aprendizagem cotidiana em escritórios de arquitetura
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Tese de doutorado sobre a aprendizagem na prática, em escritórios de arquiteura.TRANSCRIPT
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GLAUCINEI RODRIGUES CORRA
Belo Horizonte
Escola de Arquitetura da UFMG
2014
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2 GLAUCINEI RODRIGUES CORRA
APRENDIZAGEM COTIDIANA EM ESCRITRIOS DE ARQUITETURA
Tese apresentada ao curso de Doutorado em
Arquitetura e Urbanismo da Escola de
Arquitetura da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito parcial obteno do
ttulo de Doutor em Arquitetura e Urbanismo.
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Pinto Guimares
Belo Horizonte
Escola de Arquitetura da UFMG
2014
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C824a
Corra, Glaucinei Rodrigues. Aprendizagem cotidiana em escritrios de arquitetura [manuscrito] / Glaucinei Rodrigues Corra. - 2014. 195f. : il. Orientador: Marcelo Pinto Guimares. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura.
1. Projetos arquitetnicos - Teses. 2. Aprendizagem - Teses. 3. Prtica arquitetnica. I. Guimares, Marcelo Pinto. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Arquitetura. III. Ttulo.
CDD 720.7
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4 Glaucinei Rodrigues Corra
APRENDIZAGEM COTIDIANA EM ESCRITRIOS DE ARQUITETURA
Esta tese foi julgada e aprovada para a obteno do ttulo de doutor em Arquitetura do Programa de Ps-graduao em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais.
28 de fevereiro de 2014.
________________________________ Profa. Fernanda Borges de Moraes, Dra.
Coordenadora do Programa
BANCA EXAMINADORA
________________________________
Prof. Marcelo Pinto Guimares, Dr. (UFMG) Orientador
________________________________ ______________________________ Prof. Otvio Curtiss Silviano Brando, Dr. Profa. Ana Maria Rabelo Gomes, Dra. (EA-UFMG) Membro (FAE-UFMG) Membro ________________________________ ______________________________ Prof. Paulo Roberto Andery, Dr. Profa. Maria Regina A. Correia Dias, Dra. (EE-UFMG) Membro (ED-UEMG) Membro _________________________________ Profa. Ruth Verde Zein, Dra. (FAU-Mackenzie) Membro
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Para os meus pais, Albertina e Mivaldo, para minha esposa, Eliene, e para minhas filhas, Clara e Luiza.
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6 AGRADECIMENTOS
Concluir um trabalho como este no seria possvel sem a ajuda de muitas pessoas, por isso, meu agradecimento:
ao meu orientador, Prof. Marcelo Pinto Guimares, pelas orientaes, pelas
oportunidades que tive de aprender e por me ter conduzido ao longo deste trabalho;
aos professores que participaram do exame de qualificao, que muito contriburam para que este trabalho ficasse melhor: Ana Gomes, Paulo Andery e Otvio Brando;
minha esposa, Eliene, pelo incentivo, por me ajudar a manter o foco do doutorado em todos os momentos e por sua preciosa contribuio nesta tese, fundamentalmente, por
ajudar na anlise dos dados de campo com as teorias;
a toda a minha famlia, pelo aconchego e pela alegria de desfrutar momentos prazerosos;
Marcia Frana, colega e amiga, pelo apoio e incentivo ao comear o doutorado;
ao NPGAU, por apoiar minha participao nos congressos, sobretudo coordenadora
Fernanda Borges, e secretria Renata, pelo suporte em todos os momentos do doutoramento;
diretoria da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, pelo apoio financeiro na
participao de congressos durante o doutoramento;
aos colegas do meu departamento, representados pela Profa. Chefe Grace Roel Gutierrez, pelo apoio e, principalmente, por ter aliviado minha carga didtica no
segundo semestre de 2013.
Um agradecimento especial aos sujeitos protagonistas desta pesquisa:
aos arquitetos que participaram desta pesquisa: Alberto Dvila, Jlio Torres, Maurcio Miranda, Dbora, rica, Fernanda, Jrsica, Lucas, Jacqueline, Raquel, Virgnia,
Fernando, Marco Tlio, Joo Felipe, Lucas Cupertino, Tatiane, Jovina, Aiala, Pedro, Grazielle, Sarah, Bruno, Werner, Afonso, Cleverson, Ibsen, Jos Mauro, Graziella,
Pdua, Jnia, Lvia, Alessandro, Elozio, Paulinho, Cludia, Simone, Natlia, Flvia e Carlos Alberto.
aos estagirios que participaram desta pesquisa: Fernanda, Ricardo, Rachel e Ariam.
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7 RESUMO
Nesta tese, aborda-se o cotidiano da produo de projetos em escritrios de arquitetura, com o objetivo de desvelar como as pessoas aprendem a fazer/elaborar tais projetos na prtica. Para isso, relacionam-se duas abordagens antropolgicas aprendizagem de fazer projetos: a aprendizagem situada, de Jean Lave, e a constituio da habilidade, de Tim Ingold. O foco do estudo da aprendizagem aqui proposto centra-se nas prticas que levam o iniciante a compreender o processo baseando-se nas relaes com outros aprendizes e com os mais experientes, diferentemente dos estudos que investigam o ensino na sala de aula que focalizam as prticas docentes, revelando as formas como o projeto ensinado (a didtica). A pesquisa foi realizada em dois escritrios de arquitetura, compreendendo a anlise dos sistemas de gesto de projetos, para entender o funcionamento dos escritrios; a observao cotidiana da produo de projetos, para perceber as prticas do dia a dia e a participao das pessoas no projeto; e as entrevistas, com a finalidade de buscar informaes no percebidas na observao e mostrar como as questes relativas produo de projetos eram vistas pelas pessoas envolvidas no processo. A histria de vida dos sujeitos pesquisados aponta a participao em contextos que envolvem a arquitetura previamente formao acadmica e a prtica da arquitetura desde os primeiros semestres do curso. Percebeu-se que no cotidiano de trabalho nos escritrios de arquitetura h mltiplas situaes que promovem a aprendizagem e que os arquitetos aprendem com prticas especficas desses ambientes, como a manipulao de modelos (arquivo-referncia), a validao/avaliao do projeto (com a canetada) e a participao nas reunies de crtica ao projeto (reunies de CAC). Dentre essas prticas, a repetio, a observao e a relao entre pares fundamentam o processo de aprendizagem. Destaque-se que o acesso e a participao regulam as prticas cotidianas da aprendizagem do processo de fazer projetos arquitetnicos e o que se v no dia a dia a integrao e a interao entre as pessoas; so processos de aprendizagem (e no de ensino). Essas prticas reiteram a ideia de que aprender a projetar uma atividade complexa, que a aprendizagem um processo de mudana das prticas e das pessoas e, sobretudo, que aprender uma atividade mais relacional (coletiva) do que individual. Mostram, tambm, que aprender a fazer projetos arquitetnicos um processo contnuo, lento e requer muitos anos de prtica. As habilidades dos arquitetos so constitudas nesses ambientes e, portanto, nada tm de inatas. So prticas vivenciadas e aprendidas no dia a dia, so processos de redescoberta. Os processos e procedimentos da gesto de projetos, alm de regular, padronizar e ajudar no controle do processo de desenvolvimento de projetos, colaboram para que as pessoas aprendam nesses ambientes. As contribuies desta pesquisa podem servir para arquitetos, professores, professores-arquitetos e alunos. A principal delas traz tona essas prticas, que muitas vezes so invisveis e, em alguns casos, at subestimadas, mas que revelam como um iniciante se torna arquiteto cotidianamente nesses ambientes. Palavras-chave: Projetos de arquitetura. Aprendizagem. Cotidiano.
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8 ABSTRACT
In this thesis, it approaches the daily production of projects in architectural firms, aiming to reveal how people learn to do/develop such projects in practice. For this relate two anthropological approaches to learning making projects: a "situated learning" by Jean Lave and "constitution of skill" by Tim Ingold. The focus of the study of learning proposed here focuses on practices that lead the beginner to understand the process based on relationships with other learners and more experienced, unlike the studies that investigate learning in the classroom - that focus on teaching practices, revealing the ways in which design is taught (the teaching). The research was conducted in two architectural firms, including the analysis of project management systems, aiming to understand the functioning of the offices; everyday observation of production projects, to understand the practices of everyday life and people's participation in the project; interviews, in order to seek information not perceived in the observation and show how issues related to the production of projects were seen by the people involved in the process. The life history of the individuals pointing participation in contexts that involve the architecture prior to the academic education and practice of architecture from the first half of the course. It was noticed that the daily work in architectural offices there are multiple situations that promote learning and that architects learn from these practices specific environments, such as the manipulation of models (file-reference), validation/evaluation of the project and participation in the project review meetings. Among these practices, repetition, observation and peer relationship underlying the learning process. Stand out from the access and participation regulate the daily practices of learning the process of making architectural designs and what is seen in everyday life is the integration and interaction between people; are processes of learning (not teaching). These practices reiterate the idea that learning to project is a complex activity that learning is a process of changing practices and of persons and, above all, that learning is a more relational activity (collective) than individual. They show, too, to learn to do architectural projects is an ongoing process, slow and requires many years of practice. The skills of the architects are constituted in these environments and, therefore, have nothing innate. These practices are experienced and learned day by day, are processes of "rediscovery". The processes and procedures of project managementin addition to regular, standardize and help control project development process, collaborate so that people learn in these environments. The contributions of this research can serve to architects, teachers, teachers-architects and students. The main one brings up these practices, which are often invisible and in some cases even underestimated, but that reveal how a beginner becomes architect daily in these environments. Keywords: Architecture Projects. Apprenticeship. Everyday.
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Sumrio INTRODUO ............................................................................................................................ 10
1 CONSTRUO DO OBJETO DE PESQUISA ......................................................................... 12 1.1 Dilogo com a antropologia ................................................................................................... 20
1.1.1 Aprendizagem situada .................................................................................................... 21 1.1.2 Constituio da habilidade ............................................................................................. 27
1.2 Os percursos da pesquisa ..................................................................................................... 32 1.2.1 Estudo exploratrio: possveis campos de pesquisa ...................................................... 33 1.2.2 Anlise de documentos: compreendendo o processo de projeto ................................... 36 1.2.3 Segundo estudo exploratrio: a prtica cotidiana no escritrio ...................................... 39 1.2.4 Observao (e observador) ............................................................................................ 42 1.2.5 Entrevistas: novas descobertas ...................................................................................... 52
2 OS CONTEXTOS DA PESQUISA ............................................................................................ 55 2.1 Os escritrios ......................................................................................................................... 55
2.1.1 O Escritrio A ................................................................................................................. 55 2.1.2 O Escritrio C ................................................................................................................. 58 2.1.3 Os percursos de acesso (dos sujeitos) arquitetura ..................................................... 62 2.1.4 A rotina de trabalho no Escritrio C ................................................................................ 68
2.2 As fases na produo dos projetos ....................................................................................... 70 2.2.1 Desconexo do projeto com a execuo ....................................................................... 73
2.3 Gesto de projetos: Alguns procedimentos eu cumpro, outros incorporo .......................... 79 2.4 A especializao: celeridade na produo de projetos ......................................................... 93 2.5 As avaliaes: mudana na forma de participao ............................................................... 97
3 ARQUITETURA COISA DE GENTE ADULTA: h necessidade de muitos anos de esforo e repetio ................................................................................................................................... 105 3.1 Acesso e participao nas prticas de produo dos projetos ........................................... 105
3.1.1 As regras do jogo: o treinamento ................................................................................. 108 3.1.2 De estagirio a arquiteto master: as formas de participao ....................................... 110 3.1.2.1 Reflexes sobre as formas de participao .............................................................. 127 3.1.3 O acesso s informaes na produo dos projetos ................................................... 133 3.1.3.1 O jogo hierrquico entre o trabalho braal versus trabalho intelectual ..................... 137
3.2 Oportunidades para aprender ............................................................................................. 147 3.2.1 Utilizao de arquivo-referncia ................................................................................... 148 3.2.2 A canetada ................................................................................................................. 153 3.2.3 A participao no CAC ................................................................................................. 156 3.2.4 A repetio ................................................................................................................... 163 3.2.5 Aprendo vendo: a observao ................................................................................... 171 3.2.6 A relao entre pares ................................................................................................... 175
4 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................... 180
REFERNCIAS ......................................................................................................................... 186
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10 INTRODUO
O estmulo para o desenvolvimento desta pesquisa surgiu das minhas inquietaes
com afirmaes frequentes (feitas em debates nos contextos de formao universitria)
sobre os processos de aprendizagem relacionados prtica de fazer projetos. Nos
corredores acadmicos e nas reunies institucionais e pedaggicas, comum ouvir de
colegas professores, tanto do curso de design quanto do de arquitetura, as seguintes
afirmaes: Projeto no se ensina; se aprende; Para projetar, tem que ter dom; O
designer, ou o arquiteto j nasce pronto; preciso ter feeling para projetar. Tais
afirmativas consideram, em sua maioria, as habilidades do designer ou do arquiteto
como inatas (dom). No mbito da formao, esse discurso acaba por viabilizar
hierarquias e leva as pessoas, principalmente professores, a privilegiar os bons alunos
e, em alguns casos, a afastar os que tm maiores dificuldades com as atividades
relacionadas ao desenvolvimento do projeto.
Essa discusso sobre a aprendizagem permeia tambm o campo de outras atividades,
como os esportes, as artes, o artesanato e a msica, nas quais a ideologia do dom
ganha fora. Contrastando com a percepo de que a habilidade se trata de dom, h
estudos demonstrando que essas prticas so aprendidas: a aprendizagem da pesca
(SAUTCHUK, 2007), a aprendizagem do futebol (FARIA, 2008), a aprendizagem da
dana (RESENDE, 2011), a aprendizagem da umbanda (BERGO, 2011), e a
constituio de habilidades no esporte e na msica (BUENO, 2007).
sobre a aprendizagem no campo da arquitetura que versa este trabalho.
No captulo 1 apresento a construo do objeto de pesquisa, o ponto de partida da
trama para colocar a aprendizagem como centro desta tese. Trago, tambm, as
abordagens analticas para esta pesquisa, principalmente as contribuies da
antropologia que me permitiram compreender e aprender sobre as relaes sociais e a
constituio da habilidade para que eu pudesse pesquisar a aprendizagem na prtica,
nos escritrios de arquitetura.
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11 No captulo 2, descrevo e analiso os contextos da pesquisa: o cotidiano dos escritrios
como so os ambientes, quem so as pessoas; as fases do projeto; os processos e
procedimentos relacionados gesto de projetos e a relao com a aprendizagem; a
especializao que proporciona celeridade na produo dos projetos; e as avaliaes,
que legitimam a mudana na forma de participao das pessoas no processo de
projeto.
No captulo 3, exponho e analiso as prticas de produo dos projetos: como o
acesso s informaes; como so as formas de participao das pessoas no
desenvolvimento dos projetos; o treinamento dos funcionrios e as regras do jogo; as
tenses que permeiam as relaes e as oportunidades que as pessoas envolvidas
nesses contextos tm para aprender.
No captulo 4, apresento minha concluso, as principais snteses, reflexes e as
contribuies que esta pesquisa traz, principalmente, para a arquitetura.
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12 1 CONSTRUO DO OBJETO DE PESQUISA A arquitetura um campo com muitas prticas e diversas formas de atuao. A
principal delas o desenvolvimento de projetos arquitetnicos, um processo complexo,
fluido e dinmico. Complexo, porque depende de uma srie de fatores sociais,
legislativos, ambientais, tecnolgicos, mercadolgicos, dentre outros e de interesses
dos distintos agentes envolvidos (usurio, arquiteto, empreendedor, construtor) para o
desenvolvimento do projeto. Fluido porque se prende s diversas possibilidades de
configurao que devem estar de acordo com o ambiente e se conformar e configurar
naquele lugar, para aquelas pessoas, para atender aos seus usos e desejos. Dinmico,
em razo do grande volume de informaes geradas e trocadas entre as pessoas e,
principalmente, do movimento das revolues e reviravoltas do projeto durante seu
desenvolvimento.
Contudo, no h estudos que abordam como os iniciantes (principalmente estagirios)
aprendem a fazer projetos na prtica profissional. O que se encontra so
pesquisas/estudos que tm como foco a sala de aula, o ensino1. Entretanto, no
somente de prticas de ensino a aprendizagem constituda. Conforme afirma Brando
(2011, p. 3),
o conhecimento da histria da arquitetura e da tecnologia da construo civil no habilita ningum a fazer projeto. E para se fazer projeto no suficiente o conhecimento acerca de todos os discursos existentes sobre arquitetura. Esse tipo de conhecimento pode ser suficiente para formar um bacharel, mas nunca um profissional capacitado para a prtica da profisso. Algo alm do que ensinado em disciplinas discursivas precisa ser dominado por aquele que se dispe a projetar. E esse algo no um contedo transmissvel de acordo com o modo convencional de se ver o tema: um professor que transmite um contedo tido como verdadeiro a um grupo de alunos.
1 Pode-se constatar a supremacia das investigaes sobre o ensino em projetos de arquitetura vrios dos quais tm como foco a sala de aula. Mesmo os que consideram a aprendizagem como destaque (em alguns casos, a palavra aparece no ttulo do trabalho) tm como associao direta a relao com o ensino e em muitos casos, com a sala de aula ou outros ambientes de ensino, onde h predomnio da forma escolar. Alguns exemplos: Carsalade (1997, 2003); Almeida (2001); Lima (2003); Vidigal (2004); Campomori (2004); Valente (2004); Teixeira (2005); Moreira (2005); Amaral (2006, 2007); Rodriguez (2008); Klln (2009); Ges (2010, 2011); Vidigal (2010); Andrade, M.; Andrade, P. (2011); Panet (2011).
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13 Se a formao escolar no o suficiente para formar o arquiteto para lidar com o
desenvolvimento de projetos arquitetnicos, h necessidade de buscar compreender
onde, ento, acontece essa formao.
Esse tema da aprendizagem ganha centralidade se, como argumenta Rodriguez (2008,
p. 174), busca-se reforar a importncia das prticas cotidianas fora da sala de aula
em relao ao projeto: [...] o envolvimento com prticas que no possuem carter
acadmico, por exemplo, estgio e trabalho em escritrio, que, segundo a autora,
mostram-se relevantes quanto a sua influncia no ateli.
Uma dessas prticas o estgio curricular supervisionado nos cursos de graduao em
arquitetura. De acordo com a Resoluo n. 2, de 17 de junho de 2010, que institui as
diretrizes curriculares nacionais do curso de graduao em Arquitetura e Urbanismo O
estgio curricular supervisionado dever ser concebido como contedo curricular
obrigatrio. Ainda, segundo o documento, [...] so conjuntos de atividades de
formao e [...] procuram assegurar a consolidao e a articulao das competncias
estabelecidas (BRASIL, 2010).
De acordo com o Projeto Pedaggico do Curso de Graduao em Arquitetura e
Urbanismo da UFMG, turno diurno, o Estgio Curricular Supervisionado (ECS) :
Contedo obrigatrio com 300 horas (20 crditos) e pode ser realizado a partir do 6 perodo. Tem por objetivo o aprendizado de competncias prprias da atividade profissional contextualizao curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidad e para o trabalho (PROJETO... 2012, p. 23, grifos nossos).
Sendo obrigatrio para a formao do aluno, torna-se importante investigar como so
as relaes e tenses nas atividades dessas prticas sociais, bem como pesquisar
como se d a consolidao dessas competncias prprias da atividade profissional.
Alguns estudos sobre a prtica do projeto em escritrios de arquitetura (ALMEIDA,
1997; LIMA NETO, 2007; BRANDO, 2008; SALVATORI, 2008; KATO, 2012) colocam
luzes importantes sobre aspectos que envolvem a prtica profissional e mostram a
importncia dessas investigaes. A pesquisa sobre a aprendizagem de fazer projetos
arquitetnicos, porm, pode desvelar prticas cotidianas que no so contempladas
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14 nesses estudos, mas que so fundamentais para a formao dos futuros profissionais.
Investigar a aprendizagem nesse contexto pode favorecer o desvelamento das prticas
que esto envolvidas no dia a dia dos aprendizes e que, geralmente, no so
percebidas.
Os estudos que mais se aproximam do objeto desta tese (a aprendizagem) so os de
Donald Schn2 e os de Bryan Lawson3.
Schn (2000), em seu trabalho como pesquisador e consultor, concentrou-se na
reflexo no aprendizado organizacional e na eficcia profissional. Investigou o ensino e
a aprendizagem prtica em quatro contextos: em um ateli de projeto de arquitetura,
em uma master class em performance musical, em uma superviso analtica e em um
seminrio de habilidades de aconselhamento e consultoria. Para Schn (2000), o
projeto de arquitetura um modelo do tipo de talento artstico que outros profissionais
precisam adquirir, e o ateli de projetos, com seu padro caraterstico de
aprendizagem, mediante o fazer e da instruo, exemplifica as situaes inerentes a
qualquer aula prtica reflexiva e s condies e os processos essenciais para o seu
sucesso. Sobre os alunos dos cursos de Design e Arquitetura, o autor afirma: Os
estudantes aprendem por meio do fazer ou da performance, na qual buscam tornar-se
especialistas, e so ajudados nisso por profissionais que os iniciam na prtica
(SCHN, 2000, p. 25).
De acordo com Schn (2000, p. 22), h um ncleo central de talento artstico inerente
prtica dos profissionais que reconhecemos como mais competentes [que] um
exerccio de inteligncia, uma forma de saber. E aponta, ainda, que, da mesma forma
que deveramos investigar as manifestaes do talento artstico profissional,
deveramos examinar tambm as vrias maneiras atravs das quais as pessoas o
adquirem. 2 Schn foi professor de estudos urbanos e educao no Instituto de Tecnologia de Massachusetts e
obteve seu Ph.D. em filosofia pela Universidade de Harvard. 3 Lawson arquiteto e professor de projeto, estudou na Escola de Arquitetura de Oxford e no
Departamento de Psicologia Aplicada da Universidade de Aston, em Birmingham, onde obteve seu mestrado e doutorado.
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15 nesse sentido, o de pesquisar como as pessoas formam essas habilidades para
projetar, que, neste trabalho, proponho investigar o processo na elaborao do projeto
no cotidiano.
Sobre o ateli de projetos, Schn (2000, p. 71) apresenta um dilogo de um professor
com uma aluna ao longo do desenvolvimento de um projeto de arquitetura e analisa o
que ele denomina de reflexo-na-ao: refletir sobre a prtica enquanto a realiza.
Para ele, o repensar de algumas partes de nosso conhecer-na-ao leva a
experimentos imediatos e a mais pensamentos que afetam o que fazemos. E segundo
ele, o que acontece durante o desenvolvimento do projeto de arquitetura e de design:
o aluno levado a refletir sobre suas decises e atitudes e a modific-las durante o
processo.
Em relao aprendizagem de projetos de arquitetura, para ele, h algumas coisas que
no so ensinveis, mas que podem ser aprendidas4:
Ao estudante, no se pode ensinar o que ele precisa saber, mas se pode instruir. Ele tem que enxergar, por si prprio e sua maneira, as relaes entre meios e mtodos empregados e resultados atingidos. Ningum mais pode ver por ele, e ele no poder ver apenas falando-se a ele, mesmo que o falar correto possa guiar seu olhar e ajud-lo a ver o que ele precisa ver (SCHN, 2000, p. 25).
As abordagens de Lawson (2011), por sua vez, tm como referncia as salas de aula
onde lecionou nos cursos de Arquitetura e Design. Seu foco de pesquisa no processo
de projeto. Segundo ele, projetar uma habilidade altamente complexa e sofisticada.
No um talento mstico concedido apenas aos que tm poderes recnditos, mas uma
habilidade que tem de ser aprendida e praticada, como se pratica um esporte ou se 4 Este um assunto polmico no campo da arquitetura e essa afirmao contestada por alguns
pesquisadores. Ges (2010, p. 257), que acompanhou duas alunas durante o desenvolvimento de um projeto em uma disciplina em uma escola de arquitetura argumenta: Se, no desenvolvimento deste trabalho, foi possvel perceber, por meio do exemplo da sala de aula de um professor de projeto, que houve uma aprendizagem por parte das alunas durante o desenvolvimento da disciplina, confirma-se tambm, que houve ensino de projeto. Panet (2011, p. 1) tambm, afirma: Esse trabalho localiza-se no inventrio das pesquisas que procuram contribuir para a qualidade do ensino de projeto de arquitetura no contexto da formao do arquiteto brasileiro, numa condio de aceitao da sua ensinabilidade mesmo reconhecendo o carter singular e aberto que deve ter esse saber pedaggico.
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16 toca um instrumento musical (LAWSON, p. 25).
Mas at que ponto pode-se comparar a aprendizagem de fazer projeto (de arquitetura
ou de design) com a de um esporte ou instrumento musical? Como ser visto adiante,
h similaridades, como a necessidade de praticar, de repetir, de se engajar, dentre
outras. Mas h, tambm, especificidades que o diferem das prticas de um esporte ou
instrumento musical.
Ao referir-se ao processo de projetar tanto em arquitetura quanto em design, Lawson
(2011, p. 49) afirma que por definio, esse processo acontece dentro da cabea. Fica
evidente o foco da abordagem utilizada pelo autor, que aprofundar o conhecimento
sobre procedimentos e atividades cognitivas do processo de projeto (KOWALTOWSKI,
2011, p. 7).
Em outro momento, Lawson (2011, p. 136) afirma que o controle e a combinao de
pensamento racional e imaginativo constituem uma das habilidades mais importantes
do projetista. Apesar de afirmar que a habilidade para projetar pode ser aprendida, o
autor afirma que o processo totalmente mental e denomina de processo vernacular
quando o processo de projetar est intimamente associado ao fazer, como no caso do
arteso, que cria sua pea ao mesmo tempo em que a constri.
A proposta nesta pesquisa se ope a essa abordagem. Ou seja, considera as
atividades de desenvolvimento do projeto envolvendo a pessoa como um todo, e no
somente um processo mental. Projetar uma atividade corporal e, como veremos, uma
atividade mais relacional e menos individual.
Os estudos de Schn (2000) e os de Lawson (2011) sobre o ensino e a aprendizagem
foram realizados em atelis de projeto ou em outros ambientes tambm preparados
para o ensino. Esses estudos e investigaes, os quais congregam a viso da
aprendizagem como um processo, trazem contribuies relevantes para as reas de
educao, do design e da arquitetura. Mas esses ambientes/situaes se diferenciam
das prticas cotidianas por se tratar de ambientes preparados didaticamente para o
ensino.
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17 Situo-me entre aqueles que percebem esse processo (de projetar) como aprendizagem
e no como dom, nem circunscrito apenas s situaes sociais/formais de ensino (a
escola). Uma das questes que me instigou a elaborar esta pesquisa foi compreender
como as pessoas (alunos graduandos) aprendem a fazer projetos no dia a dia, na
prtica, em escritrios, e no na sala de aula.
Mas por que, quando falamos em aprendizagem, a maioria das pessoas a associam ao
ensino? Para responder a essa questo destaco as argumentaes de Vincent, Lahire
e Thin (2001, p. 11), sobre a predominncia histrica do modelo escolar na Frana: eles
tratam da inveno da forma escolar para compreender como, no sem dificuldades,
um modo de socializao escolar se imps a outros modos de socializao.
Os autores situam a expanso da escolarizao a relao social entre um professor e
um aluno da sociedade. Segundo eles, [...] a partir de 1815, possvel assistir
constituio de formas relativamente invariantes (isto , recorrentes) de relaes
sociais: certas formas escolares de relaes sociais, que de certo modo, destituram
outras formas de educar (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 28)5. Com isso, o ato de
ensinar passou a ser o foco e induziu que a aprendizagem fosse considerada uma
consequncia desse processo, no qual somente haveria aprendizagem onde houvesse
ensino. De acordo com eles, h cinco pontos que caracterizam a forma escolar: 1) a
escola como espao especfico, separado das outras prticas sociais est vinculada
existncia de saberes objetivados; 2) a escola e a pedagogizao das relaes sociais
de aprendizagem esto ligadas constituio de saberes escriturais formalizados; 3) a
codificao dos saberes e prticas escolares torna possvel uma sistematizao do
ensino e, deste modo, permite a produo de efeitos de socializao durveis; 4) a
escola como instituio na qual se fazem presentes formas de relaes sociais
baseadas em um enorme trabalho de objetivao e codificao o lugar da
aprendizagem de formas de exerccio do poder; 5) para ter acesso a qualquer tipo de
5 Para Vincent, Lahire e Thin (2001), a forma escolar se autonomiza em relao s outras relaes
sociais: o mestre no mais um arteso transmitindo o saber-fazer a um jovem. Aquele que aprendia em primeiro lugar, a criana fazia a aquisio do saber ao participar das atividades de uma famlia, de uma casa. Ou seja, aprender no era distinto do fazer.
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18 saber escolar necessrio dominar a lngua escrita (do grafismo redao e
gramtica, passando pela leitura) (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001).
Ainda, segundo esses autores, a forma escolar (em graus diversos) atravessa as
mltiplas prticas socializadoras e possvel encontrar suas marcas na socializao
familiar, nas formaes em empresas e nos estgios de formao6:
A emergncia da forma escolar, forma que se caracteriza por um conjunto coerente de traos entre eles, deve-se citar, em primeiro lugar, a constituio de um universo separado para a infncia; a importncia das regras na aprendizagem; a organizao racional do tempo; a multiplicao e a repetio de exerccios, cuja nica funo consiste em aprender e aprender conforme as regras ou, dito de outro modo, tendo por fim seu prprio fim , a de um novo modo de socializao, o modo escolar de socializao. Este no tem cessado de se estender e se generalizar para se tornar o modo de socializao dominante de nossas formas sociais (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 38).
Nesse mesmo sentido o de explicar a associao direta entre ensino e aprendizagem
, Wolcot7 (1982, p. 83) argumenta que os cientistas sociais ou educadores tm
considerado ensino e aprendizagem como sinnimos e que por isso, h maior
interesse em informar as tentativas para transmisso da cultura, subestimando aquilo
que os aprendizes aprendem. Ou seja, h maior nfase no processo de
ensino/transmisso comparado ao de aprendizagem. Estudar a aprendizagem
diferente de estudar prticas de ensino. Enquanto as prticas de ensino podem ser
mais facilmente localizadas no tempo e no espao (VICENT; LAHIRE; THIN, 2001), a
aprendizagem algo que perpassa o viver (LAVE; PACKER, 2008).
O foco do estudo da aprendizagem aqui proposto centra-se no aprendiz, nas prticas
que o levam a compreender o processo baseando-se nas relaes com outros
aprendizes e com os mais experientes. Diferentemente dos estudos que investigam o
ensino na sala de aula que focaliza as prticas docentes, revelando as formas como o 6 Sobre esse assunto da presena da forma escolar mesmo fora da escola veremos, no item 2.5 As
avaliaes: mudana na forma de participao, como esse predomnio acontece na prtica. 7 O primeiro debate sobre aprendizagem, na antropologia, ocorreu em 1980 quando Wolcot (1982),
interessado em questes relacionadas aprendizagem em situaes no institucionais, convidou colegas a dividirem seus pontos de vistas no simpsio anual da Associao Antropolgica Americana.
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19 projeto ensinado (a didtica), nesta pesquisa lida-se com a ideia de aprendizagem de
Lave e Packer (2008). Ou seja, de que estamos sempre aprendendo e que no
dependemos de um local especfico para que a aprendizagem ocorra:
Um entendimento mais completo do cotidiano traz com ele uma alternativa para o entendimento da aprendizagem: que ela ubqua (que est ao mesmo tempo em toda parte) e em curso na atividade social. um erro pensar a aprendizagem como um tipo especial de atividade que acontece somente em um tempo particular e local especial arranjados para ela (LAVE; PACKER, 2008, p. 19, traduo nossa).
No se trata de considerar o ensino ou a aprendizagem em sala de aula como uma
questo irrelevante, mas, sim, de buscar outros olhares para desvelar como a
aprendizagem ocorre nos locais onde estamos habituados a no perceb-la e, por isso,
em alguns casos, a trat-la como inexistente; ou, mesmo sabendo que h
aprendizagem, buscar investigar como ela se d nesses contextos.
Com esta pesquisa, trago tona os modos de elaborao dos projetos arquitetnicos,
assim como afirma Vinck (2013, p. 273):
As prticas tcnicas desenvolvidas nas empresas, nos departamentos e nos laboratrios de pequisa so ainda muito mal-conhecidas. A despeito das especulaes sobre as causas e consequncias sociais das tcnicas e da proliferao de prescries metodolgicas escritas, sempre muito difcil se ter uma ideia precisa das atividades concretas tal como acontecem.
A escolha pela arquitetura (e no o design, rea de minha formao) se deve,
principalmente, por ser uma rea que se aproxima do design em alguns aspectos no
processo de desenvolvimento dos projetos e em alguns mtodos utilizados para
projetar e se distancia em outros, como na escala do produto, da produo e nos
meios produtivos. Essa troca de terreno (ou estranhamento) foi uma proposta profcua
para esta investigao.
Portanto, o objetivo investigar como acontecem as relaes de aprendizagem dos
novatos com os mais experientes e como se d a redescoberta8 para os que esto 8 Conforme veremos mais adiante, Ingold considera o processo de aprendizagem como uma
redescoberta.
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20 aprendendo a fazer projetos de arquitetura. Supondo-se que o conhecimento no
estoque e que se aprende no somente na teoria, o objetivo geral com esta pesquisa investigar como se aprende a fazer/elaborar projetos de arquitetura nas relaes
sociais cotidianas, ou seja, na prtica.
Os objetivos especficos so: investigar quais prticas cotidianas afetam a aprendizagem do processo de projetar; pesquisar como so constitudas as habilidades
nos diferentes nveis profissionais de participao (estagirio e arquitetos) no processo
de fazer projetos; investigar e elucidar o que se aprende nesse processo, como
procedimentos, habilidades e recursos; e compreender as relaes e participaes
sociais de aprendizagem na produo de projetos nos diferentes nveis profissionais.
O objetivo de pesquisa acima exposto trouxe como desafio a busca por teorias que
pudessem contribuir para o entendimento dessas prticas.
1.1 Dilogo com a antropologia
Diante do desafio de pesquisar a aprendizagem nos escritrios, o dilogo com a
antropologia se tornou benvolo, sobretudo com as teorias antropolgicas da
aprendizagem: a aprendizagem situada, de Jean Lave 9 e Etienne Wenger e a
constituio da habilidade, de Tim Ingold10.
Elas foram escolhidas por tratarem a questo da aprendizagem explicitamente nas
teorias antropolgicas, por discutirem a habilidade como um campo de relaes e,
principalmente, por possibilitarem um olhar de estranhamento para as prticas
cotidianas, s quais estamos habituados a no perceber a aprendizagem, por isso, na
maioria dos casos, a trat-la como inexistente.
9 Jean Lave antroploga social e terica da aprendizagem social. Atualmente, professora de
Educao e Geografia da Universidade da Califrnia, Berkeley. Juntamente com Etienne Wenger, foi pioneira na teoria de aprendizagem situada.
10 Tim Ingold antroplogo, atualmente na Universidade de Aberdeen. Faz parte da Academia Britnica e da Sociedade Real de Edimburgo.
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21 As argumentaes desses autores permitem perceber a aprendizagem como processo
e se opem quelas que colocam as habilidades (do arquiteto) como inatas. So
abordagens que se complementam: a primeira, por colocar foco na ideia de
participao, por nos ajudar a entender as prticas cotidianas e a posio de cada
participante no processo. A segunda, por ser uma abordagem ecolgica de cultura e
por contribuir para nossa compreenso do processo de constituio da habilidade do
aprendiz.
Ingold (2007, p. 287-288) nos d uma noo do que seja o trabalho da e com a
antropologia:
A antropologia, talvez mais do que qualquer outra disciplina, diz a aprender a aprender. No tanto o estudo de pessoas, e sim um modo de estudar com as pessoas, uma prolongada aula de mestre em que o novio gradualmente aprende a ver as coisas e, obviamente, aprende tambm a ouvi-las e senti-las do modo como fazem seus mentores. Uma educao em antropologia, portanto, serve no somente para nos fornecer conhecimento sobre o mundo e sobre os seres humanos e suas sociedades. Mais do que isso, ela educa nossa percepo do mundo e abre nossos olhos para outras possibilidades de ser. E, medida que essas possibilidades afetarem a nossa prpria experincia, podemos ser levados a novas descobertas. Precisamente por isso, no entanto, a antropologia um assunto sem qualquer corpo estabelecido de conhecimento que o professor possa pretender passar adiante e os estudantes assimilarem. De fato, a tarefa bsica da antropologia compreender a compreenso de outras pessoas no diferente da tarefa com que todos os seres humanos se confrontam diariamente em suas tentativas de forjar uma vida social; o que vale para a educao em antropologia vale tambm para a educao na vida. Uma das coisas que a pesquisa antropolgica tem mostrado, repetidamente, que os novatos/aprendizes no so recipientes passivos cujas capacidades mentais devem ser preenchidas com um contedo peculiar sua tradio, mas, pelo contrrio, so participantes ativos num processo em que o conhecimento est permanentemente sendo criado e descoberto de novo. Se esse o modo pelo qual as pessoas aprendem em qualquer sociedade, ento deve ser tambm o modo pelo qual os estudantes aprendem em nossa prpria sociedade (grifos nossos, traduo nossa).
1.1.1 Aprendizagem situada
Lave e Wenger (1991) elaboraram os conceitos sobre aprendizagem tendo como
referncia cinco estudos que descreviam diferentes experincias: o aprendizado das
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22 parteiras maias de Yucatan, no Mxico; o aprendizado dos alfaiates Vai e Gola, na
Libria; o aprendizado dos oficiais intendentes na marinha americana; o aprendizado
dos aougueiros em supermercados, nos Estados Unidos; e o aprendizado dos
alcolatras que no bebem, da associao de Alcolatras Annimos (AA).
Para eles, a aprendizagem parte da prtica social e trata-se de um processo no
explcito, um dos motivos que levam ideia do dom, porque, geralmente, as atividades
do dia a dia no so percebidas. Os autores descrevem a estrutura de organizao da
prtica social cotidiana, que permite s pessoas se engajarem na prtica e, nesse
processo, como elas aprendem.
Para Lave e Wenger (1991, p. 33), no h atividade que no seja situada:
Isso significa uma nfase na compreenso abrangente que envolve a pessoa inteira, em atividade no e com o mundo; e ver que agente, atividade e mundo se constituem mutuamente, em vez de ver a pessoa como um corpo receptor de conhecimento factual sobre o mundo (traduo nossa).
Para os autores, a aprendizagem no est meramente situada na prtica, como se
fosse algum processo independente objetivado, que somente necessita estar localizado
em algum lugar. Aprender uma parte integral da prtica social generativa na vivncia
do mundo.
Como mostra Lave (1999, p. 3), as teorias da aprendizagem so, em sua maioria, sobre
processos psicolgicos dos indivduos que levam aquisio do conhecimento,
tipicamente estruturados como (1) transmisso (treino, ensino, inculcao), que leva
para (2) entrada, estoque na memria, internalizao do que transmitido, seguindo-se
(3) recuperao e transferncia para a soluo de problemas em novas situaes
(traduo nossa).
Para traduzir um enfoque analtico especfico sobre a aprendizagem, Lave e Wenger
(1991) propuseram o conceito de Participao Perifrica Legitimada (LPP, no original
Legitimate Peripheral Participation) como um descritor do compromisso na prtica social
que vincula a aprendizagem como um constituinte integral.
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23 Segundo os autores, esse conceito proporciona uma maneira de falar sobre as
relaes entre os novatos e os veteranos, sobre as atividades, identidades, artefatos e
comunidades de conhecimento e prtica (LAVE; WENGER, 1991, p. 29, traduo
nossa). Os autores explicam que o termo legitimado adquire uma caracterstica
definidora das maneiras de pertencer a um grupo, e no uma condio crucial para a
aprendizagem. A periferialidade sugere que h formas mltiplas e variadas de
participao e no h correspondncia/ligao com o centro ou centralidade.
Corresponde s localidades e s diversas formas de participao de cada um nas
prticas cotidianas. Cada componente indispensvel definio e compreenso do
outro e ambos no podem ser considerados separadamente: legtimo versus ilegtimo,
perifrico versus central, participao versus no participao (LAVE; WENGER, 1991,
p. 35, traduo nossa).
Segundo Lave (2011), o termo LPP foi uma tentativa de propor um esquema analtico
para descrever as prticas sociais cotidianas". Tentando explicar em outras palavras,
para que o aprendizado acontea deve haver participao, a qual tem vrios modos e
lugares de acontecer na prtica. Ou seja, ser perifrica e tem de ser aceita pelos
membros do grupo: legitimada.
Para os autores, os aspectos individuais do enfoque caracterstico de muitas teorias de
aprendizagem parecem concentrar-se somente na pessoa. A aprendizagem situada
concentra-se, na estrutura da prtica social, na participao. Ela implica o interesse
explcito sobre a pessoa, o que, em razo disso, a princpio, pode parecer contraditrio.
Mas o foco da aprendizagem situada est na relao. Ou seja, esse enfoque promove
uma viso de conhecimento das atividades de pessoas especficas em circunstncias
peculiares. E a pessoa definida conforme se definem essas relaes. Alm disso,
argumentam que ver a aprendizagem como Participao Perifrica Legitimada significa
que ela no meramente uma condio de membro ou participao, mas por si s uma
forma evolutiva de participao (LAVE; WENGER, 1991, p. 53, traduo nossa).
A Participao Perifrica Legitimada constitui um ponto conceitual, como um
fundamento em relao aos processos comuns e inerentes produo da mudana
das pessoas. Dessa forma, as questes levantadas pelos autores so sobre: a
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24 organizao cultural do espao nos lugares de atividade e circulao do conhecimento
direto; a estrutura de acesso dos iniciantes atividade em curso e transparncia da
tecnologia, as relaes sociais e as formas de atividade; a segmentao, a distribuio
e a coordenao da participao, bem como a legitimidade da mudana de
participao; seus conflitos caractersticos, interesses, significados comuns e
interpretaes cruzadas; e a motivao de todos os participantes diante de suas
mudanas de participao.
O processo de reproduo deve ser decifrado com a finalidade de entender as formas
especficas de Participao Perifrica Legitimada atravs do tempo. Ou seja, a
transformao dos iniciantes em veteranos
requer uma concepo mais ampla das biografias individuais e coletivas do segmento formado nos estudos sobre os iniciantes. Assim, podemos comear as anlises das mudanas de formas de participao e identidade das pessoas que so incorporados em uma participao sustentada em uma comunidade de prtica: desde seu ingresso como recm-chegado, a sua transformao em um veterano em relao aos novos recm-chegados, at o ponto onde estes recm-chegados se transformam em veteranos (LAVE; WENGER, 1991, p. 56, traduo nossa).
Para eles, entre as ideias que podem ser proveitosas em uma perspectiva social da
aprendizagem esto o carter problemtico dos processos de aprendizagem e os ciclos
de reproduo social, assim como a relao dos dois. Os ciclos emergem nas
contradies e lutas inerentes prtica social. Em relao ao carter problemtico, os
autores citam duas questes: a participao sustentada dos recm-chegados, que, ao
se tornarem veteranos, deve envolver conflitos entre as foras que mantm os
processos de aprendizagem e aqueles que trabalham contra eles; e, aprender nunca
um processo simples de transferncia e assimilao: Aprendizagem, transformao e
mudana esto sempre envolvidas uma com a outra, e o status quo requer tanto
explicao como a mudana (LAVE; WENGER, 1991, p. 57, traduo nossa).
Para Lave e Wenger (1991), sempre quando pensamos na aprendizagem, a primeira
coisa que cogitamos a relao mestre-aprendiz. Mas, na prtica, os papis do mestre
so surpreendentemente variveis no tempo e no espao, e a relao mestre-aprendiz
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25 no uma caracterstica definidora da aprendizagem. Nos casos em que eles
estudaram h nitidamente essa variao; em alguns, no h sequer essa relao
como nos aprendizes de parteiras e marinheiros e, em outros, essa relao (mestre-
aprendiz) que define o acesso legtimo dos aprendizes na participao das
atividades produtivas. Sobre esse acesso, argumentam que, dessa maneira, a forma
na qual tal acesso legtimo assegurado aos aprendizes depende das caractersticas
da diviso do trabalho e do ambiente social no qual a comunidade de prtica est
localizada (LAVE; WENGER, 1991, p. 92, traduo nossa).
Esses autores argumentam, tambm, sobre as formas e maneiras que regulam as
prticas sociais para que a aprendizagem possa ocorrer e que, em muitos casos, a
relao com os aprendizes do mesmo nvel se torna mais presente e contribui
significativamente para a aprendizagem do que a relao mestre-aluno.
Relatam que, nos cinco estudos de caso que analisaram, os investigadores observaram
uma parcela muito pequena de ensino, sendo o fenmeno mais bsico, nesses casos, a
aprendizagem. Segundo eles, h incentivos poderosos para o aprendizado, porque os
aprendizes, como participantes perifricos, podem desenvolver uma perspectiva que os
leva a ver do que se trata e o que oferecido para aprender (LAVE; WENGER, 1991, p. 93, traduo nossa).
Para eles, aprender em si uma prtica improvisada: um currculo de aprendizagem,
implantado em oportunidades para se envolver na prtica (LAVE; WENGER, 1991, p. 93). Asseguram que as oportunidades para aprender esto mais frequentemente na
estrutura dada nas prticas de trabalho do que nas relaes mestre-aprendiz
fortemente assimtricas.
Afirmam que aprender mais do que observao e imitao: envolve a participao
tanto em absorver como em ser absorvido na cultura da prtica. Um extenso perodo
de periferialidade legtima proporciona aos iniciantes oportunidades para construir uma
cultura da prtica: com quem est envolvido; o que fazem; o que parece ser a vida
cotidiana; como os mestres falam, caminham, trabalham e como conduzem a vida;
como as pessoas que no fazem parte da comunidade se relacionam com ela; o que os
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26 outros iniciantes esto fazendo; o que os iniciantes precisam aprender para se tornarem
especialistas. Isso tudo inclui a compreenso de como, quando e com quem colaboram
os veteranos, o que conspiram, se eles se opem, se respeitam e se admiram. Alm
disso, se oferecem exemplos (que so os fundamentos e a motivao para a atividade
de aprendizagem), incluindo mestres, produtos acabados e aprendizes mais avanados
no processo de transformao de um completo especialista.
Para eles, a finalidade da aprendizagem e a da prtica cotidiana no coincidem: as
atividades de produo devem ser aprendidas em diferentes sequncias em relao s
tarefas nas quais o processo de produo se desenvolve. Os iniciantes realizam
atividades perifricas, menos intensas, menos complexas e menos vitais antes de
aprenderem os aspectos centrais da prtica.
Outra forma de delinear o processo de aprendizagem mediante a anlise dos ciclos
de reproduo que, segundo eles, parecem estar envolvidos em suas relaes. Dito de
outro modo, o ciclo tem a ver com o tempo no qual o aprendiz leva para se tornar um
participante pleno. E, para que isso ocorra, preciso que o iniciante tenha acesso, que,
segundo os autores, a chave para a periferialidade legtima dos recm-chegados e
tudo o que ser membro acarreta: Transformar-se em um membro completo requer o
acesso a uma ampla variedade de atividades, aos veteranos e a outros membros,
informao, aos recursos e s oportunidades de participao (LAVE; WENGER, 1991,
p. 101, traduo nossa).
De maneira geral, aprender na prtica implica que os aprendizes aprendam a saber que
existe um campo de prtica madura que eles esto aprendendo a realizar:
Ser capaz de participar de maneira perifrica legtima requer que os novatos tenham um amplo acesso a lugares da prtica madura e, ao mesmo tempo, uma periferialidade produtiva requer menos demanda de tempo, esforo e responsabilidade no trabalho, o que os diferencia dos participantes mais completos. As tarefas dos novatos so curtas e simples, os custos por erros so pequenos, o aprendiz tem poucas responsabilidades dentro das atividades como um todo (LAVE; WENGER, 1991, p. 110, traduo nossa).
Ao transpor a teoria de Lave e Wenger (1991) para o processo de projeto, deve-se
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27 observar, dentre outras coisas, o tipo de participao das pessoas no processo e qual o
lugar (posio) que ocupam no decorrer do desenvolvimento do projeto. Para os
autores, nas relaes sociais que as pessoas se modificam e, nesse processo de
mudana, elas aprendem (ou no aprendem). Assim, como acontece esse processo de
modificao e mudana no cotidiano do processo de projeto? E por que uns aprendem
e outros, no?
Outra questo com o tipo de acesso a outros aprendizes ao processo e ao produto
final de todo o trabalho, que nesse caso o projeto (completo e complexo) de
arquitetura. Assim, torna-se fundamental tentar perceber como ocorre o acesso dos
aprendizes a outros profissionais mais experientes, ao projeto completo e, tambm,
como esse acesso pode influenciar o processo de aprendizagem.
1.1.2 Constituio da habilidade
Segundo Velho (2001), Ingold (2000) trata de temas como cultura, aprendizagem e
habilidade, mas, sobretudo, da abordagem ecolgica do conceito de cultura11, no qual a
descrio deve incluir o ambiente, o organismo/pessoa que aprende e os instrumentos
envolvidos.
Em um de seus artigos, Ingold (2010) se prope a responder questo: Como cada
gerao contribui para a cognoscibilidade da prxima? De maneira geral, ele discute o
papel da experincia e o da transmisso geracional nos modos pelos quais os seres
humanos conhecem e participam da cultura.
Ingold questiona as abordagens que defendem o conhecimento como forma de
contedo mental, que, com vazamentos, preenchimentos e difuso pelas margens,
passado de gerao em gerao, como a herana de uma populao portadora de
cultura (INGOLD, 2010, p. 6). Segundo ele, o pressuposto de que o conhecimento
informao e que os seres humanos so mecanismos para process-lo falso. Ele
argumenta o contrrio: Nosso conhecimento consiste, em primeiro lugar, em 11 A abordagem ecolgica de Ingold oriunda da psicologia ecolgica de Gibson (1979).
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28 habilidades, e que todo ser humano um centro de percepes e agncia em um
campo de prtica (INGOLD, 2010, p. 6).
Como afirmam tambm Maturana e Varela (2005, p. 12), argumentando em oposio
ao representacionismo, a teoria de que nosso crebro recebe passivamente
informaes vindas j prontas de fora e assim, a mente seria, ento, um espelho da
natureza. O mundo conteria informaes e nossa tarefa seria extra-las dele por meio
da cognio. Alegam que se a vida um processo de conhecimento, os seres vivos
constrem esse conhecimento no a partir de uma atitude passiva, e sim pela
interao. Aprendem vivendo e vivem aprendendo.
Para Ingold (2010, p. 7), a habilidade est na relao organismo-pessoa-ambiente, e
para explicar isso ele utiliza a abordagem ecolgica, que parte da premissa de que a
capacidade de conhecimento humano no est baseada na combinao de
capacidades inatas e competncias adquiridas, mas em habilidades:
Meu ponto que estas capacidades no so nem internamente pr-especificadas nem externamente impostas, mas surgem dentro de processos de desenvolvimento, como propriedades de auto-organizao dinmica do campo total de relacionamentos no qual a vida de uma pessoa desabrocha.
Nesse sentido, ele argumenta sobre a maturao ou amadurecimento que alcanado
por intermdio da prtica e com isso dissolve a dicotomia corpo-crebro:
Da mesma forma, as mltiplas habilidades dos seres humanos, de atirar pedras a lanar bolas de cricket, de trepar em rvores a subir escadas, de assobiar a tocar piano, emergem atravs dos trabalhos de maturao no interior de campos de prtica constitudos pelas atividades de seus antepassados. No faz sentido perguntar se a capacidade de subir est na escada ou em quem a sobe, ou se a habilidade de tocar piano est no pianista ou no instrumento. Essas capacidades no existem dentro do corpo e crebro do praticante nem fora no ambiente. Elas so, isto sim, propriedades de sistemas ambientalmente estendidos que entrecortam as fronteiras de corpo e crebro (INGOLD, 2010, p. 11).
Ele conclui que, no crescimento do conhecimento humano, a contribuio que cada
gerao d seguinte no um suprimento acumulado de representaes, mas uma
educao da ateno. Ele tomou essa frase de Gibson (1979), que, na tentativa de
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29 desenvolver uma psicologia ecolgica, tratou a percepo como uma atividade de todo
o organismo num ambiente, em vez de uma mente dentro de um corpo.
O autor afirma: O aumento do conhecimento na histria de vida de uma pessoa no
um resultado de transmisso de informao, mas sim de redescoberta orientada
(INGOLD, 2010, p. 11). Para explicar, ele d o exemplo de um livro de receitas e faz a
distino entre conhecimento e informao. O livro de receitas culinrias est
abarrotado de informao sobre como preparar uma srie de pratos. Mas ser que
nessa informao que consiste o conhecimento do cozinheiro? O prprio autor adianta
que no. Quando a receita diz para derreter a manteiga numa pequena panela e
adicionar a farinha, a pessoa capaz de segui-la s porque ela dialoga com uma
experincia anterior de derreter e mexer, de lidar com substncias como manteiga e
farinha, e de encontrar os ingredientes e utenslios bsicos na cozinha. Os comandos
verbais da receita extraem seu significado no de sua ligao a representaes mentais
na cabea, mas de seu posicionamento no contexto familiar da atividade domstica da
pessoa. Segundo ele, isso ocorre tambm com as placas de sinalizao numa
paisagem, que fornecem direes especficas s pessoas, enquanto elas abrem
caminho por meio de um campo de prticas relacionadas, o que ele denomina de
taskscape12.
Cada comando colocado estrategicamente em um ponto que o autor original da receita, olhando para a experincia prvia de preparar o prato em questo, considerou ser uma juno crtica na totalidade do processo. Entre esses pontos, no entanto, espera-se que o cozinheiro ou a cozinheira seja capaz de achar o seu caminho, com ateno e sensibilidade, mas sem depender de outras regras explcitas de procedimento ou, numa s palavra, habilidosamente (INGOLD, 2010, p. 19).
Dessa forma, a informao no livro de receitas, em si mesma, no conhecimento.
Apenas quando colocada no contexto das habilidades adquiridas por meio desta
experincia anterior, que pode ser seguida na prtica, e apenas uma rota assim
especificada pode levar ao conhecimento. Por isso, ele afirma que, nesse sentido, todo 12 Taskscape um neologismo com que o autor se refere por associao a uma paisagem (landscape)
de sinalizaes. Um neologismo em portugus poderia ser tarefagem (INGOLD, 2010).
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30 conhecimento est baseado em habilidade. Assim como nosso conhecimento da
paisagem adquirido ao caminhar por ela, seguindo vrias rotas sinalizadas, o
conhecimento da taskscape tambm adquirido seguindo as vrias receitas no livro.
No se trata de conhecimento que foi comunicado, mas, sim, de conhecimento
construido seguindo os mesmos caminhos dos predecessores e orientado por eles. Isso
tudo para explicar que
chegamos a uma concluso quase idntica a respeito do aprendizado humano: no h nenhuma leitura de um roteiro verbal, como o que se encontra no livro de receitas culinrias, que no faa parte do envolvimento prtico do iniciante com o seu ambiente (INGOLD, 2010, p. 19).
Aproveitando o exemplo da receita, o autor argumenta sobre o processo de cpia.
Segundo ele, os iniciantes na cozinha, por exemplo, aprendem copiando as atividades
de cozinheiros j capacitados. No significa que copiar fazer transcrio automtica
de contedo mental de uma cabea para outra, mas, sim, seguir o que as outras
pessoas fazem:
O iniciante olha, sente ou ouve os movimentos do especialista e procura, atravs de tentativas repetidas, igualar seus prprios movimentos corporais queles de sua ateno, a fim de alcanar o tipo de ajuste rtmico de percepo e ao que est na essncia do desempenho fluente (INGOLD, 2010, p. 21).
Esse copiar um processo no de transmisso de informao, mas de
redescobrimento dirigido ou guiado, e para alcanar a fluncia da performance no
basta que o aprendiz somente observe; ele tem tambm que realizar repetidos ensaios
prticos ou seja, aprender uma questo de redescoberta (INGOLD, 2003). Para o autor, o ensaio tratado como forma fundamental de aprendizagem, como
processo de incorporao a partir do exerccio de mergulho no que se est aprendendo.
O ensaio , ento, uma forma de entendimento na prtica. O tipo de know-how
alcanado no contexto da prtica o processo de habilitao, no qual a aprendizagem
inseparvel do fazer (INGOLD, 2000, p. 416, traduo nossa). E por meio desses
ensaios prticos repetidos e guiados por suas observaes que o novato/aprendiz
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31 sente as coisas, aprende o ajuste fino do prprio movimento para alcanar a fluncia
rtmica:
Como tal, ele envolve um misto de imitao e improvisao: isto pode ser mais bem compreendido, na verdade, como as duas faces de uma mesma moeda. Copiar imitativo, na medida em que ocorre sob orientao; improvisar, na medida em que o conhecimento que gera conhecimento que os iniciantes descobrem por si mesmos (INGOLD, 2010, p. 21).
Alm disso, ele argumenta que o processo de aprendizado por redescobrimento dirigido
transmitido mais corretamente pela noo de mostrar. Mostrar alguma coisa a algum
fazer essa coisa se tornar presente para essa pessoa, de modo que ela possa
apreend-la diretamente: olhando, ouvindo ou sentindo. Nesse caso, o papel do tutor
(ou do mais experiente) criar situaes nas quais o iniciante instrudo a cuidar
especialmente deste ou daquele aspecto do que pode ser visto, tocado ou ouvido, para
poder assim pegar o jeito da coisa. Por isso afirma: Aprender, nesse sentido,
equivalente a uma educao da ateno, e no representaes na mente 13
transmitidas de uma mente (emissor) para outra (receptor). Ou seja,
a habilidade uma propriedade no de um corpo humano como uma entidade biofsica, mas um campo total de relaes constitudo pela presena do organismo-pessoa, indissoluvelmente corpo e mente, em um ambiente ricamente estruturado (INGOLD, 2001, p. 21, traduo nossa).
Segundo ele, a diferena entre o conhecimento do especialista e o do iniciante no
porque o primeiro adquiriu representaes mentais que o capacitam a construir um
quadro mais elaborado do mundo utilizando a mesma base de dados, mas porque seu
sistema perceptivo est regulado para captar aspectos essenciais do ambiente que
simplesmente passam despercebidos pelo iniciante.
Respondendo questo inicial, ele afirma:
Na passagem das geraes humanas, a contribuio de cada uma para a cognoscibilidade da seguinte no se d pela entrega de um corpo de informao desincorporada e contexto-independente, mas pela criao,
13 Como visto na abordagem de Lawson (2001), por exemplo.
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32 atravs de suas atividades, de contextos ambientais dentro dos quais as sucessoras desenvolvem suas prprias habilidades incorporadas de percepo e ao. Em vez de ter suas capacidades evolutivas recheadas de estruturas que representam aspectos do mundo, os seres humanos emergem como um centro de ateno e agncia cujos processos ressoam com os de seu ambiente. O conhecer, ento, no reside nas relaes entre estruturas no mundo e estruturas na mente, mas imanente vida e conscincia do conhecedor, pois desabrocha dentro do campo de prtica a taskscape estabelecido atravs de sua presena enquanto ser-no-mundo. A cognio, neste sentido, um processo em tempo real (INGOLD, 2010, p. 21).
O enfoque desse autor me forneceu elementos que nortearam a investigao e me
fizeram entender melhor como o aprendiz desenvolve suas habilidades. Ao relacionar
as abordagens de Ingold s prticas de produo de projetos, surgiram as seguintes
questes: Como os aprendizes constituem as habilidades necessrias para se tornarem
arquitetos? Se, para ele, a habilidade no est somente na pessoa, neste caso, que
faz/executa/produz o projeto, mas relacional e por isso tem a ver tambm e,
fundamentalmente, com as outras pessoas, as ferramentas (coisas) e com o ambiente,
como se d essa relao e qual a importncia de cada um no processo de
aprendizagem? No caso dos projetos de arquitetura, quais seriam e como seriam os
ensaios e ajustes finos que Ingold argumenta serem importantes para a constituio da
habilidade e qual a influncia deles no processo de aprendizagem?
1.2 Os percursos da pesquisa14
Nesse processo de investigao, para definir os procedimentos metodolgicos, realizei:
um estudo exploratrio: para identificar os campos de pesquisa potenciais;
a anlise dos documentos relativos aos processos e procedimentos da produo
de projetos: para entender o funcionamento dos escritrios de uma forma geral;
um segundo estudo exploratrio: para compreender o desenvolvimento de 14 Optei por utilizar, nesta tese, os mtodos qualitativos. Brando (2008, p. 33) afirma que a opo pelas
metodologias qualitativas se deve ao fato de que elas assumem posturas nas quais no se anteveem os resultados seno aps percursos singulares a serem percorridos. Alves-Mazzotti (2002, p. 147) alega que [...] as pesquisas qualitativas diferem bastante quanto ao grau de estruturao prvia, isto , quanto aos aspectos que podem ser definidos j no projeto. Alm disso, a autora refora a importncia de se fazer um perodo exploratrio.
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33 projetos, bem como, para avaliar a possibilidade da observao desse processo.
Baseando-me nesses procedimentos, defini o delineamento de quais seriam os
mtodos mais adequados para esta investigao: observao e entrevistas15.
1.2.1 Estudo exploratrio: possveis campos de pesquisa
O objetivo principal com esse primeiro estudo exploratrio foi identificar, dentre as
alternativas possveis, os campos de pesquisa (escritrios de arquitetura) que
pudessem viabilizar a execuo desta investigao. Esse estudo permitiu, tambm,
entender um pouco mais sobre as prticas dos projetos de arquitetura, sobre a
organizao dos escritrios pesquisados e uma breve noo sobre a participao dos
estagirios no processo de produo dos projetos. Ele foi realizado em dez escritrios
de arquitetura (TAB. 1), em setembro de 2011.
TABELA 1 Resumo de algumas caractersticas dos dez escritrios de arquitetura pesquisados no estudo
exploratrio 1.
ESCRITRIOS FUNDAO N. FUNCIONRIOS N. ESTAGIRIOS SISTEMA DE GESTO TIPO DE PROJETO DESENVOLVIDO
1 2002 11 4 sim Imobilirios 2 2002 02 1 no Autorais e imobilirios 3 2004 23 2 sim imobilirios 4 1995 ? no tem no autorais e imobilirios 5 ? ? no tem no autorais 6 1974 23 6 sim autorais 7 1997 18 10 no autorais 8 ? ? no tem no autorais 9 ? ? no tem ? ?
10 1989 96 6 sim imobilirios Fonte: Dados da pesquisa. Obs.: 1) Em destaque, os seis escritrios nos quais houve conversa (pessoalmente) com os responsveis: 1, 2, 3, 6, 7 e 10; 2. Os nomes dos escritrios foram substitudos para manter o sigilo e a ordem segue a sequncia em que foram pesquisados; 3) As interrogaes correspondem s informaes que no foram obtidas nas conversas via telefone.
15 Uma das possibilidades aventadas como mtodo para esta pesquisa foi a aplicao de um teste para
os estagirios e arquitetos juniores. Mas, com os estudos exploratrios, optou-se por abolir essa tcnica por acreditar que desvirtuaria o foco da pesquisa que investigar como se d a aprendizagem na prtica, cotidianamente por no representar o que acontece no dia a dia do escritrio e por estar na contramo da prpria compreenso de aprendizagem aqui proposta: a ideia de aprendizagem como processo, e no como produto.
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34 Os escritrios pesquisados foram indicados por colegas da Escola de Arquitetura da
UFMG e tambm por profissionais que atuam nesse mercado. Inicialmente, o contato
foi via telefone com todos os indicados para saber se havia estagirios de arquitetura
entre os funcionrios. Posteriormente, busquei maiores informaes em conversa
pessoal com o responsvel em cada escritrio onde havia estagirios. Nessas
conversas, utilizei um roteiro com algumas questes: estrutura do escritrio, pessoal
empregado, fases dos projetos, participao de cada profissional e de cada estagirio
no processo de projeto, forma de contratao, processo de superviso dos estagirios,
forma de participao do cliente no projeto e organizao do processo.
Neste estudo exploratrio, foi possvel perceber, de forma geral, as diferenas em
relao aos tipos de projeto realizados pelos escritrios, forma de organizao, ao
gerenciamento e infraestrutura em cada um deles. Uns com maior nfase em projetos
autorais (projetos nos quais a autoria se torna relevante), outros com foco em projetos
imobilirios (projetos para as grandes construtoras, considerados projetos em srie ou
comerciais) e em alguns, projetos mistos, autorais e comerciais.
Dos dez escritrios pesquisados, quatro deles (n. 1, 3, 6 e 10, na TAB. 1) tinham
sistemas de gesto para a elaborao dos projetos. Sendo que trs deles (n. 3, 6 e 10)
tinham certificao pela ABNT (NBR ISO 9001-2008)16 e outro (n. 1 na TAB. 1) estava
em processo de certificao. Ou seja, os procedimentos j estavam normatizados (em
setembro de 2011) e no ano seguinte iam requerer a certificao.
Para definio dos campos de pesquisa (escritrios) utilizei os seguintes critrios:
16 A ISO 9001 uma norma generalista, e isso quer dizer que pode ser aplicada em todas as
organizaes, independentemente do tipo, porte ou produto que forneam. O termo produto, conforme descrito na prpria norma, pode ser entendido tambm como servio. Ela aborda diretrizes para a gesto da qualidade com foco no processo conjunto de atividades inter-relacionadas ou interativas que transforma insumos/entradas em produtos/sada. Orienta para que a empresa especifique requisitos para o controle do processo, com definio clara de entradas e sadas, especificao de todas as atividades e funes que fazem parte do processo, requisitos de controle, de avaliao e melhoria do processo. Os requisitos estabelecidos na ISO 9001 no garantem a qualidade final do produto da empresa, mas, sim, a qualidade no processo. Para mais informaes sobre a ISO 9001 e certificao, cf. Mello et al. (2009) e Carpinetti; Miguel e Gerolamo (2011).
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35 1 escritrios com estagirios envolvidos no processo de projeto: requisito sine qua non, dado o foco no processo do aprendiz;
2 escritrios com arquitetos em diferentes nveis de formao: no bastava ter estagirios, era preciso ter tambm arquitetos em funes diversas porque diferentes
formas de participao na prtica podem gerar processos de aprendizagem;
3 escritrios com maturidade no desenvolvimento de projetos de arquitetura: escritrios com uma prtica consolidada poderiam facilitar o entendimento do processo
de produo de projetos se comparados queles que estavam iniciando suas
atividades, os quais poderiam ter outras variveis no processo.
Aps analisar as informaes desses escritrios que fizeram parte do primeiro estudo
exploratrio, acrescentei um quarto critrio para a escolha dos campos de pesquisa:
4 escritrios com sistema de gesto de projetos consolidado: a deciso por incluir mais esse requisito aos demais, se baseou, principalmente, na percepo de que nos
escritrios com sistema de gesto de projetos 17 , os processos e procedimentos
referentes produo de projetos estavam formalizados e descritos dadas as
prprias exigncias normativas18 e poderiam facilitar o entendimento do processo de
produo dos projetos se comparado queles sem sistema de gesto estabelecido.
Os seis escritrios nos quais conversei pessoalmente com os responsveis atenderiam
aos trs primeiros requisitos, mas somente trs deles possuam a gesto de projetos
consolidada (tinham certificao ISO 9001 para os processos de projeto). Dessa forma,
estes foram os selecionados como potenciais campos de pesquisa, representados na
TAB. 1 pelos nmeros 3, 6 e 10.
A negociao com um desses escritrios (n. 6 na TAB. 1), porm, no se concretizou.
Meu contato foi com um dos gerentes de projeto, que forneceu alguns documentos: 17 Sobre gesto de projetos cf.: Silva e Souza (2003); Oliveira (2004); Melhado et al. (2005, 2011);;
Oliveira e Melhado (2005); Ferreira e Salgado (2007); Emmitt (2010); Andery et al. (2012). 18 No necessariamente para se ter um sistema de gesto h necessidade de obter certificao. Porm,
observa-se que as empresas buscam a normatizao e certificao para implantarem sistemas de gesto de projetos.
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36 Manual da Qualidade (MQ), Manual de Descrio de Funes (MDF), procedimentos
para desenvolvimento dos produtos e arquivamento de projetos. Em uma das reunies
com o gerente, o diretor participou e declarou que forneceria todas as informaes
necessrias para o entendimento do processo, mas que no ia liberar a observao do
processo de produo 19 . Assim, esse escritrio foi descartado como campo de
investigao para esta pesquisa.
Daqui em diante, trato os dois escritrios pesquisados 3 e 10, na TAB. 1 como
Escritrio A e Escritrio C, respectivamente.
1.2.2 Anlise de documentos: compreendendo o processo de projeto
Para comear a entender o processo de produo de projetos, analisei os seguintes
documentos dos dois escritrios: MQ, MDF, formulrios de procedimentos para
desenvolvimento de produtos, formulrios de avaliao das pessoas e dos servios
prestados, dentre outros especficos de cada escritrio.
Alm da anlise dos documentos, muitas informaes sobre os sistemas de gesto
desses escritrios, A e C, foram obtidas em conversas com os diretores ou
responsveis pelo sistema de gesto.
O objetivo principal com essa anlise foi compreender como funcionava a produo de
projetos nos escritrios: os processos de desenvolvimento do produto, o controle das
etapas, a avaliao dos funcionrios em relao s suas atividades, a avaliao do
cliente em relao ao projeto recebido, a participao dos diferentes agentes
estagirios, arquitetos, coordenadores, gerentes, diretores e clientes no processo.
As informaes sobre os procedimentos e habilidades requeridas para as funes 19 O diretor deixou claro que estava fazendo isso em prol da Universidade e, principalmente, por causa de
alguns professores. Ele solicitou ao gerente que fizesse o apontamento das horas de reunies sobre esta pesquisa para deixar claro quanto (nmero de horas) o escritrio dele gastou com a pesquisa para que essa informao fosse repassada Universidade. Segundo ele, a sala de produo de projetos do escritrio dele sagrada; fazer projeto, para ele, como se fosse uma reza. Disse ainda que se ele chegou at aquele momento e tinha seu trabalho reconhecido era graas ao trabalho realizado naquele ambiente, por isso no poderia liberar a sala de projetos para minha observao.
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37 serviram de base para compreender o perfil do aprendiz, as caractersticas e requisitos
que ele deveria preencher, as habilidades que ele precisaria aprender, como seria a
participao de cada pessoa (arquitetos e estagirios) no processo, dentre outras
questes relativas ao processo de projeto. Nesse caso, privilegiei e tentei compreender
o que estava descrito, determinado e registrado em termos de procedimentos e
competncias relativas aos processos de elaborao de projetos20.
Conforme afirmou um dos arquitetos no Escritrio A, todos os procedimentos
operacionais esto descritos, como plano de carreira, metas, o que cada nvel de
arquiteto (do I ao V) deve saber fazer, o que se espera dos estagirios, bem como
todas as fases do projeto. Segundo ele, todos os que entram na empresa, antes de
comear a trabalhar, tm de ler os documentos de gerenciamento do escritrio. Nos
documentos de procedimentos dessas empresas, h tambm os diagramas das fases
dos projetos, descrio de como o cliente participa em cada fase, os resultados
esperados e a participao de cada profissional no processo.
Nessa etapa, as normas e procedimentos referentes gesto de projetos serviram de
base, de pano de fundo para o entendimento introdutrio de como funcionavam os
escritrios: os processos de produo de projeto, as atividades, as funes e a
participao de cada pessoa no desenvolvimento dos projetos.
Trs questes influenciaram a obteno das informaes sobre a produo de projetos
nesses escritrios e, consequentemente, o andamento da pesquisa de maneira geral,
por isso merecem destaque: dificuldade e demora em obter as informaes, processo
em constante alterao e dificuldade em lidar com as informaes sigilosas.
Questo 1: dificuldade e demora em obter as informaes Nos dois escritrios pesquisados, a situao foi bem diferente em cada um deles. No Escritrio A, o contato
foi com um dos diretores. O acesso s informaes ocorreu facilmente. Sempre que
necessrio, eu solicitava a reunio, e ele prontamente agendava, quase sempre na 20 Nos escritrios pesquisados que no tinham sistema de gesto, no havia definio clara e descrita
(registrada) sobre os procedimentos relativos ao processo de projeto, tampouco registro do perfil, competncias esperadas e determinadas para cada atividade e cargo.
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38 mesma semana da solicitao, e, quando necessrio, esclarecia sobre os processos.
Ele forneceu todos os formulrios referentes ao desenvolvimento dos projetos, bem
como todas as informaes sobre os processos, procedimentos e normas da empresa.
J no Escritrio C foi mais complicado, inicialmente21. O contato inicial foi com o diretor-
presidente e depois com o diretor-administrativo, responsvel pela implantao e
manuteno do sistema de gesto no escritrio. Concordaram em ceder as informaes
necessrias para a pesquisa e disseram que se fosse preciso censurariam o que no
pudesse ser mostrado. O diretor-administrativo explicou como foi o processo de
implantao do sistema de gesto, mostrou-me os processos, procedimentos,
formulrios e sistemas de controle de todo o processo de produo de projetos do
escritrio. Mas no liberou a documentao, apenas o Manual da Qualidade da
empresa. Segundo ele, a documentao poderia ser consultada na empresa, mas
nenhum documento poderia sair de l. Em alguns casos, as respostas s minhas
solicitaes, nesse escritrio, demoraram at quatro semanas. Essa demora tornou a
fase de anlise de documentos desgastante dada a falta de continuidade e excesso de
pausas no processo de pesquisa.
Questo 2: processo em constante alterao A cada reunio, com os responsveis pelos escritrios, eu percebia algumas alteraes nos formulrios e procedimentos em
relao ao processo de produo de projetos. Como foi possvel observar, o processo
dinmico e, mais do que isso, havia certa dificuldade em descrever detalhadamente
cada etapa, procedimentos, sistema de monitoramento e deciso sobre os processos
de produo de projetos. Havia, basicamente, dois tipos de alterao: uma, proveniente
de uma real alterao do processo, que antes era feito de um determinado modo e
depois de certo tempo foi alterado, e em razo dessa alterao havia necessidade de
atualizar a descrio. O segundo tipo de alterao era na descrio (interpretao do
processo), que antes era interpretado de uma maneira e, por algum motivo
observao de algum, solicitao de consultores, auditoria , precisava ser alterado.
Nesse caso, o processo continuava o mesmo, mas se alterava a forma de descrio e 21 Durante o processo de observao da produo de projetos nesse escritrio, entretanto, foi possvel
acessar os documentos disponveis na rede interna da empresa.
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39 interpretao. curioso notar tambm que, embora a atividade fosse basicamente a
mesma nos dois escritrios ou seja, produo de projetos , as formas de interpretar
e descrever os processos e procedimentos eram bem diferentes.
Questo 3: dificuldade em lidar com informaes sigilosas Essa foi particularmente uma das principais questes, dada a dificuldade de lidar com dados confidenciais dos
escritrios. Como descrever sobre os processos sem declar-los explicitamente para
manter o sigilo? Os escritrios tm estratgias diferentes para o controle do
desenvolvimento dos projetos e, consequentemente, da empresa/negcio. O que
agravava essa questo (do sigilo) era que os dois, de certo modo, competiam em um
mesmo mercado. Por essa razo, a descrio detalhada dos processos de produo
dos projetos como organograma e fluxograma, por exemplo dentre outras
informaes sigilosas, no sero apresentadas nesse trabalho.
1.2.3 Segundo estudo exploratrio: a prtica cotidiana no escritrio
Esse segundo estudo exploratrio teve como objetivo principal fundamentar o
planejamento da segunda fase da pesquisa. Em outras palavras, (re)pensar e
(re)planejar qual seria a melhor forma/maneira de investigar o processo de
aprendizagem na produo de projetos arquitetnicos. Ele foi importante, tambm, para
ampliar o entendimento sobre o funcionamento da produo de projetos arquitetnicos,
bem como para responder algumas questes/dvidas que ainda pairavam em relao
ao objeto da pesquisa: De quais etapas as pessoas em diferentes nveis participavam?
Quais atividades desenvolviam? Quem repassava as atividades e a quem submetia o
trabalho?
Este estudo exploratrio foi realizado durante uma semana, no perodo da tarde22, no
Escritrio A, em agosto de 2012. Tratou-se da observao da prtica cotidiana da
produo de projetos. Esse escritrio foi o escolhido para este estudo exploratrio
porque os diretores foram os mais disponveis (solcitos) e os que demonstraram maior
22 Definido em razo do horrio de trabalho da estagiria desse escritrio.
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40 interesse nesta pesquisa. Alm disso, foi o escritrio que forneceu mais informaes
sobre seu sistema de gesto.
Para a observao da prtica de produo de projetos nesse escritrio, no me
preocupei, inicialmente, em registrar tudo o que acontecia23, mesmo porque isso seria
impossvel. Meu foco naquele momento era saber se seria possvel observar o
processo e, principalmente, como eu faria isso: se somente observaria as pessoas
trabalhando ou se seria necessrio fazer perguntas. Senti-me naquele momento como
um iniciante: de fato, eu era o aprendiz dos meus mestres no campo (VELHO, 2006).
O foco da observao a priori era o cotidiano da estagiria. Mas, logo no primeiro dia,
percebi que seria importante acompanhar outras pessoas por perceber que estavam,
tambm, em um momento explcito de aprendizagem. Dessa forma, deixei que o campo
de pesquisa, de certo modo, me orientasse neste sentido: o de perceber quais seriam
as pessoas e as atividades que eu observaria.
No decorrer dos dias, estabeleci a estratgia de observar a pessoa que estava
realizando a atividade (estagiria ou arquiteta trainee) e, em seguida, observar tambm
quem lhe passava as tarefas, para que eu pudesse entender o que estava acontecendo
de maneira geral. Assim, observei a estagiria e a arquiteta I, que estava lhe passando
as tarefas; observei a arquiteta trainee e a arquiteta II, para quem ela estava realizando
atividades. Alm de observar, senti necessidade de conversar com ambas para melhor
entender o que estavam fazendo. Conversei tambm com outras pessoas, como o
gerente de projetos, o gerente administrativo-financeiro, responsvel tambm pela rea
de gesto, e com o arquiteto III.
A maioria das atividades de produo de projetos arquitetnicos, nesse escritrio, era
realizada no computador, um trabalho quase solitrio (pessoa-computador), por isso as
explicaes foram fundamentais para que eu entendesse o que estavam fazendo.
23 Mesmo assim fiz relatos dirios do que eu percebia ser importante e relevante para a pesquisa.
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41 Cabe aqui fazer um parntese sobre essa questo da forma/maneira de trabalho,
pessoa-computador, exercido atualmente pelo arquiteto. Arantes (2010, p. 104) faz o
relato de como foi essa mudana, da utilizao de ferramentas manuais e papel para o
trabalho no computador:
Esse trabalho do ofcio artesanal de preparao das pranchas para a obra era um pequeno canteiro de obras, uma experincia fsica com a matria, de controle rigoroso dos movimentos do corpo e dos instrumentos de desenhos. Por ele passavam todos os arquitetos, com extenses e profundidades variveis, e ocupando diferentes posies dentro dessa manufatura. Essa coreografia de ritmos e gestos do desenho de arquitetura foi quase integralmente substituda pelo desenho em computador, que instaurou uma nova relao co