apontamentos para uma crítica marxista do direito

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Recebido em 03 de abril de 2012. Aprovado em 15 de maio de 2012. 147 Apontamentos para uma crítica marxista do direito Jair Pinheiro* Resumo: Este artigo apresenta alguns apontamentos para uma sociologia jurídica marxista. Para isso, apreende o deslocamento do lugar do direito na obra marxiana a partir d’A ideologia alemã e, em seguida, decompõe e analisa a questão jurídica em três planos: 1) relação de produção como relação jurídica, 2) as relações sociais institucionalizadas como formas jurídico-estatais socialmente reconhecidas como legítimas e 3) o direito como a ideologia jurídica (sistema de normas, crenças e valores segundo uma forma discursiva própria) que recobre os dois elementos anteriores e lhes atribui sentido e validade moral. Palavras-chave: Sujeito de direito. Cidadania. Ideologia. Relações jurídicas. Introdução A definição mais geral do direito é aquela segundo a qual ele é uma ideologia, ou seja, um sistema de crenças, normas e valores, daí resultando a importância dada à dimensão normativa, uma vez que neste sistema a norma desempenha papel prático e, as crenças e valores, o de motivação. A força dessa definição é testemunhada pelo fato de que ela é adotada inclusive pelos que pretendem uma abordagem crítica do direito. Como meu propósito é esboçar as linhas gerais da crítica de Marx ao direito, ou estabelecer os elementos básicos para uma sociologia do direito neste autor, partirei de duas premissas: 1ª) a de que não há uma crítica do direito sistematizada em sua obra, mas referências dispersas cuja lógica interna indica uma unidade que pode ser atingida pelo esforço de sistematização; 2ª) esta lógica é determi- nada pela articulação do todo social (Cf. Althusser, 1996 e 1999). Por isso, como método, percorrerei a obra de maturidade de Marx destacando tais referências, explorando esta lógica e perseguindo esta unidade implícita; embora, advirta-se desde já, sem esgotar tais referências – que, aliás, são muitas –, limitando-me ao objetivo proposto. * Professor do Depto. de Ciências Políticas e Econômicas da UNESP/Marília. End. eletrônico: [email protected]

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Page 1: Apontamentos para uma crítica marxista do direito

Recebido em 03 de abril de 2012. Aprovado em 15 de maio de 2012. • 147

Apontamentos para uma crítica marxista do direito

Jair Pinheiro*

Resumo:Este artigo apresenta alguns apontamentos para uma sociologia jurídica marxista. Para isso, apreende o deslocamento do lugar do direito na obra marxiana a partir d’A ideologia alemã e, em seguida, decompõe e analisa a questão jurídica em três planos: 1) relação de produção como relação jurídica, 2) as relações sociais institucionalizadas como formas jurídico-estatais socialmente reconhecidas como legítimas e 3) o direito como a ideologia jurídica (sistema de normas, crenças e valores segundo uma forma discursiva própria) que recobre os dois elementos anteriores e lhes atribui sentido e validade moral.

Palavras-chave: Sujeito de direito. Cidadania. Ideologia. Relações jurídicas.

Introdução Adefiniçãomaisgeraldodireitoéaquelasegundoaqualeleéumaideologia,ouseja,umsistemadecrenças,normasevalores,daíresultandoaimportânciadadaàdimensãonormativa,umavezquenestesistemaanormadesempenhapapelpráticoe,ascrençasevalores,odemotivação.Aforçadessadefiniçãoétestemunhadapelofatodequeelaéadotadainclusivepelosquepretendemumaabordagemcríticadodireito. ComomeupropósitoéesboçaraslinhasgeraisdacríticadeMarxaodireito,ouestabeleceroselementosbásicosparaumasociologiadodireitonesteautor,partireideduaspremissas:1ª)adequenãoháumacríticadodireitosistematizadaemsuaobra,masreferênciasdispersascujalógicainternaindicaumaunidadequepodeseratingidapeloesforçodesistematização;2ª)estalógicaédetermi-nadapelaarticulaçãodotodosocial(Cf.Althusser,1996e1999).Porisso,comométodo,percorrereiaobradematuridadedeMarxdestacandotaisreferências,explorandoestalógicaeperseguindoestaunidadeimplícita;embora,advirta-sedesdejá,semesgotartaisreferências–que,aliás,sãomuitas–,limitando-meaoobjetivoproposto.

* Professor do Depto. de Ciências Políticas e Econômicas da UNESP/Marília. End. eletrônico: [email protected]

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Convémesclarecerque,devidoàpremissaeaométodo,nemA crítica da filosofia do direito de Hegel nemSobre a questão judaicacumpremafunçãodecríticasistematizadadodireito,entreoutrosmotivos,porqueoprimeirotextoépartedoesforçodoautordeacertodecontascomsuaantigaconcepçãofilosóficae,porcausadacríticaanunciadanotítulocomoobjetivo,nelaaideologiajurídicaocupaumlugardoqualserádeslocadaapartird’A ideologia alemã,oqueéreiteradonasobrasdecríticadaeconomiapolítica.Nocasodosegundotexto,emboraacríticafilosóficasejasubstituídaporumaquestãopolíticacomoobjeto,aideologiaocupaomesmolugarapartirdoqualseadquireinteligênciadotodosocial.Apartirdaí,hádiferentesposiçõessobrequalobradeMarxéomarcodefinitivodestaruptura,debateemquenãoentrarei. AafirmaçãodeMarxdequeodireitonãotemhistóriapróprianãosignificaquenãosepossaescreverahistóriadodireito(Cf.Althusser,1996),nemqueelenãosejainteligívelcomoferramentaoperacionalreguladoradasrelaçõessociais,emsuaautonomiarelativa.Significaquetomaradeterminaçãoformaldosseusconceitosporcausasuisimplicaabsolutizarumaautonomiaqueérelativaatra-vésdaintroduçãodeumelementomístico,religioso1.Porissoainteligênciadodireitoenquantofenômenosocialprecisaserprocuradaemoutrolugar.

Seopoderésupostocomoabasedodireito,comofazemHobbesetc.,entãodireito,leietc.,sãoapenassintomas,expressãodeoutrasrelaçõesnasquaisseapóiaopoderdoEstado.Avidamaterialdosindivíduos,quedemodoalgumdependedesuamera“vontade”,seumododeproduçãoeasformasdeintercâmbioquesecondicionamreciprocamentesãoabaserealdoEstadoecontinuamasê-loemtodososníveisemqueadivisãodotrabalhoeapropriedadeprivadaaindasãonecessárias,deformainteiramenteindependentedavontadedosindivíduos.(MarxeEngels,2007:317-318–aspaseitáliconooriginal).

Porisso,nacríticaaStirner,elesafirmamque(...)elepoderiatersepoupadodetodasassuasmaquinaçõesdesengonçadas,jáquedesdeMaquiavel,Hobbes,Spinoza,Bodinetc.,naépocamaisrecente,paranãofalardasanteriores,opoderfoiapresentadocomofundamentododireito,comoqueavisãoteóricadapolíticaseemancipoudamoraleestavadadonadamaisdoqueopostuladoparaumtratamentoindependentedapolítica.(MarxeEngels,2007:310-311).

1A este respeito, ver o conceito de soberano em Kant (2005) e em Hegel (1997), a crítica ao jusnaturalismo de Kelsen (2002) e a crítica de Marx (2005) a Hegel.

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Comessaobservaçãoosautoresdescartamcompletamentequalquerpre-tensãodefazerdodireitoafontedopoder(comofazemosliberais)e,comisso,conferir-lheamencionadaauramísticaconferidaaodireito. OndeMarxeEngelsvãoprocurarafontedestepoder,queéfundamentododireito,seguindoapistaabertapelosautoresqueelescitam?Paraambos,areflexãodeStirnercentradanapremissadodireitocomocausa suisnãolheper-mite“adquiriralgumconhecimentosobreomododeproduçãomedieval,cujaexpressãopolíticaéaprerrogativa,esobreomododeproduçãomoderno,cujaexpressãoéodireitopuroesimples,odireito igual”(MarxeEngels,2007:316).Ouseja,MarxeEngelslocalizamtantoafontedopodercomoadodireitonasrelaçõessociaisdeprodução. N’O manifesto,osautoresinterpelamodiscursoburguêsapartirdaposiçãodeclassequeassumem:

Masnãodiscutaisconoscoaplicandoàaboliçãodapropriedadeburguesaocritériodevossasnoçõesburguesasdeliberdade,cultura,direitoetc.Vossasprópriasideiassãoprodutosdasrelaçõessociaisdeproduçãoedepropriedadeburguesas,assimcomoovossodireitonãopassadavontadedevossaclasseerigidaemlei,vontadecujoconteúdoédeterminadopelascondiçõesmateriaisdevossaexistênciacomoclasse(MarxeEngels1998:54-55).

Aformadiscursivad’O manifestopodelevaràsuposiçãodequeodireitoéavontadedeumaclasseerigidaemleiegarantidapeloEstado,assentandoofundamentododireitonasubjetividadedosujeitodedireito,àmaneiraliberal,emboranumcasoestesujeitosejaaclassee,nooutro,oindivíduo.AafirmaçãodeStutchka(2001:76),deque“ODireitoéumsistema(ouumaordem)derelaçõessociaisquecorrespondeaosinteressesdaclassedominanteeque,porisso,éasseguradoporseupoderorganizado(oEstado)”é,nomínimo,ambí-guaaesteaspecto.AreflexãosetornaaindamaiscomplexaquandonosdamoscontadequeesteselementosestãopresentesnacríticadeMarxeEngels,masnãonessaordemdecombinação;eque tampoucoa racionalidadepráticadaideologiatemautonomiacompletapararealizaressacombinação.Oproblemaelimitedacitaçãodoparágrafoanteriorestãonotermo“vontade”,quepodesertomadocomopuravoliçãosenãoatentamosparaoconteúdoaeleatribuído:ascondiçõesmateriaisdeexistênciadaburguesiaenquantoclasse,resultadodoprocessohistórico,oque,certamente,incluiavontadedaburguesiaenquantosujeitopolítico,masconstituídonaslutasdeclasses,nãocomopontodepartidaunilateraleaprioriapartirdoqualsepossadeduziraformajurídica. ProblemaelimiteresolvidosporMarxnaContribuição para a crítica da economia política,n’O capitalenosGrundrisse,ondeeledefinerelaçõessociaisdeprodução

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comorelaçãojurídica.Tomando-seessadefiniçãocomopontodepartida,su-giropensarodireitoemMarxdecompondo-oemtrêsplanos,quepodemserdetectadosnaobradoautor,articuladosnalógicadaargumentação,masnãosistematizadoscomoteoria:1)relaçãodeproduçãocomorelaçãojurídica,2)asrelações sociais institucionalizadas como formas jurídico-estatais socialmentereconhecidascomolegítimase3)odireitocomoaideologiajurídica(sistemadenormas,crençasevaloressegundoumaformadiscursivaprópria)querecobreosdoiselementosanterioreselhesatribuisentidoevalidademoral.Passoagoraàexposiçãodessestrêsplanos.

I. Relação de produção como relação jurídica Nostextosdecríticadaeconomiapolítica,asreflexõesdeMarxpartemdasrelaçõessociaisdeprodução,àsquaisarticulamasuperestruturaemduasinstân-ciasdistintascomopressupostosqueoperamnaestruturaeconômicaatravésdecategoriasquelhesãopróprias. MarxafirmanoPrefácioàContribuição para crítica da economia políticaque“Oconjuntodessasrelaçõesdeproduçãoconstituiaestruturaeconômicadasociedade,abaseconcretasobreaqualseelevaumasuperestruturapolíticaejurídicaeàqualcorrespondemdeterminadasformasdeconsciênciasocial.”(Marx,1971:28). Sobre o desenvolvimentodesse todo estruturado (Cf.Althusser, 1996),Marxafirmanomesmoprefácioque:

Emcertoestádiodedesenvolvimento,asforçasprodutivasmateriaisdasociedadeentramemcontradiçãocomasrelaçõesdeproduçãoexistentes,ou,oqueéasuaexpressãojurídica,comasrelaçõesdepropriedadenoseiodasquaistinhamsemovidoatéentão(Marx,1971:29).

Essaafirmaçãoindicaondedeveserbuscadaainteligênciadodireito:nasrelaçõesdeproduçãocomorelaçãojurídica2nosentidoprecisodequeaodireitodeumcorrespondeaobrigaçãodeoutrosegundoolugarocupadonessarelação. Comisso,Marxidentificaacirculaçãocomorelaçãojurídica,porque

Na troca, defrontam-se em primeiro lugar comopessoas quemutuamente sereconhecemproprietários,ecujavontadesepropagaàsmercadorias:paraeles,aapropriaçãorecíproca,resultadodeumaalienaçãorecíproca,sósedádevido

2Para efeito demonstrativo, destaque-se duas acepções do verbete: relações jurídicas, na teoria geral do direito: “1. Vínculo entre pessoas, em razão do qual um pode pretender um bem a que a outra é obrigada (Del Vecchio). 2. É a que indica a respectiva posição de poder de uma pessoa e de dever da outra, ou seja, poder e dever estabelecidos pelo ordenamento jurídico para a tutela de um interesse (Santoro-Passarelli)”, (Diniz, 1998: 121).

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àsuavontadecomum,logo,essencialmenteporintermédiodocontrato.Aquiintervémoelementojurídicodapessoaedaliberdadequelheéimplícita.Daíquenodireitoromanoseencontraessadefiniçãoexactado servus(escravo):aquelequenadapodeobterportroca(Marx,1971:289).

Paraentendercomoessarelaçãojurídicacomandaoconjuntodasrelaçõessociais,éprecisoconsiderarqueomododeproduçãocapitalistasecaracterizapeladialéticanecessáriaentreaesferadacirculaçãoeadaprodução,ouseja,omovimentodialéticodecapturadasegundapelaprimeiraedecondicionamentodaprimeirapelasegunda,oquetemcomopremissahistórico-socialaexpropriaçãodoprodutordireto,suaseparaçãodosmeiosdeprodução. N’OCapital,apósexaminaraexpropriaçãoaquesãosubmetidososcam-ponesesingleses,desdeoséculoXV,comoumamedidaqueprecedeuecriouascondiçõesparaaeconomiaindustrial,Marxexpõeessapassagemnoperíododaacumulaçãoprimitivaeuropeia,emcoresvivaseimagensdramáticas.

Os ancestraisda atual classe trabalhadora foram imediatamentepunidospelatransformação,quelhesfoiimposta,emvagabundosepaupers.Alegislaçãoostratavacomocriminosos“voluntários”esupunhaquedependiadesuaboavon-tadeseguirtrabalhandonasantigascondições,quejánãoexistiam.NaInglaterra,essalegislaçãocomeçousobHenriqueVII.HenriqueVIII,1530:Esmoleirosvelhoseincapacitadosparaotrabalhorecebemumalicençaparamendigar.Emcontraposição,açoitamentoeencarceramentoparavagabundosválidos.Elesdevemseramarradosatrásdeumcarroeaçoita-dosatéqueosanguecorradeseucorpo,emseguidadeveprestarjuramentoderetornaremasuaterranatalouaolugarondemoraramnosúltimos3anose“seporemaotrabalho”(to put himself to labour).(...)Aquelequeforapanhadopelasegundavezporvagabundagemdeverásernovamenteaçoitadoeterametadedaorelhacortada;naterceirareincidência,porém,oatingido,comocriminosograveeinimigodacomunidade,deveráserexecutado.(Marx,1988:265)

Essapassagemdahistóriaédeconhecimentogeral.Aimportânciadecitá-lanãoestá,portanto,nainformação;masnarelaçãocausalentreofatohistóricoeauniversalizaçãodaformajurídicaigualitária,relaçãoqueéaformasocialdomovimentodeautovalorizaçãodocapitalequeoexamedodireitoapartirdasuaformaracionalabstrataapagadevidoàsuaindiferençaaoconteúdo,ouseja,desconsideraaformahistórico-socialdeterminadadeprodução/apropriaçãodoexcedente. Porisso,nasformaçõessociaisondedominaomododeproduçãocapitalistaplenamentedesenvolvido,

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(...)acategoriasujeitodedireitoéevidentementeabstraídadoatodetrocaqueocorrenomercado,.Éprecisamentenesteatodetrocaqueohomemrealizaprati-camentealiberdadeformaldeautodeterminação.(...).Oobjetoéamercadoria,osujeitoéoproprietáriodemercadoriasquedelasdispõenoatodeapropriaçãoedealienação.Éprecisamentenoatodetrocaqueosujeitomanifesta,primeiramente,todaaplenitudedesuasdeterminações.Oconceitoformalmentemaisacabado,desujeito,quedoravanteabrangeráapenasacapacidadejurídica,afasta-nosmuitomaisdosignificadohistóricorealdestacategoriajurídica.Éporissoqueétãodifícilaosjuristasrenunciaraoelementovoluntárioativoemsuasconstruçõesdosconceitosde“Sujeito”ede“Direitosubjetivo”(Pachukanis,1989:90).

Ouseja,“Alegalidadesósetornaplenanocapitalismo,enelesualógicaganhaautonomiaesereproduz”(Mascaro,2008:21).Emresumo,tantohistóricacomologicamente,àautonomizaçãodacategoriaeconômicavalorcorrespondeauniversalizaçãodajurídica,sujeitodedireitoe,esta,porisso,emborainstitucio-nalizaçãodeumsistemadedominaçãoeexploração,aparececomoarealizaçãodaliberdadeimplícitanapessoa,postoquenoplanojurídico(ideal),ninguémestáobrigadoanadasenãoemvirtudedalei.Daíaforçaideológicadodireito,aspectoaquevoltareimaisadiante.

II. Relações sociais institucionalizadas Asrelaçõessociaisdeproduçãocapitalistas,emboraestruturantesdotodosociale,porconseguinte,deumadadaformaçãosocialquandonestasãodominan-tes,vêma posteriorinaexperiênciadosindivíduos.Ouseja,aprimeiraexperiênciaderelaçãosocialdosindivíduosnãosãoasrelaçõesdeprodução,masasformassocialmenteinstitucionalizadasdeinteraçãoentreosindivíduosenquantomem-brosdosmaisvariadosgrupos,poisnavivênciapessoaldecadaum,sóapósumafasedeformaçãomoralepráticaéqueosindivíduosentramemrelaçõessociaisdeproduçãopropriamenteditas,jáeducadoscomoindivíduoslivre-cambistas. Aíresideacentralidadedafunçãosocialdeordem(decoesãosocial)

(...)doEstadocomofatorde“ordem”,como“princípiodeorganização”,deumaformaçãosocial,nãonosentidocorrentedeordempolítica,masnodacoesãodoconjuntodosníveisdeumaunidadecomplexa, como fator de regulação de seu equilíbrio global, enquanto sistema.(Poulantzas,1968,44;aspaseitálicosnooriginal,traduçãominha);3

3Assinale-se que Poulantzas recusa a tese de que há uma problemática do indivíduo em Marx; isto porque, tal como Althusser, ele não explora a redução das relações sociais de produção às suas figuras mais simples, os indivíduos como personificação das categorias econômicas, como Marx.

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funçãotornadapossívelpelafixaçãodoindivíduolivre-cambistacomofiguraestruturantedasinstituiçõeseconômicasepremissadasnãoeconômicas.

Como–afirmamMarxeEngels–oEstadoéaformanaqualosindivíduosdeumaclassedominantefazemvalerseusinteressescomunsequesintetizaasociedadecivilinteiradeumaépoca,segue-sequetodasasinstituiçõescoletivassãomediadaspeloEstado,adquirempormeiodeleumaformapolítica.Daíailusão,comosealeisebaseassenavontadee,maisainda,navontadeseparadadesuabasereal[realen],navontadelivre.Domesmomodo,odireitoéreduzidonovamenteàlei.(2007:76)

Assim,afiguradoindivíduolivre-cambistapoderealizaraduplaoperaçãodearticularosinteressescomunsdaburguesia,namedidaemqueéfixadapeloEstadocomoprincípioordenadordetodasasrelaçõessociais,ededarsustentaçãoàilusãodequealeisebaseianavontadelivre,poisapartirdeentãoparaqueasrelaçõeseconômicasesociaistenhamlivrecursoéprecisoque“(...)cadaumapenasmedianteumatodevontadecomumaambos,seapropriedamercadoriaalheiaenquantoalienaaprópria.”(Marx,1988:79). Dessemodo,essaduplaoperaçãoétantomaiseficaznamedidaemque,numadadaformaçãosocial,porumlado,omododeproduçãocapitalistaavançasobreespaçosantesdominadospormodospré-capitalistase,poroutro,avançaajudicializaçãodasrelaçõessociaisatravésdaformalizaçãojurídicadascategoriasdepertencimentoàsesferasprópriasdaestruturasócio-cultural(família,igrejaseformasassociativasdiversasquetenhamporfinalidadeprecípuaasociabilidade). Alémdisso,

Atroca,quandomediadapelovalordetrocaepelodinheiro,pressupõecerta-menteadependênciamultilateraldosprodutoresentresi,masaomesmotempoo completo isolamento dos seus interesses privadoseumadivisãodotrabalhosocialcujaunidadeemútuacomplementaridadeexistemcomoumarelaçãonaturalexternaaosindivíduos,independentesdeles(Marx,2011:106,grifosnossos).

Comoargumenteiemoutrolugar(Pinheiro,2009),nissoresideatriplade-terminação–ideológica(sujeitodedireito),econômica(proprietário)epolítica(membrodacomunidadedopovo-nação)–dacategoriacidadão,quepodeserentendidacomocorrespondenteaoquePoulantzasdenominou“efeito de isola-mento”,queconsiste

emqueasestruturas jurídicas e ideológicas,determinadasemúltimainstânciapeloprocessodetrabalho,instauram,emseunível,osagentesdaproduçãodistribuídosemclassessociaiscomo“sujeitos”jurídicoseideológicos,temcomoefeito,sobrealutaeconômicadeclasse,aocultaçãoaosagentes,deformaparticular,desuasrelaçõescomorelaçõesdeclasse.(Poulantzas,1968:139.Itálicosnooriginal)

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Esteefeito de isolamentolevaosindivíduosaprojetaremnoEstadosuaexpec-tativadeeficáciadaregulaçãojurídicaenquantocuidamdasuavidaprivada. Nãoéociosodestacarqueesteefeitodeisolamentotemimpactospolíticos-ideológicosdiferentesparaosindivíduosmembrosdasclassestrabalhadoraseparaosdaburguesia,enquantopersonificaçõesdascategoriaseconômicas:osprimeiros,proprietáriosde trabalhoconcretocujovalordeusoéútil apenasaossegundos,proprietáriosdetrabalhoabstratoconsubstanciadonodinheiro,categoriassobasquaissedefrontamnaesferadacirculação.Dadoqueessasdiferentespropriedadessupõemdiferentesnecessidadesmateriaisdecompare-ceraomercado–paraosprimeiros,sobrevivência,paraossegundos,lucro–asubordinaçãomaterialdotrabalhoaocapital jáexistenaesferadacirculação,antesdechegaràdaprodução;relaçãodedominação/subordinaçãonaturalizada4 pelaambivalênciadodireitoqueoperacomomecanismodeilusão/alusão(Cf.Althusser,1999)quantoàspossibilidadesdeconquistadeindependênciapessoal. Estecaráterambivalentedodireito,contidonoconceitodeemancipaçãopolítica(Marx,2010),édesenvolvidonocontextodacríticaaoconceitodeci-dadaniadeMarshall,porSaes,comodialéticadaforma-sujeito de direito.Segundoesteautor,umavezinvestidodedireitoscivis,nabuscadesatisfaçãodosseusinteressesmateriaisera

(...)perfeitamenteplausível,dopontodevistateórico,queasclassestrabalhadorasseapoiassemsucessivamente,apartirdoreconhecimentoestataldeummínimodeliberdadecivil,nosdireitosefetivamentejágozadosparaconquistarnovosdireitos.Deummodogeral,pode-sedizerqueaposturadasclassestrabalhadorasdiantedacidadania,numasociedadecapitalista,tendeaserumaposturadinâmica e progressiva (2001:8),

enquantoaposturadaburguesiaéregressivaemfacedosdireitosdecidadania. Porisso,Saesassinalaquetantoaconquistadenovosdireitosnãoultrapassaaformadacidadaniacorrespondenteaocapitalismo,comoosdireitosconquis-tadosnãosãoirreversíveis,odemonstramasdécadasdeneoliberalismo.

III. Direito como ideologia jurídica Doexpostoatéaqui,resultaqueàcategoriaeconômicadoindivíduolivre-cambistacorrespondeajurídico-políticadecidadãoe,esta,porsuavez,comoacategoriamaisgeraldepertencimentoaopovo-nação(Poulantzas,1968)étambém

4O verbo ocultar, frequentemente utilizado na análise da ideologia, não se aplica aqui, pois essa subordinação não escapa ao trabalhador, mas ela é naturalizada na medida em que na troca “intervém o elemento jurídico da pessoa e da liberdade que lhe é implícita.”, como citação anterior de Marx (1971).

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Pinheiro, J. • 155Apontamentos para uma...

apremissageraldasrelaçõessociaisdosindivíduos.Apartirdaquisetornaclaraainversãoentreaordemdeestruturaçãodasrelaçõessociaiseapercepçãodessaordempelosindivíduos,poisse,comodizEngels(1983),éatravésdaideologiaqueosindivíduossetornamconscientesdoseumundo,estemundolhesapareceinvertido,comoefeitodasideologiasdominantes,enquantoasdominadasapare-cemcomodisfuncionaiseperigosasparaaestabilidadesocial.Porisso,passoaumbreveexamedaideologiajurídicaedolugardelanoconjuntodasideologias. Assim,paraumconceitodeideologiaoperacionalparaaanálisedaquestãojurídica,utilizo-aemtrêsacepçõesestreitamentevinculadas:1)concepçãodemundo,frequentementereferidaporvisãosocialdemundo(Gramsci,2001eLöwy,1998e1999);2)sistemadenormas,crençasevalores;e3)processosocialdeinterpelaçãodiscursiva(Althusser,2006eTherborn,1980).Aconcepçãodemundonãoéumpontodevistaqueseadota,entreoutrospossíveis,segundoumcritérioqualquerderacionalidade,crençaouvalor,àsemelhançadeumquadrointerpretativoespecíficooudominante(Cf.Snowetal.,1986).Longedisso,aconcepçãodemundoserefereàprópriaorganizaçãopsicofísica(paratomardeempréstimo,nãoporacaso,aexpressãodeGramsci)daspotencialidadesindi-viduaispelatransmissãodaculturadeumaépoca,conformeumadadadireção,istoé,umdeterminadomododereproduçãomaterialeespiritualdavidasocial,ouseja,ummodosocialdeprodução. Daíporquenãoseobserva,numadadaformaçãosocial,umnúmerodeconcepçõesdemundoequivalenteaodepretendentesà liderançasocial,masfrequentementeapenasaquelasquepolarizamasociedade,correspondentesàsclassessociaisfundamentaisdomodosocialdeproduçãodominante,eelemen-tosdeconcepçõesrelativasaclassesdemodosdeproduçãosubordinados,comfracaounenhumaincidênciasobreasinstituiçõesdeensinoedeorganizaçãodacultura.ÉporissoqueodebateintelectualdoséculoXXfoidominadopelapolarizaçãoentre liberalismoecomunismo,aindaqueambasascorrentesdepensamentoapresentemdiversasvertentes,namedidaemqueoprimeiroofereciaasbasesdaorganizaçãodoprocessodereproduçãomaterialeespiritualdavidasociale,osegundo,reivindicavasubstituí-lonestepapel.Pelomesmomotivo,aconcepçãodemundoéaesferamaisgeraldarepresentaçãosocialdomundoe,porqueoperademodosubjacentecomomeiodeapropriaçãosimbólicadarealidadeexterior, comoumaespéciede segunda natureza ao ladodanaturezabiológica,nãoépercebidacomodeterminaçãohistórico-social.5

5“É preciso desde logo estabelecer que não se pode falar de ‘natureza’ como algo fixo, imutável e objetivo. Percebe-se que quase sempre ‘natural’ significa ‘justo e normal’ segundo nossa consciência histórica atual; mas a maioria não tem consciência dessa atualidade determinada historicamente e considera seu modo de pensar eterno e imutável.” (Gramsci, 2001: 51).

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Comoécomumàáreadashumanidadesemgeral,tambémnoâmbitododireito,especificamente,hácontrovérsiasquantoàsuadefinição,aspectoaquenãomedeterei.Paraefeitodacríticadodireitodeacordocomasegundaacepçãodoconceitodeideologiaacimadefinido,pode-seconsiderarduasgrandesver-tentes:aneokantianaeapositivista.Aprimeira,porconsiderarqueumanoçãoapriori dedireitoéacondiçãodepossibilidadeparaoconhecimentodaquestãojurídica,tomacomopontodepartidaaformulaçãodeKant,segundoaqualaquestãosobreo

(...)justoeoinjusto(justum e injustum)jamaispoderáserresolvidaamenosquesedeixeàparteessesprincípiosempíricosesebusqueaorigemdessesjuízosnarazãosomente(aindaqueessasleispossammuitobemsedirigiraelanessainvestigação),paraestabelecerosfundamentosdeumalegislaçãopositivapossível.”(2005:45),

Emoposiçãoaestaperspectivajusnaturalista,Kelsenafirmaque(...) a partir daperspectivada cognição racional, existemapenas interesses e,consequentemente,conflitodeinteresses.Suasoluçãopodeseralcançadaporumaordemquesatisfaçauminteresseemdetrimentodeoutroouquebusquealcançarumcompromissoentreinteressesopostos.(...).Somenteistopodeserobjetodaciência;somenteissoéoobjetodeumateoriapuradoDireito,oqualéumaciência,nãoumametafísicadoDireito.ElaapresentaoDireitotalcomoeleé,semdefendê-lochamando-ojusto.Oucondená-lodenominando-oinjusto.ElabuscaumDireitorealepossívelnãoocorreto.É,nessesentido,umateoriaradicalmenterealistaeempírica.EladeclinadeavaliaroDireitopositivo(2002:19).

Apesardasdiferenças teóricasentreessasabordagens,ambasconcebemodireitopositivocomoumsistemaformaleabstratodenormascujonexocentraléoindivíduoproprietário,quedásuporteàcategoriasujeitodedireito,ouseja,umaideologianosentidodeumsistemadenormas,crençasevalores.Ambasoperamatravés da abstração do indivíduodas relações que o constitui historicamente,comopremissaepistemológica,umcortenahistória,transformandoemefeitodaideologiaoqueéumresultadohistórico.Postoqueessaideologiatemcomofiguracentraloindivíduolivre-cambista,isolado,elacorrespondeàexperiênciadavidacotidianadesteindivíduonascondiçõesdasrelaçõessociaisdeproduçãocapitalistaseaexplicaeficazmente,retirandodaísuaforça,validademoralecredibilidade. Complementarmente, a ideologia jurídica (enquanto sistemadenormas,crençasevalores)articulaideologias(comovisõesdemundo)inclusivo-existencial(religião),inclusivo-histórica(nacionalismo,porexemplo),posicional-existencial(gêneroeciclosdavida)eposicional-histórica(membrosdefamília,comunidade,classes,praticantedeumestilodevidaetc.),conformeatipologiado“universodas interpelações ideológicas” (Therborn, 1980: 23-25)6, atravésda ideologia

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enquantointerpelaçãodiscursiva.Asideologiasinclusivo-existencialeinclusivo-históricasãoarticuladasàideologiajurídicacomopreceitoseinstitutoslegais(in-clusiveconstitucionais),quandoseadotamvalorestradicionaiscompatíveiscomafiguradoindivíduolivre-cambista(porquejádevidamenteformalizados)comoprincípiojurídico,7porumlado,e,poroutro,asideologiasposicional-existencialeposicional-históricapodemounãoservircomocritériosdeformataçãodosdireitosindividuaisdaquelesquepertencemaosseguimentosidentificadoscomtaisideologiasnamedidaemqueelassãomobilizadasnaslutaspolíticas.Assim,oindivíduolivre-cambista(noníveleconômico)éinvestidodoestatutojurídico-políticodeacordocomformasdeconsciênciamoraleastradiçõesprópriasdopovoaqueseaplicaalegislação. Paraelucidaressaarticulaçãoentreastrêsacepçõesdeideologia,convémexporalgumasdefiniçõesdeTherbornedeAlthusser.Deacordocomoprimeiroautor,osegundo“rompeucomatradiçãodeveraideologiacomoumcorpodeideiasoupensamento,concebendo-acomoumprocessosocialdiscursivo,ou‘interpelações’,inscritonamatrizmaterialdasociedade.”(1980:7,traduçãominha).Estarupturaéimportanteparaevitar,porumlado,umavisãoabstratadeideologia,deexistênciaideal(espiritual)daideologia,descoladadaqualquermatrizmaterial,e,poroutro,oestabelecimentodecorrespondênciaentrede-terminado“corpodeideiasoupensamento”adeterminadolugarnasrelaçõessociaisdeprodução,independentementedasapropriaçõesindividuaisoucoletivaseosefeitosquetaisapropriaçõesproduzemsobrequalquer“corpodeideiasoupensamento”(1980:7). Contudo, àprimeiravista, emdecorrênciadessa ruptura, aprimeira e aterceiraacepções(visãosocialdemundoeinterpelações,respectivamente)deideologiapodemparecerincompatíveis.LöwyincorporaaoconceitodevisãosocialdemundoadistinçãoentreideologiaeutopiadeMannheim,distinçãoquemepareceteoricamenteinjustificávelou,nomínimodesnecessária,alémdeincluirAlthusserentreosque,aseuver,têmumainterpretaçãodeMarxtingidadepositivismobaseadana“oposiçãoentreciência‘imparcial’,‘desinteressada’eciência(oupseudociência)submissaainteressesexteriores”(...)”(Löwy,1998:104,aspasnooriginal).Althusseradmite,emElementosdeautocrítica(1978),umdesvioteoricistaaoexageraradistinçãoentreciênciaeideologiaemtermosra-

6A definição mais exaustiva desse universo das interpelações ideológicas exigiria um espaço do qual não disponho neste artigo. 7“Enunciado lógico, implícito ou explícito que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam (Roque Antonio Carrazza).” (Diniz, 1998).

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cionalistas,desvioquerelacionouaoabusodoconceitodeepistemologia,jamaisàquestãodoconflitodeclasses,noqual,dizele,todarepresentaçãodomundo(científicaouideológica)estáenraizadaemúltimainstância. Feitaestaressalva,onúcleodoconceitodevisãosocialdemundo,apresen-tadoporLöwy,como“(...)aperspectivadeconjunto,aestruturacategorial,oestilodepensamentosocialmentecondicionado(...)”(1998:12),amenosqueseadmitaahipótesejádescartadadaexistênciaidealdasideias,écompatívelcomaafirmaçãodequeexistecomoparte

(...)dosaparelhosideológicosdoEstadoedesuaspráticas,queelessãoarealiza-çãodeumaideologia(aunidadedessasdiferentesideologiasregionais–religiosa,moral,jurídica,políticaestéticaetc.,asseguradapelasubsunçãoàideologiado-minante).(...)umaideologiaexistesempreemumaparelhoesuapráticaousuaspráticas.Estaexistênciaématerial.Claro,aexistênciamaterialdaideologianumaparelhoesuaspráticasnãopossuiamesmamodalidadequeaexistênciamaterialdeumparalelepípedooudeumfuzil(...).Diremosquea“matériaseapresentaemváriassentidos”,ouaindaqueelaexistesobdiferentesmodalidades,todasenraizadasemúltimainstâncianamatéria“física”.(Althusser,2006:126-127,aspasnooriginal)

Ouseja,qualquervisãodemundoéproduzidaeminstituiçõesformalmenteconstituídaseorganizadas(entreasquaisoEstadoocupalugarcentral),circulaemmeiosmateriais (impressos, eletrônicosetc.) e seuprocessodeprodução(inclusivereproduçãoereelaboração)serealizaatravésderituaismateriais(admi-nistrativos–estes,emboranãoexclusivos,sãoprópriosdoEstadoedaempresacapitalista,solenes,litúrgicos,comemorações,militaresetc.),demodoqueao

(...)considerarapenasumsujeito(talouqualindivíduo),aexistênciadasideiasprópriasdasuacrençaématerial,poissuasideiassãoseusatosmateriaisinseri-dosnaspráticasmateriais,reguladasporrituaismateriaisdefinidospeloaparelhoideológicodoqualderivamasideiasdessesujeito(Althusser,2006:129).

Estesujeitoéinterpeladopelasideiasinscritasnessesrituaismateriaisaoingressaremqualquerinstituição,deacordocom“Aduplaestruturaespeculardaideologia”,comoumsistemaquádruplodeinterpelação.Primeiro,eleéalvoda“interpelaçãocomosujeito”,segundo,talinterpelaçãosupõesua“sujeiçãoaoSujeito”,oaparelhonoqualestáingressando,terceiro,esteindivíduoexperimen-ta“oreconhecimentomútuoentreossujeitoseoSujeitoeentreelesmesmosenquantosujeitose,finalmente,oreconhecimentodesimesmocomosujeito”e,porfim,“agarantiaabsolutadequetudoestábemassimenacondiçãodequeossujeitosreconheçamoquesãoeseconduzamdeacordo,tudoestarábem:‘Amém,assimseja!’”(Althusser,2006:139).

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Como,nestaestrutura,osujeitoapareceapenascomosujeição,oquenãopermiteexploraradialéticadaideologia,intervémaquiaobservaçãodeTher-borndequea“(...)dialéticajáestáindicadapelaambiguidadebásicadapalavra‘sujeito’,tantoemfrancêscomoeminglês,comoAlthussermesmosugeresemtrazeraquestãoàluz”(Therborn1980:16,aspasnooriginal).Emboraretenhaadíadeinterpelação-reconhecimentodeAlthusser,Therbornpropõesubstituirsujeição-garantiapor subjetivação-qualificação,pois, “Emboraqualificadospelasinterpelaçõesideológicas,ossujeitostambémsetornamqualificadospara‘qua-lificar’estas,nosentidodeespecificar-lhesemodificarsuaáreadeaplicação”(Therborn,1980:17). Resultadaconjugaçãodestelugardaideologiajurídicanoconjuntodasideologiascomatripladeterminaçãodacategoriacidadãooparadoxodeque,emboraesteconceitodesigneprecisamenteosujeitodedireito,anoçãodeci-dadaniaépolissêmica,oqueéfacilmentedetectadopelasvariaçõesdosquadrosinterpretativos,como“umesquemainterpretativoquesimplificaecondensao‘mundoláfora’,aopontuarecodificarseletivamenteobjetos,situações,aconte-cimentos,experiênciasesequênciadeaçõesnumambientepassadooupresente”(SnoweBenford,1992:137,aspasnooriginal);quadrosestesutilizadospelasdiversas forçaspolíticasparamobilizarseletivamenteelementosdasdiversasideologias(visõesdemundo),nabuscadearticular(ejustificar)seusinteressesàagendaestatal.

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