do prazer. (Marx, 1996b, p.226).

    Mas no se trata de mero capricho. O desenvolvimento do modo de produo capitalista impe a necessidade de o capitalista apelar ao sistema de crdito, e seu xito , em parte, proporcional ao grau de confiabilidade e de prosperidade que ele capaz de ostentar. Dessa forma, o esbanjamento, o luxo, a ostentao da riqueza e a produo da suntuosidade se tornam uma parte dos custos de repre-sentao do capital (Marx, 1996b, p.226). Por outro lado, a dinmica global da acumulao, catapultada pelas formas financeiras do capital, nalguns momentos enseja (e impele a) um prolongamento desmedido do consumo produtivo e pessoal dos capitalistas, e mesmo do conjunto das classes sociais, por meio de mltiplas manifestaes do capital portador de juros.

    Baran e Sweezy minimizam a importncia de diversas formas de concorrncia intercapitalista, desconsiderando uma srie de evidncias empricas j que os grandes conglomerados competem encarniadamente em seu palco elementar de atuao, que o mercado mundial. No mesmo sentido, os autores ignoram aspectos-chave da teoria marxiana, segundo a qual existe uma imbricao entre concorrncia e monoplio, de tal modo que o processo de concentrao e cen-tralizao de capital, inerente acumulao de capital, repe a concorrncia em uma escala superior (Marx, 1984a, p.168; 1996a, p.257-260). Ao mesmo tempo, curiosamente, eles postulam a tendncia reduo dos investimentos em relao ao excedente, no sentido de preservao dos lucros monopolistas. Com isso, desprezam o fato de que a ausncia de investimento produtivo dos excedentes produziria uma tendncia reduo da taxa de lucro nos setores monopolistas, e por conseguinte os motivos que conduziriam ao no investimento a manuteno de lucros monopolistas (extraordinrios) seriam suprimidos.

    Por fim, cabe acrescentar, deve ser desconcertante para os subconsumistas ter que fechar os olhos para as diversas proposies de Marx acerca do movimento contraditrio do capital, no interior do qual crescentes taxas de explorao do tra-balho redundam em taxas declinantes de lucro, a despeito da extrao de maiores massas de mais-valia e da produo de massas crescentes de lucro (Marx, 1984a, p.168-169).

    Em suma, como pano de fundo dos importantes equvocos conceituais e da falta de substrato emprico das teses de Baran e Sweezy, encontra-se a combina-o de uma concepo idealista, que toma o capitalismo como uma sociedade

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    de consumo, com a mania fetichista de privilegiar a dimenso material da produo em detrimento de sua forma social (Marx, 1978, p.78).

    No o caso de Sweezy e Baran, mas h de se recordar, com Kliman (2012), que diversos subconsumistas se refugiam sob o mito de que Okishio jogou por terra a lei da queda tendencial da taxa de lucro. Trata-se propriamente de um mito porque em geral no se perde tempo analisando o teorema de Okishio ou o traba-lho de seus seguidores; sua mera evocao basta para descartar inteiramente toda a exposio marxiana sobre a lei tendencial da taxa de lucro.4 Ignora-se, assim, as inmeras crticas que o artigo de Okishio recebeu desde a sua publicao, as investigaes de diversos marxistas que lograram fornecer uma rigorosa tratativa matemtica questo e, no limite, todo o aparato terico desenvolvido por Marx. Como agravante, desde Bhm-Bawerck, as crticas em geral desprezaram a forma de exposio e a metodologia desenvolvida por Marx, incluindo a concatenao das categorias, na qual aquela ora posta pressupe as que foram apresentadas anteriormente, ao mesmo tempo que determina retroativamente essas categorias mais abstratas. Acima de tudo, com suas lentes positivistas e axiomticas, os crti-cos tradicionalmente se apressaram em denunciar como aberrantes as contradies entre diferentes momentos da apresentao conceitual marxiana, bem como sua suposta roupagem metafsica, negando-se a reconhecer o carter contraditrio e metafsico do prprio objeto o sujeito automtico capital.

    Tal procedimento foi involuntariamente mimetizado por diversos marxistas, em seu af de afirmar o carter cientfico de suas teses, sem porm questionar os padres de cientificidade dominantes. Nesse sentido, assumindo preceitos marginalistas de equilbrio econmico, muitos se engajaram em demonstrar o carter no contraditrio e matematicamente infalvel das proposies de Marx. Com isso, produziram um espantalho sujeito a todo tipo de ataques por parte da ortodoxia econmica, em reao qual muitos marxistas optaram por abandonar sem maiores consideraes a teoria do valor, a lei da queda tendencial da taxa de lucro e outros desenvolvimentos tericos fundamentais, em favor de sistemas tericos de extrao keynesiana, ricardiana ou walrasiana, recheados com antemas contra a explorao dos trabalhadores e ornadas com loas e conclamaes sua organizao afinal de contas, no porque so positivistas que eles deixaram de ser marxistas.

    Salta vista algumas semelhanas que essa abordagem subconsumista guarda com o keynesianismo, e de resto notria a influncia de Keynes sobre Sweezy e diversos de seus seguidores, que so chamados por alguns de seus crticos de marxistas keynesianos.5 No obstante, e a despeito de suas interpretaes con-vergentes sobre as razes e o desenvolvimento da crise,6 a concluso a que chegam

    4 Cf. Okishio, 1961. 5 Cf. Mandel, 1967. 6 Cf. Krugman, 2009, p.192.

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    esses marxistas por vezes bem distinta da keynesiana (ou da ps-keynesiana). Enquanto os ltimos apelam para seus pacotes de medidas anticclicas e de re-formas institucionais, alm disso, os marxistas(-keynesianos) apontam para a necessidade de superao do capitalismo. Porm, fazem-no em termos que so de uma pobreza terica e de uma ingenuidade poltica tragicmicas:

    nunca antes a necessidade de uma revoluo foi to grande. No lugar de um sistema global inteiramente devotado ao ganho monetrio, ns necessitamos criar uma nova sociedade dirigida igualdade substantiva e ao desenvolvimento humano sustentvel: um socialismo para o sculo XXI. (Foster, 2010, s/p)

    Que pressuporia a eutansia do capitalismo, em favor do desenvolvimento humano sustentvel, da plenitude ecolgica e do cultivo da genuna comuni-dade humana (Foster; Magdoff, 2010, p.3).

    At certa altura, Sweezy tambm tirava concluses revolucionrias de sua teoria de crises; no entanto, diante do seu desapontamento com as experincias sovitica e chinesa, e sobretudo aps o colapso do socialismo real, ele passou a propugnar que a questo a ser encarada, de uma perspectiva de esquerda, girava em torno do que pode ser feito dentro do enquadramento do sistema de empresa--privada para faz-lo funcionar melhor?, ao que responde: redistribuio de ri-queza e renda no sentido de maior igualdade (Sweezy apud Kliman, 2012, p.200).

    H de se reiterar que, de certa forma, tais teses subconsumistas atualmente fundamentam as interpretaes de membros de diversas vertentes do marxismo. Por exemplo, James Petras propugna que a causa fundamental [da mais recente crise econmica] a sobreacumulao de capital resultante da superexplorao do trabalho, conduzindo a taxas de lucro ascendente e ao colapso da demanda (Petras, 2011, p.3). J Giovanni Arrighi considera que na atual fase de desen-volvimento capitalista a crise se transformou de uma caracterizada pela queda da taxa de lucro, por causa da intensificao da concorrncia entre capitais, em uma de superproduo em razo da escassez sistmica de demanda efetiva criada pelas tendncias do desenvolvimento capitalista (2009, p.17). David Harvey, por sua vez, assevera que a crise de 2008-2009 no pode portanto ser entendida em termos de aperto de lucros. A represso salarial em funo da superabundncia de oferta de mo de obra e a consequente falta de demanda efetiva de consumo um problema muito mais srio (2010, p.66).

    Em certo sentido, como indica essa ltima citao, da mesma forma como enfatizam o subconsumo para explicar a mais recente crise econmica mundial, autores como Arrighi e Harvey ressaltam o profit squeeze, a compresso dos lucros, em decorrncia da exploso salarial verificada na segunda metade da dcada de 1960, como causa central da crise econmica que se alastrou na dcada de 1970, e que deu origem nova fase de desenvolvimento do modo de produo capitalista (Arrighi, 2008, p.136). Grosso modo, a teoria do profit

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    squeeze explica as crises como resultado da compresso das taxas de lucro em decorrncia da elevao dos custos de mo de obra, seja em funo de um au-mento da demanda por fora de trabalho num ritmo superior ao da oferta, na fase ascendente do ciclo, seja pela mudana da correlao de foras entre patres e empregados, em favor dos trabalhadores, que poderia igualmente conduzir ao incremento dos salrios reais diretos e indiretos, a crescentes custos de superviso e controle do processo de trabalho, diminuio do ritmo em que a produtividade do trabalho se eleva, e assim por diante. Sem almejar a resoluo da discusso, cabe recordar que,

    a tendncia queda da taxa de lucro est ligada tendncia a se elevar a taxa de mais-valia, e, por conseguinte, o grau de explorao do trabalho. Nada mais absurdo, portanto, que explicar a queda da taxa de lucro em termos do aumento das taxas de salrios, embora isso tambm possa ser um caso excepcional. (Marx, 1984a, p.182, grifos meus)

    Ao contrrio dessas explicaes, e indo finalmente ao ponto, tanto o fim da era de ouro do capitalismo como a ecloso da ltima crise econmica esto ligados trajetria da taxa de lucro e da acumulao de capital. Algo que seria de se esperar, e que perfeitamente sustentvel em termos lgicos e empricos, mas que frequentemente rechaado como se se tratasse de um esquematismo dogmtico e mecanicista. certo que as anlises de Marx sobre a lei da queda tendencial da taxa de lucro foram recorrentemente vulgarizadas tanto por marxistas quanto por seus opositores, e que a noo de lei afirmativa ou criticamen-te em geral foi interpretada de maneira positivista, incapaz de aceitar que as mesmas causas que acarretam a queda da taxa geral de lucro provocam efeitos contrrio, que inibem, retardam e em parte paralisam essa queda. No anulam a lei, mas debilitam seu efeito (Marx, 1984a, p.181). Uma vez cativa de um campo antidialtico, tornou-se fcil refut-la com base em critrios e mtodos lgica e matematicamente inquestionveis.

    A crise e a trajetria da taxa de lucroMuitos esforos j foram realizados no sentido de demonstrar o equvoco

    desse tipo de procedimento, e de perscrutar a relao entre lei da queda tenden-cial da taxa de lucro e o advento da ltima crise econmica mundial. Autores como Callinicos (2009), Shaik (2010), Carchedi (2011), Roberts (2009) e o j citado Kliman (2012), dentre vrios outros, desenvolveram estudos emprica e conceitualmente embasados sobre o papel da trajetria da taxa de lucro no interior da dinmica global de acumulao de capital, enfatizando a relevn-cia da queda da taxa mdia de lucro para a compreenso da chamada crise de estagflao da dcada de 1970 e da mais recente crise econmica mundial. Por falta de espao, optamos por deixar de lado aqui as diferenas que existem

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    entre as abordagens e os resultados a que chegam cada um desses autores. Ao contrrio, sem endossar plenamente a metodologia e as concluses produzidas por esse autor, tomaremos por base desta seo os estudos de Kliman, expostos em seu mais recente livro.

    O autor no ignora que a lei da queda tendencial da taxa de lucro tem no mercado mundial seu espao de manifestao, mas a falta de dados confiveis em escala global fez que ele se concentrasse na evoluo da taxa de lucro nos Estados Unidos. Por outro lado, as estatsticas que embasam essas anlises se re-sumem ao capital fixo, pois no existiriam informaes confiveis sobre o tempo de rotao do capital circulante (Kliman, 2012, p.80-81). Alm disso, esse autor opta por focar apenas o setor corporativo, mais precisamente o setor corporativo domstico. Por fim, falta de um instituto marxista de estatsticas, eviden-te que a forma de agregao dos dados pelas instituies de pesquisa de modo geral no se coaduna com as categorias marxianas, o que introduz dificuldades investigao.

    Ainda de uma perspectiva metodolgica, deve-se considerar a polmica em relao maneira de se ajustar o investimento lquido (a diferena entre o investimento bruto e a depreciao). Seja quando deflaciona o investimento lquido por meio do ndice GDP (Gross Domestic Product Produto Interno Bruto index) ou de uma estimativa da chamada Melt (Monetary Expression of Labour Time expresso monetria do tempo de trabalho), Kliman utiliza o mesmo deflator tanto para o investimento bruto como para o custo histrico da depreciao. A essa escolha, autores como Michel Husson (2008) objetam propugnando que o custo histrico de depreciao do ano corrente no pode ser deflacionado por meio de ndices correntes, j que os ativos foram comprados anteriormente, a preos distintos dos atuais. Fazendo uma concesso provisria, Kliman constri sries estatsticas sob os parmetros propostos por Husson, que no obstante comprovam a tendncia queda da taxa de lucro (Kliman, 2012, p.87). Porm, na sequncia Kliman sustenta que a taxa de lucro a custos correntes no verdadeiramente uma taxa de lucro, pois implica no equvoco de reiterada e retroativamente revalorizar os ativos inflando o denominador da taxa de lucro em perodos de inflao ascendente, rebaixando artificialmente a taxa de lucro, e deflacionando o denominador em perodos de desinflao, artificialmente elevando a taxa de lucro (Kliman, 2012, p.113) , alm de no ter importncia prtica, j que os capitalistas avaliam seus negcios e planejam seus investimen-tos com base no rendimento auferido em comparao ao capital adiantado, e no com base nos custos correntes de reposio dos seus ativos fixos. Numa palavra, tanto para os capitalistas como para Marx, o lucro o montante monetrio que excede o capital total adiantado; o que diferencia a compreenso deles sobre a questo sobretudo a descoberta de Marx segundo a qual o lucro somente uma forma transmutada, derivada e secundria da mais-valia, a forma burguesa, na qual se apagaram todos os rastros de sua gnese (Marx, 1973a, p.99), como

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    se ambas as formas do capital constante e varivel competissem igualmente para a valorizao do capital (Marx, 1984b, p.30).7

    Com base nessa metodologia, e sob os parmetros explicitados h pouco, Kliman produz o seguinte grfico relacionando a evoluo das taxas de lucro e de acumulao desde o incio da dcada de 1970:

    Taxa de lucro (eixo da esquerda)

    Taxa de acumulao (eixo da direita)

    Taxa de lucro x Taxa de acumulao

    38% 14,4%

    34% 10,8%

    30% 7,2%

    26% 3,6%

    22% 0,0%

    1970 1978 1986 1994 2002

    Fonte: Kliman, 2012, p.91.

    Sua concluso que a persistente diminuio na taxa de lucros redundou em queda da taxa de acumulao, e em crescentes dificuldades para se arcar com as dvidas contradas, cuja rolagem passou a exigir mais crditos, e impulsionou uma espiral de endividamento, tanto das empresas como das famlias. Por outro lado, a taxa de lucro declinante ajuda a explicar a tendncia manuteno de baixas taxas de juros, j que uma reduzida taxa de lucro desestimula novos investimentos, e portanto diminui a concorrncia por crdito.

    Essas evidncias embasam a crtica de Kliman hiptese de que a atual fase de desenvolvimento capitalista, e particularmente suas baixas taxas de crescimento, podem ser simplesmente explicadas pela contrarrevoluo neoliberal, ou por uma reconstituio do poder de classe burgus. Considerando indicadores como

    7 Como sintetiza Prado (2012, p.8), ao se medir o estoque de capital por meio do conceito de custo de reposio, est se suprimindo a historicidade do processo econmico, para passar a pens-lo segundo a lgica de otimizao caracterstica dos modelos de equilbrio geral da teoria econmica ortodoxa.

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    a taxa de crescimento da produo industrial, ou o investimento em ativos pro-dutivos fixos em relao ao lucro, o autor conclui que uma parte importante dos declnios verificados no corresponde estritamente ao ascenso neoliberal (Kliman, 2012, p.54-56 e p.91).

    Em seu combate s teses subconsumistas, Kliman tambm sustenta que a compensao dos trabalhadores no declinou ao longo das ltimas dcadas, quando se leva em considerao os componentes no salariais que perfazem a compensao real dos trabalhadores. Segundo ele, o que se verificou foi uma considervel reduo no seu ritmo de crescimento (Kliman, 2012, p.124), uma boa parte dela ocorrida ao longo da dcada de 1970 (Kliman, 2012, p.69). Segundo as suas estimativas, a reduo do ritmo de crescimento das compensaes teria acompanhado de perto a reduo no valor lquido adicionado pelas corporaes, de tal forma que no estaramos diante de um fenmeno distributivo, e sim de um resultado da relativa estagnao da produo capitalista (Kliman, 2012, p.124).

    De fato, segundo Hobsbawm, malgrado as particularidades nacionais, na tota-lidade dos pases capitalistas centrais os Estados de bem-estar social continuaram a se fortalecer ao longo da dcada de 1970, e em sua maioria, segundo Anderson, os esforos neoliberais para desconstru-los no foram to exitosos (Hobsbawm, 1994, p.254 e 278-279; Anderson, 1995, p.15-16). Ocorre que a distribuio do trabalho social nos distintos ramos produtivos se d em escala mundial, e o impulso desmedido do capital ao aumento da jornada de trabalho, reduo salarial, precarizao das condies de trabalho etc., manifestou-se de modo extremamente vigoroso em diversos pases, mormente na periferia do capitalismo, onde jamais se consolidou um Estado de bem-estar social. A despeito das dificuldades em se aferir esse processo, fundamental consider-lo luz do mercado mundial. Por outro lado, digno de considerao o fato de que a mais recente crise econmica mundial, em funo do macio desemprego e dos desequilbrios oramentrios que causou, est servindo como mote para uma nova ofensiva contra os direitos trabalhistas e os salrios. Mesmo em pases nos quais as polticas de bem-estar social se mantiveram relativamente intactas, seu desmantelamento j se encontra em curso.

    Sem descartar eventuais discrepncias, de se esperar que num momento as-cendente do ciclo econmico a demanda por fora de trabalho aumente, ao passo que diminua o preo das mercadorias que compem a cesta de consumo dos trabalhadores, em decorrncia do aumento da produtividade. Por essa dupla via, seria provvel que a remunerao dos trabalhadores se elevasse, sem com isso reverter a tendncia ao aumento relativo da riqueza dos capitalistas, reproduo das relaes de assalariamento e multiplicao das condies de explorao dos trabalhadores, e a um alijamento ainda maior em relao propriedade dos meios de produo, cuja aquisio pressupe crescentes montantes de capital.8 J numa

    8 Cf. Marx, 1977, p.72; 1996a, p.250-251.

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    fase subsequente do ciclo, a tendncia de desacelerao do ritmo de crescimento da renda total dos trabalhadores, podendo inclusive haver uma reduo absoluta do nvel total de compensao percebida pelos trabalhadores. Isso por si s no d razo s teses subconsumistas, e no priva de significado a tendncia queda da taxa de lucro. Ao contrrio, antes uma de suas expresses, assim como a prpria monopolizao a que se referem Baran, Sweezy e seus seguidores.9

    Nas palavras de Marx,

    [...] medida que a taxa de valorizao do capital global, a taxa de lucro, o agui-lho da produo capitalista (assim como a valorizao do capital a sua nica finalidade), sua queda retarda a formao de novos capitais autnomos, e assim aparece como ameaa para o desenvolvimento do processo de produo capitalis-ta; ela promove superproduo, especulao, crises, capital suprfluo, ao lado de populao suprflua. (Marx, 1984a, p.183; 1986, p.34-35 e 106-107)

    Estamos, por conseguinte, diante de tendncias duradouras e nada mecnicas, que redundam em crescente instabilidade econmica, e cujo verdadeiro signifi-cado se revela sob conjunturas especficas, nas quais a crise deflagrada. No necessrio, portanto, que, no exato momento em que ocorre o colapso, as taxas de lucro estejam em queda, mas esse declnio nos possibilita compreender, por exemplo, o impulso do capital a buscar caminhos financeiros para dar continuidade ao seu movimento autoexpansivo.

    De todo modo, seria igualmente equivocado elevar a queda da taxa de lucro condio de causa nica das crises. Quando se trata da mais recente crise econ-mica, parece indiscutvel que a considerao criteriosa e detida das investigaes realizadas no interior do marxismo imprescindvel, afinal, as crises devem ser compreendidas em sua singularidade. No entanto, a profuso de abordagens con-correntes e mesmo antpodas por si s indica equvocos de cunho conceitual. As crises econmicas acompanhando o movimento do prprio capital como seu negativo, e ao mesmo tempo como elemento determinante para a reposio da acumulao em escala sempre ampliada manifestam-se sob diversas formas, em diferentes planos, assim como o faz o sujeito-capital, como demonstra rigoro-samente Jorge Grespan (1998), cuja exposio acompanharemos aqui. De modo breve e pouco exaustivo, cabe recordar que j no mbito da circulao simples de capital a possibilidade formal da crise se faz presente por meio da potencial separao, no tempo e no espao, entre os atos de compra e venda de mercadorias. E mesmo num momento to elementar da investigao, delineia-se o movimento geral da crise: trata-se do desfecho da autonomizao exterior de momentos internamente dependentes; ou da autonomizao de momentos copertinentes, de polos de um todo unitrio, de momentos essenciais do todo, uma unidade

    9 Cf. Marx, 1980, p.1487.

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    de contrrios, os quais se independentizam, at um ponto determinado, em que a unidade essencial uma unidade em processo se faz valer e se efetiva; o ponto da crise.10

    To logo se adentra o mbito da produo imediata, o capital se revela como a hbris em movimento, pondo-se enquanto medida de si prprio por meio da desmedida (Marx, 1980, p.928); ou seja, na condio de valor que se valoriza mediante a apropriao de trabalho excedente (Marx, 1996a, p.40, 42, 51, 139 e 155; 1996b, p.347, 351, 379 e 382-383), o capital incessantemente converte a si prprio como limite e como barreira a ser superada, manifestando-se como um montante de valor que deve ser ultrapassado num processo de reiterada perda e subsequente reposio dessa medida, como se se tratasse de um jogo estritamente quantitativo.11

    Ainda que de maneira pobre em determinaes, no domnio da produo imediata surge tambm uma nova acepo de desmedida, concernente au-toimposio de um limite que o capital no consegue converter em barreira a ser superada, relativa tendncia substituio de trabalho vivo por trabalho morto, ou ao aumento do capital constante em relao ao capital varivel. A crise se insinua aqui no mais como mera possibilidade, mas como necessidade, que nada tem a ver com fatalidade, no sentido de uma relao mecnica entre cau-sas e consequncias. Antes, o movimento dialtico do capital produz tendncias e contratendncias que possuem formas prprias e complexas de articulao: necessrio como oposto ao meramente contingente, mas inclui a contingncia. Ademais, a prevalncia das tendncias, longe de anular as contratendncias, ativa e catalisa muitas delas, e a recproca verdadeira.

    J sob a gide da circulao de capitais, em que o capital salta da forma capital--monetrio forma capital-produtivo, e desta forma capital-mercadoria, para no-vamente assumir a forma capital-monetrio e assim sucessivamente, so ensejadas despropores interdepartamentais, e com elas uma nova acepo de desmedida, diante da tendncia ao excesso relativo de produo num dado departamento.

    Finalmente, da tica de seu processo global de produo, o capital passa a se guiar pela taxa fetichista de valorizao, a taxa de lucro, como se capital constante e varivel constitussem fontes equivalentes de valor. O movimento da acumulao, no qual a extrao de mais-valia relativa determinante, e com ela a tendncia ao aumento da taxa de mais-valia, implica igualmente na tendncia diminuio da taxa de lucro, a qual eventualmente acaba por inibir a reproduo ampliada do capital, criando assim um bice que por vezes s superado aps um surto de autodesvalorizao (e por meio dele). A desmedida aqui significa a perda abrupta e violenta da medida, e se exprime na discrepncia entre duas

    10 Cf. Marx, 1973b, p.72-75 e 132; 1977, p.76 e 97; 1980, p.948-949; 1986, p.271; 1996b, p.236 e 421.

    11 Cf. Marx, 1973b, p.227; 1973a, p.339; 1977, p.127; 1984a, p.189.

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    medidas da acumulao, a taxa de mais-valia e a de lucro. Uma das expresses desse processo que inclui a reproduo ampliada e a sobreacumulao de capital o crescimento desmedido das modalidades financeiras e fictcias do capital, que se manifesta na forma de bolhas especulativas.

    Ao que parece, inmeros marxistas recaram num (crnico) erro de classificar e segmentar as crises como crises de realizao, crises de superproduo, crises monetrias, crises financeiras etc. , sem perceber a unidade contraditria de seus momentos, ou ento no equvoco de fixar uma dessas formas e elev-la condio de causa absoluta das crises. No se trata de consider-las equivalentes; porm, igualmente patente que qualquer tipo de leitura unilateral ou fatalista significa a per-da do objeto. Mesmo as tendncias e contratendncias elementares da acumulao devem ser perscrutadas luz de sua totalidade, e no isoladamente. Nesse sentido, insistamos, redundaria em erro apartar a tendncia queda da taxa de lucros a mais importante lei da economia no interior do modo de produo capitalista (Marx, 1973a, p.281) do processo de produo do capital fictcio, por exemplo.

    guisa de concluso: a crise e o capitalismo de EstadoOra, nas ltimas dcadas, a deflagrao de crises de sobreacumulao em

    toda a sua abrangncia e destrutividade tem sido em grande parte evitada por meio da atuao do Estado como garantidor em ltima instncia do capital, e como causa contra-atuante de primeira ordem. E inegvel que a ecloso da crise econmica mundial conduziu a um acirramento do intervencionismo estatal, que assumiu um carter estatizante incomum nas ltimas dcadas. No obstante, a ampla ao estatal (enquanto Grande Governo e emprestador em ltima instncia, para usar uma linguagem keynesiana) foi um trao marcante da hodierna dinmica da acumulao, que acompanhou as crises financeiras que se multiplicaram. No deve surpreender, portanto, o juzo de Robert Brenner se-gundo o qual Reagan foi o maior keynesiano que j existiu (2009, p.18), ou de Charles Morris, quando diz que na economia, Nixon foi keynesiano em todos os sentidos (2009, p.58). Como salienta Kliman, o keynesianismo dos governos conservadores e neoliberais se explica pelo seu comprometimento ltimo com a dinmica da acumulao, que no se submete a tal ou qual orientao ideolgica (Kliman, 2012, p.183). A despeito de seu fanatismo e de seu carter apologtico, os gestores so essencialmente pragmticos (o que no significa que sejam infa-lveis, ou que suas aes no produzam efeitos contraditrios).

    Se o intervencionismo acompanha de perto os ciclos econmicos, o que muda a escala de interveno estatal, correspondente escala da crise. A questo que se coloca se na ltima crise essa distino quantitativa produziu uma desme-dida, que conduzir a um profundo rearranjo institucional, e mesmo ao advento de uma nova fase de desenvolvimento capitalista.

    Ora, com suas vultosas medidas anticclicas e seus programas de salvamento e de injeo de liquidez no mercado mundial (que inauguraram ou devem ainda

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    inaugurar uma sria crise nas finanas pblicas de diversos pases), alm de terem demonstrado uma capacidade de ao extraordinria, mobilizando cifras impres-sionantes, as autoridades monetrias e as instituies supranacionais parecem ter referendado uma vez mais toda sorte de prticas especulativas, e fornecido nova e contundente prova do domnio das grandes corporaes sobre os aparatos estatais e multilaterais. E ainda mais importante, parecem ter postergado uma expressiva depresso econmica, que poderia ter um carter disciplinador e catalisador de radicais reformas. Por esses motivos, apesar de sua configurao e evoluo nica, talvez a prxima crise econmica mundial siga um roteiro prximo ao atual, e no demore a eclodir.

    Ademais, o mpeto regulador que despertado por episdios como o da ltima crise pode ser mal direcionado, afinal, o foco dos reformadores tende a se voltar para problemas muito especficos, que provavelmente no estaro no cerne do prximo abalo econmico (da a mxima segundo a qual os reguladores esto sempre lutando a ltima guerra). Se estivermos corretos e as causas da crise no se resumirem falta de instrumentos e instituies regulatrias e de superviso, as eventuais reformas que vieram baila em reao ltima crise podero apenas retardar e alimentar o novo cataclismo econmico. Por fim, no parece delirante o alerta de Kliman para os perigos de um reformismo fadado ao fracasso, que provocaria frustraes, e poderia eventualmente contribuir para a emergncia de alternativas fascistas ou de outras variantes totalitrias de capi-talismo de Estado (Kliman, 2012, p.202).

    Em suma, as sadas reformistas, a despeito da roupagem de esquerda que assu-mam ou possam vir a assumir, forosamente redundaro em fiasco, e na ausncia de uma alternativa revolucionria (emancipatria), seu malogro poder alimentar decisivamente as sadas de ultradireita. Por conseguinte, e nos limitamos aqui a constat-lo, no parece haver outra soluo seno o engajamento na construo poltico-organizativa que vise a recolocar a revoluo em nosso horizonte imediato.

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  • Subconsumo ou sobreacumulao? Debate terico e poltico para a anlise da crise atual 111

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  • 216 Crtica Marxista, n.37

    Palavras-chave: crise, superproduo, subconsumo, superacumulao.Abstract: The objective of this paper is to present the evolution of Marxs theory of cri-sis. It shows that the concept of overproduction as the ultimate cause of crisis undergoes substantial changes as Marx goes deeper and deeper into his critique of political economy. Initially crisis is explained as caused by the sluggish growth of consumer demand relative to production based on modern capitalist methods. After capital crisis is viewed as the result of excess demand for productive capital relative to its supply, an unbalance which causes prices to increase. As a result, the speculative phase which according to Marx is a phase that always precedes crisis and is mistakenly viewed as its ultimate cause can be integrated into the theory of crisis of overproduction as its immediate cause. Keywords: crisis, overproduction, underconsumption, overaccumulation.

    Subconsumo ou sobreacumulao? Debate terico e poltico para a anlise da crise atual

    GUSTAVO M. DE C. MELLO

    Resumo: A mais recente crise econmica mundial foi uma das mais profundas, abrangentes e violentas da histria do capitalismo. No obstante, existem mltiplas e divergentes explicaes sobre suas origens, seus desdobramentos, e as perspectivas por ela abertas. Ao sustentar, sem nenhuma pretenso de originalidade, que se trata de uma crise de so-breacumulao de capital, com mltiplas determinaes e inscrita na hodierna dinmica da acumulao de capital, e, por conseguinte, no meramente de uma crise decorrente do desregramento das finanas ou da falta de demanda efetiva, apontaremos os limites e o risco das respostas reformistas que proliferaram, sobretudo as concernentes ao fortaleci-mento do intervencionismo estatal. Para tanto, ser criticada a perspectiva subconsumista veiculada pela escola da Monthly Review.Palavras-chave: crise econmica mundial, crise financeira, crise de sobreacumulao, reformismo.Abstract: The most recent world economic crisis was one of the most deep, comprehensive and violent of the history of the capitalism. Nevertheless, there are multiple and divergent explanations on its origins, its unfolding, and the perspectives opened by it. While sup-porting, without any claim of originality, that this crisis is a crisis of overaccumulation of capital, with multiple determinations and inscribed in the present dynamic of the accumu-lation of capital, and, consequently, not merely of a crisis resulting from the disorder of the finances or of the lack of effective demand, we will point to the limits and the risk of the reformist answers that proliferated, especially concerning the strengthening of a state

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  • Crtica Marxista, n.37 217

    interventionism, under any variants of State capitalism. For that, there will be criticized the underconsumptionist perspective conveyed by the Monthly Reviews school.Keywords: world economic crisis, financial crisis, overaccumulation crisis, reformism.

    La teora del imperialismo de Rosa Luxemburg y sus crticos: la era de la Segunda Internacional

    MANUEL QUIROGA E DANIEL GAIDO

    Resumo: El libro La acumulacin del capital de Rosa Luxemburg, concebido con el fin de proporcionar una base terica a la lucha contra el imperialismo librada por el ala izquierda del partido socialdemcrata alemn y, por extensin, de la Segunda Internacional , fue objeto de furiosas polmicas desde el momento de su publicacin en 1913. Nuestra ponencia trata sobre la recepcin de dicha obra en el seno de la Segunda Internacional antes del estallido de la Primera Guerra Mundial, a la luz de los documentos recogidos en nuestro reciente libro Discovering Imperialism: Social Democracy to World War I (Brill, 2012). Dichos documentos son presentados segn su filiacin poltica, centrndo-nos primero en las reacciones de los tericos del ala centrista, nucleados en torno a Karl Kautsky en Alemania y a Otto Bauer en Austria, y luego en las actitudes de dos tericos del ala izquierda de la Segunda Internacional: el tribunista holands Anton Pannekoek y el lder del ala bolchevique del Partido Obrero Socialdemcrata de Rusia, Vladimir Lenin. Nuestro anlisis muestra que, si bien la condena a La acumulacin del capital por parte de los centristas fue casi unnime, su aceptacin por parte del ala izquierda dist de ser universal. De hecho, tanto Pannekoek como Lenin rechazaron la teora del imperialismo de Luxemburg y adoptaron los anlisis econmicos de un prominente vocero del ala centrista: el austro-marxista Rudolf Hilferding. Nuestro trabajo finaliza analizando las razones de dichos desencuentros tericos.Palabras clave: acumulacin, imperialismo, social-democracia.Abstract: The book The Accumulation of Capital by Rosa Luxemburg, conceived in order to provide a theoretical basis for the fight against imperialism waged by the left wing of the German Social Democratic Party and, by extension, of the Second International, was the subject of furious controversial from the moment of its publication in 1913. Our paper deals with the reception of that work within the Second International before the outbreak of the First World War, in the light of the documents in our recent book Disco-vering Imperialism: Social Democracy to World War I (Brill, 2012). These documents are presented according to their political affiliation, focusing first in the reactions of centrist wing theorists, gathered around Karl Kautsky in Germany and Otto Bauer in Austria,

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