arte nos anos 60 e 70

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ARTE DE PROTESTO NO BRASIL: ANOS 60 E 70

Rosangela Sabini Ortigara1 Orientadora: Cleide Albuquerque

RESUMO

O artigo trata da arte de protesto no Brasil nos anos 60 e incio de 70. Contextualiza historicamente a poca da ditadura militar no Brasil. Identifica princpios polticos e estticos propostos por intelectuais e artistas. Oiticica os resumiu nos seguintes pontos: vontade construtiva geral, negao do quadro de cavalete, participao do espectador, tomada de deciso em relao aos problemas polticos, tendncia a uma arte coletiva e posicionamento do artista como educador do pblico. O trabalho apresenta trs artistas como exemplo da arte de protesto da poca: Rubens Gerchman, Antnio Dias e Artur Barrio. Algumas de suas obras so descritas e nelas identificadas suas propostas artsticas. Entre outros artistas brasileiros, estes criaram linguagens poticas prprias, expressando a arte de protesto brasileira daquela poca. Palavras chaves: Arte de Protesto Linguagem Potica Artistas Brasileiros

ABSTRACT

This article is about the art of protest in Brazil the sixties and beginning of the seventies. It presents the historical context of brazilian military dictatorship. It identifies and political principles proposed aesthetics by intellectuals and artists. Oiticica summarized them in the following points: general constructive will, denial of picture frame, participation of the spectator, decision making regarding the political problems, tendency to a collective art and the artist as people educator. Three artists were choosed as example of this art of protest1

Estudante do Curso de Especializao Latu Sensu A linguagem plstica contempornea da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

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of the time: Rubens Gerchman, Antnio Dias and Artur Barrio. In this article some of their works are described and some of their artistics proposals identified. Among other Brazilian artists, these have created own poetic languages and expressed Brazilian art of protest of that time. Key words: Art of Protest Language Poetic Brazilian Artists

INTRODUO

Durante as dcadas de 60 e 70, alguns artistas brasileiros alinharam suas obras numa linguagem potica, de concentrado cunho poltico. As obras de Antnio Dias, Rubens Gerchaman e Artur Barrio refletiam a inquietao frente represso da liberdade de expresso nas artes e nas organizaes da sociedade brasileira da poca. As lutas, denncias, a busca de linguagem, reclamavam a interao com a obra e foram motivadas por uma profunda indignao frente ditadura e uma crena no valor da arte para contribuir para a reao contra a opresso. Resgatar estas propostas pode nos ajudar a encontrar elos com a produo artstica atual e passada, numa poca em que a fragmentao nos leva muitas vezes a impasses. Na arte ocidental muitos artistas valorizavam as obras refletindo esteticamente sobre as violncias polticas e econmicas. Podemos lembrar de Goya que, em vrias obras, transbordou em indignao contra a corrupo e a guerra. Em Fuzilamentos de 3 maio de 1808, os soldados so mquinas de matar, seus rostos so desumanos, quase no tm definio. Esta obra fala de uma situao especfica, mas eleva-se ao universal, pois at hoje faz sentido para muitos falar do de algo que passou (um conjunto especfico), mas que ainda nos mobiliza a sentir e pensar. As leis da sociedade e da poca so sutilmente ligadas, jamais h uma ligao bvia. Ou ento seria um panfleto, uma norma a ser obedecida ou rejeitada:

Os condicionamentos sociais so regidos por leis, pertencem ao campo da necessidade, a ao da arte, como toda ao transformadora, por exemplo, a

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poltica; procura ir alm das leis, est condicionada pela necessidade, mas trata de abrir nela um lugar para o possvel. (Canclini, 1984:33).

Toda a arte est condicionada, no determinada pela histria. No seu espelho. uma procura de possibilidades (produo/criao), alm da situao do real e imaginrio insustentvel. A transformao produo/criao do artista uma misteriosa relao entre seu mundo (aquele que lhe condiciona) e as suas necessidades profundas e universais, sua imaginao, sua potica. Esta sutil relao se concretiza numa obra atravs de uma linguagem especfica e original. Goya expressa de maneira abundante sua profunda indignao com sua situao individual e da Espanha, no numa pintura, arte maior da poca, mas nos seus Caprichos, criando sua linguagem nas gravuras em metal, arte menor. A funo social da arte tem sido experimentada e debatida na arte ocidental e debatida na arte ocidental por filsofos, artistas, polticos. Os grandes temas do sculo XIX e XX transparecem em vrios movimentos artsticos europeus e americanos. O impacto da industrializao rebateu no movimento do Realismo Francs. O vago de terceira classe de Daumier retrata passageiros viajando em vages de trem superlotados, mostrando as condies desumanas dos trabalhadores ( Strickland, 1999: 83 ). O movimento comunista postulava a transformao radical da sociedade e colocava a classe proletria no pice da evoluo da histria e em seu nome tratava de revolucionar tambm a esttica. A obra de arte no teria outra funo a no servir aos valores da classe revolucionria. George Plekanov afirmava que esta no foi feita somente para o artista, mas para a sociedade. A tendncia arte pela arte dos artistas e das pessoas que se interessam vivamente pela criao artstica surge base de seu divrcio irremedivel com o meio que os rodeia. (Plekanov, 1964:16). O realismo socialista desenvolveu-se de maneira mais completa exatamente na mais deplorvel poca do socialismo russo, na dcada de 30 (Argullol, 1996:78). O ideal socialista alastrou-se pelo mundo. Picasso, na obra Guernica (1937), sintetiza a linguagem modernista com sua opo poltica. A pintura no feita para decorar apartamentos. um instrumento de guerra de ataque e defesa contra o inimigo. (Picasso, In: Strichard, 1999:137). Sua obra ultrapassa a

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denncia construindo uma linguagem potica e original. Guernica uma pintura em cinza e branco, com distores geomtricas, expressando o mal como sendo o touro, profundo smbolo da cultura espanhola. Os muralistas mexicanos produziram a mais importante arte revolucionria de vertente popular (Ades, 1997). Rivera encontrou-se na Frana com cubistas e socialistas russos. Entrou no Partido Comunista mexicano e junto com Orozco e Siqueiros construram uma linguagem mural expressando o valor do povo mexicano ( identificando o povo mexicano com a realidade nativa do proletrio europeu). No Brasil Portinari incorporou em sua obra as idias socialistas e retrata a misria dos trabalhadores rurais brasileiros, como em Retirantes e Caf. Na Europa movimentos e manifestos de artistas e intelectuais refletem a surpreendente violncia da Primeira Guerra Mundial. Acreditavam que o futuro que se vislumbrava, no podia ser construdo, seno pela destruio do passado da arte. O moderno se constituda de vanguardas que se sucediam e as linguagens artsticas foram a expressividade, a deformao, a abstrao, a fragmentao etc. Os Expressionistas explodiram sentimentos em borres, os Surrealistas divagaram nos sonhos. O pblico protestava, criando-se um abismo entre a arte e seu tradicional apreciador. Conforme Santos (1994), o movimento modernista da primeira metade do sculo caracterizava-se por uma cultura de elevada estetizao da arte, obra original, formalismo, abstrao, oposio ao pblico. Este vanguardismo girava ao redor de interrogaes sobre a crise na arte: Qual seria o valor da arte? Qual o seu lugar na sociedade atual? (Argullol, 1997:42 ) O Dadasmo foi o mais radical dos movimentos de vanguarda da modernidade (Baitello, 1994:09). No momento da Primeira Guerra Mundial, at a dcada de XX, este movimento aglutinou muitos intelectuais e artistas contra o absurdo da Guerra. Negou todos os parmetros da sociedade burguesa, atribuindo a eles a carnificina da Guerra. Como uma metralhadora giratria conceitual e formal os dadastas queriam explodir a arte tradicional atingindo-a no cerne da sua linguagem de esttica do belo. Marcel Duchamp retirou um urinol do mundo cotidiano e o expe como obra. Revelou o que at ento estava escondido pela arte e por toda a sociedade: o tabu. O nilismo dad reivindicava o tudo: toda a liberdade para a arte e para a sociedade. Pela fruio negativa. (Haroldo de Campos, In: Baitello, 1994:07) d a luz a um

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movimento que perpassa a arte at a atualidade. Inaugura a obra de arte aberta a todos os sentidos, no s a viso, e rebela pelo feio a profunda rejeio contra o falso moralismo burgus. Expressou uma parcela da intelectualidade americana profundamente revoltada com a guerra, um dos feitos da modernizao. No se pode fazer uma ligao linear entre o Dadasmo e todas as manifestaes artsticas da 2a metade do sculo XX. Mas inegvel que suas propostas estticas tm pontos em comum com movimentos artsticos dessa poca no mundo inteiro, inclusive no Brasil.

BRASIL: A ANTI-ARTE DOS ANOS 60

Em 1966 o artista brasileiro Hlio Oiticica definia assim a anti-arte:

Anti-arte - compreenso e razo de ser do artista, no mais como um criador para a contemplao, mas como um motivador para a criao a criao como tal, se completa pela participao dinmica do espectador, agora considerado participador. A anti-arte seria uma completao da necessidade coletiva de uma atividade criadora latente, que seria motivada de um determinado modo pelo artista: ficam portanto invalidadas as posies metafsicas, intelectualista e esteticista no h proposio de um elevar elevar o espectador a um nvel de criao, a uma meta realidade, ou de impor-lhe uma idia ou padro esttico correspondentes queles conceitos de arte, mas de dar-lhe uma simples oportunidade de participao para que ele ache a algo que queira realizar pois uma realizao criativa o que prope o artista, realizao esta isenta de premissas morais, intelectuais ou estticas a anti-arte est isenta disto uma simples posio do homem nele mesmo e nas suas possibilidades criativas vitais. (Oiticica in Peccinini, 1978:87 ).

A ANTI-ARTE DOS ANOS 60

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As caractersticas do pensamento artstico dos anos 60 eram: vontade construtiva geral, negao ao quadro de cavalete, ressurgimento e reformulao do conceito de anti-arte, abordagem e tomada de deciso em relao aos problemas polticos, tendncia a uma arte coletiva Atravs da vontade construtiva geral era procurado valorizar a cultura nacional, baseando-se numa antropofagia que seria a alma de defesa da arte brasileira contra o domnio exterior. Era necessrio procurar caractersticas nossas, tentar reduzir ao mximo as influncias externas na arte brasileira. A negao ao quadro de cavalete era uma forma de fugir da estrutura normal de quadro. Buscava-se um objeto novo que sasse para o espao, que fugisse da forma bidimencional, alm de um trabalho com um contedo mais social, como os Parangols. Uma arte que chamasse ateno para a realidade dos cidados. Isso comea com os neoconcretistas, entre eles o prprio Oiticica e Lgia Clark. Participao do espectador: almeja transformar o espectador em co-autor das obras, fazendo-o sair da condio de mero contemplador passivo para algum que participasse diretamente, manipulando, vestindo, passeando pela obra, refletindo sobre ela. A tomada de deciso em relao aos problemas polticos, sociais e ticos trouxe uma vontade construtiva de levar a arte a ter um carter mais social, pois se no fosse assim, esta arte corria o perigo da volta ao esteticismo. pois fundamental nova objetividade a discusso, o protesto, o estabelecimento de conotaes dessa ordem no seu contexto para que seja caracterizada como um estado tpico brasileiro, coerente com as outras demarches. Com isso verificou-se, acelerando o processo de chegada ao objeto e s proposies coletivas, uma volta ao mundo, ou seja, um ressurgimento de um interesse pelas coisas, pelo ambiente, pelos problemas humanos, pela vida, em ltima anlise (Hlio Oiticica, In: Peccinini, 1978:80). O artista colocado como parte integrante da sociedade, no podendo estar margem da situao, tem neste caso o papel transformador, ao menos de tentar provocar atravs de seu trabalho algum pensamento mais crtico no observador. Eram duas as maneiras de propor a tendncia a uma arte coletiva, segundo Oiticica. A primeira seria levar s ruas produes individuais que se destinem ao povo e a segunda propor atividades em que o pblico participasse diretamente da produo da obra. Oiticica fala tambm da importncia de se usar as manifestaes populares (como, por exemplo, uma

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escola de samba) para se produzir uma arte mais coletiva, pois assim haveria espao para que as vivncias de cada um fossem manifestadas. Ressurgimento do problema da anti-arte: tendo em vista que a arte destinava-se ao povo, o artista deveria produzir ou proporcionar ao espectador a possibilidade de participar da obra. Produziam ento, obras no acabadas, abertas. A preocupao no era criticar a arte do passado, mas criar condies experimentais para o artista tornar-se uma espcie de educador, conseguindo, assim, maior integrao com o espectador.

A anti-arte ps-moderna se desestetiza porque a vida se acha estetizada pelo design, a decorao. Os ambientes atuais j so arte e assim pintura e escultura podem se fundir com a arquitetura, a paisagem urbana, tornandose fragmentos do real dentro do real (Santos, 1994:51).

Os objetos ou anti-arte, desta poca, eram das mais variadas ordens e no se limitavam viso , mas abrangiam toda a escala sensorial, buscando uma participao mais efetiva por parte do espectador, no queriam somente que observasse, mas que tivesse a oportunidade de experimentar a criao, de descobrir, pela participao, algo que para ele possusse significado. Segundo Oiticica (1978:69), o que interessava na poca era jogar de lado tudo que era intelectual, como, isto Realista, aquilo Pop etc., o importante era dar ao indivduo a possibilidade de experimentar, de deixar de ser espectador para ser participador. Para Oiticica o que havia de pioneiro na poca era a fundao do Objeto, oriunda da descrena nos valores esteticistas da arte tradicional, como o quadro de cavaletes, para a arte ambiental, que para ele anti-arte (In: Peccinini, 1978:70) Hlio Oiticica nasceu no Rio de Janeiro em 1937 e morreu em 1980, passou por duas vertentes artsticas em sua carreira: uma fase construtivista e outra poltica. Estudou pintura com Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Integrou o grupo Frente em 1954 e participou do Movimento Neoconcreto em 1959. Participou das Bienais de So Paulo (1959/63), Bahia (1966), Tquio (1965), Paris (1965) e outras, alm de exposies individuais e coletivas. A partir do contato com Serpa, freqenta as reunies do grupo Frente, comeando a desenvolver a srie dos Metaesquemas, composies com formas geomtricas que sugerem mobilidade. Depois criou os relevos espaciais, que eram formas geomtricas

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recortadas, tridimensionais, suspensas no ar, que podiam ser manipuladas pelos espectadores (Amaral, 1997: 213). A partir dos trabalhos tridimensionais que sugeriam mobilidade e com o objetivo de fazer o pblico manipular as peas, podemos observar a direo que a sua arte ia tomando, fugindo dos conceitos antigos e partindo para uma arte mais coletiva, cujo objetivo era a maior participao do pblico com a obra. Nos anos 60 Oiticica visita a Escola de Samba da Mangueira, e a partir das

conversas com os sambistas cria os parangols (objetos que tm como base capas, estandartes e bandeiras, podendo ser carregadas pelos espectadores). No momento em que as pessoas vestem os parangols, se movimentam fazendo as cores danarem, dando vida aos panos coloridos. Este trabalho faz com que o pblico se relacione diretamente com a pintura, permitindo ao espectador tornar-se constantemente co-autor da obra, rompendo definitivamente a distncia entre arte versus pblico:

Desde as proposies ldicas s do ato, desde as proposies semnticas s da palavra objeto, ou as de obras narrativas e as de protesto poltico ou social, o que se procura o modo objetivo de participao. Seria a procura interna fora e dentro do objeto, objetivada pela proposio da participao ativa do espectador nesse processo: o indivduo a quem chega a obra solicitado completao dos significados propostos na mesma, esta , pois, uma obra aberta (Oiticica, In: Peccinini, 1978:60).

Depois dos parangols Oiticica construiu vrias manifestaes ambientais. Seu objetivo era aproximar e conscientizar o povo, muitas vezes colocando as pessoas em posies nada confortveis, mas que tinham como objetivo chamar a ateno, como se dissessem: Olhem o que est acontecendo a sua volta! Compare a sua condio incmoda com a sociedade na qual voc vive! Colocava a arte como um jogo onde as pessoas participavam e o resultado final era imprevisvel.

O participador era obrigado a caminhar sobre a areia, pedras de brita, procurar poemas entre folhagens, brincar com araras etc. O ambiente era obviamente tropical como o que no fundo da chcara, e, o mais importante, havia a sensao de que se estaria novamente pisando a terra (Oiticica, In: Peccinini, 1978:60).

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Este era o ambiente de seu trabalho Tropiclia. Uma sala com pssaros, plantas, msicas tropicais e o aparelho de televiso ligado. Assim Oiticica inicia o Movimento Tropiclia, que chamou-se de antropofagia, fazendo aluso s idias de Oswald de Andrade.2 inegvel o que recebemos da Europa e dos Estados Unidos, mas a Tropiclia seria uma proposta de adicionarmos nossa arte aos elementos vindos de fora, assimilarmos a cultura estrangeira e a misturarmos com a nacional, dando-lhe uma roupagem brasileira. Hlio Oiticica via a tropiclia no apenas como araras ou bananeiras, que representavam as paisagens naturais brasileiras, mas sim, como uma forma de chamar a ateno para o que estava acontecendo com a nossa cultura: uma cultura hbrida, herdada pela miscigenao das raas. Chamava o povo para participar do seu trabalho artstico, principalmente pessoas que no tinham acesso cultura erudita. O pblico mais amplo tornava-se mais criativo, pois trazia o que realmente conhecia, revelava naquele momento a sua prpria experincia afastando-se da cultura imposta pela burguesia dominante. ... a proposio da liberdade mxima individual como meio nico capaz de vencer esta estrutura de domnio e consumo cultural alienado (Oiticica, In: Peccinini, 1978:60).

BRASIL: CONTEXTO HISTRICO ANOS 60-70

Os anos 60 foram marcados por uma intensa efervescncia cultural, tanto nacional como internacionalmente. No Brasil jovens artistas se posicionavam de forma crtica frente a um modelo subdesenvolvido social e culturalmente, procurando atravs de sua arte apresentar questionamentos polticos e culturais.

Em 1964 as ambigidades polticas e a forma como conduziam a poltica externa do pas, levaram Jnio Quadros a renunciar ao cargo de presidente, sendo sucedido por Joo Goulart, que enfrentou os problemas econmicos atravs de tentativas de reformas. Estes e outros motivos levaram os militares a assumir o governo. Em 1964 o presidente Marechal Castelo Branco passou a governar sem a Constituio, atravs de vrios atos institucionais. O Ato Institucional n 5, de 13 de2

A antropofagia propunha basicamente a devorao da cultura e das tcnicas importadas e sua reelaborao com autonomia, transformando o produto importado em exportvel. A idia do manifesto antropofgico surgiu quando Tarsila do Amaral, para presentear o ento marido Oswald, lhe deu a tela Abapuru ( Antropfago ). ( Moura, 1998: 88-89 )

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dezembro de 1968 foi o mais severo, pois abriu caminho para o fortalecimento do regime, dando ao presidente o direito de caar mandatos legislativos, suspender direitos polticos e legislar em substituio ao Congresso, o que foi acompanhado pelo fim da liberdade de expresso. Em 1970 o Brasil ganhou a Copa do Mundo e o Governo Militar aproveitou sua propaganda, relacionando o fato ao crescimento econmico e ao respeito no exterior, dando legitimidade ao regime autoritrio. A marchinha Pra frente Brasil se tornou uma espcie de Hino Nacional para a propaganda do Governo Militar. Aproveitando-se da situao de euforia nacional o governo obrigou os sindicatos a calarem-se e a ao dos trabalhadores foi mais reprimida. A nova poltica salarial criou mais arrocho e limitaes de expresso. Isto provocou maior insegurana aos trabalhadores, ocorrendo a suspenso na estabilidade de emprego, substituda pelo Fundo de Garantia por Tempo de Servio. Isto e a entrada de mulheres e crianas no mercado de trabalho fizeram os operrios calarem-se, tornando-se mais difceis as greves e reivindicaes. (Mendona e Fontes, 1996:26-27). O objetivo de toda essa censura contra a expresso civil em geral e em particular s artes, era encobrir informaes, ocultar abusos de poder, impor o silncio como forma de limitar a oposio e provocar sentimentos de medo e isolamento (Alves, 1985). Podando a imprensa e as artes o governo tentava manter o controle. Os artistas se tornavam impedidos de fazer suas manifestaes, pois deveriam reservar em suas apresentaes lugares para os censores em performances e obras teatrais, ou apresentar suas obras previamente aos censores. Caso estes achassem a apresentao subversiva, corriam o risco de terem seu trabalho proibido de ser apresentado ao pblico e at mesmo serem presos. Houve artistas caados, peas teatrais suspensas, atores torturados. Msicos, como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil buscaram o exlio. Em 1931 foi fundada a Associao Brasileira de Imprensa (ABI), representando a associao de jornalistas existentes no pas. Dispunha de uma tradio liberal conquistada por todos estes que garantia a liberdade de expresso. Depois do AI-5, a reao foi o surgimento de inmeros semanrios ou tablides alternativos de oposio, que criticavam o governo. A ABI investiu tambm numa campanha simblica e disfarada de informaes. Organizou grupos de apoio s demais formas de comunicao como: o rdio, teatro, a

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televiso, msica e as artes plsticas. A partir de 1969 conseguiu ganhar espao dentro do regime da ditadura. Apesar de todos os conflitos foi uma dcada que experimentou o uso da arte relacionada ao contexto social, e no apenas do ponto vista esttico. Os artistas engajaram-se como cidados a uma causa poltica contra o autoritarismo. Tinham preocupao com o pas que os militares diziam que estava em vias de desenvolvimento, Brasil grande. A inflao subia, a dvida externa aumentava e as pessoas tinham que se calar sob pena de serem presas ou mortas. Leandro Konder, terico marxista, em um depoimento no livro de Helosa Buarque de Hollanda nos diz: Mas a minha primeira impresso, quando olho para trs, a de ver runas arqueolgicas de uma cultura dizimada pelo AI 5, pela represso, pelas torturas, pelo milagre brasileiro, pelo vazio cultural, pela disciplina tecnocrtica e lgica implacvel do mercado capitalista... Mas evidente que nem tudo se perdeu: ficou o esforo, ficaram gestos de grandeza, preocupaes fecundas. E onde o pensamento poltico carecia de lucidez a sensibilidade dos artistas produzia criaes cheias de encanto, livros, poemas, filmes, canes. Obras cuja vitalidade no pode ser negada, porque ainda hoje circulam entre ns e nos emocionam (Konder, In: Hollanda e Gonalves, 1982: 91-92).

A represso levou a organizao de movimentos estudantis que deram origem grandes passeatas e manifestaes de protestos principalmente entre 1967 e 1968. Os estudantes ganharam impulso na resistncia com a demisso arbitrria de professores e com a reforma universitria. Com a represso esmagadora os estudantes comearam a promover comcios relmpagos, com o objetivo de obter apoio das camadas mais amplas da populao, como a classe mdia e os trabalhadores de escritrio. Com a morte de um estudante pela polcia militar no Rio de Janeiro (1968), a classe estudantil ganhou apoio emocional da populao, ateno da imprensa e da Igreja Catlica, pois, aps a missa fnebre, as pessoas que saram da igreja foram atacadas pelos militares. As manifestaes continuaram, e unidos a outros grupos de protesto, participaram da passeata pacfica dos cem mil, da qual foram tirados lderes de vrios segmentos da populao para tentar negociaes com o governo. O Estado de Segurana Nacional tornouse mais isolado da sociedade civil fechando-se o crculo de poder ( Alves, 1989).

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Nesta poca, os artistas preocupados com a causa social procuravam, atravs de seus trabalhos, fazer o povo participar mais ativamente das obras. Assim, juntamente com os sindicatos de trabalhadores e movimentos estudantis, reuniram-se para dar a sua contribuio. Ligado Unio Nacional dos Estudantes (UNE) surgiu na dcada de 60 o Centro Popular de Cultura (CPC), que produzia uma arte mais consciente e revolucionria. O primeiro CPC surgiu no Rio de Janeiro, em 1961, tinha uma cultura nacional, popular e democrtica. Aos poucos foram se formando CPCs por todo pas, com adeso de artistas que tentavam desenvolver uma atividade consciente junto s classes populares. Encenavam teatros nas portas das fbricas, promoviam cursos de teatro, cinema, artes visuais e filosofia. A UNE tentava tambm manter comunicao em todo pas com as bases universitrias, operrias e camponesas. (Hollanda, 1982: 9-10) Carlos Estevam Martins foi o primeiro presidente do CPC e nos define qual o tipo de atuao pretendida. O CPC tinha em vista dar contribuio para que o homem pudesse superar (...) as enormes desvantagens que ele enfrenta para adquirir uma conscincia adequada de sua real situao no mundo em que vive e trabalha. (Martins Arantes, 1998:55)

A ARTE DE PROTESTO: RUBENS GERCHMAN, ANTNIO DIAS E ARTUR BARRIO

A arte de protesto comeava a ser produzida nos anos 60 por jovens artistas que faziam parte do CPC. Estes viam a arte, como parte integrante e participativa da sociedade. Diziam que o artista como cidado tinha obrigao de contribuir para a melhoria desta, visando atravs de seu trabalho, a conscientizao do povo, em relao aos acontecimentos sociais e polticos vigentes na poca. Nesse aspecto Gullar afirma que:

O que define a cultura popular(...) a conscincia de que a cultura tanto pode ser instrumento de conservao, como de transformao social. Para a jovem intelectualidade brasileira, [...] o homem de cultura est tambm mergulhado nos problemas polticos e sociais, [...] assume ou no a responsabilidade social que lhe cabe. Ningum est fora da briga (Gullar, In: Arantes, 1998:54). Em seu manifesto os membros do CPC afirmavam:

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Nem tampouco acreditamos que ao homem, por sua condio de artista, seja dado o privilgio de viver em um universo parte, liberto dos laos que o prendem comunidade e o acorrentam s contradies, s lutas e s superaes por meio das quais a histria nacional segue seu curso (Manifesto do CPC, In: Hollanda, 1981:121). Afirmavam que eram mais livres e o que os diferenciava dos outros artistas, era que buscavam um objetivo social em seu trabalho. A sua mola propulsora no era econmica, no queriam ser dceis, servindo ao mercado de arte, produzindo uma obra que servia como instrumento de dominao. Estes artistas queriam ser as armas espirituais para a libertao material do povo (Hollanda, 1981:123). Para os membros do CPC o artista tinha que se sentir parte do povo e para isso sua produo deveria fazer o pblico pensar sobre a realidade que o cerca. Segundo eles, existem trs tipos de manifestaes artsticas: a) Arte do povo: uma arte ingnua que sai do meio do povo, que o artista e o pblico vivem no mesmo anonimato, prevalecendo no meio rural. A elaborao artstica primria, tendo como funo a ornamentao; b) Arte popular: seu pblico mora em grandes centros, mais apurada, sendo que o artista se destaca do povo por deter as tcnicas de produo da arte, mas seu objetivo oferecer ao pblico um passatempo, um lazer, no se coloca de forma a faz-lo pensar sobre a sociedade. Neste caso o pblico se apresenta como mero consumidor de bens. c) Arte revolucionria: para os membros do CPC as duas formas de arte no mostram a essncia do povo. Nem a Arte do Povo que eles consideravam passiva, nem a Arte Popular que eles consideram imposta dos senhores ao povo. Por isso escolheram outro tipo de arte, a revolucionria, que procurava libertar o povo: Radical como , nossa arte revolucionria pretende ser popular quando se identifica com a aspirao fundamental do povo, quando se une ao esforo coletivo que visa dar cumprimento ao projeto de existncia do povo, o qual no pode ser outro, seno o deixar de ser povo tal como ele se apresenta na sociedade de classes, ou seja, um povo que no dirige sociedade da qual ele povo... Na ao revolucionria o povo nega sua negao, se restitui posse de si mesmo e adquire a condio de sujeito do seu prprio drama (Hollanda,1981:129-131). A partir deste pensamento ou com esta viso de mundo que o artista do povo capaz de encontrar matria-prima para criar sua arte revolucionria com contedo poltico, com o objetivo de pensar o coletivo.

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Quando se trata de comunicao e criao os artistas da minoria produzem arte com a simples idia de comunicar, no levando em considerao se esto realmente sendo entendidos pelo pblico que no tem acesso a este tipo de cultura, desta forma muitas vezes seu trabalho acaba no tendo contribuio para a coletividade. Para eles a arte seria para todos e se, por algum motivo, no houvesse comunicao com o pblico o problema no era do artista, pois seria dever do estado encontrar formas de fazer o povo gostar e entender de arte, atravs de uma educao pretensamente popular (Hollanda, 1981:136). Ao contrrio disto, o artista revolucionrio busca produzir uma arte que se identifica com o pblico. Desejando acima de tudo que sua arte seja eficaz, o artista popular no pode jamais ir alm do limite que lhe imposto pela capacidade que tenha o espectador para traduzir, em termos, sua prpria experincia, aquilo que lhe pretende transmitir o falar simblico do artista. A quem nos disser que isto representa um cerceamento da liberdade criadora, responderemos igualmente que sim. O que no podemos aceitar a afirmao de que os valores formais sejam to valiosos que em seu nome se justifique o nosso afastamento do povo. Se estamos solidrios com o povo porque afirmamos que nossa arte s ir onde o povo consiga acompanh-la, entend-la e servir dela (Manifesto do CPC, In: Hollanda, 1981 :138139). Estes princpios artsticos no se reduziram apenas ao movimento estudantil, de intelectuais e de associaes de classes. Vrios artistas brasileiros durante a dcada de 60 e 70 criaram obras comungando estes ideais. Dentre estes escolhemos trs que nos parecem ter criado uma linguagem potica, aliando a obra ao contexto social. So eles: Rubens Gerchman, Antnio Dias e Artur Brrio. Rubens Gerchman nasceu no Rio de Janeiro em 1940. Em 1960 freqentou o Liceu de Artes e Ofcios como aluno livre. Trabalhou como diagramador de revistas. Foi diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio de Janeiro. Em 1966 participou do Salo Nacional de Arte Moderna no Rio de Janeiro, quando recebeu como prmio uma viagem ao exterior por ser destaque da Jovem Arte Contempornea. Dentre as principais coletivas em que participou destacam-se Opinio 65, Opinio 66 e Nova Objetividade Brasileira de 1967. Produzia um trabalho pertencente a uma vertente poltica. Via a anti-arte como uma reao aos modelos tradicionais de pintura e escultura: A obra, uma vez acabada, est inteiramente acabada para mim. Passa a fazer parte de uma manipulao, de um uso coletivo, social, em que o espectador no mais deve participar contemplativamente, mas ativamente,

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penetrando fisicamente nela, apalpando-a, metendo-se dentro dela. Minha obra no feita para museus, nem cabe em nossos apartamentos. Deveria fazer parte de um parque de diverses aberto a todos (Gerchman, In: Peccinini,1978:83-84). Como outros artistas buscava a participao ativa do espectador, envolvendo-se em seu trabalho. Em seu objeto artstico Agora dobre os joelhos(1966), para poder observar melhor a obra, o espectador tinha que se ajoelhar, inclinar a cabea para se olhar num espelho que lhe multiplicava a viso e o colocava numa situao como se estivesse adorando deuses falsos. O material usado na obra era um simples espelho, madeira pintada e almofadas, no precisava muito para chamar ateno e comunicar-se, nem de tela, cavalete e tintas: [...] o artista, penso eu deve usar todas as tcnicas de comunicao possveis. Uma delas pegar o espectador pelo pescoo, faz-lo pensar. Tarefa dura. Assim, considero vlidas as tcnicas do cartaz de cinema, da histria em quadrinhos etc. Como espectador consciente, a crtica social pode ou no estar presente nos meus trabalhos, mas apresento sempre o homem urbano em seus mltiplos aspectos. Neste sentido fao crtica social, representando o homem massificado, desindividualizado em sua solido, nas suas limitaes, dentro de sua caixa. Acredito que o objeto venha desempenhar brevemente, um grande fator cultural (Gerchmam, In: Peccinini, 1978:147). Se formos comparar este trabalho com a sociedade, podemos entend-lo como uma metfora. O povo era obrigado, de certa forma, a aprovar a situao do Brasil, pois com a ditadura a liberdade de expresso era limitada e as pessoas obrigadas a aceitarem a autoridade incontestvel dos governantes, sob a mira da represso. O enfoque dado por ele mostra a sua preocupao em relao ao cotidiano e a submisso do homem, a passividade que hoje e na poca as pessoas estavam submetidas, em uma sociedade em que o nmero de informaes e exigncias fazem com que nos desliguemos ou no assimilemos o que se passa ao nosso redor; o que era ou bom para a classe dominante, pois, quanto mais ausente, e isolado o povo estiver, menos questiona. Gerchman achava importante ir at onde o povo estava, ou seja, ir para a rua, sair dos sales ou atelis, estar envolvido com o cidado: A ocupao das ruas pelas passeatas estudantis /intelectuais/ artistas foram magnficas oportunidades de ocupar a urbe, de mudar e sentar no asfalto. Ocupar a praa, desenvolver o sentido primeiro da praa como local pblico de reunio e discurso poltico. O nosso privilgio foi ter

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podido experimentar este barato, de ter participado deste grande momento criativo poltico coletivo (Gerchman, In: Hollanda e Gonalves, 1982:89). Gerchman produziu trabalhos com um apelo muito forte, que chegaram a impedir o trnsito como as gigantescas letras vermelhas que formavam a palavra LUTE, colocada na Avenida Rio Branco, e seus poemas para serem carregados durante as demonstraes polticas.

Fonte: Catlogo da 1a Bienal de Artes Visuais do Mercosul, 1997.

Em sua obra A nova geografia / homenagem a Torres Garcia (1971), faz uma crtica contra o colonialismo cultural, expressado pelos movimentos polticos da poca. A ditadura militar era criticada com um bojo do imperialismo americano, submetendo Brasil e outros pases subdesenvolvidos. Mais uma vez podemos observar sua preocupao com os fatos polticos, sociais da poca, nos parece como se o Equador estivesse dividindo o Hemisfrio que domina e o que dominado. Em seu livro Cultura e participao nos anos 60, Hollanda e Gonalves (1982) colocam o pensamento de jovens artistas como Antnio Dias, que acreditava poder transformar a sociedade atravs de sua arte de denncia. Os temas abordados nas duas

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exposies Opinio 65 e Opinio 66 valorizam o universo urbano: as mitologias da classe mdia conservadora, a TV, o outdoor, o futebol, a violncia e as questes ligadas juventude europia e do Estados Unidos. Os jovens so propsitos em andamento. E se um jovem exerce o cinema ou a pintura, quase inevitvel que ele pense que atravs da denncia ele conseguir estirpar os males do mundo (Dias, In: Hollanda e Gonalves, 1982:27). Movidos pelo ideal de construir uma sociedade onde houvesse menos diferenas de classes, atravs de sua arte, artistas como Dias, deixavam sua opinio a respeito da sociedade, do pas que crescia s custas do povo que se alienava diante das propagandas promovidas pelo governo, enquanto a dvida externa crescia. Antnio Dias nasceu na Paraba em 1944. Em 1958 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como desenhista de arquitetura e mais tarde como copista e ilustrador de livros. Estudou gravura na Escola Nacional de Belas Artes. Participou posteriormente de vrias exposies coletivas, dentre as quais: Opinio 1965 Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; Arte Contempornea Brasileira Museu de Arte Moderna, Buenos Aires; Arte e Poltica 1970, e outras coletivas e exposies individuais. Em suas obras a vertente poltica surge pelas imagens de crnios humanos, ossos, que nos lembram a realidade vivida no mundo, nos conturbados anos 60. Naquele perodo a nossa atuao, genericamente sem que houvesse nenhuma noo de conglomerado era s uma necessidade poltica de se reunir e mostrar coisas, essa necessidade foi de tal forma cancelada atravs de uma situao repressiva que a produo dos ltimos cinco, sete anos, est em grande parte engavetada. Eu acho que at este perodo de 66, por exemplo, a situao criar um objeto que fazendo um paralelo com o real cria uma situao crtica (Dias, In: Peccinini, 1978:135). Chama ateno outra obra sua: O pas inventado (1976). Uma simples bandeira vermelha, com fora para representar um movimento, uma causa, a coragem de um povo na luta. Estava hasteada porque havia esperana e representava tambm o sangue dos jovens que lutavam na guerra do Vietnan ou contra a ditadura. Antnio Dias, como outros artistas, acreditava na importncia da participao do espectador, provocando, pela denncia, conscientizao popular: [...]O espectador j segunda categoria do negcio, quer dizer Segunda categoria para onde aquilo vai depois voltar sobre o campo cultural, eu acho que primeiro a manifestao do indivduo que tem alguma coisa a dizer com relao ao campo social onde est atuando e onde ele atuado e

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depois isso ainda vai rebater no pblico pode rebater e pode no rebater tambm3.

Fonte: Catlogo da 1a Bienal de Artes Visuais do Mercosul, 1997. Nesta poca havia a busca de envolver o pblico na arte, buscando participao ativa na confeco do objeto artstico. No existia tanta preocupao com a esttica, com a beleza do objeto, mas sim com o efeito que ele deveria produzir sobre as pessoas. Muitas obras eram agressivas, provocando nuseas, como nos diz Artur Barrio:

Meu trabalho est ligado a uma situao subjetiva/objetiva: mente/corpo, considero esta relao uma coisa s, pois ela que inicia o processo energtico que ir deflagrar situaes psicorgnicas de envolvimento do espectador, levando-o a uma maior participao em relao a proposta apresentada, seja em seus aspectos tteis, olfativos, gustativos, visuais, auditivos, seja em suas implicaes de prazer ou repulsa. Chego mesmo a encarar as implicaes psicoemocionais e orgnicas tais como vmito, diarria, etc., como participantes, isto , diante de fatores deflagradores (provocadores) que agem em funo do inesperado, fragmentando o cotidiano (Barrio, In: Peccinini, 1978:117).3

Depoimento do Artista para o Departamento de pesquisa e Documentao de Arte Brasileira da FAAP, Rio de Janeiro, 04 de setembro de 1977, In: Peccinini, 1978.

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Barrio nasceu na cidade do Porto, Portugal em 1945. Transfere-se, com a famlia, para o Brasil em 1957, fixando residncia no Rio de Janeiro. Estudou na Escola Nacional de Belas Artes no concluindo o curso. Entre 1974 e 1978 residiu na Europa vivendo entre Portugal, Frana e Holanda. Participou dos sales da Bssola (1969) e Vero (1970) ambos no Rio de Janeiro. Para este artista a arte deveria fazer o povo pensar, por isso esqueciam-se os atelis e sales e ia-se para as ruas, onde estava a populao que no tinha acesso s galerias. Justamente o povo que fazia o pas e que geralmente era () esquecido. Trabalhando nas ruas com os restos (lixo) produzidos pelas pessoas, Barrio chamava ateno para o que somos e qual nosso papel neste mundo. A arte de conceitos (Conceitual que queria significar, falar do contedo social e poltico) era diferente da arte das elites, preparadas ou encomendadas para servir ao mercado. Estes artistas no tinham preocupao em vender ou registrar, mas sim colocar idias e fazer o povo (espectador) ser co-autor da obra no momento em que demostrava reaes diversas. As obras deveriam ser manuseadas ou manipuladas, fazendo com que estas tomassem outras formas, dando oportunidade para que cada um colaborasse no trabalho: Fao uso de materiais precrios (situaes de perecibilidade inclusive), em funo de uma conscincia minha, individual e ao mesmo tempo como resultado de uma viso da realidade coletiva: - scio-econmica : acho importantssimo o uso desses materiais, j que seu poder de contestao muito forte e real. (Barrio, In: Peccinini, 1978).

A viso que d para ter deste tipo de arte resultado da situao em que vivia o pas nesta poca repressiva, assim o trabalho artstico que era produzido s poderia ser de repdio. A participao popular fez ressurgir os ideais socialistas, ou seja, buscava-se uma sociedade em que as diferenas sociais no fossem to gritantes. Observando os depoimentos do artista percebe-se que na poca havia uma vontade muito grande de mudana, havia a esperana na possibilidade de se construir um Brasil que realmente avanasse, e a arte, que Barrio chamou apenas de trabalho, era uma forma de mostrar a importncia do coletivo, da unio para se construir esta sociedade melhor; onde todos tivessem o direito de viver com dignidade:

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Em meu trabalho, encaro o registro atravs do filme ou foto, etc., simplesmente como um processo informativo de uma idia Reneguei as categorias em arte em funo de uma maior abertura e conseqente possibilidade de ao inclusive a denominao obra de arte: envolta em pampa bastante duvidosa. Refiro-me ao que fao apenas como trabalhos. A cidade, substituindo o papel de tela etc., da mesma forma que o pas ou o continente: poltica ou geograficamente:- ou o prprio planeta em relao ao Cosmos (Barrio, In: Peccinini, 1978:117).

As trouxas ensangentadas confeccionadas a partir de pano, tintas e barbantes, lembravam o sangue que corria de nosso povo e as guerras que assombravam o mundo. Num depoimento de 1977 o artista afirma:

As trouxas poderiam ter um sentido de objeto, um sentido que fosse social ou da poca e tambm o sentido interior. Meu trabalho sempre se liga aos aspectos interiores e exteriores. Quando pretendo colocar as trouxas num sentido poltico e dizer que isto est ligado a realidade brasileira, de certa violncia. Ento est tudo bem, pode ser enquadrado. Agora, houve a Guerra do Vietn que estava em pleno fogo a Guerra de Angola, Moambique, Guin, Bissau e outras; os movimentos de protestos na Europa, nos Estados Unidos. So realidades passadas ou no passadas, mas o trabalho continua. A tem seu valor e as trouxas ainda so contemporneas, so momentneas. Ento tudo est ligado. Meu trabalho nunca esteve ligado aqui ou l, esteve sempre ligado minha realidade4. Os trabalhos de Barrio so muito fortes. Pelas imagens e a descrio que ele nos d em seus depoimentos, faz com que tenhamos vontade de participar das obras, embora elas nos causem uma certa repulsa. Entretanto, o fato mais importante que atravs delas podemos observar qual era o sentimento da poca, a participao ativa dos artistas e jovens que buscavam acordar o Brasil para sua realidade.

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Depoimento do artista ao Departamento de Pesquisa e Documentao de Arte Brasileira da FAAP. Rio de Janeiro, 09/09/1977, In: Peccinini, 1978.

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Fonte: Catlogo da 1a Bienal de Artes Visuais do Mercosul, 1997. Este trabalho, como diz Barrio, contemporneo, no sentido de que poderamos relacion-lo com o que est acontecendo hoje. Quase 30 anos depois o pas ainda v pessoas sendo assassinadas nas ruas. Confrontos entre lderes de movimentos sociais e a polcia, guerras no mundo, pessoas morrendo de fome. O sentido da obra de Barrio de denncia, no serve para ser vendida no mercado de artes, mas sim, para representar fatos de violncia social e poltica. Se este trabalho fosse feito hoje, ainda provocaria certa reflexo em relao vida social. Neste sentido contemporneo, e por ficar nas ruas momentneo, estando sujeito ao do tempo e da manipulao das pessoas que passavam.

CONCLUSO

A proposta deste artigo nos leva a uma questo polmica: qual a relao da arte com a poltica? Dentro deste imenso universo achamos oportuno focalizarmos algumas das obras de artistas brasileiros, num perodo marcado pelo debate poltico na sociedade e na arte: as dcadas de 60 e 70. Procuramos resgatar a questo em obras que, na poca,

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expressavam vises poticas com acentuada reflexo em relao situao poltica. Observamos como o contexto artstico e poltico condicionou estas obras. Porm, elas so mais que a expresso, relacionam-se ( s vezes direta, outras vezes indiretamente) com muitas propostas e experincias artsticas do mundo do sculo XX. Desta maneira tentamos montar um breve quadro de relaes com os movimentos artsticos e identificar como as diferentes linguagens polticas e artsticas se interrelacionavam. A negao do esteticismo buscada desde o incio do sculo. Mas a busca no apenas discursiva. Ela se manifesta na exteriorizao, na parte fsica da obra. No mais obras fechadas a serem contempladas, mas a serem desmontadas pelo pblico. Guerra aos temas, ao grito da elite dominante, valorizao dos objetos e situaes do cotidiano. As obras de Rubens Gerchaman, Antnio Dias e Artur Brrio apresentadas,

representam alguns dos mais expressivos exemplos na arte brasileira, onde transparecem estas propostas em linguagens poticas particulares. No so obras panfletrias sectrias. So construes/instalaes que procuraram estar abertas ao pblico. E continuam mantendo esta abertura para o pblico de hoje, j que as trouxas ensangentadas, por exemplo, nos remetem tanto s torturas polticas da poca, quanto criminalidade urbana e ao submundo das delegacias e prises atuais. No querem nos mostrar o belo, mas o sujo, o tabu. No so para serem contempladas pela viso, mas mobilizam todas as percepes junto com a repulsa; exigindo uma posio do indivduo como cidado e como ser humano. Mas o questionamento artstico no mera descrio de situaes passadas ou presentes. A arte atual uma estrutura conceitual e fsica que nos leva a uma posio vital. A vida cheia de detalhes e totalidades. preciso dar a ela significados, articulando-a. O questionamento dos artistas Rubens Gerchman, Antnio Dias e Artur Brrio, so fragmentos polticos que os possibilitam criar a nossa prpria potica, social e pessoal. Seus experimentos que nos chamam para velhas e novas questes estticas podem nos permitir abrir nossa imaginao para o mundo da arte dentro do mundo da vida. Focalizando a arte de protesto dos anos 60 e 70, encontramos suas origens no incio do sculo XX, cabe aqui ressaltar a continuidade de vrias das linguagens artsticas dos anos 60 na atualidade: a anti-arte que nega a contemplao e constri uma esttica em profunda ligao com as grandes questes coletivas e existenciais de nossa poca. As imposies do mercado cerceadoras e elitistas no impedem que se movimentem vrias propostas e sejam criados novos pblicos.

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Se a arte faz parte da totalidade da vida, as linguagens poticas ao refletirem a busca de significado vital, relacionam-se com as vrias facetas, sejam sociais, econmicas ou existenciais da vida. Portanto, pode-se dizer que a relao da arte com a poltica uma entre as vrias ligaes com as quais o artista pode construir sua linguagem potica.

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