artigo traduzido guillermo gómez-peña 140715

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1 EM DEFESA DA ARTE DA PERFORMANCE 1 Guillermo Gómez Peña 2 - “Com licença, poderia definir a arte da performance?” “Um monte de gente ‘estranha’ que gosta de andar pelada e gritar lemas esquerdistas sobre o palco” (Yuppie gringo em um bar). “Os artistas de performance são... maus atores” (Um “bom” ator). “Você está se referindo a esses liberais decadentes e elitistas que se escondem atrás da ‘arte’ para pedir dinheiro ao governo?” (Político republicano). “É uma coisa muito... muito bacana. Te faz... pensar e se cagar de tanto rir” (Meu sobrinho). “A Performance é tanto a antítese como o antídoto para a alta cultura” (Artista de performance). “Eu te respondo com uma piada: o que se obtém quando se cruza um comediante com um performero? Uma piada que ninguém entende” (Um amigo). INTRODUÇÃO Durante vinte anos, muitos jornalistas, membros do público e parentes me fizeram as mesmas perguntas de diferentes maneiras: O que é “exatamente” a arte da performance? E, o que faz um artista de performance ser, pensar e atuar como tal? Neste texto, tentarei responder a essas perguntas de maneira elíptica, criando um esboço poético de um performero em pé sobre o mapa da arte da performance no novo século, segundo minha percepção. Para ser coerente com minha própria prática estética, enquanto tento responder a essas espinhosas perguntas, 1 Publicado em John C. Dawsey, Regina P. Müller, Rose Satiko G. Hikiji & Marianna F. M. Monteiro (eds.), Antropologia e performance: ensaios Napedra, São Paulo, Terceiro Nome, 2013. Traduzido para o português por Bruna Nunes da Costa Triana (PPGAS/USP), da versão em espanhol publicada em Diana Taylor & Marcela Fuentes (eds.), Estudios avanzados de performance, México, Fondo de Cultura Económica, 2011. 2 www.pochanostra.com.

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Performer mexicano nos apresenta sua concepção de performance.

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1 EM DEFESA DA ARTE DA PERFORMANCE1 Guillermo Gmez Pea2 - Com licena, poderia definir a arte da performance? Ummontedegenteestranhaquegostadeandarpeladaegritarlemas esquerdistas sobre o palco (Yuppie gringo em um bar). Os artistas de performance so...mausatores(Umbomator).Vocestsereferindoaessesliberais decadenteseelitistasqueseescondematrsdaarteparapedirdinheiroao governo? (Poltico republicano). uma coisa muito... muito bacana. Te faz... pensar esecagardetantorir(Meusobrinho).APerformancetantoaanttesecomoo antdotoparaaaltacultura(Artistadeperformance).Euterespondocomuma piada:oqueseobtmquandosecruzaumcomediantecomumperformero?Uma piada que ningum entende (Um amigo). INTRODUO Durantevinteanos,muitosjornalistas,membrosdopblicoeparentesme fizeram as mesmas perguntas de diferentes maneiras: O que exatamente a arte daperformance?E,oque fazum artistadeperformanceser, pensareatuarcomo tal?Nestetexto,tentareiresponderaessasperguntasdemaneiraelptica,criando um esboo potico de um performero em p sobre o mapa da arte da performance nonovosculo,segundominhapercepo.Parasercoerentecomminhaprpria prticaesttica,enquantotentoresponderaessasespinhosasperguntas, 1PublicadoemJohnC.Dawsey,Regina P.Mller, RoseSatiko.!iki"i# Marianna$.M.Monteiro %eds.&,Antropologiaeperformance:ensaiosNapedra,S'oPaulo,(erceiro)ome,*+1,.Traduzido para o portugus por Bruna Nunes da Costa Triana (PPGAS/USP), da verso em espanhol publicada emDianaTaylor&MarcelaFuentes(eds.),Estudiosavanzadosdeperformance,Mxico,Fondode Cultura Econmica, 2011. * www.pochanostra.com. 2 atravessareiconstantementeasfronteirasentreateoriaeacrnica;entreos terrenosacidentadosdopessoaledosocial(entreoeueons),coma esperanadedescobriralgumasencruzilhadasepontesinteressantes.Tentarei escrever com toda a paixo, o valor e a clareza possvel, e faz-lo para leitores no especializados;porm,peoamavelmenteaoleitorquepreste ateno:a natureza escorregadiaeempermanentetransformaodessecampodificultaaoextremo traar definies simplistas. Como comentou o terico Richard Schechner, depois de ler a primeira versodeste texto: o problema, se que h um problema, que o campo da performance em geral muito grande e abrangente. Pode ser, e de fato ,aquiloqueosqueestofazendodizemser.Aomesmotempoepelamesma razo, o campo especfico muito pequeno e cheio de subterfgios; to pequeno comoaprpriaprxisdequemadesempenha.Nessesentido,nopresentetexto, tentarei articular exclusivamente minha viso. Devidoaofato dequemeoponhoaosdiscursosdominantes,especialmente quelesengendradosporminhaprpriapsiqu,estouplenamenteconscientede queminhavozdentrodestetextosomenteumaentreumamultidode subjetividades. De maneira alguma tento falar por outros, nem estabelecer fronteiras epostosdecontrolenomapadaperformance,nemdeclararilegtimanenhuma prticaartsticaquenosejacapturadaporminhacmera.Seoleitordetectar algumascontradiesconceituaiseinconsistnciasemminhaescrita (especialmente no uso do perigoso pronome ns, ou na localizao caprichosa de alguma fronteira), peo que me perdoe: sou contraditrio, como o so a maioria dos performeros que conheo. Para concluir esta introduo, quero agradecer de maneira atenciosa Richard Schechner,AdrianHeatfield,CarolinaPondedeLen,MarlneRamrez-Cancioe 3 NaraHeeman,porteremdesafiadodemodointeligenteasversesprviasdeste texto, sugerindo que eu abrisse mais portas e janelas; bem como Rebecca Solnit e KaytieJonson,pelaincomensurvelpacinciaaorevisarminhaestranhasintaxee incongrunciasconceituaisemingls(aversooriginalfoiescritanesseidioma). AlgumasdessasversesapareceramemArtPapers,assimcomoemumcatlogo intituladoLiveCulture,publicadopeloTateModernMuseum(Londres).Porfim, gostaria de agradecer Silvia Pelez, por sua extrema pacincia ao tentar fazer com quemeutextocruzasseinreverseafronteiradalinguagemparaserpublicadoem espanhol;etambmMarcelaFuentes,porafin-locomsuapacinciaesua inteligncia bicultural. A CARTOGRAFIA DA PERFORMANCE 1.O mapa Primeiro, desenhemos o mapa. Euvejoamimmesmocomoumcartgrafoexperimental.Nessesentido, possoaproximar-medeumadefiniodaartedaperformancetraandooespao negativo(comoentendidonafotografiaenocomonatica)deseuterritrio conceitual: ainda que em algumas ocasies nosso trabalho se sobreponha ao teatro experimental, e muitos de ns utilizamos a palavra falada, stricto sensu, no somos nematores,nempoetas.(Podemosseratoresepoetastemporrios,masnsnos regemos por outras regras e nos sustentamos em uma histria diferente). A maioria dos artistas da performance tambm formada por escritores, mas somente alguns de ns escrevemos para publicao. Teorizamos sobre a arte, a poltica e a cultura, 4 masnossasmetodologiasinterdisciplinaressodiferentesdaquelasprpriasaos tericos acadmicos. Eles utilizam binculos, ns usamos radares. De fato, quando osestudosacadmicossobreaperformance(performancestudiesouestudosda performance)sereferemaocampodaperformance,comfrequncia,estose referindoaalgodistinto,umcampomuitomaisamploquecompreendetudooque envolvearepresentaoeaencenaodacultura,incluindoaantropologia,as prticasreligiosas,aculturapopulareatmesmooseventosesportivosecvicos. Nstambmsomoscronistas de nossotempo, mas,diferentementedosjornalistas ou comentaristas sociais, nossas crnicas tendem a se afastar da narrativa e a ser multivocais.Seutilizamosohumornoestamosbuscandoagargalhada,comoo fazemnossosprimos,oscomediantes.Pelocontrrio,nosinteressaprovocara ambivalnciadorisonervosoemelanclicoouossorrisosdolorosos,emboraseja sempre bem-vindo um estouro ocasional de riso pleno. Muitos de ns somos exilados das artes visuais, mas raramente construmos objetoscomafinalidadedequesejamexpostosemmuseusegalerias.Defato, nossaprincipalobradeartenossoprpriocorpo,impregnadodeimplicaes semiticas,polticas,etnogrficas,cartogrficasemitolgicas.Diferentementedos artistas plsticos e dos escultores, quando criamos objetos, ns o fazemos para que sejammanipuladoseutilizadossemremorsoduranteaperformance.Nonos importa,naverdade,seessesobjetossegastamousedestroem.Quantomais utilizamosnossosartefatos,maiscarregadosepoderososelessetornam.A reciclagemnossoprincipalmodusoperandi.Eissonosdiferencia,deforma dramtica,damaioriadosdesignersdevesturio,adereosecenografia,osquais raramente reciclam suas criaes. 5 Por vezes, acionamos a esfera cvica e provamos nossos novos personagens e aes nas ruas, mas no somos artistas pblicos em um sentido estrito: as ruas somerasextensesdonossolaboratriodeperformance,galeriassemmuros. Muitosdensnosconsideramosativistas,porm,nossasestratgiasde comunicao e linguagens experimentais so consideravelmente distintas daquelas utilizadas pelos ativistas polticos. Em suma, ns somos o que os outros no so, dizemos o que os outros no dizem,eocupamososespaosculturaisque,emgeral,soignoradosou desprezados.Porisso,nossasnumerosascomunidadesestoconstitudaspor refugiados estticos, polticos, tnicos e de gnero. 2.O santurio Paramim,aartedaperformanceumterritrioconceitualcomclima caprichoso e fronteiras movedias; um lugar onde a contradio, a ambiguidade e o paradoxonososomentetolerados,masestimulados.Cadaterritrioondeatua umartistadaperformance,incluindoopresentetexto,produzumresultado ligeiramentediferentedodeseuvizinho.Encontramo-nosnesteterreno intermedirioprecisamenteporqueelenosasseguraliberdadesespeciaisque, muitasvezes,nossonegadasemoutrosespaos,ondesomosmeramente insiderstemporrios.Nessamedida,somosdesertoresdaortodoxia,engajadosna buscapermanentedeumsistemadepensamentopolticoeumaprxisesttica mais inclusivos. uma viagem solitria e mal compreendida, mas nos fascina. Aqui,atradiopesamenos, asregraspodemserquebradas, asleiseas estruturasestoemconstantetransformao,eningumprestamuitaatenos 6 hierarquias ou ao poder institucional. Aqui, no h governo nem autoridade visvel. Aqui,onicocontratosocialqueexistenossavontadededesafiarmodelose dogmasautoritriose,assim,continuarpressionandooslimitesdaculturaeda identidade.exatamentenasntidasfronteirasentreculturas,gneros,profisses, idiomaseformasartsticasquenossentimosmaisconfortveiseonde reconhecemosnossoscolegas.Somoscriaturasintersticiaisecidadosfronteirios pornaturezasimultaneamentemembroseintrusos,enosregozijamosnessa paradoxalcondio.Noatomesmodecruzarumafronteira,encontramosnossa emancipao... temporria. Diferentementedasfronteirasimpostasporumestado/nao,asfronteiras emnossopasdaperformanceestoabertasaosnmades,aosimigrantes,aos hbridos e aos desterrados. Nosso pas um santurio provisrio para outros artistas etericosrebeldes,expulsosdoscamposmonodisciplinaresedascomunidades separatistas. A performance tambm um lugar interno, inventado por cada um de ns, de acordo com nossas prprias aspiraes polticas e necessidades espirituais maisprofundas,nossosdesejoseobcessessexuaismaisobscuros,nossas lembranas mais perturbadoras e nossa busca inexorvel de liberdade. No momento emqueterminoestepargrafo,mordoalnguaaomedescobrirexcessivamente romntico. Sangro. sangue real. Meu pblico se preocupa. 3.O corpo humano Tradicionalmente,ocorpohumano,nossocorpoenoocenrio,o verdadeirolocalpara acriaoenossaverdadeiramatriaprima.nossatelaem branco, nosso instrumento musical e nosso livro aberto, nossa carta de navegao e 7 nossomapabiogrfico;orecipienteparanossasidentidadesemperptua transformao;emoutraspalavras,oconecentraldoaltar.Mesmoquando dependemos demasiadamente de objetos, locais e situaes, nosso corpo continua sendo a matriz da obra de arte. Nossocorpotambmocentroabsolutodenossouniversosimblicoum modelo em miniatura da humanidade3 (humankind e humanity so a mesma palavra emespanhol:humanidad)e,aomesmotempo,umametforadocorpo sociopoltico mais amplo.Sesomoscapazesde estabelecertodasessasconexes diante de um pblico, com sorte, outros tambm as reconhecero em seus prprios corpos. Nossascicatrizessopalavrasinvoluntriasnolivroabertodenossocorpo, do mesmo modo que nossas tatuagens, perfuraes (piercings), pinturas corporais, adereos, prteses e/ou acessrios robticos, so frases deliberadas. Nossaidentidadebody/corpo/arte-fatodevesermarcada,decorada,pintada, vestida, culturalmente intervinda, repolitizada, desenhada como um mapa, contada e finalmentedocumentada.Quandonossocorpoestferidooudoente, inevitavelmente, nossotrabalho muda.FrankMoore,RonAthey,FrancoB eoutros tm mostrado isso em suas obras, de forma bela e implacvel. Nossos corpos tambm so territrios ocupados. Talvez, o objetivo ltimo4 da performance,especialmentesevocformulher,gayouumpessoadecor(no ,Notadatraduomexicana:emingls,apalavrahumankindsignificahumanidade,raahumana, gnerohumano;humanityhumanidade,naturezahumana,bemcomocaractersticaseatributos humanos.Notextooriginalemingls,escritoporGuillermoGmezPea,apalavraestescritaem espanhol. -RichardSchechnerproblematizaoargumentodemeucorpo:Seocorpohumanoolugarltimo da performance, onde o deixa os artistas virtuais que s operam na rede usando avatares ou seres completamente digitalizados? Richard propicia uma situao cabeluda: deveramos considerar como reais os corpos virtuais? 8 anglo-saxnica),sejadescolonizarnossoscorposeevidenciaressesmecanismos descolonizadoresperanteopblico,comaesperanadequeelesseinspireme faam o mesmo por sua prpria conta. Ainda que respeitemos profundamente nossos corpos, curiosamente, no nos importacoloc-losemconstanteperigo.precisamentenastensesdoriscoque encontramosnossaspossibilidadescorpreasenossaraisondtre.Mesmoque nossos corpos sejam imperfeitos, frgeis e de aparncia estranha, no nos importa compartilh-loscompletamentedesnudoscomopblico,tampoucoofert-losem sacrifciocmeradevdeo.Noentanto,devoesclarecerumacoisa:noque sejamosexibicionistas(pelomenos,notodososomos).Naverdade,sempre dolorosoexibiredocumentarnossosimperfeitoscorpos,intervindospelacirurgia meditica,cobertosdeimplicaespolticaseculturais.Notemosoutraopo. quase um mandato, na falta de termo mais adequado. 4.Nosso trabalho Por acaso ns temos trabalho? Talvez nosso trabalho seja o de abrir um espao utpico/distpico temporrio, umazonadesmilitarizadanaqualocomportamentoradicalsignificativo(no superficial)eopensamentoprogressistasejampermitidos,aindaquesduranteo tempodeduraodapea.Estazonaimaginriapermite,tantoaoartistaquanto aosmembrosdopblico,assumirposieseidentidadesmltiplaseemcontnua transformao. Nesta zona fronteiria, a distncia entre o ns e o eles, o eu e o outro, a arte e a vida, torna-se embaada e no especfica. 9 Nobuscamosrespostas;simplesmentefazemosperguntasimpertinentes. Nessesentido,parausarumavelhametfora,nossotrabalhopoderiaconsistirem abriracaixadePandoradenossos tempos,bem no meiodagaleria,doteatro,da rua, ou na frente da cmera de vdeo, e deixar que os demnios surjam e dancem. Outros, melhor treinados os ativistas e os acadmicos , tero que lidar com eles, lutar contra eles, domestic-los ou tentar explic-los. Finda a performance, o pblico vai embora; resta-nos a esperana de que se tenhadesencadeadoumprocessodereflexoemsuasperplexaspsiqus.Sea performanceforeficaz(nodigoboa,massimeficaz),esseprocessopodedurar vriassemanas,atmesmomeses,easperguntasedilemasencarnadosnas imagenserituaisqueapresentamospodemcontinuarrondandoossonhos,as lembranas e as conversas do espectador. O objetivo no gostar de nem mesmo compreender a performance, mas sim criar um resduo na psiqu do pblico. 5.O culto inovao Ocampodaartedaperformanceestobcecadocomainovaoecomo presente,especialmentenospasesdoprimeiromundo,onde,comfrequncia,a inovaotomadacomosinnimodetransgresso,comoanttesedahistria.A performance se define a si mesma em oposio ao passado imediato e sempre em dilogocom um futuroiminenteeespeculativo.Amitologiadominantedizquens, osperformerossomosumatriboexcntricadepioneiros,inovadoresevisionrios. Issonospropeumtremendodesafio.Seperdermosocontatocomostemas sociais e as tendncias culturais do momento, facilmente podemos ficar datados da noiteparaodia.Emoutraspalavras,senoproduzimospropostasfrescase 10 inovadorasconstantemente,esenobuscamosnovosmodeloselinguagenspara nossas teorias e imagens, seremos deportados ao pas do esquecimento, enquanto outrostrinta,muitomaisjovenseselvagens,estaroesperandonafilaparanos substituir. Apressoqueexisteparacomprometer-secomesseprocessocontnuode reinveno(e,nosEstadosUnidos,dere-packaging),foraalgunsartistasa desistir dessa competio selvagem e outros a adotar um estilo de vida rockn roll estes,semasbenessesdaCorteeaexageradafamadosroqueiros.Aquelesque conseguemsobreviversesentem,muitasvezes,comoroqueirosdecadentes.No habsolutamentenadaderomnticoemnossaformadevida.Apenasaum punhado de ns se concede o privilgio de ter vrias reencarnaes como Bowie e Madonna no impiedoso mundo do pop5. 6.Kit para a sobrevivncia da identidade A performance nos deu uma lio extremamente importante que desafia todos osessencialismos:noestamospresosnacamisadeforadaidentidade.Temos um repertrio de identidades mltiplas e perambulamos constantemente entre elas. Sabemosmuitobemquecomousodeelementoscenogrficos,maquiagem, acessrios e vesturio, ns podemos muito bem reinventar nossa prpria identidade .AartistabrasileiradeperformanceNaraNeemanresponde:Compreendoanecessidadedeestar conectadacomocampodaperformance.Noentanto,mesintomuitotristecomaperspectivade estarpresadentrodeumajaula,osentirquetenhoqueproduzirparanoseresquecida.Acredito que se nos definimos a ns mesmos como artistas da performance dentro da mais alta categoria que podemos alcanar, ento talvez nos estressemos com as demandas do mercado (de fato, existe um mercadodaartedaperformance).Mas,senosdefinimossimplesmentecomoentesviventes,essa preocupao se converte em algo secundrio. 11 aosolhosdosoutros,enosfascinaexperimentarcomessetipodeconhecimento. Defato,ojogodeinverterasestruturassociais,tnicasedegneroparte intrnsecadenossaprxiscotidiana,damesmaformaqueotravestismocultural tambmo.Naperformance,assumiraidentidadedeoutrasculturase problematizaroprprioprocessoderepresentarooutrooudesefazerpassarpor umoutrohbrido,podeserumaestratgiaeficazdeantropologiainversa.No obstante,navidacotidiana,comovtimaspotenciaisdoracismo(falocomoum chicano6nosEstadosUnidos),assumirapersonalidadedeoutrasculturaspode, literalmente, salvar nossas vidas. Paradarumexemplo:quandomeuscolegaschicanoseeucruzamos fronteirasinternacionais,estamoscientesdequeparaevitarsermosenviados inspeo mais rigorosa podemos usar sombreros e trajes de mariachi e, assim, nos reinventamosinstantaneamentecomofriendlymexicans(mexicanosamigveis) diantedosolhosracistasdalei.Funciona.Mas,mesmoa,senosomos cuidadosos, nossa aura pode nos denunciar. 7.Sonhando em espanhol Sonheiemespanholqueumdiahaviadecididonuncamaisfazer performances em ingls. A partir desse momento, me dediquei a apresentar minhas prpriasideiaseminhaarteestritamenteemespanholesomenteparapblicos /Notadatraduobrasileira:chicanoumagriareferenteaoscidadosmexicanosquevivemnos EstadosUnidos.Optamospordeixarotermoemespanhol,enotraduzi-lo,porexemplo,para mexicano, devido s intencionalidades e ambiguidades que o termo guarda em sua utilizao tanto em ingls quanto em espanhol. 12 estadunidenses atnitos que no entendiam nada. Meu espanhol tornou-se cada vez mais retrico e complicado at o ponto em que perdi todo contato com meu pblico. Apesardosataquesdoscrticosracistas,teimeiemfalarespanhol.Meus colaboradoresseaborreceramecomearamameabandonar.Derepente,fiquei sozinho,falandoespanhol,entrefantasmasconceituaisanglfonos.Felizmente7, acordeiepudenovamentefazerperformancesemingls.Escreviemmeudirio: Os sonhos tendem a ser muito mais radicais que a realidade. Por isso, esto mais perto da arte que da vida. 8.O corpo insubstituvel possvelquenossospblicosexperimentem,indiretamente,isto,por intermdio de ns, outras possibilidades de liberdade esttica, poltica e sexual das quaiscarecememseucotidiano.Talvezsejaessaarazopelaqual,apesardas inmerasprevisesduranteosltimostrintaanos,aartedaperformanceno morreu,nemfoisubstitudapelovdeo,pelasnovastecnologias,pelarobticaou ainda pelos avatares virtuais. No incio dos anos 90, o performero australiano Stelarc advertiaqueocorpohumano(estava)tornando-seobsoleto,comentrioque, felizmente,nosetornourealidade.Porqu?Simplesmenteporqueimpossvel substituir a magia inefvel de um corpo pulsante, suado, imerso em um ritual vivo diante de nossos olhos. uma questo xamnica. Essafascinaopelaperformanceaovivotambmestconectada poderosamitologiadoartistadaperformancecomoanti-herieencarnaoda 0 O texto em itlico foi escrito pelo autor em espanhol no original. 13 contraculturadeseutempo.Paranossospblicos,realmente,noimportaque AnnieSprinklenosejaumaatrizpreparada,nemqueEmaVillanuevaouLa CongeladadeUvanosejambailarinastreinadas.Ospblicosassistem performance justamente para serem testemunhas de nossa experincia nica, e nopara aplaudir nosso virtuosismo. Quaisquerquesejamasrazes,ofatoquenenhumator,robou encarnao virtual (avatar) capaz de substituir o singular espetculo do corpo-em-aodoartistadaperformance.Simplesmente,nopossoimaginarumaatriz contratada,pormelhorqueelaseja,re-apresentando asintervenescirrgicasde Orlan.QuandosomostestemunhasdeStelarcapresentandoumnovobodysuit robtico ou um brinquedo de alta tecnologia, depois de quinze minutos tendemos a prestar mais ateno em seu corpo suado e em seu rosto do que propriamente em suaarmadurarobticaouemsuasextensesprotticas.Aparafernlia surpreendente,concordo;masocorpohumanosomadoidentidademticado artista da performance diante de ns permanece o centro mesmo do evento.Recentemente,aartistadaperformancecubanaTaniaBrugueraembarcou em um projeto extremamente ousado: abolir a presena fsica do performero durante suaprpriaperformance.Bruguerapedeantecipadamentequeoscuradores designemumapessoanormal,nonecessariamenteligadasartes,paraquea substitua durante a performance. Quando Tania chega ao local do projeto, troca sua identidadecomadapessoaescolhidaesetornaumasimplesassistenteparaa realizao dos desejos de sua colaboradora. Os curadores ficam boquiabertos. VOLTAR O OLHAR PARA DENTRO 14 1.Em permanente desacordo com a autoridade Sim.Estouempermanentedesacordocomaautoridade,sejaelapoltica, religiosa,sexualouesttica,equestionoconstantementeasestruturasimpostase os comportamentos dogmticos onde quer que os encontre. Assim que algum me dizoquedevofazerecomofaz-lo,meucabeloseeria,meusangueferve,e comeoaimaginarmodossurpreendentesparadesmantelaressaformaparticular deautoridade.Compartilhoessetraodepersonalidadecomamaioriademeus colegas.Defato,ns,performeros,semprebuscamosodesafioqueimplica desmantelar a autoridade abusiva. Talvezporqueemnossoempobrecidocampotenhamosmuitopoucoa perder,somadoaofatodequeliteralmentesomosalrgicosautoridade,nunca pensamos duas vezes por nos localizarmos na linha de fogo e denunciar a injustia socialondequerqueadetectemos.Assim,sempensarduasvezes,estamos semprepreparadosparajogarumatortanacaradeumpolticocorrupto,fazerum sinalobscenoparaoarrogantediretordeummuseuoucolocaremseulugarum jornalistaimpertinente,semnosimportarcomasconsequncias.Comfrequncia, essacaractersticadepersonalidadenosfazparecerantissociais,imaturose excessivamente dramticos aos olhos dos demais, mas no podemos evitar. uma questo visceral e, s vezes, um verdadeiro inconveniente de nossa personalidade. 2.Aliar-se com os de baixo 15 Vemosnossoprovvelfuturorefletidonosolhosdosindigentes,dospobres, dos desempregados, dos doentes e dos imigrantes recm-chegados. Nosso mundo se sobrepe ao deles. Frequentemente,sentimo-nosatradosemdireodaquelesqueapenas sobrevivemnasperigosasesquinasdasociedade:asprostitutas,osbbados,os loucoseosprisioneirossonossosirmoseirmsespirituais.Sentimosumaforte fraternidadeespiritualcomeles.Infelizmente,muitasvezes,elesseafogamnas guasemquensnadamos;soasmesmasguas,massetratadediferentes nveis de imerso. No terreno poltico, nossas aes no esto motivadas pela ideologia. Nosso humanismo reside na garganta, na pele, nos msculos, no corao, no plexo solar e nosrgosgenitais.Nossaempatiapelaorfandadesocialseexpressacomouma forma visceral de solidariedade com aqueles povos, comunidades ou pases imersos na opresso e nas violaes dos direitos humanos, com aquelas vtimas das guerras impostasedaspolticaseconmicasinjustas.Lamentavelmente,comomeafirmou recentemente atericaEllenZacco:[ns, osartistas]tendemosafalarporeles, o que muito presunoso. S posso concordar com ela. 3.Uma questo de vida ou morte Anuvemdoniilismonospersegueconstantemente,mas,dealgumaforma, escapamos dela. uma dana macabra. De maneira consciente ou no, dentro de nsmesmosdefatoacreditamosqueoquefazemosmudaavidadaspessoas,e tivemos muitas dificuldades para nos manter serenos em relao a isso. Para ns, a performance uma questo de vida ou morte. Muitas vezes, nosso senso de humor 16 empalidece diante de nossa sobriedade quando chega o momento de comprometer-se com um projeto de vida/arte. s vezes, nosso nvel de compromisso com nossas crenaspodebeirarofanatismo.Se,repentinamente,decidimosparardefalar durante um ms (quer dizer, investigar o silncio), caminhar durante trs dias para nos reconectarmos com o mundo social ou para investigar a especificidade do local de um projeto, cruzar a fronteira Mxico-Estados Unidos sem documentos para fazer umpronunciamentopoltico,nodescansaremosatterminarnossatarefa,no importamasconsequncias.Paranossosentesqueridos,issopodepareceruma loucura,poisdevemexercitarumapacinciapicaconosco.Devemvivercoma incertezaameaadoraeoprofundotemordonossocompromissoseguinteem direoaumprojetoaindamaistransformador.Benditossejamoscoraeseas mosdoscompanheiros(as)denossasvidassemprenosesperandoese preocupandoconosco.Eosriscosquecorremosemnomedaperformancenem sempre valem a pena. 4.Riscos necessrios e desnecessrios Mesmoquenssemprearrisquemosnossasvidaseintegridadefsicaem nomedaarte,raramentenossuicidamosouperdemosavidaporcausadeum acidenteprovocadopelaperformance,edefinitivamentenuncaassassinamos ningum. Em vinte anos andando e trabalhando com artistas da performance, nunca conheciumhomicida;somentetrscolegassesuicidaramedoisperderamsuas vidasdevidoafalhasdeclculoduranteumaperformance.Noprocessode encontrar as verdadeiras dimenses e possibilidades de uma nova pea, alguns de ns,demaneiraestpida,corremosriscosdesnecessriose,svezes,colocamos 17 emrisconossopblico,mas,felizmente,nadadegraveocorreuainda.Batotrs vezesna madeira.Citodeumde meusdirios:Queridopblico, tenhoquarenta e cincocicatrizes;ametadedelasproduzidaspelaarte,eestanoumametfora. Minhaobsessoartsticamelevouarealizaratosflagrantementeestpidosde transgresso,comoviverdentrodeumacaixadeacrlicoporvriosdiasexibindo umaidentidadefictcia,crucificar-mevestidodemariachiparaprotestarcontraa polticamigratriadosEUA,visitaroMuseuMetropolitanodeNovaYorkvestido comoElMadMexelevadopelopescoocomumacoleiradecachorroporuma dominatrix espanhola... Caros membros do pblico, por acaso desejam que eu seja maisexplcito...digamos,queeubebaumagarrafadeMsCleanparaexorcizar meus demniocoloniais?Lembroque emcertaocasioentregueiumpunhalaum membro do pblico e lhe ofereci meu plexo. (Pausa.) Mulher, eis aqui... meu corpo colonizadodisse-lheemtomdesafiador.Elaveioatmime,semhesitar,me apunhalou,infligindo-me,assim,minhacicatriznmero45.Elatinhaapenasvinte anos, eraporto-riquenha,e desconheciaadiferena entre aperformance,orock & roll e a vida da rua... Pssima frase. Apaga... 5.Teoria incorporada ao corpo Citodosmeusdiriosdeperformance:Nossainteligncia,comoados xamseadospoetas,simblicaeassociativa.Nossosistemadepensamento tendeapossuirfundamentostantoemocionaiscomocorporais.Defato,a performancesemprecomeaemnossapeleeemnossosmsculos,seprojeta sobre a esfera social e retorna, pela via da nossa psique, ao nosso corpo e nossa corrente sangunea, apenas para ser refratada novamente ao mundo social por meio 18 da documentao. Tendemos a desconfiar de todos aqueles pensamentos que no podemosencarnar.Tendemosanoconsideraraquelasideiasquenopodemos sentirprofundamente.Nessesentido,podemosdizerqueaperformanceuma teoria incorporada ao corpo.... Apesardofatodequeanalisamosascoisasobsessivamenteesobvrios refletores, quando chega a hora de tomar decises no dia a dia, tendemos a operar por meio do impulso (raramente por meio da lgica ou da convenincia) e tomamos decisesbaseadasnaintuio,nasuperstioenossonhos.Porisso,peranteos olhosdosdemais,parecemosseresensimesmados,comoseouniversogirasse permanentemente ao redor de nossa psiqu e de nosso corpo. Muitas vezes, nosso maior desafio consiste precisamente em escapar de nossa subjetividade a priso de nossas obsesses pessoais e de nosso desespero solipsista , e a performance seconvertenanicasada.Porintermdiodaperformance,nossoparadigma pessoal se cruza com o social.... 6.A vida cotidiana Se eu tentasse antropologizar minha vida cotidiana, o que encontraria? Cito uma srie de e-mails com um amigo peruano que procura entender como minha vida cotidiana em So Francisco: Querido X: os meandros de minha vida cotidiana soumverdadeiroinferno.Parasersincero,simplesmentenoseicomo administrar-me. Sou pssimo com dinheiro, assuntos administrativos, solicitao de bolsas, promoo pessoal e, com frequncia, confio na boa vontade de quem queira me ajudar. No tenho plano de sade nem automvel. No tenho casa prpria. Viajo muito,massemprecomrelaoao meutrabalho,eraramentetenho frias,longas 19 frias,comoasquetmaspessoasnormais.Estoupermanentementeendividado, mas,naverdade,eunomeimporto.Creioquepartedopreoquetenhoque pagarpornoterquemevercontinuamenteperturbadoporquestesfinanceiras. Sepudesseviversemcontaembanco,semcarteirademotorista,passaportee telefonecelular,euseriamuitofeliz,aindaqueestejaplenamenteconscienteda ingenuidade das minhas aspiraes anarco-rromnticas. Muitos colegas meus, aqui nochamadoprimeiromundo,estoemsituaosimilar.Eosartistasde performance de seu pas, como lidam com a cotidianidade? No,meuinimigomaisformidvelnemsempreaextremadireitada sociedade, mas sim minha prpria incapacidade de domesticar o caos cotidiano e de medisciplinar.Nafaltadeumempregodas9hs17h,deestruturassociais tradicionaisedosrequisitosrituaisdeoutrasdisciplinas(comoosensaios,as chamadasereuniesdeproduonoteatro,ouasvidasestruturadasesociveis dos danarinos e msicos), tendo a me sentir oprimido pela tirania da domesticidade e me perco facilmente no horror vacui de um escritrio/ateli vazio ou na tela lquida demeucomputadorporttil.Algumasvezes,atelademeucomputadorse transformaemumespelho,enogostodoquevejo.Amelancoliaregemeu processo criativo... No, no creio que a melancolia seja um trao de personalidade dos artistas chicanos. A performance sim uma necessidade. Se no fao performance durante um perodolongodetempo,digamosdoisoutrsmeses,ficoinsuportveledeixo loucosmeusentesqueridos.Umavezqueretornogaleriaouaocenrio, instantaneamente,mesobreponhominhaorfandademetafsicaeminha fragilidadepsicolgicaemetorno,comodizemosaqui,largerthanlife.Maistarde, nobar,voltareiarecuperarminhaverdadeiradimensoeminhasmediocridades 20 endmicas.Ohumorirreverentedemeuscolaboradoreseamigoscontribuicom este processo de, chamemos-lhe, apequenamento. Minhasalvao?Minhasalvaoresideemminhaprpriahabilidadepara criarumsistemaalternativodepensamentoeaocapazdeproporcionaruma estruturaritualizadaparaminhavidacotidiana...No,retirooquedisse.Minha verdadeirasalvaoacolaborao.Colaborocomoutrosnaesperanade desenvolver pontes entre minhas obsesses pessoais e o universo social. Certo.Souumpoucopeculiaraosolhosdemeusvizinhoseparentes.Falo comosanimais,comasplantasecommeusmltiplosseresinternos.Mefascina urinaraoarlivreemeperdernasruasdecidadesquedesconheo.Mefascinaa maquiagem,adecoraodocorpoearoupafeminina.Emespecial,gostode cyborgizar8aroupafolclrica.Paradoxalmente,nogostoquefiquemmeolhando. Sou uma contradio ambulante. E voc? Colecionofigurinhas,lembranas,talismsetrajesincomuns,objetos relacionados simbolicamente minha cosmologia, com a esperana de que um dia possamserteisem algumaobra. Trata-sedeminhaarqueologiapessoal,aqual remontaaodiaemquenasci.Comela,aondequerqueeuv,construoefmeros altaresparaancorar-me,reterritorializar-me,comodizemosacadmicos.Esses altaressotoeclticosecomplexoscomominhaprpriaestticaeminhas mltiplas identidades sincrticas. Souextremamentesupersticioso,masprefironofalarmuitoarespeito disso.Vejofantasmaseleiomensagenssimblicasemtodolugar.Dentrodemim, penso que existem leis metafsicas que regem tanto minha vida como meu processo 1 O termo cyborg se utiliza na atualidade para descrever um ser que metade humano e metade tecnologia. Nesse sentido, quando Gmez Pea se refere a cyborgizar a roupa, implica uma tecnologizao do vesturio. 21 criativo. Tudo para mim um processo, at mesmo dormir e caminhar. Meus amigos xams dizem que sou um xam que perdeu seu caminho. Gosto desta definio da arte da performance. 7.Arquivos disfuncionais Os artistas da performance possuem enormes arquivos em suas casas, mas estes no so precisamente funcionais. Em outras palavras, as outras histrias da arte contempornea esto literalmente enterradas em caixas midas, armazenadas nosguarda-roupasdosartistasdaperformanceemtodoomundo.Piorainda, algumas dessas caixas contm fotos e documentos nicos de performance; matrizes originaisdeudioevdeoe,muitasvezes,essesarquivosinsubstituveisse extraviam no processo de mudana para outra casa, cidade, projeto ou amante, ou no processo de adquirir uma nova identidade. Secadadepartamentodearteedeperformancestudiesemcada universidadefizesseumesforoporresgatardenossasdesajeitadasmosesses arquivosemperigo,sesalvariaumaimportantehistriaqueraramenteseescreve, precisamenteporqueconstituioespaonegativodacultura(comoentendidona fotografia, e no como na tica). 8.Ativistas desajeitados Compoucasexcees,ns,artistasdaperformance,somosdesajeitados mediadorespolticosepssimosorganizadorescomunitrios.Nossogrande dilema 22 aesserespeitoque,muitasvezes,nosvemosansmesmoscomoativistase, comotais,tentamosmobilizarnossascomunidadestnicasouprofissionais. Entretanto,osresultados,benditosejamnossoscoraes,comfrequnciaso pobres.Porqu?Perdemo-nosfacilmenteemquesteslogsticasediscusses pragmticas.Ademais,nossaspersonalidadesiconoclastas,nossasposturas antinacionalistasepropostasexperimentais,frequentemente,noscolocamem oposioaossetoresmaisconservadoresdentromesmodenossascomunidades. Porm,nuncaaprendemosestaliobsica:definitivamente,aorganizao comunitriaeanegociaopolticanosoonossoforte.Outros,maissagazes, devem ajudar-nos a organizar a estrutura de nossa loucura compartilhada e no o contrrio. Tambmpossumosoutrotipodehabilidadesedesempenhamosmelhor outrospapeisimportantesparanossacomunidade,taiscomoanimateurs, reformistas,inventoresdemetaficesoriginais,coregrafosdesurpreendentes aescoletivas,semiticosalternativosepiratasdamdia.Defato,nossas estratgiasestticas(eno nossashabilidadespolticas)podem serextremamente teisaosativistas.Comfrequncia,elescompreendemqueconvenienteter-nos porperto.Euassessoro,emsegredo,vriosativistas.Outros,comoMarcose Superbarrio, exmios ativistas da performance, seguem me inspirando. 9.A beleza fsica Nosomosnemmaisnemmenosbonitosquequalqueroutrapessoa;mas, tampoucoexibimosumportefsicomediano.Osatores,danarinosemodelosso maisatraentesdoquens.Osesportistaseaquelesquesededicamsartes 23 marciaisestoemmelhorforma,easestrelaspornsso,definitivamente,mais sensuais.Defato,nossoscorposenossosrostospossuemumaaparncia ambivalente;noentanto,emtroca,possumosumolharintenso,certapresena essencial e perigosa e uma qualidade tica em nossos traos e nossas mos. E isso nos torna confiveis aos proscritos e aos rebeldes, assim como altamente suspeitos s autoridades. Quando as pessoas nos olham nos olhos do-se conta, de imediato, que,comodizemosemingls,wemeanit.Istosetraduzemumtipodiferentede beleza. 10. A cultura da celebridade Parans,aculturadacelebridadedesconcertanteevergonhosa. Felizmente, nunca somos convidados para a manso da Playboy nem para as festas de nossas embaixadas quando estamos em turn. Se assistimos inaugurao da BienalnoWhitneymuitoprovvelquerapidamentenosentediemosounos sintamosoprimidos.Adespeitodenossaspersonalidadesbizarrasedenossa capacidade de compromisso com o chamado comportamento extremo, tendemos a sertmidoseinsegurosemsituaessociais.Nogostamos deconfraternizarcom ricosefamosos,equandoofazemossomosmuitodesajeitadoseacabamospor derramarvinhonocolodealgumoudizeralgoforadecontexto.Quandonos apresentamaumpotencialpatrocinadorouaalgumcrticodeartefamoso, ounos tornamosrudes porcausa dainsegurana ou ficamosentocatatnicos.Equando nossosfsnoselogiam,simplesmentenosabemoscomoresponder.Omais provvelquedesapareamosinstantaneamentenasruasounosescondamos durante uma hora no banheiro mais prximo. Obviamente, existem excees. 24 11. Uma lenda urbana svezes,nossouniversodeperformancepodeameaarnossosentes queridos.Nossocomportamentoextremonopalco,somadonossafrequente associaocomradicaissexuais,desajustadossociaiseexcntricos,podefazer comquenossosentesqueridossintam-seumpoucoinadequadosou desnorteadosdiantedenossoestranhouniverso.E,paracomplicaraindamais,as energias altamente sexualizadas e os corpos nus perambulando ao redor do espao antesdeumaperformancepodemtornar-sefacilmenteumafontedecimespara nosso(a)companheiro(a),quecomfrequnciapassa(mal)tentandodiferenciaro real do simblico. O grande paradoxo aqui que, apesar de nossas excentricidades sexuaisnopalco(certamentesimblicas),edenossadisposioparaapresentar-nos nus, tendemos a ser muito leais e comprometidos com nosso(a) companheiro(a) efamlias.Nossadecadnciaumalendaurbana,eempalidecesecomparada dos convidados dos talk shows e conduta dos sacerdotes catlicos. A PERFORMANCE DIANTE DO TEATRO, DO MUNDO DA ARTE E DA CULTURA DOMINANTE 1.Performance e Teatro Antesdecruzaraseguinteeperigosafronteira,devemosreconheceras importantescontribuiesdoteatroexperimental(oLivingTheater,oPerformance 25 Group, Jodorowsky, entre outros) no desenvolvimento da performance, bem como a influncia mais recente que a arte da performance tem tido sobre o teatro cada vez queesseseencontraemcrise.Tendoditoisso,agoratentareiaventurar-mena perigosssima zona fronteiria entre o teatro e a performance. Apesardeambosocuparemcomfrequnciaomesmocenrio,halgumas diferenasfundamentais:ovirtuosismo,oentretenimentoeasatitudeshistrinicas so muito apreciadas no teatro, enquanto na performance so muito mais estimadas aoriginalidade,ocontedoeocarisma.Inclusive,asformasmaisexperimentaise antinarrativas do teatro, que no dependem de um texto, tm um princpio, uma crise dramtica(ouvrias)eumfinal.Umeventoouaodeperformance simplesmente o segmento de um processo muito maior que no est disponvel para opblicoe,nessesentido,strictosensu,notemprincpionemfim.Ns simplesmente escolhemos uma poro de nosso processo e abrimos as portas para expor essa experincia ao pblico. A maioria das estruturas do teatro ocidental (inclusive a dos grupos de teatro deensembleoucooperativaeosteatrosrebeldescoletivos)tendemaser,de alguma maneira, hierrquicas, com uma diviso especializada do trabalho (o lder ou visionrio, os melhores atores, os atores coadjuvantes e a equipe tcnica, cada um se ocupando de uma tarefa especfica). A estrutura da performance tende a ser mais horizontal,descentralizadaeemconstantemudana.Naperformancecadaprojeto exige uma diviso de trabalho distinta. E quando trabalhamos em peas de uma s pessoa,nsnosconvertemosemprodutores,escritores,diretoreseexecutoresde nosso prprio material. Desenhamos as luzes, o som e o vesturio, inclusive. No h nada de heroico nisso; simplesmente assim. 26 Naprticateatralbaseadanotexto,umavezqueoroteirofinalizado,os atoresomemorizameensaiamobsessivamenteeeleserrepresentadoda mesmaformatodasasnoites.Naperformance,sejacomotextoousemele,o roteirosomenteumdiagramadaao,umhipertextoquecontemplamltiplas contingnciaseopesequenuncaestfinalizado.Cadavezquepublicoum roteirodevoadvertiroleitor:Estasumaversodotexto.Naprximasemana, seguramente, ser diferente. Para ns, os ensaios, no sentido tradicional, no so to importantes. De fato, ns, os artistas da performance passamos mais tempo investigando o lugar e o tema do projeto, reunindo adereos e objetos, estudando seus pblicos, debatendo ideias comnossoscolaboradores,escrevendonotasrebuscadasepreparando-nos psicologicamente,doqueensaiandodeportasfechadas.simplesmenteum processo diferente. No palco, os artistas da performance raras vezes representam outros. Em vez disso, permitimos que se desdobre a multiplicidade de nossos eus e vozes, e que representem suas frices e contradies diante do pblico9. A esse respeito,NaraHeemandisse:Representarsignificariaserdiferentedoque estamosfazendo.Nossoconhecimentoenossasimagenscorporificadassso possveisporquesorealmentenossos.Estejamostreinadosouno(namaioria dasvezes,nsnoestamos),issoseparaosartistasdaperformance, dramaticamente, dos atores de teatro de uma s pessoa, que representam mltiplos personagens:quandoAnnaDeavere-Smith,EliaArceouEricBogosianexecutam mltiplos personagens, no os representam nem os atuam. Pelo contrrio, eles se transformamdentroeforadelessemdesaparecercompletamentecomoeles 2Emingls,personasignificapersonagem,nosentidodecharacter.Todavia,paraocasoda performance,diferencia-sepersonagem,queimplicarepresentaroutro,epersonaqueserefereao artista mesmo dramatizando complexidades. 27 mesmos. Isto , ocupam um espao entre o atuar e ser eles prprios. A certa altura desuasvidas,algunsatoresdeteatrodeumaspessoa,comoSpaldingGraye JerusaRodrguez,decidiramcruzaratnuelinhaataperformance,embuscade liberdade e de perigo. Que sejam bem vindos. Obviamente, existem muitas excees regra de ambos os lados do espelho; e existem tambm muitos tipos de espelhos10. 2.Um artista da performance sonha em ser um ator Sonhei que eu era um bom ator, no um artista da performance, mas sim um verdadeiroator,edosbons.Podiarepresentarmimeticamenteoutrosemumfilme ou em uma pea de teatro, e era to convincente como ator que podia converter-me nessaoutrapessoa,esquecendocompletamentequemeraeu.Opersonagem teatralqueeurepresentavaemmeusonhoeraodeumartistadaperformance; algumqueodiavaaatuaonaturalistaeorealismosocialepsicolgico;algum que depreciava o artifcio, a maquiagem, o vesturio, as linhas decoradas. Em meu sonho, o artista da performance comeou a se rebelar contra o ator, ou seja, contra simesmo.Faziacoisasestranhas,comoporexemplonofalardurantetodauma semana, mover-se em cmera lenta durante todo o dia ou maquiar-se de forma tribal e sair pela rua para desafiar o sentido do familiar nas pessoas. 1+RichardSchechnermeadverte:Eudiriaquenecessriotomarcertadistnciatericapara separaroteatroquerepresentadramas(obras),doteatroquediretoouqueapresentao executante sem obra. Tambm devemos reconhecer que no teatro de drama os atores no geral no so atores; enquanto na arte da performance os executores quase sempre so tambm os autores. 28 O artista da performance estava claramente jogando com minha mente, e eu, obomator,meconfunditantoqueacabeiexperimentandoumcolapsototalde identidade. J no sabia como atuar. Um dia, adotei uma estereotipada posio fetal e prostrei-me dentro de uma grande vitrine de exibio durante uma semana inteira. Porsorte,eraapenasumsonho.Quandofinalmentedespertei,seguiasendoo mesmo e velho artista da performance, e me senti agradecido por no saber atuar. 3.Tempo e espao Na performance as noes de tempo e espao so complicadas. Temos que lidarcomumagoraeumaquihiper-intensificados;temosquevagarnoespao ambguoentreotemporealeotemporitual,emoposioaotempoteatralou fictcio. (O tempo ritual no deve ser confundido com o movimento em cmera lenta.) Temosquelidarcomapresenaecomaatitudedesafianteemoposio representaoouprofundidadepsicolgica,comoestaraquieagoraneste espaoemoposioaoatuaroufingirquesomosouestamossendo.Richard Schechnerelaboraaseguinteideia:Naartedaperformanceadistnciaentreo real-verdadeiro(socialepessoal)eosimblicomuitomenorquenoteatrode drama, em que quase tudo consiste em fingir, em que inclusive o real (uma xcara de caf, uma cadeira) se converte em fingimento. Assim como o tempo, para ns, o espao tambm real, do ponto de vista fenomenolgico. O edifcio onde acontece a performance exatamente este edifcio. Aperformanceaconteceprecisamentenodiaenotempoemqueocorre,eno precisolugaremqueocorre.Noexistemagiateatral.Nohsuspensode 29 inverosimilhana11.Permanecesemrespostaaespinhosaperguntaseaarteda performance pode ou no existir no espao virtual. A performance , portanto, uma forma de ser e estar no espao, frente a (ou emtornode)umpblicoespecfico.Tambmumolharintensificado,umsentido nicodepropsitonomanejodeobjetos,decompromissosedepalavrase,ao mesmotempo,umaatitudeontolgicaemdireoaouniverso.Xams,faquires, dervixesemerlicoscompreendemissomuitobem.Mas,amaioriadosatores dramticosedosdanarinos,infelizmente,assimnooentende.Ento,me pergunto se este no um preconceito meu. 4.O Mundo da Arte NossarelaocomoMundodaArte(emmaisculas)agridoce. Tradicionalmente, operamos nas fronteiras culturais e nas margens sociais onde nos sentimos mais cmodos. Cada vez que nos aventuramos aos luxuosos templos ps-modernos da alta cultura digamos, para apresentar nosso trabalho em um museu importante,tendemosanossentirumpoucodeslocados.Durantenossabreve estadia,fazemosamizadescomosseguranas,comopessoaldalimpezaecom aquelesquetrabalhamnodepartamentoeducativo.Oscuradoreseosaltos funcionriosnosobservamcombinculos,mantendocertadistncia.Apenasna noite anterior nossa partida que seremos convidados para tomar uns drinques. Asinstituiesartsticasdominantesdedicamumarelaodeamoredio conosco(oumelhor,comoqueelespercebemquensrepresentamos).Sempre 11 Esse sentido se refere conveno, ao acordo de que o que estamos vendo no real. 30 quenosconvidam,trememnervosamente,comose,emsegredo,esperassemque fssemos destruir as paredes da galeria, arranhar uma pintura com algum objeto, ou ainda urinar no saguo. difcil se desfazer desse estigma, que remonta aos dias do NEAfour(1989-1991)12,quandoosartistasdaperformance,tidoscomo provocadoresirresponsveiseterroristasculturaispelospolticosepelos representantesdosmeiosdecomunicao,formamospartedeumagrandelista negra. Cadavezqueterminoumprojetoemumagrandeinstituio,odiretorme chama, no dia anterior minha partida, e diz: Guillermo, obrigado por ter sido... to amvel e profissional. No fundo, talvez se sinta um pouco desapontado porque no me comportei de maneira similar aos meus personagens de performance. 5.Sonho etnogrfico Sonhei que meu colega Juan Ybarra e eu estvamos em exibio permanente emumMuseudeHistriaNatural.ramosespcimeshumanosdeumararatribo urbanaps-mexicanaevivamosdentrodecaixasdeacrlico,juntocomoutros espcimeseanimaisdissecados.Osdocentesdomuseunosalimentavamcom suasmosenoslevavamaobanheirocomcoleirasdecachorro.Ocasionalmente, algumcuradornoslimpavacomumespanadorenquanto,secretamente,sentia apetite carnal por ns. Nosso trabalho no era to emocionante, mas, por desgraa, postoquesetratavadeumsonho,nopodamosmudaroroteiro.Eramaisou 1*Se refere ao famoso caso doveredito do National Endowment for theArts (NEA) [Fundo Nacional dasArtes]nosEstadosUnidosquenegousubsdioaosartistasdaperformanceKarenFinley,John Fleck, Holly Hughes e Tim Miller pelo contedo de sua obra. 31 menosassim:das10hs17h,alternvamosaesritualizadasemcmeralenta com demonstraes didticas de nossos costumes e prticas artsticas, e fazamos roupatribalautnticadesenhadaporumdoscuradores.Aosdomingos,abriama partedianteiradascaixasdeacrlicoparaqueopblicopudesseteruma experincia mais direta, hands-on como dizem os gringos. Um membro do pessoal do departamento educativo nos pedia para deixar o pblico nos tocar, sentir nossos cheirose,tambm,trocarnossaroupaealteraraposiodenossoscorpos.Para algumaspessoas,inclusive,erapermitidosentar-seemnossaspernasefazerde ns o que quisessem. Era uma piada, uma vergonha etnogrfica; mas, como Juan e eu ramos meros espcimes e no artistas, nada podamos fazer a respeito. Certodiahouveumincndio.Evacuaramoedifcio;restamosns. Repentinamente, tudo estava se incendiando. Era algo lindo. Nunca voltei a ter esse sonho. Suponho que perdi a vida durante o incndio. 6.Deportado/descoberto Oauto-proclamadomundodaarteinternacionalmudacontinuamentesua atitudeemrelaoaosartistasdaperformance.Cadavezqueomundodaarte passa por uma crise de ideias pedem-nos para que dele participemos, por um curto perodo. Em um ano estamos in (se nossa esttica, etnicidade ou poltica de gnero coincidem com suas tendncias) e no ano seguinte estamos out. Somos bem-vindos edeportadosumaeoutravezdemaneiratoconstantequejnosacostumamos comisso.(Agora,seproduzimosvdeo,fotografiadasperformancesouarte-instalao como extenso de nossa obra performativa, ento temos a oportunidade desermosconvidadoscommaiorfrequncia.)Emrealidade,nonosincomoda 32 possuiradesotemporriaaomundodaarteinternacional.Nossainvisibilidade parcial,emrealidade,umprivilgio;garante-noscertasliberdadesespeciaise certarespeitabilidade(aquelaqueimpeomedo)queosmembrosfixose constanteseosdarlingsdaartesimplesmentenotm.Graasaessaliberdade extra,podemosdesaparecerocasionalmenteereinventar-nosumavezmais,nas sombras e nas runas da civilizao ocidental. Em vinte e dois anos de fazer artstico daperformance,fuideportadoaomenossetevezesdomundodaarte,paraser (re)descobertosomentenoanoseguintesobumanovaluz:artemexicana,latina, multicultural ou hbrida? Arte etno-tecno ou estrangeira? Arte chicana ciber-punk ou extrema? Qual seria a prxima, ento? A arte neo-aztec/hi-tech ps-retro-pop-colonial? Espero pacientemente a chegada da etiqueta seguinte. 7.Nomenclatura marginalizante Anomenclatura,osadjetivoseasetiquetasnaartecontriburamparaa permanente marginalizao da arte da performance. Desde os anos 1930, os muitos auto-denominadosmundosdaartedatendnciadominanteemcadapasse referiramdemaneiraconvenienteaosartistasdaperformancecomoalternativos (em relao ao qu?, arte verdadeira?), perifricos (ao seu prprio centro auto-imposto?),experimentais,comoquerendodizerempermanenteprocessode prova,ouheterodoxos(emcombatemortalcomatradio).Senssomosde cor(equemnoo?)sempresomosetiquetadoscomoemergentes(a condescendenteversoartsticadoschamadospasesemviasde desenvolvimento) ou como recm-descobertos, como se fssemos espcimes de umaexticatriboesttica.Muitofrequentemente,ns,carentesdereflexoe 33 desejososdefazerpartedacontracultura,aceitamostalterminologia.Inclusive,a palavraradical,queamideutilizamosnsmesmosparanomearnossaprxis, chegaaserempregadapelatendnciadominante(mainstream)comoumaluz vermelha, com o perigoso subtexto de: Comportamento imprevisvel. Manuseie sob sua inteira responsabilidade e risco. 8.Os criminosos da arte Osartistasdaperformancefacilmentesotachadosdecriminosos.As imagensaltamentecarregadasdeimplicaessexuais,polticasoureligiosasque produzimos, conjugadas s mitologias que nos envolvem por sermos personalidades pblicas, nos convertem em alvos reconhecveis da ira de polticos oportunistas e de jornalistasconservadorescomsededesangue.Elesadoramretratar-noscomo inadaptados sociais e promscuos, provocadores gratuitos ou (nos Estados Unidos) como bomios elitistas financiados pelo establishment liberal. Diferentemente da maioriadosmeuscolegasqueseassustamcomessesataques,amimno preocupamuitoessaequivocadacaracterizao,poiscreioquenosoutorgauma certarespeitabilidadeepoderesimerecidos,comoanti-heriseladresdacultura. Ospolticosconservadoresestoplenamenteconscientesdopoderdaarteda performance.Equandochegaahoradoscortesnooramento,oprimeiroa desapareceraartedaperformance.Porqu?Elesalegamquesomos decadentes,elitistasou(nosEstadosUnidos)antiamericanos.Defato,os republicanosestadunidensesadoramcaracterizarnossotrabalhocomoumtipode pornografiacomunistaexcntrica,masreconheamo-loofatoqueesses idelogos sabem muito bem que extremamente difcil nos domesticar. Quando um 34 polticoatacaaartedaperformance,porqueseirritaquandovsuaprpria imagem,de mentetacanhaouintolerante,refletidadecabea no ntidoespelhoda arte.Vm-medeimediatonamenteosrostoshorripilantesdeHelms,Buchanane Guiliani. 9.O Mainstream do bizarro Nosltimosseteanostemocorridoumfenmenoquenostemdeixado perplexos:achamadatendnciadominantedevorouliteralmentealinguagemeo imaginrio das muito solicitadas margens quanto mais espinhosas e afiadas so asbordas,melhoreaperformancesetransformouliteralmenteemuma estratgiademarketingsexyabertamentepop.HighPerformance,alendria revistadeLosAngelesdedicadaperformance,agoraumlemadecomercialde carros;oimbecilapresentadordoprogramadaMTVJackAss(JuanAsno/Joo Idiota)eobrega-macabroHowardSternseautodenominamartistasde performance, e tambm o fazem Madonna, Iggy Pop, Bowie e Marilyn Manson. Aspersonalidadesperformativas,ocomportamentoradicalea interatividade superficial so celebrados com regularidade nos reality shows, nos talk showsenosesportesextremos.Defato,todooextremohojeemdiaanorma. Nessenovocontexto,mepergunto:comopodemospblicosjovensenovos diferenciar entre as aes transgressoras e extremas de Annie Sprinkle, Orlan ou deumservidor,eosconvidadosdeJerrySpringerouLauradaAmrica?Oque diferencia ns de eles ? Algum poderia responder: O contedo. Porm, o que acontece se o contedo j no importa tanto atualmente? O mesmo ocorre com a profundidade e a diferena. Ento, ficamos sem trabalho? Ou deveramos redefinir, 35 maisumavez,pelaensimavez,nossosnovospapisemumanovaera?Preso entre o antigo dialeto marginalizante e o carter distintivo de tudo que impactante cabeouvaledatendnciadominanteexcntrica(omainstreamdobizarro),o terreno da performance se encontra diante de uma urgente necessidade de voltar e novamentemarcarseuterritrioeredefinirasnoesbinriasdecentro/periferia, tendnciadominante/sub-cultura.Talvezumaestratgiatilparanspossaser ocuparumcentrofictcioeempurraraculturadominanteemdireossuas verdadeiras margens indesejveis. 10. Perguntas espinhosas A seguir, apresento algumas perguntas tpicas que me fazem os jornalistas da cultura dominante anglo-saxnica, acompanhadas de algumas respostas igualmente tpicas de um servidor: Jornalista: A performance algo relativamente novo? GP: No. Toda cultura possui espaos assinalados para a renovao da tradio e espaosparaocomportamentocontestadoredesviante.Aquelesqueocupam esses ltimos gozam de certas liberdades espaciais. Jornalista: Voc pode discorrer mais sobre essa ideia? GP:Nasculturasindgenasamericanas,porexemplo,eraoxam,ocoiote,o nanabushquepossuapermissoparacruzarasperigosasfronteirasdossonhos, do gnero, da loucura e da bruxaria. Na cultura ocidental, esse espao liminar est ocupadopeloartistadaperformance,oanti-hericontemporneo porexcelncia, o provocador aceito. Sabemos que esse lugar existe e ns simplesmente o ocupamos. 36 Jornalista:Noentendo.Qual,ento,afunodaartedaperformance?Por acaso existe alguma? GP:(Longapausa).Osartistasdaperformancesoumconstantelembreteparaa sociedadesobreaspossibilidadesdeoutroscomportamentosartsticos,polticos, sexuaiseespirituais;eesta,devodizercomveemncia,umafuno veementemente importante. Jornalista: Por qu? GP:Porqueajudaosoutrosasereconectaremcomaszonasproibidasdesua psiquedeseuscorposeareconheceraspossibilidadesdesuasprprias liberdades. Nessa medida, a arte da performance pode ser to til como a medicina, aengenharia;eosartistasdaperformancesotonecessrioscomoas enfermeiras, os professores, os sacerdotes, ou os taxistas. A maior parte do tempo, nem ao menos ns mesmos somos conscientes dessas funes. Jornalista: O que quero saber : o que a arte da performance fez por voc? GP: Por mim? (Pausa longa). Ensinou-me a responder. uma forma de lutar ou de responder.Tambmmeajudouarecuperarmeuextraviadosercvico,eareunir pedaos de minha identidade fragmentada. Jornalista:SenhorComesPiaouComesPenis(pronunciadoemgringonhol), pensa nisso todos os dias, isto , durante todo o dia? GP:Claroqueno,amaiorpartedotempoeusigocomminhavidacotidiana; escrevo, investigo, me emociono com um projeto, pago minhas dvidas, me recupero deumresfriadoeesperoansiosoumamgicachamadatelefnica,paraser convidado a apresentar minha obra em uma cidade ou pas aonde nunca fui... Jornalista: Creio que no estou sendo claro: o que realmente quero saber o que a arte da performance lhe ensinou? 37 GP: Ah, voc quer um soundbite (uma frase de efeito), no verdade? Jornalista: Sim... GP:Muitobem,deixe-mepensarumpouco...(Pausadramtica).Avai.Uma autocitao: Quando eu era mais jovem, a performance me ensinou a responder s autoridades.Ultimamente,estmeensinandoaescutarcommuitaatenoos demais... inclusive os babacas. Damesmaformaqueaperformance,estetextotambmestinconcluso,e seguirmudandodeordeme estilonosmesesseguintes.Comoumguerreirosem glria, eu desligo meu computador. Continuar... janeiro de 2004.