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    Introduo

    Muitos e longos tm sido os caminhos que conduzi-ram a sociedade ao debate contemporneo sobre a violncia conjugal. Os tempos e a agenda atuais no so os mesmos de quando foram desenvolvidos os projetos iniciais do Movimento Feminista. O estado atual do conheci-mento sugere que, na relao conjugal, quase sempre ningum inocente. O ponto de vista aqui defendido o de que a vio-lncia cometida contra a mulher produto das relaes de g-nero nas quais so enfatizados os valores culturais que as des-prestigiam e as submetem ao machismo. Porm, isso ocorre sempre em uma dimenso relacional. Segundo Gomes (2003),

    as relaes de gnero podem servir de base para uma consis-tente explicao sobre as relaes de violncia entre homem e mulher. No entanto, para que esse modelo explicativo avance preciso, antes de tudo, que a palavra gnero seja compreendida a partir de uma perspectiva relacional.

    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres: O caso do Rio de JaneiroCludia AbdalaSupervisora de RH do Programa Delegacia Legal

    Ktia SilveiraPesquisadora do IFF/Fiocruz

    Maria Ceclia de Souza MinayoCoordenadora cientfica do Claves/Fiocruz

    Recebido em: 30/08/2010 Aprovado em: 16/05/2011

    O artigo analisa a trajetria das queixas de violncia conjugal prestadas por mulheres em cinco DEAMs do estado do Rio de Janeiro. So discutidos: o nmero de queixas realizadas e efetivamente transformadas em registros de ocorrncia no perodo de 2005-2008; os diversos obstculos encontrados pelas mulheres para tornar pblicos os maus-tratos que sofrem e o impacto da sano da Lei Maria da Penha no nmero de registros de ocorrncia nessas delegacias. O estudo mostrou o risco que ainda hoje uma mulher corre quando decide denunciar a violncia. Buscou-se tambm destacar o quanto violncia psicolgica contra a mulher naturalizada nas delegacias.Palavras-chave: violncia conjugal, queixas, Lei Maria da Penha, Rio de Janeiro, delegacias de mulheres

    DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social - Vol. 4 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2011 - pp. 571-600

    The article Application of the Maria da Penha Law at Police Stations for Women in Rio de Janeiro reviews the history of complaints of domestic violence reported by women in five DEAMs (special police stations for women) in Rio de Janeiro state, Brazil. The study investigates the number of complaints made and effectively transformed into reports in the period 2005-2008, the various obstacles faced by women to make known the abuse they suffer and the impact of the sanctioning of the Maria da Penha Act on the number those reports. The study demonstrates the risk that women still run when they decide to report violence and the extent to which psychological abuse against women is naturalized in the police stations.Keywords: domestic violence, complaints, Maria da Penha Act, Rio de Janeiro, police stations for women

  • DILEMAS572 Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Essa perspectiva ajuda a compreender a dinmica das relaes conjugais, sem que se incorra no erro de vitimi-zao da mulher ou de culpabilizao do homem. na relao de conjugalidade que os modelos sociais do que se espera dos homens e o que se espera das mulheres se atualizam. A anlise relacional evidencia que o fenmeno da violncia entre casais muito mais complexo do que simplesmente a busca de vtimas e algozes.

    Os homens so prisioneiros da perspectiva dominante de machos viris, agressivos e provedores assim como se espe-ra socialmente que as mulheres sejam cuidadoras, submissas e passivas. Ambos esto submetidos a expectativas constru-das no meio em que se inserem e ambos as reproduzem com naturalidade no cotidiano das relaes e das prticas sociais. Para Bourdieu, o privilgio masculino tambm uma cilada e encontra sua contrapartida na tenso e na contenso per-manentes, levadas por vezes ao absurdo, que impem a todo homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstn-cia, sua virilidade (BOURDIEU, 1999, p. 64).

    A dissertao realizada por Ktia Lenz Csar de Oli-veira, em Ribeiro Preto (SP), Quem tiver a garganta maior vai engolir o outro (OLIVEIRA, 2004), fala sobre violn-cias conjugais contemporneas. Tratando de mulheres que realizaram registros em delegacias contra seus maridos, a autora preocupou-se em escutar a dade conjugal. Por isso e por explorar as relaes e no a vitimizao apenas, seu trabalho trouxe uma importante contribuio para os es-tudos sobre a violncia conjugal. A pesquisa mostra que esse problema no pode ser explicado apenas pela psico-patologia individual, nem tampouco pelo posicionamento poltico-feminista de que apenas os homens so violentos. A autora prope que, alm de existirem diferentes modos de significar a violncia e diferentes padres de relaes violentas, como sugere tambm Soares (1999, pp. 170-179), h uma distribuio diferenciada desses abusos de-pendendo da forma como cada um se posiciona diante do parceiro: teramos ento, relaes majoritariamente sim-tricas, onde a violncia pode mais facilmente ser perpetra-da em todas as direes. E outras basicamente assimtricas e complementares, onde existe predominantemente a vio-lncia masculina (OLIVEIRA, op. cit.).

  • DILEMAS 573Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

    Essa trama social torna o problema da violncia conju-gal um difcil jogo de foras que, na maioria das vezes, traz prejuzos graves particularmente para as mulheres. Esse jogo transcende o privado e chega ao espao pblico, no caso ex-posto, as delegacias de mulheres (DEAM).

    A Pesquisa nacional sobre as condies de funcionamento das Delegacias Especializadas no Atendimento s Mulheres, realizada pela Coordenao de Igualdade de Gnero da Se-cretaria de Estado de Direitos Humanos (2000/2001) ago-ra denominada Secretaria Executiva do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) em parceria com a Se-cretaria Nacional de Segurana Pblica, iniciou o processo de diagnstico das condies de funcionamento das Delega-cias Especializadas de Atendimento Mulher. Essa pesquisa apontou as DEAMs como a principal poltica pblica de pre-veno violncia contra a mulher. No Brasil, tais delegacias, somadas s casas abrigo e aos centros de referncia, so os mais importantes instrumentos de atendimento s mulheres envolvidas em situao de violncia conjugal.

    Desde os anos 1980, a reivindicao do movimento femi-nista era de que fossem includas nas atribuies das DEAMs as funes de apoio psicolgico e social e acompanhamento das vtimas e seu encaminhamento para uma rede de apoio. Nos anos 1990, as atividades anteriores foram acrescidas pela proposta de encaminhamento psicolgico dos agressores, tendo em vista o reconhecimento de que esse cuidado im-portante para um melhor equilbrio nas relaes conjugais. Tambm no elenco de funes das delegacias especializadas esto previstas aes de preveno da violncia.

    As DEAMs foram frutos da reivindicao de grupos de defesa dos direitos da mulher, visando a garantir s mu-lheres reconhecidas como vtimas de violncia um aten-dimento humanizado e especfico para suas necessidades. Segundo Rifiotis (2003, p. 8),

    a judiciarizao apresentada como o conjunto de prticas e valores, pressupostos em instituies como a Delegacia da Mulher, e que consiste fundamentalmente em interpretar a violncia conjugal a partir de uma leitura criminalizante e es-tigmatizada contida na polaridade vtima-agressor, ou na figu-ra jurdica do ru.

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    Para a autora, a leitura criminalizadora apresenta vrios obstculos para a compreenso e a interveno nesses ca-sos, pois no corresponde nem s expectativas das mulheres atendidas, nem s dos policiais que trabalham nas DEAMs. As primeiras no querem necessariamente criminalizar seus maridos e os profissionais entendem que no faz parte de suas atribuies nada que no possa ser tipificado como crime.

    O projeto inicial das DEAMs previa apenas policiais e delegadas mulheres, o que, no decorrer do processo, no aconteceu. Vrios policiais homens atuam nessas delegacias,. Alguns, talvez a maioria, consideram o fato de estarem lota-dos em uma DEAM como punio e no como exerccio de atividade tpica da profisso de policial. A partir do discur-so desses homens, a representao de policial de verdade a do homem macho que enfrenta bandido, sobe morros e atua nos conflitos pblicos das grandes cidades. Entretanto, o fato de se incluir mulheres tcnicas ou policiais no quadro de funcionrios das DEAM no garante um atendimento hu-manizado. Trabalhando como tcnica de atendimento social numa delegacia pertencente ao Programa Delegacia Legal, observei, em muitas situaes, tcnicas e policiais mulheres fazendo julgamentos machistas ou tratando usurias de for-ma grosseira, e em outras situaes, policiais homens bastan-te compreensivos e acolhedores.

    A violncia conjugal

    Na discusso sobre violncia conjugal considera-se que haja trs tendncias para compreenso desse fenmeno. A primeira destaca-se por definir o papel dos homens como algozes e das mulheres como vtimas. Essa abordagem foi importante para romper a invisibilidade do problema. Na segunda, considera-se a dimenso de cumplicidade que existe nas relaes de gnero. Na terceira, prevalece a ideia de que algum s pode ser cmplice se est em relao de igualdade, o que exige um aprofundamento na anlise de relaes concretas (MORGADO, 2004).

    As duas ltimas tendncias so as mais atuais. A viso da relao hierrquica, defendida por Saffiotti e Almeida (1995), implicaria uma desigualdade de foras entre os parceiros, sen-

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    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

    do a mulher sempre considerada a parte vitimizada. Por outro lado, na relao conjugal violenta h uma situao de parceria e no de hierarquia, o que no significa que um no possa ser mais agressivo e cruel que o outro. Nessa concepo, a violncia conjugal vista como um abuso nas relaes de fora entre os dois cnjuges (GREGORI, 1993; GROSSI, 2001).

    A viso das relaes conjugais agressivas como produto de uma dinmica especfica entre os cnjuges incita reto-mada da discusso sobre a distribuio da violncia entre homens e mulheres: haveria diferentes padres de relaes violentas? Dever-se-ia pensar na produo de violncias? Segundo Soares (1999, p. 177), cabe ao primeiro modelo pro-veniente do movimento feminista deixar sua pretenso uni-versalizante que coloca a mulher no lugar de vtima e no de sujeito atuante; e ao segundo, delimitar o contexto em que o primeiro modelo produziu sua teoria. Assim, de acordo com a autora, existem diferentes padres de relaes violentas e preciso entender essa problemtica de forma complexa, fu-gindo s explicaes totalizantes, dogmticas ou unvocas.

    Segundo o artigo Violncia domstica durante a gravidez no Rio de Janeiro, publicado no Internacional Journal of Gyne-cology and Obstetrics (MORAES e REICHENHEIM, 2002), a partir de uma pesquisa com jovens adolescentes grvidas que eram estudantes de escolas pblicas na cidade do Rio de Janei-ro, 15% dos homens e das mulheres entrevistados responde-ram que em suas relaes existe violncia fsica por parte de ambos. No entanto, ficou claro na investigao que mulheres at praticam mais atos de violncia fsica, agridem mais, po-rm, os homens ferem as mulheres com mais crueldade.

    Oliveira (2004) relata que a violncia contra a mulher no espao domstico no trs vezes mais elevada do que a perpetrada contra os homens, como defende o movimento feminista. E o levantamento nacional sobre violncia doms-tica realizado nos Estados Unidos no final da dcada de 1970 (STRAUS, GELLES e STEINMETZ, 1980) indicou que 3,4% dos homens agridem as esposas e 4,8% delas batem em seus maridos. A justificativa que os autores encontram para essa diferena o hbito cultural masculino de no relatar agres-ses por parte das mulheres, enquanto que elas relatam que batem em seus maridos, at como uma forma de demonstrar sua fora. Eles sentem vergonha e omitem a situao.

  • DILEMAS576 Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    H ainda uma discusso importante acerca do que seria agresso e do que se pode chamar de violncia. A agresso permite o revide enquanto que a violncia im-plica uma diferena de fora, em que uma das partes no teria como reagir devidamente, caracterizando uma desi-gualdade de condies. Assim, no se pode perder de vista que, apesar de as mulheres agredirem mais (MORAES e REICHENHEIM, 2002), os homens so mais violentos e a mulher acaba levando a pior, j que fisicamente mais fr-gil. No entanto, ficou claro na investigao que mulheres at enunciam que praticam mais atos de violncia fsica e que agridem com maior frequncia.

    Grande parte dos autores analisa o problema em mo nica, ou seja, na direo da violncia do homem con-tra a mulher (GOMES, 2003). J Schraiber e DOliveira (1999) so crticos a esses autores, dizendo que eles no conseguem se deslocar da abordagem do feminino como vtima e, por isso, no so capazes de pensar estratgias que superem as relaes conjugais a favor dos homens e das mulheres.

    A promulgao da Lei Maria da Penha busca crimi-nalizar a violncia contra a mulher, j que a lei no 9.099, que trata de crimes de menor potencial ofensivo, antes aplicada s ocorrncias de violncia conjugal, no estava correspondendo aos anseios de fazer justia s mulheres. A postura criminalizadora adotada pela nova lei, por um lado, oferece a essas mulheres um instrumento contra a ba-nalizao da violncia vivida e uma possibilidade de se tor-narem sujeitos da ao. Mas, por outro lado, introduz uma srie de obstculos para aqueles que pretendem trabalhar com relaes interpessoais. Alguns desses entraves sero discutidos mais adiante.

    Neste estudo, buscamos lanar luz sobre as dificulda-des que as mulheres ainda encontram quando, tentando sair da situao de violncia conjugal, procuram as dele-gacias especializadas. Procuramos elucidar as contradi-es com que elas se deparam quando ocorrem diferentes interpretaes dos grupos profissionais sobre suas quei-xas. Essas contradies revelam a presena da desigualda-de de gnero nas relaes da cena pblica, como observa no estudo de Bandeira (2004, p. 41):

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    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

    As relaes entre homens e mulheres so vistas com olhares as-simtricos, e, por isso, tm-se atitudes e sentimentos femininos e masculinos diferenciados quanto percepo da violncia exercida contra as mulheres, por parte da maioria das/dos agentes policiais. Essa percepo permanece presente no andamento dos processos, assim como regula o tratamento dispensado s partes.

    Segundo Brando (1996), a figura do policial na recep-o de mulheres agredidas de suma importncia, uma vez que suas percepes e impresses sobre papis de gnero e a violncia contra a mulher interferem nos registros das ocor-rncias e nas instauraes dos inquritos. Segundo Rifiotis (2003), os olhares viciados e preconceituosos da sociedade em relao s pessoas envolvidas em situao de violncia conju-gal se apresentam tambm nas delegacias especializadas.

    As agentes policiais da Delegacia da Mulher sabem muito bem qual combinao estar na base dos casos atendidos s segun-das-feiras depois do final de semana: lcool, pobreza e agresso. Uma equao crua, simplista e, sobretudo, preconceituosa, mas que , em graus variados, plenamente verificada no quotidiano das delegacias da mulher. Assim, o problema no est na exis-tncia ou no desses casos, mas na sua interpretao, que pode ser limitada e preconceituosa, confundindo as caractersticas dos casos considerados como suas causas.

    A lei no 11.340/06 possui um captulo especfico sobre o atendimento da autoridade policial. O presente estudo traz contribuies para a investigao e a avaliao sobre o efetivo cumprimento do que foi determinado na lei, discutindo al-gumas das novas prticas sociais decorrentes de suas orienta-es. Para tanto, so apresentados os seguintes aspectos: n-mero de queixas realizadas e efetivamente transformadas em registros de ocorrncia entre 2005 e 2008; diversos obstculos encontrados pelas mulheres para tornar pblicos os maus--tratos que sofrem; e alguns indcios do impacto da sano da Lei Maria da Penha (em agosto de 2006) no nmero de registros de ocorrncia nessas delegacias. Sobre esse ltimo aspecto, este artigo ajuda a esclarecer as controvrsias que a prtica da lei tem provocado em vrios meios, inclusive no mbito da segurana e da justia.

  • DILEMAS578 Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    A lei no 11.340, Lei Maria da Penha

    No dia 22 de setembro de 2010, a lei no 11.340/06, a Lei Maria da Penha, completou quatro anos de vigncia. Ela confere s situaes de violncia domstica e familiar con-tra as mulheres, at ento tratadas como de menor potencial ofensivo, o status de crime. A lei trouxe inovaes importan-tes, pois definiu o conceito de violncia domstica e familiar contra a mulher e suas diversas expresses: fsica, psicol-gica, sexual, moral e patrimonial, independentemente de orientao sexual.

    importante que se tenha a dimenso do que abrangi-do no art. 5o da lei no 11.340/06.

    Para os efeitos desta lei, configura-se violncia domstica e familiar contra a mulher qualquer ao ou omisso baseada no gnero que lhe cause morte, leso, sofrimento fsico, sexu-al ou psicolgico e dano moral ou patrimonial: no mbito da unidade domstica, compreendida como o espao de conv-vio permanente de pessoas, com ou sem vnculo familiar, in-clusive as esporadicamente agregadas; no mbito da famlia, compreendida como a comunidade formada por indivduos que so ou se consideram aparentados, unidos por laos na-turais, por afinidade ou por vontade expressa; em qualquer relao ntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabita-o. Pargrafo nico: as relaes pessoais enunciadas neste artigo independem de orientao sexual.

    O art. 6o da mesma lei trata a violncia domstica e fa-miliar contra a mulher como uma das formas de violao dos direitos humanos.

    A Lei Maria da Penha, portanto, contempla o sofrimen-to psicolgico e o dano moral das mulheres, trazendo reco-nhecimento do impacto da violncia fsica e sexual na sade mental das vtimas. Essa compreenso da violncia psicol-gica fundamental para o aprofundamento das questes re-lativas violncia nas relaes conjugais.

    A lei inclui um captulo especfico sobre o atendimento da autoridade policial (captulo III, arts. 10, 11 e 120). No que concerne s questes policiais, a Lei Maria da Penha inova

  • DILEMAS 579Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

    ao determinar que a vtima no poder retirar a queixa. Caso queira interromper o processo iniciado, s poder faz-lo na presena do juiz, em audincia.

    Das principais contribuies da nova legislao, em ter-mos de assistncia e proteo s vtimas, esto as medidas protetivas de urgncia que tm por diretrizes:

    Art. 23: Poder o juiz, quando necessrio, sem prejuzo de outras medidas: I encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitrio de proteo ou de atendimento; II determi-nar a reconduo da ofendida e de seus dependentes ao respectivo domiclio aps afastamento do agressor (BARSTED, 2010, p. 89).

    E no art. 22: I suspenso da posse ou restrio do porte de armas; II o afastamento do lar, domiclio ou local de convi-vncia com a ofendida, entre outras medidas (Idem, Ibidem).

    A mesma lei tambm criou trs juizados voltados ape-nas para o atendimento s mulheres, retirando dos Juizados Especiais Criminais (Jecrim) a competncia para julgar os crimes de violncia domstica que, portanto, deixam de ser enquadrados na lei no 9.099 (de menor potencial ofensivo).

    A Secretaria Especial de Polticas para as Mulheres (SPM) realizou um levantamento, de outubro de 2006 a maio de 2007, sobre o modo como as autoridades policiais e judiciais lidaram com as determinaes da nova legisla-o desde que a Lei Maria da Penha foi promulgada (SPM, 2007). Os dados foram coletados por meio de diferentes mecanismos como a ouvidoria da SPM, o Ligue 180 e junto aos servios da Rede de Atendimento Mulher. O dados mostram que a referida lei estimulou a insero do tema violncia contra as mulheres no cotidiano da vida polti-ca. Os veculos de comunicao deram ampla cobertura ao assunto, de forma mais sistemtica e qualificada. Em um ano de vigncia da lei, 74 matrias sobre o tema foram pu-blicadas. A implementao da legislao provocou o cres-cimento do nmero de servios da Rede de Atendimento s Mulheres em situao de violncia.

    No mbito da Justia, foram criados 15 juizados, 32 varas adaptadas, oito DEAMs, oito centros de referncia e uma casa abrigo. O nmero de instncias para lidar com a demanda das mulheres , entretanto, ainda insuficiente.

  • DILEMAS580 Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    No perodo estudado, foram autorizadas 5.247 medi-das protetivas solicitadas pelas DEAMs, destacando-se as de afastamento do agressor do lar e a proibio de sua aproxi-mao da mulher. Foram decretadas 864 prises em flagran-te e 77 em carter preventivo, sendo os juizados e as varas do Centro-Oeste as instncias que mais concederam prises. Ainda assim, h um longo caminho a ser percorrido para a efetiva implementao da Lei Maria da Penha. Alguns obs-tculos sero abordados adiante.

    Mtodo

    Foi realizado um levantamento das informaes existentes sobre as queixas relativas a violncia conjugal no perodo entre 2005 e 2008 da amostra de convenincia em cinco DEAMs legais do estado do Rio de Janeiro: a do Centro (CE), a de Campo Grande (CG), a de Jacarepagu (JA), a de Volta Redonda (VR) e a de Belford Roxo (BR). Essas unidades foram escolhidas por serem, at a data de realizao da pesquisa, pertencentes ao Programa Dele-gacia Legal. Implementado h 10 anos e desenvolvido em 116 delegacias no estado do Rio de Janeiro, o programa trouxe uma proposta inovadora aos usurios, que era a de prestar um atendimento humanizado, realizado prin-cipalmente por profissionais da sade e da assistncia so-cial1 e contar, no quadro de funcionrios das DEAMs e de outras delegacias no especializadas, com a presena de tcnicas mulheres.

    O perodo de 2005-2008 abrange um momento ante-rior e outro posterior ao advento da Lei Maria da Penha (agosto de 2006), o que permite analisar se houve algum indcio de impacto no nmero de atendimentos e no perfil das queixas nos anos aps a lei.

    O estudo analisou os dados relativos: 1) ao total de atendimentos realizados pelas tcnicas por ano; 2) rela-o entre o nmero de atendimentos caracterizados como possvel fato ilcito pelas tcnicas e os registros de ocor-rncia (RO) realizados pelos policiais; 3) diferena entre o nmero de atendimentos caracterizados como possvel fato ilcito e os ROs e o total de atendimentos.

    1 No interior do Estado pe-dagogos so aceitos como tcnicos de atendimento social.

  • DILEMAS 581Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

    Essas informaes foram obtidas atravs dos sistemas de informao implantados nas Delegacias Legais para po-liciais e tcnicas, respectivamente denominados Sistema de Controle Operacional (SCO) e Sistema de Atendimento (SAT). O SCO utilizado pelos policiais para a informa-o e a elaborao dos RO, sendo gerenciado pelo Servi-o de Inteligncia Policial (SIP). As informaes policiais que constam neste artigo foram fornecidas pelos prprios policiais que trabalham no SIP, autorizados poca pelo chefe da Polcia Civil do Estado do Rio de Janeiro e pelo delegado de polcia diretor do Departamento de Polcia do Interior (DPI). Quanto pesquisa efetuada no SAT do balco de atendimento das Delegacias Legais, foi autori-zada pela coordenadora de recursos humanos do Progra-ma Delegacia Legal. O levantamento do SAT foi realizado pela autora Cludia Abdala, tcnica de atendimento social e posteriomente supervisora de recursos humanos do Pro-grama Delegacia Legal em 14 delegacias da regio centro--sul fluminense, entre 2006 e 2009.

    O SAT se constitui em um sistema alimentado pelas tcnicas no momento de chegada das mulheres aos balces de atendimento das delegacias legais. Alm de conter o ca-dastro da usuria da DEAM, registra o motivo da procura e o encaminhamento dado ao caso. As mulheres que buscam ajuda nessas delegacias so atendidas pelas tcnicas, que escu-tam a demanda ou queixa, colhem dados sociodemogrficos (nome, idade, telefone, profisso e escolaridade) para traar o perfil das usurias e descrevem um resumo da queixa.

    Depois de realizado o cadastro da usuria, quando ne-cessrio, a mulher levada para a Rede de Atendimento Especializado Mulher do municpio. Ainda, quando ca-racterizado no entendimento da tcnica como um possvel fato ilcito, a usuria encaminhada para o policial para rea-lizao do registro de ocorrncia. Ento, gerado um docu-mento pelo sistema que, alm de todas as informaes dadas pelas mulheres, caracteriza o motivo da procura.

    Os motivos da procura do SAT podem ser: 1) Acesso ao delegado ou ao detetive: quando a usu-

    ria foi encaminhada ao delegado ou policial para entregar peties para serem apreciadas ou para conversar com es-sas autoridades.

  • DILEMAS582 Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    2) Atendimento social: so as aes realizadas pelas tc-nicas e encaminhadas para a rede de servios oferecidos na localidade, aps terem escutado e interpretado as queixas das mulheres. Um exemplo: a mulher que sofreu violncia fsica por parte do marido e deseja se separar dele. Alm de ser encaminhada ao policial para realizar o registro de ocorrncia, poder ocorrer um procedimento defensoria pblica para dar incio ao processo de separao ou para um psiclogo, frum, Alcolicos Annimos, Centro de Cidada-nia, entre outros. Nos municpios onde h um ncleo espe-cializado, ela poder ser encaminhada ao Centro Integrado de Atendimento Mulher CIAM (RJ) ou ao Ncleo In-tegrado de Atendimento Mulher NIAM, um brao do CIAM no interior do estado para assistncia na rea psico-lgica, jurdica e social.

    3) Balco de atendimento: acolhe informaes sim-ples que no impliquem uma escuta tcnica aprofundada e especializada.

    4) Comparecimento ao ato vinculado ao registro de ocorrncia: termo usado para descrever a apresentao das partes (mulher, marido, testemunha) para depor ao policial sobre o caso de desavena e tudo o que diz respeito a um determinado registro de ocorrncia.

    5) Possvel fato ilcito: termo utilizado para designar a situao em que a queixa da mulher passa a configurar um possvel crime que se encontra disponvel apenas no sis-tema utilizado pelas tcnicas. Nesses casos, a tcnica que faz o primeiro atendimento coloca os motivos no SAT e isso gera um nmero de servio vinculado ao registro de ocorrncia que o policial far. Assim, quando algum quer informao sobre o atendimento, tem acesso tambm ao nmero do registro de ocorrncia correspondente. Se, de-pois de encaminhada ao policial, a queixa no gerar regis-tro de ocorrncia, esse policial dever justificar o motivo pelo qual ele no foi efetivado em seu sistema, o SCO. A tcnica tambm dever escrever nas observaes finais do SAT o destino daquele atendimento.

    Cabe um parntese aqui: quem tipifica a queixa como crime o policial, as tcnicas devem apenas caracterizar o atendimento como um possvel fato ilcito. Inclusive,

  • DILEMAS 583Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

    tcnicas e estagirias no podem ter formao na rea jurdica, uma exigncia na seleo feita pelos recursos humanos. Elas devem interpretar as queixas das mulheres quando entenderem tratar-se de um possvel crime, e prin-cipalmente aterem-se em suas demandas sociais encami-nhando-as rede de referncia local.

    6) Busca de desaparecido: um descritor para os casos em que a usuria quer que se faa uma pesquisa no SAT para localizar um parente desaparecido. A busca pode ser realizada pela tcnica e independe do registro de ocorrn-cia. Esse acesso serve para localizar um desaparecido, caso tenha dado entrada em alguma delegacia do estado do Rio de Janeiro. Em muitos casos, a mulher no quer que seja feito o registro. Por exemplo: quando ela procura um fora-gido da polcia e quer saber se ele foi encontrado morto ou se foi encaminhado para algum hospital.

    7) Registro de extravio de documentos: termo utiliza-do para registrar o extravio de documentos para se evitar que sejam usados de forma ilcita. No caso, os usurios tm como provar que deram queixa polcia.

    8) Outros descritores: conflitos e problemas civis, elogios e agradecimentos, reclamaes e crticas e su-gestes, termos que dispensam explicao.

    Para uma anlise estatstica, foi realizada a compara-o da mdia de atendimento anual nos perodos anterior e posterior lei por meio do teste no paramtrico de Wilcoxon para amostras dependentes. O nvel de signifi-cncia foi de 0,052. Foram descritos os percentuais anu-ais referentes ao atendimento caracterizado como pos-svel fato ilcito (PFI) e o registro de ocorrncia (RO) em relao ao total de atendimentos realizados pelas tcnicas. Foi tambm calculada a diferena percentual anual entre o PFI e o RO a partir da seguinte frmula: [(PFI-RO) x 100]/PFI.

    Tambm foi realizada uma observao de campo durante todo perodo da pesquisa. Os dados quantita-tivos foram cruzados com entrevistas qualitativas rea-lizadas com 10 mulheres usurias dos servios, sendo destacadas cinco delas na tese de doutorado Escalada da dor, ciclo evolutivo da violncia conjugal.

    2. O teste de Wilcoxon um tipo de teste de hip-teses utilizado para iden-tificar se existe diferena entre as mdias estima-das em duas medidas de uma mesma amostra com pequeno nmero de ob-servados. Quando o valor obtido maior que 0,05, a diferena entre as mdias no estatisticamente significativa. (DAWSON--SAUNDERS e TRAPP).

  • DILEMAS584 Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Resultados e discusso Indcios do impacto da Lei Maria da Penha na procura por atendimento nas DEAMs do estado do Rio de Janeiro

    A anlise do total anual de atendimentos nas DEAMs no perodo estudado demonstra que no possvel identificar um padro nico que indique acrscimo ou decrscimo na quantidade de denncias nos anos posteriores promulga-o da Lei Maria da Penha. Havia dvida entre vrias instn-cias pblicas e os movimentos de mulheres sobre qual seria o impacto da lei nas denncias de violncia conjugal, sobre se haveria aumento no nmero de registros e se o fato de os ma-ridos agressores serem presos em flagrante levaria as esposas a denunciarem menos. Constata-se que a DEAM de Campo Grande (CG) foi a nica com um pequeno impacto positivo. O aumento pode indicar apenas uma elevao no nmero de ocorrncias ou uma maior confiana ou convico por parte das vtimas em denunciar. Das demais DEAMs da capital, a do Centro (CE)apresentou uma reduo nos dois anos poste-riores lei. Na de Jacarepagu (J), houve aumento em 2007, mas, no ano seguinte, o nmero voltou ao patamar de 2005. A de Belford Roxo (BR) teve uma instabilidade semelhante de Jacarepagu. Em Volta Redonda (VR), houve diminuio gradativa. A mdia anual nas cinco no perodo anterior lei foi de 16.185 atendimentos; no perodo posterior, de 15.562. Essa diferena, porm, no foi estatisticamente significativa (p = 0,72), o que pode ser observado no Grfico 1.

    2005

    2006

    2007

    2008

    0

    5000

    10000

    15000

    20000

    25000

    DEAM CE DEAM CG DEAM J DEAM VR DEAM BR

    Grfico 1 Atendimentos em DEAMs do Rio de Janeiro (2005-2008)

  • DILEMAS 585Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

    A Tabela 1 permite analisar o percentual de atendi-mentos classificados como possveis fatos ilcitos e o de registros de ocorrncia nas DEAMs do Rio de Janei-ro no perodo de 2005 a 2008, com o advento da lei. Os percentuais dessa motivao variaram de 23% a 51,6%, o que demonstra uma heterogeneidade na interpretao das queixas entre as tcnicas e os policiais ou uma demanda diferenciada das mulheres.

    Tabela 1 - Percentual de possveis fatos ilcitos registrados pelos tcnicos em relao ao total de atendimentos das cinco DEAMs do Rio de Janeiro 2005 a 2008

    2005 2006 2007 2008

    N % N % N % N %

    DEAM CE

    PFI* 7.625 33,3 7.458 31,6 6.502 38,3 6.099 28,7

    RO** 6.392 27,9 5.650 24,0 4.260 25,1 4.078 19,2

    Total de atendimento 22.932 23.569 16.974 21.220

    DEAM CG

    PFI 8.598 45,3 9.607 51,2 10.333 51,6 10.975 49,0

    RO 7.102 37,4 7.729 41,2 8.472 42,3 8.974 40,1

    Total de atendimento 18.964 18.771 20.040 22.388

    DEAM J

    PFI 3.751 25,6 4.854 31,1 4.255 25,3 4.224 26,9

    RO 3.252 22,2 3.454 22,1 2.657 15,8 2.635 16,8

    Total de atendimento 14.674 15.609 16.826 15.703

    DEAM VR

    PFI 2.826 23,5 2.912 25,1 2.578 27,1 2.859 33,8

    RO 2.559 21,3 2.615 22,5 2.766 29,1 3.012 35,6

    Total de atendimento 12.025 11.623 9.516 8.451

    DEAM BR

    PFI 4.774 43,2 5.750 45,5 4.529 40,1 4.378 33,2

    RO 1.876 17,0 2.024 16,0 22,42 19,8 2.065 15,2

    Total de atendimento 11.062 12.625 11.299 13.199

    *PFI = Possvel fato ilcito

    **RO = Registro de ocorrncia

  • DILEMAS586 Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    A DEAM de Campo Grande apresentou os maiores percentuais de possveis fatos ilcitos, correspondendo metade dos atendimentos realizados. Em relao ao per-odo posterior lei no 11.340, a delegacia de Volta Redon-da teve uma tendncia de crescimento desse percentual, enquanto na de Belford a indicao foi inversa.

    Em relao aos registros de ocorrncia, chama aten-o o pequeno percentual de registros em Belford Roxo, sem demonstrar uma tendncia explicita aps a entrada em vigncia da lei. Apenas na DEAM de Volta Redonda h um aumento dos ROs nos dois anos seguintes nova legislao (Tabela 1).

    De modo geral, no houve grande impacto quanto interpretao por parte das tcnicas sobre o motivo da procura para queixas sobre possveis fatos ilcitos. Esse resultado nos mostra que tais interpretaes, realizadas pelas tcnicas, mantiveram-se em um padro que denota um acolhimento das queixas das usurias. Tal fato sugere no haver indcios de um grande impacto da Lei Maria da Penha no nmero de registros de ocorrncia de violncia conjugal realizados pelas DEAMs do estado.

    Concordncias e discordncias na interpretao das queixas

    A trajetria das queixas fundamental para se com-preender o jogo de foras existente nas delegacias e nos auxiliar a avaliar os efeitos da Lei Maria da Penha nas DEAMs, na cidade e no interior do Rio de Janeiro. As informaes anotadas como possvel fato ilcito so con-sideradas queixas-crime, devendo ser encaminhadas ao policial para serem tipificadas e ento integrarem a ela-borao do registro de ocorrncia.

    Assim, a profissional que promove o primeiro aten-dimento faz concomitantemente o encaminhamento para o policial e os direcionamentos sociais que julgar neces-srios. Como j foi mencionado, no cabe s tcnicas ti-pificar crimes. Essa uma atribuio do policial. Da o quesito ser chamado de possvel fato ilcito, pois ele s ser confirmado como crime pelo policial quando ele o transformar em registro de ocorrncia e realizar as inves-tigaes pertinentes.

  • DILEMAS 587Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

    De acordo com a Tabela 2, verifica-se que na DEAM do Centro, de 2005 a 2007, houve aumento ano a ano na diferena percentual entre possvel fato ilcito e regis-tro de ocorrncia. Isso significa que, nessa delegacia, a interpretao das queixas realizadas pela parte tcnica est sendo cada vez menos reconhecida pelos policiais.

    2005 2006 2007 2008

    DEAM CE

    PFI 7.625 7.458 6.502 6.099

    RO 6.392 5.650 4.260 4.078

    Diferena % 16,2 24,2 34,5 33,1

    DEAM CG

    PFI 8.598 9.607 10.333 10.975

    RO 7.102 7.729 8.472 8.974

    Diferena % 17,4 19,5 18,0 33,1

    DEAM J

    PFI 3.751 4.854 4.255 4.224

    RO 3.252 3.454 2.657 2.635

    Diferena % 13,3 28,8 37,6 37,6

    DEAM VR

    PFI 2.826 2.912 2.578 2.859

    RO 2.559 2.615 2.766 3.012

    Diferena % 9,4 10,2 -7,3 -5,4

    DEAM BR

    PFI 4.774 5.750 4.529 4.378

    RO 1.876 2.024 2.242 2.065

    Diferena % 60,7 64,8 50,5 52,8

    Ainda de acordo com a mesma tabela, na DEAM de Campo Grande, de 2005 a 2008, a diferena percentual se manteve praticamente estvel, demonstrando que nessa Delegacia as interpretaes das tcnicas e dos policiais so as que mais convergem, no havendo conflito de in-terpretaes (Figura 1).

    Tabela 2 Diferena percentual entre nmero de possveis fatos ilcitos e os registros de ocorrncia nas cinco DEAMs do estado do Rio de Janeiro (2005-2008)

  • DILEMAS588 Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Figu

    ra 1

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    2005

    2006

    2007

    2008

    0

    2000

    4000

    2600

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    Lei M

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    DEAM

    CE

    2005

    2006

    2007

    2008

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    2000

    4000

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    Lei M

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    DEAM

    CG

    2005

    2006

    2007

    2008

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    2000

    4000

    2600

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    2005

    2006

    2007

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    2005

    2006

    2007

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  • DILEMAS 589Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

    Em relao DEAM de Volta Redonda, houve uma aproximao entre a interpretao das tcnicas e dos poli-ciais, porm a partir de 2007 (ps-Maria da Penha), houve um maior nmero de RO do que de possvel fato ilcito. Essa diferena justificada pelo trmino dos plantes notur-nos que incluam tcnicas no interior do estado. No haven-do tcnicas nos plantes noturnos as mulheres se dirigiam diretamente aos policiais, portanto, no sendo adicionadas no sistema do balco de atendimento (SAT).

    A DEAM de Belford Roxo apresenta maior diferena percentual, portanto mais discrepncia entre as interpreta-es e consequentemente pouca concordncia na avaliao das queixas entre tcnicas e policiais. A DEAM de Jacarepa-gu teve ano a ano um aumento significativo nas diferenas de interpretao at 2007, estabilizando-se em 2008.

    As diferenas mais discrepantes entre as avaliaes das tcnicas e dos policiais sobre as queixas oferecidas pelas mu-lheres sugerem algumas explicaes baseadas na observao de campo, em entrevistas com as mulheres que foram s de-legacias, e na vivncia da prpria pesquisadora como tcnica de atendimento social e, posteriormente, como supervisora dos balces de atendimento.

    Em primeiro lugar muito claro que existe uma in-terpretao diferenciada da tcnica que acolhe a queixa da mulher e do policial para quem ela encaminhada, a respeito da lei. Essa diferena interfere no resultado dos encaminhamentos e obviamente, na ateno que dada situao concreta da mulher. Determinados casos no en-tendimento da tcnica deveriam ser criminalizados, ou transformados em registro de ocorrncia, mas no chegam a ser interpretados da mesma forma pelos agentes poli-ciais. Observa-se em muitos desses casos, uma desconside-rao em relao ao problema apresentado pela queixosa, quando, por exemplo, os agentes no se dispem sequer a escutar o que a mulher tem a dizer, bicam a ocorrncia, que no jargo policial seria o mesmo que se desvencilhar da queixosa, sem ao menos ouvi-la.

    Em algumas situaes as tcnicas na sua grande maio-ria esse nvel de funo exercido por mulheres e nas DE-AMs somente por mulheres se sentem pressionadas por alguns policiais quando esto avaliando as queixas trazidas

  • DILEMAS590 Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    pelas mulheres, para que no as classifiquem como possvel fato ilcito, pois essa categoria no SAT implica a abertura de pendncias para elaborao do registro de ocorrncia. As tcnicas so orientadas pela superviso nesses casos a colo-carem a rubrica possvel fato ilcito sempre que entende-rem se tratar de um crime a ser encaminhado para o policial fazer a ocorrncia e, caso no seja realizado o registro, ele deve justificar o motivo no SCO. As tcnicas tambm devem escrever no campo das observaes finais no SAT que no foi realizado o registro e o nome do policial que atendeu a mulher. De modo geral, as tcnicas recebem apoio da super-viso e de toda a equipe do Programa de Delegacia Legal em relao aos problemas com que se deparam no trabalho. perceptvel, depois de 10 anos de Programa, que a maioria dos policiais j valoriza o corpo tcnico das delegacias.

    Quando a usuria expressa o desejo de conversar apenas com o policial, a tcnica que a atende deve usar a rubrica acesso delegado/detetive. Alguns desses enca-minhamentos aps a conversa com o policial podem ser transformados em registros de ocorrncia e aparecero no SAT como acesso del/det, e no como possvel fato ilcito. Isso acaba por mascarar a informao no sistema. Nesses casos, as tcnicas so orientadas a escrever nas ob-servaes finais que aquele acesso del/det gerou uma ocor-rncia e a acrescentar o nmero da mesma.

    H casos de mudana de deciso da mulher quan-to queixa prestada. Essa situao quase sempre ocor-re aps conversa com o policial sobre as consequncias do registro. Muitas preferem que no seja caracterizado o flagrante e que o marido no seja preso. Vrios poli-ciais se queixam de que as mulheres se arrependem de dar queixa de seus companheiros, s querem usar a polcia. A expresso dar um susto no marido, utiliza-da pelas usurias, pode ser entendida como uma forma de tentativa de empoderamento para lidar com o com-panheiro violento (SOARES, 1999). Pesquisas realizadas em delegacias brasileiras (BRANDO, 1996; RIFIOTIS, 2003; MUNIZ, 1996; OLIVEIRA, 2006) demonstram que as mulheres buscam ajuda nas delegacias na expectativa de reordenar as relaes de poder no espao domstico (RIFIOTIS, 2003, p.12).

  • DILEMAS 591Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

    Em sntese, ao se dirigirem DEAM com muita raiva porque o companheiro est abusado demais, com vergonha, ma-goada ou at mesmo com medo de a polcia prend-las, tais mulheres evidenciam o quanto difcil tomar a deciso de re-gistrar a queixa. A denncia do parceiro polcia significa certo rompimento de sua parte com a reciprocidade familiar, embora como resposta s rupturas causadas pelos homens nesse con-texto. Dentre as mulheres que se dirigem DEAM convictas da denncia e da necessidade de punio aos agressores, poucas se manifestam favorveis priso do acusado. A maioria afir-ma querer somente dar um susto, uma prensinha nele, um castigo, chamar para conversar, que ele me d sossego, que ele me deixe em paz, que ele saia de casa ou permaner na prpria casa, j que ele quer que eu saia de casa. A ida DEAM envolve a esperana de ele melhorar, ele tomar vergonha na cara, de resolver alguma coisa ou de propiciar uma ocasio para amedrontar o parceiro quanto s possveis implicaes de uma prxima agresso (BRANDO, 1996).

    As mulheres, segundo a autora, buscam na verdade a restaurao de sua existncia social ao procurarem as de-legacias especializadas.

    A maioria das mulheres que se dirige DEAM no tem suas expectativas atendidas, pois nem sempre encontram policiais disposta(o)s a exercer a funo de mediadores em suas conten-das domsticas. Por que ento continuam recorrendo insisten-temente DEAM? Argumenta-se que os efeitos produzidos pela queixa policial no contexto familiar da vtima advm prioritaria-mente da utilizao da delegacia como um recurso simblico (BRANDO, 1996).

    Utilizar a delegacia como recurso simblico, represen-taria uma busca desesperada pela lei, por um interditor, um terceiro que aponte para uma sada, no mais pela via da vio-lncia, mas, pela via da negociao dos impasses.

    Segundo Rifiotis (2003, p. 24),

    nos casos do que se costuma chamar violncia conjugal, a DEAM torna-se um espao de dramatizao de conflitos e de reconheci-mento da culpabilidade que pode garantir a continuidade da vida

  • DILEMAS592 Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    conjugal. um espao de palavra, de escuta, onde a denncia permite objetivar a crise da relao conjugal tirando o seu carter singular. (...) A objetivao se faz tornando pblica a relao e seus conflitos e dilemas, tendo a figura da autoridade policial como testemunha e com fora para definir o retorno ao bom caminho.

    A negociao pode envolver desde o afastamento do ho-mem do lar at o retorno em circunstncias mais favorveis para ambos. Ainda observa-se que h uma expectativa, da-queles que se propem a tratar a questo da violncia conju-gal, de que o rompimento do silncio realizado pela mulher quando busca uma delegacia queira dizer que ela deseja rom-per tambm com a relao violenta. Mas no simples as-sim. Os relacionamentos violentos em geral seguem um ciclo postulado por Leonor Walker (1979) denominado ciclo da violncia, que prega que as relaes conjugais violentas obe-decem a um padro de funcionamento em um ciclo de trs fases sucessivas: a primeira seria a fase da tenso, a segunda, da exploso, e a terceira e ltima, a fase da lua de mel.

    Na primeira fase, h a construo da tenso, que ocorre a partir de provocaes mtuas, ameaas, insultos, humilha-es. O clima ruim entre o casal vai crescendo at chegar a um ponto-limite e, assim, qualquer problema desencadeia o que Walker chamou de fase da exploso, que caracterizada por episdio agudo de violncia fsica. Em seguida, vem a fase da lua de mel, na qual os pedidos de desculpas, as promessas de que aquilo nunca acontecer de novo, a esperana de mu-dana de atitude do cnjuge, a negao da experincia violen-ta vivida e, em alguns casos, a ameaa de morte caso a mulher no retire a queixa a levam a recorrer delegacia. Com o ad-vento da Lei Maria da Penha, isso s pode ser feito na frente do juiz, e no mais de um policial, como acontecia antes. No entanto, no o que se observa no cotidiano das delegacias.

    Segundo a teoria de Walker (1979), a maioria das mu-lheres necessita de ajuda especializada para sar desse ciclo de violncia, sendo o registro de ocorrncia, na maior parte dos casos, uma etapa importante. Pesquisas com usurias do Centro Integrado de Atendimento Mulher sobre as dificul-dades para romper com a relao conjugal violenta demons-traram que o tempo mdio de relao desses casais de 10 a 12 anos (MOTA, 2001; ARAJO, 2002 apud SOARES, 2006).

  • DILEMAS 593Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

    Na verdade, depois do advento da lei no 11.340, no est mais na mo da mulher a deciso de realizar ou no o registro, o Estado ao ser informado do crime deve tomar as devidas providncias. No entanto, na prtica essa questo ainda continua sendo tratada nas delegacias como se de-pendesse de representao da vtima, quando, por exemplo, perguntam a mulher se quer realizar ou no a ocorrncia.

    Muitos policiais resistem ou se negam a fazer o ter-mo de ocorrncia, principalmente nos casos de violncia psicolgica, estando includas as ameaas de morte. A no materialidade do crime um dos impedimentos alegados. Os casos considerados graves pelos policiais, geralmente so aqueles em que existe violncia fsica visvel. Mesmo sendo contemplados na nova lei, os casos de violncia psi-colgica ainda encontram resistncia para seu reconhe-cimento e registro, no s pelos policiais, como tambm pelas tcnicas e por muitas mulheres pelo fato de banaliza-rem esses episdios.

    Segundo a legislao, a violncia psicolgica contra a mulher qualquer conduta que lhe cause dano emocio-nal e diminuio da autoestima ou que prejudique e per-turbe seu pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas aes, comportamentos, crenas e decises, mediante ameaa, constrangimento, humilhao, manipu-lao, isolamento, vigilncia constante, perseguio contu-maz, insulto, chantagem, ridicularizaro, explorao e limi-tao do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuzo sade psicolgica e autodeterminao (cap. II, art. 7o, inciso II, das formas de violncia domstica e familiar contra a mulher, 2006).

    O no reconhecimento dos maus-tratos psicolgicos como violncia uma queixa recorrente apresentada pelas tcnicas de atendimento social, em relao ao comporta-mento dos policiais. Muito embora, observa-se que as tc-nicas tambm parecem negar os danos psicolgicos das usurias, em vrias situaes. A maioria, porm, reclama da dificuldade que encontra quando encaminha tais casos aos policiais, pois entre esses agentes existe uma gria para classificar tais eventos, sendo as expresses mais comuns, feijoada, fub, ou seja, algo que os confunde e os faz perderem tempo (SOARES, 1999).

  • DILEMAS594 Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Estudos revelam que as prprias mulheres envolvidas em situao de violncia banalizam a situao vivida: ape-nas 55% das que sofreram agresso fsica reconheceram tais abusos como violncia... (SCHRAIBER et alii, 2002), pode-se inferir que no tocante violncia psicolgica essa dificuldade de reconhecimento seja ainda maior.

    Em todas as circunstncias, esses agentes da lei priori-zam a materialidade dos delitos assim como a prova mate-rial. notrio no cotidiano das delegacias que esse problema se agrava em relao s mulheres negras, pois a cor da pele dificulta a visualizao da leso, principalmente pelos que no possuem conhecimento tcnico para tal.

    Concluso

    Os dados desse trabalho ajudam a refletir sobre alguns indcios do impacto da lei no 11.340 na vida das mulheres envolvidas em situao de violncia conjugal que prestaram queixas e foram atendidas por tcnicas ou por policiais em cinco DEAMs no estado do Rio de Janeiro. Sabe-se que antes de chegar a uma delegacia para denunciar a situao de vio-lncia vivida, uma mulher precisa vencer muitos obstculos (ABDALA, 2009) e as que conseguem, geralmente, alm da fora pessoal, so estimuladas pelas campanhas de incentivo denncia que hoje ocorrem em todo o pas.

    Os obstculos so de toda sorte. No Brasil, at o ano de 2006, havia o total de 349 DEAMs, 52 Centros de Refern-cia e 81 Casas Abrigo (BARSTED, 2006) para atender a 5.500 municpios, o que significa ainda uma estrutura nfima para as necessidades dessas mulheres. Ou seja, alm de a distribui-o dos servios ser bastante desigual, ela est concentrada em alguns locais. Por exemplo, em So Paulo esto 125 das 349 DEAMs do pas. O problema da falta de articulao entre as redes de referncia e de atendimento e a concentrao de servio especializado em alguns municpios dificulta muito o encaminhamento correto das mulheres que sofreram violn-cia conjugal, em termos de proteo e efetivo atendimento.

    Para se ter uma ideia dessa m distribuio na regio centro sul-fluminense existe apenas uma DEAM e um servio de atendimento a mulheres realmente capacitado

  • DILEMAS 595Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

    para lhes dar assistncia, a Casa da Mulher (ABDALA, 2007). Em algumas cidades sequer existe IML, e quando h, alguns deles no funcionam nos fins de semana. As-sim, se uma mulher sofre uma violncia fsica sexta-feira noite ela provavelmente s poder fazer o exame de corpo de delito na segunda-feira, muitas vezes em outra cidade. Tendo que dispor de recursos prprios para se transpor-tar at o local, muito embora j seja contemplado o apoio s mulheres nesse sentido nas medidas protetivas da Lei Maria da Penha.

    O presente estudo demonstrou que para alm das barreiras fsicas e institucionais, as barreiras ideolgicas e psicolgicas so as mais difceis de ser transpostas. As polticas pblicas e a Lei Maria da Penha enfrentam tais barreiras ainda no vencidas do machismo e do patriarca-lismo, que levam os homens a naturalizar a violncia em suas relaes conjugais e sociais. E os instrumentos criados para atuar, coibindo a violncia relacional e contra a mu-lher, ainda so muito escassos, existe pouca consistncia nos procedimentos e ainda h poucas redes de apoio h lugares onde nem existem eficazes no acolhimento e no tratamento das mulheres e dos casais. At se poderia dizer que as leis so timas e do cobertura jurdica s vtimas de violncia, no entanto, poucos so os passos concretos que possibilitam as sadas das rotas perigosas que pem em risco suas vidas (ABDALA e MINAYO, 2009).

    Embora tenha havido um crescimento da conscincia das mulheres sobre seus direitos, em geral as que compa-recem s delegacias so pessoas de baixa renda que encon-tram na ida s DEAMs seu ltimo recurso para lidar com a violncia vivida, na busca de se empoderar para lidar com a questo. Para Inzumino (2004, p. 7), essa ao pode sig-nificar um resgate condio de sujeito.

    Pensando nas mulheres em relaes violentas, ao realizar uma queixa, denunciar a violncia de que esto sendo vti-mas, pode-se argumentar que estas mulheres, alm de exer-cerem o poder, procuram definir os limites do prprio corpo. Dessa forma, ao reivindicarem uma vida sem violncia, rei-vindicam tambm a liberdade de ir e vir e o domnio sobre a prpria sexualidade.

  • DILEMAS596 Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    A maior contribuio deste estudo reside no fato de tor-nar evidente que no basta mulher ter conscincia de que precisa denunciar. preciso investir num trabalho de cons-cientizao daqueles que devem apoi-la na sua tentativa de sada do ciclo da violncia. A deciso da elaborao do termo de ocorrncia est nas mos dos policiais que em alguns casos permite que a mulher decida. Tanto a postura dissuasria como a permissiva no respeitam a Lei Maria da Penha.

    Cruzando dados quantitativos sobre as queixas presta-das e certas observaes de campo, verifica-se que algumas delas, embora se apresentem s DEAMs, nunca tiveram seus relatos acolhidos e transformados em registro de ocorrn-cia pelos policiais. Tambm os homens agredidos tm difi-culdades em fazer denncias, pois contra eles existe o pre-conceito de que so fracos quando apanham de sua mulher. Esses dados possuem um agravante em relao situao das mulheres que buscam ajuda nas delegacias, a partir da constatao de que a violncia conjugal domstica uma ao repetida: para 28% das mulheres agredidas, a violncia domstica uma prtica de repetio e de vez em quando ela volta para assombrar a tranquilidade do lar (SENADO FEDERAL, 2007), o fato de muitas de suas queixas no se-rem transformadas em registro de ocorrncia, traz prejuzo a essas mulheres, pois no possuem um histrico de sua situa-o de violncia conjugal, o que poder interferir na deciso do juiz, j que ele no ter subsdios para julgar a constncia e a gravidade de cada caso.

    Ressalta-se tambm a falta de informao por parte da mulher em relao Lei Maria da Penha, o que a deixa vul-nervel a sofrer interferncias em suas decises no momento da denncia. Embora se saiba que ter informao no ga-rantia de ter seus direitos respeitados.

    O trabalho das tcnicas que realizam o atendimento ini-cial e promovem os encaminhamentos de ordem social bas-tante difcil e contundente, tanto em relao aos policiais, por-que muitos tendem a discordar dos motivos para considerao do possvel fato ilcito, como em relao rede de apoio espe-cializada, pois principalmente no interior do estado do Rio de Janeiro h muitas falhas ou ausncia de servios adequados3.

    3 Ver entrevistas qualitati-vas realizadas com 10 mu-lheres em Abdala (2009).

  • DILEMAS 597Cludia Abdala, Ktia Silveira e Maria Ceclia de Souza Minayo

    Aplicao da Lei Maria da Penha nas delegacias de mulheres

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