artigo p. jerónimo lobo
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8/20/2019 Artigo P. Jerónimo Lobo
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João Paulo Cabral*
João Manuel da Silva Martins**
Brotéria 180 (2015) 321-327
* Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.** Passeio Vitorino Nemésio, 2 - 13º A, 2780-170 Oeiras.
Padre Jerónimo Lobo, SJ– um missionário
e um naturalista no Índico
1. Portugueses, ingleses e holandeses no Índico
O estabelecimento dos portugueses na costa oriental africananão foi muito difícil: a atividade comercial que anterior-
mente se realizava continuou; dos agentes externos, alguns
mercadores muçulmanos foram substituídos por mercadores
cristãos; muitos autóctones da costa oriental da África, acostu-
mados à prática do comércio, continuaram as suas atividades
(Bethencourt, 2010; Pearson, 2010).
Nos inícios do século XVI, as principais cidades da costa
suaíli eram Quíloa, Mombaça, Melinde, Pate e Mogadíscio.Estes portos eram politicamente autónomos, existindo acér-
rima concorrência entre eles. A atividade comercial era flores-
cente. A cultura era predominantemente islâmica com influên-
cia persa: boa parte do comércio ultramarino de longo curso
era controlado por comerciantes do Hadramaut e do Iémen,
mas também por guzarates que ali vinham com as monções e
que, ao contrário dos mercadores muçulmanos, não se demo-
ravam muito tempo. Além do ouro e dos escravos, o marfim
era um importante produto comercial que estes entrepostos
suaílis obtinham dos negros não-islamizados, trocando-o por
têxteis e outras mercadorias manufaturadas trazidas do Golfo
Pérsico, do Mar Vermelho e da Índia (Boxer, 1981, p. 60;
Pearson, 2010; Thornton, 2010).
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Na segunda metade do século XVI chegam a Inglaterra
os relatos de viagens ao Oriente de portugueses e de outros
exploradores, os quais despertaram bastante interesse entre
mercadores, viajantes e aventureiros. As cartas do padre inglês
Thomas Stevens SJ1
, que tinha ido em missão para Goa em1579 numa embarcação portuguesa, trouxeram mais elemen-
tos informativos sobre tão longínquas paragens. As suas cartas
para a família terão chegado ao conhecimento de comercian-
tes estabelecidos em Londres. Em 1589 mercadores ingleses
pedem à rainha Isabel I autorização para se aventurarem no
comércio do Índico. A Companhia Inglesa da Índia Oriental
é criada por alvará da rainha inglesa em setembro de 1600. A
partir de então todos os anos partiam frotas da Companhia ede empresas privadas em direção ao Índico. Os ingleses con-
centraram as suas atividades comerciais nas regiões do Golfo
Pérsico, Cambaia, Bengala e sudeste Asiático. A sua presença
limitou-se a feitorias típicas, sem qualquer controlo político
ou territorial, situação que só se modificará em 1665 com a
aquisição de Bombaim como parte do dote de casamento de
Catarina de Bragança (Bethencourt, 2010).
Além da presença inglesa, também os holandeses pene-
tram nas redes comerciais que ligavam o velho continente
ao Índico. Em 1594, a Holanda e a Zelândia fundavam a
Companhia das Índias que se instalou em Java. Para enfren-
tar as marinhas de Portugal e de Espanha, as companhias
holandesas uniram-se. Em 1602, por iniciativa de Johan van
Oldenbarnevelt, a companhia holandesa e a zelandesa fun-
dem-se para originar a Companhia Holandesa das Índias
Orientais (Vereenigde Oostindische Compagnie - VOC). Todos
os anos, grandes frotas chegavam à Índia carregadas de pro-
dutos ocidentais (e dinheiro metálico) que seriam trocados
por mercadorias orientais. A partir de 1636, Goa esteve muitas
vezes bloqueada por forças navais holandesas. A conquista de
Malaca, em 1641, deu aos holandeses o domínio da navegação
entre a Índia e a China, retirando-o definitivamente aos portu-
gueses. Nos anos seguintes, apoderam-se de todas as feitorias
e colónias portuguesas do Malabar. Os termos da paz seriam
1
Thomas Stevens (ca. 1550--1619) estudou em Oxford,tendo terminado a sua for-mação em 1577. Mantém--se dentro do catolicismo,no seio do qual tinha sidoeducado durante o reinadoda rainha católica de Ingla-terra e Irlanda Maria I. Coma mudança de orientaçãoreligiosa da coroa inglesa,Stevens partiu para Roma eentrou para a Companhia
de Jesus. Partiu para Goaem 1579, aí vivendo até àsua morte (Ryley, 1899, pp.211-213; Johnston, 1913,pp. 150-151).
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assinados alguns anos mais tarde em Lisboa e em Haia. A
Companhia Holandesa tinha agora o controlo do comércio do
cravinho, da maçã e da noz-moscada das Molucas, da canela
de Ceilão e da pimenta do Malabar. Decaía definitivamente a
presença portuguesa no Índico. No entanto, na África Oriental,os holandeses falharam por duas vezes a tomada da Ilha de
Moçambique aos portugueses, pelo que as suas ações se volta-
ram para a África do Sul (Pirenne, 1951, pp. 442-446, 496-498;
Boxer, 1981, pp. 117-135; Pearson, 2010).
A presença inglesa e holandesa no Índico teria con-
sequências a nível do conhecimento da história natural da
região. Os naturalistas destes países levam a cabo trabalhos
de reconhecimento da flora e da fauna das costas do Índico,complementando o trabalho pioneiro de portugueses como
Garcia de Orta, Cristóvão da Costa e também do P.e Jerónimo
Lobo SJ, que analisaremos de seguida.
2. Missões do P.e Jerónimo Lobo no contexto dapresença portuguesa e da Companhia de Jesus na
EtiópiaO estabelecimento de uma relação próxima entre Portugal e
a Etiópia foi um processo lento. D. João III escreveu ao seu
embaixador em Roma, Baltasar de Faria, para solicitar de
Inácio de Loiola a nomeação do P.e Fabre (Pedro Fabro) para
patriarca da Etiópia, a qual não se concretizaria, por morte
de Fabro. O assunto apenas teve seguimento em 1553, com
a nomeação do P.e João Nunes Barreto (Vaz, 1965, p. 148).
Ao mesmo tempo que decorriam as negociações com vista
à nomeação dos bispos destinados para a Etiópia, D. João
III ordenava ao governo da Índia que fosse enviada àquele
território uma embaixada para auscultar o imperador Atanaf
Sagad I (Galawdewos ou Claudius) sobre as nomeações dos
padres jesuítas e uma reconciliação com a Igreja de Roma.
Na sequência, o vice-rei D. Pedro de Mascarenhas enviava
em 1555 o embaixador Diogo Dias, acompanhado do jesuíta
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P.e Gonçalo Rodrigues e do irmão Fulgêncio Freire, com des-
tino à Etiópia. Esta missão rapidamente se apercebeu que a
conversão da Etiópia ao catolicismo era um problema muito
complexo. Um novo patriarca ortodoxo, entretanto chegado
de Alexandria, tinha influenciado o imperador contra os por-tugueses. Foi decidido que o patriarca católico romano Nunes
Barreto aguardasse em Goa. Em seu lugar partiu o bispo
André de Oviedo, acompanhado dos P.es André Gualdanez,
Manuel Fernandes, António Fernandes e Francisco Lopes,
tendo chegado ao império abexim em 1557. O imperador
Atanaf Sagad I recebeu cordialmente Oviedo, mas não alterou
a posição da corte relativamente à fé católica (Vaz, 1965, pp.
148-149). Igualmente, o seu irmão e sucessor Admas Sagad I(Minas ou Menas) não demonstrou simpatia pela presença dos
jesuítas e obrigou Oviedo a exilar-se em Fremona. Sucedeu-
-lhe, em 1563, Malak Sagad I (Sarsa Dengel), que tolerou a
assistência religiosa dos padres jesuítas. O longo reinado de
Malak Sagad I terminou em 1597. Neste mesmo ano morria
o último jesuíta da missão de Oviedo, o P.e Francisco Lopes.
Encerrava-se a primeira missão dos jesuítas na Etiópia. O novo
imperador, Malak Sagad III (Susenyos), assumiu o poder em
1605. Cerca de um ano depois chegava a Fremona um enviado
do arcebispo de Goa, o P.e Belchior (Melchior) da Silva. O P.e
Pêro Paes chega em 1603, depois de um cativeiro no Iémen,
onde entretanto aprendera o árabe. Fixou a sua residência
em Fremona, fundou escolas, escreveu na língua do país um
catecismo, traduziu outros textos para uso dos convertidos
(Vaz, 1965, p. 153).
Em finais de 1612, Sela Kristos, irmão de Malak Sagad
III, converteu-se ao catolicismo. Os jesuítas abriram escolas,
construíram em Gorgora um palácio para o imperador e uma
igreja, a primeira edificada em pedra pelos jesuítas na Etiópia.
Em março de 1623 partiram de Lisboa, na armada de D.
António Teles de Meneses, missionários jesuítas, entre os quais
o patriarca Afonso Mendes com os bispos Diogo Seco e João
da Rocha, com a missão de fundar uma hierarquia eclesiástica
na Etiópia. A corte em Madrid oficiou ao vice-rei para que
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estudasse as possibilidades de alcançar a Etiópia a partir de
Moçambique ou da costa de Melinde. Os baneanes (mercado-
res de Guzerate e Cambaia) sugeriram para desembarque do
patriarca a cidade de Zeila, às portas do Mar Vermelho. Os
comerciantes portugueses, que conheciam as costas de Áfricaoriental, aconselharam Melinde e o transporte de dinheiro
suficiente para dar aos diversos reis locais. Seguindo esta
sugestão, o visitador Palmeiro enviou primeiro um grupo de
quatro missionários, entre os quais se contavam o P.e Manuel
de Almeida e o P.e Manuel Barradas. Em dezembro estavam
prontos mais oito religiosos que iriam tentar outros caminhos.
Um destes era o P.e Jerónimo Lobo2.
O P.e
Gaspar Dias, com mais três companheiros, segui-ram pela antiga rota do Mar Vermelho, chegando a salvo a
Fremona em julho de 1624. Trágicos destinos tiveram os P.es
Francisco Machado e Bernardo Pereira que, tendo desembar-
cado em Zeila, foram depois chacinados. Jerónimo Lobo e o
jesuíta espanhol João de Velasco ofereceram-se para explorar
a costa da Somália. Partiram em janeiro de 1624 em direção a
Mombaça. Desembarcados junto à Ilha de Pate, Velasco dirigiu-
-se para Mombaça e Lobo embrenhou-se sozinho pelo interior
até Jubo, a 14 léguas de Ampaza3. Face às informações reco-
lhidas, que indicavam que a penetração no sertão a caminho
da Etiópia seria muito difícil4, Lobo regressou a Ampaza, onde
se encontrou com João de Velasco. Decorria a Páscoa de 1624.
Navegaram depois para a Índia, tendo chegado a Diu
em fevereiro de 1625. Em abril, Lobo partiu rumo ao Mar
Vermelho, juntamente com o patriarca Afonso Mendes e
outros sacerdotes. A 1 de maio de 1625 entrava o grupo de
jesuítas na Eritreia pelo porto de Bailul. Guiados por came-
leiros muçulmanos, seguiram até à capital da Dancalia. A tra-
vessia deverá ter sido penosa, dado ser uma região desértica,
muito quente e sem água (Krause, 1913, p. 380). A 5 de junho
partiram da corte do rei de Dancalia. Atravessaram o deserto
salgado e aproximaram-se, por um vale orlado de palmeiras
e sicomoras, da base do desfiladeiro de Senafe, onde se deu
o encontro com o P.e Manuel Barradas, que viera de Fremona
2 O P.e Jerónimo Lobonasceu em Lisboa, na pri-meira metade de 1595,no seio de uma famíliada nobreza. Admite-seque tenha frequentado ocolégio de Santo Antão de
Lisboa, o mais importantecentro de ensino dos jesuí-tas portugueses. Depois,em Coimbra, frequenta asaulas do Colégio das Artes.Frequentava a quinta classede humanidades quandoentra para a Companhia de Jesus, a 1 de maio de 1609,com 14 anos. Entre 1613 e1617 assiste ao curso com-pleto de filosofia de Coim-bra. Terminado o curso
de artes, ensinou gramáticadurante dois anos no colé-gio de São Paulo em Braga,tendo regressado a Coim-bra em finais de 1619 ouinícios de 1620. É nestacidade que em abril de1621 recebe ordens parair trabalhar nas Missões doOriente. Neste ponto dasua vida começa a redigira sua obra Itinerário, umaespécie de diário que con-
tinuará nas duas décadasseguintes. Lobo partiu paraOriente pela primeira vezna armada de 1621, masa viagem não correu bem,regressando poucos mesesdepois ao reino. Partenovamente para o Orienteem março de 1622, nacompanhia de D. Franciscoda Gama, que substituíaD. Afonso de Noronha nocargo de vice-rei da Índia.
Chega a Moçambique emjulho e finalmente a Goa,em dezembro desse ano.
3 Na Figura 1 apresentam-seos percursos aproximadosdas mais importantes des-locações de Lobo durantea sua permanência na Etió-pia, bem como algumasimportantes localidades daregião. O mapa de relevoresulta de tratamento
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Figura 1 – Regiões visitadas e percursos aproximados
do P.e Jerónimo Lobo durante a sua missão na Etiópia
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ao seu encontro. Depois de uma ascensão difícil pelo íngreme
vale, a 17 de junho o grupo de missionários chega ao planalto
e, por Adecorro e Ambecenete (Amba Çanet), alcança quatro
dias depois a residência jesuíta de Fremona (Krause, 1913,
p. 380; Fig. 1). Encontravam-se agora na missão, além dopatriarca Afonso Mendes, 16 sacerdotes e dois irmãos coadju-
tores. Ao todo eram 19 missionários, sendo três italianos, dois
espanhóis e os restantes portugueses.
Uma das primeiras missões do P.e Jerónimo Lobo foi a de
recolher os ossos de D. Cristóvão da Gama, assunto que lhe
fora encomendado pelo conde da Vidigueira. Acompanhado
de uma escolta às ordens de Tecla Georgis, vice-rei do Tigré,
dirigiu-se em outubro de 1626 para sul até às proximidades deOfla, onde se dera a batalha em que Gama fora morto (Fig. 1)5.
Recorrendo a testemunhos dos descendentes de soldados que
intervieram na campanha contra Ahmad ibn Ibrahim al-Ghazi6,
Lobo não só identificou os ossos, como obteve algumas infor-
mações adicionais sobre os últimos dias da vida de D. Cristóvão
da Gama. Em maio de 1627 as relíquias eram enviadas para Goa.
Até finais de 1628 o P.e Lobo trabalhou na casa de
Fremona. Em janeiro do ano seguinte, na residência de
Gorgora, emitia a profissão de quatro votos solenes, ficando
então vinculado à Companhia de Jesus. De Gorgora partiu para
a residência de Lidja Negus, na província de Damot (Fig. 1).
Ali intercalou o trabalho missionário com o estudo da região
(que percorreu ao visitar as outras residências ali existentes) e
das fontes do rio Nilo, até então incógnitas (trata-se, é claro,
das fontes do seu afluente Nilo Azul ou Rio Abbai, que o P.e
Lobo tomou como sendo o curso do próprio Nilo). No Natal
de 1629, assistiu à reunião anual dos missionários da Dâmbia,
tendo depois regressado ao Tigre, a pedido do imperador.
A chegada do patriarca Afonso Mendes e dos restantes
jesuítas à Etiópia levou a uma alteração na orientação da
missionação da Companhia. Em fevereiro de 1626, perante o
patriarca Afonso Mendes, o imperador Malak Sagad III, seu
filho Fasiladas (mais tarde imperador sob o nome de Alam
Sagad), a principal nobreza do reino abexim e alguns membros
digital do original ela-borado e colocado nodomínio público por NOAANational Centers for Envi-ronmental Information,GLOBE Task Team andothers (Hastings, David A.,
Paula K. Dunbar, GeraldM. Elphingstone, MarkBootz, Hiroshi Murakami,Hiroshi Maruyama, HiroshiMasaharu, Peter Holland, John Payne, Nevin A.Bryant, Thomas L. Logan, J.P. Muller, Gunter Schreier,and John S. MacDonald),eds., 1999. The Global LandOne-kilometer Base Eleva-tion (GLOBE) Digital Ele- vation Model, Version 1.0.
National Oceanic and Atmospheric Administra-tion, National GeophysicalData Center, 325 Broadway,Boulder, Colorado 80305-3328, U.S.A. (imagem dealta resolução em:http://www.ngdc.noaa.gov/mgg/topo/pictures/ AFRICAcolshade.jpg).
4 Lobo refere estas dificul-dades no seu Itinerário
(pp. 237-239).
5 O percurso representadobaseia-se na reconstituiçãoda campanha de D. Cris-tóvão da Gama feita por Whiteway (1902).
6 Entre 1529 e 1543 Ahmadibn Ibrahim al-Ghazi, oGranhe (“Esquerdino” ),com o apoio de mercená-rios turcos tinha conquis-tado quase toda a partemeridional do impérioabexim, mantendo umapressão sobre as regiõesdo Tigré e do Gojam.
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importantes do clero prestavam juramento de obediência à fé
católica e ao Papa Urbano VIII, e abjuraram a fé monofisita.
Além da casa de Fremona, que mantinha um seminário
para a formação do clero indígena, a Companhia tinha naquela
província a residência de Adegada, fundada pelo P.e
Barradas e,durante algum tempo, outra em Tangha. Por esta altura a casa
principal era a de Gorgora, onde vivia o superior da Missão,
localizada na proximidade da corte do imperador em Dancas e
da cúria patriarcal em Anfras. A casa de Gorgora mantinha em
funcionamento um seminário, dirigido pelo P.e Luis Cerdeira.
Nesta província de Gojam o Ras Sela Kristos tinha criado
residências para os padres da Companhia em Colela, Sarae,
Nebsé (Embessé) e Adaxá. Na província de Begmader, alémda casa de Anfras, existia uma outra em Adegha. A residência
de Ganete Jesus ficava na Dâmbia. Mais para sul, no Damot,
ficava a residência de Lidja Negus, criada pelo P.e Manuel
de Almeida. Nas províncias onde a autoridade do imperador
não era efetiva, a presença jesuíta não se tinha concretizado.
Com a chegada do bispo D. Apolinar de Almeida em
1630, estabeleceu-se um sistema de hierarquia na Igreja da
Etiópia. O patriarca, em Dancas, era o representante da Igreja
católica romana junto do imperador. O bispo residia na casa
do patriarca.
3. Expulsão dos jesuítas da Etiópia. Percursos pos-teriores do P.e Jerónimo Lobo
Ao contrário de Pêro Paes, que tinha centrado a sua ação mis-
sionária na corte e em Fremona, o patriarca Afonso Mendes
pretendia impor com celeridade o catolicismo romano a toda
a população do império. Exigiu então que os padres etíopes
voltassem a ser ordenados, os fiéis deviam voltar a ser bati-
zados, as igrejas consagradas de novo, a liturgia reformada
segundo a tradição católica romana. Esta política vigorosa
teve reações dos líderes locais e das populações, nas quais o
cristianismo abexim estava naturalmente profundamente enrai-
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zado. Em 1630 Afonso Mendes e o imperador Malak Sagad
III foram obrigados a fazer concessões à religião tradicional,
mas as concessões eram demasiado tardias para apaziguar a
contestação. Na corte do imperador etíope notavam-se movi-
mentações anticatólicas e cresciam os sentimentos contra aCompanhia de Jesus, reavivando-se a religião tradicional da
Abissínia. Malak Sagad III determina que a permanência dos
jesuítas ficasse limitada às casas de Fremona no Tigré, Ganete
Jesus na Dâmbia e outra em Gojam. A casa de Gorgora tinha
de ser abandonada em virtude de ser fortificada. O impera-
dor Alam Sagad continuou a política de secundarização dos
padres jesuítas. Em 1632 a religião tradicional era restaurada.
Em março de 1633 determinava que todos ficassem adstritos àcasa de Fremona. Jerónimo Lobo, os restantes padres jesuítas e
outros cristãos chegariam à casa de Fremona em abril. Durante
alguns meses a situação dos missionários jesuítas na Etiópia
foi crítica, mas estável. O vice-rei do Tigré tinha confiscado
aos missionários as melhores terras agrícolas. Os jesuítas deci-
dem então enviar a Goa quatro membros, chefiados pelo P.e
Manuel de Almeida, e retirar-se para a província do Tigré, para
pedir a proteção de alguns xumos (governadores provinciais)
amigos. Perante estas movimentações o imperador decreta,
em maio de 1634, a expulsão dos jesuítas da Etiópia e a sua
entrega aos turcos. A casa de Fremona é cercada, mas os jesuí-
tas conseguem fugir para se juntarem ao P.e Jerónimo Lobo.
Todavia, os xumos que acolhiam os jesuítas acabaram por
entregá-los às autoridades, que, por sua vez, os apresentaram
aos turcos. O bispo D. Apolinar e os padres Jacinto Franceschi,
Luis Cardeira, Bruno de Santa Cruz, Francisco Rodrigues, João
Pereira e Gaspar Pais conseguiram fugir, mas seriam captura-
dos e assassinados.
O P.e Jerónimo Lobo e os restantes missionários foram
então entregues às autoridades turcas, que os despojaram de
todos os pertences. Em agosto de 1634 eram apresentados ao
paxá de Suaquém. Mediante o pagamento de um resgate, os
padres jesuítas foram libertados e partiram para Diu. Numa
escala em Baçaim, o P.e Lobo encontrou o P.e Manuel Barradas;
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chegou finalmente ao colégio de São Paulo de Goa em dezem-
bro de 1634.
Desejoso de restabelecer a paz interna e de manter a
coesão do império, Alam Sagad adotou uma nova política de
relacionamento com os seus vizinhos muçulmanos e fechoua Etiópia às relações com o ocidente. A restauração do cris-
tianismo abexim não levou imediatamente à extinção do
catolicismo romano na Etiópia. Alguns jesuítas permaneceram
escondidos, mas em 1640 os últimos missionários jesuítas
seriam executados.
Os P.es Jerónimo Lobo e Manuel Barradas levaram ao
conhecimento do vice-rei a situação da presença portuguesa
na Etiópia, tendo-lhe pedido uma intervenção militar. Todavia,a presença portuguesa no Índico era já nesta altura insuficiente
para tal missão, tanto mais que cresciam os poderes de holan-
deses e ingleses. O P.e Jerónimo Lobo é então enviado à corte
de Madrid e à cúria romana para discutir os possíveis desen-
volvimentos da situação da Igreja na Etiópia. Sai da Índia em
janeiro de 1636, tendo chegado a Luanda em março. Em abril
embarca na companhia do governador de Angola, D. Manuel
Pereira Coutinho, que entretanto tinha terminado funções. A
viagem seria atribulada, o navio foi tomado depois de sair de
Angola por corsários holandeses e os passageiros deixados
numa ilha deserta das Caraíbas junto à Hispaniola. Finalmente
J. Lobo chega a Lisboa em dezembro de 1636. Contacta com
os governantes em Lisboa, em particular a duquesa Margarida,
regente em nome de Filipe IV. Todavia, já fervilhava no país a
oposição ao governo espanhol, sendo os padres jesuítas con-
siderados como instigadores.
Em janeiro de 1637 o P.e Lobo partiu para Madrid. Apesar
de cordialmente recebido na corte, não obteve respostas con-
cretas aos seus pedidos. Regressa a Lisboa, onde recebe indi-
cação para partir para Roma, o que faz em outubro de 1637.
Entra em Roma em março de 1638. Reúne com o papa Urbano
VIII e com uma junta de cardeais. Regressa à pátria com muitos
louvores, mas sem decisões concretas. No regresso passa por
Madrid, onde mais uma vez não recebe respostas positivas.
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O P.e Jerónimo Lobo permanece em Lisboa durante cerca
de um ano. Redige uma primeira versão do seu Itinerário7.
Em março de 1640 parte novamente para a Índia na armada
comandada pelo conde de Aveiras, João da Silva Tello,
nomeado vice-rei. Lobo chefiava uma missão de 15 missio-nários, 14 dos quais eram portugueses. Começava assim a
segunda parte da missão de P.e Lobo pelo Oriente, da qual
infelizmente não deixou relato escrito. Os jesuítas chegam
a Goa em setembro de 1640. P.e Lobo não mais voltaria à
Etiópia. Em 1641 foi nomeado superior do colégio de São
Paulo-o-Velho, depois exerceu o mesmo cargo no colégio de
São Paulo-o-Novo de Baçaim. Em 1647 era nomeado prepósito
da Casa Professa de Goa. As relações entre os jesuítas da Índia e o vice-rei D.
Filipe de Mascarenhas eram então bastante tensas, sobretudo
pelas questões de ordem económica resultantes da supressão,
a favor do Estado, dos subsídios destinados a sacerdotes e
religiosos. Desenvolvimentos vários levaram à prisão o P.e
Lobo. Em 1651, o vice-rei da Índia D. Filipe de Mascarenhas
entrega o governo de Goa a uma junta presidida pelo arce-
bispo D. Francisco dos Mártires. Só com a chegada do novo
vice-rei, D. Vasco de Mascarenhas, em finais de 1652, seria o
P.e Lobo libertado. Em 1655 chegou à Índia o novo vice-rei, D.
Rodrigo Lobo da Silveira. Jerónimo Lobo foi desterrado para
sul. Finalmente embarca para Lisboa, onde deve ter chegado
em 1657. Viveu os seus últimos anos na casa de São Roque
de Lisboa. Depois dos primeiros contactos com Sir Robert
Southwell8 da Royal Society , em 1666, Lobo volta a trabalhar
nos seus escritos, redigindo uma segunda versão do Itinerário,
que terá sido terminada em 16689. Redige o seu Discurso sobre
as Palmeiras , também concluído neste mesmo ano10, que foi
traduzido para inglês por Sir Peter Wyche ( Fellow da Royal
Society ) e logo publicado em 1669 (conjuntamente com outros
textos de Lobo), sob o título de A short relation of the river
Nile 11. O nome do autor não é indicado em nenhuma parte da
obra! Morre em janeiro de 1678.
7 A redação da primeira versão do Itinerário deveter sido feita em Lisboaentre março de 1639 emarço do ano seguinte.O texto terá sofrido umaprimeira revisão logo em1640, antes da partida paraa Índia. O original da pri-meira versão do Itinerário,terminado em 1640, encon-tra-se na Biblioteca PúblicaMunicipal do Porto (códiceno. 813). Foi descobertoem 1947 pelo P.e ManuelGonçalves da Costa SJ,editor da primeira ediçãoportuguesa do Itinerário e do Discurso das Palmei-ras , publicada só em 1971(Lobo, 1971). Esta versãoseria traduzida para inglêspor D. M. Lockhart e publi-cada pela Hakluyt Society em 1984.
8 Fellow da Royal Society de Londres, Southwell foienviado a Portugal em1665 e 1668 com a finali-dade de promover nego-
ciações de paz entre asduas nações ibéricas, entãoem guerra depois da res-tauração da independên-cia de Portugal em 1640(Beckingham, 1966).
9 Esta segunda versão foitraduzida para francês epublicada pela primeira vez em 1728 numa obrade título geral Relationhistorique d’Abissinie , com
edição do Abbé Joachim LeGrand. A versão francesafoi traduzida para inglêspor Samuel Johnson, sendoa primeira edição de 1735.
10 O manuscrito está hojena Royal Society .
11 Uma tradução alemãsurgiu logo em 1670 e umafrancesa em 1673, basea-das na tradução inglesa de
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4. Importância do Discurso das Palmeiras de JerónimoLobo no contexto da botânica do Índico no século XVII
As diversas obras escritas pelos missionários jesuítas que esti-
veram na Etiópia nas últimas décadas do século XVI e nasprimeiras do século seguinte caracterizam-se por uma compo-
nente de forte rigor teológico, intentando demonstrar os des-
vios do cristianismo abexim relativamente à norma romana e a
necessidade de divulgar o catolicismo romano junto do povo e
da corte etíope. No entanto, também em alguns destes textos
se reconhece uma elevada capacidade e rigor na observação
da natureza e da sociedade abexim12. No contexto da história
natural sobressai destacadamente o Itinerário do P.e
JerónimoLobo, onde se podem encontrar muitos elementos da história
natural do Índico, do Mar Vermelho e da Etiópia, e sobretudo
o seu Discurso das Palmeiras , onde apresenta o maior número
de elementos novos relativamente à história natural da costa
oriental de África e da Índia. Estas duas obras de Lobo apre-
sentam-se num nível muito superior às restantes, pela quanti-
dade e qualidade de informações que incorporam, a maioria
das quais fruto de observações pessoais do missionário portu-guês pelos campos da Abissínia e da Índia que calcorreou. Em
várias alturas do Itinerário e do Discurso das Palmeiras encon-
tramos informações explícitas sobre onde e quando observou
determinada planta, fruto ou semente. Quando no Itinerário
se refere aos singulares cocos das Maldivas diz que surgiam
nas praias da costa de Melinde até Brava e Magadacho, em
toda a qual, porque a andei no anno de vinte e quatro, como
atrás disse, vi muitos (p. 288
13
).Por que razão a Royal Society manifestou tanto inte-
resse no Discurso das Palmeiras de Lobo e logo o publicou
pouco tempo depois da sua conclusão? Afigura-se-nos muito
provável que a Royal Society se tenha apercebido da enorme
novidade que constituía a obra de Lobo para o conhecimento
deste grupo de plantas no contexto do Índico, onde eram, e
ainda são, como em toda a Ásia, um dos mais importantes
grupos de plantas úteis.
Wyche. Esta tradução fran-cesa foi depois integradana coleção de Thévenot Relations de divers voyages
curieux publicada em 1672e também numa edição deHenry Justel de 1674. A pri-
meira edição italiana surgiuem 1693, também baseadana tradução inglesa.
12 Destacam-se a Historia Aethiopiae de Pêro Paes,
publicada em Roma, em1905, na coleção orga-nizada pelo P.e Beccari( Rerum Aethiopicarum scriptores occidentales , vol. II) e a Historia geralde Ethiopia a Alta, do P.e Manoel d’Almeyda, comedição do P.e BalthezarTelles, publicada em Coim-bra, em 1660.
13 Todas as citações dasobras de Jerónimo Loboapresentadas no pre-sente trabalho referem-seà edição crítica de 1971do P.e Manuel Gonçalvesda Costa, já mencionada(Lobo, 1971).
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Efetivamente, quando comparamos o conteúdo do
Discurso das Palmeiras com as obras de Garcia de Orta,
Cristóvão da Costa, Jacques Daléchamps, Clúsio, H. van
Linschoten e Pyrard de Laval, que também referiram elemen-
tos da flora do Índico, constatamos que várias das palmeirasdescritas por Lobo não são mencionadas nas obras destes
botânicos e viajantes. Muitas destas palmeiras seriam descritas
nos tratados de Van Rheede ( Hortus Malabaricus , publicado
entre 1678 e 1703) e de Rumphius ( Herbarium Amboinense ,
publicado em 1741), naturalistas holandeses, cuja vida e obra
bem refletem a relevante presença dos Países Baixos no Índico
durante o século XVII, mas estes tratados são posteriores ao
trabalho do P.e
Lobo. Mesmo relativamente a algumas palmei-ras bem descritas por Van Rheede e por Rumphius, encontra-
mos, no texto de Lobo, elementos informativos originais.
5. Novidades botânicas do Discurso das Palmeiras deJerónimo Lobo
O Discurso das Palmeiras chama-nos desde logo a atençãopela sua aproximação integradora às palmeiras. Lobo dá natu-
ralmente prioridade às múltiplas utilizações destas árvores, mas
também descreve os traços mais relevantes das próprias plan-
tas, na esteira dos homens do século XVI, como Garcia de Orta
e Cristóvão da Costa. Um dos aspectos mais singulares deste
tratado é a descrição de pragas e doenças destruidoras des-
tas árvores à época (e ainda hoje) mais importantes. A descri-
ção da biologia dos bizouros negros (certamente o escaravelho-
-vermelho Rhynchophorus ferrugineus (Oliver), não os escara-
velhos-rinocerontes Oryctes spp.) e dos estragos que faz nas
palmeiras é exata, tal como uma doença vascular causadora
de murchidão (muito provavelmente a fusariose), da qual não
escapou ao P.e Lobo a relação da mesma com o solo. Abordagem
rara e singular no contexto da história natural do século XVII.
A capacidade de observação da natureza do P.e J. Lobo
é bem revelada pelo detalhe e pela correção das suas descri-
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ções das palmeiras do Índico. Quais as palmeiras que Lobo
descreve? Quais são os elementos da planta que mais chamam
a atenção de Lobo? Quais as grandes novidades botânicas do
texto de Lobo?
O texto mais extenso do Tratado é naturalmente dedi-cado ao coqueiro vulgar14 (Cocos nucifera L.), uma das plan-
tas mais úteis das costas do Índico (pp. 709-715). Os cocos
vulgares eram integralmente aproveitados, as utilizações eram
múltiplas e diversificadas15. Os frutos ainda jovens e tenros
(o coco lanho ou coco barca) eram especialmente deliciosos,
como nos diz o P.e Jerónimo Lobo: saboroso, sadio, nenhum
mal fas por mais que se coma delle , com uma água-de-coco
excellente e doce, fresca, sadia e regalo pera a calma e umleite-de-coco16 que serve pera huns caldos que fazem a que
chamão caril e he bom regalo17. Não escapou à observação
de Lobo o facto de serem cocos como os outros, dado que
no mesmo coqueiro ha cocos barcas e outros que o não sam.
Como refere Fr. António de Gouveia (Gouveia, 1606), estes
frutos eram especialmente úteis na alimentação dos tripulantes
e dos passageiros das armadas, dado que continham muita
água-de-coco e a polpa era especialmente agradável (Dalgado,
1919, p. 510).
Os cocos das Maldivas, gigantescas nozes pretas, de
formas tidas por efeminadas e com uma polpa considerada
como um dos mais potentes contravenenos, surgiam nas
praias deste arquipélago e pensava-se serem formados em
palmeiras que viviam no fundo mar, mas na realidade eram
frutos de palmeiras endémicas das Ilhas Seychelles que caíam
ao mar e eram transportados pelas correntes do Índico até às
Maldivas. Garcia de Orta foi pioneiro na descrição da morfolo-
gia e propriedades de tão extraordinário coco que, todavia, era
já conhecido das elites e das cortes europeias mais abastadas
(Cabral, 2015). J. Lobo repete estes elementos informativos,
mas acrescenta novos dados18 porque vi destes cocos e me
vierão algums a mão (pp. 705-706). As nozes também surgiam
nas praias pella costa de Melinde até o cabo de Goardafui
em que averá mais de ducentas legoas . Pelas descrições de
14 O coqueiro distribui--se sobretudo na costa doMalabar e em Ceilão, ondeforma autênticas florestas.É raro na costa árida deCoromandel, mas abun-dante no delta do Ganges.Prefere sempre as regiõeslitorais (Joret, 1904, pp.299-300).
15 Também no Itinerário
(pp. 289-292, 503-504) sereferiu Lobo às múltiplasutilizações do coqueiro- vulgar.
16 O leite-de-coco, que nãose deve confundir com aágua-de-coco, é obtidocomprimindo fortemente,num pano, a polpa, bemmadura e finamente ralada,a que se juntou um poucode água. Obtém-se assim
um líquido oleoso, leitoso,de aspecto geral seme-lhante ao leite de vaca,muito apreciado na Índia eem Ceilão.
17 Também no Itinerário (p. 291) Lobo salientou aspropriedades destes cocosjovens.
18 Também se refere aococo das Maldivas no Iti-nerário (p. 288).
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Huyghen van Linschoten (1563-1611) e de Francesco Carletti
(1573-1636) sabemos que em Goa, em finais do século XVI,
era possível comprar estes cocos, se bem que a preços muito
elevados. Van Linschoten, que viveu alguns meses na capital
do Estado da Índia, afirma ter visto alguns cocos que tinhamsido oferecidos ao vice-rei e depois enviados à corte em
Madrid (Van Linschoten 1885, p. 75). Carletti relata que com-
prara seis onças de polpa destes cocos em Goa e que ainda
tinha um pedacito quando chegou a Florença (Carletti, 1964,
p. 225). No Discurso das Palmeiras encontramos confirmação
do elevado preço que atingia a polpa desta noz, mais uma
vez por observação pessoal do autor: eu a vi vender a pezo de
prata, porque a tem por singular mesinha pera todo o generode doenças e contra veneno, e somos informados da forma de
preparar tão extraordinário antídoto: roça-sse em hua pedra
feita pera este minesterio com hua pequena de agoa até ficar
branca e bebem-na (p. 706).
Um dos usos dados a estes cocos era a sua incorporação
em peças de ourivesaria, tipicamente taças ou outros recipien-
tes para líquidos. As supostas propriedades deste coco tor-
nariam perfeitamente inócuo qualquer líquido que por essas
taças fosse bebido. Clúsio, no seu tratado Exóticos , apresentou
um desenho de uma destas peças de ourivesaria, com a forma
geral de uma ave, e que sabemos ter vindo da Índia numa
nau portuguesa (Cabral, 2015). Lobo refere que destas nozes
fazem della os Europeos corpos de passaros como de pavão,
acrecentando-lhe de parte os membros, como pes, pescosso,
cabeça e azas com a mais perfeição de partes do que necessita
a figura do passaro que quer fazer (pp. 705-706).
Uma outra palmeira descrita no Tratado é a palmeira
cajuri ( Phoenyx sylvestris (L.) Roxb.), uma árvore que dá frutos
muito semelhantes às tâmaras da espécie cultivada, sendo
por essa razão também designada de tamareira-brava (Drury,
1873, p. 340; Dalgado, 1919, p. 178). A planta, já antes descrita
por Garcia de Orta nos Colóquios , é nativa do subcontinente
indiano19 e terá sido aí que o P.e Jerónimo Lobo a observou.
À semelhança do coqueiro vulgar, também dela se extraía a
19 É sobretudo abundanteem Bengala, Bihar, na costade Coromandel e no Gujarat(Watt, 1908, p. 885).
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seiva (sura), que era bebida fresca, ou fervida até açúcar ou
ainda deixada fermentar para dar uma aguardente (Drury,
1873, p. 340): Caiuri, arvore propria que dá tamaras (p. 704)
fazen-lhe hum buraco no tronco e metido nelle hum canudo
por elle distillão o liquor (pp. 712-713). As folhas eram usadaspara fabricar velas para as embarcações (as vellas tecem-nas
de folhas das palmeiras cajuris , p. 711), sacos (chamados de
macondas ) para transportar milho ou o que mais querem (pp.
711-712) e ainda chapeos (Chamão-lhe palhote ) prezados posto
que baratos, mas tam galantes e pulidos que toda a pessoa folga
de o trazer por leve, até o Viso-rei como eu vi alguns (p. 723).
A palmeira tamareira ( Phoenix dactylifera L.) era uma
árvore importantíssima no Próximo Oriente Antigo, donde éoriginária. Na Antiguidade, era uma das bases da alimentação
das civilizações da Mesopotâmia. Na ausência de açúcar-de-
cana, o elevado conteúdo em carbohidratos da tâmara propor-
cionava a indispensável fonte de energia e calorias. O fruto e
outras partes da planta têm também propriedades medicinais.
Palmeira muito rústica e resistente, sobrevive em todos os
tipos de solos desde que tenha humidade. A árvore está hoje
difundida por muitas regiões, nomeadamente na Índia (Watt,
1908, p. 883), mas tal não acontecia nos séculos XVI-XVII,
como nos diz Jerónimo Lobo: A que dá tamaras não sae com
ellas na India (p. 715). A tamareira encontrava-se de facto
no Egito, mas não mais para sul, na costa oriental de África
(Denterghem, 1878, pp. 42-43). As tamareiras da Península
da Arábia davam excelentes frutos: as da Arabia, onde ha
muita copia dellas, são tambem excellentes, apraziveis a vista,
em fermosos cachos quando comessão a amadurar, com as
diversas cores que constão de vermelho desbotado e amarello
(p. 715). Lobo descreve vários tipos de tâmaras que existiam
na Arábia, possivelmente observados nos seus tempos de cati-
veiro. A Lobo não escapou a dioicia da espécie: era necessário
a existência de árvores masculinas perto para que as femininas
dessem os cachos de tâmaras: Não amadurece esta fruita na
arvore se não está entre ellas ou a sua vista hua a que chamão
macho (p. 716).
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A arequeira20, outra das palmeiras descritas na obra de
Lobo, era uma planta conhecida dos europeus, dado ser men-
cionada em várias obras publicadas ainda no século XVI e nos
inícios do século seguinte21. As arecas eram um dos produtos
importantes do comércio nos portos do Índico. Juntamentecom folhas de bétel e cal (de conchas marinhas), constituíam
um mastigatório vulgaríssimo na Índia.
No seu tratado, J. Lobo descreve o fruto e a noz (coqui-
nhos do tamanho de huma nos [noz] pequena com sua casca
ou cairo, o miolo he macisso e duro; [formam-se] em cachos
como tamara, duzentos e mais se contão em cada hum22 ; della
[noz] se fazem contas bem torneadas e galhante, são brancas
mas variadas com rayas pardas ), refere Ceilão como sendo olocal que cria mais e melhor [arecas] , de que ha grande saca
pera muitas partes e he boa veniaga, confirma o seu uso na
Índia num masticatório com o bétel (São os indianos tam
afeiçoados a esta fruita que de ordinario a trazem na boca,
levando pera o estamago o sumo, porque fortalece o estamago,
robora e arreiga os dentes 23 (…) estão ordinariamente masti-
gando hua folha de erva maior que a da era, posto que mais
fina e o verde mais claro fas digerir o comer , pp. 717-718).
A palmeira berlim (em marata: bherli-mad; Caryota urens
L.24) servia pera ornato das igrejas, porque seus ramos e folhas
são pera este effeito tam proporcionadas que parece soo pera
isto as criou Deos ; serviam ao culto divino e com o tal serviço
suprem o não darem fruito em proveito dos homens e asim
podem com rezão serem avantajadas as mais que o dam (p.
704). As folhas apresentam uma morfologia distintiva e única
entre as palmeiras (bi-pinadas: cada folíolo é por sua vez
constituído por pínulas) que as tornava atraentes para o uso
em cerimónias especiais como as religiosas. Como bem refere
Lobo, esta palmeira produz frutos que, no entanto, não são
comestíveis25. É interessante que esta palmeira era bem conhe-
cida no subcontinente indiano pelos usos típicos das palmeiras
que, contudo, Lobo não menciona: fibras26; o rebento terminal;
a madeira; os derivados da seiva27 (vinho, vinagre, aguardente,
açúcar); o miolo do tronco ( sago) (http://www.prota4u.org/;
20 A espécie Areca cate-chu L. é provavelmenteoriginária da Índia e daMalásia, mas encontra--se hoje disseminada nasregiões tropicais, sobre-tudo as zonas costeiras e
de altitudes moderadas.É sobretudo abundanteno Malabar, Karnataka,norte de Bengala, sopédas montanhas de Nepale na costa sudoeste deCeilão. Os seus frutos ver-melhos-alaranjados (arecaou noz-de-areca) têm pro-priedades medicinais esão consumidos tradicio-nalmente em muitos luga-res da Ásia (Drury, 1873,
pp. 48-50; Watt, 1908, p.83). A areca era antiga-mente conhecida dos euro-peus pelo nome de «avelãíndica» ou «avelã da Índia»(Dalgado, 1919, p. 51).
21 Antes de Jerónimo Lobo,a planta tinha sido descritabotanicamente por exem-plo por Garcia de Orta,Cristóvão da Costa e Clúsio.
22 Cada árvore formaanualmente cerca de 300frutos (Drury, 1873, p. 48).
23 A própria semente,carbonizada e reduzida apó, era usada, em finais doséculo XIX, como dentrífico(Drury, 1873, p. 48; Khory& Katrak, 1903, p. 622).
24 A espécie encontra-sedistribuída pelo subcon-
tinente indiano e pelosudoeste asiático. É espon-tânea nas florestas da costado Malabar (http://www.prota4u.org/; Drury, 1873,p. 118).
25 Os frutos contêm ummesocarpo carnudo, muitoacre, que contém ráfidesde cristais aciculares decarbonato ou oxalato decálcio, que os tornam
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Drury, 1873, p. 118). Aos olhos de Lobo, naturalmente que os
usos associados ao culto religioso seriam os mais relevantes.
As duas novidades botânicas que pensamos serem absolu-
tas no Discurso das Palmeiras são as descrições da palmeira ma-
comeira (com o seu coquinho de Melinde ) e da palmeira trafolim. A macomeira28 forma os frutos em cachos de trinta e mais
cada hum do tamanho de huma maçãa ordinaria, a cor [da
fruta] depois de madura he atamarada e agradavel . Todavia
a polpa era quasí tudo estopa e bem dura, mais se chupa do
que se come, o que vai ao estamago he efficassissimo pera fazer
digerir . Contudo, o cheiro he suavissimo. A noz, o coquinho
de Melinde ou macoma, he muito duro ainda em verde, mas
de grandes virtudes pera muitos achaques (pp. 704-705). Lobodescreve as peculiaridades do hábito da árvore, a ramificação
dicotómica do tronco: crescendo em altura de hum homem se
devide em dous troncos e cada hum delles em pouco menos
distancia em outros dous, e assim vai crescendo e brotando
cada tronco dous até chegar a proporcionada altura que a
natureza lhe deu segundo sua especie (p. 706). Lobo refere
ainda onde observou tão singulares palmeiras: hua ou duas
vi somente no tempo e lugares em que estive na India, hua
destas foi na costa de Melinde e me levarão a vel-la na ilha de
Pate por cousa notavel (p. 706). De que palmeira se trata? Pela
descrição é seguramente uma espécie do género Hyphaene : H.
thebaica (L.) Mart. ou H. compressa Wendl.29. A principal dife-
rença reside na forma geral do fruto que em H. compressa é
achatado lateralmente, pormenor que todavia Lobo não refere
(mas também não desmente). Em ambas as espécies o meso-
carpo é fibroso e não é propriamente comestível, como refere
Lobo. Pelo local onde foi observado trata-se possivelmente
da H. compressa, palmeira que cresce sobretudo ao longo
dos rios e lagos e no litoral do Quénia, podendo também ser
observada em outros locais da África Oriental (Egito, Sudão,
Etiópia, Somália, Moçambique, Tanzânia). A H. thebaica é
uma palmeira que se encontra desde o Senegal e a Gâmbia
até à Somália e ainda na Líbia, Egito, Israel, Península Arábica
e Índia Ocidental.
não-comestíveis e causamperturbações no corpohumano, como a sensaçãode queimadura, efeito queestá na base do epítetoespecífico, urens , queimar(http://www.prota4u.org/).
26 Fibras designadas dekittul no Ceilão e de salopa em Orissa, usadas nofabrico de cordas, pincéis ecestos (Watt, 1908, p. 286).
27 Esta espécie produzgrandes quantidades deseiva, podendo atingir 100litros (Joret, 1904, p. 335).
28 Mkoma e mukoma em
várias línguas de povos ban-tos que habitam o Quéniae a Tanzânia (http://eco-crop.fao.org/ecocrop/srv/en/cropView?id=148253).
29 Uma outra espécie dacosta oriental de Áfricaé Hyphaene coriacea Gaertn., mas o tronco destapalmeira não é ramificado(Furtado, 1967), o que nãocorresponde à descrição
de Lobo. Em Ruffo et al. (2002, pp. 376-379) encon-tram-se descrições destasespécies.
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Estas árvores e estes frutos, que escaparam à observação
dos grandes viajantes Pyrard de Laval e Van Linschoten, viriam
a ser descritos posteriormente por Rumphius no Herbarium
Amboinense , mas, como já referimos, esta obra é posterior à
publicação do Discurso das Palmeiras .Quais as indicações terapêuticas do coquinho de Melinde?
O P.e Lobo refere a potência digestiva e estomacal do meso-
carpo fibroso. No mesmo sentido, Curvo Semedo, em anexo à
sua Polyanthea medicinal , de 1716 (Semedo, 1716), descreve
muito sucintamente o fruto e apresenta as suas indicações
terapêuticas, entre as quais constava o confortar o estomago
resfriado, ou relaxado.
Finalmente temos a descrição da palmeira trafolim, outranovidade botânica do texto de J. Lobo. O cronista jesuíta
refere que se trata da palmeira mais alta de todas que conhe-
cia, sendo no entanto de tronco relativamente estreito: he
que mais cresce e he em grande altura segundo a qual não
tem grosura proporcionada, maior porem que nenhuma das
outras (p. 707). Assim como a madeira do coqueiro vulgar,
também a desta palmeira não tem substancia que sirva pera
tanto (de masto pera hum grande pataxo), nem as ordina-
rias que dão cocos servem pera o mesmo prestimo, salvo pera
embarcaçoens de pouco porte (p. 707). Descreve o fruto, que
tem uma morfologia peculiar: nasce em cacho como os mais,
quinze e mais iuntos, a grandeza he dous punhos iuntos, a cor
começa em verde e acaba, quando maduro, como roxo escuro
da beringella. Aberto tem dentro tres repartiçoens, cada hua
está chea de certa maça como leite mal coalhado, e fresco e
muito frio, o sabor toca de enxabido30 , come-o contudo toda a
gente por regalo; a cor deste miolo he esbranquiçada (p. 717).
Pela sua descrição é certamente Borassus aethiopum Mart. ou
Borassus flabellifer L.31. Lobo não refere onde observou estas
palmeiras; todavia, percorreu a pé as regiões superiores do
Nilo, zonas onde a B. aethiopum se encontra (Denterghem,
1878). Contudo há que registar a proximidade do nome que
indica, trafolim, ao nome em guzerati da B. flabellifer , taadfali .
Afirma que o tronco não tem grosura proporcionada, mas esta
30 A polpa do fruto de B. flabellifer é agradável erefrescante, mas insípidaquando madura (Drury,1873, p. 84).
31 A B. aethiopum é umaespécie muito variável. En-contra-se desde a costaoriental à costa ocidentalde África, numa bandaentre as latitudes 15°N e18°S, sobretudo ao longodas margens dos grandesrios (desde o Níger e o Nilosuperiores até ao golfoda Guiné e ao Zambeze). A forma mais vulgar em
África tem cerca de 8 a 15metros de altura, sendo otronco um pouco dilatadona base, depois cilíndrico efinalmente obeso na partesuperior. Pode formar flo-restas densas (Denterghem,1878, pp. 30-31; Chevalier& Dubois, 1938; Chevalier,1949; Bayton, 2007). A B. flabellifer ( palmyra ou pal-meira de açúcar ) é uma es-pécie da Índia e do Ceilão,
do sudoeste asiático e dapenínsula da Malásia. Pre-fere climas não excessiva-mente húmidos, as regiõescosteiras, até 800 metrosde altitude. Cultiva-se hojeno sul e no centro da Índia,em Bengala, no Sinde infe-rior e mesmo nos jardinsdo vale do Ganges e doPenjabe. As árvores atin-gem normalmente 20 me-tros de altura. O tronco é
cilíndrico, estreitando ligei-ramente, ao contrário doda B. aethiopum (Joret,1904, pp. 298-299; Cheva-lier, 1949; Bayton, 2007).Existem também diferençasentre as duas espécies naestrutura das flores mas-culinas e femininas (Tro-chain, 1930), mas estascaracterísticas não foramobjeto de atenção porparte de J. Lobo.
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afirmação tanto pode ir no sentido do tronco da B. aethiopium
(dilatado na base, cilíndrico depois e bojudo na parte supe-
rior), como da B. flabelliger , que vai estreitando ligeiramente
de baixo para cima. Refere que os frutos são escuros, o que é
mais condizente com a B. flabellifer , dado que os cocos da B.aethiopium são amarelos-laranja (Bayton, 2007). Um aspecto
que numa primeira análise poderia parecer incongruente diz
respeito à qualidade da madeira do tronco. Efetivamente estas
duas espécies, que são dioicas, têm boa madeira nos troncos,
mas só as suas plantas femininas (Ferguson, 1850; Chevalier
& Dubois, 1938). Lobo estaria possivelmente a referir-se às
plantas masculinas, quiçá as que seriam mais cortadas, por não
darem frutos. De ambas as espécies se extrai a seiva ( sura)e desta se pode fazer, por fervura, um açúcar acastanhado
( jagra) e, por fermentação, uma bebida alcoólica (toddy ) ou
um vinagre. A seiva é muito mais abundante e açucarada na
espécie asiática do que na africana, sendo pois mais ricos
os subprodutos de B. flabellifer do que os de B. aethiopium
(Chevalier, 1949; http://www.prota4u.org/). Lobo não refere
a confeção destes produtos. Estaria a pensar mais na espécie
africana?
O texto de Jerónimo Lobo é uma novidade no que
respeita à descrição da morfologia da planta, mas a B. fla-
bellifer já tinha sido mencionada em textos de missionários
portugueses. O P.e Manuel Barradas, na sua descrição de
Ceilão, em particular da região de Colombo32, refere as dife-
rentes palmeiras que tinha observado na ilha. De entre várias,
existiam as brancas de Refolins (Barradas, 1942, p. 89), certa-
mente querendo destacar a polpa branca (endosperma). Fr.
António de Gouveia, na sua obra A jornada do Arcebispo, na
descrição da alimentação dos cristãos de S. Tomé da costa
Malabar refere que as palmeyras agrestes dão outra fruita
a que chamão trafolins, que come a gente cõmum da terra
(Gouveia, 1606, p. 166). Todavia, Gouveia não dá qualquer
descrição nem da árvore nem do fruto. Ainda no século XVII,
temos o longo texto de P.e Fernão de Queirós (1617-1688),
historiador e missionário jesuíta, sobre a história de Ceilão.
32 Foi incluída na HistóriaTrágico-Marítima compila-da por Bernardo Gomes deBrito. Consultámos a publi-cação moderna organizadapor Damião Peres.
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Na descrição da geografia de Jafanapatão, Queirós refere as
principais culturas e produtos vegetais. A terra tinha grandes
florestas de palmeiras trafolins, árvores que se destacavam
pela grande altura que atingiam: a terra tinha grandes matos
de palmeyras bravas, muito asperas na casca, e muito derey-tas. N ẽ menos altas, q. os nossos pinheyros, manços (Queyroz,
1916, p. 40). A descrição do fruto é semelhante à de Lobo:
trafuliz, q. são hũs pomos, como grandes zamboas, e tirada
a casca, aparece hũa massa vermelha, a q. chamão punâto,
muita parte do sustento daquela gente. Quando verdes, tem
dentro tres, ou qautro amagos, naõ pouco gostozos (Queyroz,
1916, p. 40). Certamente por ter vivido muitos anos no
Oriente, Fernão Queirós revela-se bom conhecedor da impor-tância da palmeira trafolim na sociedade cingalesa. Refere
que os cingaleses semeavam os caroços ( panagayos ) para
que crescessem novas palmeiras (calango), que no norte da
ilha formavam extensos palmeirais. Assim como faziam com o
coqueiro vulgar, também desta palmeira extraíam sura e dela
faziam vinho, mas Queirós afirma que a palmeira trafolim não
era tão produtiva como a dos cocos (Queyroz, 1916, p. 40).
Esta curiosa palmeira seria descrita por John Ray, VanRheede e por Rumphius, nos seus tratados, obras todavia pos-
teriores à de J. Lobo.
6. Conclusões
O P.e Jerónimo Lobo SJ foi em missão para a Etiópia, integrado
na obra de missionação da Companhia de Jesus. Lá viveu
entre 1623 e 1634, percorrendo a pé muitos caminhos do
império abexim. Após um período atribulado de vida na Índia,
regressou definitivamente a Lisboa em 1657, tendo falecido na
Casa de São Roque em 1678.
Foi em Lisboa que redigiu uma das suas obras mais
importantes, o Discurso das Palmeiras , que seria logo publi-
cada (1669) em tradução inglesa pela Royal Society . Neste
texto, Lobo descreve a morfologia e os usos de oito palmeiras
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importantes na vida das sociedades do Índico. Algumas destas
eram já conhecidas na Europa. Todavia, duas – a palmeira
macomeira com o seu coquinho de Melinde ( Hyphaene ) e
a palmeira trafolim ( Borassus ) – eram desconhecidas das
elites europeias. Depois da publicação do Tratado de Lobo,seriam descritas pelos naturalistas holandeses Van Rheede e
Rumphius, mas a publicação do P.e Lobo tem prioridade e
constitui um marco importante em termos de descrição botâ-
nica das palmeiras das costas do Índico.
Apesar de terem sido publicadas outras obras de padres
jesuítas que missionaram na Etiópia e que focam a história
natural da Abissínia, em particular as obras dos P.es Pêro Paes
e Manoel d’Almeyda (compilação do P.e
Balthezar Telles), o Discurso das Palmeiras de Jerónimo Lobo constitui um notá-
vel texto de botânica do século XVII, no qual se refletem a
sua capacidade de observação da natureza (quiçá potenciada
pela formação académica nas escolas jesuítas), bem como a
sua itinerância a pé por muitos caminhos e trilhos do império
abexim.
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