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1 Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos Oswaldo Giacóia. Junior 1. Metafísica, platonismo e niilismo Um dos traços mais marcantes da filosofia de Nietzsche consiste em sua pretensão, sustentada desde seus primeiros escritos, de, ao reverter o platonismo, também superar a metafísica pela transvaloração dos supremos valores da cultura ocidental. Para ele, a raiz profunda, a base completamente desenvolvida do pensar metafísico se encontra sistematizada no idealismo platônico, com a doutrina das idéias e a conseqüente oposição entre os mundos sensível e inteligível, constituindo o segundo o real (o ser, a essência permanente) contraposta à enganosa e insubsistente da aparência sensível (vir-a-ser, simulacro) e, portanto, a instância de julgamento acerca de sua realidade e valor. Desse modo, o anúncio da 'morte de Deus' está necessariamente associado à pre- tensão suprema de ter superado a metafísica, pois, como afirma Heidegger, antes de se referir a Deus em sentido religioso e cristão, "Deus é o nome para o âmbito das idéias e dos ideais. Esse âmbito do supra-sensível vale como mundo verdadeiro e autentica- mente real desde Platão ou, dito mais exatamente, desde a interpretação grega tardia e cristã da filosofia platônica. Diferenciando-se dele, o mundo sensível é apenas o mundo do aquém, o mundo mutável e, por isso, o mundo meramente aparente, não real. O mundo do aquém é o vale de lágrimas, diferenciando-se do monte da felicidade eterna no além. Se, tal como acontece ainda em Kant, chamarmos mundo sensível ao mundo físico em sentido lato, o mundo supra-sensível é o mundo metafísico" 1 . 1. HEIDEGGER, M. Nietzsches Wort "Gott ist tot". In: Holzwege. 6. Auflage. Frankfurt/M- Vittorio Klostermann Verlag, 1980, p. 212 [Tradução portuguesa: HEIDEGGER, M. Caminhos de floresta. Trad. Irene Borges Duarte et alii. Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, s.d., p. 250s]. GIACOIA JR, Oswaldo. “Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos.” Cáp. I em Metafísica Contemporânea, por Guido Imaguire, Custódio Luis S. Almeida, Manfredo Araújo de Oliveira (Org), p. 13-39. Rio de Janeiro, RJ: Vozes, 2007. Digitalizado por Gilberto Miranda Junior – [email protected]

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1 Nietzsche: fim da metafísica e os

pós-modernos

Oswaldo Giacóia. Junior

1. Metafísica, platonismo e niilismo

Um dos traços mais marcantes da filosofia de Nietzsche consiste em sua pretensão, sustentada desde seus primeiros escritos, de, ao reverter o platonismo, também superar a metafísica pela transvaloração dos supremos valores da cultura ocidental. Para ele, a raiz profunda, a base completamente desenvolvida do pensar metafísico se encontra sistematizada no idealismo platônico, com a doutrina das idéias e a conseqüente oposição entre os mundos sensível e inteligível, constituindo o segundo o real (o ser, a essência permanente) contraposta à enganosa e insubsistente da aparência sensível (vir-a-ser, simulacro) e, portanto, a instância de julgamento acerca de sua realidade e valor.

Desse modo, o anúncio da 'morte de Deus' está necessariamente associado à pre-tensão suprema de ter superado a metafísica, pois, como afirma Heidegger, antes de se referir a Deus em sentido religioso e cristão, "Deus é o nome para o âmbito das idéias e dos ideais. Esse âmbito do supra-sensível vale como mundo verdadeiro e autentica-mente real desde Platão ou, dito mais exatamente, desde a interpretação grega tardia e cristã da filosofia platônica. Diferenciando-se dele, o mundo sensível é apenas o mundo do aquém, o mundo mutável e, por isso, o mundo meramente aparente, não real. O mundo do aquém é o vale de lágrimas, diferenciando-se do monte da felicidade eterna no além. Se, tal como acontece ainda em Kant, chamarmos mundo sensível ao mundo físico em sentido lato, o mundo supra-sensível é o mundo metafísico"1.

1. HEIDEGGER, M. Nietzsches Wort "Gott ist tot". In: Holzwege. 6. Auflage. Frankfurt/M- Vittorio Klostermann Verlag, 1980, p. 212 [Tradução portuguesa: HEIDEGGER, M. Caminhos de floresta. Trad. Irene Borges Duarte et alii. Lisboa:Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, s.d., p. 250s].

GIACOIA JR, Oswaldo. “Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos.” Cáp. I

em Metafísica Contemporânea, por Guido Imaguire, Custódio Luis S. Almeida,

Manfredo Araújo de Oliveira (Org), p. 13-39. Rio de Janeiro, RJ: Vozes, 2007.

Digitalizado por Gilberto Miranda Junior – [email protected]

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14 1 Nietzsche- fim da metafísica e os pós-modernos

É, portanto, em ligação estreita com Platão e com o platonismo que se firma a identificação entre bem, belo e verdadeiro, instituindo um vínculo indissolúvel entre conhecimento, verdade e moralidade, assim como a idéia de uma significação ética para a existência do mundo e do homem. Essa interpretação pode ser referida tanto à meditação intensa sobre a filosofia platônica quanto à influência de Schopenhauer. Para este, com efeito, "colocar a força que produz o fenômeno do universo - e que, com isso, determina a constituição do mesmo - em ligação com a moralidade da intenção; e, por meio disso, demonstrar uma ordenação moral do universo como fundamento da ordenação física, este foi desde Sócrates o problema da filosofia"2.

Consideremos, pois, esse ponto como uma das idéias-chave de interpretação nietzscheana: o traço dominante tanto na teoria quanto no caráter do homem Platão teria consistido em seu instinto ou impulso ético. Platão seria, antes de tudo, um político e um legislador. Todos os seus outros talentos e capacitações, inegavelmente pronunciados, estariam a serviço daquela vocação predominante - tirânica, como afirma Nietzsche. Foi em vista da ética e da política que Platão mobilizou sua teoria do conhecimento, sobretudo a parte consistente na doutrina das idéias. Essa teria sido a principal conseqüência, ou reação, desencadeada nele pela experiência vivida com o moralista Sócrates.

Um dos principais pontos de apoio dessa tese é dado pela célebre distinção platô-nica entre dois gêneros de saber: o conhecimento racional (nous) e a correta opinião (doxa aletes), que se diferenciam pela proveniência - respectivamente, a partir de uma doutrina baseada em fundamentos, no primeiro caso, própria dos deuses e acessível apenas a poucos mortais; e a partir do convencimento desprovido de fundamentação, no segundo, acessível a todos os homens.

Em associação com isso, Nietzsche interpreta, a seu modo, o relato de Aristóteles, de acordo com o qual Platão teria primeiramente partilhado a doutrina heraclitiana, segundo a qual todas as coisas sensíveis se encontram em fluxo perpétuo - à qual teria permanecido fiel até seu encontro com Sócrates3. Valendo-se do trabalho críti-

2. SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung II. Cap. 47. In: Sämtliche Werke. Ed. Wolfgang Frhr. Von Löhneysen. Frankfurt/M: Suhrkamp Verlag, 1986, vol. II, p. 755. Não havendo indicação em contrário, as traduções são de minha responsabilidade.

3. "Depois dos sistemas que mencionamos vem a filosofia de Platão, que a muitos respeitos segue esses pensadores, mas tem características próprias que a apartam da Escola Itálica. Tendo-se familiarizado desde jovem com Crátilo e com as doutrinas heraclitéias (de que todas as coisas sensíveis se encontram em perpétuo estado de fluxo e não se pode ter conhecimento delas), manteve mais tarde essas opiniões. Sócrates, no entanto, ocupava-se com questões éticas e negligenciava o mundo natural como um todo, mas buscava o universal nesses assuntos de Ética e, pela primeira vez, aplicou o pensamento às definições. Platão aceitou a sua doutrina, sustentando, porém, que o problema não dizia respeito às coisas sensíveis e sim a entidades de outra espécie - e, por este motivo, a definição não podia versar sobre qualquer coisa sensível, uma vez que estas mudavam constantemente" (ARISTÓTELES. Metafísica, livro I, cap. 6, 987a-987b). Adoto a tradução de Leonel Valandro (Porto Alegre: Globo, 1969, p. 50).

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15 Oswaldo Giacoia Junior

co-filológico de seu colega, o filólogo Schuster (a quem segue de muito perto)4, e ba-seando-se particularmente em Crátilo 402a, Nietzsche afirma que Platão, influenciado por seu mestre Crátilo, interpreta no mesmo sentido deste último a sentença de Heráclito, de acordo com a qual panta korei kai oyden menei ("tudo muda e nada per-manece"). O que significa que Platão não teria dado à sentença o significado que lhe deu o próprio Heráclito, mas sim aquele dos heraclitianos.

Para Nietzsche, duas direções hermenêuticas de implicações diversas se abrem perante aquela proposição: "Se dissermos a matéria de todas as coisas modifica-se perpetuamente, isso significa então que todas as coisas renovam permanentemente o teor de suas partes; se dissermos que toda coisa singular passa, e nenhuma permanece, isso significa então que nenhuma coisa individual permanece eternamente em sua existência individual, ainda que se mantenha inalterada por longo tempo. No último caso, todo peso recai sobre oyden menei, e panta korei nada mais significa do que toda coisa tem uma vez que seguir adiante de seu lugar aqui. No primeiro caso, korei tem um sentido muito enfático, e oyden menei se relaciona a cada parte da substância: nenhum pedacinho da mesma permanece o mesmo que ele é, por exemplo, nenhum pedacinho de terra permanece terra, a saber, por mais longo tempo do que um momento. Então, em verdade, toda permanência qualitativa e espacial estaria, por princípio, banida do mundo; então estaria correto o que Platão designa como o ponto de vista dos heraclitianos, que nenhuma coisa é isso ou aquilo, porém apenas se torna perpetuamente isso ou aquilo. Essa interpretação é a de Platão. Nisso ele segue os heraclitianos:

enquanto Heráclito, segundo a demonstração de Schuster p. 207ss, pensa apenas que nenhuma coisa no mundo furta-se finalmente ao declínio. Oyden menei tem o acento principal"5.

De acordo com a interpretação de Nietzsche, esse deslocamento de acento para cada um dos componentes da sentença de Heráclito corresponde a uma decisão filosófica de relevância capital. A escolha da segunda opção (aquela genuinamente de Heráclito,segundo Schuster e Nietzsche) implica que nada permanece definitivamen-

4. SCHUSTER, P. Heraclit von Ephesus (Acta Societatis Philologae Lipsiensis, Band III, 1873).

5. NIETZSCHE, F. Einführung in das Studium der platonischen Dialogue (Introdução ao estudo dos diálogosplatônicos). Este texto, inédito durante a vida do filósofo, constitui um dos manuscritos para a série de preleções sobre a filosofia de Platão, ministradas por Nietzsche na Universidade da Basiléia. A referida introdução constitui a preleção proferida no semestre de inverno de 1871/1872, tendo sido concebida como uma tentativa de servir àqueles que querem ler Platão e consideram importante preparar-se para isso. Esses apontamentos manuscritos para preleções encontram-seem: Nietzsche Werke. Kritische Gesamtausgabe (doravante KGB). Ed. G. Colli e M. Montinari (Berlin/New York: de Gruyter), correspondendo à Abteilung 2 (segunda seçcão), Band (vol. 4) (abreviada como Werke. II, 4). O volume, contendo as Vorlesungsaufzeichnungen escritas entre o semestre de inverno de 1871/1872 ao semestre de inverno de1874/1875, foi publicado em 1995. A citação acima se refere à p. 150. As demais citações do mesmo ou de outro manuscrito dessas preleções serão referidas à: Werke (Ed. KGW). II, 4. Berlim/New York: De Gruyter, 1995, com indicação do número das páginas.

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te na natureza, tudo passa, inclusive o céu e a terra atuais, mas tudo retorna igualmente de modo perpétuo. Todas as coisas existentes são transitórias, mutáveis - porém com consistência e identidade suficientes para permitir um certo gênero de conhecimento a seu respeito.

A outra escolha (a de Crátilo e Platão) implica que tudo está em fluxo incessante - portanto nem o mais ínfimo atributo de nenhuma coisa sensível existente permanece idêntico a si mesmo, o que tem por conseqüência que nada se pode pensar como constituindo a essência de tais coisas, pois subsistência supõe inerência, que supõe, por sua vez, identidade e permanência. Sendo assim, tampouco pode haver qualquer gênero de conhecimento (episteme) correspondente a tais essências. Para Nietzsche, essa conclusão "também não procede do heraclitiano Protágoras, mas é platônico-cratiliana.

Ao contrário, Protágoras pensava existir uma episteme, que seria o mesmo que aesthesis

e a doxa que sobre ela repousa (portanto, episteme = doxa = aisth). Ele pensa que só há uma espécie de conhecimento, porém que há conhecimento, só que não universalmente

válido. Heráclito justamente não é primeiramente o pai daquela doutrina do desprezo dos sentidos: ao contrário, ele primeiro fundamentou a mathesis sobre opsis e akoe,

portanto reflexão com base (Grund) na experiência (fé incondicional na gnosis): contra o mundo dele, como mundo da doxa polemiza Parmênides"6.

Isso configura o seguinte resultado geral: a sentença de Heráclito interpretada no sentido de que nenhuma coisa na natureza permanece eternamente, que tudo passa e novamente retorna, não inviabiliza todo e qualquer conhecimento das coisas sensíveis. Apenas veta a possibilidade de um conhecimento que ultrapassa o âmbito da aisthesis e

da doxa que sobre ela se assenta - ou seja, um conhecimento que tem por base a experiência e os sentidos, esse foi também o caminho de Protágoras.

Platão, no entanto, ao tomar o outro caminho - o de Crátilo -, extraiu da sentença a seguinte conclusão: todas as coisas sensíveis se encontram em perpétuo fluxo e al-teração, de maneira que nenhum conhecimento racional é possível acerca delas. Tal inferência tem por base sua distinção entre dois gêneros de conhecimento, o proveni-ente do nous (intelecto), e a correta opinião (doxa aletes).

Sendo o primeiro imutável, por definição, ele não poderia concernir a nada que fosse sensível, pois todo sensível, de acordo com a hipótese, está mergulhado no eterno fluxo da insubsistência, que torna cada coisa, a cada instante, diferente de si mesmo, inclusive em suas ínfimas partes. Resultado: desespero gnoseológico, ceticismo,pessimismo prático; pois se nenhum conhecimento racional do mundo sensível é filosoficamente legitimável, isso afeta também a noção de um fundamento ab-

6. Ibid.

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soluto para o conhecimento do bem e da virtude, privando a existência de toda signi-ficação autenticamente moral - o que constitui a tragédia de todo moralista e reformador político.

Nietzsche tem em vista, também nesse passo, o testemunho de Aristóteles:

E, por outro lado, como vissem que todo esse mundo sensível está em movimento, e a respeito do que muda nenhuma declaração verdadeira se pode fazer, disseram que no tocante àquilo que por toda parte e a todos os respeitos está sempre mudando evidentemente nada se podia afirmar com segurança. Foi essa a opinião que floresceu na mais extrema das doutrinas acima mencionadas, a dos que se dizem discípulos de Heráclito, qual a defendida por Crátilo, que acabou persuadindo-se de que não devia dizer nada e se contentava em mover o dedo, e criticou Heráclito por ter dito que é impossível entrar duas vezes no mesmo rio; pois ele, Crátilo, opinava que isso não se pode fazer sequer uma vez7.

Nesse ponto situa-se a intervenção decisiva da influência socrática: Sócrates considerava o domínio ético cognoscível por conceitos. "Os conceitos socráticos. O que é justo, o que é belo? Jamais vemos o justo, o belo, sempre apenas nomeamos belo, justo, algo singular. De onde extraímos esses conceitos? Não a partir da experiência. Ao contrário, antes trazemo-los para a experiência e aplicamo-los à experiência. Nós os temos em nós; eis aí algo que não estava primeiramente in sensu e depois in intellectu.

Ninguém viu o belo, o igual, etc; de onde sabemos algo deles? Surge a pergunta cardeal pela origem dos conceitos. Temos que pensar que Platão partiu de tais abstrações como bom, belo, justo, não do conceito cavalo. Ele negava que a abstração fosse abstraída.

Como poderia ser abstraído o sempre permanente daquilo que sempre se modifica!"8

Nos conceitos socráticos - convém notar que é, sobretudo, das abstrações empre-gadas em sentido adjetivo (justo, belo, igual) e não prioritariamente no sentido subs-tantivo (como o conceito do cavalo) -, encontra Platão seu ponto de partida e uma tábua de salvação: esses predicados universais, que correspondem a entidades intelectuais idênticas, não podem estar sujeitos às variações e à insubsistência que afeta os entes sensíveis. Por isso, não estão também sujeitos ao erro, à mutação, estando também livres da contradição.

De Crátilo: disposição desesperada sobre o mundo dos phainomena,

com auxílio dos sentidos, nenhum conhecimento possível. Todo o sensível em fluxo. De Sócrates: poderosa influência da idealidade

7. ARISTÓTELES. Metafísica, livro IV, Cap. 5, 1010a. Op. cit., p. 103.

8. NIETZSCHE, F. Werke II, 4, p. 153.

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18 1. Nietzsche: fim da metafísica e os pós modernos

ética. Modelo na luta contra seu tempo. Adestramento na formação de conceitos e definições. Direção para a meditação ética. Dos pitagóricos: a figura do reformador ético-político, do fundador de seitas. Existem muitos verdadeiros onta. As coisas empíricas são suas cópias. A alma é imortal, a união com o corpo é uma penitência, o filósofo tem que se libertar o mais possível do corpo. - Só depois da mais íntima receção do elemento pitagórico, forma-se a grande concepção da doutrina das idéias: ao mesmo tempo, a fundação da academia9.

Como se pode perceber, os conceitos socráticos não constituem, de per si, o fun-damento da doutrina das idéias. Esta se forma por meio da combinação do elemento socrático com o elemento haurido do pitagorismo hierático. A influência dos conceitos socráticos permite a refutação da interpretação cratiliana da sentença de Heráclito e, dessa forma, fornecem apenas a ocasião apropriada para uma reflexão metafísica-mente mais profunda - cabe a Platão extrair deles, em combinação com a influência dos pitagóricos, as derradeiras conseqüências.

Mas os conceitos éticos dão apenas a ocasião para a separação, ideal e ético não coincidem. Platão acreditava com Heráclito que todo singular

[está] em fluxo perpétuo; por meio de Sócrates, ele encontrou determinações conceituais universais: do mesmo modo que às nossas singulares percepções sensíveis (intuições) correspondem objetos singulares, assim também aos nossos conceitos universais têm que corresponder objetos, inalteráveis como o próprio conceito. O conceito (noema) não poderia estar meramente na alma, sem que a ele correspondesse algo na efetividade. Herbart: "consideremos esses conceitos universais como conhecimentos de objetos reais, dos quais cada um deles, em sua espécie, semelhantemente ao conceito correspondente, está aí dado apenas uma vez: esses objetos reais são as idéias platônicas". Aos conceitos correspondem apenas outras tantas coisas efetivas, cognoscíveis por meio deles. O que é inalterável, o permanente não é como que o caráter do gênero e a lei natural, porém existe ao lado do que é singular e para além da mudança (não no

singular, não por meio do singular)10.

Sócrates ensinava que, no domínio da ética, pode-se encontrar um saber relacionado àquilo que é permanente e supra-sensível. É certo que ele não discerniu suficientemente os objetos desse saber, por não ter desenvolvido suficientemente a doutrina dos conceitos puros. Todavia, ele encontrou o caminho para lá, o método a seguir para acorreta descoberta dos conceitos: a dialética11. Nesse sentido, pode-se afirmar

9. Ibid., p. 168.

10. Ibid., 149.

11. Cf. Ibid., p. 154.

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Oswaldo Giacoia Júnior 19

que o traço fundamental da paideia socrática consiste em superar todo conhecimento obscuro, confuso, enganoso, constituindo a tarefa de vida para o filósofo a descoberta do reino dos conceitos, sendo a dialética o método para a derivação desse saber.

Todo ensinamento na academia se refere à dialética. Platão nada sabe de um intuitivo apreender das idéias, o caminho para o conceito é sempre a dialética: ao conceito correto corresponde então necessa-riamente um ente, que naturalmente não se pode ver e observar, senão justamente por meio do conceito. O doutrinamento pela dialética é contraposto ao conhecimento pela retórica e escrita. Este não produz nenhum saber, apenas uma doxa12.

Eis, portanto, outro ensinamento socrático que encontra em Platão, em combinação com a doutrina pitagórica da precedência da alma, uma ressonância profunda: o mundo do verdadeiro filósofo é o universo inteligível das puras abstrações, à sua tarefa e destinação pertence a iniciação, o apartar-se dos outros homens, entregues ao simulacro e à incerteza. Nessa ponte entre o especulativo e o moral, Nietzsche discerne, sob o impacto da influência socrática, o elemento ético na gênese da doutrina das idéias13.

O verdadeiro saber teria que se referir ao que é permanente, e ser de igual modo permanente e inabalável. Existe tal saber? Crátilo o negava: então inexiste também qualquer verdadeiro ser das coisas, ou ele é inteiramente inapreensível, e não nos concerne. Então estaríamos condenados a viver num mundo totalmente irrisório, sempre autocontraditório, em aparência e escuridão. Sócrates constatou que a maioria dos homens vive justamente apenas aí, principalmente os maiores e mais ilustres. Eles jazem na ilusão: sua grandeza nada vale, porque ela repousa sobre a ilusão, não sobre o saber. A depreciação da

efetividade Sócrates acrescenta a depreciação dos homens: ele emancipa Platão da veneração. No mundo da aparência, existem apenas grandezas puramente aparentes (mesmo Homero, Péricles, etc.)14.

Aqui se origina o desprezo platônico pelo mundo sensível e pelos sentidos - que, como já pudemos indicar anteriormente, não tem correspondência em Heráclito. É de Sócrates e dos pitagóricos que Platão herda o ódio contra a sensibilidade, a sensualidade - principalmente a indisposição moral contra a realidade mais próxima, que pesa como um fardo sobre o pensamento: corpo, carne, sangue, paixão, volúpia, ódio. Dedicar plenamente sua vida ao culto da dialética, "livrar-se tanto quanto possível dos sentidos torna-se a tarefa ética. Os sentidos como perturbadores da paz do

12.Ibid.

13. Cf. Ibid.,p. 162.

14.1bid.,p. 152.

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homem ético, como perturbadores da paz do pensador. Se é possível desembaraçar-se deles, então pode bem ser possível o verdadeiro conhecimento"15.

Essa incondicional predominância do elemento ético no pensamento de Platão permite vislumbrar uma rede de correspondências entre a doutrina das idéias e a teoria platônica da alma. Com efeito, a suprema perfeição do mundo das idéias é dada precisamente pela idéia do bem, idéia a que corresponde o ápice da ascese platônica do saber e da dialética. Do mesmo modo como o sol está para o mundo sensível, como a fonte de vida e crescimento, que ilumina as coisas existentes e permite ao olhar humano discerni-las como elas são, assim também está, no mundo inteligível, a idéia do bem: ela é a fonte do ser e do saber, é ela quem torna possível a cognoscibilidade e o conhecimento das idéias. E como o sol é superior à luz que promana e ao olho que ilumina, assim também a idéia do bem é superior ao ser e ao saber.

Dessa maneira, se o ponto de partida para a asserção de um mundo supra-sensível foi dado pelas hipóteses éticas de Sócrates, também de natureza ética será o elemento prevalente na doutrina platônica da alma. Relativamente a isso, a tarefa consistia em "encontrar um mundo, que o verdadeiramente Bom reconhece como o seu mundo, onde ele não é mais perturbado e seduzido, onde toda sensibilidade se cala, onde não há mais nenhum ver, ouvir e sentir. O ser-bom, a perfeição pertence à essência de toda a idéia; não a perfeição estética, porém a ética" .

Esse elemento nos fornece a base para o reconhecimento da mútua pertença entre a oposição mundo sensível x mundo inteligível, com a correspondente doutrina das idéias, por um lado, e a doutrina platônica da alma, por outro lado. Isso constitui um dos traços mais característicos da assimilação por Platão da influência do orfismo e do pitagorismo:

Platão deve aos pitagóricos a hipótese de uma multiplicidade de onta e, em verdade, não sensíveis, assim como a doutrina de que as coisas empíricas seriam imitações daquelas verdadeiras onta. Como, porém, chegamos a poder saber algo das idéias, posto que vivemos apenas no mundo empírico? De onde chegamos ao ison, agathon, que todavia não se confronta conosco na efetividade? De onde determinamos aquela semelhança das coisas com a idéia? Aqui vem em auxílio de Platão a doutrina da imortalidade da alma. As almas, como diz Philolau, estão ligadas ao corpo para castigo, o corpo é um cárcere, no qual a di-vindade as instalou para castigo, do qual elas não estão autorizadas a se libertar por seu próprio poder. Se a alma separou-se do corpo, então ela leva uma existência incorpórea num mundo superior17.

15. Ibid., p. 153.

16. Ibid., p. 162.

17. Ibid., p. 166s.

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21 Oswaldo Giacoia Junior

A postura heraclitiana - tal como a interpreta Platão - tornava, ao mesmo tempo, insubsistente a realidade e o conhecimento. O verdadeiro ser não pode também, ao mesmo tempo e sob a mesma relação, não ser: a condição da realidade é a identidade do ser. Mas é também sob a pressuposição do ser como idêntico que se baseia a possi-bilidade da ciência. Como o afirma R. Duval, "a linguagem e o conhecimento requerem uma certa estabilidade no devir, eles requerem que o devir não seja universal"18, senão nada corresponderia a nossas palavras e conceitos.

Assim, à oposição entre mundo sensível (domínio da aparência e do movimento) e mundo inteligível verdadeiramente real (domínio das essências imutáveis) corresponde, no plano do saber, a oposição entre opinião e ciência e, no plano da existência humana, a oposição entre corpo e alma. A tese desenvolvida por Platão, a respeito dessa rede sistemática de correspondências, é, como sabemos, que a existência das idéias demonstra que a alma teve uma vida anterior e independente de sua ligação com o corpo, e que essa ligação constitui, para a parte mais nobre da alma - a saber, para a parte intelectiva, seu componente imortal - uma queda e um cárcere, pois a nobreza dessa parte consiste precisamente em seu parentesco com o domínio eterno do inteligível.

Num fragmento póstumo do final de 1870 a abril de 1871, portanto ainda anterior à publicação de seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, Nietzsche já havia for-mulado seu programa filosófico: "Minha filosofia: platonismo revertido: quando mais afastado do verdadeiro ente, tanto mais puro, belo, melhor. A vida no brilho da aparência como meta"19.

Por isso, tem razão Duval quando reconhece ser o essencial da filosofia de Nietz-sche uma reversão da inversão platônica, uma aposta em Heráclito contra Platão: "Nietzsche reverte, portanto, a ordem dos valores que Platão tinha instituído entre o conhecimento do que permanece idêntico e o devir: ele considera que a verdade é a realidade do devir e que o conhecimento é uma fonte de erros e ilusões"20.

A esse juízo, tomaria a liberdade de acrescentar o seguinte: como, de acordo com a interpretação de Nietzsche, a doutrina das idéias está visceralmente imbricada com a doutrina da imortalidade da alma, então a reversão, no plano da teoria do conhecimento e da ciência, se desdobra em reversão no plano da moral, da estética e da política. De modo algum, entretanto, como uma simples reversão de posições, mas segundo a lógi-

18. DUVAL, R. Nietzsche et le Platonisme. In: Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, t. LUI, n, 4, out./1969. Paris: J. Vrin, p. 625.

19. Fragmento póstumo do final de 1870 a abril de 1871, n. 7 [156]. In: Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe(doravante KSA). Ed. G. Colli e M. Montinari. Berlim/New York/München: De Gruyter/DTV, 1980, vol. 7,p. 199.

20.DUVAL, R. Op. cit., p. 627.

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22 1. Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos

ca da auto-supressão, em que os valores dominantes na cultura ocidental, instituídos pelo platonismo, são conduzidos à extração de suas derradeiras conseqüências.

Desse modo, a transvaloração de todos os valores seria a catástrofe da metafísica: um processo que obedece a uma lógica imanente, cujo conceito Nietzsche formulou como niilismo. Se Nietzsche pode ser considerado nosso contemporâneo, do ponto de vista de seu diagnóstico do fim da metafísica, então isso se deve, sobretudo, à suagenealogia do niilismo, pois é nela que se descreve a crise irreversível de toda pretensão à objetividade e à fundamentação, em derradeira instância, do conhecimento racional, tal como ela correspondia ao empreendimento ético-filosófico de Platão.

A esse respeito, Heidegger observa: "Se Deus morreu, enquanto fundamento su-pra-sensível e enquanto meta de tudo o que é efetivamente real, se o mundo supra-sen-sível das idéias perdeu a sua força vinculativa, e, sobretudo, a sua força que desperta e edifica, então nada mais permanece a que o homem se possa agarrar, e segundo o qual se possa orientar"21.0 anúncio da morte de Deus significa, pois, a consciência da pro-pagação desse nada, da ausência de um mundo supra-sensível de valores vinculantes. Nesse léxico nietzscheano, nada é o dístico para a escalada do niilismo.

Por isso, uma das vias privilegiadas para a tematização do fim da metafísica em Nietzsche consiste precisamente em sua análise do niilismo, entendido enquanto ex-periência histórica da ausência de fundamento. Por essa razão, do ponto de vista dos fins essenciais desse trabalho, mais importante do que retomar a polêmica com Heidegger acerca da permanência ou não do pensamento de Nietzsche no âmbito da metafísica22, é observar que interpretar o tema do fim da metafísica em Nietzsche implica interpretar o que ele compreende por niilismo e compreender como ele próprio se posiciona em relação a essa experiência de significação epocal.

No final do século XIX - ainda saturado de positivismo e hegelianismo, de crença inabalável na onipotência da racionalidade científica, Nietzsche registrava: "Já há longo tempo toda nossa cultura européia se movimenta com [tal] tortura de tensão, que cresce a cada século, como em direção a uma catástrofe: inquieta, violenta, precipitada: como uma corredeira que quer chegar ao fim, que não mais reflete, que tem

21. HEIDEGGER, M. Op. cit., p. 213 [Trad. portuguesa. Op. cit., p. 251].

22. "A metafísica, isto é, para Nietzsche, a filosofia ocidental compreendida como platonismo, está no fim. Nietzsche compreende a sua filosofia própria como o contramovimento contra a metafísica, isto é, para ele, contra o platonismo.Contudo, enquanto mero contramovimento, ela permanece necessariamente, como todo o anti-, presa na essência daquilo contra o que se vira. O contramovimento de Nietzsche contra a metafísica é, enquanto mera reviravolta desta, o enredamento sem saída na metafísica, tanto que esta se isola contra a sua essência e, enquanto metafísica, nunca consegue pensar a sua essência própria" (HEIDEGGER, M. Op. cit., p. 212s [Trad. portuguesa. Op. cit., p. 251]).

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23 Oswaldo Giacoia Junior

medo de refletir" . Esse anúncio conserva para nós o mais vivo interesse, pois aquilo que Nietzsche pretendeu narrar foi a antecipação de nossa realidade, "a história dos próximos dois séculos, daquilo que vem, que não pode mais vir de outro modo: a as-

censão do niilismo"24.

Em que consiste, como se define, então, esse niilismo, que ainda nos afeta? A de-finição de Nietzsche é a seguinte: "Niilismo: falta a meta; falta a resposta para o 'por-quê'? O que significa niilismo - que os supremos valores se desvalorizam"25. A falta de resposta para a pergunta: "Por quê?" - eis o sinal distintivo do niilismo. Ora, a esse respeito, bem caberia a interrogação: Por que a falta de resposta a essa pergunta constitui o niilismo? E ainda mais: em que essa fórmula e a problemática nela implicada podem ainda nos concernir?

Para uma tal interrogação, a solução seria: porque as respostas historicamente propostas a todas as questões relevantes (a todo "por quê?") assentavam sobre um mesmo pressuposto: a possibilidade de encontrar uma causa, um sentido nas coisas e cursos de acontecimentos. O que equivale a dizer que tinham como pré-condição a vigência de valores superiores como sentido, finalidade, casualidade, verdade, reali-dade, ser - mas igualmente bem e mal, justo e injusto, lícito e ilícito, virtude e vício, etc. Sem essa resposta, perde-se a perspectiva do sentido e do valor, que sustenta todo um sistema metafísico de interpretação global do universo e da condição humana no mundo.

Com essa explicação, estamos ainda longe de compreender tanto o essencial do niilismo, como também a medida em que essa problemática ainda nos concerne. Para tanto, é necessário recorrer à perspectiva genealógica, revolver o enraizamento his-tórico daquele movimento que, nos últimos séculos, emergiu à superfície da consciência filosófica como a escalada do niilismo. Como já se pode notar, a partir das considerações feitas até aqui, a reconstituição de sua gênese nos reconduz à aurora de nossa própria cultura, na medida em que esta, desde seus primórdios, mantém uma íntima relação com as referências de valor atualmente em vias de dissolução. Pois a forma geral da racionalidade lógica provém de uma inspiração congenitamente so-crático-platônica, nela predominando o pensamento de tipo teórico, em sua busca in-cessante de causas, razões e princípios que explicam a essência, existência e os modos de ação dos entes e de seus processos de transformação.

23. NIETZSCHE, F. Fragmento póstumo de novembro de 1887 1887 1887 1887 a março de 1888, n. 11 [411].1888, n. 11 [411].1888, n. 11 [411].1888, n. 11 [411]. In: In: In: In: Sämtliche Werke. Ed.G. Colli und M. Montinari. Kritische Studienausgabe (doravante KSA). Berlin/New York/München: De Gruyter/DTV,1980, vol. 13, p. 189s.

24. Ibid.

25. NIETZSCHE, F. Fragmento póstumo do outono de 1887, n. 9 [35]. In: KSA. Op. cit., vol. 12, p. 350s.

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2 4 1. Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos

Considerada do ponto de vista genealógico, nossa cultura nasce sob o signo de uma obsessão explicativa, que constitui uma espécie de delírio de onipotência da razão. Para Nietzsche, essa representação "veio ao mundo pela primeira vez na pessoa de Sócrates: aquela fé inabalável em que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, alcançaria os mais profundos abismos do ser, e que o pensar estaria em condições de não apenas conhecer o ser, mas também até de corrigi-lo"26. Dito de outro modo, uma cultura teórica, ou científica, repousa inteiramente sobre a vigência universal do princípio de razão suficiente.

Quem alguma vez tomou visível para si como depois de Sócrates, o mistagogo da ciência, uma escola filosófica é substituída pela outra, como a onda pela onda; como, nos mais remotos domínios do mundo cultivado e como a autêntica tarefa para toda aptidão mais elevada, uma universalidade da ânsia de saber, nunca suspeitada, conduziu a ciência ao alto-mar, do qual, desde então, ela jamais pôde ser de novo completamente removida; como, primeiramente por meio dessa universalidade, uma rede comum do pensamento foi estendida sobre o conjunto do globo terrestre, sim com vistas à legalidade de um sistema solar inteiro; quem tornou presente para si mesmo tudo isso, junto com a surpreendente pirâmide de saber da atualidade - esse não pode se recusar a ver em Sócrates o ponto de inflexão e o vértice da assim chamada história universal27.

Entretanto, essa universalidade da avidez científica carrega consigo, como vimos, uma representação delirante.

A simples pergunta "por quê?" é como uma pulsão. Podemos saciá-la, durante algum tempo, pela indicação de fundamentos, mas nenhum fundamento é seguro em longo prazo. Cada um deles cai, por meio dela, sob uma compulsão à fundamentação. Ela é o tendencial triturador de todos os fundamentos dados e o insaciável investigador de novos fundamentos. Porém, justamente por isso ela se tornou a grande força propulsora do desenvolvimento intelectual28.

Desde suas origens, portanto, o logos científico vê-se acossado pela compulsão à fundamentação, e impelido por ele a percorrer a inteira cadeia dos conceitos e princí-pios. Eis para onde é necessariamente conduzida uma cultura que se obstina a fazer passar pelo crivo da pergunta "por quê?" todos os seus conteúdos cognitivos e esquemas de ação, a começar pelas mais primitivas ordenações religiosas.

26. NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia, 15. In: KSA, vol. 1, p. 99. 27. Ibid., p. 99s.

28. TÜRCKE, C. Fundamentalismus - Maskierter Nihilismus. Springe: Zu Klampen Verlag, 2003, p. 30.

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25 Oswaldo Giacoia Junior

O culto, os ritos, os costumes e os usos valem porque a divindade os exige? Sim, porém por que, então, ela os exige? Porque a própria di-vindade os criou e ordenou. Por que ela o fez, então? Por causa de nos-so bem-estar. Teremos repouso, proteção e segurança, enquanto nos guiarmos por essa ordenação. E isso é assim, uma vez mais, porque a divindade fundou e ordenou o mundo para o nosso melhor. E por que ela fez isso? Porque ela própria é boa, pura e simplesmente o bem29.

E por que razão ela é o Bem absoluto, poderíamos prosseguir perguntando, e assim

ad infinitum. Com a compulsão à fundamentação, o machado estará sempre colocado na raiz de cada novo fundamento que possa ser exibido.

Todo fundamento se deve a essa pergunta [por quê? OGJ.], quer ela se expresse numa face distorcida pelo sofrimento, num suspiro, ou numa linguagem articulada. Todo fundamento é um "por quê?" tran-qüilizado e imobilizado em um "por causa de". "Isso e isso é assim porque..." O "por que" é o agent provocateur de todos os fundamentos. Em primeiro lugar, a palavra mágica que em geral primeiramente abriu a porta para o reino dos fundamentos. Ela torna possível todo fundamento, mas não deixa nenhum deles em paz30.

Acossada pela compulsão a reproduzir infinitamente a mesma pergunta: "Por quê?",

a ciência se precipita irresistivelmente para seus limites, nos quais fracassa o otimismo oculto na essência da lógica. Pois a periferia do círculo da ciência tem pontos infinitamente múltiplos, e enquanto ainda não se deixa absolutamente ver como, algum dia, o círculo po-deria ser inteiramente mensurado, o homem nobre e talentoso, ainda antes da metade de sua existência, encontra-se inevitavelmente diante daqueles pontos fronteiriços da periferia, onde se detém estarrecido perante o inexplicável.

O encontro dessa barreira incontornável constitui para ele a experiência assustadora de que, "nessas fronteiras, a lógica gira sobre si mesma e finalmente morde a própria cauda"31, ou seja, nesse ponto a racionalidade é levada a perceber que o último fundamento é necessariamente um abismo, um sem-fundo.

Como exemplo privilegiado da conversão da racionalidade científica em seu contrário - desse movimento de morder a própria cauda -, podemos citar a penetrante análise a que Christoph Türcke submete a lógica de Aristóteles:

O Organon, que deveria descerrar e assegurar de uma vez por todas o solo do espírito, fez naturalmente o contrário. Cada um de seus re-

29. Ibid., p. 30.

30. Ibid., p. 29.

31. NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Op. cit., p. 101.

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26 1. Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos

sultados caiu sob o franzir de testa do "por quê?", em nenhum deles pudemos nos tranqüilizar definitivamente, e assim a lógica revolveu finalmente esse solo até a insegurança universal. Em verdade, desde o princípio havia algo desestabilizador nesse solo32.

Essa desestabilização, que nos remete incessantemente à necessidade de seguir avante, em busca de novos princípios e razões, derribando qualquer pretensão a fun-damento último, lança a racionalidade científica no que Nietzsche denominou de Horizonte do infinito. No aforismo 124 de A gaia ciência - que precede imediatamente a célebre parábola sobre o homem louco que anuncia a "morte de Deus" -, Nietzsche exprime esse sentimento de vertigem e insegurança que acompanha uma vida permanentemente em alto-mar, sem continentes e territórios demarcados, sempre de novo lançada à deriva:

Deixamos a terra firme e embarcamos! Queimamos a ponte - mais ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora tenha cautela, pequeno barco! Junto de você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se estende como seda e ouro e devaneio de bondade. Mas virão momentos em que você perceberá que ele é infinito e que não há coisa mais terrível que a infinitude. Oh, pobre pássaro que se sentiu livre e agora bate nas paredes dessa gaiola! Ai de você, se for acometido de saudade da terra, como se lá tivesse havido mais liberdade - e já não existe mais "terra"!33

Assim, a escalada do niilismo traz também consigo à superfície da consciência aquele elemento desestabilizador, imanente a todo "por quê?", pois, essa ascensão se traduz na vivência consciente da impossibilidade de princípios inabaláveis, na expe-riência histórica de que a total emancipação da razão esclarecida produz necessaria-mente a corrosão das referências tradicionais de valor, que o sentido de seu progresso conduz precisamente a esse desalento. Por causa disso, na medida em que tais valores e

princípios são os pilares de sustentação, que garantem a coesão e integridade de uma cultura, o niilismo é sintoma de declínio, de fragmentação de uma unidade cultural, um sinal de dissolução.

Esse é o sentido daquela fórmula lapidar: "O niilismo não é a causa, mas apenas a lógica da decadência"34. Não é o niilismo a causa da decadência cultural, antes pelo contrário: ele é antes o resultado necessário de um lento, até então insuspeitado, pro-cesso de declínio e perda de potência, pois nessa escalada são extraídas as conse-

32. Ibid., p. 36.

33. NIETZSCHE F. A gaia ciência. Aforismo 124. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,2001, p. 147.

34. NIETZSCHE, F. Fragmento póstumo da primavera de 1888, n. 14 [86]. In: KSA. Op. cit., vol. 13,p. 264s.

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Oswaldo Giacoia Júnior 27

qüências lógicas inexoráveis das pretensões sustentadas com base nesses mesmos valores que se esvaziam.

"Por que é, pois, doravante necessária a ascensão do niilismo? Porque são nossos próprios valores de até agora que nele extraem sua última conclusão: porque o niilismo é a lógica, pensada até o fim, de nossos grandes valores e ideais"35.

O niilismo deve, pois, ser entendido como o acontecimento de significado histó-rico-mundial em que a consciência filosófica, na crise de validade dos valores antigos e na ausência de novos valores universalmente reconhecidos, faz também a experiência do elemento nadificante (nihil) que, desde a origem, esteve associado aos primeiros, embora de maneira inconsciente, velada. Quando os valores cardinais são levados até a extração de suas derradeiras conseqüências, revela-se que, por detrás deles, nada mais tem subsistência. Para tanto, porém, é necessário que a realização desses valores tenha alcançado sua plenitude, o que não poderia ter ocorrido nos primórdios do processo nem no meio do caminho.

O que eu narro [afirma Nietzsche] é a história dos próximos dois sé-culos [...]. Descrevo aquilo que vem: a ascensão do niilismo. Posso descrevê-la porque aqui se passa algo necessário - os sinais disso estão por toda parte, apenas faltam olhos para tais sinais. Aqui, não louvo, nem censuro [o fato de, OGJ.] que ele venha: creio que há uma das maiores crises, um instante da mais profunda auto-reflexão do homem36.

2. A lógica da catástrofe

A esse movimento gostaria de denominar lógica da catástrofe. A expressão recorre à etimologia do termo, a partir de katastrophe (reviravolta) e katastrephein, com sentido de revirar, inverter, reverter. Tomado em sua acepção original, o termo remete ao acontecimento decisivo que conduz ao desenlace da tragédia grega, revelando, portanto, o sentido oculto do curso dos acontecimentos. Uma produtiva ambigüidade constitui o nó górdio de tais processos: por um lado, há um movimento na direção de perempção,esgotamento (catástrofe aqui significando esvaziamento e consumação); por outro lado, ao perfazer-se integralmente um movimento circular, a volta sobre si mesmo (catástrofe no sentido de reversão e retorno ao princípio).

Se isso é plausível, então reconstituir cuidadosamente a lógica dessa catástrofe, com o propósito de descrever sua dinâmica e sua necessidade, proporciona um im-

35. Ibid. Fragmento 11 [411]. In: KSA. Op. cit., p. 189s.

36. Fragmento póstumo de novembro de 1887-março de 1888,n. 11 [119]. In: KSA. Op. cit., vol. 13, p. 56s.

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28 1. Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos

portante subsídio para a compreensão do niilismo e de seus efeitos, inclusive no pre-sente. Para nós, será de especial interesse destacar o engendramento interno da crise, retraçar o movimento de voltar-se contra si e negar-se, que põe em ação um contra-movimento de superação do niilismo, originado no ponto de viragem, na catastrófica extração das derradeiras conclusões. Sabemos que o conceito nietzscheano para isso é o da paradoxal Selbstaufhebung (auto-supressão), que está na base de uma não menos complexa dialética sem síntese reconciliadora dos opostos.

Pode-se descrever e acompanhar esse movimento a partir da reflexão sobre o sentido de alguns textos obscuros, nos quais Nietzsche reflete sobre o niilismo, em dupla vertente: numa delas, privilegiando o aspecto ético, com destaque para a relação intrínseca entre a ascensão do niilismo e o predomínio da interpretação cristã da existência. Na outra vertente, a ênfase é concedida ao aspecto lógico, figurando as categorias da razão como causa do niilismo.

3. A catástrofe da veracidade cristã

Examinemos, em primeiro lugar, o privilégio concedido à crítica genealógica do cristianismo na decifração da lógica da decadência. Ele não deixa de parecer singular, na medida em que a decadência e sua lógica, o niilismo, não se origina apenas no cristianismo, mas tem raízes históricas anteriores. Entretanto, cabe lembrar que, para Nietzsche, o cristianismo deve ser interpretado, sobretudo, como potência civilizatória do mundo moderno, que sistematiza e universaliza as condições de conservação e reprodução do ascetismo platônico.

Por isso, o ascetismo cristão é particularmente relevante. Como observa, a esse respeito, Volker Gerhardt: há, entre as formas de ascetismo,

uma entre elas que chega ao excesso, que supera tudo o até então existente, e para a qual vale, por isso, o mais cortante ataque de Nietzsche. É a dominação sacerdotal judaico-cristã. Ela traz consigo a "sublevação dos escravos na moral", impõe mundialmente sua "moral do rebanho" e, em sua sobrevinda aliança com a ciência moderna, ameaça o futuro do homem. Desse modo, chegamos com Nietzsche à

constatação paradoxal: justo a mais poderosamente efetiva de todas as religiões monoteístas, a milenarmente sobrevivente, mundialmente missionária fé dos judeus e dos cristãos trouxe à tona o niilismo37.

37. GERHARDT, V. Ressentiment und Apokalypse. In: BRAUN, E. (ed.). Die Zukunft der Vernunft -aus der Perspektive einer nichtmetaphysisichen Philosophie. Würzburg: Königshausen & Neumann, 1993, p. 286.

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Oswaldo Giacoia Junior 29

Acompanhemos, portanto, em primeiro lugar, essa análise genealógica da escalada do niilismo, a partir da catástrofe da veracidade cristã.

O niilismo está à porta: de onde nos vem esse mais ominoso de todos os hóspedes? - 1) Ponto de partida: é um erro indicar "estados de ca-rência social", ou "degenerações fisiológicas", ou mesmo a corrupção como causas do niilismo. Elas permitem sempre ainda interpretações totalmente distintas. Porém, o niilismo se encontra numa in-terpretação bem determinada, na interpretação cristão-moral. Penú-ria, em si mesma, penúria psíquica, física, intelectual, ainda não é in-teiramente capaz de produzir niilismo, isto é, a radical recusa de valor, sentido, desejabilidade"38.

A obscuridade dessa passagem se esclarece à luz de uma exegese do célebre Len-zer-Heide Fragment, intitulado O niilismo europeu. Nele podemos surpreender, em pleno movimento, a lógica da catástrofe e da superação, ao mesmo tempo em que se nos descerra o horizonte de sentido presente na afirmação acima citada: "numa inter-pretação bem determinada da existência, a interpretação cristã-moral, que se encontra o niilismo".

O niilismo europeu 1

Que benefícios proporcionou a hipótese moral cristã?

1) Ela conferiu ao homem um valor absoluto, em oposição à sua pequenez e acaso na corrente do vir-a-ser e do

passar.

2) Ela serviu aos advogados de Deus, na medida em que legou ao mundo, a despeito do sofrimento e do mal, o

caráter de perfeição [...] o mal apareceu pleno de sentido.

3) Ela instituiu, no homem, um saber a respeito de valores absolutos e conferiu-lhe, com isso, precisamente

conhecimento adequado justamente para o mais importante.

Ela evitou que o homem se desprezasse como homem, que ele tomasse partido contra a vida, que se desesperasse

pelo conhecimento: ela foi um meio de conservação; - in summa: moral foi o maior antídoto contra o niilismo teórico

e prático.

2

Porém, entre as forças que a moral cultivou, estava a veracidade: esta finalmente se volta contra a moral,

descobre sua teleologia, sua consideração interessada - e agora o discernimento dessa longa mendacidade

incorporada, que desesperadamente se procura repelir, atua como estimulante para o niilismo. Constatamos agora em nós

mesmos necessidades, implantadas pela i n terpretação moral, que agora nos aparecem como necessidade do

não-verdadeiro: por outro lado,

38. Fragmento póstumo do outono de 1885-outono de 1886, n. 2 [127]. In: KSA. Op. cit., vol. 12, p. 125s.

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30 1. Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos

são delas que parece depender o valor pelo qual suportamos viver. Esse antagonismo: não poder apreciar aquilo que conhecemos e não podermos apreciar aquilo que gostaríamos de mentir para nós mesmos, resulta num processo de dissolução39.

O fragmento indica como o problema fundamental a que a interpretação cristã da existência vem a dar resposta é precisamente aquele do valor. O imenso beneficio dessa interpretação compete em ter provido a humanidade com uma perspectiva de sentido e de valor, seja no que diz respeito à existência em meio ao fluxo perene do vir-a-ser, seja quanto à justificação do mal, ou ainda quanto ao conhecimento do absoluto.

A busca da verdade e do conhecimento a respeito de tais questões transforma a veracidade numa virtude, numa das principais forças geradas pela interpretação mo-ral-cristã do mundo. Nesse sentido, ela é considerada por Nietzsche como a figura ancestral da honestidade intelectual moderna. Ora, levada a seu extremo, essa veraci-dade se sublima no rigor da consciência científica contemporânea, e traz à luz os ele-mentos de inverdade (as considerações de interesse) contidos na moral cristã. Em conseqüência, a consciência científica, por dever de probidade intelectual, vê-se compelida a renegar uma moral que incorpora elementos de inverdade, de modo que a catástrofe niilista consiste, então, na auto-supressão da moralidade cristã, por injunção de sua veracidade sublimada.

4. A catástrofe das categorias da razão

Examinemos, em seguida, a relação entre o niilismo e as categorias da razão, to-mando por base o fragmento póstumo 11 [99], intitulado Crítica do niilismo. Come-cemos com a citação de seu resultado: "Resultado: a crença nas categorias da razão é a causa do niilismo - medimos o valor do mundo em conformidade com categorias Que se

referem a um mundo puramente fictício''40.

Nesse importante fragmento póstumo, Nietzsche tematiza três formas do niilismo, considerado como "estado psicológico", ou seja, como conteúdo da consciência refle-xiva. Em cada um deles, trata-se sempre de uma categoria da razão, que dá apoio a uma interpretação do vir-a-ser e do valor da existência humana na corrente do devir.

O primeiro desses estados de autoconsciência do niilismo é analisado por Nietzsche na perspectiva da categoria do "sentido", ou finalidade. Para suportar a existência, o homem tem necessidade de interpretar o vir-a-ser como dotado de um sentido,

39. Fragmento póstumo do verão de 1886 a outono de 1887. In: KSA. Op. cit., vol, 12, p. 211s.

40. Fragmento póstumo de novembro de 1887 a março de 1888, n. 11 [99]. In: KSA. Op. cit., vol. 13, p. 46s. Adotamosa tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. In: Nietzsche: obras incompletas. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1974, p. 388s.

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Oswaldo Giacoia Junior 31

como tendendo para um alvo, que pudesse oferecer uma resposta à pergunta: Por quê? Diversas podem ser as formas de conceber essa finalidade, mas o essencial é que haja uma meta. O niilismo ocorre, então, nessa primeira forma, com a descoberta de que não existe nenhum alvo no e para o devir, que o acontecer do mundo e da história não são processos que se desenvolvem em vista de um fim a ser alcançado, ao qual estaria ligado o seu sentido e valor. Desse modo, o desalento sobre a pretensa finalidade é causa do niilismo, enquanto sentimento de vazio, de um frustrador "foi tudo em vão".

A segunda forma do niilismo como estado psicológico é presidida pela categoria de "totalidade" - enquanto suporte de uma interpretação global do vir-a-ser. A repre-sentação de uma unidade, de uma organização e sistematização globais conectaria a multiplicidade caótica dos seres individuais, contingentes e efêmeros, a uma totalidade integrada e orgânica - a um todo racional, de infinito valor (panteísmo, monismo, etc.), promovendo a reconciliação entre a finitude aleatória e o infinito necessário. O niilismo surge, nessa ótica, com a descoberta de que nenhuma totalidade redime a diáspora do vir-a-ser, de modo que o homem perde a crença em seu valor, quando sente que através de sua particularidade contingente não atua um todo infinitamente valioso.

A terceira forma do niilismo como estado psicológico supõe dadas as duas figuras anteriormente examinadas, e surge como escapatória para as situações existenciais geradas a partir delas. Se nenhum sentido ou finalidade preside o curso do vir-a-ser; se o devir não é amparado por nenhuma totalidade infinita em que o indivíduo pudesse se integrar e resgatar o sentido e o valor para o absurdo de sua existência, então a saída consistiria em renegar o vir-a-ser, repudiá-lo como sombra e aparência, metafisicamente contraposta ao ser verdadeiro. Este consistiria na fonte de realidade e significação para o mundo e para o homem. Nessa interpretação, as categorias de "verdade" e "ser" propiciariam as condições para a hipótese de um verdadeiro mundo,

antitético ao fluxo fantasmático da temporalidade e do vir-a-ser.

Porém, aqui também se chega à descoberta que a invenção do mundo sob a pers-pectiva da verdade corresponde a necessidades psicológicas. Isto é, o homem inventa para si mesmo um mundo verdadeiro para poder atribuir um valor à sua própria vida. E com isso, a terceira forma do niilismo surge como consciência da mendacidade do mundo metafísico, e como descrença na categoria de verdade - com a descoberta de que o vir-a-ser é a única realidade - uma realidade, contudo, que não conseguimos suportar. Balanço final: desprezamos o resultado que alcançamos pelo conhecimento, ao mesmo tempo que não nos é mais lícito valorizar aquilo em que gostaríamos de continuar a crer.

- O que aconteceu, no fundo? O sentimento de ausência de valor foi alvejado quando se compreendeu que nem com o conceito de fim,

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32 1. Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos

nem com o conceito de unidade, nem com o conceito de verdade se pode interpretar o caráter global da existência. Com isso, nada é alvejado e alcançado; falta a unidade abrangente na pluralidade do acontecer: o caráter da existência não é "verdadeiro", é falso... não se tem absolutamente mais nenhum fundamento para se persuadir de um verdadeiro mundo... Em suma: as categorias "fim", "unidade", "ser", com as quais tínhamos imposto ao mundo um valor, foram outra vez retiradas por nós - e agora o mundo parece sem valor...41

Assim, as três formas em que o niilismo historicamente se apresenta correspondem à consciência de que uma interpretação global da existência baseada nas categorias de sentido, totalidade e ser não se sustenta mais. Ora, essa foi precisamente a in-terpretação hegemônica na história da metafísica ocidental.

Resultado: a crença nas categorias da razão é a causa do niilismo -medimos o valor do mundo por categorias, que se referem a um mundo

puramente fictício.

Resultado final: todos os valores com os quais até agora procuramos tornar o mundo estimável para nós e afinal, justamente com eles, o desvaloramos, quando eles se demonstram inaplicáveis - todos esses valores são, do ponto de vista psicológico, resultados de determinadas perspectivas de utilidade para a manutenção e intensificação de formações humanas de dominação: e apenas falsamente projetados na essência das coisas. É sempre ainda a hiperbólica ingenuidade do homem: colocar a si mesmo como sentido e medida de valor das coisas42.

Percebemos, com isso, em que sentido a crença nas categorias da razão é a causa do niilismo. Essa compreensão, por sua vez, traz à luz uma reviravolta e, com ela, outra perspectiva de questionamento e interpretação, suscitada em meio à escalada irreversível

do niilismo. Uma vez que, em virtude do colapso da crença nas categorias da razão, o

mundo se torna sem valor, caberia intentar uma revolução no modo de pensar: ao invés de, por causa das categorias da razão, desvalorizar o mundo, aprender a perguntar pela proveniência da crença naquelas categorias, assim como pelo valor dessa proveniência.

Essa forma diferente de questionamento permitiria deslocar o objeto da desvalo-rização. Se aquela crença tem origem na "hiperbólica ingenuidade" do homem - em perspectivas utilitárias para conservação da vida -, então essa origem está em contra-dição com a exigência de validade incondicional das categorias; assim, conquista-

41. ibid.

42. Ibid.

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Oswaldo Giacoia Júnior 33

mos o direito de subtrairmos dela nossa fé e nossa veneração; desse modo "depois de desvalorarmos essas três categorias, a demonstração de sua inaplicabilidade ao todo não é mais nenhum fundamento para desvalorarmos o todo"43.

Sob essa ótica, a ênfase se desloca da catástrofe da veracidade cristã para as cate-gorias centrais e os grandes sistemas metafísicos de interpretação da natureza e da his-tória como causa do niilismo - ou seja, aqui se encontra em questão o horizonte lógi-co-transcendental das formas tradicionais de sentido e valoração. Ao final desse per-curso, podemos perceber que as duas análises da lógica da catástrofe se recobrem e complementam, afastando qualquer suspeita de contradição, antes trazendo à luz a im-bricação categorial entre lógica e religião, que está na origem da metafísica ocidental.

5. Modos e virtualidades do niilismo - niilismo e fundamentalismo

Decifrado o enigma do niilismo como lógica da decadência, compreende-se tam-bém a afirmação de acordo com a qual o niilismo, enquanto processo de desvalorização dos valores supremos, é marcado por uma ambigüidade essencial: ele pode configurar tanto uma síndrome de declínio, de regressão, quanto de potência ascendente do espírito. Essa ambivalência corresponde à diferença entre niilismo ativo e passivo, com a qual passaremos a nos ocupar:

Niilismo como declínio e regressão da potência do espírito: o niilismo passivo: como um signo de fraqueza: a força do espírito pode estar extenuada, exaurida, de modo que as metas e valores até então vi-gentes são inadequados e não encontram mais nenhuma crença, [de modo que - OGJ] a síntese entre valores e metas (sobre a qual repousa toda cultura forte) se dissolve, de modo que os valores singulares guerreiam entre si; destruição; [de modo que - OGJ] tudo o que reconforta, cura, acalma, entorpece, avança para o proscênio, sob di-ferentes disfarces, sejam eles religiosos, ou morais, ou políticos, ou estéticos44.

Nietzsche exibe aqui o complexo e multiforme fenômeno do niilismo passivo. Nele são feitas tentativas desesperadas, característica dos moribundos, de prolongar a qualquer preço uma existência agonizante, recorrendo a toda sorte de expedientes que, no entanto, apenas retardam e mantêm em suspenso o desenlace inevitável.

Por essa razão, entre tais tentativas pode-se contar as mais díspares formações tí-picas dos períodos de declínio de forças: a guerra entre valores particulares se destru-indo anarquicamente em paroxismos de violência selvagem (como o anarquismo

43.1bid.

44. Fragmento póstumo do outono de 1887, n. 9 [35]. In: KSA. Op. cit., vol. 12, p. 350s.

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russo no final do século XIX, por exemplo); o ceticismo e a libertinagem do espírito, a corrupção dos costumes, a fraqueza da vontade, a necessidade de estimulantes fortes, a incondicional rendição hedonista a uma vida de prazer, consumo, entretenimento e conforto - a tudo o que acalma, reconforta, anestesia.

Em outro extremo, o do niilismo passivo, como meio para conter a anarquia e es-tancar a exaustão, emergem a imperiosa necessidade de certezas e estabilidade em todos os domínios mais elevados da cultura: o reavivamento da experiência do sagrado, para compensar e amortecer o torturante sentimento de vazio. "Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos - uma sombra imensa e terrível. Deus está morto; mas tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada"45.

Essa carência denuncia uma simbiose, aparentemente contraditória, entre o sen-timento de ausência de valor, por um lado, e o ardente desejo de segurança e salvação, por outro. Aqui estamos em face de uma trama entre o niilismo passivo e o fun-damentalismo, que constitui uma das mais inquietantes características de nossa própria atualidade. É essa cumplicidade que torna apenas superficial a antítese entre os opostos, e impele à busca desesperada por segurança e lenitivo, seja por meio da narcose artística, religiosa, política, ou moral, recorrendo, por exemplo, ao culto fetichista do profano, ou ao apego fanático às ruínas de fundamentos peremptos.

Ao fundamentalismo [escreve Christoph Türcke] pertence sua in-versão. Ele não se mostra apenas lá, onde estão rompidos os fun-damentos de veneráveis grandes religiões, os quais, por milênios, ti-nham constituído toda uma sociedade, e agora são conjurados tanto mais energicamente quanto menos dão sustentação. Ao contrário, lá onde se espalha o "ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a eterna insegurança e movimento", onde "são dissolvidas todas as re-lações firmemente enferrujadas com seu cortejo de veneráveis repre-sentações e intuições, onde todas as [relações] recém-formadas ca-ducam antes de poder ossificar, onde tudo o que é estamental e o que se mantém de pé é volatilizado, todo sagrado é dessacralizado", ele toma justamente o caminho contrário. Ele sobrecarrega de santidade objetos cujo status profano, sim trivial, é manifesto46.

Nietzsche terá sido um dos primeiros a refletir com acuidade sobre esse parentesco inusitado, que torna o fundamentalismo uma formação reativa, um fenômeno compensatório do niilismo. Ao escrutínio genealógico, o fundamentalismo revela-se, mais propriamente, como alma gêmea do niilismo passivo, quando as metas e

45. NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Aforismo 108. Op. cit., p. 135.

46. TÜRCKE, C. Op. cit., p. 144.

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valores até então vigentes revelam sua inadequação às novas condições de existência, faltando, no entanto, a força para se desprender delas - o apego fundamentalista é apenas reação ao sentimento de perda, não um gesto ativo de superação. Daí a atua-lidade dessa genealogia e a importância de suas descobertas para o entendimento tanto da necessidade quanto da lógica de vários processos que caracterizam o esgotamento da modernidade cultural.

O fundamentalismo é o grande moderno rebelar-se contra a autodes-truição da fundamentação última. Ele tem uma profunda comunidade com Nietzsche. Ele denuncia o niilismo europeu. Apenas que ele o percebe com vista curta, fazendo-o começar com a modernidade, no momento em que se esvai a substância do Ocidente cristão, enquantoNietzsche tinha notado que o niilismo estava embutido no Ocidente desde o princípio. Ele já se instila no monoteísmo do judaísmo. O recurso ao último fundamento conduz, ele próprio, à liquidação do último fundamento. Na modernidade, isso apenas se torna manifesto. Enquanto Nietzsche compreendeu que nenhum caminho passa ao largo desse niilismo, que se tem que atravessar como a criança ao sarampo, que somente um feitio de homem que o padece inteiramente, sem perecer ao fazê-lo, poderia também ser capaz de ultrapassá-lo, ofundamentalismo é a tentativa desesperada de elidi-lo. Ele simplesmente decreta não tomar parte nisso, desembarcar da nefasta dinâmica niilista da modernidade, e regressar ao originário fun-damento seguro da fé, como se ele mesmo não estivesse saturado há longo tempo com o niilismo, e [decreta] ter ainda, em algum lugar, esse fundamento intocado. Examinado às claras, o pretenso desembarque do niilismo se demonstra como um embarque mais profundo nele: sua autodenegação47.

Em Nietzsche, porém, além dessa face reativa e venenosa, própria da fraqueza, o niilismo pode também adquirir outra figura. Esta, por sua vez, jamais poderia ser al-cançada por denegação, pois não é possível contornar o niilismo quando se o com-preende de uma perspectiva interior. A única saída seria conduzi-lo até as suas derra-deiras conseqüências, ou seja, vivê-lo como niilismo ativo. A superação consiste em atravessá-lo de ponta a ponta, em refleti-lo em toda sua extensão e profundidade.

Niilismo como signo de intensificada potência do espírito: como nii-lismo ativo: ele pode ser um signo de fortaleza: a força do espírito pode estar tão acrescida, que para ela as metas até então vigentes ("convicções", artigos de fé) se tornaram inadequadas. Com efeito, uma crença exprime universalmente a coerção de condições de exis-tência, uma submissão à autoridade de relações sob as quais um ser prospera, cresce, ganha força... Por outro lado, um sinal de insufici-

47. Ibid., p. 49s.

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ente fortaleza para também, produtivamente, instituir-se outra vez uma meta, um "por quê"?, uma crença. Seu maximum de força re-lativa, ela o alcança como força violentamente ativa de destruição: como niilismo ativo. O niilismo representa um patológico estado in-termediário (patológica é a imensa generalização, a inferência: abso-lutamente nenhum sentido): seja que as forças produtivas não são ainda suficientemente fortes, seja que a decadência ainda hesita, e ainda não inventou seus meios auxiliares48.

Deparamo-nos aqui com a figura do niilismo ativo, que, como incremento de força do potencial destrutivo, por um lado, ainda é apenas um estado intermediário - um poder negativo de destruição das condições peremptas. Mas que, por outro lado, serve de base para um novo gesto instaurador, desta vez positivo, de criação de novos valores, ou melhor, de novas sínteses entre metas e valores, que é o cimento de toda cultura ascendente. Para a instituição de novas tábuas de valor, a energia destrutiva não é ainda, em si mesma, suficientemente poderosa; mas ela difere da reação vingativa, hedonista ou nostálgica do niilismo passivo, e constitui condição inicial e preparatória para novas referências de valor.

Posições extremas não são substituídas por posições moderadas, mas novamente por posições extremas, porém inversas. E assim, a fé na absoluta imoralidade da natureza, na ausência de finalidade e sentido é o afeto psicologicamente necessário, quando a fé em Deus e numa ordenação moral não pode mais ser mantida. O niilismo aparece agora não porque o desprazer na existência fosse maior do que antes, senão porque, em geral, nos tornamos desconfiados de um "sentido" no mal, sim na existência. Uma interpretação soçobrou: porém, porque ela va-lia como a interpretação, parece como se não houvesse absolutamente nenhum sentido na existência, como se tudo fosse em vão*9.

Atravessar até mesmo o niilismo ativo exigirá pensar sem subterfúgios a pers-pectiva de uma existência desprovida de sentido e meta, porém fazendo-o em chave afirmativa. Aqui estará o signo da potência alcançada: poder dispensar, sem ressenti-mento, convicções absolutas e valorações incondicionais. Que homens se demons-trarão, então, como os mais fortes, pergunta-se Nietzsche. Sua resposta:

Os mais comedidos, aqueles que não têm necessidade de extremos artigos de fé, aqueles que não apenas admitem, como amam, uma boa parte de acaso, absurdo, aqueles que podem pensar a respeito do homem com uma significativa redução de seu valor, sem com isso se tornar pequeno e fraco: os mais ricos em saúde, aqueles que estão à altura da maioria dos malheurs e por isso não temem tanto esses ma-

48. Fragmento póstumo, n. 9 [35]. Op. cit., p. 350s.

49. Fragmento póstumo, n. 5 [71]. Op. cit., p. 21 ls.

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Iheurs - homens que estão seguros de seu poder e, com orgulho consciente, representam a alcançada força do homem50.

O fundamental aqui consiste na capacidade de discernimento global, na compre-ensão do conjunto dos sintomas, para o que é necessário a mais aguda sensibilidade e refinamento do sentido histórico:

Para a história do niilismo europeu

"O período de não clareza, das tentativas de toda espécie para conservar o velho e não deixar escapar o novo.

O período da clareza: compreende-se que velho e novo são antagônicos: os valores antigos nascidos da vida

declinante, os novos da vida ascendente - que o conhecimento da natureza e da história não nos permite mais tais

'esperanças'; - que todos os antigos ideais são ideais hostis à vida (nascidos da decadência e determinantes da

decadência, ainda que no suntuoso atavio dominical da moral) - entendemos o antigo e estamos longe de ser

suficientemente fortes para um novo.

O período dos três grandes afetos:

• do desprezo,

• da compaixão,

• da destruição.

O período da catástrofe:

• a escalada de uma doutrina que seleciona os homens... que impele os fracos a resoluções, e do mesmo modo, os

fortes"51.

À sombra do niilismo extremo faz-se mais necessária do que nunca a mais sofis-ticada arte da interpretação, para tornar possível uma nova compreensão, a apuração da faculdade de discernir, para decifrar enigmas; mais do que nunca, é preciso não se deixar confundir pelos sinais dos tempos, libertar-se das estreitas perspectivas do maniqueísmo precipitado.

De fato, todo crescimento traz também consigo um formidável des-moronar e passar. O sofrimento, os sintomas de declínio pertencem aos tempos do mais formidável seguir adiante. Todo movimento terrível e poderoso da humanidade criou também, ao mesmo tempo, um movimento niilista. Sob certas circunstâncias, seria um sinal de um in-cisivo e sobremaneira essencial crescimento, com vistas à transição para novas condições de existência, que viesse ao mundo a mais extre-ma forma do pessimismo, o autêntico niilismo. Isso eu compreendi52.

50.Ibid.

51. Fragmento póstumo, n. 11 [150]. In: KSA, vol. 13, p. 71.

52. Fragmento póstumo do outono de 1887, n. 10 [22]. In: KSA. Op. cit, vol. 12, p. 468.

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Daí porque é imprescindível não perder o refinamento hermenêutico diante do caráter ambíguo do mundo moderno - nele, os mesmos sintomas podem ser indício tanto de impotência quanto de fortaleza. E os sinais de força, de maioridade conquis-tada, poderiam ser mal-entendidos como fraqueza, em razão do embotamento de nossa percepção, da grosseria em nossos modos tradicionais de avaliação. Em resumo, as formas tradicionais de percepção, "o sentimento, como sentimento de valor, não está à altura do tempo"53.

Nesse esforço para discernir o período da catástrofe, o limiar de uma nova era, a consciência filosófica, ao refletir a ascensão do niilismo, torna-se paradoxalmente autor e personagem do drama; ela não pode excluir-se do processo e alçar-se a uma perspectiva de juízo final, exterior ao próprio movimento de consumação. Sua reflexão pressupõe e só pode surgir sobre a base e a partir do niilismo perfeito, isto é, do esgotamento completo.

Por isso, Nietzsche se apresenta "como um filósofo e ermitão por instinto, como um espírito ousado e experimentador, que já uma vez se perdeu em cada labirinto do futuro, como um espírito de pássaro profético, que olha para trás quando narra aquilo que virá: como o primeiro niilista perfeito da Europa, que, contudo, já viveu em si mesmo até o fim o próprio niilismo - que tem o niilismo atrás de si, debaixo de si, fora de si"54.

Somente o pensador em quem o niilismo, como experiência de desvalorização dos supremos valores, foi inteiramente consumado, sem deixar resíduos nem ressentimento - e que, por causa disso, trouxe o sentido e a lógica do processo ao nível da consciência de si -, é que pode deixar para trás o niilismo e falar do futuro - isto sem perfazer a catástrofe. Para Nietzsche, é sob tais condições que pode também ser ainda intensificada a força produtiva do espírito - quando se tornou perempta e opressiva a autoridade daquelas mesmas condições, sob a coerção das quais até então se desenvolvera a força espiritual.

Compreende-se melhor, dessa maneira, por que Nietzsche pôde auto-estilizar-se como o primeiro niilista consumado da Europa. Com efeito, sua interpretação do nii-lismo repousa sobre um pressuposto que constitui também o resultado fundamental de sua crítica da moral e da metafísica: nosso tempo é a era da insubsistência das va-lorações absolutas e incondicionais.

E, se assim é, então essa conclusão afeta também a possibilidade da verdade e da fundamentação última do conhecimento, os valores supremos e derradeiros reconhe-cidos pela moderna racionalidade científica. Também o valor da verdade, enquanto

53. Ibid., 10 [23], p. 468s.

54. Fragmento póstumo, n. 11 [411]. In: KS A, vol. 13, p. 189s.

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absoluto, cairia sob o veto de tal conclusão, pois, nesse sentido, não existe nenhuma verdade, "coisa em si", nem uma constituição ou significação incondicional das coisas: "Isso mesmo é um niilismo e, em verdade, o mais extremo. Ele institui o valor das coisas justamente em que a esse valor nenhuma realidade corresponde, nem cor-respondeu, porém apenas um sintoma de força da parte daquele que institui valores, uma simplificação para fins da vida"55.

55. Fragmento póstumo do outono de 1887, n. 9 [35]. In: KSA. Op. cit., vol. 12, p. 350s.