armando pierre gauland - teses.usp.br · mesmas e não segundo as regras da gramática árabe. 7...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES ARMANDO PIERRE GAULAND A PROPAGANDA POLÍTICA DO ISLAMISMO XIITA REVOLUÇÃO ISLÂMICA DO IRÃ: 1978 - 1989 Tese apresentada à Área de Concentração: Interfaces Sociais da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do Título de Doutor em Ciências da Comunicação, sob a orientação da Profª. Drª. Heloiza Helena Gomes de Matos. SÃO PAULO 2007

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES ARMANDO PIERRE GAULAND

    A PROPAGANDA POLTICA DO ISLAMISMO XIITA REVOLUO ISLMICA DO IR: 1978 - 1989

    Tese apresentada rea de Concentrao: Interfaces Sociais da Comunicao da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, como exigncia parcial para a obteno do Ttulo de Doutor em Cincias da Comunicao, sob a orientao da Prof. Dr. Heloiza Helena Gomes de Matos.

    SO PAULO 2007

  • 2

    ARMANDO PIERRE GAULAND

    A PROPAGANDA POLTICA DO ISLAMISMO XIITA REVOLUO ISLMICA DO IR: 1978 - 1989

    Tese apresentada rea de Concentrao Interfaces Sociais da Comunicao da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, como exigncia parcial para a obteno do Ttulo de Doutor em Cincias da Comunicao, sob a orientao da Prof. Dr. Heloiza Helena Gomes de Matos.

    SO PAULO

    2007

  • 3

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________

  • 4

    Dedicatria

    Ao Dieter e a Ivonete, queridos companheiros de jornada!

  • 5

    Agradecimentos

    minha Orientadora Profa. Dra. Heloiza Helena Gomes de Matos pela confiana,

    incentivo e afetuosa amizade em todos os momentos desta pesquisa;

    Ao Prof. Dr. Leandro Leonardo Batista pela oportunidade propiciada, pela parceria e

    pelas sugestes no exame de qualificao;

    Profa. Dra. Maria Helena Rolim Capelato, pelo privilgio do convvio, pela idia

    original que gerou esta tese e pelas sugestes no exame de qualificao;

    Aos Professores da Escola de Comunicaes e Artes da USP, especialmente Profa.

    Dra. Margarida Maria Krohling Kunsch e o Prof.Dr. Mauro Wilton de Souza.

    Ao Dr. Guilherme Frguas Nobre pelas inmeras idias geradas nas nossas conversas

    interminveis;

    Embaixada da Repblica Islmica do Ir nas figuras dos Embaixadores Mansour

    Moazami e Seyed Jafar Hashemi;

    Dra. Miriam de Souza Rossini do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e

    Informao da UFRGS, pelo estmulo at o ltimo momento,

    Aos amigos Ayrton Kanitz e Flvio Dutra pelo inesquecvel incentivo.

  • 6

    Nota sobre estilo

    O processo de transliterao dos termos em rabe e farsi (persa) adota uma

    verso simplificada do International Journal of Middle East Studies. Para

    facilitar a leitura, o plural das palavras rabes feito adicionando um s s

    mesmas e no segundo as regras da gramtica rabe.

  • 7

    RESUMO

    A proposta deste estudo a anlise da propaganda poltica realizada no Ir, por

    ocasio da Revoluo Islmica no perodo de 1978 1988, atravs dos cartazes

    produzidos.

    Partindo do chamado "paradigma de Karbala", foram considerados no trabalho

    os diversos contedos que integram o universo revolucionrio, a partir da

    perspectiva social, esttica, religiosa e poltica.

    A interdio ao uso e culto das imagens, trazida na esteira do processo de

    islamizao acelerada da sociedade iraniana, um dos paradoxos considerados ao

    longo da tese.

    O referencial terico levou em conta as especificidades nicas da cultura e da

    filosofia iraniana, na tentativa de melhor compreender as aes que envolvem a

    comunicao no universo xiita.

  • 8

    Palavras-Chave Comunicao Poltica, Propaganda Poltica, Cartazes, Ir, Islamismo

    ABSTRACT

    The aim of this study is the analysis of the political propaganda yielded in Iran

    through the posters that were produced between 1978 and 1988, during the Islamic

    Revolution.

    From the so-called Karbala paradigm, the study considers the various

    contents that integrate the revolutionary universe, taking into account the social,

    aesthetic, religious and political perspective.

    The interdiction to image use and cult, carried through the accelerated

    islamization process of the Iranian society is one of the paradoxes considered in this

    dissertation.

    The theoretical references took into consideration the uniqueness of the Iranian

    culture and philosophy, in an attempt to better understand the actions that involve the

    communication in the Shia universe.

  • 9

    Key Words Political Communication, Political Propaganda, Posters, Iran, Islamism

    Iman-e Bozorg va Dastha-ye Khali Um povo armado somente com "uma grande f, mas com as mos vazias".

    Slogan da Revoluo Islmica

    O Imaginrio religioso manipula a esperana e o temor, elementos centrais na dominao das bases populares. Resulta da uma capacidade de persuaso que dificilmente se encontra nas ideologias racionalizadoras do mundo laico.

    Roberto Romano (Brasil. Igreja contra Estado)

    O desafio intelectual deste sculo reside no fim de uma viso parcial e negativa de que so vtimas as culturas do Oriente diante de nossa arrogncia intelectual. Se o Ocidente Acidente, e no Destino,se Parte, e no Todo, como pode outorgar a si mesmo a condio de Leitor ideal do que se passa nas areias do Tchad ou nas mesquitas da Cachemira?(...)

    Marco Lucchesi (Caminhos do Isl)

    /

  • 10

    LISTA DE ILUSTRAES

    Cartaz 1 .............................................................................................................98

    Cartaz 2 ............................................................................................................101

    Cartaz 3 ............................................................................................................103

    Cartaz 4 ............................................................................................................106

    Cartaz 5 ............................................................................................................109

    Cartaz 6 ............................................................................................................112

    Cartaz 7 ............................................................................................................115

    Cartaz 8 ............................................................................................................118

    Cartaz 9 ............................................................................................................122

    Cartaz 10 ............................................................................................................125

    Cartaz 11 ............................................................................................................128

  • 11

    SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................... 19

    1 - FUNDAMENTAO TERICA ................................................................................... 24

    1.1 - Marcos tericos da comunicao poltica.................................................................... 24

    1. 2 - A comunicao poltica em retrospecto....................................................................... 25

    1. 3 Aplicaes ...................................................................................................................... 27

    1. 4 - A Propaganda ................................................................................................................ 29

    1.5 Origem ............................................................................................................................ 29

    1. 6 - Expanso do conceito .................................................................................................... 30

    1.7 - Leis e tcnicas ................................................................................................................. 32

    2 . PROCEDIMENTOS METODOLGICOS ................................................................... 36

    2.1 Introduo ...................................................................................................................... 36

    2.2 Mtodo ............................................................................................................................ 37

    2.3 - Classificao do Estudo ................................................................................................. 38

    2.4 - Problema de Pesquisa ................................................................................................... 38

    2.5 - Anlise de contedo....................................................................................................... 39

    3. O ISL................................................................................................................................. 44

    3.1 - Etimologia ....................................................................................................................... 45

    3.2 Xiitas X Sunitas.............................................................................................................. 49

    3.3 Liberais e Fundamentalistas......................................................................................... 53

    4. IR FORMAO E HISTRIA .................................................................................. 55

    5. A REVOLUO ................................................................................................................ 58

    5.1 Antecedentes Histricos ................................................................................................ 61

    5.2 Ruhollah Khomeini ....................................................................................................... 64

    5.3 - O Exlio............................................................................................................................ 68

    5.4 - O triunfo da Espera ....................................................................................................... 71

    5.5 - Revoltas ........................................................................................................................... 75

    5. 6 - Um reforo na revoluo: Down with USA ................................................................ 75

    5. 7 - Guerra Ir-Iraque ........................................................................................................ 77

  • 12

    5. 8 - Fatwa .............................................................................................................................. 80

    5. 9 Teologia Khomeinista .................................................................................................. 81

    5. 10 A revoluo segue seu curso ..................................................................................... 85

    6. A IMAGEM ...................................................................................................................... 88

    6.1 O Poder da Imagem ..................................................................................................... 90

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................... 134

    ANEXOS .............................................................................................................................. 145

  • 13

    Em Nome de Deus, O Clemente, O Misericordioso.

    Louvado seja Deus, Senhor do Universo.

    O Clemente Misericordioso.

    Soberano do Dia do Juizo Final.

    A Ti adoramos e a Tua ajuda buscamos.

    Guia-nos ao caminho reto.

    Ao caminho daqueles que agraciaste,

    no a dos abominados nem a dos extraviados.

    Surata de Abertura (Al-Fatiha)

  • 14

    Prlogo

    O encantamento produzido pelo estilo vocal Dhrupad1 dos irmos Dagar, o sitar2

    clssico de Ravi Shankar, o pico Mahabharata e outras tantas manifestaes da cultura

    indiana, contriburam para a deciso de passar uma temporada no pas de Mahatma

    Ghandi. Depois de uma longa preparao, cheguei ndia em dezembro de 1992 e

    voltei em maio do ano seguinte. Naturalmente, no era mais o mesmo.

    Com um imaginrio pasteurizado, devidamente construdo em grande parte

    atravs de textos e imagens da mdia acessvel na poca, em Porto Alegre, tive a maior

    comoo de toda a minha vida ao me deparar com situaes que nunca cogitei

    presenciar.

    Cauteloso, eu havia lido os principais jornais brasileiros antes de embarcar e

    acabei encontrando apenas uma pequena nota, num canto de pgina do jornal O Estado

    de So Paulo, que fazia referncia a um conflito religioso numa cidade do interior

    indiano.

    Chegando em Bombaim, hoje Mumbai3, principal centro econmico e financeiro

    da ndia, tive dificuldades at para sair do aeroporto, pois a cidade estava com toque de

    recolher. O conflito iniciado com a destruio de uma mesquita de nome Babri, na

    cidade de Ayodhya, por militantes hindus, havia se espalhado por todo o pas e agora o

    foco principal do conflito era Bombaim, exatamente onde eu me encontrava.

    1 Dhrupad a mais antiga forma de canto clssico na India. 2 Sitar: instrumento criado no Sculo XIV por Amir Khusro, poeta e msico da corte de Jalaluddin Khilji, a partir dos instrumentos vina(sul da ndia) e sehtar (Prsia). 3 Bombaim voltou a se chamar Mumbai em uma deciso do partido Shiv Sena, que venceu as eleies do governo do estado de Maharashtra. Mumbai era o nome usado antes da chegada dos colonizadores. Etimologicamente vem do nome de uma deusa hindu chamada Mumbadevi No sculo XVI, os portugueses a batizaram de bom baa, que com o domnio da Inglaterra ficou anglicizada para Bombay.

  • 15

    Para a tradio hindu, a cidade de Ayodhya o local do nascimento do deus

    Ram. Para a contextualizao do conflito foi preciso que eu me inteirasse de que no

    sculo XVI, o imperador mogul4 Babur havia destrudo o templo e construdo em seu

    lugar uma mesquita. A destruio da mesquita e a construo de um templo hindu no

    mesmo local foram considerados atos de idolatria e, portanto, uma severa afronta contra

    os muulmanos. Depois da invaso, houve a destruio total da mesquita. Isto,

    repetindo, aconteceu h quatro sculos.

    Em 1992, numa demonstrao de que a Histria contnua, mais um captulo

    dela estava sendo escrito. Por todo lado viam-se grupos, que eu intu como rivais,

    postados em cantos opostos das esquinas, vociferando. O enfrentamento fsico parecia

    iminente.

    O hotel em que eu estava hospedado situava-se numa esquina, de forma que era

    possvel ver e ouvir os brados dos manifestantes e, casualmente, foi ali que pela

    primeira vez ouvi uma frase que nunca mais me abandonaria: "Allahu Akbar".

    O final daquele dia foi trgico. Mais de 900 pessoas morreram em plena rua. No

    dia seguinte mais 300, totalizando 1,2 mil.

    O espetculo que se seguiu foi ainda pior ainda. Como os hindus cremam os

    seus mortos e essas cremaes, em Bombaim, so feitas em templos, o pessoal

    encarregado no dava conta da demanda, permanecendo ento os corpos espalhados

    pelo leito das ruas. Famlias inteiras circundavam os cadveres e expressavam uma

    espcie de alegria, para mim, difcil de entender.

    Mais tarde descobri que, tanto hindus quanto muulmanos mortos em combate

    de fundo religioso, so considerados vitoriosos. Os hindus encerram o ciclo de

    reencarnaes enquanto os muulmanos mortos, tendo praticado a Jihad, passam a

    4 A dinastia Mogul, fundada por Babur, foi uma linhagem de soberanos muulmanos indianos que governou a ndia de 1526 a 1858.

  • 16

    desfrutar de uma vida de recompensas eternas (aps o 11 de setembro j se popularizou

    a informao de que existiria no paraso 72 virgens a que cada um teria direito).

    Em 12 de maro outros incidentes violentos sacudiriam o pas. Mas foi,

    novamente, em Bombaim que 13 bombas explodiriam de forma coordenada,

    provocando a morte de mais 317 pessoas e ferindo 1,4 mil. Essas exploses ainda so

    consideradas como as mais destrutivas na histria da ndia.

    Mais de 10 anos se passaram e em 25 de agosto de 2003, duas bombas deixadas

    em txis explodiram na zona turstica de Bombaim matando 52 hindus. Dois grupos

    islmicos, Jaish-e-Mohammed e Lashkar-e-Toiba, foram considerados culpados pelas

    autoridades. Acredita-se que tenha sido uma retaliao pelos atentados de 2002 em

    Gujarat, onde morreram mais de 2 mil muulmanos indianos...

    A partir desses eventos, passei a me interessar ainda mais pelo que acontecia

    naquele lado do mundo. Lendo, viajando, conhecendo cada cultura e fixando minha

    ateno, definitivamente, no Oriente Mdio e nas tradies islmicas.

    A proposta desta tese surgiu, ento, da experincia e dos relacionamentos

    fraternais obtidos em trs viagens Repblica Islmica do Ir, pas que, ainda mais do

    que a ndia, conquistou meu interesse.

    As impresses, os sabores, os aromas, os sons, nos atingem de maneira

    incontornvel e nos fazem voltar.

    O fascnio pelos pases do Oriente, ao longo da histria, nos revelado atravs

    de narrativas que parecem pertencer, sempre, ao mesmo autor, embora, s vezes, tragam

    cores tendenciosas e preconceituosas, como bem demonstrou Edward Said em seu livro

    clssico Orientalismo.

    Mas foi o ingls Sir Richard Francis Burton, clebre tradutor do Kama Sutra,

    quem melhor expressou este fascnio:

  • 17

    Posso realmente dizer que, de todos os devotos que se agarravam chorando

    cortina ou comprimiam contra a pedra o corao aos pulos, ningum sentiu

    naquele momento uma emoo mais profunda do que o hajji, vindo do extremo

    norte.5

    Burton tambm afirmou que poucos muulmanos contemplam a Kaaba pela

    primeira vez sem medo e temor. Para confessar a humilhante verdade, o sentimento

    deles era o de um elevado arrebatamento religioso, e o meu era o xtase do orgulho

    satisfeito."6

    J o blgaro Elias Canetti, enaltece a lngua por conta de sua viagem ao

    Marrocos:

    O que a lngua? O que ela esconde? O que nos rouba? Ao longo das semanas

    que permaneci no Marrocos, no tentei aprender nem rabe nem os dialetos

    berberes. No quis perder nada do poder extico dos seus gritos. Queria ser

    atingido por seus gritos, tal como eles eram, sem enfraquec-los devido a um

    saber artifical e insuficiente.(...).7

    O antroplogo americano Clifford Geertz expressa o mesmo tipo de sensao

    descrevendo o souk de Sefrou, a milenar cidade marroquina:

    To the foreign eye, a mid-Eastern bazaar, Sefrous like any other, is a tumbling chaos: hundreds of men, this one in rags, that one in silken robe, the next in some outlandish mountain costume, jammed into alleyways, squatting in cubicles, milling in plazas, shouting in each others faces, whispering in each others ears, smothering each other in cascades of gestures, grimaces, glares the whole envelope in a smell of donkeys, a clatter of carts, and an accumulation

    5 Richard BURTON. Personal Narrative of a Pilgrimage to El-Medinah and Meccah. In: Edward RICE. Sir Richard Francis Burton. So Paulo: Companhia das Letras,1998, p.233. A cortina a Kiswa espcie de cortina feita em seda pura negra com inscries do Coro em ouro e prata e que cobre a Caaba na cidade de Meca. A pedra a al-Hajar al-Aswad, famosa pedra negra que se encontra em um dos cantos da Kaaba. O Hajji, vindo do extremo norte o prprio Richard Burton. 6 Ibid, p.219 7 Elias CANETTI. Vozes de Marrakech. Porto Alegre: L&PM, 1987, p.28.

  • 18

    of material objects God himself could not inventory, and some of which He could probably not even identify... sensory confusion brought to a majestic pic.8

    Para finalizar as impresses, recorro ao olhar e ao sentimento do imigrante

    paquistans Jamal Elias, professor de religio no Amherst College de Massachusets:

    A saudade mais profunda que tenho sentido (...) a ausncia de um som, o do chamamento islmico orao, ou adhan. Uma das mais distintas caractersticas de qualquer paisagem social muulmana o fato de cinco vezes por dia se poder ouvir o apelo intenso de uma voz que marca o tempo da orao. (...) Igualmente importante o fato de a lngua rabe utilizada para o adhan evocar uma relao direta com o Coro, que os muulmanos acreditam ser a palavra literal de Deus, e que portanto reafirma a Sua contnua presena na vida humana.9

    Este prlogo objetiva justamente situar o trabalho em relao ao ponto de vista

    de quem escreve. Ou seja, o autor desta tese pertence ao grupo de homens impactados

    pelo universo cultural do Oriente. Portanto, todo o esforo de anlise que segue, a

    partir deste ponto de vista, que por mais que recorra a autores muulmanos com

    vivncia no Oriente, sempre ser a perspectiva do outro.

    Especialmente em se tratando de um brasileiro, ento, a empreitada parece ainda

    mais distante. No entanto, o propsito de trabalhar sobre uma revoluo de fundo

    religioso, a Revoluo Islmica ocorrida no Ir h 27 anos, est mais prxima de ns e

    possui mais conseqncias do que se pode imaginar primeira vista.

    Jomhuri-ye Eslami-ye Iran, ou Repblica Islmica do Ir, representa um ator,

    para usar um termo em voga nas cincias sociais, com papel-chave para as relaes

    Ocidente-Oriente. Desde 1979, quando protagonizou um dos movimentos sociais e

    8 Clifford GEERTZ. Suq: the bazaar economy in Sefrou. In: Clifford GEERTZ, Hildred GEERTZ & Lawrence ROSEN. Meaning and order in Moroccan society Three essays in cultural analysis., p.123-310. Cambridge: Cambridge University Press, 1979, p.129. 9 Jamal J. ELIAS. Islamismo. Lisboa: Edies 70, 2000, p.13

  • 19

    comportamentais mais importantes do sculo XX, o Ir uma pea no jogo poltico-

    econmico internacional cuja aproximao um desafio.

    Barreiras culturais, muito mais agudas do que de fato o so devido a

    preconceitos milenares, tm impedido que se compreenda as atitudes, as reaes deste

    pas no campo poltico. E cabe, principalmente, aos pesquisadores do meio acadmico

    contribuir para que um certo estado latente de incompreenso e ignorncia seja

    combatido. Compreender para aceitar, e aceitar para conviver, parece-me a atitude

    indicada no momento histrico to convulsionado em que vivemos. E se h um divisor

    de guas da relao Oriente-Ocidente representado pelo atentado de 11 de setembro de

    2001 s torres de Nova York, impossvel no relacion-lo com a Revoluo Islmica

    xiita do Ir, como veremos mais adiante.

  • 20

    INTRODUO

    Com o trmino da Guerra Fria e com o desmantelamento da Unio Sovitica,

    muitos cenrios foram projetados, entre eles o fim da Histria.10 Ao mesmo tempo, o

    mundo ocidental surpreendido com um novo vilo, desta vez vindo do Oriente

    islmico.

    O novo inimigo, diga-se, enigmtico e misterioso, pois em nenhum perodo da

    Histria Contempornea o mundo muulmano foi to citado e to pouco compreendido

    como nos dias de hoje.

    Essa "pouca compreenso" no privilgio apenas de indivduos ou de veculos

    de comunicao mas, muitas vezes, de naes cujos rgos oficiais de informao se

    vem completamente alheios s razes de fundo dos acontecimentos. Entre diversos

    exemplos poderamos lembrar as invases do Afeganisto pela ento Unio Sovitica

    em 1979 e pelos Estados Unidos em 2001, e a invaso do Iraque em 2003.

    As conseqncias destas aes tiveram e tm efeitos trgicos e no raro

    incontrolveis. Contudo, os erros parecem se repetir na forma, nos processos e na

    maneira de ignorar a histria, a cultura, a psicologia e a tradio desses povos.

    A partir dos trgicos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 se observou

    uma exploso de interesse sobre o Oriente Mdio e notadamente sobre o universo

    muulmano, inclusive no Brasil.

    10 Francis FUKUYAMA. O Fim da Histria e ltimo homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

  • 21

    Interesse no leva, necessariamente, ao conhecimento e talvez por isso percebeu-

    se uma espcie de frisson nos meios editoriais e miditicos. Livros esgotados h anos

    foram relanados s pressas, autores consagrados ou no das mais diversas reas

    passaram a pontificar sobre o tema e tambm a escrever.

    Ocorreu na verdade um fenmeno mundial que atingiu regies de convvio

    muulmano tradicional como a Europa. Por outro lado, os Estados Unidos da Amrica,

    foco principal dos episdios, parece ter se dado conta, finalmente, que possua uma

    populao muulmana de 6 milhes de crentes. No entanto, parece ser regra geral, uma

    enorme confuso do pblico a respeito dos acontecimentos e dos envolvidos. Num

    sentido ataca populaes de sikhs, bahais, hindus e at mesmo rabes-cristos, e por

    outro, os mesmos grupos acabam sendo objeto de solidariedade, inclusive de governos,

    como se tivessem algum tipo de interesse ou participao nos atentados.

    O contexto em que iremos trabalhar nesta tese complexo. Os fatos ocorreram

    h poucos anos (no h distanciamento histrico ainda), o cenrio idiossincrtico na

    sua essncia, o clima revolucionrio baseado num imaginrio altamente diferenciado

    mesmo no mundo islmico e, por fim, a Revoluo Islmica do Ir representou o fim de

    mais de 2.500 anos de monarquia.

    Todo processo revolucionrio sempre trouxe mudanas abruptas e radicais na

    vida das populaes e dos governos. A primeira foi a agrcola, que aconteceu quando os

    homens domesticaram os animais e aprenderam a cultivar e a colher. Com maior

    controle sobre a existncia e quantidade da sua alimentao, foi possvel ao homem pr

    fim vida nmade e estabelecer comunidades agrrias de forma permanente, da

    decorrendo o surgimento das cidades.

    Por volta de 1450, temos a introduo dos tipos mveis de Gutemberg e a

    formao de um paradigma (texto impresso), que at hoje resiste aos avanos dos

    modernos meios de comunicao como a televiso, o satlite e mais recentemente a

    Internet.

  • 22

    Com a descoberta das mquinas a vapor e da abundncia de mo-de-obra, surge

    por volta do ano de 1760 nas cidades da Inglaterra um novo avano tecnolgico, que

    leva o homem a um estgio inteiramente diferente daquele da sua origem, a Revoluo

    Industrial. Com isto, as bases da indstria e do capitalismo esto postas e da por diante

    ocorre o mesmo com a microeletrnica, a informtica e atualmente com a manipulao

    gentica.

    No poderia ser diferente com a poltica e nem com a comunicao!

    Segundo o Dicionrio de Poltica, o verbete revoluo significa:

    A tentativa acompanhada do uso da violncia, de derrubar as

    autoridades polticas existentes e de as substituir, a fim de efetuar

    profundas mudanas nas relaes polticas, no ordenamento jurdico-

    constitucional e na esfera scio-econmica. 11

    Pois o relacionamento entre poltica e comunicao tem se destacado j alguns

    anos como campo de estudos acadmico, devido sensibilidade das populaes, da

    classe poltica e ao imenso peso da mdia nos tensionamentos polticos. Vera Veiga

    Frana assim afirma:

    No campo da pesquisa em comunicao, uma das reas certamente mais frteis e que mais tem provocado a reflexo dos pesquisadores diz respeito comunicao e poltica, tanto num sentido mais abrangente (a questo do poder) quanto no estudo de situaes e recortes mais especficos (eleies, imagem dos polticos, discursos polticos etc). 12

    Ao longo dos anos da histria moderna, foi se conformando uma evoluo, tanto

    dos marcos tericos da comunicao, bem como da sofisticao dos meios persuasivos,

    o que leva Maria Helena Weber a sustentar que os exerccios de poder nesta era so

    11 Gianfranco PASQUINO, "Revoluo". In: Norberto BOBBIO, et alii. Dicionrio de Poltica. Braslia: UnB, 1992. p.1121 12 www.facom.ufba.br/revistacompos/compol.doc

  • 23

    jogos de combinaes de visibilidade. Assim a aparncia e o estilo vo constituindo a

    realidade e as verdades.13

    J Roberto Romano dialoga com a frase de Hannad Arendt de que as novas

    ideologias polticas esto no plano religioso 14, ao observar que:

    O Imaginrio religioso manipula a esperana e o temor, elementos centrais na dominao das bases populares. Resulta da uma capacidade de persuaso que dificilmente se encontra nas ideologias racionalizadoras do mundo laico. 15

    A presente tese insere-se no debate sobre as relaes entre poltica, comunicao

    e religio no Isl.

    O tema principal da pesquisa a Revoluo Islmica de 1979, marco do

    surgimento do islamismo militante atual e provavelmente uma das principais chaves

    para a compreenso dos conflitos das relaes internacionais contemporneas.

    Este trabalho tem por objetivo geral analisar o percurso da propaganda poltica

    da Revoluo Islmica do Ir no perodo 1978 a 1989, onde sero consideradas as

    especificidades nicas do universo persa e sua insero no contexto muulmano atual.

    O material emprico compreender 11 cartazes selecionados a partir de um

    universo de 30, obtidos em trs viagens ao Ir (1998, 2000 e 2002) em funo da

    delimitao das categorias de anlise.

    O mtodo utilizado foi o modelo de anlise de contedo de Laurence Bardin.

    Segundo Bardin, a anlise de contedo pode ser entendida como:

    13 Maria H. WEBER. Comunicao e Espetculos da Poltica. Porto Alegre: UFRGS, 2000, p. 14. 14 Hannah ARENDT. A Dignidade da Poltica. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1993, p.69 15 Roberto ROMANO, apud Capelato,op.cit

  • 24

    um conjunto de tcnicas de anlise das comunicaes visando obter, por procedimentos sistemticos e objetivos de descrio do contedo das mensagens, indicadores (quantitativos ou no) que permitam a inferncia de conhecimentos relativos s condies de produo/recepo (variveis inferidas) destas mensagens16

    Do ponto de vista analtico, este conceito nos fundamental para a compreenso

    dos elementos constituintes dos cartazes. Ele permitiu explicitar e sistematizar o

    contedo das mensagens e a expresso deste contedo, a partir da definio de

    categorias, que inicialmente foram estabelecidas da seguinte forma:

    As imagens do lder; As imagens dos mrtires; As imagens do povo, As imagens dos inimigos.

    Com a leitura flutuante de Bardin e os demais procedimentos, constatamos que as

    categorias se sobrepunham, gerando uma estrutura nica.

    O captulo 3 procurou traar uma linha compreensiva dos conceitos,

    caractersticas e elementos bsicos que compem o Isl. As diferentes formas de crena

    e uma tipologia das posies polticas completam o captulo.

    Nosso objetivo no captulo 4 foi estabelecer uma base sobre a formao e uma

    sntese da histria do Ir. Foi enfatizado alm da Revoluo, propriamente dita, a figura-

    chave do lder, o Ayatollah Khomeini, a partir de vrios aspectos, como o carisma, o

    exlio, o retorno, etc. Destacamos, tambm , como conseqncia da revoluo, a guerra

    Ir-Iraque.

    No captulo 5 procuramos mostrar, inicialmente, o sentido da imagem no mundo

    monotesta e suas proibies histricas. A parte seguinte trata da imagem no Isl, seus

    usos e proibies.

    16 Laurence BARDIN. Anlise de contedo. Lisboa: Edies 70, 1977, p.42.

  • 25

    O ltimo captulo (6) mostra, descreve e analisa a amostra escolhida para a

    pesquisa dos cartazes da revoluo.

    O ponto-chave de toda a questo da propaganda na revoluo iraniana , sem

    dvida, o paradigma de Karbala. Este aspecto abordado, de forma intrnseca durante

    todo o texto.

    1 - FUNDAMENTAO TERICA

    1.1 - Marcos tericos da comunicao poltica A comunicao de uma maneira geral est relacionada necessidade de

    estabelecimento de contatos entre integrantes de grupos de uma mesma espcie, sendo,

    pois, um fenmeno social por excelncia. Ao longo da histria do homem, estes

    relacionamentos geraram cdigos e sinais que foram se aperfeioando medida em que

    os sentidos buscados era conquistados.

    Embora o imenso refinamento, expanso e alcance das novas tecnologias, da

    reconhecida sofisticao e mesmo otimizao dos processos comunicacionais modernos

    e da quase banalizao do uso da mdia, dois aspectos no mudaram: o homem, como

    produtor das mensagens que surge, portanto, como o elo indispensvel no processo de

    comunicao e os seus processos cognitivos.

    Dentro deste contexto iremos assinalar algumas estruturas tericas necessrias

    aos propsitos deste trabalho.

    Inicialmente devemos considerar o conceito de comunicao poltica como

    inscrito na diversidade das relaes de poder e influncia, observadas nos sistemas

    polticos. A propaganda poltica, por sua vez, estar inserida como um dos instrumentos

    disponveis no universo profissional da comunicao.

  • 26

    J as abordagens tericas sobre comunicao poltica variam muito. Em

    primeiro lugar em relao aos autores, em segundo, aos enquadramentos temticos por

    eles escolhidos.

    Para McNair, "qualquer livro sobre comunicao poltica deveria comear por

    admitir que o termo provou ser muito difcil de ser definido com preciso, basicamente

    porque os componentes desta construo so abertos a uma grande variedade de

    definies."17

    Deste modo, nesta abordagem procuraremos traar uma linha das possibilidades

    e usos tradicionalmente aceitos na rea.

    1.2 - A comunicao poltica em retrospecto

    O nome normalmente relacionado s primeiras estruturas tericas da

    comunicao Aristteles. Sua obra sobre a retrica estabelece como ponto

    fundamental a busca de todos os meios possveis de persuaso:

    Obtm-se a persuaso nos ouvintes, quando o discurso os leva a sentir

    uma paixo, porque os juzos que proferimos variam, consoante

    experimentamos aflio ou alegria, amizade ou dio (...) Enfim, pelo

    discurso que persuadimos, sempre que demonstramos a verdade ou a

    que parece ser a verdade, de acordo com o que, sobre cada assunto,

    suscetvel persuadir.18

    Esta premissa ser vista, mais adiante, como comum a todos os instrumentos

    comunicacionais modernos, indo da mais pura publicidade comercial, passando pelo

    marketing eleitoral e chegando propaganda poltica.

    17 Brian McNAIR. An Introduction to Political Communication. London: Routledge, 2003, p.16-17. 18 ARISTTELES. Arte retrica e arte potica. Rio de Janeiro:Tecnoprint, 1981, p.35

  • 27

    Mas as relaes entre a comunicao e a poltica so um tema clssico em

    sociologia da comunicao, e a partir da publicao de duas obras consideradas

    clssicas, The people's choice19, por LAZARSFELD, BERELSON e GAUDET em

    1944 e Voting20, por BERELSON, LAZARSFELD e MCPHEE em 1954, que

    inaugurada a transdisciplinariedade da rea que nunca mais parou de evoluir.

    A comunicao poltica considerada como um tipo especial de comunicao

    que tem o objetivo de influenciar a ao do interlocutor. Enquanto o processo de

    comunicao comum visa o entendimento mtuo, a comunicao poltica

    empiricamente intencionada, procurando interferir sobre a conduta alheia.

    A definio inicial tomada de Bobbio, que afirma que a comunicao poltica

    pode ser definida como "o conjunto de mensagens que circulam dentro de um sistema

    poltico condicionando-lhe toda a atividade, desde a formao das demandas e do

    processo de converso s prprias respostas do sistema."21

    Para Wolton22, inicialmente a comunicao poltica se preocupou com o estudo

    da comunicao feita a partir do governo para o eleitorado e, depois, com a troca de

    discursos polticos entre a maioria e a oposio. Mais tarde, abarcou o estudo do papel

    da mdia na formao da opinio pblica e, depois, influncia das pesquisas sobre a

    vida poltica. Hoje em dia, engloba o estudo do papel da comunicao na vida poltica

    em sentido amplo, integrando tanto a mdia, como as pesquisas.

    Ou seja, a comunicao poltica tem abrangido todas as reas e

    desenvolvimentos possveis da poltica. Em funo disto, conclui Wolton, a

    comunicao poltica designa qualquer comunicao que tenha por objeto a

    poltica!..23.

    Conforme Matos, o papel fundamental da comunicao poltica : 19 P. F. LAZARSFELD; B.R BERELSON e H. GAUDET. The peoples's choice: how the voter makes up his mind in a presidential campaign. 3 ed. New York: Columbia University Press, 1944. 20 B.R BERELSON, P. F. LAZARSFELD & W. N. McPHEE. Voting: a study of opinion formatiom in a Presidential campaing. Chicago: University of Chicago Press. 1954. 21 Norberto BOBBIO et alii. Dicionrio de Poltica. Braslia: UNB, 1986. 22 http://www.wolton.cnrs.fr/glossaire/port_com_politica.htm 23 Idem.

  • 28

    evitar a recluso do debate poltico em si mesmo integrando temas que permitam flexibilizar o sistema poltico. Assim, a comunicao poltica permite identificar os novos problemas, favorecer sua integrao nos debates polticos, garantindo uma espcie de legitimidade, e facilitar a excluso de temas que deixaram de ser objeto de conflito e a respeito dos quais existe um consenso temporrio. 24

    A autora complementa:

    No entanto, preciso esclarecer que a comunicao no substitui a poltica, mas permite sua existncia. O reconhecimento deste nvel de comunicao poltica sinal de bom funcionamento da democracia e de certa maturidade poltica, no sentido de que a gesto necessariamente contraditria dos interesses integra os dois parmetros complementares da comunicao e da poltica.25

    1. 3 - Aplicaes

    O uso da comunicao poltica em pases com tendncias autoritrias, como o

    caso da Repblica Islmica do Ir, pas-objeto deste estudo, encontra respaldo nas

    posio de Weber onde neste tipo de sistema, a comunicao mascara, amplia, reduz e

    omite informaes, verdades e realidades, e controla os meios de comunicao,

    produzindo informaes e propaganda.26

    Este posicionamento apoiado tambm por Pars i Maicas, que diz que os

    regimes ditatoriais ou autoritrios "tratam de proteger a ideologia do grupo poltico

    dominante, com seus correspondentes interesses"27. Ou seja, toda estrutura

    informacional transformada em viso propagandstica do regime, utilizando

    igualmente a censura, a desinformao e o controle dos principais meios de

    comunicao.

    24 Heloiza MATOS. Abordagens da Comunicao Poltica no Brasil e na Frana - Mudanas scio-polticas e formas de mediao. So Paulo: USP/ECA, 1996. p.22 25 Ibid. 26 Maria Helena WEBER. Comunicao e espetculos da poltica. Porto Alegre: EDUFRGS, 2000. p. 140 27 Manuel PARS i MAICAS. Introduccin a la comunicacin social. Ed. ESRP-PPU. Barcelona, 1992, p.273

  • 29

    Maria Helena Capelato faz referncia, igualmente, ao fato de que "nos regimes

    autoritrios que se fundamentam na poltica de massas, a teatralizao tem papel mais

    importante: o mito da unidade e a imagem do lder atrelado s massas convertem o

    cenrio teatral especialmente adequado para o convencimento. O imaginrio da unidade

    mascara as divises e os conflitos existentes na sociedade." 28

    Pars i Maicas, por sua vez, conclui que as mensagens da comunicao poltica

    alm de ressoarem publicamente, sempre carregam componentes persuasivos e at

    manipulatrios. Por isto, "assumem, muitas vezes o aspecto de informao direcionada,

    ficando difcil diferenci-la da publicidade ou mesmo da propaganda poltica." 29

    Pelo seu carter conclusivo, utilizaremos como fechamento do tema a posio de

    Matos:

    Assim, numa sociedade mediatizada, a comunicao no ocorre somente entre sujeitos, mas torna-se pblica com a intermediao das mdias. Como conseqncia, a comunicao poltica um espao de intercmbio de discursos controvertidos, ocupado por aqueles que detm a legitimidade para express-los publicamente: os polticos, os jornalistas e a opinio pblica, por meio das pesquisas de opinio. 30

    1. 4 - A Propaganda O termo propaganda complexo e polissmico, comportando diversidades

    conceituais na literatura especializada ou no. Discusses e confuses acerca das

    diferenas com a publicidade proliferam at hoje, principalmente no Brasil.

    28 Maria Helena R. CAPELATO. Multides em Cena propaganda poltica no Varguismo e no Peronismo. Campinas. So Paulo: Papirus, Fapesp. 1998, p. 57 29 Manuel PARS i MAICAS, op. cit., p. 276. 30 Heloiza MATOS. Mdia, Eleies e Democracia. So Paulo: TT Scritta, 1994, p.21.

  • 30

    A nfase que utilizaremos aqui de que a propaganda guarda uma relao direta

    com as questes ideolgicas, governamentais e religiosas, enquanto a publicidade est

    ligada objetivamente s questes comerciais e de marketing31

    1. 5 - Origem Propaganda o gerndio do termo latim propagare, derivado de pangere

    (plantar) e significa propagar, estender, aumentar, multiplicar, etc. O seu uso inicial est

    relacionado com a agricultura (reproduo de mudas). Geralmente aplicado a

    princpios e idias.

    O termo constitui, tambm, um reducionismo da expresso Sacra congregatio

    de propaganda fide (Congregao para a Propaganda da F), que foi um colegiado

    cardinalcio institudo pelo papa Gregrio XV em 162232, atravs da bula Papal

    Inscrutabili Divine. Esta estrutura estava encarregada de estabelecer as normas de

    difuso da doutrina catlica e integrava o aparato ideolgico da Contra-Reforma33

    Segundo Busino.34, a partir deste documento papal que pela primeira vez

    propaganda tem relacionada ao seu significado a idia de divulgao de informaes na

    inteno de formao de um consenso

    31 No Brasil a propaganda eleitoral denominada, indevidamente, de marketing eleitoral. O marketing , tem um espectro de abrangncia muito maior, sendo uma estrutura gerencial baseada na administrao do composto de marketing (Produto, Preo, Ponto-de-Venda e Comunicao) e subordinado a uma contexto denominado planejamento empresarial. 32 J.B. PINHO. Propaganda Institucional Usos e funes da Propaganda em Relaes Pblicas. So Paulo: Summus, 1990, p.20 33 A Contra-Reforma foi um movimento da Igreja Catlica no sculo XVI que surge como resposta s crticas dos humanistas e de diversos membros da Igreja e de importantes Ordens Religiosas, tais como os Franciscanos, Dominicanos e Agostinhos, que apelavam moralidade e ao regresso pureza e austeridade primitivas. Alm disso, a Contra-Reforma surge tambm como resposta ao avano da Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero. 34 G. BUSINO. Propaganda. In: Roberto ROMANO (Dir.). Enciclopdia Einaudi. Torino: Giulio Einaudi, v. 11, 1980. p.255 256

  • 31

    J Domenach considera o surgimento da propaganda como simultneo s

    disputas polticas:

    Foram, por certo, uma espcie de campanha de propaganda, aquelas movidas por Demstenes contra Filipe ou por Ccero contra Catilina. Assaz consciente dos processos que tornam amados os chefes e divinizam os grandes homens, Napoleo compreendeu perfeitamente que um governo deve preocupar-se em obter o assentimento da opinio pblica: "Para ser justo, no suficiente fazer o bem, igualmente necessrio que os administradores estejam convencidos." (...) Polticos, estadistas e ditadores, de todos os tempos, procuraram estimular o apego s suas pessoas e a seus sistemas de governo. 35 Muitos dos instrumentos de propaganda utilizados na antiguidade romana36, tais

    como as moedas com a efgie do imperador, as aclamaes da multido, a saudao do

    brao estendido, os cartazes (titulus) utilizados em desfiles, ou pintados em paredes

    (Pompia), relatados por Tchakhotine37, foram largamente empregados por Hitler, onde

    o exemplo mais explcito o filme O Triunfo da Vontade (Triumph des Willens, 1934),

    de Leni Riefenstahl.

    1. 6 - Expanso do conceito

    No Dicionrio de Poltica o verbete propaganda considerado como "um

    esforo sistemtico e consciente destinado a influenciar opinies e aes de um certo

    pblico." 38

    Em termos histricos, o desenvolvimento do termo propaganda aconteceu de

    fato durante a chamada revoluo da imprensa de tipos mveis de Gutemberg e teve um

    35 Jean-Marie DOMENACH. A Propaganda Poltica. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1955. p. 8 9 36 Ver Ana Teresa Marques Gonalves. Poder e Propaganda no Perodo Severiano: A construo da Imagem Imperial. In: POLITEIA: Hist. e Soc. Vitria da Conquista. v. 1 n. 1 p. 53-68 .2001, disponvel em: http://www.uesb.br/politeia/v1/artigo_03.pdf 37 Sergei TCHAKHOTINE. A mistificao das massas pela propaganda poltica. p. 309-310 38 Norberto BOBBIO et alii. op.cit. p. 1018

  • 32

    grande impacto no mundo ocidental. Mas foi a partir da Revoluo Francesa39 que se

    pde utilizar a palavra propaganda relacionada diretamente poltica40.

    Sant'Anna cita como recursos propagandsticos, os instrumentos e aes da

    Revoluo Francesa, inditos at ento, como "o hino (La Marseillaise), o barrete frgio,

    a festa da federao, a do Ser Supremo, a rede dos clubes jacobinos, a marcha sobre

    Versailles, as manifestaes de massa contra as Assemblias, o cadafalso nas praas

    pblicas, as crticas violentas e as injrias." 41 Acrescentaramos, ainda, a partir de

    Baczko42, a plantao de rvores da liberdade, o olho da vigilncia, o nvel (estes dois

    de origem manica), a lana, as cores, etc.

    O termo propaganda passa, ento, a ser usado pelas organizaes cujos

    objetivos eram a difuso de doutrinas polticas ou religiosas. Nas guerras do sculo XX,

    devidamente estruturadas nas novas tecnologias de comunicao da poca, a

    propaganda foi muito utilizada para motivar as tropas militares e para a desmoralizao

    dos inimigos.

    Pinho segue a mesma orientao e relaciona propaganda divulgao de idias,

    classificando-a como "o conjunto de tcnicas e atividades de informao e persuaso

    destinadas a influenciar, num determinado sentido, as opinies, os sentimentos e as

    atitudes do pblico receptor."43

    Quintero considera a propaganda como uma atividade comunicativa de carter

    informativo, contingente e de atualizao, de acordo com o suporte empregado,

    buscando como finalidade principal a persuaso, o convencimento e, inclusive, a

    resposta ativa44.

    39 Armando SANT'ANNA. Propaganda: Teoria, Tcnica e Prtica. So Paulo: Pioneira-Thompson Learning. 2002, p.48 40 Ver James A. LEITH. The Idea of Art as Propaganda in France, 1750-1799: A Study in the History of Ideas. Toronto: University of Toronto Press, 1965. 41 Armando SANT'ANNA, op. cit. p. 48. 42 Bronislaw BACZKO. Los imaginrios sociales Memrias y esperanzas colectivas. Buenos Aires: Nueva Visin, 2005, op. cit. p.42. 43 J.B. PINHO, op.cit., p.22. 44 Alejandro Pizarroso QUINTERO. Histria de la Propaganda. Madrid: Eudema, 1993. p.17

  • 33

    Para Laswell, a propaganda rima com democracia, e constitui o nico meio de

    suscitar a adeso das massas; alm disso, mais econmica que a violncia, a corrupo

    e outras tcnicas governamentais desse gnero.45

    J Pars i Maicas considera a propaganda como uma forma dirigida de

    comunicao aliada a uma determinada ideologia e/ou interesse, com o objetivo de

    cooptar adeptos ou simpatizantes. Ela utiliza, basicamente, os processos persuasivos, e

    se for o caso, tambm a manipulao. O autor ainda relaciona a propaganda aos

    processos de desinformao, possuindo limites pouco definidos, alm de meio para

    alterar as relaes de poder em um grupo, modificando as atitudes atravs de

    smbolos.46

    Capelato, por sua vez, introduz o termo seduo no conceito de propaganda

    poltica:

    (...) vale-se de idias e de conceitos, mas os transforma em imagens e smbolos; os marcos da cultura so tambm incorporados ao imaginrio que transmitido pelos meios de comunicao. A referncia bsica da propaganda a seduo, elemento de ordem emocional de grande eficcia na atrao das massas.(...) Define-se o objeto propaganda poltica como um estudo de representaes polticas. Tal perspectiva de anlise relaciona-se diretamente com o estudo dos imaginrios sociais, que constituem uma categoria das representaes coletivas. 47

    Concluiremos esta abordagem conceitual com a opinio de Chomsky, onde ele

    afirma:

    A propaganda de estado, quando apoiada pelas classes cultas e quando

    nenhuma divergncia permitida, pode ter um grande efeito. Foi uma

    45 Apud Michle MATTELART. Histria das Teorias da Comunicao. So Paulo: Loyola, 2000, p.37. 46 Manuel PARS i MAICAS, op. cit, p. 186-187. 47 Maria Helena R. CAPELATO, op. cit. p. 36.

  • 34

    lio aprendida por Hitler e vrios outros e tem sido aplicada at os

    dias de hoje. 48

    1. 7 - Leis e tcnicas

    Embora, muitas vezes, seja difcil compreender e acompanhar o processo

    evolutivo e a sofisticao crescente da tecnologia, inegvel que a essncia das pessoas

    e por conseqncia, da propaganda no mudou.

    A partir da, no se pode ter uma viso behaviorista do processo, no sentido de

    padronizao antecipada de atitudes. Muito menos podemos estabelecer regras

    imutveis na propaganda como se houvesse uma norma-padro comportamental.

    Segundo Goebbels, "A propaganda ilimitada em suas variaes, em sua flexibilidade

    de adaptao e em seus efeitos.49

    Por outro lado, a reao dos seres humanos impossvel de ser antecipada com

    preciso. Os mtodos mais modernos e sofisticados de marketing aplicados rea de

    comportamento, sempre consideram que o resultado final , na melhor das hipteses,

    uma tentativa de reduo de erros dos resultados da pesquisa.50

    Mesmo assim, os regramentos, as tticas e as estratgias proliferam. Em funo

    disto, "leis" e tcnicas da propaganda, via de regra sempre as mesmas, so sobrepostas,

    tanto nos manuais tcnicos, como na maioria dos livros de teor mais culto.

    Aparentemente, Jean-Marie Domenach o grande inspirador de todos, seguido por

    Tchakhotine. A propsito, para corroborar a idia, cite-se o lanamento do livro do

    48 Noan CHOMSKY. Controle da Mdia Os espetaculares feitos da Propaganda. Rio de Janeiro: Graphia, 2003. p.11 49 Apud Jean-Marie DOMENACH, op. cit., p. 52. 50 Para maiores detalhes ver Elisabeth HIRSCHMAN. Interpretative consumer research. Provo: Association for Consumer Research, 1989.

  • 35

    professor Quintero da Universidade Complutense, com o sugestivo ttulo Nuevas

    Guerras, Vieja Propaganda51.

    Mas para Domenach, existem 5 leis passveis de deduo, a partir da histria

    recente da propaganda poltica52:

    Lei da simplificao e do inimigo nico;

    Lei da ampliao e desfigurao;

    Lei da orquestrao;

    Lei da transfuso,

    Lei de unanimidade e de contgio.

    Considerando o aparato terico aqui apresentado, chamamos a ateno para o fato

    de que a propaganda poltica analisada neste trabalho est associada, de forma

    inextricvel, uma realidade revolucionria, de fundo profundamente religioso. Portanto,

    e mesmo que os instrumentos de persuaso possam ser os mesmos da propaganda laica e

    ocidental, preciso nunca perder de vista a perspectiva do impondervel, representado,

    neste caso, pelo islamismo xiita.

    51 Alejandro Pizarroso QUINTERO. Nuevas Guerras, Vieja Propaganda (de Vietnan a Irak). Madrid: Ctedra. 2005. 52 Jean-Marie DOMENACH, op.cit. p.55.

  • 36

    2 - Procedimentos metodolgicos

    Este captulo pretende descrever os procedimentos e atividades utilizadas

    durante a realizao da presente pesquisa.

    Da mesma forma discutido, num primeiro momento, as razes pela opo da

    pesquisa qualitativa e pelo conjunto de recursos da anlise de contedo, a partir de

    Bardin.

    Na seqncia, o mtodo descrito e feita a exposio dos procedimentos da

    pesquisa.

    2.1 - Introduo

    A grande ferramenta do progresso cientfico a pesquisa. Para Ander Egg (apud

    Lakatos e Marconi), a pesquisa um "procedimento reflexivo sistemtico, controlado e

  • 37

    crtico, que permite descobrir novos fatos ou dados, relaes ou leis, em qualquer

    campo do conhecimento"53.

    Para Ferrari, a cincia pode ser identificada a partir de trs critrios: a

    confiabilidade do seu corpo de conhecimento, sua organizao e seu mtodo.

    Lakatos e Marconi definem a escolha do mtodo como a deciso mais

    importante do desenvolvimento de qualquer pesquisa. Ou seja, a determinao do

    mtodo o ponto fundamental do trabalho cientfico. Com isto no queremos afirmar

    que o mtodo acabe se tornando mais importante que o prprio problema de pesquisa

    mas se constituir em escolha de fundamental importncia e de relao direta com o

    objeto.

    2.2 - Mtodo

    A palavra mtodo derivada do grego e significa ao longo do caminho, ou

    seja, formas de proceder durante a jornada. Segundo Ferrari:

    Na cincia, os mtodos constituem os instrumentos bsicos que ordenam

    de incio o pensamento em sistemas, traam de modo ordenado a forma

    de proceder do cientista ao longo do percurso para alcanar um objetivo

    pr-estabelecido. 54

    53 E. M.LAKATOS e M. de MARCONI A. Metodologia cientfica. So Paulo: Atlas, 1998, p.33 54 Alfonso Trujillo FERRARI. Metodologia da Pesquisa Cientfica. So Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1982.

  • 38

    Bunge considera o mtodo cientfico como trao caracterstico da cincia, sem o

    qual tornar-se-ia incompreensvel falar de cincia, porque no poderia ser colocado em

    evidncia o conjunto de seqncias operacionais sustentadas numa sistemtica

    manipulao para alcanar determinado fim cientfico. 55

    Lakatos e Marconi, novamente, estabelecem que o mtodo pode ser definido

    desde a proposio do problema, da formulao das hipteses e da delimitao da

    amostra, como o conjunto das atividades sistemticas e racionais que, com maior

    segurana e economia, permite alcanar o objetivo conhecimentos vlidos e

    verdadeiros traando o caminho a ser seguido, detectando erros e auxiliando a

    deciso dos cientistas. As autoras definem ainda que a seleo do instrumental

    metodolgico est diretamente relacionado com o problema a ser estudado56

    Rudio lembra que, como a pesquisa tem como objetivo a resoluo de um

    problema, o mtodo serve de guia para o estudo do referido problema, constituindo-se

    no caminho a ser percorrido e na elaborao organizada de procedimentos de orientao

    ao pesquisador. 57

    2.3 - Classificao do Estudo

    Pelas caractersticas intrnsecas e complexas do tema, teremos um universo que

    no se prestaria a uma anlise meramente quantitativa, optou-se, pois, por um estudo do

    tipo qualitativo, ou no dizer de Minayo: "O universo de significados, motivos,

    aspiraes, crenas, valores e atitudes, o que corresponde a um espao mais profundo

    das relaes, dos processos e dos fenmenos que no podem ser reduzidos

    operacionalizao de variveis.58

    55 Mrio BUNGE. La Investigacin Cientfica. Barcelona: Ediciones Ariel, 1969.. p. 29 56 E. M.LAKATOS e M. de MARCONI. Op. cit. p. 35. 57 Franz Victor RUDIO. Introduo ao projeto de pesquisa cientfica. Petrpolis: Vozes, 2004.p. 15 58 Maria Ceclia de Souza MINAYO. O desafio do conhecimento cientfico: pesquisa qualitativa em sade. So Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco, 1993. p.22

  • 39

    2.4 - Problema de Pesquisa

    O problema de pesquisa deste trabalho diz respeito s representaes imagticas

    da Revoluo Islmica do Ir, captadas atravs de uma amostra dos cartazes produzidos

    no perodo de 1978 a 1989 pelo Sazeman-e Tablighat-e Islami (Organizao Islmica de

    Propagao).

    Neste sentido, procurou-se dar respostas s seguintes perguntas:

    Qual o papel atribudo aos cartazes no contexto da relao Revoluo-Imagem ?

    Quais as caractersticas preponderantes das imagens ?

    Sero considerados os aspectos de proibio de culto das imagens no Isl como foco

    central.

    Com o intuito de dar respostas a estas e outras indagaes, optou-se por trabalhar

    com a estratgia metodolgica da anlise de contedo, captando as possibilidades do

    no-verbal e dos usos da imagem nos meios de comunicao

    Deste modo, a tcnica de anlise de contedo foi escolhida como a mais adequada

    para o propsito desejado.

    2.5 - Anlise de Contedo

    Como qualquer tcnica metodolgica, a anlise de contedo tem evoludo

    atravs do tempo, assim como a abrangncia do seu conceito. um mtodo de anlise

  • 40

    de dados em que se pode utilizar diferentes tcnicas para o tratamento do material

    coletado.

    Como prtica no formalizada foi desenvolvida desde pocas ancestrais, quando

    os antigos se dedicavam interpretao de textos sagrados. Esta atividade foi

    denominada de hermenutica. A sistematizao do mtodo ocorre em 1926, quando o

    curso de jornalismo da Universidade de Colmbia estabeleceu como prtica o estudo

    do contedo dos jornais, atravs de indicadores do tipo inventrio de manchetes, grau

    de sensacionalismo, etc.

    O primeiro grande nome da tcnica o de Harold Dwight Lasswell, que se

    voltou para as anlises de textos da imprensa e de propaganda desde 1915, publicando

    em 1927 Propaganda Technique in the World War.

    Do ponto de vista metodolgico, houve um grande impulso na dcada de 40 e

    50, do sculo passado, quando Berelson e Lazarsfeld publicaram o livro The Analysis of

    Communication Content, que trazia de modo sistemtico as regras de anlise.

    Em termos gerais, a anlise de contedo um mtodo que busca descobrir a

    significao de uma mensagem, seja esta um texto, uma histria de vida, uma lei, uma

    imagem, etc. Mais concretamente, se trata de um conjunto de tcnicas59 que consiste em

    classificar e ou codificar os diversos elementos de uma mensagem em categorias, com a

    finalidade de fazer surgir da melhor forma o sentido da comunicao.

    Para Wilson Corra da Fonseca Jnior, a anlise de contedo importante

    porque:

    A formao do campo comunicacional no pode ser compreendida sem se fazer referncia anlise de contedo. Desde sua presena nos primeiros trabalhos da communication research s recentes pesquisas sobre novas tecnologias, passando pelos estudos culturais e de recepo, esse mtodo tem demonstrado grande capacidade de adaptao aos

    59 Augusto Nibaldo Silva TRIVIOS. Introduo pesquisa em cincias sociais. So Paulo: Atlas, 1987, p.160

  • 41

    desafios emergentes da comunicao e de outros campos do conhecimento. 60

    Richardson entende que a anlise de contedo fundamental para o estudo das

    motivaes, das atitudes, dos valores, das crenas e tendncias , alm de ter o campo de

    aplicao limitado apenas pela imaginao do pesquisador.61.

    Em princpio, a anlise de contedo pode ser aplicada a qualquer comunicao,

    seja esta lingstica ou no, por exemplo, filmes, representaes imagticas,

    comportamentos, etc. Como caracterstica, a anlise de contedo realiza uma descrio

    analtica, com objetividade cientfica, propiciando a compreenso qualitativa do

    contedo do objeto.

    Enquanto tcnica de anlise de dados, a anlise de contedo foi a que nos

    pareceu mais apropriada ao tipo de investigao que desenvolvemos, j que ela parte do

    pressuposto de que, por trs do discurso aparente, esconde-se um sentido que convm

    descobrir.

    Dentre as diversas tcnicas de anlise de contedo, optamos pela de Laurence

    Bardin, por representar, pela riqueza de princpios, configurao e detalhes, o estado da

    arte da tcnica.

    Para Bardin a anlise de contedo recobre um conjunto de tcnicas de anlise

    das comunicaes, visando a obter por procedimentos sistemticos e objetivos de

    descrio do contedo das mensagens, indicadores (quantitativos ou no) que permitam

    a inferncia de conhecimentos relativos s condies de produo/recepo (variveis

    inferidas) destas62.

    Bardin esclarece ainda que :

    60Jorge DUARTE e Antonio BARROS (org). Mtodos e Tcnicas de Pesquisa em Comunicao. So Paulo: Atlas, 2005, p.280 61 Jarry RICHARDSON et alii. Pesquisa social: mtodos e tcnicas. 2.ed. So Paulo: Atlas, 1999. p.223 62 Laurence BARDIN. Anlise de contedo. Lisboa: Edies 70, 1977, p.31.

  • 42

    No se trata de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com

    maior rigor, ser um nico instrumento, mas marcado por uma grande

    disparidade de formas e adaptado a um campo de aplicao muito vasto:

    as comunicaes(...) Em ltima anlise, qualquer comunicao, isto ,

    qualquer transporte de significaes de um emissor para um receptor

    controlado ou no por este, deveria poder ser escrito, decifrado pelas

    tcnicas de anlise de contedo.63

    63 Idem, p. 31-32

  • 43

  • 44

    3. O Isl

    O Isl a mais nova das religies monotestas reveladas. Surge na regio do

    Hedjaz64 no Sculo VII num cenrio dominado por povos nmades estruturados na

    forma de tribos e cls. um territrio onde reina o politesmo, mas o Judasmo e o

    Cristianismo l tambm so encontrados. Nessa poca, os territrios rabes faziam

    fronteira com os imprios bizantino (cristo) e persa (zoroastro), que disputavam o

    monoplio comercial na regio.

    A cidade de Meca representava a encruzilhada das caravanas de mercadores,

    alm de ser um grande centro de comrcio e de peregrinao, pois abrigava a Caaba,

    que era o ponto de adorao a 360 deuses e pedra negra (Hajar el Aswad).

    Para os muulmanos, o responsvel pela recepo da mensagem divina o

    Profeta Muhammad, filho de Abddallah e Amina. Conhecido como o mensageiro,

    Muhammad nasceu por volta do ano 570 no cl Banu Hachim, integrante da tribo dos

    coraixitas. A tradio islmica considera que o texto do Coro foi ditado pelo Arcanjo

    Gabriel durante 22 anos e representa a verso definitiva da revelao divina. A

    conseqncia direta o fato do Profeta ser considerado o ltimo mensageiro, o selo da

    cadeia que inicia com Ado (Adam), Abraho (Ibrahim), Moiss (Musa), e Jesus de

    Nazar (Isa). O perodo anterior a Muhammad denominado jahiliyya e considerada

    64 Hedjaz ou Hijaz: parte da Arbia, na costa do Mar Vermelho, onde se situam as cidades de Meca, Medina e Badr. In:John Alden WILLIAMS. Islamismo. Rio de Janeiro: Zahar. 1971.

  • 45

    uma poca confusa, no sentido da deturpao e incompletude dos textos sagrados, ou

    no dizer de Hourani "ignorncia da verdade religiosa"65.

    No entanto, a este perodo poderamos relacionar pelo menos duas religies

    monotestas: O Masdesmo (Ahura Masdah), cuja denominao grega Zoroastro, que

    como j referimos est presente at hoje no Ir, inclusive possuindo representao no

    parlamento, e a religio de Mani (Manes, Maniqueus), fundador do maniquesmo, cujo

    processo de revelao e ao se d atravs da participao de um anjo (at-Taum) de um

    texto sagrado, nos mesmos moldes do Isl.

    3.1 Etimologia

    A palavra original rabe Islam derivada da quarta forma verbal da raz

    slm: aslama (submeter-se, entregar-se) e seu particpio presente muslim (aquele

    que se submete). Desta raiz originaram-se as palavras paz, pureza e obedincia.

    Em funo de divergncias terminolgicas entre mdia, pblico e mesmo,

    inmeros autores, adotaremos nesta tese a seguinte padronizao terminolgica,

    sugerida por Demant66:

    O termo muulmano estar associado forma de um complexo fenmeno

    sociolgico, enquanto islmico deve ser relacionado especificamente religio.

    J islamismo no dever ser considerado como sinnimo de Isl, mas como um

    movimento religioso ideolgico radical (fundamentalismo religioso), sendo seus

    membros chamados de islamitas.

    65 HOURANI, Albert. Uma Histria dos Povos rabes. So Paulo: Companhia das Letras.1999. p.442. 66 DEMANT, Peter. O Mundo Muulmano. So Paulo: Contexto. 2004. p.14-15.

  • 46

    O termo Isl, por sua vez, pode ser utilizado de duas maneiras: ou define a rea

    geogrfica e civilizacional onde a religio islmica predominante (mundo

    muulmano), ou, num sentido mais amplo, refere-se religio, civilizao.

    O que se deve evitar, do ponto de vista islmico, a denominao

    maometanos para os muulmanos, ou ento utilizar "religio de Maom" para o Isl.

    Isto demonstra para um muulmano, letrado ou no, um desconhecimento profundo da

    religio, j que Maom (Muhammad) apenas considerado como um profeta, um

    mensageiro e no um santo ou uma figura personalista como Jesus Cristo. famosa esta

    forma equivocada num dos textos de Hegel67.

    Outro aspecto essencial que se deve destacar quanto a uma idia de

    homogeneidade da cultura muulmana como sendo um bloco nico e hermtico.

    A populao muulmana, hoje, atinge a cifra de 1,3 bi1ho fiis, ou seja da populao

    mundial, segundo.

    Devemos considerar, ainda, outros aspectos, tais como cultura, regionalismos,

    tradies, ritos, nacionalismos, etc. O nmero de pases de maioria muulmana chega a

    57. Outros constituem enormes minorias, como, por exemplo, a ndia, a Frana, a

    Inglaterra e os Estados Unidos.

    indispensvel, tambm, mostrar que existem divises dentro da linha

    estritamente religiosa, a partir dos grupos e das escolas jurdicas. A primeira admite a

    67 Georg Wilhelm Friedrich HEGEL. Introduo s lies sobre histria da filosofia. Porto: Porto Editora, 1995.

  • 47

    diviso da seguinte forma: 84% so sunitas, 15% xiitas, restando 1% para os drusos,

    ismaelitas, caridjitas, ibaditas e sufis, entre outros.

    A segunda inclui as cinco escolas jurdicas clssicas: sunita, hanafita, malequita,

    chafita e hanbalita.

    Portanto, um cruzamento mesmo superficial dessas variveis nos mostra que a

    Ummah nos apresenta um universo gigantesco de diversidades e de possibilidades. O

    Isl no apenas uma religio, mas um sistema que abarca todos os momentos da vida

    dos crentes e da comunidade, ou seja, o credo define as formas de conduta. Como

    observa Campos & Bartholo Jr: "O Isl afirma que no existe crena verdadeira que no

    se transforme em inspirao normativa do viver. O contrrio no seno hipocrisia"68.

    Em funo disso que, teoricamente, seria inseparvel a religio, a lei e a

    poltica.

    Na prtica, observa-se muitas situaes conflitantes e diferenciadas,

    confirmando mais uma vez que a aplicao do Isl em qualquer territrio geogrfico ou

    pas resulta numa complexa e, s vezes, nica combinao de aspectos indissociveis

    de cultura, tradio, etnia, lngua, escola jurdica e constituio.

    68 BARTHOLO Jr., Roberto S. & CAMPOS, Arminda Eugenia (orgs). Isl - O Credo a Conduta . Rio de Janeiro: Imago Ed.: ISER, 1990.p 9

  • 48

    Vejamos alguns exemplos. Jordnia, Turquia, Arglia, Lbano, Paquisto,

    Indonsia e Azerbaijo mantm um sistema constitucional completamente ocidental,

    no s separando religio e estado, como proibindo intromisses da religio na poltica.

    O Ir, apesar de ser uma repblica teocrtica, possui uma constituio que prev

    e realiza eleies livres.

    Por outro lado, fortes traos culturais definem padres ditatoriais e machistas

    num grande nmero de pases, como por exemplo as monarquias absolutistas do Golfo

    Prsico, a Sria, as estruturas de cls (Afeganisto, Iraque), as tribos (Tanznia, Senegal,

    Mali, Somlia, Gmbia, Mauritnia) que utilizam a religio, muitas vezes, como

    fachada para a manuteno do poder.

    Exemplos clssicos de procedimentos tribais, erroneamente associados religio

    so a ablao (extirpao do clitris) e a infibulao (operao que consiste em fechar

    os orifcios genitais por uma sutura ou pela introduo de anel ou colchete a fim de

    impedir relaes sexuais69).

    Exemplo de procedimento derivado da tradio o uso do vu, embora

    identificado como um dos mais visveis smbolos islmicos, o seu uso obrigatrio no

    consta de nenhuma parte do Coro.

    Para concluir, podemos inferir ainda que as possibilidades de interpretao de

    um texto escrito h 1400 anos atravs de uma lngua extremamente complexa e baseada

    69 Dicionrio Eletrnico Houaiss da Lngua Portuguesa. Antnio Houaiss. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001. CD-ROM.

  • 49

    em metforas, como o rabe clssico, do margem a inmeras possibilidades de leitura

    permitindo uma prtica muitas vezes completamente equivocada. Prova disso so as

    verdadeiras disputas entre os tradutores do Coro, cada um afirmando que a sua verso

    a que mais se aproxima da revelao divina.

    3.2 Xiitas X sunitas

    Para algum que observasse superficialmente o comportamento de sunitas e

    xiitas, veria que os primeiros rezam cinco vezes e os outros rezam trs vezes ao dia,

    condensando as oraes. Tambm poderia observar que a maneira de uns e outros

    fazerem as ablues antes da reza segue um ritual um pouco diferente.

    Estes, no entanto, so pequenos detalhes que no afetam o modo de pensar de

    cada grupo. A chave para a compreenso das diferenas entre sunitas e xiitas talvez

    esteja mesmo no termo disputa.

    Muhammad, ao morrer (632 d.C.), no deixou filho varo, ou seja, um sucessor

    direto. A cidade de Medina colocou em seu lugar Abu Bakr, que ganhou o ttulo de

    califa (sucessor/vigrio). Abu era genro de Muhammad e conquistou toda a Arbia,

    atravs de batalhas sangrentas. Foi tambm o responsvel pelo primeiro levantamento

    de todos os escritos atribudos ao Profeta.

    Com a morte deste genro, a chefia dos muulmanos passou para um califa, que

    por sua vez morreu assassinado. Foi seguido de outros califas at a ascenso de um

    segundo genro, Ali, primo de Muhammad e casado com a filha preferida do profeta,

    Ftima.

    Ali assassinado e os trs califas que o sucedem na liderana do islamismo

    (Abu Bakr, Omar e Otman) so rejeitados pelos seguidores de Ali (Shia at-Ali), os

    xiitas, pois para eles somente um nico descendente de Muhammad poderia vir a ser o

  • 50

    chefe supremo dos muulmanos. O maior grupo surgido nesta ciso foi o dos sunitas, os

    que seguem as sunas, coletnea das obrigaes do Coro.

    Para os xiitas, so 12 os continuadores consangneos de Muhammad, os 12

    ims70.

    O conceito de xiita, no islamismo, tido muitas vezes como o seguidores dos

    12, h porm outras correntes, como a ismailitas "dos 7", estes aceitam somente at a

    stima gerao na sucesso de Muhammad. Todos, no entanto, esto de acordo que os

    sunitas usurparam a liderana dos legtimos descendentes de Maom.

    Khomeini, como veremos mais adiante, pertencia corrente do Xiismo

    Duodecimalista, era seguidor dos 12 ims, os seres infalveis, escolhidos por Deus para

    governar os homens.

    As crenas e prticas dos xiitas possuem duas classificaes:

    Usool-ad-Deen (Razes da religio) so as 5 crenas xiitas :

    A unicidade de Deus

    A justia divina

    A crena nos Profetas

    O Imanato

    A ressureio

    Furoo-ad-Deen (galhos da religio) - so as 10 prticas xiitas

    A prece 5 vezes ao dia

    O Jejum durante o ms de Ramadam

    A Hajj a peregrinao Meca

    70 Mais detalhes mais adiante no captulo A Revoluo.

  • 51

    Zakat - a esmola obrigatria anual.

    Khums - um outro tipo de imposto

    Jihad - esforo no sentimento de fortalecer a religio

    Amr-Bil-Ma'roof - desfrutar o que permitido

    Nahi-Anil-Munkar - proibir o que errado

    Tawalla Reverenciar os 12 ims

    Tabarra - Odiar os inimigos dos 12 ims

    Taghiyeh - dissimulao religiosa para salvar a vida

    Para os sunitas, so cinco os principais pilares do Isl. Segundo Roger Garaudy

    na obra Promessas do Isl71, podem ser assim resumidos:

    1. Profisso de F: Existe um nico Deus e Maom seu profeta. Nenhuma outra

    divindade seno Deus: Maom, seu mensageiro. O universo inteiro ganha assim um

    sentido, o absoluto revelando-se no relativo sob a forma de "sinais", de smbolos. A

    natureza e os homens, do mesmo modo que a palavra do Alcoro, eram uma apario,

    uma manifestao de Deus. "No h nada que no cante seus louvores, mas vocs no

    compreendem seu canto" (17, 44).

    2. Orao: a prece e a participao consciente do homem no canto de louvor que liga

    todas as criaturas ao seu criador. "Volte a si mesmo para encontrar toda a existncia

    resumida em voc.

    A prece integra o homem de f a essa adorao universal: realizando-a, com o rosto

    voltado para Meca, todos os muulmanos do mundo e todas as mesquitas cujo nicho do

    71 Roger GARAUDY. Promessas do Isl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

  • 52

    mirhab designa a direo da Caaba so assim integrados, por crculos concntricos, a

    essa vasta gravitao dos coraes rumo ao seu centro.

    A abluo ritual, antes da prece, simboliza o retorno no homem pureza primitiva

    pela qual, rejeitando a si mesmo tudo o que pode macular a imagem de Deus, ele se

    torna seu perfeito espelho.

    3. Jejum durante o ms sagrado do Ramad. O jejum, interrupo voluntria do ritmo

    vital, afirmao da liberdade do homem em relao ao seu eu e aos seus desejos, e ao

    mesmo tempo lembrana da presena em ns mesmos daquele que tem fome, como de

    um outro eu mesmo que devo contribuir para tirar da misria e da morte.

    4. Zakat. No esmola, mas uma espcie de justia interior institucionalizada,

    obrigatria, que torna efetiva a solidariedade dos homens da f, isto , daqueles que

    sabem vencer em si mesmos o egosmo e a avareza. O zakat a lembrana permanente

    de que toda riqueza, como tudo, pertence a Deus, e que o indivduo no pode dispor

    dela vontade, que cada homem membro de uma comunidade.

    5. A peregrinao a Meca, enfim, no apenas concretiza a realidade mundial da

    comunidade muulmana, mas, dentro de cada peregrino, vivifica a viagem interior em

    direo ao centro de si mesmo.

    O tema central do Isl, em todas as suas manifestaes, esse duplo movimento

    de fluxo do homem em direo a Deus e de refluxo de Deus em direo ao homem,

    distole e sstole do corao muulmano: Na verdade, somos de Deus e a Ele

    retornamos. (2, 156) CORO

    Em resumo, podemos afirmar que as divergncias teolgicas entre xiitas e

    sunitas surgiram de uma disputa poltica pela liderana da religio. Com o passar dos

    sculos, os xiitas foram assumindo sua condio de minoria no mundo como fator de

    unio entre si e foram desenvolvendo uma ferrenha predisposio pela defesa de seus

    interesses territoriais. E, fator fundamental para a compreenso dos xiitas, a idia da

    espera pela volta do 12 Im, que ir restabelecer a ordem na terra, tal como os cristos,

  • 53

    que cultivam a crena que Jesus Cristo um dia far seu retorno dos cus para promover

    a justia e a paz..

    3.3 Liberais e fundamentalistas

    O Isl est h muito tempo em confronto com a modernidade ocidental. O

    colonialismo e o choque com a Europa modificaram profundamente a forma de pensar e

    de agir dos muulmanos, muitos deles atnitos at hoje no sabendo bem como reagir

    ao Ocidente.

    Da partiu uma forma de expresso bastante conhecida , a Jihad, que ao contrrio

    do que a mdia propala como sendo guerra santa, significa esforo, perseverana, no

    sentido da defesa dos princpios religiosos.

    Ento, como resultado desses novos tempos, surgem dois tipos de reformistas: os

    liberais e os fundamentalistas. Os primeiros encaram a situao como um simples atraso

    histrico e intelectual, tendo como objetivo a modernizao do Isl. So inmeros os

    exemplos dessa corrente, onde destacou-se o ex-presidente do Ir, Khatami.

    J os fundamentalistas propem um retorno s fontes originais a fim de

    promover uma revivificao do Isl e de libertar as sociedades da influncia estrangeira,

    tanto poltica como cultural. O exemplo que pode ser dado o do atual presidente do

    Ir, Ahmadinejad.

  • 54

    Estes dois movimentos funcionam de forma concomitante, embora de maneira

    separadas, sendo muitas vezes permeveis entre si sobre as questes da reforma poltica,

    da tecnologia e da lngua, divergindo sobre a forma de evoluo da religio.

    Seria muito difcil esquadrinhar o percurso provvel dos acontecimentos nas

    muitas e variadas sociedades que compem o universo muulmano. Porm, parece que

    uma das questes fundamentais a ser resolvida a da mtua permisso da possibilidade

    da coexistncia de uma pluralidade de formas de compreenso na sociedade islmica.

    Outro aspecto no muito lembrado pela mdia so os movimentos polticos

    crescentes em reas ou pases islmicos seculares como Cazaquisto, Chechnia,

    Usbequisto, Turquia e mesmo na China.

    Do ponto de vista da comunicao institucional, em funo da identificao da

    opinio pblica com as imagens e aes de grupos extremistas como o Talib, o Hamas,

    etc., j foi discutido pelos pases do Golfo Prsico uma possvel contratao de agncias

    de relaes pblicas no sentido de padronizar um possvel discurso islmico unificado, a

    exemplo das religies ocidentais. O resultado desse projeto nunca saiu do papel.

  • 55

    4. Ir Formao e Histria

    A Repblica Islmica do Ir tem uma populao de 71,5 milhes de habitantes.

    A extensa rea geogrfica faz do pas o 16 maior do mundo e o segundo maior do

    Oriente Mdio. Faz fronteira com a Turquia, Iraque, Paquisto, Afeganisto,

    Turcomenisto, Armnia, Rssia (mar Cspio) e com os pases rabes da regio do

    Golfo Prsico: Om, Emirados rabes, Bahrein, Catar, Arbia Saudita e Kwaite.

    Os mais importantes grupos tnicos que vivem no Ir, com sua prpria histria,

    cultura e costumes, so os azaris, turcos, curdos, baluchis, rabes turcomanos e lurs.

    A histria do Ir milenar e tem incio com os medas, povos indo-europeus que

    vieram para a sia Ocidental cerca de mil anos a.C. Os medas criaram um imprio que

    pouco durou, pois foram dominados pelos persas, mas lanaram as bases da cultura

    naquela regio, contribuindo com sua lngua ariana, o alfabeto de 36 letras, a

    substituio da argila pelo pergaminho, o uso das colunas na arquitetura, o cdigo moral

    e uma religio cultuada at hoje no pas, o Zoroastro72.

    A formao dos persas, por sua vez, deve-se a uma mistura de raas, sendo que a

    historiografia considera os arianos como etnia fundadora persa. Os arianos, que

    habitavam as montanhas de Zagros, tm origem nos povos indo-europeus. De pele

    escura, nasceram na regio da ndia. Aps passarem pela Anatlia e Armnia, povoaram

    a Prsia e a Grcia, espalharam-se por toda a Europa, dando incio aos povos

    germnicos e eslavos, entre outros, e j apresentando a pele clara.

    72 Zoroastro, tambm conhecido como Zaratustra, era um profeta que viveu no sculo VII a.C, na regio onde hoje o Ir e o Afeganisto. Zaratustra teria recebido revelaes divinas que formaram os conceitos do zoroastrismo, baseado na dualidade csmica entre o bem e o mal.

  • 56

    Ir significa terra de arianos73 e representa uma retomada s origens do povo.

    O nome do pas era Prsia at 1935, como veremos mais adiante. Ciro, o Grande (566-

    528 aC.), foi o imperador da Prsia, cuja capital era Passrgada. O domnio persa se

    estendia do Mediterrneo ndia, englobando 31 naes, entre elas o Egito.

    Ciro, criador da dinastia dos Aquemnidas, foi sucedido por Dario I, que mudou

    a capital para um ponto mais alto, denominando-a de Prs, a cidade dos persas. Mais

    tarde, com o domnio do macednio Alexandre, o Grande, o nome grego Perspolis

    tomou lugar. Dario responsvel pelas construes imponentes de Perspolis,

    edificadas h 2.500 anos (atualmente parte delas pode ser vista num stio arqueolgico

    que se transformou em atrao turstica), uma legislao que organizava e orientava a

    vida dos cidados e um complexo sistema de comunicaes.

    Aps uma srie de dinastias antes de Cristo, damos um salto histrico e vamos

    encontrar a Prsia da dinastia Sassnida, que vai de 224 a 651 depois de Cristo. Neste

    perodo, fundamental destacar a invaso rabe, que acontece em 642, e introduz o

    islamismo no pas, cuja religio predominante at ento era o zoroastrismo.

    Em 1037, a Prsia sofre a invaso dos turcos seljcidas, que seguiam sua enorme

    expanso pelo Oriente Mdio. Em 1219, acontece outra invaso, que fundamental para

    entender as transformaes da cultura persa: Gengis Khan invade a Prsia e d incio ao

    governo Mongol, cujo colapso se d cerca de 200 anos depois.

    Sem nunca ter deixado de ser muulmana desde a invaso rabe, a Prsia torna-

    se oficialmente um imprio xiita, como religio de estado, no perodo da dinastia

    Safvida (1502-1736). desta poca tambm que o rei Abbas I transforma a cidade de

    Isfahan na capital persa.

    Convm notar, que a partir do sculo XVIII a Europa seduzida pelos temas que

    vm do Oriente. Em 1704, Antoine Galland comea a publicar em francs sua traduo

    73 A etimologia de ariano vem de airyano/ern. Prsia (Persis) era o nome de uma tribo ariana da poca de Ciro.

  • 57

    do clssico As Mil e uma Noites e cresce no imaginrio ocidental fantasias sobre um

    mundo muulmano povoado por reis dspotas e mulheres extremamente belas. Um

    universo erotizado passava a compor o clima das histrias dos harns. Um exemplo

    deste efeito o livro de Montesquieu, Cartas Persas, publicado em 1721 na Frana.

    Embora Montesquieu nunca tenha ido Prsia ele teria se inspirado em cartas

    de viagens de Tavernier e Chardin74 , narrava com riqueza de detalhes o

    comportamento persa, alimentando desde ento uma imagem de exotismo que

    permanece at hoje.

    74 In: MONTESQUIEU. Cartas Persas. (Trad. Renato Janine Ribeiro). So Paulo: Paulicia, 1991.

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    5. A REVOLUO

    Historicamente, o Ir ocupa uma posio geopoltica fundamental no mundo.

    Em 1979, ocupava o posto de segundo maior exportador de petrleo do mundo, posio

    que tem oscilado, mas que nunca se mantm abaixo do quarto lugar. natural que

    sobre a Revoluo Islmica, que derrubou a dinastia do shah Reza Pahlevi e colocou no

    poder o clero xiita, exista um grande nmeros de textos publicados.

    Muitos dos textos tm como autores conhecidos estudiosos sobre o Oriente

    Mdio, os chamados orientalistas. Outros pertencem a scholars de ltima hora, e

    vrios outros provm de iranianos que vivem no exlio, principalmente Estados Unidos

    e Europa. Neste ltimo grupo, h desde professores universitrios que j atuavam como

    acadmicos (Annabelle SREBERNY-MOHAMMADI e Ali MOHAMMADI. Small

    Media, Big Revolution: Communication, culture, and the Iranian Revolution.

    Minneapolis:University of Minnesota, 1994), at pessoas que nunca pensaram em

    escrever um livro, como a ex-funcionria de uma companhia area, que resolveu contar

    os episdios da Revoluo do ponto de vista de sua famlia (Rouhi SHAFII. Scent of

    Saffron-Three Generation of a Iranian Family. Londres: Scarlet Press, 1997). Apesar

    ou graas a diferentes perspectivas, o tema apresentado com farta documentao, o

    que nos permite uma anlise rica em detalhes, sempre com o objetivo de

    compreendermos as manifestaes direcionadas produo de cartazes que divulgam e

    legitimam a Revoluo.

    Comparada em grau de importncia e impacto s revolues francesa e russa, a

    Revoluo Islmica do Ir tambm ficou conhecida como a que resultou na maior

    exploso popular na histria da humanidade75. De todos os acontecimentos do mundo

    contemporneo, a Revoluo Islmica foi a que mais recebeu espao na mdia, at hoje,

    passados 28 anos, repercute os fatos na tentativa de explicar/entender o fenmeno. 75 Richard W. Cottam, Inside Revolutionary Iran, The Middle East Journal 43:2 (Spring 1989), p. 168, citado por John L. ESPOSITO e John O. VOLL , in: Islam and Democracy. New York: Oxford University Press, 1996, p. 52.

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    O modelo deste fenmeno, que no estava nos ideais libertrios da Revoluo

    Francesa, nem tampouco nos princpios socialistas de abolio da propriedade privada

    da Revoluo Russa, era absolutamente novo. Toda ideologia e simbologia mobilizaram

    as massas atravs de um apelo religioso, em defesa de interesses nacionalistas, tendo

    como idelogos lderes do clero xiita.

    Segundo Eric Hobsbawm76, quase todos os fenmenos reconhecidos como

    revolucionrios at ento tinham seguido a tradio, a ideologia e, geralmente, o

    vocabulrio da revoluo ocidental desde 1789, data da Revoluo Francesa, mais

    precisamente, de algum tipo de esquerda secular, sobretudo socialista ou comunista.

    Em outro aspecto, a Revoluo Islmica do Ir igualmente tida como a

    primeira autenticamente moderna da era da eletrnica77. O Ayatollah Ruhollah

    Khomeini, foi o primeiro lder carismtico a enviar do exlio, no Iraque, fitas cassetes

    para se comunicar e instruir seus seguidores. Suas idias eram passadas tambm por

    entrevistas, algumas transmitidas ao Ir, como s produzidos pela BBC de Londres.

    Durante