arbitragem tributaria no direito brasileiro · arbitragem tributaria no direito brasileiro tathiane...
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ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA
DESAFIOS E LIMITES DA ,
ARBITRAGEM TRIBUTARIA NO DIREITO BRASILEIRO
TATHIANE PISCITELLI*
Professora Universitária
ANDRÉA MASCITTO*
Advogada
6 I CAAD- Arbitragem Tributária I 2018
A complexidade do sistema tribu
tário brasileiro somada à alta carga
tributária que recai sobre as pes
soas jurídicas são causas de estímu
lo à litigiosidade . Esse cenário, em
conjunto com a dimensão conti
nental do Brasil, resultam em alto
nível de ineficiência na resolução
de litígios, seja na esfera judicial ,
seja na administrativa . A despeito
disso, o debate sobre os métodos
alternativos de resolução de dispu
ta em matéria tributária, que po
deriam m elhorar esse ambiente,
ainda é incipiente.
À luz desse contexto, o presente
artigo tem por objetivo apresentar
os desafios institucionais que de
vem ser enfrentados na implemen
tação da arbitragem em matéria
tributária. Para tanto, o seguinte
percurso será adotado: na pri
meira seção , serão apresentados
alguns números do contencioso
no Brasil , de modo a contextuali
zar o leitor quanto à morosidade,
ineficiência e custo dos m étodos
tradicionais e, ainda, apontar as
possíveis razões para isso. Após,
na segunda seção, serão enfrenta
dos os desafios propriamente ditos
para a implementação da arbi tra
gem tributária. Delineados tais
desafios e diante da conclusão pela
possibilidade de superação, a seção
3 tratará as matérias arbitráveis,
com vistas a caminhar no sentido
da estruturação mais concreta do
regime no Brasil. Finalm ente, a se
ção 4 se limitará a esboçar as con
clusões gerais deste texto.
1. INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA
A morosidade e inefici ência do
contencioso tributário brasileiro,
seja na esfera administrativa , seja
na judicial, são dados irrefutá
veis. As causas dessa realidade são
diversas e é natural que a escassa
presença de métodos alternativos
de resolução de conflitos colabore
com esse cenário. Contudo, há um
ponto preliminar que deve ser en
frentado: o fato de a estrutura nor
mativa tributária estar desenhada
no texto constitucional.
A evolução e sistematização nor
mativa do direito tributário bra
sileiro são recentes . Apenas em
1965, com a promulgação da
Emenda Constitucional (EC) n .0
18 à Constituição Federal de 1946,
é que se tem um detalhamento só
lido das normas tributárias e da
delimitação das competências en
tre os entes da Federação. Seguiu
-se a esta EC a publicação do Có
digo Tributário Nacional (CTN),
norma geral de direito tributário,
cuj a função central é a uniformiza
ção de conceitos, institutos e limi
tes voltados ao poder de b·ibutar.
Com a vigência do CT N e as
delimitações constantes da EC
18 I 1965 , o direito tributário
ganhou foros de autonomia em
relação ao direito finan ceiro e as
práticas relativas a essa discipli
na com eçaram a se sofisticar. Em
'' O debate sobre os
métodos alternativos
de resolução de
disputa em matéria
tributária, que
poderiam m elhorar
esse ambiente, ainda
é incipiente
1988 , foi promulgada uma nova
Consti tuição (vigente até os dias
de hoje), em face do processo de
redemocratização. O cenário his
tórico contribuiu para que a Cons
tituição da República de 1988 ,
além de incorporar grande parte
da estrutura do sistema tributário
forjado em 1965 , também previsse
di ver sos outros direi tos e garantias
aos contribuintes, ampliando ainda
mais a presença do direito tributá
r io em nível constitucional. Nesse
contexto , o CTN foi recepcionado
com status de lei complementar e
seguiu exercendo o papel de deli
mitar as normas gerais de direito
tributário.
Como consequência da incorpo
ração quase que integral do direi
to tr ibutário na Constituição , as
respostas às questões tributárias
relevantes são com muita frequên
cia dadas pelo Supremo Tribunal
Federal, a corte constitucional
brasileira . Esse percurso, natu
ralmente, leva tempo - o prazo
m édio de duração de um processo
tributário na esfera federal é de 12
anos' . Recentem ente, porém , foi
aprovado um novo Código de Pro
cesso Civil , que trouxe diver sos
m ecanism os de estabilização da ju
ri sprudência e redução da litigiosi
dade. Em Unhas gerais, esse efeito
seria resultante da obser vância dos
tribunais e juízes de instâncias in
feriores de decisões uniformizadas
pelos Tribunais Superiores, conhe
cido como "sistema de preceden
tes" . Ainda assim, o reflexo das
alterações não é imediato e ainda
há muita discussão sobre o alcan
ce das medidas e os limites de sua
aplicabilidade.
Som e-se a esses elem entos um
outro dado relevante : há duas vias
de acesso ao contencioso brasilei
ro ; o processo administrativo e
o processo judicial. Em regra, o
processo administrativo tem lu
gar nas hipóteses de impugnação a
um lançamento - são os casos em
que o contribuinte se depara com
a constituição da relação jurídica
tr ibutária pela administração, via
lançamento de ofício , e decide
contestar os termos de tal consti
tuição administrativamente, antes
mesm o do debate judicial. Não
raro , as discussões são levadas a
tribunais administrativos e somen
te diante de uma decisão desfavo
rável é que o contribuinte2 enfim
acessa o Poder Judiciário.
No âmbito administrativo federal,
apenas, há cerca de € 167 bilhões
em disputa e 12 1. 73 1 processos
pendentes de análisé. Dentre
esses valores , a imensa maioria
concentr a débitos de menor im
pacto econômico - 96,77% dos
processos discutem débitos de
até € 3.800,004• De outro lado, a
despeito de o Tribunal apresentar
uma evolução constante nos jul
gamentos, quantidade semelhante
de casos segue sendo apresentada,
de modo que o estoque permane
ce relativam ente estável ao longo
dos anos .
A inexistência de métodos alter
nativos de resolução de conflitos
solidam ente implementados em
matéria tributária contribui para
esse cenár io de ineficiência e m o-
rosidade. A despeito da previsão
no CTN, em nível federal não há
disciplina jurídica relativa à transa
ção tributária e a discussão sobre
outros m eios consensuais ainda é
embrionária.
É sob esse contexto, portanto, que
o debate sobre a implem entação
da arbitragem em m atéria tribu
tária deve se desenrolar no Bras il.
Diante de um cenário de pouca
eficiência judiciária, inclusive do
ponto de vista da administração, é
razoável cogitar-se de um sistema
"multiportas", no qual tanto Fisco
quanto contribuintes poderiam
escolher como seguir com as suas
lides. Ao lado da disputa sobre o
crédi to tributário na esfera admi
nistrativa e posteriormente judi
cial somar -se-ia a possibilidade de
realização de arbitragem , face ao
consenso mútuo das partes sobre
a escolha de tal via.
Para tanto, porém , deve-se tratar
dos desafios institucionais que essa
opção apresentaria - esse será o
objeto da próxima seção. Note-se,
desde logo, que a proposta aqui
apresentada é de lege jerenda, na
m edida em que não há, no orde-
nam ento brasileiro, qualquer pre
visão nesse sentido. Não obstante,
entendemos que o tema deve ser
enfrentado, mas não apenas em
face dos números do contencioso
tributário. Não se pretende apon
tar a arbitragem como panaceia à situação atual do contencioso no
Brasil. Para além da possibilidade
de se imprimir maior eficiência e
celeridade aos m eios hoje existen
tes, trata-se de criar um m ecanis
m o alternativo que seja capaz de
ampliar as possibilidades de reso
lução de disputas tributárias, sem
prescindir da necessária proteção
ao crédito tributário e aos direitos
individuais dos contribuin tes . Em
linhas gerais, provar este ponto é o
obj eto central deste artigo.
2. DESAFIOS INSTITUCIONAIS: NORMA GERAL DE DIREITO TRIBUTÁRIO E A (IN) DISPONIBILIDADE DA RECEITA TRIBUTÁRIA
Nos termos em que delineado linhas acima, o texto constitucional
é responsável pelo tratam ento ge
ral do sistema tributário bras ilei
ro : a partir da delimitação da com
petência tributária entre os entes
da Federação, o legislador consti
tuinte fixou os limites segundo os
quais o exercício da tributação se
daria . Nesse sentido, prescreveu
os princípios e regras que devem
ser obser vados na criação e majo
ração de tributos, as hipóteses de
imunidades tributárias, além de
estabelecer as bases impositivas
- ou seja, os fatos e as condutas
econômicas passíveis de sofrer a
imposição tributária.
Ainda no texto da Constituição,
há a delegação de competência à lei complem entar para estabelecer
normas gerais de direito tributá
rio, especialmente sobre elem en
tos atinentes à relação jurídica tri
butária . Conforme destacado no
i tem anterior, esse papel é exerci
do pelo CTN. Especificam ente no
que se refere ao detalham ento do
CAAD- Arbitragem Tributária I 2018 I 7
ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA
crédito tributário, o Código prevê
hipóteses taxativas de suspensão da
exigibilidade (artigo 1 51) e, ainda,
as causas de extinção da relação ju
rídica tributária (artigo 156).
O primeiro entrave institucional a
ser enfi·entado na implementação da
arbitragem tributária no Brasil seria
a necessidade de alteração do CTN.
Considerando a instauração de um
processo arbitral que tivesse por ob
jeto um crédito já constituído, seria
necessária previsão específica quanto
à suspensão da exigibilidade do tri
buto em debate até que o termo fmal
da arbitragem. Desse modo, ficaria
a Fazenda Pública impedida de to
mar quaisquer medidas de cobrança
que colocassem em risco a própria
eficácia da arbitragem. Além disso,
iguahnente seria necessário prever,
dentre as hipóteses de extinção da
relação jw-ídica tributária, a sen
tença arbitral, cuja resolução seria
definitiva e apenas passível de des
consideração pelo Poder Judiciário
em face de vícios no procedimento5•
Essas alterações , por óbvio, deverão
ser realizadas via lei complementar.
Superada a previsão geral no CTN,
outro passo relevante seria alterar
a Lei n. 0 9.307/ 1996, que dispõe
sobre arbitragem no Brasil. Nesse
ponto, outro desafio se coloca.
Nos termos do artigo 1.0 da lei,
o uso da arbitragem está limitado
a direitos patrimoniais disponÍI'eis
entre pessoas capazes de contratar.
Após amplo debate público, em
20 I 5, incluiu-se no parágrafo I. o
desse dispositivo a possibilidade de
a administração pública direta e in
direta utilizarem -se da arbitragem
para dirimir conflitos, desde que
observada a condição geral: direi
tos patrimoniais disponíveis. Ade
mais, nos termos do artigo 2. 0,
parágrafo 3. 0, "a arbitragem que
envolva a administração pública
ser;\ sempre de direito e respeitará
o princípio da publicidade". Nesse
caso, portanto, não há que se fa
lar na livre escolha das regras que
regerão o processo: os limites são
bem claros.
8 I CMD- Arbitragem Tributária I 2018
O principal entrave de aplicação
do instituto no direito tributário
estaria no atendimento da condi
ção geral posta pela lei: é incon
troverso que o objeto da relação
jurídica tributária revela conteú
do patrimonial. No entanto, seria
esse m esmo objeto um "direito
disponível"?
A indisponibilidade da receita tri
butária tem por corolário o inte
resse público vinculado à arreca
dação e, assim, à manutenção do
Estado e das necessidades públicas
por ele atendidas . Como é sabido,
esse m esmo debate foi enfrentado
em Portugal por ocasião da imple
mentação da arbitragem tributária
- a redação do artigo 30. 0, n. 0 2
da Lei Geral Tributária prevê, ex
pressam ente, a indisponibilidade
do crédito tributário, "só podendo
fixar -se condições para a sua redu
ção ou extinção com respeito pelo
princípio da igualdade e da legali
dade tributária".
No âmbito do ordenamento ju
rídico brasileiro, a despeito de a
constituição da relação jurídica
tributária por ato administrativo
vinculado e obrigatório constar
não apenas da definição de tributo
(artigo 3. 0, CTN) mas, também,
na disciplina do lançamento (ar
tigo 142. 0, CTN), não é possível
dizer que o objeto dessa mesma
relação seja indisponível. A justifi
cativa para essa afirmação decorre,
em primeiro lugar, do texto cons
titucional.
Nos termos do artigo 150. 0, pará
grafo 6. 0 da Constituição, os entes
da Federação poderão instituir
isenções de seus tributos, desde
que o façam por lei específica. Isso
significa que poderão optar pelo
não exercício da competência tri
butária que lhes foi atribuída e , as
sim, excluir da incidência tributá
ria determinados fatos ou condu
tas. Tal opção pode ter motivação
política, econômica ou social e o
Único requisito constitucional para
tanto é a previsão do beneficio em
lei própria.
Some-se a essa exigência o dever
de o ente prever o impacto que tal
renúncia de receita irá causar no
orçamento, além de outras provi
dencias relacionadas à responsabi
lidade fiscal na gestão de recursos
públicos, como a eventual criação
de m edidas (financeiras) de com
pensação da renúncia, nos termos
do artigo 14. 0 da Lei Complemen
tar n. 0 101/2000, a Lei de Res
ponsabilidade Fiscal (LRF).
Ademais, segundo dispõe o CTN,
os entes poderão conceder parce
lam entos de débitos tributários,
com possível concessão de anistia
a penalidades, sem prejuízo, ainda,
de perdão de dívidas tributárias
já constituídas. A única condição
para tanto é a previsão em lei das
condições e limites das dispensas
de pagamento de tributos, multas
e juros e a observância do artigo
14.0 da LRF.
Conforme se vê, portanto, o or
denamento brasileiro contem
pla diversas hipóteses em que o
quantum objeto da relação jurídica
tributária é objeto de disposição.
A condição comum para todas as
hipóteses é a previsão em lei. E
não poderia ser de outro modo.
Sendo o tributo a principal fon
te de financiam ento do Estado, a
opção pelo não recebimento inte
gral da receita tributária deve ser
resultante do processo que revele
a representatividade democrática,
já que estaríamos diante da renún
cia de uma recei ta essencial para o
funcionam ento do Estado e cujo
não recebimento revela, ainda que
f
indiretamente, o investimento pú
blico no setor ou área beneficiada.
A transposição dessa mesma racio
nalidade para o regime da arbitra
gem é simples: uma vez estabele
cidos em lei os critérios jurídicos
segundo os quais a arbitragem
tributária pode se realizar, não ha
veria qualquer óbice relacionado
à natureza da receita tributária. A
indisponibilidade é um mito que
deve ser superado.
A essas considerações agregue-se,
ainda, duas outras que corroboram
a possível disposição da receita tri
butária. Na hipótese de impugnação
do lançamento tributário pelo su
jeito passivo e consequente instau
ração de processo administrativo,
é possível que, ao fmal dessa etapa,
o Tribunal Administrativo compe-
tente ou conclua p-ela invalidade do
lançamento em todos os seus ter
mos, ou pela retificação respectiva .
Em quaisquer dos casos, é evidente
que o montante devido será alte
rado substancialmente. Esse ponto
reforça a disponibilidade do crédi
to, na medida em que sua alteração
pode se dar no contexto do con
tencioso administrativo. O limite
segue sendo a legalidade.
De outro lado, conforme já men
cionado linhas acima, a adoção da
arbitragem seria uma opção a ser
exercida pela administração, em
face, exatamente, de um conflito
cuja solução seria melhor cons
truída por juízes técnicos . Não se
trata de imposição ao Poder Públi
co nem sequer solução obrigató
ria em detrimento da via judicial.
A implementação de um regime
como esse no Brasil teria por fi
nalidade conferir às partes de um
litígio tributário (atual ou futuro)
a alternativa de acesso a tal meio,
que, em alguns casos, pode se re
velar mais justo, célere e eficiente
do que os métodos tradicionais de
solução de disputa.
Sendo assim, em vez de se revelar
como algo que colocaria em risco
a integridade do crédito tributá
rio, a extensão da arbitragem para
causas tributárias seria vetor de
ampliação da segurança jurídica e
realização da justiça fiscal, na me
dida em que asseguraria a resolu
ção potencialmente mais eficaz do
litígio, sem prejuízo da observân
cia de todas as garantias constitu
cionalmente previstas: isonomia,
legalidade e publicidade são apenas
algumas delas.
' ' A extensão da
arbitragem para
causas tributárias seria
vetor de ampliação
da segurança jurídica
e realização da
justiça fiscal, na
medida em que
asseguraria a resolução
potencialmente
mais eficaz do
litígio, sem prejuízo
da observância de
todas as garantias
constitucionalmente
previstas: isonomia,
legalidade e
publicidade
O princípio da isonomia está pre
visto no artigo 15 O. o, inciso li da
Constituição e assegura a ausência
de discriminação em matéria tri
butária ao proibir que os entes da
Federação instituam tratamento
desigual entre contribuintes que
se encontrem em situação equiva
lente, vedada "qualquer distinção
em razão de ocupação profissional
ou função por eles exercida, inde
pendentemente da denominação
jurídica dos rendimentos, títulos
ou direitos".
A não discriminação na hipótese
de arbitragem restaria plenamente
observada diante do cumprimento
de uma outra garantia: a publici
dade das decisões. Como se sabe,
cumprimento da justiça formal
entre os jurisdicionados se dá pela
universalidade das decisões judi
ciais - este, aliás, é um parâmetro
para aferir a correção da decisão
no âmbito da teoria da argumen
tação. Sendo as decisões públicas,
por critérios de isonomia, casos
que possuam os mesmos pressu
postos fáticos e jurídicos devem
ter o mesmo desfecho; salvo, na
turalmente, elementos discrimi
nadores que sejam suficientes para
afastar a aplicação do precedente
ou mesmo argumentos superve
nientes que superem a justificação
da decisão anteriormente tomada.
No que se refere à legalidade,
entendemos que esse requisito
estaria atendido tanto pela altera
ção às regras do CTN, para que
houvesse a previsão da suspensão
da exigibilidade do crédito du
rante o processo arbitral, bem
como a inclusão da sentença ar
bitral como forma de extinção da
relação jurídica tributária, quan
to pela modificação da Lei n. 0
9.307 I 1996, que dispõe sobre
arbitragem no Brasil. Nesse úl
timo caso, bastaria a inclusão de
mais um par<'tgrafo ao artigo 1. 0,
para dispor sobre a possibilidade
de a arbitragem com a adminis
tração pública abranger litígios
com particulares.
CAAD- Arbitragem Tributaria I 2018 19
ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA
Além disso, não seria desproposi
tado cogitar-se de limite máximo
do valor em discussão para que
haja a opção pela arbitragem, tal
como ocorre em Portugal, bem
como restrições quanto à maté
ria especificamente arbitrável,
também à luz da experiência por
tuguesa, e inclusive para fins de
testar a viabilidade do instituto no
país. Todo esse detalhamento esta
ria previsto em lei, assegurando-se
a presença do Único requisito para
a disposição da receita tributária:
a representatividade democrática.
A partir dessas considerações mais
gerais, o próximo item terá por
objeto delinear, ainda que modo
exemplificado, quais matérias se
riam essas. O objetivo é caminhar
no sentido da estruturação mais
concreta do regime, e assim, con
tribuir para o fom ento do debate
público sobre o tema.
'' A escolha pelo
processo arbitral deve
resultar na renúncia
das outras vias
possíveis de resolução
de disputa em matéria
tributária e a decisão
dela resultante é
definitiva e irrecorrível
para ambas as partes
10 I CAAD- Arbitragem Tributária I 2018
3. LIMITES E APLICAÇÃO POSSÍVEl: CONTROlE DE lEGAliDADE E QUAliFICAÇÃO JURÍDICA DE FATOS
O regime de arbitragem tributá
ria em Portugal apresenta limi
tes quanto ao valor da disputa e
em relação às matérias passíveis
de submissão. No que se refere
ao valor, serão arbitráveis causas
de até € 1 O milhões e, quanto às
matérias, o CAAD está limitado à
aferição da legalidade de atos tri
butários. Resta saber quais seriam
esses limites no Brasil. Desde logo
saliente-se que não entraremos
na especificação dos valores, con
siderando as restrições de espaço
deste artigo. Nosso foco estará na
construção dos limites relativos às
matérias arbitráveis.
Um olhar específico para o caso
brasileiro revela, de plano, a impos
sibilidade de submeter à arbitragem
questões relativas à constituciona
lidade de normas tributárias. Tal
restrição decorre do próprio texto
constitucional, que vincula a apre
ciação de tais temas à análise do Po
der Judiciário no geral e ao Supre
mo Tribunal Federal, em específico
- sequer os tribunais administra ti
vos detém essa competência.
Aparte dos temas constitucionais,
que permeiam grande parte das
discussões tributárias, temos, ain
da, a possibilidade de um debate
voltado à legalidade abstrata ou
concreta da norma tributária. Nes
ses casos, diferente do que ocorre
com a matéria constitucional, não
há uma vedação absoluta quanto à
possibilidade de se arbitrar temas
relacionados com a legalidade. Isso
se dá especialmente nos casos em
que a delimitação do fato passível
de gerar a incidência tributária de
penda de uma qualificação jurídica
específica e objeto central de dú
vida. Esse, parece-nos, seria o ce
nário ideal para atrair a arbitragem
para o direito tributário.
Do ponto de vista da legalidade
in abstrato, seria possível cogitar
de se instaurar a arbitragem antes
mesmo da prática do fato que re
sultaria na incidência do tributo.
O objetivo seria evitar litígio fu
turo, pela determinação prévia da
regra tributária aplicada ao caso.
Na hipótese de o lançamento tri
butário já realizado, por sua vez, a
arbitragem se revelaria como meio
alternativo aos processos adminis
trativo e judicial. Em quaisquer
dos casos, a escolha pelo processo
arbitral deve resultar na renúncia
das outras vias possíveis de resolu
ção de disputa em matéria tribu
tária e a decisão dela resultante é
definitiva e irrecorrível para am
bas as partes.
Como exemplo de aplicação con
creta possível do regime no direi
to tributário, seja antes ou depois
do lançamento, cite-se os casos
de classificação fiscal. No Brasil, a
incidência de tributos aduaneiros
e sobre a produção depende da
correta identificação do bem na
Nomenclatura Comum do Mer
cosul (NCM), o que implica co
nhecer detalhes técnicos do pro
duto. As dúvidas ou o desacordo
entre Fisco e contribuinte sobre a
correta classificação são frequen
tes e a interpretação em um ou
outro sentido pode resultar em
alíquotas divergentes e possíveis
autuações.
Recentemente, o Tribunal Admi
nistrativo federal, denominado
Conselho Administrativo de Re
cursos Fiscais (CARF), deparou
-se com a necessidade de decidir
se os calçados produzidos pela
empresa Crocs Brasil Comércio
de Calçados Ltda. deveriam ser:
classificados como "sandália de
borracha" ou "sapato impermeá
vel". O impacto tributário seria
indiferente, já que em ambos os
casos a alíquota seria zero. No
entanto, tratando-se de "sapa
to impermeável" ficaria sujeito
a um valor antidumping de US $
13,00 o par6.
Caso semelhante e igualmente re
cente foi o da Nestlé Brasil Ltda.,
no qual se discutiu, também no
âmbito do CARF, se as barrinhas
de cereal seriam produtos de con
feitaria ou preparações feitas com
flocos de cereais. Nessa situação,
a classificação fiscal teria impacto
sobre o montante de imposto so
bre produtos industrializados7.
Some-se a esses tantos outros
debates sobre a correta interpre
tação de bens na lista da NCM:
em sua grande maioria, são casos
que seriam melhor resolvidos por
técnicos das áreas respectivas que
poderiam, com segurança, indicar
a correta classificação do produ
to. É evidente, então, que, nessas
situações, a arbitragem tributária
seria um meio mais eficiente e
preciso de solucionar o conflito
- seja preventivamente, seja após
o lançamento tributário, como
forma alternativa ao processo ad
ministrativo e judicial. Isso porque
o profissional técnico (como um
químico ou um engenheiro, por
exemplo) poderia, ao conhecer de
forma profunda as características
do produto, melhor dizer a sua
classificação, definindo o processo
de subsunção em casos que o ope-
r ada r do direito pouco consegue
avançar .
Ao lado das questões relacionadas
à adequada classificação fiscal, há
outras hipóteses nas quais o uso da
arbitragem se mostra como forma
mais adequada de se r esolver a dis
puta tributária . Ainda nos limites
do controle da legalidade do ato
administrativo , há casos em que a
interpretação sobre a qualificação
juddica de determinados fatos , ou
dem anda um profissional especia
lista no tem a, ou depende de ou
tras áreas do conhecimento, para
além do direito. Para ilustrar esse
ponto , tome-se como exemplo a
realidade imposta pela economia
digital.
Em muitos desses casos, faz-se
n ecessário um conhecimento
tecnológico apurado para com
preender a extensão da materia
lidade da qual r esulta a incidência
tributária - os conceitos técnicos
de Inj rastructure as a Service, Plat
jorm as a Service e S?Jtware as a Ser
vice presentes nas operações de
computação na nuvem são fun
dam entais para a correta deter -
minação da incidência tributária
nessas hipó teses, especialmente à luz do m odelo tributário brasilei
ro, que traz consigo dois tributos
de competência distinta em nlvel
subnacional. A eleição de um ár
bitro com conhecimentos t écni
cos n essa área sofisti caria o de
bate , conferindo maior segurança
tanto à administração quanto ao
contribuinte .
Com o se vê , em todas as situa
ções m encionadas exemplifica
dam ente , o obj etivo não é pon
derar sobre a constitucionalidade
ou não da cobrança tributária:
pre tende-se, apenas, instrumen
talizar o debate com elem entos
técnicos e esp ecializados, capazes
de fornecer uma convicção m ais
clara e segura acer ca da incidên
cia tributária . Em n enhum caso,
cogita-se de disponibilidad e da
r eceita tributária ou m esm o na
desconsideração do poder de
tributar. Ao contrário. Pelo uso
da arbitragem, é posslvel atingir
termo justo de incidência , sem
prescindir da segurança juddica
necessária e adequada prestação
jurisdicional.
4.CONCLUSÕES
As observações aqui apresenta
das tiveram por obj etivo suscitar
o debate sobre a p ossibilidade
da ext ensão do regime de arbi
tr agem par a t em as tributár ios
no contexto do o rdenam ento
jurldico brasileiro . Conform e
amplam ente debatido , super ado
o mito da indisponibilidad e da
receita tributária e obser vados
os constrangimentos institucio
nais, a aplicação da arbi t r agem
no direito tributári o r esulta em
ganhos in·efutáveis , na m edid a
em que se inser e na melhoria do
ambiente institucional no qual os
debates tributários se desenvo l
vem . Por essa razão, jogar luzes
sobre o t ema é m edida urgente e
necessária.
* Tathiana PiscitelLi , Professora de Direito Tributário e Finanças Públicas da Escola de Direito de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas. Coordenadora do grupo de pesquisa "Metodos Alternativos de Resolução de Disputa em matéria tr ibutária" na mesma instituição. Doutora e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Uni versidade de São Paulo.
* Andn~a Mascitto , Advogada da área tributária do Pinheiro Neto Advogados. Coordenadora do grupo de pesquisa "Métodos Alternativos de Reso lução de Disputa em matéria tributária" na
Fundação Getulio Vargas. Professora em cursos de graduação e pós-graduação em São Paulo. Mestre em direito tribu tário pela Pontifícia Uni versidade Católica de São Paulo.
I . Cf. Conselho Nacional de Justiça; justiça em números, 2016 ; Pp. 244-245; disponí,-el em:
htt p: l I www.cnj.jus.brl filesl conlcudolarqui ,·o/20161 I Ol b8f46bc3dbbiT34493 1 a9335799 15488.pclf
2. Na mecüda em que não cabe ao Fisco levar a disputa ao Jucüciário quando vencido na djsputa administ1-ativa.
3. Fonte: http:/ l idg.carr.fazenda.gov. br l dados-abertos. RS 655 Bill1ões, dado o câmbio de RS 3,9 167 .
4. Fonte: http: l l idg.carf.fazenda.gov.br l dados-aber tos. RS 15 mi l ao câmbio de RS 3,9 16 7 (151 12120 17) .
5. O artigo 31 da Lei de arbitragem (Lei n° 9. 307 I 1996) equaliza os efeitos da scntcnl-" arbitral e daquela emanada pelo Poder Judiciário. Sua rc,·isão pelo Judiciário estaria restr ita às 8 hipóteses
previstas no artigo 32 ela mesma lej. A jurisprudência Yem admitindo a revisão de modo excepcional, apenas em caso de clara nulidade, ilegalidade ou inconstitucionalidade no procedimento
(questões de ordem formal) .
6. Mais detalhes em: https:/ l "~'·w.jota.infoltributariolcarf-julga-tributacao-de-barra-de-cereal-231 020 17 .
7. https: I I www. jota. infoltributariol carf-julga-tributacao-dc-crocs- 11 092017.
CAAD- Arbitragem Tributária I 2018 111