apocalipse a grande revelacao
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revelações inéditas de como vai ocorrer o apocalipseTRANSCRIPT
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Prefácio
Apocalipse
A maioria da humanidade associa erroneamente a palavra Apocalipse a
um desastre global ou à aniquilação de muitas vidas humanas, senão até
mesmo, à sua própria extinção da face da terra.
Contudo, o seu significado envolve um parâmetro completamente diverso
àquele que se imagina na realidade.
A palavra Apocalipse deriva na sua origem do grego "a·po·ká·ly·psis"
que traduzida significa revelação, exibição ou desvendamento.
Este livro "Apocalipse, a Grande Revelação" irá lançá-lo para as
profundezas de um mundo que, embora participe nele diariamente,
jamais terá a noção que ele existe. Deixe-se guiar pelos alicerces do
subconsciente humano à medida que acompanhe um jovem comum, em
quem lhe fora confiado a libertação de toda a humanidade. O que ele
estará prestes a descobrir irá mudar o seu mundo. Deixe que ele mude
também o seu.
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Um especial agradecimento à minha adorável e incansável esposa
Priscila que me iluminou o caminho, bem como ás onze mentes
brilhantes e aos mais de oitenta e três voluntários que não hesitaram em
partilhar o que viram e ouviram.
A eles dedico este Apocalipse.
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Capitulo 1
Mais uma aborrecida e gélida tarde mergulhada num profundo
nevoeiro cerrado. A avenida está deserta e são poucos os transeuntes
que a cruzam.
Dado a necessidade de comprar uns materiais para a manutenção do
apartamento, vejo-me obrigado a sair de casa e mergulhar no cruel
mundo exterior.
Abro a porta de casa, e, sem querer perturbar o silêncio do hall das
escadas, tranco subtilmente a porta. Desço as escadas antigas de
madeira que, a cada passo que dou, quebram o silêncio com ranger
das suas palavras. A pintura é a mesma, verde velho como a alcatifa,
enfim, é um quarteirão como tantos outros por estes subúrbios. No
fundo das escadas, como que seguindo-me com um olhar atento, um
fiel cão de porcelana, aguarda imóvel o seu dono que tarda a vir.
Ao chegar ao corredor da entrada, encontro o mesmo inquilino de
sempre a abrir a sua caixa de correio, ritual este, transformado em
rotina diária. Alto, velho, desconfiado, com óculos de mocho, gabardina
cinzenta e um chapéu dos anos 30, desdobra minuciosamente o jornal,
começando a sua leitura pela penúltima página. Como de costume,
passo por ele e cumprimento-o, sabendo de antemão, que ele não me
responderá.
“Boa tarde.” Respondo apressadamente como quem já adivinha a
resposta.
Para minha surpresa, a sua reacção foi diferente. Dignificando-se em
retirar os olhos de sua leitura, lentamente olha empedernido nos meus
olhos, sussurrando:
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“7.”
Aquele momento de milésimos de segundos, parece trespassar o meu
petrificado corpo.
Sem mais demoras, continuo a percorrer o corredor como se nada
tivesse acontecido, como sempre ocorrera das outras vezes.
Abrindo a grande e velha porta de madeira, a avenida parece expandir-
se no horizonte, apenas para se perder no infinito. Começo a grande
caminhada entre o contrastante chão em paralelo branco e as paredes
em blocos laranja, até ao meu destino final, a drogaria mais próxima.
Olhando para baixo, por entre uma janela na alta parede de tijolo
alaranjado, uma menina pálida e seria, com um olhar terno e triste,
toca uma melodia num velho violino. O que passará naquela tenra
mente? Mundo estranho, sempre dominado pela sombria tristeza. Tal
visão não reduz o meu passo acelerado e, sem grandes hesitações
atravesso a estrada com toda a normalidade do mundo. Dirigindo-me à
porta de entrada da loja, rodo o seu amarelado manípulo entrando de
seguida, sem qualquer hesitação. A antiga loja era constituída por
prateleiras em madeira antiga, repletas de quinquilharias de tudo o que
existe neste mundo. No fundo dela, um balcão arcaico com séculos de
existência, transformava aquela drogaria numa biblioteca de materiais.
Direcciono-me ao balcão vazio sem que ninguém se resigne a
aparecer. Espero sete minutos por alguém, debaixo de uma luz fraca e
amarelada. Após decorrerem os sete minutos eis que surge alguém,
passando por uma porta misteriosamente camuflada. Uma gentil
senhora idosa, com o seu andarilho dirige-se lentamente até mim.
“O que posso fazer por ti?” Pergunta a idosa senhora.
“Boa tarde. Precisava de uns trinta parafusos iguais a este que aqui
tenho.”
Virando as costas e rebuscando cuidadosamente cada gaveta que se
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encontrava instalada debaixo do balcão, a simpática idosa ergue-se
com dificuldade e responde-me com um olhar amedrontado, como se
um pressagio lhe tivesse caído aos pés.
“Não possuo os trinta parafusos.”
“Então dei-me os que tiver.” Respondi.
A senhora faz apressadamente as contas, apresenta a despesa e,
depois de lhe pagar, tenta retornar de onde veio, o mais rápido que
pode.
“Estranho comportamento.” Respondo para mim próprio.
“Parece que todos tiraram o dia para se tornarem estranhamente
misteriosos.”
Voltando para trás, dirijo-me para a porta de saída e regresso a casa.
O frio domina o exterior com um forte vento que intimida os poucos
transeuntes que aqui circulam.
Faço um pequeno desvio sem sair da avenida e entro num café em
busca de algo que aqueça o meu corpo por dentro.
O lugar está cheio de clientela, e as vozes alçadas de quem discute o
jogo de ontem, parece quebrar o gelo da monotonia gélida do exterior.
Sento-me e apressadamente e sou imediatamente atendido pelo
empregado de mesa.
“Boa tarde, o que deseja?”
“Um cappuccino, mas bem quente, por favor!”
“Muito bem.” Responde o empregado de mesa.
Enquanto que espero observo o ambiente iluminado à minha volta.
Umas grandes janelas panorâmicas dão a visão brutal do vento que
varre a avenida.
O empregado demora a vir.
Vendo que ele demora, opto por chamar a sua atenção alçando o meu
braço direito.
“Ora diga.” Pergunta o empregado.
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“Não se esqueceu de mim?” Pergunto.
“Ora, não sabe que o tempo de espera são 7 minutos até ser servido?”
Responde o empregado friamente.
“Não tem problema. Eu tenho tempo.” Respondo-lhe suavemente,
evitando problemas desnecessários.
Enquanto aguardava, comecei a reflectir nas palavras do empregado
de mesa e a pensar em tudo o que se passou durante o momento de
espera na drogaria.
As palavras soavam estranho, pois eu tinha esperado 7 minutos na
drogaria e 7 no café.
“Que estranha coincidência.” Concluo, após meditar na estranha
numerologia sequência de setes.
Rapidamente começo a abrir o saco que misteriosamente fez a idosa
desaparecer velozmente da minha vista.
Abro cuidadosamente o saco e, eis que não continham os trinta
parafusos.
Por duas vezes contei um por um e o resultado foi sempre o mesmo, 7.
Fiquei pálido, empedernido no meu próprio lugar.
Algo atrai a minha atenção para o exterior e, lentamente volto a minha
face para a rua. Do outro lado da avenida, encontrava-se o velhote do
prédio com o jornal debaixo do braço.
Ele olhava para mim, sério, frio, calculista, como se eu fosse um
criminoso, um bandido internacional, um verdadeiro perigo público.
Não hesito em esperar pela resposta à minha pergunta que me oprime
a mente num mistério infindável.
Num gesto rápido, levanto-me da cadeira e dirijo-me à porta de saída.
Abro a porta, e precipito-me para o exterior com o objectivo de indagar
o velho sobre o seu comportamento. Misteriosamente, a ventania
cessa e a rua fica deserta por completo.
Ouço passos apressados distanciando-se de mim.
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Não posso perder por nada este enigma, por isso, sigo o ruído dos
passos que fogem de mim.
A medida que percorro a avenida, o nevoeiro começa a intensificar-se.
O ruído dos passos intensifica-se à medida que me aproximo de uma
rua estreita. Viro à direita e entro nesse labirinto apertado de altas
muralhas de blocos laranja que entoam os meus passos em complexos
ecos.
Curvo uma parede, contorno um outro bloco mas sem sucesso. Ouço
os passos mas ninguém aparece.
De repente, o ruído cessa e dou comigo perdido no meio destas altas
paredes de blocos como se de um labirinto se tratasse.
Com o coração a palpitar semelhante a uma locomotiva, dou
instantaneamente meia volta. Em passo apressado, tento retornar a
avenida principal. Sigo, sem querer, um caminho diferente ao tomado
anteriormente levando-me por um infinito trilho de curvas e contra
curvas.
Depois de alguns minutos, dou comigo num sitio muito idêntico ao de
há pouco. Não demorou a chegar à conclusão de que me encontro no
mesmo ponto. Torno atrás, sigo outro caminho. O dia começa a
escurecer e, mesmo assim, passados outros tantos minutos, dou
comigo outra vez no mesmo ponto de partida.
“Estou definitivamente a andar à roda!” Exclamo.
Volto-me para trás e eis que ouço passos lentos a caminharem na
minha direcção.
Foco a minha total atenção no que sairá daquela cortina de nevoeiro.
Eis que surge, num passo tranquilo, um homem alto com um gabardina
cinzenta. Á sua direita segue um dobermen.
Os seus olhos concentram-se unicamente em mim, deixando
trespassar um sorriso sádico.
Ainda longe de mim, ele ordena:
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“Agarrem-no!”
Sob o comando dessa ordem, um batalhão de homens parecidos com
o primeiro, emerge do denso nevoeiro, correndo furiosamente na
minha direcção.
Em pânico, começo a fugir por entre aquele labirinto, derrubando os
caixotes do lixo e as caixas de cartão vazias na esperança de travar a
ofensiva.
“Impossível! Eles estão determinados a alcançar-me.” Desespero já
exausto com tal árdua perseguição.
A sua aproximação dá-se a cada metro, fazendo-me clamar de pânico:
“ Sou inocente, não fiz nada!”
Apenas se ouve o respirar potente dos homens que concentram a sua
atenção em mim, como um leão que fita a sua presa.
Clamo por socorro, mas ninguém me ouve.
De tanto clamar, a minha voz torna-se rouca, quero gritar, quero pedir
ajuda, mas não consigo.
A aflição e o pânico por não conseguir falar dominam-me por completo.
Continuo a correr, virando a direita na próxima esquina.
“É a minha salvação!” Exclamo ao observar a avenida.
Mas eis que começo a abrandar, sentindo os meus músculos a
bloquearem-se. É a sensação de estar a arrastar uma tonelada de
peso sem quase sair do sítio.
Não me consigo mover e os meus perseguidores ganham cada vez
mais terreno.
Começo a gritar bem alto para dentro de mim.
Olho para o céu em busca de livramento divino.
Inesperadamente, no topo do muro de blocos, avisto um homem forte
de fato azul-escuro. Agachado sobre a parede e com uma mão em
cima do joelho, ordena-me:
“Enfrenta-os!”
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Eu respondo-lhe em pânico:
“Ajuda-me!”
Ele repete:
“ Não tenhas medo. Enfrenta-os!”
Não posso acreditar no que ouço, enfrentar sozinho mais de dez
homens! Como?
Nesse momento, um deles agarra o meu ombro e bloqueia-me por
completo.
Rapidamente, outro se aproxima de mim e, tirando uma faca da sua
gabardina num gesto fulminante, espeta-a em mim e...
Acordo.
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Capitulo 2
Olho em redor no escuro do quarto, onde nada parece quebrar a
tranquilidade e silencio daquele espaço.
A minha respiração outrora tumultuosa volta ao normal.
“Que alivio!” Expiro de alivio.
Olho para o relógio que anuncia as quatro e meia da manhã, ainda
muito cedo para me erguer no novo dia que esta a surgir.
A madrugada corre rápido, fazendo o despertador tocar o seu habitual
alarme ás sete e quarenta, indicando o nascimento de mais um novo e
entediante dia.
Profundamente ensonado, sigo o mesmo ritual de sempre,
meticulosamente programado a cada dia que chega.
Ligo o rádio e preparo o meu café ao som das notícias das 8:00.
“ Um violento acidente tirou a vida a sete trabalhadores da cadeia
metalúrgica Royal Steel, outrora, império que dominava o território,
encontra-se cada vez mais de joelhos perante a vaga de acidentes que
vêm a marcar a má sorte na grande empresa.”
“Sorte não existe, nem boa nem má, as coisas simplesmente seguem
uma ordem.” Replico eu
“A hipótese de sabotagem foi posta de lado, contudo os dirigentes da
Royal Steel rejeitaram as proposta de compra por parte da gigante
Farmacus Entreprise. A questão que se coloca e a seguinte:
Quanto tempo aguentarão os dirigentes da empresa Royal Steel esta
onda de problemas.”
“Eu vendia tudo e fugia para uma ilha para ninguém mais me
incomodar.” Respondo ao presenciar mais um dia.
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Abro a porta da garagem, retiro a minha bicicleta e aí vou eu.
A cidade é pequena, amistosa, onde todos sabem da vida uns dos
outros.
Em menos de 10 minutos chego ao meu local de trabalho, uma
pequeno armazém de ferragens.
A loja abre ás 8:30 e o ciclo começa novamente, sempre com as
mesmas pessoas, os mesmos problemas, as mesmas piadas, enfim,
aqui o mundo parou.
Sempre que inicio este tedioso trabalho, a minha vontade é fugir. Mas
para onde?
“Jonathan!” Grita o meu chefe. “Onde está o maldito livro das
facturas?”
“Está dentro do dossier, na segunda gaveta do lado direito em frente
do balcão de atendimento.” Respondo
“Mas quantas vezes já disse que o livro das facturas é para estar em
cima do balcão!” Grita novamente.
“Não se esqueça que foi você que o pôs lá ontem à noite.” Respondo
eu já aborrecido com a sua constante paranóia.
“Ah!” Exclama ele, meio encavacado. “Vamos lá ao trabalho que já e
tarde.”
Não existem muitas oportunidades de emprego, por isso, temos de
aproveitar o que temos e aguentar o que nos deram.
“Olá Jonathan.”
“Bom dia Mike.”
“Então, está tudo bem?”
“Sim Jonathan, estou prestes a ser aceite no trabalho que queria nos
seguros.”
“Sortudo. Só a mim é que não me acontece tal.” Respondo eu.
“ A sorte é assim, acontece. Não escolhemos, somos escolhidos.”
“Fico contente amigo. Já algum tempo que não passavas por aqui.”
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“Tenho estado ocupado com umas remodelações lá em casa. Sabes,
com a aproximação do casamento, temos de dar os últimos retoques.”
“Quem diria Mike, ainda há pouco andávamos na escola e olha para ti,
com a vida fixa, já quase com família formada. Fico invejosamente feliz
por ti.”
“Jonathan, não sei como as coisa acontecem, mas, como já te disse,
ou é sorte, ou somos escolhidos a tê-la.”
Os clientes começam a aglomerar no interior da loja.
“O meu chefe já está de olho em mim, é melhor pomos a conversa em
dia no final do meu trabalho. Do que precisas?”
“Precisava de uma dúzia de grampos para fixar umas madeiras lá em
casa.”
“Ora aqui tens. E mais?”
“Era só isto, obrigado. Será que podes por isto na minha conta?”
“Claro amigo.”
“Tem um bom dia Jonathan.”
“Vou tentar Mike.” E aí vai ele todo contente da vida.
Será que a vida escolhe quem será bem sucedido, ou é a sorte que
constrói o nosso caminho?
Bem, se for no meu caso, nem uma nem outra estão a funcionar.
O velho relógio na parede parece parar no tempo, fazendo com que
cada manhã pareça uma eternidade.
Mas, com muito esforço, completa a sua missão matinal de chegar ao
estafante meio-dia.
“Ora do almoço, tudo daqui para fora!” Clama Robert, do outro lado do
armazém.
O Robert é uma peça de museu nesta empresa. Com os seus 37 anos
de serviço ainda guarda a capacidade de quebrar o gelo da monotonia
com os seus tiques e modos hilariantes.
“O chefe é que manda.” Respondo eu bem-humorado.
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“Pior para vocês se fosse chefe! Nem almoço tinham.” Diz Robert,
com um sorriso maquiavélico.
Não muito longe da loja, existe um snack-bar onde servem bons
almoços. Aproveito a caminhada para espairecer a cabeça.
O bar, com grandes vidros panorâmicos, conserva ainda o estilo
contry. A madeira que reveste as molduras das janelas e das portas
em tons de amarelo e branco, contrasta com o verde velho dos
estofes. No centro da sala, encontra-se um monumental pilar em
madeira cilíndrica. Quem observar de perto, repara nas inúmeras
inscrições talhadas na madeira de namoricos passados e de presenças
antigas. Os velhos clientes da casa proferem ditos e lendas sobre este
artefacto no centro daquele mundo.
Reza a lenda em forma de poema, conforme dizem, que em torno
deste pilar:
Um amor pode nascer
Para mais longe
Ter de desvanecer.
“Como tudo na vida.” Respondo eu com palavras dos antigos.
A esta hora é muito difícil apanhar uma mesa livre.
Avanço muito lentamente e observo com cuidado por um lugar.
“Jennie, onde está o meu lugar à janela?” Pergunto eu em tons de
brincadeira no meio daquela confusão.
“Tens umas piadas muito giras.” Responde ela de forma simpática
mas defensiva como sempre.
É complicado gerir sentimentos e respostas quando e sala está cheia
de clientes esfomeados, que só se importam com o seu ventre.
A Jennie é uma jovem, cheia de dinamismo e garra naquilo que faz.
Parece que nada a amedronta e não tem receio de aceitar novos
desafios. A vida não lhe foi fácil. Não chegou a conhecer o pai, que
abandonou a ela e à sua mãe quando tinha apenas quatro meses.
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Quando fez dezasseis anos, a sua mãe caiu numa depressão
profunda, fazendo-a abandonar os estudos e os sonhos para se auto-
sustentar. Mas, nem a sua árdua vida foi capaz de subestimar os seus
objectivos. Recusa-se em trocar a sua dignidade por dinheiro, nega-se
em aceitar um compromisso em troca da sua preciosa liberdade.
Algumas mulheres nascem belas, no que respeita a Jennie, ela tornou-
se bela.
Falando com respeito da Jennie, posso afirmar que me dou bem com
ela. É pessoa de muitos amigos e isso dá-me a oportunidade de lhe
falar nestes modos cómicos.
Finalmente encontro um lugar. Sento-me e fixo a minha atenção na
rua. É uma cidade pacata, ou antes, fantasma a esta hora. Não se vê
viva alma lá fora.
Passados alguns minutos chega a Jennie.
“Então, o que vai ser?”
“Tens aqui muito movimento!” Respondo ao olhar para a multidão
barulhenta.
“Anda lá Jonathan, isto aqui está cheio de gente.” Apressa-me ela,
sempre em constante correria.
“Está bem, está bem! Pode ser o mesmo de sempre, para não
perderes tempo.”
“Desculpa ser assim Jonathan, nestes últimos dias isto tem sido
demais.”
“Não há problema, eu entendo-te muito bem.” Respondo eu, tentando
suavizar o cenário.
Jennie encurva a cabeça para ajeitar a mesa tornando visível um
pequeno gancho em forma de um laço amarelo. Vendo tal laço, a
recordação de um sonho antigo vem-me a mente.
”Interessante esse teu laço amarelo.” Comento surpreso com tal
objecto.
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“Porque dizes isso?” Pergunta Jennie
"Não foi a muito tempo que tive um sonho em que tu usavas um laço
igual a esse, mas em azul claro.”
Ouvindo estas palavras, Jennie, com os pratos ainda na mão, fica
imóvel e pensativa.
Logo em seguida, sorri como quem acabou de perder precioso tempo
numa tolice qualquer.
Num ápice, vem a refeição, mas também num ápice chega a hora de
voltar para o trabalho.
Felizmente a tarde passa a correr, atingindo assim o término de um
círculo vicioso que se repete dia a pós dia.
Pego na minha bicicleta e retorno a casa.
O ritual é sempre o mesmo.
Como e vivo sozinho, ligando imediatamente a televisão para cortar o
silêncio.
A seguir, vou à cozinha e tiro uma cerveja do frigorífico.
Sento-me no sofá e assim acaba o dia.
É aborrecido, mas não sou o único a ter este tipo de doença que afecta
milhões de humanos ao redor do globo. Só por si, essa notícia já me
deixa mais descansado.
Com a chegada das oito da noite as notícias entram no ar, trazendo
mais desgraças para for da caixa eléctrica, entretendo os
telespectadores.
“O crime volta a atingir novos recordes. Segundo fontes oficiais, uma
vaga de furtos e vandalismo aumentaram este mês em vinte por cento”
Comenta o jornalista na televisão.
“O recém delegado Franco Buster, promete um reforço na actividade
policial bem como um patrulhamento mais organizado.”
“Mais um que pensa mudar o mundo.” Refuto com indiferença ao
estender os braços no sofá.
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As noticias são aborrecidas, levando-me a mudar de canal. Pego no
comando e mudo de canal, mas, sempre que carrego num botão
diferente, aparece-me sempre a mesma notícia. Tento mudar para
outro canal, mas sem sucesso, tento desligar a televisão, ma ela não
obedece.
“Este comando já deu o que tinha a dar.”
Levanto-me do sofá, abaixo-me por detrás da televisão para tirar a
tomada da ficha, quando, de repente, o delegado Franco Buster é
entrevistado.
“Delegado Buster, qual será a sua futura estratégia para combater
esta onda de crime?”
“Vamos reforçar o policiamento e a vigilância dos transeuntes. O
objectivo é monitorizar mais arduamente os passos de potenciais
delinquentes.”
Fiquei completamente arrepiado com aquela voz!
Lentamente, voltei-me para observar a imagem.
Assim que o vi, o meu coração quase que rebenta.
O delegado Franco Buster tinha a mesma voz e fisionomia do velhote
com que eu tinha sonhado.
“Como é possível se eu nunca o vi na minha vida?”
“Como fui sonhar com o velhote?” Pergunto-me extremamente
intrigado.
Talvez já o tivesse visto antes num jornal, revista ou até num programa
de televisão.
A mente tem segredos incalculáveis, conhece-la apenas por
momentos, revelaria grandes segredos.
Com a chegada das onze da noite, o dia acaba para mim.
O sono tarda em vir, permitindo-me reflectir em tudo o que fiz e no que
os outros fizeram.
A esta hora o mundo parou, a rua está tranquila, todos estão a dormir,
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menos eu.
Enquanto penso no que passou, os olhos vão ficando cada vez mais
pesados.
Fecho os olhos e adormeço.
Um novo dia começa.
Ontem teve um dia agradável, mas hoje chove a potes.
Apanho o autocarro 103 que vai dar ao centro da cidade.
É um trajecto longo e para piorar, o mau tempo lança na estrada um
trânsito caótico.
O autocarro vai apinhado de gente. Ao menos aqui dentro não chove.
Através do vidro, vejo o senhor Robert a sair do café.
Encolhe os ombros com frio enquanto que espera debaixo do tolde que
a chuva pare. Mas, bem por cima do seu bolso, verifico que a sua mão
direita esta enfaixada. Pudera, ele esquece-se da idade que tem, ainda
pensa que pode mudar o mundo.
O autocarro para e gente entra e outra sai.
Uma senhora idosa procura um sítio para se sentar, mas sem sucesso.
Sempre fui cavalheiro e espero sempre o ser, por isso cedi o meu lugar
no meio daquele montão de gente indiferente.
O autocarro avança mais uma vez no seu interminável caminho.
Mais à frente vê-se uma enorme construção, mais um shopping que
vão abrir.
Olho com atenção para a grande estrutura metálica e observo os
trabalhadores no seu interior.
“Não pode ser!” Exclamo pasmado.
“O Mike a trabalhar na construção civil? Não pode ser! Ele disse-me
que ia trabalhar para os seguros!”
Nesse preciso momento um transeunte atravessa a estrada como um
louco e o condutor do autocarro vê-se obrigado a travar bruscamente.
Como não tinha as mãos apoiadas em sitio algum, fui pisar
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acidentalmente numa pobre senhora.
“Peço desculpa, foi sem querer!” Respondo aflito, com receio de a ter
magoado.
A senhora volta-se para mim, sorri, e diz-me:
“Não tem problema Jonathan.”
Ela era a senhora Octavia da mercearia que costumo frequentar.
Menos mal que ela me conhece, caso contrário, é sempre
embaraçante pisar alguém.
O autocarro segue a sua lenta marcha, contrariando o relógio que não
para, apertando o tempo para dar entrada no trabalho.
Passados cinco longos minutos do último incidente, a luz amarela do
painel superior do autocarro, informa os passageiros da próxima
paragem.
Aquela luz é como uma profecia sagrada, sempre se cumpre, quer em
antecipe, quer em retardo. Nunca falha.
O autocarro abranda e as portas abrem-se lançando os muitos
passageiros, incluindo eu, no meio do dilúvio.
Cubro a cabeça com a gabardina e instalo-me debaixo do primeiro
tolde que vejo. É preciso planear bem o percurso a fazer antes de
enfrentar o aguaceiro.
Enquanto observo o caminho a percorrer no meio daquele mar de
gente, observo um indivíduo com os olhos fixos em mim. Observo-o
com mais atenção. Nesse momento, vem-me um arrepio na espinha.
“Não pode ser!”
Era o indivíduo forte do fato azul-escuro que entrou no meu sonho na
noite passada.
Resolvo quebrar este enigma por me dirigir a ele.
Ouço uma voz atrás de mim:
“O jovem chama-se Jonathan?” Aborda-me um homem,
representando os correios, em plena rua.
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“Sim, porquê?”
“Tenho uma carta para si.” Responde o carteiro
“Tem a certeza que e para mim?” Duvido ao ouvir semelhante
resposta.
“Sim.” Confirma ele.
Peguei na carta e abri-a.
A carta dizia:
Vai a Golden Square. Entra no terceiro beco.
Estranho.
Virei-me para o carteiro e disse:
“Isto com certeza não é para mim!” Quando ergo os meus olhos para o
carteiro, ele já tinha desaparecido.
Olhei para o sítio onde estava o tipo do fato azul, mas já lá não se
encontrava. De repente, uma mão grossa agarra-me o ombro.
Fiquei completamente estático, ao ponto do meu próprio pescoço ficar
bloqueado demais para se girar. Daí, ouvi uma voz:
“Então Jonathan, como estás?”
“Que valente susto que me destes, Alfred!” Exclamo ainda com o
coração aos saltos. Alfred foi meu colega de turma por quatro anos,
dávamo-nos muito bem e ainda nos damos.
“Sou assim tão feio para ficares branco dessa maneira?”
“Não! Apenas não contava contigo, mas é sempre uma agradável
surpresa ver-te.”
Com o Alfred, há sempre conversa a por em dia, por isso, enquanto
caminho para o trabalho, vamos actualizando novos dados e
informações.
“Aconteceu-me há pouco uma coisa estranha.” Comento pensativo.
“Que coisa?” Pergunta Alfred.
“Um carteiro adivinha o meu nome e entrega-me uma carta no meio
da rua! Achas isso normal?”
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“Não! O que lá dizia?” Pergunta Alfred surpreso.
“Para me encontrar num certo sítio.”
“E não dizia quem a enviou?”Interroga Alfred.
“Não, só tinha a morada para ode me deveria dirigir.” Respondo ao
entregar-lhe a carta.
“Deixa-me ver.” Responde Alfred a segurar na carta.
Ele lê letra a letra, com toda a minuciosidade do mundo, como quem
procura uma moeda de dez cêntimos no meio de um mercado.
“É muito estranho.”Conclui.
“Devias guarda-la contigo até ver o que eles têm a dizer.” Aconselha
Alfred ao dobrar a carta com toda a descrição do mundo e a entregar-
me na mão.
Foco bem o meu olhar nele e pergunto-lhe:
“Eles quem?”
A sua face parece tornar-se gélida.
Quando me volto para a frente, vejo instantaneamente a sair de um
beco escuro, uma mão com um objecto semelhante a uma barra de
ferro que me atinge a testa com toda a força.
Solto um clamor e...
Acordo
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Capitulo 3
Completamente suado e com os músculos doridos, coloco a minha
mão na cabeça.
Tudo está no sítio. Suspiro de alívio. Fora apenas um pesadelo.
Volto a deitar a cabeça na almofada e medito ainda com o coração aos
pulos.
Parecia mesmo real.
Mas o que fazia o individuo de fato azul outra vez no meu sonho.
Talvez tenha visto alguém semelhante a ele já por vários dias, ou,
apenas fruto da minha imaginação.
Bem, o que não fruto da imaginação é o dia de amanhã, por isso,
tenho de aproveitar as poucas horas de sono que ainda me restam.
Sete e quarenta. O despertador toca mais uma vez anunciando o início
de um novo ciclo monótono.
Sempre o mesmo ritual, sempre as mesmas tarefas.
Assim como o mundo gira apenas numa direcção, em apenas um eixo
e sempre à mesma velocidade, assim é a minha rotina.
Vou à janela e verifico se chove como no meu sonho. O céu está
ligeiramente encoberto mas não promete chover tão cedo.
Abro a porta da garagem, retiro a bicicleta para fora. Antes de entrar na
via, dou prioridade a um camião e ao pequeno autocarro 301, os
grandes têm sempre prioridade.
Em apenas dez minutos chego ao trabalho. Meto as papeladas em
ordem e abro as portas ao mundo.
Hoje não passa muita gente por esta avenida. As vendas estão fracas.
O melhor de tudo é que o patrão estará fora todo o dia,
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proporcionando-nos mais paz.
Enquanto estou encurvado a retirar umas papeladas do balcão, ouço
uma voz familiar.
“Então Jonathan, como estás?”
“És tu Mike!” Saúdo-o com alegria.
“Eu estou bem, e contigo, está tudo em ordem?”
“Sim, está tudo bem.”
“Vim pagar a minha conta, quanto é que te devo?” Pergunta Mike
“Ora, aqui estão as facturas.” Respondo ao retirar o livro da prateleira
debaixo.
“Estas obras em casa estão a dar comigo em louco, até sonho com
isto.”
Ouvindo isto, ergo a minha cabeça e, fixando-lhe nos olhos, pergunto...
“Sonhas-te com obras?”
“Sim.” Responde Mike naturalmente.
Fiquei boquiaberto com a resposta.
“Que interessante!” Respondo admirado. “Esta noite eu...'
“Bons dias juventude!” Exclama o engenheiro Fred, interrompendo o
meu comentário.
“Bom dia Sr. Engenheiro.” Saúda Mike no mesmo tom amistoso.
“Jonathan, o teu patrão está?” Pergunta Fred.
“Não engenheiro Fred. Ele estará fora todo o dia. Deseja deixar
recado?”
“Precisava de falar pessoalmente com ele com respeito a um pedido
de orçamento. Mas não tem importância pois, posso voltar amanha.”
“Então vemo-nos amanha.” Respondo
“Sim Jonathan. Voltarei amanhã a mesma hora.” O engenheiro Fred é
um homem de bigode alto e elegante. Está sempre alegre e bem
disposto.
“O que ele terá agora na manga.” Pergunta o Mike com um ar
23
desconfiado.
“Mais uma nova construção que vem aí, de certeza absoluta.”
Responde Robert ao sair do armazém.
“Que tipo de construção?” Pergunto com curiosidade.
“Pelo aspecto, é um grande empreendimento.” Diz Robert, abaixado
diante das prateleiras atulhadas de ferramentas e acessórios.
“ O que estavas a dizer à pouco Jonathan?”
“Acerca do quê?” Pergunto sem me lembrar do tema da ultima
conversação.
“Estavas a falar com respeito a esta noite.”
“Ah sim!” Exclamo ao relembrar-me do assunto em vigor. “ Parece
coincidência mas eu, esta noite sonhei...'
“Jonathan!” Clama o Robert lá dos fundos. “Trás as facturas do dia
sete de Julho.”
“Vou a caminho.” Respondo ao dirigir-me imediatamente ao seu
encontro.
Voltando do escritório para a loja começo a dizer...
“Pois como te disse Mike, eu sonhei que tu...” Mike já lá não se
encontrava.
Que aborrecimento, era uma coincidência interessante.
“Bem, resta-me voltar ao trabalho.”
A manhã passa lentamente. Mas como todas as manhãs, esta também
tem um fim.
Chega a hora do almoço, é hora de fechar a loja e ir ao bar para matar
a fome.
Sempre apinhado de gente a esta hora, lá encontro a Jennie em alta
correria.
“Bom dia mademoiselle.” Cumprimento-a amistosamente.
“Bom dia Jonathan.”
“Então, a minha mesa?” Pergunto-lhe humoristicamente, imaginando-
24
me o seu patrão.
“Não sei de nada Jonathan? Não sabia que tinhas comprado aqui uma
mesa!” Responde ela.
Não aguentando, solto uma gargalhada.
“Pelo menos, tu ainda consegues conservar o teu humor no meio
desta confusão.”
“E é uma proeza, digo-te em toda a verdade Jonathan.” Afirma Jennie.
“O que vai ser desta vez?”
Sorrindo-lhe, e olhando-lhe nos olhos digo:
“Para variar, queria o mesmo de sempre.”
Ela, com a bandeja na mão e olhando-me por entre os seus
encaracolados cabelos castanhos, sorri-me com um sorriso inocente.
O meu coração começa a acelerar. Não queria causar esta impressão,
somos bons amigos, nada mais.
Mas por mais que me esforce, os meus olhos estão entrelaçados nos
dela, provocando uma situação embaraçante!
Passado meio segundo, que mais parecia uma eternidade, lá consigo
desbloquear os meus olhos dos olhos dela e desviá-los para a mesa
seguinte.
A Jennie não fica imune a esta situação e, como prova disso, as suas
bochechas redondas começam a corar à medida que desvia o seu
olhar de mim.
Foi um momento embaraçante.
Disfarçando a situação, olho para uma mesa livre e, gaguejando, lá
respondo:
“Bem, acho que encontrei uma mesa.” Meio desajeitado dirijo-me até
ao lugar.
São momentos hilariantemente complicados. É engraçado quando
acontece aos outros, não a nós próprios.
Passados poucos minutos, um colega da Jennie trás o meu pedido à
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mesa.
Era melhor se fosse ela a servir, penso para mim próprio com um leve
suspiro.
Enquanto saboreio a refeição, os meus olhos não descolam dela ao
observar o seu fascinante dinamismo em acção.
Com apenas duas pequenas e delicadas mãos, consegue suportar
todo aquele mundo desesperado pela ânsia dos seus desejos.
Ela é uma obra de arte que está ali, uma peça de museu, não de um
simples bar.
Mas pergunto-me:
O que posso fazer para mudar o seu mundo?
O que lhe posso oferecer para a ajudar a concretizar o seu mais
pequeno sonho?
Nada.
Existe os que chegam e ajudam, e os que chegam e estorvam.
Não quero por nada desta mundo que isso aconteça. Ainda por cima,
com uma pessoa como ela.
Mais uma vez, a hora do almoço parece chegar ao fim, a rotina espera-
me.
A tarde passa a correr o que é um fenómeno extremamente raro.
É hora de fechar as portas da loja.
“Jonathan, tens algum problema?” Pergunta preocupado o Sr. Robert
Acordando do meu pensamento, respondo:
“Não, está tudo normal. Porque diz isso?”
“Passaste toda a tarde muito pensativo, por isso é que te perguntei se
tinhas algum problema.”
Antes fosse meu o problema, ao menos pertencia-me.
“Não, está tudo bem.” Respondo.
Passei toda a tarde a sonhar com a Jennie, talvez foi derivado a isso
que a tarde passou a correr.
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“Então vai desligar o geral enquanto que eu vou fechar os portões lá
atrás.”
“Está bem.”
E assim acaba o dia.
As ruas estão desertas e os candeeiros ameaçam acenderem-se.
As pessoas recolhem-se nas suas casas ao desvanecer a luz do dia,
anunciando mais uma noite fria.
“Fecha a porta da frente, eu saio pelas traseiras.” Diz Robert já com
um ar cansado.
“Não se preocupe, vemo-nos amanhã.”Respondo-lhe.
Ele cena com a mão ainda que de costas para mim. E, com elas meias
encurvadas com o peso da idade, desaparece no escuro do corredor.
Enquanto fecho a porta, vou me lembrando do que falta lá em casa e
do que necessito comprar.
Aproveito os minutos que ainda restam para fazer algumas compras na
única mercearia desta pequena cidade.
Bem no meio de dois velhos e cinzentos edifícios, a mercearia é um
excelente exemplo de conservação dos anos 80.
Ainda com prateleiras em madeira antiga, pintadas de verde, continua
a suprir os mais ínfimos desejos de cada cliente que por aqui passa.
Nesta bem afamada loja podemos conhecer a dona Octavia, a
proprietária do negócio.
Pessoa de bem, simpática e amistosa, de fácil compreensão, faz da
dona Octávia a pessoa ideal para qualquer desabafo.
O que os outros não sabem é que, um copo quando enche muito
transborda. Ela sabe ouvir, mas também contar.
Mas ainda assim, com os seus 67 anos de idade, a dona Octavia é um
exemplo de mulher de guerra, tratando o seu pequeno negócio como
se fosse uma empresa multinacional, ninguém absolutamente lhe toca.
“Boa tarde dona Octávia.”
27
“Como vais Jonathan?”
“Vou bem dentro do possíveis.”
“Então vieste fazer umas compras.” Responde ela.
“Tem de ser.”
“Que engraçado Jonathan, esta noite tive um sonho em que tu
apareceste.”
“A sério?” Admiro-me com semelhante resposta.
“Sim, mas...” Hesita por uns poucos. “Desculpa Jonathan, mas a
minha cabeça não me ajuda a recordar.”
“Que interessante!” Comento. “ Esta noite também sonhei com sigo.
Sonhei que a senhora ia num autocarro e...” Interrompendo-me já num
estado de êxtase, com os olhos a brilhar como se tivesse encontrado
um tesouro, responde-me vigorosamente:
“Já me lembro! Encontrava-me num autocarro e o motorista parou de
repente. Lembro-me de ser pisada por ti logo em seguida! Foi isso
mesmo!”
Mas como era possível!
Ter-mos sonhos parecidos já é difícil mas, o mesmo sonho na mesma
noite! O que se está a passar comigo?
“Ai Jonathan, tiraste-me um peso da cabeça, não me conseguia
lembrar do que sonhei.”Respirava a dona Octavia de alívio, como se a
sua alma dependesse desta descodificação.
Virando as costas e sempre acenando o dedo indicador como quem
está a ralhar, dizia:
“Essa foi muito boa, finalmente consegui me lembrar, até que enfim.”
Com as compras na mão e completamente admirado, tentava digerir o
que tinha acabado de ouvir.
Coloco as compras na bicicleta e regresso a casa, sempre pensativo
no que acabara de acontecer.
Á medida que pedalava, as peças do puzzle iam surgindo.
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Mas surgiam com um problema, não havia uma que encaixasse na
outra.
Como posso me lembrar do que o Mike e a dona Octavia sonharam?
Quanto mais penso, mais confuso fico.
Existem coincidências que não têm resposta.
Esta é uma delas.
Depois de dez minutos bem pedalados, chego a casa.
Lar doce lar é uma expressão que sabe bem proferir quando se chega
a casa exausto.
Esta noite dá o jogo mais importante da época. Certifiquei-me que
nada faltasse, incluindo as minhas fiéis e leais companheiras nas
noites de nervosismo puro, as cervejas.
Descalço as botas, que como é hábito, deixo-as na entrada de casa e
sento-me no sofá, como se fosse o Rei daquele pequeno império.
São ainda 8:30 e o jogo começa ás 9 da noite. Parece uma eternidade,
quando queremos muito algo que tarda em realizar.
Enquanto observo os anúncios na televisão, a minha mente começa a
divagar no dia que passou.
A Jennie. A Jennie.
Não me sai da cabeça aquele cruel e doce sorriso que me inflamou o
coração. Imagino qual seria o resultado final daquele episódio se eu
não fosse tão acanhado com a vida. Sim, acanhado de não ter
coragem em agarrar oportunidades únicas que me escapam das mãos.
“Noticia de ultima hora.” Anuncia a televisão. “Devido ao mau tempo
que se fez sentir todo o dia no sul do país, o jogo da época agendado
para as 9 da noite foi adiado para as 10:15.”
“Bolas!”
Mais sofrimento com esta espera. Levanto-me da cadeira, vou até ao
frigorífico e bebo mais uma cerveja para afogar os nervos.
Sento-me no sofá já exausto com tudo isto e rendo-me a observar os
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anúncios publicitários.
O aborrecimento é total. Deito a cabeça para trás e olho para o teto
com um ar tedioso.
Nisto, alguém bate a porta.
“Mas quem será a esta hora?”
Sem abrir a porta pergunto:
“Quem é?”
Ninguém responde.
Alguém volta novamente a bater a porta sem se identificar.
Visto tal situação, decido abrir a porta.
Dois polícias estão postados na frente da minha porta.
“Boa noite, o Sr. é o Jonathan?”
“Sim, porquê, o que aconteceu?”
Sorrindo, um deles diz:
“Não se preocupe, não aconteceu nada. Não se importava de nos
acompanhar?”
“De maneira nenhuma.” Respondi-lhes.
Desliguei a televisão, fechei a porta de casa, e, um pouco
amedrontado entrei no carro da polícia.
A viagem é feita em silêncio. Os dois polícias já não têm mais a
mesma cara amistosa.
Finalmente chegamos à esquadra da polícia.
Entramos na sala de espera e sou ordenado a me sentar, enquanto
que a minha ficha é preenchida. Não me é lícito falar.
Um outro polícia sai de uma porta à direita e faz um sinal com o braço
para o acompanhar.
Entro pela mesma porta, à direita que dá acesso a um corredor. No
fundo deste corredor, mal iluminado, existe uma outra porta à
esquerda. Entro por ela e dou-me comigo num pequeno escritório. Sou
ordenado a me sentar outra vez. Os minutos passam e as minhas
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mãos e testa soam com um suor frio.
Mais dois polícias chegam.
“Por motivos de segurança vamos-lhe pedir que ponha este barrete na
cabeça.”
“Mas o que é que eu fiz?” Pergunto um pouco nervoso.
“Não se preocupe que não é nada consigo, apenas tem de colaborar
com a justiça.”
Sendo assim e sem muitas escolhas, decido colaborar.
O capuz é me posto na cabeça e eu sou guiado para fora daquela sala
guiado como se fosse cego. Desço umas escadas, viro à direita e entro
numa porta, pelo menos, era o som de uma a abrir-se.
Entro nela e começo a ouvir sons típicos do exterior.
Ouço uma porta de um carro a abrir-se e sou coagido a entrar nele.
Alguém liga o carro e ele começa a andar. Andamos mais ou menos
por dez minutos até a sua paragem. Saio do carro e volto a entrar num
edifício. Desço muitas escadas e chegando ao fundo, respira-se um
misto de um frio húmido.
Alguém me conduz até uma cadeira.
As minhas pernas tremem como dois frágeis palitos.
Alguém tira o barrete da minha cabeça.
Estou numa sala sem janelas, bem iluminada e com uma secretária à
minha frente. Á direita existe um arquivador metálico pintado de verde-
escuro e à esquerda, um relógio redondo adorna a parede. Nisto, duas
pessoas de fato e de óculos graduados e redondos, passam por mim e
se sentam, um junto à secretária e o outro à minha esquerda.
“Obrigado por colaborar com o comando distrital da policia.” Agradece
o inspector a minha frente.
“Diga-nos Sr. Jonathan. Tem observado algo suspeito na sua
vizinhança?”
“Que eu tenha visto, não.”Respondo, numa desconfiança total.
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“Existe alguém que lhe tem passado informações estranhas.” Adverte
o mesmo inspector.
“Não.” Nem ouso perguntar porquê.
“Segundo fontes, você foi visto por uma testemunha num determinado
local, em que minutos depois, recebeu um pacote suspeito.”
“Não, que me lembre não.”
“Você parece-me que não está a dizer toda a verdade, não tenha
medo, a segurança pública pode ser comprometida por sua causa.”
Responde o mesmo inspector. O colega do lado observava-me
cruelmente sem dizer uma única palavra.
"Conhece este indivíduo?" Diz ele, passando-me uma fotografia.
O meu coração quase parou. Era o tipo que entrava nos meus sonhos,
o de fato azul-escuro.
"Não me lembro de o ter visto, sou uma pessoa que quando sai do
trabalho vai directamente para casa, não estou habituado a ver caras
novas."
Mas será que esta gente também teve o esmo sonho que eu?
Agora é que me encontro baralhado!
Mesmo assim, tento manter a calma e tranquilidade enquanto que o
Inspector inicia o preenchimento de um extenso relatório.
O silêncio que se difunde naquela pequena sala de interrogatório
torna-se como uma pesada pedra no nervosismo que cresce a cada
minuto.
Olho para a minha esquerda e observo o relógio. São 10:05 da noite.
Tento cortá-lo com uma pequena pergunta, na expectativa de aliviar o
cenário.
“Sr. Inspector, posso-lhe fazer uma pergunta?”
Pensando que lhe ia satisfazer a sua curiosidade, simpaticamente
responde:
"É claro meu jovem! Diz-me, qual é a pergunta?"
32
"Sabe se por acaso o jogo da final já teve inicio?"
O sorriso dele virou-se numa face de incompreensão.
"O jogo de hoje ficou em 3-1.”
"Sim, foi 3-1." Realça o seu colega.
"Mas porque perguntas isto?"
Impossível! O jogo tinha sido adiado para as 10:15. Como era possível
já ter acabado? Mesmo assim não hesito em colocar a pergunta que
transborda na minha mente.
“Mas o jogo não foi adiado para as 10:15?”
“Não!” Responde arrogantemente o outro Inspector sentado mais
atrás. “A partida foi ás 9 horas.”
Nesse momento, a minha mente ilumina-se por completo, deixando a
minha face transparecer um sorriso de quem sabe por onde pisa.
De facto, o jogo da final fora agendado para as 9 horas, mas durante o
dia de hoje, o mau tempo atrasou o evento para as 10:15 do mesmo
dia.
O atraso do jogo não foi programaticamente adiado pela mente
humana mas sim, por factores alheios a ela. Essa mudança de horário
ocorreu no mesmo dia, momentos antes da hora de sono comum. Tal
factor não permitiu à mente humana carregar tal informação,
originando uma falha de actualização por parte dos inspectores. Logo,
estes agentes não poderiam estar ocorrentes da mudança de horário
que sucedeu.
Tal raciocínio leva-me a crer que tudo isto que observo e ouço não
passa de um mero sonho!
Baralhado com esta pergunta, o inspector volta repetir o seu discurso:
"Este homem é perigoso, se o vires, contacta-me súbito. Toma, aqui
tens o meu cartão." Responde o inspector, acautelando-me.
"Obrigado pela informação."
O interrogatório tinha terminado e os dois homens levantaram-se o
33
mesmo tempo
O que estava à minha frente, acenou com a cabeça e fez um sorriso de
aprovação, como se lhe tivesse feito um grande favor, ou quem sabe,
vir a fazer.
O polícia que estava na minha retaguarda, agarrou-me no braço e
conduziu-me para fora da sala. Ele abre a porta e apenas observo um
escuro infinito.
Olho por entre a porta aberta e verifico que apenas existe um
precipício.
Volto-me e pergunto-lhe:
"Olhe que isto aqui não tem escadas, só tem um..." Ainda estava com
as palavras na boca, quando sinto um violento empurrão nas costas.
Desequilibro-me e caio no abismo. Na pura aflição, solto um clamor
alto e...Acordo
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Capitulo 4
Com a cabeça encostada para trás no sofá, observo o tecto branco.
Os olhos estão secos, o coração bate depressa, mas, ao mesmo
tempo, respiro de alívio.
Afinal, passa-se algo maior do que alguma vez imaginava.
Como consigo reconhecer que estou em pleno sonho?
Como é possível ter os mesmos sonhos de outras pessoas?
Quem é o misterioso tipo do fato azul?
Quem são e o que querem aqueles inspectores?
Enquanto penso sentado no sofá, vou rodando o meu pescoço meio
encravado com a tenção sofrida durante o leve sono.
As perguntas de momento não têm resposta.
Onde poderei encontra-las? Exactamente onde surgiram.
Esquecendo-me por completo da mais importante tarefa agendada
para a serão da noite, a partida do campeonato, preparo-me para mais
uma misteriosa noite de sono.
Á medida que a hora avança, o coração bate bem mais forte a medida
que observo lentamente as paredes do quarto na sua imensa
escuridão e o meu leito como se de uma nave teletransportadora se
tratasse.
Liberto um sorriso enquanto que esfrego os meus olhos do cansaço
acumulado.
A imaginação humana e deveras infindável, fazendo-nos trocar o real
pela mera ficção. Lentamente os olhos ficam pesados, os sentidos
gradualmente desligam-se, fazendo-me deixar temporariamente este
mundo.
35
São 7:50 e o despertador toca.
A minha cabeça pesa uma tonelada, parecendo que estou mais
cansado agora, do que quando me deitei.
Recordo-me do que sonhei Apenas sonhos idiotas e sem nexo
nenhum. Incompreensíveis e irreais, de modo a não se obter um
raciocínio lógico do que se tratava. Sonhos esses, muito diferentes
daqueles que me haviam invadido a mente já por varias vezes.
Esfrego os olhos e espreguiço-me.
Muita televisão antes de dormir nunca fez bem a ninguém. O que é
certo é que a vida real começa definitivamente dentro de minutos.
O ciclo rotineiro inicia-se mais uma vez. Tudo volta ao rumo natural das
coisas.
Chego ao trabalho, tudo igual. As mesmas pessoas, os mesmos
trabalhos, nada muda. O mundo faz planos e avança, quem quiser que
o acompanhe.
Chego ao fim da rotina diária e regresso a casa, cansado. Como,
durmo e a seguir, nasce mais uma vez um novo dia.
O tempo passa rápido. Já lá vão cinco meses que eu e a Jennie
trocamos olhares suspeitos.
Mas tudo voltou ao normal, como sempre foi.
Como gostava que pelo menos uma pequena parte da minha vida
pudesse fugir à realidade.
Temos que nos contentar com o que temos. Podia estar melhor, mas
também poderia estar pior. Há que ser positivo acima de tudo.
Digo sempre isto para me consolar, afinal, quantos milhões de seres
humanos não têm uma vida igual à minha?
Ao menos, sinto-me bem quando regresso a casa. É o meu refúgio
deste mundo estranho.
Somos apenas meras rodas dentadas desta engrenagem chamada
sociedade. O mundo não muda, apenas as peças que o compõem.
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Ao entrar em casa, sento-me no sofá, descalço-me e ligo a televisão.
Relaxo o meu corpo de mais um dia estafante.
Está escuro lá fora e a chuva começa a cair após quatro meses de
seca. É bom sentir o cheiro da terra húmida e o som dos trovões
rugem bem alto.
Aumento ligeiramente o volume da televisão, mas parece que os
trovões querem levar a melhor. Enquanto passa os anúncios
publicitários, vou-me deleitando com o luminoso espectáculo do
exterior. Devido à humidade, o vidro vai ficando cada vez mais
embaciado.
Enquanto que o meu programa favorito decorre, furtando assim toda a
minha atenção, um relâmpago cai muito próximo de casa cortando a
energia.
De repente, vejo-me no meio de um tenebroso escuro. Enquanto
aguardo pelo regresso da luz, vou admirando os relâmpagos que
iluminam a sala em clarões brancos e azuis. Mas, algo de estranho
forma-se no vidro. No momento em que dispara um intenso relâmpago,
a minha alma fica atemorizada com o que vê. Bem definido na
condensação do vidro, aprece a inscrição do número 7.
Segundos depois, dá-se um segundo relâmpago, evidenciando o
desaparecimento daquele místico número.
“Não pode ser!” Exclamo estupefacto.
Calço-me e dirijo-me para ate a janela e observo-a atentamente. Tudo
parece estranhamente normal. Bem, poderia ser apenas ilusão de
óptica, nada mais.
Nesse momento, a luz regressa, ligando novamente a televisão no
programa que estava a ver. Não tarda muito e o sono chega de vez.
Exausto de mais um dia estafante, deito-me finalmente, não levando
muito tempo, até o sono tomar conta de mim.
De repente, abro os olhos. Observo o tecto branco-sujo por cima de
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mim. A humidade parece crer ganhar espaço nele. Viro a cara para o
lado direito e observo os meus móveis do quarto em mogno velho.
O guarda-fatos tem a porta aberta, mas sem nada lá dentro. Bocejo,
espreguiço-me e esfrego os olhos. Ouço ao longe o barulho dos carros
a buzinarem. Surpreendido, paro de esfregar os olhos e, estático,
penso:
Desde quando os meus móveis são em mogno?
E porque ouço o barulho de tanto trânsito, se o meu bairro é
constituído por seis vivendas?
Levanto-me ainda com os olhos bem pequenos de ter acordado.
Caminho lentamente até a grande janela do quarto, lutando contra a
forte luminosidade que me fere os olhos. Aos poucos, vou enxergando
lentamente o cenário magnânimo.
“Muito bem, já entendi o que se passa.” Comento, surpreendido com a
descoberta.
“Já estou dentro.”
Da janela observo uma grande cidade cheia de arranha-céus e tráfego.
O meu apartamento fica bem no cimo de quase todos os edifícios. O
fumo castanho claro de poluição domina por completo o horizonte.
Toco nos meus braços, cabeça e tronco. Tudo é tão real, mas ao
mesmo tempo fictício. Eu compreendo bem que o é, embora, certas
evidências provassem que aquele era o meu sítio.
Lavo a cara e visto-me. Dirijo-me, sem falhar, à cozinha, embora fosse
a primeira vez que a tivesse alcançado em toda a minha vida. Eu
conhecia todos os sítios, gavetas prateleiras, embora nunca as tivesse
visto antes. Abro o frigorífico estilo anos 90, recheado até ao topo.
Enquanto seguro a porta com a mão, começo a raciocinar.
Mas o que estou a fazer?
“Não preciso disto para nada! A minha fome é fictícia, tudo é fictício.”
Deixo de pensar no que habitualmente faço quando me levanto e a
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necessidade logo desaparece.
Então raciocino pela lógica da situação:
Se eu consigo controlar o meu corpo, é porque já dominei a mente.
Mas, o mais importante não está aqui. Tenho a oportunidade de
desvendar o enigma que tanto me importuna.
O tempo escasseia, pois, a ao de acordar pode estar próxima. Visto o
casaco e dirijo-me à porta que, abrindo-a, nem me lembro de a fechar.
Percorro o corredor com paredes em mármore e alcatifa vermelha. No
momento em que chamo o elevador, um homem calvo e forte
aproxima-se de mim. Cumprimento-o mas sem obter a mesma
reciprocidade.
O elevador finalmente chega, e, entrando nele o homem carrega no
rés-do-chão sem me perguntar onde desejaria ir. A descida é longa e
eu não me atrevo nem sequer meter conversa com ele. Não conheço
este mundo estranho.
O elevador para e as portas abrem. Entra uma mulher com os seus
cinquenta e poucos anos, com um grande chapéu rosa e um vestido a
condizer. Nos seus braços, ela porta o seu yorkshire de estimação. O
cão tem um ar arrogante, sendo que a sua dona, para não fugir à
regra, tem um ar de importante, como se fosse da alta sociedade. Com
o nariz empinado, entra no elevador. Ao ver o senhor que entrou
comigo no elevador, a sua aparência prepotente desvanecesse para
dar lugar à santa modéstia e benignidade.
Com um grande sorriso bondoso diz:
“Como está Sr. Gilbert?”
Retribuindo com o mesmo tom amistoso, o Sr. Gilbert responde:
“Maravilhoso Sra. Delfine.”
E a conversa continuou, mas, continuou como se eu não existisse. Era
como que se o meu corpo físico, a minha presença fosse meramente
espiritual. Pior ainda, a palavra correcta para esta situação seria
39
ignorado. O elevador começa a abrandar outra vez. Volta a parar e as
portas abrem-se novamente. Mais gente entra no elevador. Um casal
jovem acompanhado pelos dois filhos, um rapaz com os seus 9 anos e
uma menina com 6 juntam-se a nós. É um casal alegre e simpático. O
seu bom humor contagia a todos, até eu sorrio com o cenário. O
homem e a sua esposa parecem não conhecer nenhum de nós os três,
mas, mesmo assim, cumprimentam a Sra. Delfine e o Sr. Gilbert. As
crianças, com o seu jeito docemente amigável, cumprimentam da
mesma maneira. Apenas a mim ninguém dirige uma palavra. Até ao
maldito cão eles cumprimentam.
Indignado, volto as costas para eles. Em frente a porta do elevador
existe um grande espelho. Enquanto o elevador desce, vou
observando todos eles através do espelho. O menino aproxima-se de
mim e começa a fazer caretas no espelho.
Olho para ele e contemplo o efeito das suas traquinices no espelho.
Dá-me vontade de rir.
Volto-me para o espelho em busca de semelhantes actos feitos por
mim, quando tinha a sua idade.
Nesse preciso momento, fico aterrorizado com o que vejo, ou, aliás,
pelo que não vejo. Simplesmente não podia ser possível! Estava diante
de um espelho, mas a minha presença não aparecia!
Bato no espelho mas em vão, a minha presença física não estava lá.
Olho fixamente nele e o resultado era sempre o mesmo.
Como era possível?
Nesse momento, o elevador chega ao rés-do-chão e todos saímos.
Ainda atordoado com a descoberta, avanço pelo corredor,
grandiosamente decorado com enormes quadros. Percorrendo-o até
ao fim, chegar ao grande hall de entrada. Descendo as doze escadas,
chegamos ao patamar final. Este imponente compartimento é
suportado pelas suas grandiosas 144 colunas em puro mármore em
40
ordem dórica. Cada uma possui uma figura esculpida, como se o seu
objectivo fosse o de proteger e guardar aquele espaço. Cobrindo o
enorme tecto, uma gigantesca pintura retratando o início da criação do
homem, deixa boquiaberto a quem ousa levantar a sua cabeça. Bem
no centro, rodeado por grandes sofás em pele negra, existe um
fontanário com diversas plantas belas e exóticas, fazendo daquele
lugar um verdadeiro jardim das delícias. É de uma magnânima
monstruosidade contemplar todo aquele sítio.
Avanço mais uma vez, com o objectivo de chegar ao exterior do
edifício. Empurro as portas de vidro giratórias e misturo-me no mar de
transeuntes que por ali passam. O sol banha fortemente aquela
avenida, atenuando a cor dourada do céu, produzida pela poluição do
intenso tráfego que se movimenta loucamente em toda a cidade.
“E agora, o que faço?” Pergunto-me no meio daquela babilónia.
Enquanto observo os enormíssimos edifícios que cobrem todo o meu
campo visual, coloco a mão no meu bolso.
A minha mão toca em algo. Paro de olhar para o cenário em meu redor
e foco totalmente a minha atenção no meu bolso.
Tento tirar para fora o misterioso objecto.
É uma pequena carteira.
Examino cuidadosamente o exterior, não fazendo a mínima ideia a
quem lhe pertence. A mim é que não é de certeza.
Encontro apenas um passe de autocarro e um cartão de visita.
Volto a por o passe no mesmo sítio e observo o cartão.
Tem um endereço, um número de telefone e um nome chamado
Johnson Sidney.
Baralhado com o que fazer, concentro-me em começar por uma ponta,
pois o tempo escasseia.
Tento localizar uma paragem de autocarros na avenida. Caminho
cinquenta metros e encontro uma do outro lado da estrada.
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“Mas como faço para passar a movimentada avenida?” Pergunto-me.
Mais à frente, na esquina da outra avenida, existe uma passagem
subterrânea.
Desço as escadas e misturo-me mais uma vez na multidão que circula.
Ouço no meio de todo aquele eco infernal, alguns músicos de garagem
que tentam vender a sua imagem, ou apenas ganhar alguns trocos
para o almoço. Bem no fim do tonel, a luz começa a raiar. Mas não raia
o suficiente para que o pobre negro cego que pede esmolas sentado a
veja. Talvez esteja enganado, pois, ele segue-me com os seus óculos
escuros.
“Cada um faz o que pode para sobreviver.” Digo para mim próprio.
Subo as escadas até alcançar o patamar do passeio. Á medida que
subo, o ruído da multidão desvanece-se.
Chegando ao topo das escadas e admiro-me com o que vejo. A
multidão desapareceu, apenas restam algumas pessoas que transitam
de um lado para o outro.
Mesmo assim, o meu passo não abranda e, em poucos segundos,
alcanço a paragem do autocarro.
Os meus olhos percorrem todos os cantos daquela infra-estrutura em
busca de um horário ou mapa dos itinerários da cidade.
Mas sem sucesso.
Ponho a mão no bolso e volto a retirar o cartão de visita. Nesse
momento, enquanto estou de cabeça baixa e de costas para a avenida,
ouço o barulho de um engenho hidráulico. Volto-me, e eis o que
procurava, um autocarro! Sem fazer qualquer pergunta, entrei nele.
“Bom dia, como está?”
Para meu espanto, o motorista, de fisionomia jovem, magro e com o
cabelo a fazer lembrar um ouriço caixeiro, cumprimentou-me
amigavelmente.
Meio encavacado e não sabendo o que dizer, respondo num tom meio
42
tremelicado:
“Obrigado, vou andando.”
“Então sempre vai para Victoria Street?” Pergunta o motorista.
“Sim!” Respondo-lhe.
“São apenas 10 minutos. É aqui perto.”
Mas como ele sabia a rua para onde eu queria ir?
Porquê ele foi o único a reparar em mim?
Sem hesitações, entrei no autocarro.
Sento-me ao lado da porta de saída, ao menos, se acontecer algo de
amedrontador, é só seguir em frente.
O autocarro inicia a jornada com um único passageiro, eu próprio.
As minhas pernas não param de balouçar nem os meus pés de bater
no chão com o nervosismo. Esfrego as mãos uma na outra,
enxaguando o suor frio. Enquanto a viagem prossegue, vou
observando o mundo pela janela, persistindo em encontrar um ponto
de referência, algo familiar que me ajude a encontrar-me a mim
próprio.
O tráfego, embora intenso, vai deslizando suavemente, como se cada
um fosse matematicamente controlado por uma ordem perfeita.
As pessoas entram e saem dos edifícios como se tratasse de um dia
normal de trabalho. Não raro, vejo algumas delas nervosas, debaixo de
pressão, angustiadas e discutindo na própria rua. Pergunto-me, se tal é
mesmo necessário?
Não é isto uma ilusão? Porque perder o nosso curto e frágil tempo de
vida em algo tão irreal?
Bem, desta ficção à realidade não mudam muitas coisas. O tempo é
sempre o mesmo. A sabedoria está em escolher como queremos estar
ou ser.
Desvio momentaneamente os olhos do vidro e olho em frente.
O motorista olha-me através do retrovisor. Por sua vez, vendo que o
43
observo, ele desvia os olhos para a estrada.
Estranha e misteriosa personagem. O seu olhar de quem me conhece
de há muito, faz-me aumentar o meu já elevado estado de alerta. Algo
pode acontecer a qualquer minuto. Mas, verdade seja dita. Eu estou
aqui para explorar e conhecer a verdade da razão desta minha sub
existência. Por isso, de nada me adiantará se permanecer aqui
sentado.
Tomo a iniciativa, levanto-me do acento e dirijo-me ao motorista.
Mas no momento em que me levanto, o autocarro para e, de costas
para mim, o motorista diz:
“Chegou ao seu destino, tenha um boa jornada.”
Ouvindo aquelas palavras, o meu passo congela-se e torno-me como
uma estátua imóvel. Sem saber o que dizer ou fazer, dou meia volta e
dirijo-me até a porta de saída.
A avenida está apinhada de gente outra vez.
Gente apressada, com pressa em acordar. Vivem como se estivessem
na angustiante realidade sem discernir a diferença entre a existência
física da utopia ilusória.
Tento encontrar a minha meta, o meu objectivo no meio daquela
confusão infernal. Olho em redor e observo o reflexo da luz do sol por
entre os vidros dos grandes edifícios a meu torno. Um vendedor
ambulante de comidas impregna o ar com o fumo das salsichas
assadas. O barulho do trânsito, com o seu cinzento fumo, pintam o
horizonte de tons pesados.
Deito a mão ao bolso e retiro o cartão. Olho com atenção e observo o
símbolo da entidade. As iniciais que identificam a empresa no meu
cartão de visita é a letra A e a letra T. Ergo os meus olhos e, bem na
minha frente, um grandioso e imponente edifício espelhado portava as
iniciais A e T. A empresa que ali residia chamava-se ArcoTec, uma
sociedade de arquitectura e construção civil. Admiradíssimo com a
44
descoberta, dirijo-me com dificuldade por entre a multidão ruidosa até
à porta de entrada. Alcançando a porta, ponho a mão no puxador. Mas,
em vez de avançar, paro. Com a mão na porta e a cabeça para baixo,
penso, imóvel como um rochedo. Tenho um leve pressentimento de
que algo não está a fluir de uma forma normal. Ainda com a mão no
puxador, giro lentamente a minha face para o lado esquerdo da rua. Na
esquina da avenida, com um chapéu e óculos escuros, um sujeito
observa-me seriamente com as mãos nos bolsos.
Fixo o meu olhar nele, ele por sua vez, desvia o olhar de mim como se
nada fosse. Começo a desconfiar desta gente. O que quer que seja,
eles sabem de onde vim, o que pretendo e onde quero chegar. A
resposta estará em definitivamente avançar até ao objectivo, o cerne
das respostas ás minhas perguntas reunir-se-ão em torno a este
edifício.
Empurro a porta e entro como se fosse um funcionário da casa. O
edifício no seu interior resplandece de luz com os seus grandes vidros
em todo o redor. Os pilares são revestidos em mármore verde-escuro.
Em frente, encontra-se a porta metalizada do elevador. Sigo em frente
até alcança-la. Passo pelo guarda, que nem com a minha estranha
presença, retira os olhos das palavras cruzadas que está a fazer em
cima da sua secretária cinzenta.
A porta do elevador abre-se sem eu nada fazer. Entro no elevador e a
porta fecha automaticamente, iniciando a grande subida, sem
pressionar botão que fosse. Ao alcançar o trigésimo quarto andar, o
elevador abranda e para definitivamente. Pergunto-me se alguém o
terá chamado pois, eu não tinha a intenção de subir tão alto.
Mesmo assim, aceito o desafio e vou em frente.
Encontro-me numa sala marcada pelo silêncio. Em torno a mim
encontro várias cadeiras fixadas à parede, sendo que nos cantos dela,
uns vasos com plantas quebram o seu branco pálido.
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Bem no meio desta sala, uma grande porta de vidro automática,
separa os clientes dos funcionários. Sigo em frente e as portas abrem-
se.
Entrando, observo secretárias espalhadas por toda a área e gente
atarefada que trabalha sobre elas. A alcatifa castanha clara silencia os
meus passos à medida que observo, por entre os grandes vidros, os
gigantescos edifícios no exterior. Percorro toda aquela enorme sala
apinhada de papéis e utensílios de arquitectura até terminar à porta de
um escritório separado do exterior por um enorme vidro. Lá dentro,
sentado numa cadeira em pele, um charmoso jovem domina a área em
seu redor. Qualquer funcionaria que ali se encontre, desfaz-se num
belo sorriso de simpatia por aquele que, talvez, fosse o candidato ideal
para uma sólida relação. Ele apenas sorri com os lábios e, fazendo
jogos com o seu olhar sensual, conquista-as todo tempo. Dou comigo
de pé, a olhar fixamente para aquele escritório, aquele lugar, como se
o cobiça-se de todo. Ele possuía algo que eu sempre desejei, a minha
maçã do Éden, o meu fruto proibido. Mas tal destino ficou-me aquém
das minhas possibilidades. Sem estudos, sem hipóteses, o mundo do
trabalho esperou-me mais cedo do que planejava. Contudo, nada me
demoverá de saborear todo aquele universo em redor, nada me
proibirá de me deleitar nem que seja neste mero sonho.
Estava eu ainda pasmado a olhar pelo vidro, com estas palavras a
rolar sobre a minha cabeça, quando alguém se aproxima de mim. Senti
a presença dessa pessoa mas, nem isso demoveu os meus olhos do
objectivo.
“Gostavas de ter este trabalho?” Pergunta a pessoa ao meu lado.
Olhando fixamente no vidro respondo:
“Gostava sim.”
O sujeito ao meu lado tinha um comportamento desconfiado e a sua
cabeça parecia uma parabólica em plena rotação. Olhava de um lado
46
para o outro como se alguém não convidado estivesse para chegar.
Incomodado com esta presença, viro a minha face para ele. É um
rapaz de altura mediana, com um chapéu preto, loiro e com um blusão
negro.
Fico surpreso em ver que este jovem é o mesmo que me espiava lá em
baixo.
Ouso fazer a pergunta mais intrigante de sempre.
“Quem és tu?”
Com a sua cara virada para o escritório e sorrindo da minha
ignorância, ele pergunta-me:
“A questão é: quem serás tu depois de tudo?”
Desta pergunta eu não estava à espera. Não desejo abrir o jogo mas,
encontro-me sedento de saber o que se passa.
“Só queria conhecer a verdade.” Respondo-lhe.
Ele volta-se para mim com as mãos nos bolsos e pergunta-me:
“O que é a verdade?”
Fixa-me nos olhos como se eu fosse o responsável por algo sucedido.
Nesse mesmo instante, um telefone toca numa das 16 secretárias. A
funcionária que está a trabalhar em frente ao computador no fundo da
sala levanta o auscultador do telefone e atende a chamada. Tanto eu,
como o meu novo conhecido, focalizamos toda a nossa atenção nela.
Ela começa a responder sem tirar os olhos da secretária. Sem
demover os olhos dela, o jovem ao meu lado agarra o meu braço de
uma maneira forte, como se uma calamidade estivesse para acontecer.
Ela ouve as informações que estão a ser dadas e, subitamente, levanta
a cabeça para fixar os olhos em nós. Nesse preciso momento, sinto um
esticão no meu braço.
“Vamos embora, eles estão para chegar.” Dita o jovem com um tom
autoritário.
“Eles quem?” Pergunto sem obter resposta.
47
Dirigimo-nos rapidamente para a porta de saída, chamando
imediatamente o elevador. Enquanto esperamos pelo lento
mecanismo, vou observando os arranha-céus através dos grandes
vidros panorâmicos. Mas, uma ligeira movimentação desvia a minha
atenção para a avenida. Vejo seis automóveis de cor preto metalizado
a estacionar junto ao prédio onde estamos. Um grupo de homens
emerge rapidamente dos seis carros e entram neste edifício. O meu
conhecido rapidamente se apercebe do sucedido e, pondo o indicador
no ouvido, diz:
“Eles chegaram, tenho que o tirar daqui.”
Ele ouve as instruções cuidadosamente, com uma concentração
semelhante a quem está a desactivar um engenho explosivo. Em
seguida ele diz-me:
“Vamos pelas escadas de emergência, não há tempo a perder.”
“Está bem.” Respondo sem saber o que se passa.
Dirigimo-nos à porta de emergência e descemos com toda a
velocidade pelas escadas. De tão rápido descermos, a minha
respiração começa a ser aflitivamente agoniante. Olho para o jovem,
que continua a descer dinamicamente, como se fosse um tranquilo
passeio. Faço um esforço e prossigo mais uma vez a longa descida.
Chegamos ao décimo sexto piso e o meu colega abranda. Volta a por
o indicador direito no ouvido e olha em frente. Avança até à porta de
emergência do décimo sexto piso e entra por ela. Começo a ficar
impacientemente nervoso mas, resisto à tentação de fazer qualquer
pergunta. Ele, com a face virada para a frente, segura a porta para que
eu possa entrar. O meu coração bate estonteadamente de aflição.
Ponho a palma da mão na porta e entro por ela. Nesse momento, a
três pisos abaixo, ouço um ruído semelhante a um mar de gente que
sobe velozmente as escadas. Paro por uns instantes, talvez consiga
obter alguma informação deles. Mas nada ouço a não ser sons
48
ofegantes e passos apressados. O meu colega, reparando que não o
sigo, pára imediatamente. Volta-se para trás à minha procura e,
encontrando-me, acena para continuar a correr urgentemente. Aí
recomeço a minha corrida uma vez mais. Entramos num espaço
escuro, cheio de caixas de cartão. Algumas estão bem empilhadas
mas a maioria está espalhada pelo chão. Não existem janelas neste
grande espaço, apenas luzes de presença. O meu colega volta a por o
indicador no ouvindo e, momentaneamente pára. Olha em redor, mas
sem ter qualquer atitude. Parece estar bloqueado com o que fazer.
Olha em todo redor, como se procurasse uma saída daquele túnel
prestes a inundar-se. Os homens abrem violentamente a porta e um
deles grita furiosamente:
“Apanhei-nos!”
Nessa mesma hora, o meu colega recebe uma informação e vira à
esquerda.
Corremos por um corredor estreito. Sem querer, tropeço numa caixa
mas, rapidamente levanto-me e prossigo caminho. Os homens estão a
alguns metros de nós. O estreito corredor acaba numa pequena sala
sem saída, existindo apenas uma pequena porta para arrumos.
Com um ar exausto e aflito, o meu colega põe a mão no manípulo e
abre a porta. Em seguida, ele ordena-me para entrar, revelando uma
frase que jamais poderei esquecer:
“Por favor Jonathan, liberta-nos!”
Confuso e assustado, entro pela porta escura. Volto-me para trás e
vejo os homens a chegarem e a clamarem furiosamente:
“Não o deixem escapar! Apanhem-no!”
Quando estavam prestes a alcançarem-me, o meu colega fecha a
porta com toda a força, e…
Acordo.
49
Capitulo 5
Exausto e de olhos abertos, observo pálido o tecto do meu quarto. O
suor escorre-me da testa à medida que penso no sucedido. Olho para
a direita e fixo o meu olhar no relógio que está na cómoda. São apenas
6:50 da manhã mas, mais parece que passou uma eternidade.
Tento adormecer outra vez com o objectivo de descobrir o que se está
a passar, mas sem sucesso. A minha mente está exausta com tanto
mistério que se desenrola a cada noite que, quando adormeço, não
consigo repetir o mesmo sonho
O dia começa a clarear e os raios de luz começam a penetrar por entre
as fissuras das portadas em madeira.
São 7:40 e o despertador toca. É hora de levantar para mais um dia de
vida. Levanto-me, visto-me e tomo o pequeno-almoço. A rotina do dia
continua o seu ciclo viciado mais uma vez.
Abro a porta da garagem e retiro a minha bicicleta. O céu está limpo e
uma brisa fresca corre no ar a anunciar um novo dia quente. Percorro a
estrada em direcção à cidade, e, enquanto passo pelos campos de
trigo iluminados pelo sol nascente, observo o lado ainda escuro da
noite do outro lado do planeta.
Quais serão os sonhos dos que vivem na outra parte do globo? Volto a
minha face para a frente e prossigo caminho. Chegando à loja, as
tarefas normais do dia iniciam-se.
Ligar as luzes, varrer a entrada, despejar o lixo das entregas
nocturnas, preparar as facturas e, por fim, abrir as portas ao mundo.
Os clientes vão e voltam, o dinheiro entra e sai, as conversas e
ideologias mudam de hora em hora sem quebrar o ciclo da
50
normalidade. Tudo desliza com uma fluidez mecânica e previsível.
Com um passo cambaleante e concentrado na montagem de um
pequeno engenho de aço, o Sr. Robert aproxima-se de mim.
“Jonathan, preciso que mandes vir alguns parafusos desta
medida.”Diz ele.
“Quantos precisa?”
Com um ar pensativo e a enrugar a testa, responde:
“Talvez uns trinta.”
Nesse preciso momento, bem antes de acabar de proferir a frase, o
Mike entra na loja com uma feição sombria.
“Então Mike! Pareces abatido. Ocorreu algum problema?”
Com os cotovelos em cima do balcão e as mãos na cabeça ele
suspira:
“Não consegui entrar na firma de seguros.”
“Então porquê?” Pergunto-lhe.
“Não entendi bem. Primeiro queriam-me, depois disseram que
entrariam em contacto comigo mas, nunca mais me telefonaram.”
“Mas chegaste a entrar em contacto com eles? Talvez se esqueceram.
Errar é humano!”
“Estás a brincar Jonathan, é claro que liguei, mas…”
Esfregando os dedos nos olhos, ele prossegue:
“Tinham encontrado alguém melhor e mais qualificado do que eu.”
“Lamento o sucedido amigo, mas, já tentaste encontrar trabalho em
outras companhias de seguros?”
Com um ar cansado e deprimido, ele responde:
“Já, agora só falta esperar. Mas esperar é coisa que não me posso dar
ao luxo de fazer. O banco não espera pelo pagamento da casa, esse é
que é o problema. Tenho pouco tempo para encontrar uma solução.”
“ Existe alguma coisa que eu possa fazer por ti amigo?” Tentando de
alguma forma alivia da sua dor.
51
“Fica atento e se souberes de alguma oportunidade de trabalho. Se
formos mais a procurar as probabilidades são maiores.”
“Podes contar comigo!” Respondo convicto e positivo.
“Obrigado Jonathan. És um bom amigo.” Agradece Mike a minha
voluntariedade.
“Jonathan!” Clama uma voz rouca do fundo do armazém.
Viro-me para o Sr. Robert e pergunto-lhe.
“Quem me chamou?”
“Quem havia de ser?” Responde Robert por entre os dentes com um
clipe na boca e uma grande caixa de papelão nos braços.
“Pelos vistos, não deve ser boa coisa para me chamar naquele
termos.” Respondo já a contar com o pior.
“Nunca é boa coisa?” Reafirma Robert, franzindo os olhos como quem
afirma ser o possuidor da suprema razão.
Largo imediatamente aquilo que estou a fazer, pois, cada segundo que
passa, torna a fera mais furiosa.
Percorro o corredor escuro e poeirento com o cheiro de óleo queimado,
típico das armações em aço aquarteladas no interior. Saindo do escuro
corredor e entro no armazém, onde todas as grandes barras de ferro e
aço estão ordeiramente colocadas sobre uma rígida ordem de
medidas.
Tudo está imóvel, menos as teias que balouçam ao som da corrente do
ar. Subo as escadas metálicas em caracol até ao topo, relembrando-
me sempre como se fosse um penitente, indo ao encontro da
execução.
O suor frio emanado da minha mão fica bem marcado no corrimão
cinza.
Chego ao topo das escadas, onde o silêncio domina tudo e todos. Não
é um silêncio vulgar, mas antes, é um silêncio que permitirá a toda a
criatura vivente ouvir o que será proferido, o juízo final será revelado.
52
Paro, volto-me e olho em redor e respiro fundo. Pode não parecer,
mas, eu dependo deste trabalho para viver.
Enquanto me dirijo à porta do escritório, vou cimentando na minha
mente milhares de frases de defesa para qualquer possível acusação
que possa surgir. Através do vidro baço, observo o reflexo de alguém
sentado numa cadeira a gesticular vigorosamente.
Bato à porta mas sem obter resposta. Bato pela segunda vez, e, dessa
vez, ouço a voz do meu chefe, grave como a do barulho de uma
grande árvore a cair, ou melhor, de uma locomotiva a colidir com um
muro de betão armado.
“Quem é?!” Grita ele.
“O Sr. chamou-me?” Pergunto com uma modéstia de um pedinte de
rua, com uma humildade superior à de Moisés.
“Entra!”
Ponho a mão na maneta da porta, respiro fundo, e desejo desaparecer
dali para sempre, ou apenas para bem longe. Era bom demais para ser
verdade. A maneta quase roda automaticamente, como se fosse
comandada por aquela mente maléfica do personagem barricado lá
dentro, sempre pronto a disparar ameaças.
Abro a porta e fecho-a depois de mim. Mesmo à minha frente, aquele
monstro gordo, calvo, sentado na poltrona, assemelhava-se a um rei
ou ditador implacável. Com o seu corpo inclinado e a mão no seu
queixo, olha-me nos olhos com um olhar semelhante ao do atento
falcão para um pequeno roedor, mesmo à sua frente, pronto para o
apanhar e esquartejar.
“Então, o que se passou?” Pergunto-lhe.
Ele enquanto olha para o tecto vai coçando o queixo, talvez esperando
alguma orientação divina para responder devastadoramente à
pergunta que coloquei.
Nesse momento, ele resigna-se do seu estado de soberano e inclina-
53
se para dirigir a sua palavra. Desta vez, com os cotovelos em cima da
secretária, ele faz como que um triangulo com os dedos para apoiar o
queixo.
“Sabes porque estás aqui?” Pergunta com um ar calmamente
destrutivo.
Não profiro nenhuma palavra, apenas franzo os lábios e encolho os
ombros como quem não percebe absolutamente nada do que se está a
passar. Virando a cara e sorrindo sarcasticamente diz:
“Eu já desconfiava disso.”
Ele levanta-se, vira as costas para mim e fica a observar uns papéis
pendurados numa parede com fotografias de família.
“Alguma vez perguntas-te a ti próprio o que andas cá a fazer?”
“Eu faço aquilo que…” Sem ter tempo de apresentar a minha defesa
perante aquele supremo tribunal, sou abruptamente interrompido por
um dos seu gritos quotidianos.
“Fazes ideia do sacrifício que eu fiz, que a minha família fez para erigir
esta empresa?” Com a face a ficar cada vez mais vermelha dos
nervos, ele volta-se e alonga o ataque:
“O que é que queres de mim? Abusar da tua posição, é isso? Queres
levar isto à falência? Pois a mim parece-me isso.
Fico atónico com tantas perguntas e acusações que, mesmo que
tivesse uma resposta em defesa, não seria capaz de a dar.
Apontando o dedo em forma de julgamento ameaçador, com os olhos
meios fechados de desconfiado e a suar como um rio da testa conclui:
“Um outro erro e ponho-te daqui para fora Jonathan, ouviste bem?”
Com aqueles olhos ameaçadores, inicio a minha retirada de costas,
profundamente perturbado com o que se passou.
Fecho a porta do escritório e, com o olhar fitado no chão, tento
perceber onde errei ou o que não fiz. Desço as escadas em direcção à
loja, num estado lastimável, como se tivesse sido trespassado por
54
inúmeras espadas.
Chego ao balcão e recomeço o que tinha deixado para trás. O Sr.
Robert chega-se sorrateiramente junto a mim. Meio encurvado, como
já é característico dele, observa aquilo que eu estou a fazer enquanto
come as suas habituais bolachas da manhã.
“Andas a precisar de ajuda Jonathan?” Pergunta Robert com a
preocupação de pai para um filho.
“Se ao menos me explicassem o porquê das coisas e a sua razão,
talvez eu descobriria onde preciso de ajuda.” Respondo desapontado
com tudo.
“Ele não te explicou a razão de te ter chamado?” Pergunta Robert
muito admirado.
“Não.”
“Acho impressionante! Tanta gritaria para nada, mas isso já é típico
dele, tu bem sabes.” Diz Robert, procurando uma maneira de me
consolar.
“Tenho a certeza que não, ele até mesmo me ameaçou que se
continua-se assim eu seria despedido!”
Muito admirado, o Sr. Robert exclama:
“Não é possível. Tu sempre foste honesto e responsável aqui, e todos
sabem bem disso. O que é que lhe deu para dizer-te estas coisas?” Ele
ás vezes bem passa das marcas. Ai, pobre de mim que o suporto há
tantos anos! Mas, não te preocupes, eu vou descobrir o que é e depois
digo-te!” Diz Robert, piscando-me o olho como quem se vai resolver o
mistério.
A manhã foi passando lentamente à medida que o meu cérebro me
torturava com aquele enigmático mistério, procurando obter resposta
de algo incompreensível. Entretanto, relógio da loja declara o fim da
manha. É hora de descomprimir a cabeça e comprimir o estômago com
algo.
55
Dirijo-me religiosamente ao sítio do costume, o snack-bar onde
trabalha a Jennie. Essa é de facto a melhor parte do dia.
Já ao longe é possível observar que o local está a fervilhar de gente.
Não será difícil de adivinhar que a tarefa de encontrar uma mesa livre é
bem remota, se não for impossível.
Empurro a porta e entro ao som daquela sinfonia composta de vozes
pratos e talheres em plena euforia e discussão. Aguardo de pé, com as
mãos nos bolsos junto à porta de entrada, esperando um lugar vago,
ou, talvez, esperando que Jennie repare em mim. Posso ainda não ter
almoçado, mas, vê-la a andar de um lado para o outro, com aqueles
sublimes caracóis castanhos que lhe ocultam parcialmente os olhos, é
algo divino de se ver. Posso argumentar que, só com aquela singular e
frágil aparição, a minha alma atinge a sua plenitude. De repente,
enquanto se curva a recolher uns pratos da mesa, ela
inesperadamente repara em mim. Velozmente retorna a se concentrar
no que está a fazer, mas sem resistir à doce tentação, decide olhar
sorrateiramente para mim outra vez. Desta volta, com um leve e doce
sorriso de quem assumiu um compromisso imaginário. Eu sorrio e,
desajeitadamente tiro uma mão do bolso e aceno-lhe. Ela, enquanto
equilibra os pratos com uma mão, limpa a mesa com um pano, sempre
pensativa, mas sem deixar que o seu sorriso se desvaneça.
Finalizando de ajeitar a mesa, ela, carregada de loiça, dirige-se até
mim e cumprimenta-me com muita simpatia. Tanta é a simpatia que,
até mesmo para quem nos conhece, é algo de se estranhar. O meu
coração acelera a medida que os seus passos se aproximam.
“Boa tarde Jonathan, já limpei a tua mesa.” Diz ela com um sublime e
tentador tom de sereia. O meu coração quase que explode Fico
corado, sem saber o que dizer. Ainda bem que ela não decidiu parar ali
junto a mim para ver a minha reacção. Parece que tudo arde à minha
volta. Mas antes que alguém tomasse conta da dádiva que ela me deu,
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apresso-me a tomar conta daquela valiosíssima dadiva.
Depois de brevíssimos minutos, ela pega na bandeja que deixou no
balcão e dirige-se a mim. Aproxima-se de mim, sorrindo, com as mãos
baixas, suportando a bandeja. Embora seja delicada, ela observa-me
convictamente, o seu olhar reflecte a forca de quem já decidiu algo de
importante, possuindo-me com os seus belos olhos. Quanto a mim, por
fora aparento ser capaz de resistir a esta tempestade, por dentro,
estou em ruínas, sem saber o que fazer ou dizer. Talvez o melhor será
dizer o mínimo possível, pois, quanto menos falar, menos vou errar.
Finalmente ela chega até mim. Com os braços cruzados a suportarem
a bandeja no peito, Jennie aguarda que eu abra jogo. Ela fita-me com
os seus olhos e, movendo as suas sobrancelhas, espera empurrar-me
para que eu tome a iniciativa em dar o primeiro passo.
“Isto hoje esta cheio.” Respondo, tentando iniciar uma conversa
agradável.
A Jennie sorri, passa o cabelo por trás da orelha e, desviando o olhar
para a mesa, diz:
“Jonathan, isto esta sempre cheio.” Responde ela, pensando que a
minha observação fosse diferente.
Surpreendido pela pobre frase citada, tento reparar o meu erro com
enormes engasgos.
“Pois, lá isso e verdade, mas hoje parece que esta mais gente, não sei
porquê.”
Ela, olhando para o exterior através do vidro, sorri ao ver-me cair em
completo embaraço, descobrindo parte daquilo que floresce no meu
coração. Voltando-se para mim, pergunta-me:
“E o mesmo do costume, não é?”
“Sim, sim, é o mesmo.”
Em completo suor, ela salva-me da minha desgraça eminente. Mas o
que estou eu a dizer? Ela deu-me uma oportunidade e eu, como parvo
57
que sou, desperdicei-a! Vejo-a a dirigir-se ao balcão, levando o meu
pedido consigo. Com a cabeça apoiada no queixo, suspiro
profundamente.
“Tomara que, em vez do meu pedido, fosse o meu coração.”
Não posso argumentar que sou um tipo sem sorte, as oportunidades
chegam a todos, tudo depende como as aproveitamos.
Ela aproxima-se de mim, mas desta vez, sem o seu belo sorriso.
Estremeço só de pensar naquilo que perdi. Coloca o prato na minha
frente sem retirar os olhos dele.
“Bom apetite Jonathan.” Desconsolada, vira as costas e continua o
seu rotineiro trabalho.
Arrependo-me em cinzas e serapilheira. Como pode ser tão ignorante?
O apetite fugiu de vez. Passo aquela meia hora de folga vital a
observa-la, tentando de alguma forma, estancar o enorme rasgo que
provoquei neste pequeno barco.
Ela, triste e desapontada, recusa-se a desviar o seu olhar para mim.
As ideias desvanecem, fogem. Inutilmente rumo sem conseguir
alcançar o objectivo, a sua preciosa atenção.
O tempo passa a correr e a hora de me apresentar ao serviço chega,
para minha completa infelicidade. Levanto-me da mesa, percorro a
sala por entre as mesas e cadeiras cheias de gente, empilhadas nas
suas ideologias. Do outro lado da sala, observo Jennie, atarefada,
empenhada e concentrada, mas sem o seu sorriso, triste e
desapontada. Talvez já suspeitasse deste trágico resultado, afinal, um
tipo como eu, não nasce para ter sorte, mas sim, para deixa-la fugir por
entre os dedos. Hoje e, literalmente, um dia para esquecer.
Caminho lenta e penosamente em direcção a loja. As nuvens
ameaçam cobrir o mundo esta tarde. Da solarenga manha, apenas
resta nuvens em tons de cinza e um vento agreste que insiste em
aumentar. Folhas e papeis voam sacudidos pelo ao mando deste
58
ditador, o vento, Voam de um lado para o outro, batem nas paredes
das casas, são arrastados pela estrada. Enfim, deixam-se manipular
pelo mais forte. Não e de admirar tanta brutalidade nesta natureza fria,
afinal, qual e o humano que não provou tal fel? Apresso o passo, não
que esteja atrasado, mas porque um breve dilúvio ameaça a terra. O
frio entra pelo casaco sem pedir permissão e a caminhada torna-se
exaustiva com a constante luta contra as impenitentes forças da
natureza. Alcanço a porta da loja, abro-a e entro. Sinto o calor típico de
uma loja antiga, com o seu tecto em madeira e o seu cheiro a metal
novo. Debruço-me na porta e olho para fora. Observo o intenso dilúvio
a ser derramado ao longe na planície, não tardara em chegar a cidade.
Enfim, coisas boas de se observar quando estamos no conforto da
nossa casa. O ciclo da tarde recomeça. Visto o meu uniforme de
trabalho e tomo a minha posição ao balcão. A luz do dia escurece e a
chuva começa a fazer-se ouvir. O seu leve barulho rapidamente
converte-se como que num estridente aplauso de uma multidão no
telhado de chapa zincada. A minha curiosidade leva-me a deitar um
olho na rua. Observo os transeuntes que, apanhados de surpresa,
correm pela rua à procura de um abrigo seguro. Outras, correm com os
casacos por cima da cabeça. Fazem lembrar os animais a fugirem do
perigo eminente como se a chuva fosse um leão feroz à solta. A berma
da estrada já se assemelha a um canal de Veneza em ponto pequeno.
Folhas, ramos e papeis circulam velozmente por esta auto-estrada do
caos. Contrariamente à sua escolha e desejos, são impelidos de um
lado para o outro a cumprir a vontade da natureza. Não se passará o
mesmo com as criaturas racionais? O vento começa a bater forte na
cidade e os telhados rangem como que temerosos da sua força. O frio
aumenta e impele-me a voltar para dentro. Esfrego as mãos uma na
outra e aqueço-as com o meu bafo. Recomeço o meu trabalho. Há
tanto para fazer esta tarde e o tempo escasseia. Não são só as minhas
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mãos que trabalham, a minha mente carbura a todo o vapor para
encontrar uma solução ao sucedido esta tarde. Como poderia
recuperar parte do que perdi? A vida dá uma grande oportunidade a
todos nós, mas quando a desperdiçamos, outras pequenas se erguem.
O problema é que perdemos tanto tempo a olhar para a porta que se
fechou que ignoramos as janelas que se abrem.
“Ai, ai, ai rapaz.” Diz Robert enquanto caminha da loja para o
armazém carregado de latas de tinta.
“Águas passadas não movem moinhos.”
Do armazém ele prossegue dizendo por:
“Se não consegues superar os erros do passado, então, ignora-os,
não desperdices o melhor que vem com esse luto.”
“Como o Sr. pode afirmar tal dito.” Digo num tom amistoso, como se
desconfiasse da veracidade daquela biblioteca ambulante. Segue-se
um grande silêncio, como se a humanidade tivesse abandonado a terra
e a própria chuva de agredir o telhado. Decorridos longos segundos, o
Sr. Robert espreita-me pela ombreira da porta e com um ar misterioso
diz:
“Eu sei bem o que isso e rapaz, acaso não fui jovem como tu? Não te
deixes levar pelos meus sessentas e tantos anos. '
“De maneira nenhuma Sr. Robert, e que hoje o dia não me correu
muito bem.”
Por entre o eco do corredor do armazém, o Sr. Robert desfere o golpe
fatal.
“Só existem duas possibilidades para um homem ficar com essa
feição.”
Paro imediatamente o que estou a fazer e com um flamejante interesse
pergunto-lhe:
“E quais são?”
Voltando outra vez para a loja, o Sr. Robert aproxima-se de mim e,
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sussurrado diz:
“Primeiro, ou e saúde ou...” Como é típico dele, faz a sua habitual
pausa para fazer a verdadeira combinação explosiva entre a espera e
a emoção.
“E qual e a segunda?”Pergunto-lhe ansiosamente.
Olhando de cima para mim, com um ar de quem sabe demais conclui:
“Ou, em segundo lugar, são as mulheres.”
Meio envergonhado, refuto tal afirmação,
“Não, isto e apenas cansaço da rotina do dia a dia.”
Robert agarra-me o braço e dá-me o conselho mais valioso que
alguma vez recebi de alguém:
“Jonathan, tanto um como outro necessitam da mesma coisa.”
Sem rodeios pergunto-lhe:
“O que e Sr. Robert?”
Ele responde-me com uma só palavra:
“Acção.”
Virando as costa e dirigindo-se para o armazém culmina com a
seguinte frase:
“Não esperes que o mundo mude antes, muda tu o mundo.”
Ao ouvir estas palavras, os meus olhos irradiaram uma luz intensa.
Posso afirmar que, se o céu não estivesse encoberto, o meu brilho
seria suficientemente capaz de ofuscar a luz do sol. Eis o que eu
precisava fazer, tomar acção. Embora já fosse tarde para falar com a
Jennie, mal podia esperar pelo dia de amanha.
E assim, de uma forma mais animada e inspirada, a tarde passou a
voar. Nem mesmo o facto de a loja encerrar as sete, uma hora mais
tarde, abalou o meu estado de espírito. Ponho em ordem os papéis
das vendas e pedidos, varro a loja e despejo o lixo. Desligo o quadro
da luz e despeço-me do Sr. Robert. Saio para fora, e observo o límpido
horizonte e o ar renovado após uma tempestuosa tarde. O céu ainda
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se encontra fortemente rasgado pelas negras nuvens que atravessam
a planície pacata do interior. Após a tempestade vem a calmaria, pelo
menos, na minha alma. Fecho a velha porta de madeira da loja e
ponho a chave ao bolso. Desbloqueio a minha bicicleta e retorno a
casa. A medida que pedalo, ouço o rodado dos pneus no alcatrão
molhado. Numa estrada deserta de vida, são a única companhia que
me resta. A noite ameaça cobrir esta parte do planeta e o vento gélido
inicia a sua campanha por estas bandas. Chego a casa, abro a porta
da garagem e arrumo a bicicleta. Descalço-me e sigo o mesmo ritual
de sempre, sento-me no sofá e relaxo-me em frente a minha
companheira da solidão, a televisão. Hoje não há jogo, logo, a noite
parece vir a tornar-se monótona. São oito horas e as notícias da noite
entram no ar. Com a cabeça encostada no sofá, vejo as triviais
novidades frescas de cima, completamente desinteressado com a
banalidade que nos obrigam a introduzir nas nossas casas e mentes.
Aborreço-me com o vazio que sinto, arrependo-me pela autorização e
poderes totais que concedi a televisão de me livrar do meu pior medo,
a solidão. Olho para o tecto, para os móveis, enfim, tentando encontrar
um escape deste buraco negro. Resigno-me do meu posto e levanto-
me da minha poltrona real. Vou a cozinha em busca de algo que me
entretenha nas horas seguintes. Sorrio e digo para mim mesmo:
“Espero que ela não se importe de falar para o boneco, afinal, eu
também passo o meu tempo a olhar para ele.”
Ainda tinha estas palavras na minha boca quando o apresentador das
notícias anuncia algo novo.
“Um novo shopping será construído nos arredores da cidade. Este
gigantesco edifício com 133 lojas, um cinema, seis restaurantes
promete ser a maior e mais excitante novidade de sempre na nossa
cidade. Esta gigantesca obra esta ao encargo do prestigioso
engenheiro Fred, conhecido pela sua arquitectura pos-contemporânea
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que tanto fala dele pelo mundo fora.”
A minha boca parou de mastigar e os meus olhos estagnaram em
frente da parede. Algo parece estranho, algo não esta a bater certo, ou
talvez esta. Deixo a minha sandes no prato e corro para ver a noticia.
Vejo o lugar onde vai ser construído a infra-estrutura, um lugar remoto,
no meio do nada. Mas como tal notícia pode bater certo com o sonho
que tive? Poderia até bater certo, mas, pode ser pura coincidência.
Afinal, eu sonhei que o shopping estava numa área residencial e não
no meio do mato. Mas, nem mesmo esta minha desculpa me fez
acalmar a mente. De repente, todas as experiências passadas
voltaram a minha memória, como um peso amedrontador, que ameaça
o meu espírito por tragar a minha paz interior. Opto por abandonar tais
ideias e organizo a minha mente para o dia de amanha. Sim, existe
uma batalha a vencer, um coração a conquistar mesmo com
desvantagem a começar do meu lado. O cansaço lentamente invade
as minhas forcas e o desejo que o novo dia chegue apressa a vontade
de que este acabe de vez. Deito-me, mas sem conseguir adormecer. A
chuva volta a visitar calmamente esta planície com o seu doce e leve
toque de embalo. Tudo está calmo, menos a minha mente. Reflicto no
dia que passou, tento encontrar respostas, mas elas fogem. Tento
desenterrar justificações, mas a medida que escavo, apenas encontro
duvidas e perguntas. Olho para o tecto em busca de respostas por
entre a luz de faróis dos poucos automóveis que cruzam a estrada.
Vejo as sombras por ela determinadas, mas também a luz que ela
transmite aos objectos mais remotos, como se tudo fosse determinado
por um tempo, tempo esse de espera, de revelação e de trevas. O
tempo é rei. Só chega a conhecer a verdade quem persiste ate ao final.
A luz e bela, não interessa a sua cor, especialmente quando tudo a
nossa volta esta imerso numa gigantesca escuridão. Vou observando
deliciosamente os raios de luz que percorrem o meu tecto. Não deixa
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de ser estranho tanto movimento esta noite, mas e uma óptima
companhia. De repente, ouço passos, muitos passos a entoarem no
meu quarto. Levanto-me, desorientado, tentando encontrar a origem
deles mas sem tirar os olhos dos raios de luz. Também começo a ouvir
vozes, parece a voz de uma multidão de pessoas! Mas como e
possível, se este bairro e tão pequeno e se já e tão tarde? Mas algo
me faz ficar verdadeiramente aterrorizado. Fico pálido e sem reacção
com o que vejo. Tento concentrar o meu olhar naquilo que vejo, mas
sem encontrar um ponto de apoio que o justifique. Por entre os raios
de luz que observo vindos de cima, vejo muitos passos que circulam
por entre os mesmos. Olhando com atenta precisão, observo que a luz
ganha um formato de um grande rectângulo com múltiplos pequenos
rectângulos separados por rigas negras, Agora sim, encontro-me
profundamente baralhado no meio daquela escuridão. Ganho coragem,
respiro fundo e, com as mãos a tremer, estico o braço para, de alguma
forma, decifrar com um simples toque, aquele enigmático problema. O
meu dedo indicador toca o estranho objecto, mas, a medida que os
passos se aproximam, retiro-o instantaneamente. Levanto-me e
esforço-me por olhar no estranho fenómeno. Por entre os múltiplos
rectângulos, tento observar o que por ali passa, mas e impossível. A
claridade e tão forte que os meus olhos choram só de tentarem ver por
alguns segundos. Levando algum tempo ate que eles se habituassem
a claridade, os meus olhos começam a observar algo semelhante a
uma grande arvore. Esfrego os olhos e insisto em observar mais uma
vez. E desta, observo grandes edifícios e postes de luz. Ganho mais
uma vez coragem e deito as duas mãos no objecto rectangular. Faço
muita forca, e, lentamente, ele levanta. Empurro este objecto para fora
e lentamente ponho a cabeça de fora. Não podia acreditar, estava
dentro de um buraco de um passeio cheio de gente. Do nada, um
senhor pergunta-me:
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“Precisa de ajuda?” E dizendo isto, ele estica a sua mão.
Estou tão atordoado com o que se esta a passar que nem possuo
fôlego para dar uma resposta. Simplesmente estendo a minha mão
para ele e, agarrando a minha, sou puxado para fora. Ele sorri e diz:
“Então tenha um bom dia.”
E dito isto, continua o seu percurso.
Eu, enquanto sacudo o meu casaco com as mãos, limito-me a tentar
perceber o que se esta a passar. Olho em meu redor, prédios
altíssimos rodeiam todo o horizonte e as filas de trânsito não tem fim.
Volto o meu olhar para o lugar de onde sai. Estranho. Giro a minha
volta, nada, o lugar desapareceu. Nesse preciso momento caio em
mim.
“Pois é claro, isto não e a realidade, a caixa dentro do passeio fora
apenas a porta de entrada.”
De repente o que sonhei na noite passada me vem a mente. Tento
encontrar um ponto de encontro, uma conexão, uma ponte que me
ilumine entre o passado e o presente. No meio daquele barulho
infernal, tento-me lembrar do nome da avenida. Após longo esforço, o
nome Vitoria vem-me a mente. Dirijo-me a uma paragem dos
autocarros esperando ver as minhas dúvidas iluminadas. Espero em
pé, dando pequenos saltos de quem sofre de um nervoso miudinho,
enfrentando cada minuto de espera como quem aguarda pelo
eternamente infinito que tarda em chegar. Aproveito o tempo para
observar o mundo a minha volta. Sempre marcado pelo mesmo sentido
doentio, os humanos mais uma vez não se libertam da vida real,
sempre numa correria infernal para alcançar o vento, não são capazes
de separar o real do imaginário, levando tudo ao mais real da suprema
seriedade, sem, nem por um único instante, gozarem de um momento
tão sublime. E ali estou eu, como um velho filosofo que indaga
desdenhosamente e de braços cruzados este fugaz mundo. Anda
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pensando nestas palavras, a multidão ao meu lado se levanta e
aproxima-se da berma do passeio. Ao longe, no meio do fumo da
transito infernal, vejo o topo de grande veiculo azul. A medida que se
aproxima, vou identificando cada vez mais a imagem vejo. O autocarro
chega e para mesmo com aporta de entrada na minha frente. Mas no
momento que me dirijo para entrar, a multidão em meu redor se
precipita toda ao mesmo tempo para entrar. Sou completamente
empurrado para trás, como se fosse soterrado por uma avalanche ou
engolido por uma selvagem manada em fúria. Realmente, quanto mais
tento perceber este mundo, mais ignorante me torno. Depois de ter
deixado passar aquela tempestade, aproximo-me da porta e dirijo-me
ao motorista com a seguinte pergunta:
“Este autocarro passa pela Vitoria Street?”
O condutor, gordo e de alguma idade. As bochechas grandes e
pendentes respondem com um mau humor, como se lhe tivesse feito o
pior dos males.
“Não! Não vai e essa rua nem sequer existe! Vais entrar ou que? Não
tenho o dia todo!”
Fiquei furiosíssimo com esta resposta, mas, cerrando os punhos,
consegui-me conter. Virei-lhe as costas e segui caminho.
“Esta gente e demais! Como podem levar tudo tão a sério?”
As minhas indagações não me levam a lado algum, especialmente
quando me encontro completamente perdido, sem um ponto por entre
começar. Caminho por entre a calcada do passeio, olhando
minuciosamente para cada pormenor e símbolo que compõem o meu
espaço em redor. Mas absolutamente nada daquilo que vejo me e
minimamente familiar. Caminho por entre as lojas, jardins e cafés, sem
reconhecer o sítio ou minimamente alguém. Se eu não entendesse a
língua dos transeuntes, diria que estava noutro pais, ou, ate quem
sabe, outro continente. Saio da avenida e entro numa rua paralela. Os
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altos edifícios, relembram-me o modelo antigo de construção europeu,
com as grandes varandas e portas em estilo rococo, enviam qualquer
transeunte para o tempo dos imponentes aristocratas. Nesta larga rua,
o comércio parece ser a chave de ouro em todo o redor. Avanço
cuidadosamente por entre cada paralelo de estrada, talvez, receoso de
ser descoberto por alguma forca maligna, ou talvez, tentando agarrar
com toda a convicção, um pormenor que me seja familiar. Mas, o
esforço é infrutífero. Desanimado, sento-me num banco de um jardim
em frente a um fontanário. Com as palmas das mãos no queixo e os
cotovelos apoiados nos joelhos, penso, encurvado, nas escassas
possibilidades de encontrar a mínima solução que seja. Nisto,
enquanto os meus olhos se debruçam para o chão, uma lágrima cai
mesmo em frente aos meus pés. Intrigado, olho minuciosamente
aquele achado minúsculo, como se tratasse de uma espécie rara.
Ganho coragem, e, toco nela. Examino-a cuidadosamente por entre os
dedos, como se aquela gotícula escondesse um segredo apocalíptico.
Olho de um lado para o outro na esperança de saber de onde veio tal
objecto. Infelizmente não chego a conclusão nenhuma. Ainda sentado
no banco, observo o fontanário a minha frente. Por cima da bacia de
água, erguesse uma imponente estatua. Esculpida gloriosamente
como que vestida com uma roupagem de linho branco representando a
pureza, porta uma espada de dois gumes na sua mão esquerda como
quem possui toda a autoridade para exercer justiça. Na sua cabeça
uma coroa com sete diademas embeleza-a de poder régio. Mas algo
não bate certo com a mão direita. Enquanto o seu olhar se ergue
fixamente para o céu, a sua mão direita aponta imperiosamente para o
fim da larga rua. Olhando fixamente para o sítio por ela apontado, tento
compreender o significado de toda aquela linguagem corporal e a
relação com o lugar em questão. Observo atentamente a estatua,
apenas para aumentar mais as minhas dúvidas. Desisto de perder
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tempo com a estátua e avanço para o sítio em questão. Percorro a
larga rua ate ou seu fim. A medida que caminho, a largura da rua vai
diminuindo e a concentração dos pedestres que a percorrem vai
aumentando. Passados cento e vinte e quatro metros, alcanço o fim
desta rua. Duas outras ruas, mais pequenas, derivam desta grande,
mas, enveredar por uma delas significa sair do alcance da área
indicada pela estátua. Recuo uns metros mais atrás e observo
atentamente o cenário ao meu redor. Estou cercado apenas por
grandes edifícios que não portam qualquer relação na busca que
efectuo. Em baixo, no solo, não existe nada, a excepção dos
transeuntes que por ela passam carregados de sacas. Ao longe, do
meu lado direito, observo a estatua e do meu lado esquerdo, apenas
lojas. Traço uma rectilínea a começar na estátua e com o ponto B a
finalizar numa das lojas no final da rua. Caminho em direcção ao
centro do ponto B. A medida que caminho, o número de lojas diminui
ate chegar ao cerne do meu objectivo. Caminho em direcção a loja em
questão. Espreito pela grande vitrina coberta de pó. O seu interior e
escuro e poeirento, grandes caixas de papelão aglomeram-se pelo
chão. Mais uma vez, a desilusão toma conta de mim. A loja aparenta
estar fechada já a muito tempo, o que deita por terra, a relação entre
aquela estátua com este sítio. Espreito mais uma vez para o seu
interior na busca de qualquer detalhe relevante. Mas, apenas pó e
caos encontro naquele mundo morto. Deslizo o meu olhar para velhas
paredes brancas do interior, apenas para suspirar e aumentar o meu
descontentamento.
Nisto, um reflexo de alguém a minha direita, resplandece no vidro.
Resisto a tentação de saber quem poderá ser tal personagem. Imóvel,
a espera que a pessoas se identifique, o meu estado de alerta
aumenta do nível normal para o elevado. Passado breves segundos,
ouço uma voz feminina dizendo:
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“É mesmo difícil de te localizar Jonathan.”
Neste momento, arrisco em voltar a minha face na direcção da voz.
Uma rapariga de media estatura, com cabelos castanhos de rabo-de-
cavalo e grandes óculos de sol, olha fixamente para dentro da loja. A
minha curiosidade aumenta a passos de gigante ao ponto de
transbordar numa única pergunta:
“Como sabes o meu nome?”
Sem olhar para mim, ela sorri como se fosse a portadora de todo o
divino conhecimento.
“Segue-me.” Diz ela.
O que mais poderia eu perder? Quando não se possui nada, não existe
nada a perder. Sigo-a a dois metros de distância como quem não tem
nada a ver com aquela situação. Percorridos uns metros, ela vira a
esquerda e entramos num a estreitíssima rua que sustêm as traseiras
dos edifícios em redor. A luz do sol não penetra aqui, neste sítio
húmido e silencioso. A medida que penetro naquele mundo obscuro,
vou sistematicamente para a rua que deixei com os seus transeuntes
atarefados de um lado para o outro. Tento manter o mesmo ritmo, mas,
o temor começa a tomar parte de mim aos poucos. Neste beco, os
gigantescos edifícios não possuem janelas, apenas portas e escadas
de emergência enferrujadas banhadas constantemente pelo vapor que
emana das grelhas instaladas no chão. As minhas pernas começam a
querer falhar com o temor daquela situação, e, sem o desejar, a
rapariga vai ganhando terreno em relação a mim. Nisto, ela para, põe o
dedo no ouvido e olha fixamente para o chão. Passado brevíssimos
segundos, prossegue o passo, e, depois de escassos metros ela vira a
esquerda. Põe a mão na manivela da porta e, com os seus grandes
óculos de sol, olha-me fixamente pela primeira vez. Fico surpreendido,
mas não o suficiente para abrandar o meu passo. Ela abre a porta e
entra, e eu, sem hesitar, faço o mesmo. Entro num corredor frio e
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escuro que desagua num átrio iluminado naturalmente pela luz do dia.
Ela sobe umas largas escadas velhas em madeira que rangem a cada
passo dado. Antes de prosseguir a escalada, olho para cima e observo
apartir do centro daquela escadaria, o alto tecto em vidro baço que
deixa resplandecer a luz natural do dia. Prossigo a subida com as
mãos bem firmes no corrimão de madeira. Chegando a cada patamar,
olho para baixo, esperando que nada de mal aconteça. Ela, enquanto
sobe, põe o dedo mais uma vez no ouvido. Olha para a porta de saída
daquela escadaria, e, sem parar, observa-me para me informar de uma
mudança de trajecto. Ela entra no terceiro andar e eu sigo-a de perto.
Percorremos um sombrio e silencioso corredor cheio de portas em
madeira velha. O chão em carpete castanha a condizer com o papel de
parede, silencia qualquer movimento nosso. Depois de percorridas
muitas portas, ela para em frente a uma e mete a mão no bolso. Neste
momento eu alcanço-a e observo-a a tirar do bolso uma pequena e
antiga chave preta. Ela abre a porta e entra. Eu entro em seguida
neste andar velho, poeirento e vazio. Ela percorre o corredor ate ao
fim. No fim deste corredor existe uma grande cortina roxa repleta de pó
e teias de aranha. Ela abre vigorosamente a cortina e avança para o
pequeno compartimento que estava ocultado por ela. Entro também
neste pequeno compartimento que culmina numa outra porta. Ambos
paramos em frente a esta porta. Ela retira os óculos de sol e faz
resplandecer os seus olhos azuis. Põe a mão na maneta da porta e
pergunta:
“Temos esperado muito tempo pela tua vinda, tens a certeza daquilo
que queres?”
“Eu só quero saber o que se esta a passar.” Respondo-lhe, pensando
em obter de imediato a resposta as minhas atormentadoras perguntas.
“Queres conhecer a verdade?” Pergunta-me.
“O que é a verdade?” Pergunto-lhe cada vez mais confuso e
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baralhado.
“Só existe um modo.” E, dizendo isto, ela abre a porta.
Olho para dentro dela, o seu interior e escuro e sombrio. Olho para ela,
o seu olhar belo mas frio indica-me que o caminho certo e este e mais
nenhum. Respiro fundo e entro por ela. Ouço a porta a ranger, a luz a
diminuir e olhando para trás, a porta fecha lentamente. Ao fechar, ela
emite um estrondo tão forte que eu...
Acordo.
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Capitulo 6
Abro grandemente os meus olhos e observo o famoso tecto já
iluminado pela aurora de mais um novo dia. Levanto-me e certifico-me
de estar realmente no meu quarto.
Quem era aquela rapariga? Porque esperaram por mim? O que
realmente está envolvido em toda esta historia? Tudo é real demais, os
cenários, as pessoas, as casas e ate a própria rapariga. È como se
tivesse entrado num mundo real, no entanto, debaixo de um pesado
sonho. Mas porque que venho a ter tal tipo de sonhos? Os meus
sonhos não seguem uma ordem lógica, mas desta todos eles se
encaixam um atrás do outro!
Enquanto penso em toda esta frenética e empolgante aventura, o
despertador dá o primeiro toque. Mas, estou tão perturbado com o
sonho que nem ouso deitar a cabeça no travesseiro. Levanto-me e
preparo o meu café. A medida que agito a colher do açúcar dentro da
chávena com café, os meus olhos observam através daquele liquido
negro, tudo o que sonhei, em especialmente o que se passou naquele
pequeno compartimento. Por mais que pense, não consigo encontrar
alguma explicação natural do que se passou na minha mente. Tudo
aquilo que ouço e vejo no mundo real é predito antes e com
antecedência no mundo lá em baixo. No entanto, nem mesmo a
perfeita sincronização dos eventos me revela o que realmente
enfrento. A compreensão muitas vezes esta longe dos sábios mas,
como poderia um humilde rapaz como eu entender tais sinais. Agito a
cabeça e passo as mãos nos cabelos.
“ Não passam de coincidências da minha mente. Jamais o mundo
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poderia estar interligado numa rede tão vasta.”
Hoje existe uma batalha a vencer, conquistar o ser mais precioso que
invadiu o meu pensamento, a minha alma e tudo o que possuo. Ponho
a chávena na banca da cozinha pois, mais logo terei todo o tempo de
sobra para a lavar.
E mais uma vez, inicio do constante ritmo quotidiano da vida, cheio de
esperança em que tudo, pelo menos uma vez na vida, seja diferente do
dia anterior. Abro a branca e enferrujada porta da garagem e saio com
a minha bicicleta, como quem se entrega ao mundo num acto heróico.
Os meus olhos tornam-se pequenos devido a claridade vinda do
exterior. O dia tempestuoso de ontem tornou-se num dia límpido de
rara beleza. Com o alcatrão da estrada ainda húmido da limpeza que
teve na noite passada, faço-me rapidamente ao caminho. Tudo esta
extremamente calmo, nem sequer os pássaros se ouvem nesta
manha, apenas o barulho do rodado e o som da minha ofegante
respiração. Por fim, decorridos dez minutos de intensa maratona,
chego a avenida principal da cidade. Pouca gente circula na rua quer
de pé ou de carro. Quem meditar naquilo que vê, ainda pensa que a
maioria da gente esta barricada em casa devido ao mau tempo de
ontem. Mas isto já e um habito quotidiano. Nesta pequena cidade do
interior, dominada maioritariamente por caras e ilustres pessoas
idosas, o tempo para unicamente para os amantes da calma e de todo
o ínfimo pormenor da vida. Definitivamente, um mundo completamente
diferente aquele que tenho invadido todas as noites.
E com todo este raciocínio lógico, chego ao meu posto de combate, o
meu trabalho. Qual será a ar telharia que o meu patrão vai usar desta
vez contra mim? Os planos do inimigo geralmente só se sabem na
hora, por isso, nem vale a pena especular. Abro a porta da loja,
despejo algum lixo, revejo o livro das facturas, enfim, o normal de cada
dia.
73
“Bom dia Jonathan!” Diz Robert ao entrar pela porta da loja com as
suas mãos nos bolsos na bata azul.
“Então, sobrevives-te ao mau tempo da noite passada?”
“Perto do sítio onde moro não foi assim tão forte a intempérie.”
Sorrindo. Robert diz:
“Então o dilúvio foi desaguar todo no meu bairro.”
Dirigindo-se a mim, tira um papel com a mão direita onde estão
registrados alguns apontamentos. Ele lê o papel e olha fixamente para
o balcão de vidro onde me encontro, como se procurasse algo
precioso. Torna a olhar para o papel e pergunta-me:
“Já veio a encomenda que te pedi esta semana?”
“Vieram duas encomendas.” Abaixo-me e tiro do balcão um grande
embrulho.
Robert observa cuidadosamente o selo que esta estampado no exterior
da caixa de cartão. Com um ar de rejeição diz:
“Não e bem esta que procuro, aquela que te pedia era a dos
parafusos.”
“Acho que a tenho por aqui, algures na prateleira de cima.”
Procurando exaustivamente na prateleira do topo, nas pontas dos pés,
esgravato cada centímetro quadrado lá existente.
“Aqui esta a caixa!”
Tirando do topo, sopro-a para retirar qualquer partícula de pó que se
possa encontrar no seu topo.
Observando cuidadosamente a caixa, procuro a referência e o pedido
da encomenda.
“Aqui está ela Sr. Robert.”
Com a mão esquerda, ele vira a referência da caixa para ele, e,
observando escrupulosamente as letras, o seu rosto meio enrugado
pelo tempo, torna-se completo em rugas de desagrado pelo o que lê.
“Não pode ser!” Diz Robert.
74
“Qual e o problema?” Pergunto com um ar estranho, completamente
apartado daquela resposta.
Tirando a mão direita do bolso, num esforço real em descobrir a
verdade que jaz dentro daquela pequena caixa, observo algo que me
arrepia.
“Sr. Robert, o que lhe aconteceu a sua mão?” Pergunto-lhe ao ver o
seu pulso com ligaduras.
Olhando para a sua mão direita, Robert confessa:
“Enquanto esperava que o dilúvio passa-se, ontem a noite,
escorreguei na aresta do passeio e rompi um ligamento qualquer no
pulso. Mas já fui ao médico, não e nada de grave, apenas devo usar
esta ligadura por mais duas semanas.”
“Simplesmente cumpriu-se!” Exclamo em voz baixa, possuído de uma
admiração completa.
“ O que foi que se cumpriu Jonathan?” Pergunta Robert, intrigado com
a minha resposta.
Voltando a mim próprio, respondo-lhe:
“Não foi nada, estava apenas concentrado num outro assunto sem
importância.”
Voltando a sua atenção para a caixa, ele abre-a e observa bem para
dentro com um ar de desagrado.
“A companhia que nos fornece o material por vezes e bem
incompetente.” Diz Robert, revoltado com o resultado da sua pesquisa.
“Mas qual é o problema? Os parafusos são de outro tamanho ao
pedido efectuado?”
Desapontado, Robert responde-me num tom baixo.
“Paciência. Tenho que voltar a fazer outro pedido.”
“Mas afinal, qual e o problema?” Insisto uma vez mais, na curiosidade
em saber onde estava a falha.
Virando-me as costas e dirigindo-se a outra prateleira Robert
75
responde-me:
“Tu pediste trinta parafusos, mas eles só enviaram sete.”
Se já estava pensativo com a contusão de Robert, tornei-me
completamente absorto no meu raciocínio ao ouvir esta frase de
Robert.
Esgravatando as outras prateleiras, ele tenta arranjar uma solução
para o problema emergido.
“Quer que procure outros parafusos lá no armazém?” Pergunto-lhe
num tom solidário, em busca de ajudar quem me tem ajudado.
Olhando atentamente para cada objecto exposto nas prateleiras, com o
nariz bem ao alto e sem de lá tirar os olhos, Robert responde-me:
“Não Jonathan. Vou tentar remediar com qualquer coisa. Se não
conseguir, telefonas ao final da tarde para eles. Preciso dos parafusos
ainda esta semana.”
Não encontrando o que pretendia, Robert da meia volta e dirige-se
para o armazém.
“Bem, vou lá para trás, se precisares de algo chama-me.”
“Esta bem Sr. Robert.”
E cambaleando, como é característico do seu ser, Robert dirige-se
para o armazém.
Recomeço o trabalho que deixei pendente com toda esta história,
tentando recuperar o tempo perdido.
“Bom dia Jonathan!” Saúda o Engenheiro Fred, com um ar de quem
lhe saiu a sorte grande.
“Bons dias Engenheiro Fred, em que lhe posso ser útil?”
“Precisava de falar com o teu patrão se fosse possível.”
“Ele esta lá em cima. Se quiser, pode ir lá falar pessoalmente com ele
no seu escritório.”
“Obrigado Jonathan.”
E assim, o Engenheiro Fred segue o caminho que, para uns é de
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glória, para outros, de perdição.
Olhando para a grande porta de madeira da entrada, observo os raios
do sol que tentam, exaustivamente penetrar no interior da loja. Saio por
uns momentos daquela fria cova e dirijo-me ao encontro daquela luz
que emana do exterior. Com os pés ainda dentro da loja, debruço o
meu corpo sobre o grande degrau da entrada para espiar, o mundo lá
fora, ainda que por breves momentos. O dia esta divinamente
agradável. Apenas corre uma leve brisa primaveril. Observo as
pessoas que cruzam apressadamente a rua e, os trabalhadores que
varrem a estrada da intempérie que avassalou ontem a noite esta
pobre cidade.
“Jonathan!” Ouço uma voz grossa que chama pelo meu nome. Para
um visitante ou desconhecido, tal não seria reconhecido como uma
voz, mas sim, como um rugido de um Lião, ou talvez, semelhante ao
desmoronamento de um alto edifício. Quer a pessoa conheça esta
forma de linguagem, quer não, o resultado seria sempre o mesmo, um
profundo e atemorizante sentido de temor.
Volto-me para trás e abandono a porta para me concentrar no que a
fera tem para dizer.
“Diga chefe.”
Saindo do corredor do armazém e entrando na loja, como uma besta
feroz quando é libertada do seu covil, dirige-se a mim com o seu gordo,
arrogante e desconfiado aspecto pessoal.
Trazendo um arquivo na mão, ele para e olha-me nos olhos como se
fosse um juiz, pronto a sentenciar o réu ao mínimo detalhe. Passado
longos segundos daquele extenuante silêncio, do qual, qualquer ser
mortal teria o tempo suficiente para pensar, repensar e meditar nas
possíveis acusações e punições. Ele, premeditando a situação, liberta
um microscópico sorriso. Eu expiro de tranquilidade e a minha
ansiedade, desmorona-se como uma barragem fustigada pela pressão
77
das potentes águas. Nesse momento, os próprios céus se abrem e
ouve-se os anjos baterem palmas de alegria.
O meu patrão estende-me o arquivo, como se me estivesse a dar as
chaves da cidade, ou ate mesmo as do Hades.
“Quero que faças o pedido e as encomendas para isto. E vê lá se não
falhas. Se perdemos este cliente, a firma perde-te a ti.”
Olhando com muita atenção para aquela capa preta, e temendo o
desafio proposto, pergunto:
“Mas o que e isto?”
“A firma do Engenheiro Fred vai comprar-nos materiais para a fachada
do novo shopping. Como deves imaginar, este vai ser o negócio do
ano para esta pequena empresa.”
Ao ouvir a palavra shopping, o meu corpo estremece. Vem-me súbito à
minha mente o sonho que tive relacionado com ele.
Virando as costas em direcção a sua jaula, ele replica:
“Tens autorização para fazer tudo, menos para seres um
incompetente.”
Todo o ser humano anseia honra e glória, de ser apreciado e estimado
com tal. Sentia-me bem com aquela admirável e dura missão, mas, e
se algo corresse mal? Bem, se nunca tentar, nunca saberei. Dirijo-me
outra vez ao balcão e, abrindo o arquivo, estudo minuciosamente todos
os detalhes do projecto.
Busco arduamente uma imagem, um desenho do complexo que crie
uma ligação entre o que vi com a iminente realidade.
Finalmente, na página vinte e cinco, o meu coração parece saltar por
dentro, quando a imagem que vejo acaba por ser descodificada no
meu cérebro.
“Não pode ser!” Exclamo num tom completamente atónico, como se
um ateu presenciasse com os seus humildes olhos toda a glória de
Deus em toda a sua omnipotência.
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O que vejo na folha não é novo mas sim, a plena concretização daquilo
que vi.
Começo a preocupar-me comigo e com aquilo que vejo através da
minha mente. Já ouvi falar no passado de indivíduos que previram o
futuro através dos sonhos mas, o que eu vira a uns meses atrás não foi
fruto de uma presciência qualquer, nem previsão de uma remota
probabilidade. Eu estou a comunicar-me com algo emergente, como se
sonhasse com o projecto de vê-lo cumprir-se na íntegra realidade.
Nesse preciso momento, sinto uma mão que me toca no ombro
esquerdo.
“Então rapaz, estas a sonhar acordado?”
“É você Sr. Robert! Que alivio!” A sua presença tomou-me
desprevenido, assustando-me completamente.
“O senhor ainda me mata do coração!”
Ele sorri, vira as costas em direcção à porta e, agitando a cabeça de
um lado para o outro, com as suas características mãos na bata, diz:
“Vens almoçar ou ficas aqui a trabalhar?”
“Já esta na hora Sr. Robert?”
Saindo pela porta fora, Robert não tem a oportunidade de ouvir a
pergunta. Ele é como um relógio, chega a horas mas, não tolera
atrasos com respeito à saída do trabalho.
Desligo as luzes e fecho a porta. O próximo desafio está para chegar,
remediar o que fiz com respeito a Jennie, se e que tem solução. O meu
estômago aperta-me de nervos, as mãos suam, embora estejam frias e
a minha cabeça ensaia milhares de desculpas e de incidentes
imaginários que justifiquem a minha anterior reacção.
Finalmente, o momento tão ansiado, chega com a abertura da porta do
restaurante. O lugar está outra vez apinhado de gente. Timidamente,
vou avançando em direcção ao centro. Observo a Jennie a servir uma
mesa. O meu coração começa a bater forte ao observar a sua
79
presença. Ela recolhe os pratos, encurvada e com a máxima atenção
ao pedido dos clientes. Nesse preciso momento, ela sente a minha
presença e vira a sua face directamente para mim. Mal me observa,
volta-se para o que esta a fazer. O seu sorriso desvanece como se eu
fosse o portador de algum mal ou pressagio.
“Isto começa bem.” Digo eu, desanimado com o início deste encontro.
Espero imóvel, em pé, desejando que um milagre aconteça. Ela circula
de um lado para o outro sem me olhar ou prestar alguma atenção.
Passado breves minutos, ela acena-me do fundo da sala, apontando
uma mesa livre. Mais desmotivado fico com a frieza daquele gesto,
como se ela tivesse sido obrigada a dar-me aquela satisfação. Avanço
para a mesa livre e sento-me. Enquanto relaxo os músculos da tenção,
indago a mim próprio, até ao cerne da questão. Onde terei errado da
ultima vez. De quem foi a culpa? Minha ou dela? O que originou tal
reacção nela? As vezes, conseguimos formar uma violenta tempestade
num copo de água, ou ate mesmo, num dedal de costura. Afinal, tudo
as vezes não passa de um mal entendido que, se não for rapidamente
entendido e posteriormente transportado para o pretérito perfeito,
apenas originará o mal.
“O que vai ser Jonathan?” Pergunta com os olhos fixos no prato e nos
talheres que põe na mesa sem, no entanto, olhar para mim, como se
eu não existisse.
Combatendo aquele cruel e frio comportamento, como quem combate
uma guerra com amor, olho fixamente nela. Um olhar que não precisa
de falar, que não precisa tocar ou explicar. E um olhar que conta o
mundo numa única expressão sábia, no entanto, única. Ela resiste ao
meu olhar, querendo assemelhar-se a uma fortaleza inexpugnável.
Não desisto de cerca-la com o meu olhar, na verdadeira e fiável
certeza de que nada resiste para sempre.
Por fim, o castelo cai perante um sorriso que, embora muito superficial,
80
ela deixa escapar.
Ganhando coragem, Jennie tira o seu belo olhar do que faz e, por fim,
reconhece a minha existência. Com um ar sublime de quem sabe o
que se passa e com uma possível e muito aguardada trégua à vista,
ela pergunta-me com um tom meigo seguido de um suspiro.
“O que foi agora, Jonathan.”
Finalmente, a luz que aguardava e que a cada dia que passava via
esvanecer-se no túnel da solidão, voltou a brilhar novamente para mim.
Magnanimamente motivado, como se tivesse realizado a maior proeza
do universo, limito-me misteriosamente a observa-la nos seus lindos
olhos verdes.
O tempo parou, tudo ao nosso redor cai num profundo e negro
horizonte. O ruído desvanece-se no nosso momento sublime, como se
fossemos transportados para um outro mundo.
Vejo o Jennie a sorrir como se tivesse recebido uma notícia muito
aguardada. Vejo-a corar lentamente, como se um fogo se acendesse
entre nos os dois. Ela desvia o olhar para a mesa, e sem saber o que
fazer, ou sem armas e muralhas para se defender, retira-se para a
cozinha. Mas a meio do percurso, profundamente embaraçada e sem
firmeza nas palavras, pergunta-me:
“E o mesmo do costume, não e, Jonathan?”
Acenando com a cabeça sorrio, não com um sorriso de galanteador,
mas sim, com um sorriso amigável de quem zela pelo respeito de
quem ama e aprecia. Ela volta-se e dirige-se para o seu posto, mas
desta vez, com um sorriso tímido mas confiante daquilo que deseja.
Pego numa publicidade que se encontrava em cima da mesa e finjo
que a leio com algum interesse. Na realidade, o meu olhar não quer
estar ali, mas onde a Jennie esta. Passados breves momentos chega
ela com a refeição. Com um ar sério e despreocupado, como se nada
tivesse ocorrido, ajudo-a com os pratos. Não preciso de olhar para ela
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para saber que se encontra mais calma. Consigo, não sei como, talvez
por uma vibração magica, senti-la no meu mais profundo ser.
“Bom proveito.” Diz ela com os olhos postos em mim, esperando uma
qualquer reacção da minha parte.
“Obrigado Jennie.” Digo sem muita acrobacia ou enredos. A
simplicidade sempre a deixou calma e confiante, jamais desejaria o
contrário.
O apetite voltou-me a fugir, mas desta vez, por uma boa causa.
Não há nada de errado em tentar saber o porque de uma questão,
quando apenas nos restam alguns quartos de século de existência e,
expectavelmente, quando tais verdades possuem poder de mudar
vidas.
Ela espera pelo meu segundo passo, como uma bailarina espera pela
decisão do seu parceiro.
No final da refeição, ela aproximasse da mesa onde estou na ânsia de
cumprir o seu dever mas na vontade de que algo bem especial
floresça.
“Então, gostaste da refeição?” Pergunta ela num tom meigo, como só
ela o sabe pronunciar.
“Estava muito bom Jennie.” Respondo eu já com os nervos a
quererem voltar a estragar o meu perfeito plano de a conquistar.
Enquanto recolhe os pratos da mesa, ela espera uma resposta, um
incentivo, um pedido, nem que seja ate mesmo um espirro, algo que
possa ser usado para cortar o silencio entre nos, algo que, semelhante
a uma ponte, nos una nesta nova primavera da vida.
Mas, infelicidade da minha parte, quanto mais penso, mais bloqueado
fico. As ideias para salvar aquele momento único, são tantas que a
minha mente não é capaz de as filtrar e seleccionar.
Vendo o caso a repetir-se, Jennie, com os olhos direccionados para os
pratos que recolhe na mesa, liberta um inesperado sorriso e diz:
82
“Então vemo-nos amanha?”
Meio engasgado, consigo ter a única e brilhante capacidade de lhe
responder de modo rápido, lógico e coerente.
“Sim! Por ti eu virei.”
A minha alma enche-se de glória e um raio de luz divina ilumina-me
mesmo ali, naquele pequeno espaço. Finalmente, depois de tanto
tempo, consegui pronunciar algo correctamente, mas desta vez, no
momento certo.
O sorriso dela engrandece-se, os seus belos lábios estendem-se
naquele santuário perfeito, como as ondas do mar a percorrerem o
imenso oceano. Ela volta-se, sorridente, com aqueles lindos olhos
pequenos, cheios de satisfação, de quem recebeu um tesouro que
tanto ansiava.
Suspiro perguntando a mim próprio porque este momento teria que
acabar, porque tais coisas não podem perdurar por uma eternidade?
O amanhã é longínquo demais para se estar longe de quem se ama.
Enquanto a vejo fugir-me entre os dedos, observo desesperadamente
por uma ideia, uma oportunidade com o poder de prolongar aquele
momento único.
Fitando os meus olhos no meio da sala, há procura de ideias, observo
apenas o pilar cilíndrico e nada mais. Consigo observar todas as
palavras amorosamente transcritas mas sem possuir a habilidade de
as conjugar neste meu caso. Que frustração!
De repente e de uma forma inesperada, no momento em que olho para
a rua em busca de auxilio, observo um cartaz fixado na parede, relativo
ao novo musical que está a passar nos cinemas.
“Jennie!” Alço a voz, como quem quer dar uma gigantesca noticia.
Ela volta-se, conservando o mesmo sorriso de há pouco.
Aceno com a mão, com o objectivo de a fazer tornar até mim.
Ela, entendendo a minha expressão, olha sorrateiramente para a
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cozinha. Após isso, dá meia volta e retorna a mim, caminhando a
passos largos.
“O que foi Jonathan?”
“Esta sexta, a noite, estreia um musical no cinema. Tenho uns bilhetes
que ofereceram à empresa onde trabalho. Queres ir ver?” Eu bem sei
que a Jennie adora musicais. Esta pode ser a oportunidade que a
minha vida tanto aguardava. Tudo agora dependia dela.
“Um musical?” Pergunta ela, com um ar de quem se faz
inconquistável, como é hábito dela.
“Esta bem, aceito?” Eu bem sabia que ela não resistiria a tal oferta.
“Então, combinamos a hora e o local amanha.” Sorrio, animado com a
resposta.
Agora, só havia um problema a enfrentar. Os bilhetes cedidos à
empresa, estão reservados apenas aos funcionários ela. Por outras
palavras, ainda tinha que comprar um bilhete de estreia para ela.
Mas não há nada que o amor não supere. Não existe obstáculo grande
demais, não existe montanhas e desfiladeiros intransponíveis quando
amamos alguém.
Nada é suficientemente forte para detê-lo. O amor nunca falha.
Do mesmo modo, a hora de regressar a gaiola da vida também nunca
falha. Deixo a mesa e, timidamente, aceno um adeus carinhoso a
Jennie, enquanto que ela, com os braços repletos de louca, acena-me
com a cabeça, acompanhada por aquele sorriso doce e quente.
Saio do restaurante apressadamente pois, o tempo, esse temível
monstro dos bons momentos, esgotou-se de vez. A pulsação bate
cada vez mais forte à medida que acelero o passo. Os atrasos não
constam da minha folha profissional.
Finalmente, consigo atingir a grande meta desta minha maratona, o
meu trabalho.
Ponho a mão na ombreira de granito e paro por momentos. Debruço-
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me para facilitar a minha respiração ofegante.
Enquanto que observo o pavimento por baixo dos meus pés, uma
aresta de um envelope deixa-se transparecer por debaixo da porta
velha da entrada. Abaixo-me e não hesito em pegar o envelope.
Olho atentamente para a carta como se fosse um mapa do tesouro.
Apenas possui um logótipo de uma empresa de construção civil.
Embora vontade não me falte, resisto fortemente a vontade de abri-la.
Deposito a carta em cima da bancada, quando o meu chefe chegar, ele
a levará. A tarde passa rápido, mas os meus olhos não se apartam
daquele pequeno envelope. Se for importante, todos ficarão a saber,
digo isto, numa tentativa frustrada de aliviar a minha intensa
ansiedade. Não existe nada mais desgastante do que a potente poção
constituída por curiosidade e ânsia interminável, poção essa, capaz de
remoer todos os ossos do frágil corpo humano.
O meu pensamento não se aparta da visão que tive daquele homem.
“O que é esse envelope em cima da secretaria?” Pergunta Robert,
também curioso com o achado.
“E para o chefe, chegou ao início da tarde.” Respondo-lhe
entusiasticamente, na esperança de ele desvendar o mistério.
Girando o corpo em direcção a bancada onde jaz tal objecto sacro,
Robert desvia a sua rota para observar melhor a misteriosa
correspondência.
Com um ar totalmente desconfiado, Robert franze os olhos e observa o
pequeno embrulho bem longe dos olhos.
“Não, assim não consigo ler.” Diz ele no momento em que tira do seu
bolso os seus preciosos óculos. Ajusta-os como se fossem um potente
e raro telescópio e tenta mais uma vez ler as pequeníssimas letras lá
gravadas.
Com uma mão na haste do óculo, a outra no envelope, Robert apenas
move os lábios.
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“Então, sabe do que se trata?” Pergunto, já sem fôlego de tanta
ansiedade contida.
“E coisa grande meu filho.” Responde em tom de prudência.
“Mas que tipo de coisa?”. Pergunto eu, sem já poder conter mais a
curiosidade dentro de mim.
Robert, pousando a carta na bancada, apenas vira as costas e,
seguindo a sua anterior rota, responde-me:
“Vamos embora, o dia terminou.” Responde-me secamente, não
dando absolutamente nenhuma atenção as minhas perguntas.
O mistério atinge o seu auge nesse momento. O que estaria ali
escondido? Porque Robert decidiu camuflar tal assunto? Fosse como
fosse, tudo seria revelado no seu tempo certo. Desligo as luzes, fecho
a porta. Pego na bicicleta e rumo para casa. A satisfação de ter
vencido mais um dia, um dia que deixa esperanças e abre as portas ao
futuro, deixa-nos sonhar mais um pouco nesta curta e tribulada vida.
A existência de um humano é incerta e imprevisível, mas isso é que lhe
trás definitivamente a original espontaneidade que difere homens de
maquinas semi-programadas. Finalmente chego a casa e, abrindo a
porta da garagem, arrumo a minha bicicleta no seu interior. Descalço-
me e sento-me em frente a televisão a relaxar um pouco. Delicio-me a
beber uma fresca cerveja, ao mesmo tempo que estalo os dedos dos
pés, cansados das oito horas que estiveram a suportar
impiedosamente todo o peso do corpo. Os programas que passam na
televisão são sempre os mesmos. Pode ser aborrecido mas, se
pensarmos melhor, o ser humano gosta das coisas chatas e
aborrecidas. Desejam sempre a mudança mas, o medo que ela
comporta, nos incapacita de fazer algo diferente. O medo de perder ou
sair prejudicado é sempre maior ao de sair vencedor. No entanto,
esquecemo-nos de que este campo não é mais nem menos que a
probabilidade de 50/50. Tanto se pode perder em mudar como ganhar
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tudo pela metade. Simplesmente, estar quieto e render-se a mínima
ameaça é sempre mais fácil.
Sentado no meu velho sofá, suspiro de aborrecimento ao enfrentar
mais uma corriqueira rotina de vida que corrói os nossos dias como
uma ferrugem cancerígena.
Encosto a cabeça, e olhando para o candeeiro no teto, vou reflectindo
em toda a ternura que vivi esta tarde com a Jennie. Ela é realmente o
ser mais doce que poderia cruzar nesta minha vida triste e sem
sentido. Ela é sem duvida a luz da minha vida, que brilha intensamente
sobre mim e sobre tudo o que faço.
Ainda meditando nesses momentos frágeis, observo que o candeeiro
por cima de mim apaga-se e acende-se num ápice. Não é apenas por
uma vez mas, repetidamente. Ergo a cabeça com a ajuda dos
cotovelos, aproximando-me cada vez mais daquela lâmpada incomum.
Inesperadamente, a lâmpada começa a brilhar cada vez mais. Brilha
tanto que me ofusca o olhar. Tento erguer as mãos para tapar os
olhos, mas sem sucesso. Os meus braços parecem pesar toneladas.
Nisto ouço uma voz:
“Muito bem, está a voltar.”
Com os olhos bem pequenos da intensa luz que se forma, pergunto
roucamente.
“O que se esta a passar?”
Mas ninguém me responde.
“Chega-me o eléctrodo.” Ouço a mesma voz.
“Mas quem e que esta ai?” Pergunto, totalmente desnorteado e com a
visão completamente ofuscada pela intensa luz.
Nisto, sinto um levíssimo choque, talvez mais acuradamente, uma
pequena passagem de corrente por todo o meu corpo que o deixa
completamente dormente.
“Muito bem, já acabamos, podem solta-lo.” Ordena a mesma voz pela
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terceira vez.
Ouço um barulho semelhante a um engenho metálico a abrir-se. A luz
deixa de ser intensa e passo a observar o enorme candeeiro cinza
metálico que me ofuscava.
“Bem-vindo Jonathan.”
Com a vista ainda desfocada, giro a cabeça na direcção daquela voz.
Esfrego os olhos para facilitar a visão e observo um grupo de pessoas
ao meu redor, mas sem enxergar correctamente os seus vultos.
Quando recupero de vez a visão, não consigo acreditar no que vejo.
“Tu, aqui! Quem és tu? O que queres de mim?” Pergunto aterrorizado,
ao identificar aquela personagem do fato azul, que havia participado no
meu sonho a uns meses atrás.
“O que esta a acontecer comigo?”
Ele aproxima-se de mim enquanto ainda me encontro sentado numa
espécie de maca. Põe a mão sobre o meu ombro e diz muito
calmamente:
“Viestes para conhecer a verdade por detrás do mundo. Estás
preparado para recebe tal revelação?” A minha mente quer responder,
mas a minha língua encontra-se petrificada com tanto enigma.
Ele estende-me a mão com um ar bondoso e diz:
“Levanta-te rapaz, isto e apenas o início de tudo.”
Apoiando-me no seu braço, ergo-me trémulo de incertezas e de temor.
“O meu nome e Volton?” Diz ele.
Atrás de mim ouço uma voz feminina que não me e completamente
alheia.
“Eu chamo-me Sophie?”
Voltando-me, admiro-me com o que vejo.
“Mas, tu não és a rapariga que me fez passar pela porta misteriosa?”
Sophie apenas sorri, com um sorriso de adolescente, típico de quem
não fez nada por mal.
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“Prazer em encontrar-te novamente Jonathan.” Ganhando coragem,
Sophie acaba por responder a minha pergunta.
“Buonasera Jonathan, eu chamo-me Francesco.”
Volto-me para o meu lado direito e observo um rapaz magro e baixo de
cabelos curtos e pretos, sorridente, com uma pronúncia italiana.
“Mas tu eras o motorista que me levou a Vitoria street!”
Fico tão admirado e absorto com o que vejo, que quem me
presenciasse naquele momento, diria que eu estava a ver pela primeira
vez na vida.
“Foi difícil localizar-te, eu chamo-me Jaimie.”
Voltando-me para a esquerda, observo um rapaz alto, com óculos e
postura elegante, falando com muita eloquência.
“Eu sou Bland.”
Sem muitas apresentações, surge atrás de mim uma personagem
negra de média estatura mas com todos os músculos que a sua
camisa meia cava deixava transparecer, completamente bem
delineados. Parecia estar perante a presença de um poderoso touro
em versão humana.
A sua cara não me era estranha, concluindo que o haveria visto em
qualquer lugar. Mesmo admirado com o que vejo, ouso perguntar-lhe
se ele alguma vez me viu.
“Eu tenho a certeza que já te vi em algum lugar Bland?”
“Lembras-te do cego que estava sentado no chão no túnel
subterrâneo?” Não foi preciso uma resposta para satisfazer a minha
pergunta. O enigma estava desmascarado.
“Possivelmente estarás a pensar onde e como vieste cá parar. Já
deves entender que tu não te encontras no mundo real, mas sim
num...'
“Sonho.” Respondo eu.
Volton sorri com a sinceridade da minha resposta.
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“Um sonho não é a palavra correcta pois, se assim fosse, nós não
poderíamos participar dele.” Voltando as costas, ele continua:
“Bem-vindo ao lugar mais difícil de se alcançar, onde qualquer ser
humano ansiaria chegar e caminhar. O lugar onde todos os planos são
revelados, onde se encontra o verdadeiro génesis de tudo o que existe
no mundo real.”
Completamente confuso pergunto:
“Mas, onde é que eu estou afinal?”
Piscando o olho, e acenando com a mão, Volton responde-me:
“Levanta-te e anda comigo. Quero te mostrar uma coisa.”
Levanto-me da maca onde estava sentado e, seguindo Volton, dirijo-
me a uma cortina negra que envolve todo aquele espaço.
Volton abre a fissura da cortina e convida-me a sair daquelas trevas
intermináveis.
Quando ultrapasso aquela barreira, a claridade e tão forte que eu mal
consigo enxergar o que me rodeia. A medida que os meus olhos se
vão habituando a luz, começo a discernir o ambiente em meu redor.
Encontro-me num amplo espaço, semelhante a um grande escritório
com paredes em pinho contraplacado, sem qualquer móvel ou livro
nele. Á minha frente, um grande vidro panorâmico deixa aquela
gloriosa claridade penetrar em todo aquele espaço. Volton passa
à minha frente e dirige-se à grande janela. Com o seu físico robusto,
corpo erecto e as duas mãos atrás das costas, Volton assemelha-se a
uma águia que observa o mundo do topo do desfiladeiro. Aproximo-me
dele e observo o que se passa por entre o grande vidro.
“Consegues entender o que vês?” Pergunta-me seriamente.
Faço um esforço para entender o que está errado com o que vejo,
pois, parece-me tudo normal.
“Vejo automóveis, altos edifícios e um grande número de pessoas que
percorrem as ruas. Mas nada e real, e tudo fruto da minha
90
imaginação.”
“Achas que e apenas fruto da tua imaginação?” Virando-se para mim,
ele continua:
“Já alguma vez sonhaste com alguém conhecido que, na mesma
noite, teve o mesmo sonho que tu?”
“Certa noite, sonhei ter pisado uma senhora que eu conheço e ela, no
dia seguinte, contou-me o mesmo sonho, exactamente igual ao meu!”
Respondo admirado com o que acabo de descobrir.
Sorrindo, Volton pergunta:
“Então Jonathan, ainda acreditas que as pessoas lá em baixo são
meramente fruto da tua imaginação?”
Estupefacto com aquela revelação, não podia acreditar naquilo que
ouvia, ou antes, não queria acreditar.
“Tudo o que se passa no mundo real tem um começo aqui. É aqui, no
teu subconsciente, que recebes instruções sobre o que fazer no mundo
real.” Responde Volton com um ar sério, de quem revela um segredo
sagrado.
“Mas, o que é o subconsciente e como recebem tais pessoas essas
instruções?” As minhas perguntas afluem como um grande rio saindo
de uma pequena rocha.
Jaimie entrevem no diálogo ao observar a minha curiosidade sempre
crescente.
“Jonathan, o subconsciente refere-se ao teu sono. Quando dormes, o
teu cérebro passa por um processo regenerativo, mas não só. É o
momento em que e que ele atinge o “fundo” ou seja, conecta-se a este
mundo. Aqui, recebes ordens e informações do que fazer quando
despertares.”
“Mas, que tipo de informações são e de onde vêem?”
Volton não tira os olhos da multidão lá em baixo e, com as mãos ainda
atrás das costas, responde-me seriamente:
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“Rene Descartes, brilhante matemático, uma luz iluminadora que
brilhou neste mundo das trevas da ignorância. Sabes onde ele obteve
a inspiração para a sua maior obra de arte?”
E Friedrich August Kekule. Quem o orientou na descoberta da formula
do benzeno?
Thomas Edison, Miguel Ângelo e tantos outros, onde pensas tu que
tais obtiveram a inspiração para as suas grandes obras?”
Todos a minha volta estão de braços cruzados, esperando
atentamente uma resposta da minha parte, sabendo de antemão, que
nada de significante sairá.
Por essa mesma razão, a minha própria ignorância só me autoriza a
estar calado e a esperar pela revelação que tanto me intriga.
“Assim como todos os planetas do sistema solar giram em torno do
sol, toda a mente humana gira em torno de quem a molda.”
Estupefacto com o mistério envolvente, encontro a coragem para
proferir a grande questão:
“Mas, quem esta por detrás de tudo isto?”
Volton vira-se para mim e, num tom de satisfação, responde-me:
“Vem comigo e encontraras a resposta.”
Volton dirige-se para a única porta existente naquela ampla sala. Sem
hesitar, sigo-o de perto os seus calmos mas íntegros passos.
Jaimie faz um sinal a Volton. Apenas reconheço que é um sinal de
preocupação. No entanto, ao cruzar-se com ele e de olhos postos nos
seus passos, somente ergue a palma da mão esquerda, como quem
não necessita de nada de nada. Apenas eu e Volton saímos daquele
lugar, desaguando num estreito e longo corredor. Viramos a direita e
deparamo-nos com uma grande porta cinzenta de um elevador. Volton
carrega no botão e aguarda a sua chegada, sempre com a sua postura
erecta, como a coluna de um grande templo e as suas habituais mãos
atrás das costas. Passados alguns instantes, o elevador chega e
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Volton da o primeiro passo. Eu entro imediatamente. O elevador
começa a subir sem que botão algum seja premido. Cada vez mais se
torna difícil esconder o meu estado de pura e crescente ansiedade.
Dentro daquela caixa metálica que nos eleva para um sítio
desconhecido, apenas reside um pesado e sombrio silencio.
Passados longos segundos, Volton volta-se de costas para a porta. O
elevador para e uma misteriosa porta atrás de mim abre-se. Volto-me e
observo Volton a sair por ela, como quem já tomara conhecimento de
que aquilo ocorreria. Antes de segui-lo, olho para a anterior porta que
abriu do elevador. Sinto um leve arrepio seguido de um aumento do
bater do coração com o que observo. Colocando as mãos na antiga
porta, observo que o espaçamento que divide as duas pequenas
portas amovíveis deixou de existir. Examinando o sucedido, o claro e
arrepiante resultado falam em uníssono. Nunca existiu ali uma porta.
Foi como se elas fossem transformadas em parede. Ao observar
Volton a distanciar-se de mim, desisto da minha investigação e dirijo-
me apressadamente a ele. O elevador desagua num enorme átrio com
o pavimento composto unicamente por mármore branco. Alguns sofás
e vasos enchem aquele enorme espaço e pessoas bem vestidas
percorrem aquela área com alguma pressa. Bem atrás de Volton,
apercebo-me que algo não bate certo. As minhas dúvidas finalmente
se consolidam quando Volton atravessa uma grande porta de vidro
automática. Diante de mim, deparo-me com uma avenida cheia de
gente e de automóveis. Mas como seria possível? Afinal, o elevador
em que nós entramos subira alguns andares! Como poderíamos estar
no rés-do-chão? Evito questionar seja o que for, as perguntas ficarão
para o fim, quando Volton me revelar o segredo por detrás de tudo isto.
Volton cruza o passeio e posiciona-se na fronteira entre o mesmo e a
estrada. Com as mãos sempre atrás das costas, Volton olha
atentamente para cima. Os raios de sol que rompem as pesadas
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nuvens de tempestade impedem-me de observar o centro da atenção
de Volton. Dirijo-me para o seu lado direito e tento, com muito
sacrifício, observar aquilo que absorve toda a sua atenção.
Gradualmente, a minha vista me vai permitindo observar o que esta
escondido por detrás desta cortina de luz.
“Não pode ser!” Exclamo ao contemplar o que vejo.
O gigantesco edifício a minha frente tinha duas grandes iniciais, A e T.
Não é a primeira vez que eu passo por aqui, fazendo com que as más
recordações, impulsionam o meu coração a bater mais forte ainda.
Mas, o que ele quer deste malévolo e perigoso sítio? Será que ele não
soube o que se passou aqui?
Gostava de lhe ter proferido tais perguntas mas, no momento em que
penso faze-las, Volton inicia a sua travessia naquela cruel e
extremamente movimentada avenida.
Volton atravessa a estrada com o olhar fixo no edifício, sem desviar a
mínima atenção que seja nos automóveis que por ele passam a alta
velocidade.
Eu, aflito, estendo a mão, como quem pretende salvar uma pessoa de
uma calamidade, mas em vão. Volton prossegue calmamente os seus
passos. Os automóveis flúem normalmente, como se ninguém
cruzasse aquela avenida. Ninguém buzina ou abranda, todos os
condutores seguem o seu caminho com toda a normalidade como se
ser algum ali estivesse.
Fico confuso e sem entender minimamente aquela visão. Volton
atravessava as movimentadíssimas seis faixas da avenida como se
tráfego algum ali existisse. Era como andar pela chuva, num turbulento
dia de tempestade, sem que uma única gota o atingisse.
Parando de hesitar, ganho coragem e tento efectuar a mesma proeza.
Mas, demoro muito tempo a dar o primeiro passo pois, os veículos
seguem colados uns aos outros. Aproveitando um brevíssimo espaço,
94
lanço-me a estrada. O primeiro condutor trava loucamente para evitar o
pior. Em pânico, atravesso a outra faixa. Outro condutor trava e buzina
furioso. Aflito, espero por um espaço que me permita passar para a
terceira faixa para evitar de ser atropelado por aquele que circula na
segunda. Evitando o pior por apenas milésimos de segundos, salto
para a terceira faixa de rodagem e atinjo vitoriosamente o meio da
avenida. Respiro de alívio por me encontrar naquela linha contínua,
aquele pequeno refúgio.
Mas a travessia ainda não terminou. Faltam ainda mais três faixas,
agora, no sentido inverso. Respiro fundo, ganho coragem e lanço-me
na primeira. Para não me atropelar, o veículo que circula na mesma
desvia-se de mim e embate no carro ao lado. Antes de ser
arremessado por dois veículos descontrolados salto para a última
faixa, da qual, não sou atingido por brevíssimos segundos de tempo
por um camião.
Levanto-me do chão e ainda com as pernas a tremer da grande carga
de adrenalina libertada no meu sangue, sacudo o meu casaco e as
calcas do pó cinzento que jaz no passeio.
Volton não tira os olhos daquelas grandes iniciais e eu não ouso
perguntar porquê. Aproximo-me dele, sempre curioso do próximo
passo que ele tomará. Volton vira a face para mim e pergunta-me
como seu ar sério:
“Jonathan, estas preparado?”
“Com certeza Volton.” Não queria dar esta resposta, mas antes,
gostaria de lhe ter perguntado o que realmente estamos a fazer.
Dito isto, Volton segue em frente por entre a grande porta de vidro.
Dirigimo-nos pelo grande átrio, sem que segurança algum empeça a
nossa passagem. Não diferiu muito da outra vez que aqui me
encontrei.
Volton dirige-se a porta do elevador e, premindo o botão do mesmo,
95
aguarda a sua chegada com as mãos atrás das costas. Quem o visse
naquela pose iria denomina-lo como sendo um dos directores ou
gerentes daqueles escritórios. O elevador por fim chega e abre as suas
duas portas metalizadas. Volton entra e pressiona o botão trigésimo
quarto. Após a minha entrada, o elevador inicia sua vertiginosa subida
até ao temível andar. Neste curto momento, tudo passa pela nossa
mente, como se as memórias existentes na minha cabeça rolassem
bem na minha frente. Esse é o momento em que adquirimos a
capacidade da presciência e probabilidade, onde o futuro deixa de ser
incerto para entrar num estado de previsível.
O elevador abranda suavemente até imobilizar-se por completo.
As portas abrem-se e Volton avança calmamente, mas, ao mesmo
tempo, com a cautela da mais astuta serpente. O seu ar sério e
determinado, mistura-se com o seu olhar meticuloso e sempre
desconfiado de tudo o que o rodeia. Caminhamos pelo meio das
secretarias e funcionários sem sermos vistos, como se o nosso corpo
fosse apenas ar.
Dirigimo-nos até ao grande escritório onde o invejável arquitecto
trabalha. Ao chegar ao grande vidro, Volton para e observa-o
atentamente.
Desta vez, tomo coragem suficiente e não hesito em fazer a grande e
misteriosa pergunta:
“Volton, porque estamos aqui, no mesmo sitio da outra vez?”
Volton cruza os braços e fixando o seu olhar no jovem arquitecto,
responde-me com uma pergunta:
“Qual era a tua perspectiva referente ao teu futuro?”
“Porque perguntas isso?” Pergunto-lhe intrigado com as suas
anteriores palavras, que mais pareciam não baterem certo com a
realidade que procurava.
“O que gostarias de fazer a nível profissional?” Repete Volton em
96
busca de um ponto de apoio.
“Aquilo que eu mais gostava de fazer era exactamente aquilo que este
jovem faz, ser um arquitecto.”
“O que te fez mudar de ideias?” Pergunta Volton.
“Nada me fez mudar de ideias, apenas não tive a sorte e o apoio
necessário para frequentar a universidade. Quem me dera que tudo
tivesse corrido bem.”
Volton sorri, não com um sorriso de compreensão, mas com um sorriso
de quem sabe algo de importante, sem deixar de reconhecer a
ignorância que me domina.
“Sorte Jonathan? A sorte não existe. As leis do mundo são ditadas no
domínio deste profundo mundo.”
“Como assim Volton?” Pergunto-lhe extremamente intrigado.
“Ninguém obtêm a “sorte” como tu lhe chamas. Ela é determinada ao
seu correspondente. Ninguém faz ou descobre nada da sua própria
iniciativa, mas sim, e movido por ele a fazer.” Respondendo tais
confusas palavras, Volton vira a sua face para mim e responde-me:
“Nada acontece por acaso.”
“O que queres dizer com isso.” Pergunto-lhe ainda mais intrigado.
“Tudo neste universo segue uma ordem lógica comandado pelo
cérebro principal. É ele quem designa os que ascendem e os que
devem ser rebaixados, e ele quem designa os génios e afortunados,
quem deve prosseguir no rumo da história humana, dignificando-a e
zelando-a pela sua sobrevivência. Mas é ele quem destrói e inutiliza os
renegados, como se eles fossem escumalha imprestável. A isto, o
grande senhor deste sistema, denomina de equilíbrio universal, a ideia
perfeita, o plano responsável pela fluidez da sempre eterna
humanidade.”
“Mas quem e ele? De quem estás a falar?” Pergunto avidamente em
busca de uma resposta.
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Voltando-se para o jovem uma vez mais, Volton responde:
“Jonathan, aquele posto que aquele jovem tem, pelo rumo natural da
vida, não seria o dele mas sim teu.”
“O quê? Queres dizer que ele tomou o meu lugar?” Pergunto com
olhos de quem começa a encaixar o puzzle.
“Ele não tomou o teu lugar, mas sim, foi determinado a tê-lo por ele.”
As perguntas simplesmente atropelam-se umas as outras no meu
cérebro, querendo sair todas ao mesmo tempo.
“Mas, quem é ele afinal?”
Volton suspira e responde-me:
“Ele é quem designa o rumo da humanidade, quem determina os
vencedores dos vencidos, quem eleva ou rebaixa quem quer que seja.
Ele é o moldador de toda a mente humana.”
Fico estupefacto com esta revelação, que me torna incrédulo em tudo
o que acredito. O que Volton acaba de dizer é que, o ser humano não
e livre, não possui forca para escolher o seu próprio caminho, pior de
tudo, as escolhas individuais que influem na vida de cada ser humano,
não são nem mais nem menos que ordens premeditadas.
“Mas isso é injusto. Onde se pode encontra-lo?”
“Dificilmente o encontraras. Passei anos a tentar encontrar uma
pequena pista que fosse, que me conduzisse até ele, mas nada. Não
pude dar a humanidade a libertação que ela tanto necessita.”
“Mas se as informações são dadas ao receptor, não poderemos
localizar o emissor e assim, a sua origem?” Pergunto-lhe seriamente,
tentando começar por uma ponta daquele enigma.
“Existe uma informação que descodificamos a algum tempo. Ela
revela que o fim desta era opressiva e a posterior prometida libertação
da humanidade estará próxima.” Informa Volton.
“Mas, que tipo de informação é?”
Olhando para ambos os lados e receando a nossa segurança, ele
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responde:
“Explicar-te-ei tudo, mas não aqui. Vamos para um sítio mais
sossegado.”
Eu e Volton abandonamos em passo apressado aquele complexo de
escritórios. Descemos no elevador até ao parque subterrâneo. O
silêncio impera uma vez mais. É difícil, ou até mesmo impossível
confiar em quer que seja.
Atingindo o -3 o elevador abranda e para. As portas abrem-se, inala-se
o cheiro característico do betão, com uma brisa fria que percorre o
nosso corpo. O parque subterrâneo esta pouco iluminado, e são raros
os automóveis que ali se encontram.
Apenas se ouve o som dos nossos passos e o barulho do sistema de
ventilação.
A determinada altura, Volton para e olha para o relógio. Ouço uma
porta de um automóvel a bater no escuro de um ângulo mal iluminado
do parque. Escuto passos de pelo menos duas pessoas a se
aproximarem. Volton não tira os olhos do relógio.
Os passos intensificam-se, sem que eu consiga observar alguém.
Nesse momento, Volton olha-me com um ar muito sério, como se os
seus olhos tentassem dizer-me algo, mas numa língua estrangeira.
Fico sem entender o que se está a passar e, o nervoso outrora
pequeno, converte-se numa convulsão entre medo e desconfiança.
Nesse preciso momento, ouço um som de uma carrinha que, pelo
ruído dos pneus no cimento liso, desloca-se a grande velocidade.
“Volton, o que é que se passa?” Pergunto-lhe temerosamente
desconfiado, preparando-me mentalmente para um possível ataque.
Ao ouvir o som emitido pelo veículo, Volton vira a face para a origem
do ruído.
Saindo por entre os pilares de betão, um furgão azul-escuro
metalizado, rompe as trevas daquele lugar. Aproxima-se rapidamente
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de nós, como se fossemos um alvo.
Instintivamente, coloco os meus braços em volta da minha face
enquanto que Volton observa serenamente o desenrolar do cenário. A
poucos metros de nos, antes do possível embate, o furgão trava
bruscamente virando-se lateralmente.
O coração bate forte, muito mais ainda quando a porta lateral do
veículo se abre violentamente. Observo com atenção o que poderá sair
daquele veículo.
“Entrai rápido!” É Bland que pronuncia tais ordens.
“Que alivio que me dás!” Foi como que uma pesada carga me saísse
dos ombros.
“Mesmo a tempo rapaz!” Exclama Volton.
Entramos rapidamente no furgão e partimos a toda a velocidade.
“Então, conseguiram o que queriam?” Pergunta Jaimie ao volante,
sem tirar os olhos da estrada.
“Leva o seu tempo, meu amigo, leva o seu tempo para saciar toda a
curiosidade.” Diz Volton com o seu característico tom sério.
“Jonathan, não te apresses. Terás a resposta ás muitas perguntas que
possuis. O mesmo se passou comigo e com todos nós.” Responde
Sophie, desejando sempre ajudar com toda a compreensão do mundo.
A minha mente está confusa de tantas perguntas que afluem ao
mesmo tempo, questões que não encaixam umas nas outras. Mas algo
de positivo já aconteceu. Pelo menos, já é possível começar por uma
ponta no que respeita a decifrar esta enigmática situação.
O furgão distancia-se do problemático centro da cidade, para entrar
num pequeno subúrbio.
O anterior azul límpido do céu dá lugar a um cinza carregado e
sombrio. Jaimie conduz o furgão para as traseiras dos blocos
residenciais.
A medida que avançamos pelo beco, observo os edifícios de três
100
andares em tijolo vermelho, típico de uma zona da classe média-baixa.
A medida que avançamos, ouço os pneus a atravessarem poças de
água, enquanto que, dentro do furgão, o silêncio é de ouro e a
atenção, tão valiosa como diamante.
Por fim, o furgão para e todos se evadem dele. Está
desagradavelmente frio, o suficiente para tornar as ruas e passeios
desertos. Apenas as varandas possuem vida com as inúmeras roupas
multicolores que se abanam ao sabor do vento.
Enquanto Jaimie tranca o furgão, Volton tira uma chave do bolso e
abre uma estreita porta vermelho-púrpura em alumínio. Um a um
entramos por ela seguindo-o de perto. Após percorrer um corredor mal
iluminado, iniciamos a subida por umas escadas em tijoleira laranja
escuro. Á frente vai Volton, Sophie segue atrás de mim e, por entre o
corrimão verde-salsa, observo Francesco, Bland e Jaimie a iniciarem a
subida. As paredes brancas amareladas falam por nós os seis com o
eco de cada passo dado.
Após atingirmos o segundo andar, Volton vira a esquerda e tenta abrir
a porta a sua frente. Põe a mão no bolso e retira outra chave. Aberta a
porta, todos entramos para dentro e Jaimie, sendo o último, fecha-a
com o trinque metálico.
“Bem-vindo a nossa base Jonathan?”
Não era um sítio muito aprazível mas, era capaz de sentir ali uma
espécie de sensação de segurança. As paredes são brancas e o chão
é revestido de alcatifa castanho-claro. Não existem móveis nem
mesmo cozinha. Apenas existe uma secretaria em metal e algumas
estantes carregadas de livros e folhas soltas. Todas as janelas estão
fechadas e a luz natural do dia, apenas ilumina um dos
compartimentos graças a uma clarabóia. Todos parecem tomar a sua
posição naquele pequeno escritório, nem que seja, apenas encostar-se
a parede.
101
Jaimie senta-se na secretaria e liga o computador no meio de um
espaço repleto de papéis e material electrónico.
“É aqui que tudo e planeado ao mínimo detalhe.” Diz Volton.
“Á mais de dois anos que tentamos descobrir a localização do Oleiro,
mas ate agora foi em vão.” Comenta Francesco, com um ar cansado.
“O Oleiro? Quem e ele?” Pergunto com admiração ao ouvir
semelhante nome.
“Nos chamamos ao ser que controla e molda as mentes humanas de
Oleiro, pelo simples facto de que é ele quem designa a função de cada
ser humano. É ele que molda as mentes segundo o seu desejo.”
Responde Volton.
“Mas existe algum meio de localizar e neutralizar o seu poder?”
Pergunto na esperança de obter alguma resposta.
“Nada é impossível meu caro amigo, especialmente neste mundo.”
Responde Jaimie concentrado na tela do monitor.
“Existe um pequeno manuscrito que indicaria a presença de sete
mentes no sub mundo. As sete mentes formariam a chave que abriria a
ultima porta no temível juízo final.” Responde Sophie com viva
esperança.
“Mas, infelizmente, tal não se pode concretizar.” Contradiz Volton com
um pesado tom de lamento.
“Mas porque não se pode concretizar?” Pergunto.
“Lembras-te daquele jovem loiro que se encontrou contigo no edifício
onde te levei?” Ele era o Max, bravo soldado, sempre arriscando a sua
presença em busca daquilo que todos nós procuramos alcançar.
Infelizmente, não sobreviveu ao ataque inesperado. Com a sua perda,
o número de mentes reduziu-se a seis, número imperfeito, incapaz de
abrir a grande porta.”
“Mas tem de haver uma solução, isto não deve acabar assim!”
Respondo angustiosamente, como quem procura uma moeda caída no
102
leito de um grande rio.”
“Pode ser que sim mas, a cada dia que passa, os planos perdem-se
na bruma do mistério.” Dramatiza Francesco.
Olho fixamente para o chão, como se ele me estivesse a dar alguma
ideia, ou a recordar um aspecto importante vivido por mim.
De repente, algo me vem a mente como um relâmpago.
“Eu lembro-me de qualquer coisa que ele me disse mas, não consigo
recordar na sua plenitude.”
Enquanto me esforço em reviver aquele trágico episodio, Volton dirige
toda a sua atenção para mim.
“Algo que se passou antes de o Max ser apanhado?”
“Sim, ele falou com respeito a algo, semelhante a um pedido.”
“Por favor Jonathan, faz um esforço para te lembrares!” Implora
Sophie, como se estivesse a fazer uma prece a um santo qualquer.
Nesse preciso momento, uma luz brilha na minha mente.
“Já me lembro Volton! O Max pediu-me algo. Ele disse “Liberta-nos”.
Se ele disse isso, sabendo perfeitamente que não se iria safar, então é
porque não são necessárias as sete mentes na finalização da profecia,
mas sim, no seu inicio!” Respondo de forma tão entusiástica que a
minha alegria nem mesmo cabe no meu próprio corpo.
Silencioso, Jaimie vira o seu olhar sério para Volton.
Este, por sua vez, com a mão no queixo, apenas pensa e repensa no
que eu disse. Ao princípio parece incrédulo com a minha descoberta.
Mas, depois de reflectir bem, ele sorri e diz-me entusiasticamente:
“Afinal, ainda existe esperança para o cumprimento final da profecias.”
Tudo parecia agora começar-se a encaixar no devido lugar, mas,
quanto mais tento saber, mais duvidas afloram na minha mente. Ainda
existem muitas pecas perdidas deste puzzle que necessitam serem
achadas e encaixadas no devido lugar.
“Volton, acho que podemos avançar com ele.” Diz Jaimie confiante no
103
próximo passo a tomar.
Volton não responde, apenas pensa prudentemente em todos os riscos
envolventes.
Decidindo algo, Volton caminha lentamente para fora daquele
compartimento e, de costas para nos, diz-me em um tom de voz baixa:
“Vem comigo Jonathan! A grande revelação está prestes a iniciar-se.”
Sem qualquer hesitação, avanço na sua direcção.
“Volton, queres que te abra a porta?”Pergunta Jaimie sentado na
cadeira da secretaria, com a mão direita apoiada em cima da perna,
como quem aguarda uma ordem importante.
“Abre o mundo seis para nos os dois.” Ordena Volton.
Mas, o que e o mundo seis? Que tipo de revelação terei eu que
conhecer? Estas são as novas perguntas que eu adiciono as
numerosas questões que já rolam na minha mente. A capacidade de
reter mais enigmas no meu cérebro sem obter directamente a resposta
a tantos porquês, está atingir o seu limite. A sensação de cabeça
pesada aumenta a cada passo que floresce um novo enigma.
A carga e tão forte que eu paro de seguir Volton por uns instantes.
Ponho a mão na cabeça tentando inutilmente neutralizar a dor.
“O que tens, Jonathan?” Pergunta Sophie, preocupada com o meu
estado que se agrava a cada segundo.
Volton ouve estas palavras e para. Olha para trás e, sem perguntar o
porque, decide retornar até mim.
A minha cabeça parece pesar uma tonelada e por mais que tente
prosseguir caminho, o peso vai aumentando.
Jaimie levanta-se para ceder-me a sua cadeira.
“O que estas a sentir, Jonathan?” Pergunta Francesco sem saber mais
o que fazer.
A minha visão parece falhar por segundos, os meus músculos
começam a perder forca e, se não fosse Bland a segurar-me naquele
104
instante, já teria caído no chão.
“Estou a ficar bloqueado das pernas e dos braços!” Exclamo, na
tentativa de poder descrever aquilo que sinto.
Começo a ouvir um som ao longe. Embora muito baixo e abafado, a
sua intermitência faz-me concentrar a pouca atenção que o meu
cérebro disponibiliza na sua origem. O ruído intermitente aumenta a
cada segundo que passa ao ponto de se tornar incomodativo.
Todos naquela pequena sala concentram a sua atenção em tentar
descobrir o problema existente.
“Já te sentes melhor Jonathan?” Pergunta Sophie muito calmamente.
“Não! Está cada vez pior. Estou a ouvir um enorme ruído intermitente.
Vocês não o ouvem também?”
Todos olham uns para os outros com um ar enigmático de quem não
entende o que se passa.
“Não Jonathan! Não ouvimos nada. Que tipo de barulho tu estas a
ouvir?”
Apoiando a cabeça na palma da mão direita, num esforço infrutífero de
acalmar a dor, respondo:
“E um barulho intermitente, não sei explicar o que é, mas...' Todos se
debruçam em mim no momento em que faço esta pausa, esperando
alguma nova revelação. Concentro-me cada vez mais no que ouço ao
ponto do meu cérebro conseguir descodificar o ruído. Iluminado pela
razão, respondo-lhes:
“É como o ruído de um alarme que aumenta a cada segundo.”
Dito estas palavras, Jaimie rapidamente olha para Volton como se lhe
fizesse a pergunta “estás a pensar no mesmo que eu?” Volton, ao ouvir
a minha resposta, clama alto:
“Vamos perde-lo! Temos que o tirar daqui!”
Bland agarra o meu corpo moribundo, como quem carrega um
pequeníssimo saco de areia.
105
“A primeira a esquerda!” Grita Jaimie com os olhos aflitos, postos no
ecrã.
Todos correm junto a Bland segundo a ordem dada por Jaimie, como
se de uma procissão apressada se tratasse.
Percorrendo o pequeno corredor, viramos a esquerda. O
compartimento esta escuro, embora não consiga apurar se o é
realmente assim, ou se a minha visão falhara por completo.
Francesco corre a nossa frente e, retirando uma grande cortina negra
pendente sobre a parede, abre a porta que lá se encontra escondida.
Bland aproxima-se da porta e deposita-me no seu interior escuro. Eu
encontro-me estendido no solo já sem qualquer reacção, como se de
um morto me tratasse.
“Rápido Francesco. Fecha-a!” Ordena Sophie.
Rapidamente, a porta se fecha e eu...
Acordo.
106
Capitulo 7
Ainda com a visão desfocada, volto-me para o meu lado direito,
tentando descobrir a origem daquele barulho infernal.
É o alarme que esta a tocar. Levanto-me do sofá, e caminho
lentamente ate ao quarto. A luz do candeeiro ainda está acesa de
ontem à noite, luz essa, abafada pelos raios do dia que penetram pelas
persianas Desligo o aparelho e respiro fundo. Afinal, o ruído não era
nada de grave, como pensava. Giro o despertador para mim e
observando melhor as horas nele.
“Já são oito e meia da manhã!” Exclamo incrédulo com o que vejo.
Estou muitíssimo atrasado para o trabalho.
Não preciso de me vestir pois, ainda tenho vestida a roupa de ontem.
Lavo a cara, agarro o casaco e corro para a garagem. Salto para cima
da bicicleta e inicio a minha maratona olímpica. Com um inicio de uma
manha assim, e imaginando a reacção do meu patrão ao meu atraso,
não obtenho tempo nem energias para pensar no que ocorreu esta
noite.
Percorrendo o final da última rua, consigo observar a loja com as suas
portas já abertas. Encosto abruptamente a minha bicicleta e salto para
dentro da loja.
“Então Jonathan! Hoje a cama soube-te bem não foi?” Pergunta
Robert num tom de brincadeira amigável, enquanto limpa com um
pano um casquilho galvanizado.
Completamente ofegante, respondo:
“Nem sequer a cama fui Sr. Robert! O cansaço é tanto que nem tive
forcas para me deitar!”
107
“Estes jovens de hoje em dia já não são como os de antigamente.
Parece que os tempos mudaram.” Comenta Robert já de costas para
mim, andando em direcção ao seu posto no armazém.
Olho em meu torno e, vendo as coisas tal e qual como deixei ontem,
faço uma pergunta de escrutínio:
“Sr. Robert, sabe se o chefe já chegou?”
Ouço a sua resposta ao longe, abafada pelas grossas paredes de
granito rústico.
“Ainda não chegou, nem deve chegar antes das dez e um quarto.”
Respiro fundo de alívio e contentamento. Paro um pouco e tento
reorganizar as minhas ideias, com o objectivo de pô-las em pratica
antes da chegada do chefe. Inicio o trabalho por actualizar o livro das
facturas que se encontra em cima do balcão. Abro o livro e assino a
data de hoje. Olho para o número da factura, 47 e, nesse momento,
vários flashes da experiência vivida esta noite me vêem a mente.
Obrigo a minha cabeça a manter-se concentrada naquilo que faz. Pego
numa caixa de acessórios e abre uma pequena porta do armário em
madeira. Observando o escuro dentro dela e vem-me a mente a porta
negra onde entrei naquele sonho.
Mas quem são aquelas pessoas? Porque aparecem sempre em todos
os meus sonhos? Porque que quando entro numa porta acordo
subitamente? Quem será o Oleiro que molda as mentes? Porque fui
determinado a um futuro diferente do que desejava? O que e o mundo
seis?
Muitas perguntas no ar sem uma única pista por onde começar, muitas
questões em aberto sem que haja alguém capaz de sacia-las neste
mundo real.
A espera por elas resume-se a 24 horas de distância, se realmente
voltar-se repetir.
“Bom dia Jonathan!” Saúda-me Mike com uma feição alegre, portando
108
um jornal bem enrolado debaixo do braço direito.
Fecho a porta do armário e volto-me para ele.
“Bons olhos te vejam Mike! Já algum tempo que não te via. Como tens
andado?”
Encolhendo os braços em sinal de quem se contenta com pouco,
responde-me:
“Mais ou menos, consoante os ditames da vida.”
“Já conseguiste alguma resposta ao teu pedido de trabalho?”
Pergunto-lhe com alguma curiosidade.
“As companhias de seguros não me deram mais nenhuma resposta,
apenas me dizem para esperar. Mas como já te disse, esperar e um
luxo caro demais para mim. Por isso, a semana passada pedi trabalho
à companhia de construção civil do Eng. Fred. Ao menos foi rápido,
comecei a trabalhar logo dois dias depois. Não é o trabalho que
sonhava em realizar mas, é melhor do que nada.”
Ao ouvir estas palavras, a minha pele arrepia-se e o meu coração
deixa-se de ouvir bater. A minha mente fica possuída com o sonho que
tive a uns meses atrás, onde havia visto Mike a trabalhar na
construção civil, algo para mim imaginável. Mas como foi possível tal
premeditação? Como foi possível, com tanto tempo de antecedência,
prever eventos como a construção do shopping nesta cidade?
Olhando fixamente para mim, como quem tenta ler os meus
pensamentos, Mike pergunta:
“Estas a sentir-te bem, Jonathan?”
Regressando rapidamente a Terra, como quem acorda de um sonho,
respondo-lhe:
“Desculpa não ter prestado atenção, estava a pensar em outros
assuntos.”
Mike tira o jornal enrolado debaixo do braço e estende-o com um único
e rápido golpe em cima do balcão. Em seguida, ele prossegue o seu
109
discurso, dizendo:
“Já sabes das novidades que vem no jornal de hoje?”
“Não!” Respondo. “Eu já nem costumo ouvir as notícias frescas logo
de manha, no rádio, como habitualmente tinha.”
“Então, não fazes a mínima ideia de quanto esta cidade vai crescer
em tão pouco tempo.” Responde Mike, solidamente convicto do que
diz. Prosseguindo a sua declaração, ele argumenta:
“Observa o que diz este jornal na página oito.”
Pego no jornal, abro-o na página oito. Leio em voz alta as grandes
letras em negrito.
"Grande ampleamento na zona oeste da cidade. Bem, eu já tinha
tomado conhecimento da construção de um shopping na nossa
pequena localidade mas, não fazia a mínima ideia de quanto poderia
vir a crescer com estes novos projectos que rolam por ai.”
“Por isso Jonathan, tive de aproveitar as raras oportunidades de
emprego que a nossa pequena cidade pode oferecer.”Afirma Mike,
plenamente convicto do destino a ele confiado.
“Fico contente por ver que encontraste uma solução para o teu
problema profissional Mike.”
“Mas é evidente que não pretendo ficar nesta companhia para sempre.
Isto é só para arranjar algum dinheiro para formar a minha futura
empresa.” Esclarece Mike, revelando parte dos seus projectos
pessoais.
“E a tua noiva, encontra-se bem?” Pergunto-lhe.
“Sim Jonathan, encontra-se bem obrigado.”
“Vê lá se não te esqueces do que me prometeste Mike, eu quero um
convite.”
“Já sabes que os meus melhores amigos terão de ir e tu, sempre foste
o melhor deles todos. Por isso, nem sequer precisas de te preocupar.”
Finalizando a sua frase, eu e Mike soltamos uma grande gargalhada,
110
típica de bons amigos de há muito. Mike sempre foi um jovem cheio de
vida, procurando o melhor, mas, habituando-se sempre ao pior. Não
existem muitos amigos como este no mundo.
Olhando para o relógio, Mike exclama:
“Tenho de ir Jonathan! Quero finalizar as obras lá em casa ainda esta
semana.”
“Mas então, não precisas nada da loja?” Pergunto-lhe.
Perto da porta de entrada, sem se imobilizar por um segundo que seja,
Mike responde-me:
“Era só para te dar a novidade.”
Embora Mike seja um amigo de longa data, ele é uma pessoa que
ainda me continua surpreender com a sua positividade. O difícil não e
construir uma vida, mas sim, reconstruir aquilo que nos deitaram a
baixo. Mesmo negando-lhe as oportunidades de sonho que ele tinha,
tal resultado não afectou em nada a sua determinação de lutar por um
futuro melhor, mesmo que isso comporte algo ao qual não se encontre
preparado.
A manha, como já e hábito, vai passando suave e lentamente. O
relógio finalmente marca 12:30, a hora tanto ansiada para me
encontrar com o ser mais precioso deste mundo.
“Vamos ao almoço Jonathan?” Pergunta Robert ao entrar pela porta
que separa o armazém da loja.
“Pode ter toda a certeza que sim Sr. Robert.”
“Então desliga as luzes e fecha a porta da frente, eu saio pela porta do
armazém.” Pronuncia Robert o seu eventual discurso da hora do
almoço, rectificando sempre se tudo se encontra devidamente
encerrado, pois, não é pessoa que goste de ser incomodado na hora
do almoço. Aliás, se o Sr. Robert pudesse interferir no momento em
que Moisés recebeu os mandamentos, eles deixariam de ser 10 e
passariam a ser 11. O ultimo seria "Não me incomodarás". Afinal de
111
contas, ele encontra-se no seu direito de usufruir aquela santa hora.
Quanto a mim, não poderia existir ordem melhor que aquela.
A Jennie espera-me e eu, como cavalheiro, não gosto de fazer uma
dama esperar.
Fecho a porta a chave e apresso o meu passo.
O sol parece não desistir de aquecer este canto da terra, tornando
insuportável sair para o exterior. Vou aproveitando cada pequena
sombra produzida pelas pequenas mas verdejantes árvores que se
encontram pela avenida fora. Enquanto caminho absorvido no que se
passou e se irá passar hoje entre mim e a Jennie, não dou conta da
infindável fita vermelha e branca que demarca todo o lado direito da
avenida. Vou reduzindo o passo a medida que a minha memória
carrega na minha mente as imagens do sonho que tive a uns meses
atrás. Consigo imaginar o tempo de aguaceiro que fazia. Vejo os
prédios que encaixam com precisão em cada esquina da avenida.
As perguntas tornam a dominar a minha mente uma vez mais.
Porque é que tudo o que eu venho a sonhar se cumpre? Será que
tenho a capacidade de prever o futuro No passado não eram raros os
casos de gente que previa o futuro, mas, será que este tipo de
previsão ainda continua actualmente?
“Não pode ser Jonathan! Isso e uma tolice. O acaso e a coincidência
acontecem a qualquer um, a qualquer hora e a qualquer momento.”
Digo em voz alta, tentando mais uma vez, esquecer algo que não
posso negar.
Finalmente, chego ao fim da avenida. Entro na rua transversal à minha
direita que dá acesso directo onde trabalha a Jennie.
A medida que me aproximo da porta, o meu coração palpita de um
misto de alegria e ansiedade. Abro a porta e observo-a ao longe.
Jennie apercebe-se da minha presença e, olhando para a sua
esquerda, sorri ao ver-me chegar. Não quero perturba-la no seu
112
trabalho, por isso, para facilitar o fluxo de gente que entra e sai desta
sala, opto por encontrar um lugar para mim próprio. Consigo encontrar
uma mesa livre bem perto da janela, tal como eu gosto. Não hesito a
tomar posse dela e, rapidamente tomo o lugar. As minhas mãos não
param de se esfregar uma na outra devido ao nervoso miúdo que se
apodera aos poucos da minha pessoa.
Observo a Jennie no fundo da sala, sem ter receio que ela o descubra.
Afinal, o que posso eu perder, quando ela me retribui o olhar com um
belo e doce sorriso?
Ela aproxima-se de mim, bem disposta, mas a disfarçar aquilo que
sente neste preciso momento.
“Olá Jonathan. Hoje chegas-te mais tarde. Aconteceu algum
problema?” Diz Jennie, cheia de vontade de me consolar até a minha
mais ínfima desventura.
“Olá Jennie. Não, está tudo bem obrigado. Eu hoje cheguei mais tarde
porque estive a apreciar as futuras obras que irão ocorrer em breve na
nossa cidade.
“Esta bem, assim tens desculpa.” Diz Jennie, em voz baixa, enquanto
arruma a mesa.
Aquela frase de quem perdoa por parte dela, fez o meu coração
aquecer e palpitar ainda mais. Ela perdoou-me como se eu tivesse o
dever de chegar cedo, só para estar com ela mais tempo.
Não consigo descolar os meus olhos da sua face, enquanto observo
aquele anjo belo, fixar o seu olhar no que esta a fazer.
Por entre os caracóis do seu admirável cabelo castanho, Jennie decide
usar o seu olhar para descobrir onde estarei a olhar.
Nesse momento, o nosso olhar cruza-se, nesse instante, o fogo que já
ardia dentro de nos passou a nos consumir completamente. Ela deixa
de sorrir e a minha expressão torna-se séria. Olha-mos um para o
outro como se, sem usar uma única palavra, proferíssemos o maior e
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mais belo pacto de amor de todo o universo.
“Jennie, mesa três!” Grita alguém do interior da cozinha.
“Tenho de ir.” Diz Jennie, doce e tristemente, como quem tinha
acabado de descoberto um enorme tesouro, unicamente para
abandona-lo.
“Não te preocupes, eu espero aqui por ti.” Digo numa tentativa de a
animar. Ela sorri, mas os seus olhos tristes ainda perguntam "porque
tenho de ir".
O amor e mágico. O medo faz-nos suar, a alegria faz o coração saltar,
a dor faz-nos sentir angustia, a ansiedade torna-nos fracos por dentro,
a felicidade dá alento a nossa alma, a esperança dá forca para
continuar. Amor é uma palavra pequena, mas capaz de conter todas
elas.
Passados breves minutos, Jennie sai da cozinha com algumas bebidas
requisitadas por um cliente qualquer. Após isso, ela dirige-se
finalmente ao lugar onde estou.
Limpando as mãos húmidas ao avental, Jennie pergunta:
“O que vais querer para hoje Jonathan? Será o que eu estou a
pensar?” Pergunta ela, com o seu habitual sorriso de quem sabe muito
bem a resposta que irei dar.
Apenas limito-me a olhar fixamente nos seus olhos, deliciado com
aquela visão. Ela solta um pequeno sorriso e virando as costas, dirige-
se a cozinha para efectuar o pedido.
E bom quando as coisas correm bem, quando tudo flúi em perfeita
harmonia, especialmente, num dos momentos mais importantes da
vida entre dois seres humanos. Ela não tarda a chegar com o pedido,
como se eu fosse um cliente da alta realeza.
“Aqui tens a tua refeição. Espero que gostes.” Diz Jennie.
"Já sabes que gosto Jennie. De ti apenas provêm coisas boas.”
“Ora, deixa-te disso Jonathan.” Replica sorridentemente, enquanto
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que a sua face cora a passos largos.
Primeiro, era a refeição que me conduzia ate aquele sítio, agora,
mesmo que não houvesse refeições, pela Jennie eu iria na mesma.
Finalizando a minha refeição, a Jennie aproxima-se de mim
perguntando:
“Precisas de algo mais?”
“Preciso de ti.” Penso no meu íntimo. Vontade não me faltava para lhe
dar tal resposta mas, não quero choca-la com tanta confiança.
“Estava muito bom Jennie, estava mesmo boa a refeição.”
Jennie espera imóvel a minha frente. Com as palmas das mãos
encaixadas uma na outra. Tal gesto indica-me que ela aguarda algo de
mim, como se eu estivesse em divida para com ela. E realmente era
verdade. Ontem tinha-lhe prometido algo que ela adorava.
“Tens disponibilidade amanhã para vires comigo ver o musical ao
cinema?” Pergunto-lhe.
Os seus olhos verdes e redondos deixam transparecer um brilho
intenso de alegria ao ouvir que não me havia esquecido do que lhe
prometera.
“Sim Jonathan, a que horas nos encontramos amanhã?”
“Podemos nos encontrar as oito horas, em frente a tua casa. O que
achas?”
“Sim, pode ser. Assim tenho bastante tempo para me aprontar.”
Responde Jennie.
“Jennie, mesa cinco!” Grita alguém da cozinha.
“Tenho de ir Jonathan, vejo-te amanhã.
Foi a despedida mais doce que alguém me poderia ter dado. Apenas
consigo suspirar, apenas limito-me a vê-la partir.
Mas não só ela retorna ao seu trabalho, eu também. Olho para o
relógio que possuo no meu braço direito e, após ver as horas, dou
como que um salto da mesa.
115
“Outra vez atrasado, não pode ser!” Apresso o meu passo naquela
sala e, pagando a minha refeição, dirijo-me como um relâmpago para a
porta de saída. Saio por ela e desato a correr como um louco pela
avenida fora. Quem me visse a correr, pensaria que eu tinha assaltado
o banco central, ou então, a fugir do fim do mudo. E na verdade, até
tenho razão pois, aturar o meu patrão não é nada fácil. O fim do mundo
teria medo só de o enfrentar.
Mais uma vez, chego a loja completamente ofegante, suado e sem
conseguir proferir uma palavra. Apenas tinha chegado um minuto
atrasado. Robert, pontual como sempre, já tinha aberto a porta a hora
exacta. Enquanto que, amparo a mão na porta da entrada, tentando
ganhar algum fôlego, Robert, com os braços cruzados, aproxima-se de
mim e diz:
“Tu deves gostar mesmo disto, não é verdade?”
Apenas consigo erguer a cabeça da posição encurvada e transparecer
um sorriso.
“Esta bem, já entendi.” Diz Robert, olhando para a rua, tentando
sempre encontrar algo novo, uma novidade qualquer. Não observando
nada de especial, resolve retornar para dentro.
Eu ergo-me e entro após ele.
“Vai chegar amanha um camião de mercadorias.” Preocupado com tal
notícia que poderá por em causa a noite magica entre mim e a Jennie,
pergunto a Robert mais detalhes com respeito a essa entrega.
“E a que horas chega o camião?”
“Ele vai chegar a meio da tarde, se não houver atrasos, é evidencieis.”
Responde Robert.
Não queria acreditar no que acabara de ouvir! A ida com a Jennie ao
cinema estava comprometida por uns cartões cheios de tralha. A
minha vida estava comprometida pelo capricho do motorista que
decidiu vir aquela hora fazer a entrega. Não queria acreditar no que
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Robert me estava a dizer. Sempre que queremos andar com a vida
para a frente, existe sempre algo invejoso que nos puxa para trás.
“Mas é apenas descarregar a encomenda nada mais. Esvaziamos as
caixas na próxima semana. Ainda temos tempo de sobra para o fazer.”
Informa Robert.
Aquelas palavras fizera-me saltar por dentro de alegria e respirar
profundamente de alívio. Afinal, nada estava perdido. O trabalho
designado para amanha envolve apenas uma a duas horas, nada que
comprometa o meu importantíssimo compromisso.
“Vou voltar para dentro.” Diz Robert. “Tenho uns artigos a numerar
antes da chegada dos próximos.”
Robert dirige-se para o armazém. Quanto a mim, permaneço na minha
posição habitual em frente ao balcão.
E com tudo isto, lá passou a tarde, calma e tranquilamente. O calor
que fazia lá fora diminuiu com o prolongar do dia.
Dirijo-me a porta de entrada para saber com mais pormenores o que lá
se passa. A avenida a esta hora do dia encontra-se sempre na mesma,
deserta. Ela é cruzada apenas por alguns carros e transeuntes que
terminam o seu trabalho e regressam ás suas casas. No horizonte,
bem por detrás das planícies dos campos de cultivo, nuvens negras
ameaçam percorrer toda esta área.
“Bem me parecia que o calor desta tarde não era normal.” Comento o
estado do tempo e a sua previsão com base no dia de hoje.
“Jonathan, hoje vou sair mais cedo. Tenho que deixar alguns papéis
na contabilista. Não te importas de fechar a loja?”Pergunta Robert.
“Não se preocupe! Fique descansado que eu fecho a loja.”
“Já sabes, não te esqueças de...' Neste momento, sabendo de
antemão quais as orientações que ele iria proferir, decido num tom de
graça interferir por ele, dizendo:
“Não te esqueças de desligar a luz, fechar a porta da loja e do
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armazém nas três fechaduras, por os vasos dentro, ligar o alarme e
assim por diante.”
Robert, por uns momentos imóvel com o dedo indicador apontado para
mim, sorri como eu nunca vira alguma vez. Robert e um velhote muito
sério, mas de uma personalidade muito amistosa. O seu aparente ar
rude e desconfiado, é imediatamente eliminado com a sua bondade e
altruísmo. Mas isso, evidentemente, só para quem o conhece bem.
“Eu sei que és capaz Jonathan, tu nunca deixaste esta empresa ficar
mal por um momento que fosse. Por isso, eu confio plenamente em ti.”
Tais palavras fazem-me engrandecer de tal modo, que parece que fico
prestes a explodir no meu interior. Era como se eu tivesse o trabalho
mais importante do mundo e toda a humanidade necessitasse de mim.
A verdade é que não passa de um simples trabalho comum, numa loja
pequena, localizada numa minúscula cidade do interior. Mas que
importa? Quando uma pessoa, que nunca recebe elogios por nada do
que faz, recebe um desta dimensão, engrandece-se sempre.
Finalmente, a hora de fechar a loja chega. Preparo o trabalho para
amanhã e inicio o fecho da loja de forma religiosa.
O dia quente e abafado que se formou no dia de hoje, transformou-se
num final de tarde frio e ventoso. As anteriores nuvens que se
formaram no horizonte cobrem parcialmente o céu desta cidade. E
muito desagradável o vento que bate na cara, como se cumprisse uma
ordem punitiva, com toda a severidade.
Fecho o meu casaco, desdobro o colarinho e estico as mangas para
proteger as mãos do frio que parece cortar a pele.
Lentamente e com alguma dificuldade, dirijo-me para casa. A medida
que me desloco, ouço o vento a zumbir nos meus ouvidos como se me
estivesse a contar algo misterioso. Observo os campos de cultivo e as
árvores que balançam semelhante a ondas de um agitado mar.
O dia escurece rapidamente devido ao mau tempo que se avizinha.
118
Finalmente chego a casa, mesmo a tempo de enfrentar o pior. Abro a
porta da garagem e deixo a minha bicicleta dentro. Tiro o casaco e ligo
a televisão. Enquanto isso, preparo o meu jantar, como habitualmente,
deveria acontecer por norma. Não tarda muito e a chuva começa a
pronunciar-se lentamente, como se fosse tímida. Não existe nada mais
agradável que ouvir a chuva a cair lá fora no conforto do nosso lar.
São oito da noite e o noticiário entra no ar. Admito que estou bastante
desactualizado, pois, já faz algum tempo que não vejo as notícias.
“Esta agendada para este sábado uma manifestação que partirá do
hospital ate a câmara municipal, devido a decisão do Presidente do
concelho de não renovar nem ampliar o sector que suporta os doentes
em estado de coma. Esta decisão irá abalar em muito futuros casos de
saúde, no que respeita nomeadamente, à recuperação dos internados
em estado de coma. O equipamento utilizado pelo hospital é obsoleto,
aumentando assim, o risco de ficarem inutilizáveis. Tal situação
originou um grande protesto e descontentamento com já tomada
decisão da antecipada reforma que os utentes tanto esperam. No
entanto, já está em circulação um baixo assinado, que foi elaborado na
semana passada. Tal baixo assinado já conta com o apoio de mais de
quatro mil utentes. O comité presidencial reunir-se-á hoje de
emergência para resolver este problema.
Mas enquanto o tempo passa, vidas poderão se perder devido a
inexistência de equipamento próprio no hospital.”
“Que escândalo! Como e possível brincarem assim com a vida das
pessoas? Afinal, não pagamos todos impostos? Existe gente que, para
meterem mais dinheiro ao bolso, prejudicam sem qualquer remorso a
vida do próximo.”
Os meus olhos desfocam o ecrã da televisão e a minha mente começa
a se concentrar em pensamentos. Não tarda muito e começo a pensar
na Jennie. Penso como será o dia de amanha e como irá correr. Ao
119
menos, ela ficou contente com o convite que lhe dei. Será que existe
algo que nos possa fazer mais felizes e realizados do que partilhar a
nossa vida com alguém que nos ama?
Neste momento, só tenho vontade de saltar deste sofá e ir ao encontro
dela. O mau tempo, esse até deixaria de existir.
Mas, prefiro esperar pelo tempo certo. A precipitação não leva a lado
nenhum. Quem sabe se ela ainda esta a trabalhar ou a fazer tarefas
pessoais. Não quero ser incomodativo ao ponto de, ser encarado por
ela, como inoportuno e incomodativo.
O que posso fazer neste momento é simplesmente aguardar pelo dia
de amanha.
A noite vai avançando e a chuva não para de cair fortemente.
Sentado no sofá, procuro na televisão algo de interessante.
Por mais que procure, resultado e sempre o mesmo. Não dá nada de
interessante. Aborrecido e cansado, chego a conclusão que o melhor
meio de matar o tempo, é a dormir. A vida as vezes torna-se
aborrecida, especialmente quando estamos sós.
Deito-me e relaxo os músculos cansados. O dia não correu mal mas, a
frustração que a solidão provoca em nós é deveras grande. Viro a
cabeça para o outro lado da e vou pensando em como seria belo se
tivesse a Jennie ao meu lado, sempre ao meu lado.
Sinto a falta dela, da sua maneira de ser, do seu olhar e especialmente
do seu adorável sorriso. Ela e tão importante para mim, que até o meu
próprio sono foge de mim. Voltando a cabeça para o lado esquerdo da
almofada, observo por entre a frincha da porta do quarto, a luz da
cozinha que me esqueci de desligar.
“Que frustração!”
Levanto-me incomodado com a situação pois, se existe coisa que
detesto, é ter que me levantar e interromper o meu descanso.
Caminho em direcção aquela frincha de luz intensa, como se fosse um
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farol a guiar os meus passos nas trevas da noite. Chegando a porta,
tento encontrar o manípulo para a abrir. A primeira tentativa de o
encontrar sai frustrada.
“Sempre esteve aqui, como é que agora não se encontra no mesmo
sitio?” Pergunto-me ao não conseguir localizar o manipulo da porta.
Começo a tactear toda a porta em busca dele. Passado alguns
instantes, consigo finalmente encontrar no meio daquele negrume, o
objecto desejado. Coloco a minha mão no manípulo e sinto uma
sensação estranha. O manipulo esta frio e é redondo, algo que não
corresponde à realidade.
A minha feição de aborrecido converte-se numa de surpreendido e
desconfiado ao sentir algo que me é muitíssimo estranho.
Agarro bem o redondo manípulo e abro lentamente a porta. A claridade
proveniente daquela porta e tão intensa que os meus olhos deixam de
enxergar o que ali se passa.
Lentamente, os meus olhos habituados ao escuro, vão se adaptando a
intensa claridade.
Apenas consigo observar a cor cinzenta do pavimento. Baixo a cabeça
e esfrego os olhos numa tentativa de clarificar a minha visão. Ergo a
cabeça novamente e, sinto uma sensação de arrepio que atravessa
toda a minha espinha.
Ao longe, observo um homem que se encontra em cima de um
pequeno parapeito. Tal homem observa algo em baixo com as mãos
atrás das costas.
“Só podes ser tu outra vez.” Digo estas palavras em tom baixo,
reconhecendo que, tal perfil, só pode pertencer a uma pessoa, Volton.
Caminho em direcção a ele por entre o estalar da minúscula gravilha
cinzenta. Do chão, apenas saem pequenos tubos brancos que
emanam vapor de água seguido por um leve e seco ruído de
exaustores que trabalham sempre ao mesmo ritmo.
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A medida que caminho, os meus olhos vão observando o que se passa
para além daquele parapeito. Começo por ver antenas a emergirem
por todo o lado na minha visão. Seguindo as antenas aparecem
terraços. Quando me encontro apenas a dez metros de Volton, consigo
discernir que aquelas antenas e terraços apenas fazem parte de um
gigantesco mar de arranha-céus que se perdem num horizonte
completamente dourado pelo sol do meio-dia. Nesse preciso momento,
sem olhar para trás, Volton ordena-me:
“Segue-me Jonathan!”
“Mas, para onde, Volton?” E é nesse preciso momento que Volton
salta para o abismo.
“O que é que ele fez?” Pergunto aflito, referente a sua actuação.
Acelero o passo, e, a medida que vou admirando cada vez mais o
mundo lá em baixo, a minha aflição vai perdendo senso. Observo
imóvel e empedernido a queda de Volton. A palavra "queda" também
perde o seu significado ao ver Volton a aterrar suavemente num
terraço de um outro prédio, 50 andares mais abaixo. Volton, ao atingir
aquele patamar, põe as suas mãos atrás das costas e, dando alguns
passos em frente, ergue a cabeça para mim.
“Vem Jonathan.”
Com as minhas mãos naquele pequeno parapeito, tento encontrar uma
segunda opção para cumprir aquela ordem. Os nervos bloqueiam e a
aflição toma conta de mim como um pequeno gato que não consegue
descer uma enorme árvore. Eu bem sei que é um sonho mas, mesmo
assim, a minha mente não me permite tomar uma atitude daquelas,
num mundo que ostenta ser tão real.
“Jonathan, confias em mim ou não?” Insiste Volton.
Ele não me oferece muitas oportunidades, o salto tem de ser dado.
Ponho um pé no parapeito fazendo o meu coração bater fortemente.
Concentro-me no horizonte e ponho o outro pé em posição. Olho para
122
baixo e observo os minúsculos automóveis que enchem as avenidas.
Mas a altitude é tão alta, que o som do extenso tráfego é abafado pelo
ruído dos pequenos exaustores. Saltar ou não saltar, eis a questão. Lá
em baixo encontram-se as respostas, enquanto que cá em cima,
apenas reside a razão de que nada ira acontecer.
Fecho os olhos e penso em tudo o que vi e vivi, como se tratasse de
um regresso ao meu passado, um passado em forma de puzzle, com
um objectivo concreto, mas sem meios de o decifrar.
Abro os olhos e foco a minha atenção em Volton.
Respiro fundo e digo:
“A verdade acima de tudo.”
Com estas palavras, dou um impulso a mim próprio e lanço-me no
abismo.
A adrenalina dispara, o coração bate como nunca. A medida que
desço, sinto o meu corpo a bloquear de pânico. Aproximo-me cada vez
mais de Volton. A velocidade da queda aumenta a cada segundo e,
vendo que me aproximo do terraço onde Volton se encontra, preparo o
meu corpo para aterrar da melhor maneira possível. Concluindo que a
velocidade supera em muito o desejado, apenas me concentro em cair
de pé.
Toco o chão e flicto um pouco as pernas. Ergo-me e olho para elas
completamente admirado.
“Como foi possível?” Pergunto completamente absorto pelo sucedido.
Volton sorri como quem já fez tal teste um milhão de vezes.
“Estas a sonhar Jonathan, o que pretendias desta acção? Morrer?
Sofrer com a queda?”
“Eu sei que isto e um sonho mas, porque não acordei ao atingir o
chão2?” Pergunto com a minha mente em total confusão.
“Bem-vindo ao mundo seis Jonathan.” Sorri Volton ao ver a minha face
profundamente confusa.
123
“Mundo seis? O que é este mundo? Não é tudo um sonho, imaginação
da minha mente?”
Volton vira as costas e caminha pelo terraço com os olhos fitados em
cima.
“Existem dois mundos na nossa mente quando entramos no sono. Um
decorre no nosso consciente. Neste mundo podemo-nos tornar no que
desejamos ou simplesmente, sermos controlados pelo nosso cérebro.
Não existe limites para a imaginação nem para a estupidez. No final do
sonho, quando acordas, consegues recordar-te daquilo que sonhaste.”
O puzzle na minha mente começa a ganhar forma, mas não suficiente
para decifrar este enigma.
“Então, o que eu estou a ter neste momento é um sonho lúcido!
Consegui controlar a queda sem converte-la num pesadelo.”
Volton vira-se para mim e diz-me:
“Essa é a real essência do mundo seis. Tu podes ser e fazer coisas
que, na vida real, serias incapaz de fazer ou de controlar.
“Então isto não passa do fruto da minha imaginação?”
Pergunto surpreso.
“Parcialmente sim.” Responde Volton.
Estas simples palavras inesperadas acabam de derrubar o pouco que
havia decifrado.
“Com assim?” Pergunto-lhe.
Volton concentra toda a atenção em mim e responde-me:
“Segue-me Jonathan! As respostas não estão longe de ti.”
E num pequeno impulso, Volton salta de terraço em terraço, de
parapeito em parapeito semelhante a um pássaro quando alcança a
liberdade.
Aproximo-me do parapeito e olho para a altitude ainda
consideravelmente alta. O receio ainda se apodera de mim por uns
instantes mas, reflectindo nas palavras de Volton, decido segui-lo em
124
busca daquilo que eu tanto anseio, a revelação.
Elevo-me no parapeito e, com um forte impulso, sigo as mesmas
pegadas de Volton.
Salto de edifício em edifício como se tratasse de uma pequena
caminhada.
A sensação entusiástica de liberdade enche a minha alma. Ser livre de
fazer o que quero, sem que alguém me controle ou me diga o que
fazer. Poder desfrutar daquilo que me foi negado, nem que seja por
apenas um segundo na vida.
Por fim, Volton pára em cima de um telhado de zinco de um enorme
armazém. O ambiente a nossa volta e sombrio e negro. Estamos
rodeados de fábricas e complexos cinzentos que nada se comparam
com o mundo dourado pelo sol de a pouco O fumo negro proveniente
das chaminés, obscurece o horizonte em nosso redor.
Volton caminha pelo topo do telhado de chapa zincada ao som dos
empilhadores e camiões que manobram ruidosamente lá em baixo.
Apresso o meu passo e sigo-o de perto.
Chegando ao limite do telhado, Volton pára e observa o horizonte
negro e sombrio.
Posiciono-me ao seu lado esquerdo e tento fitar o que ele observa.
“O outro mundo não tem nada a ver com este.” Profere Volton.
Confuso, tento decifrar a sua frase por meio de uma pergunta.
“Mas, qual e o mundo que te referes?”
“Existe um mundo em que todos os humanos tem acesso, mas
apenas alguns tiveram o maravilhoso dom da liberdade. Tais mentes,
recusam-se a serem moldadas pelo sistema, especialmente, por quem
determina o rumo da humanidade, aquele a quem chamamos de o
Oleiro.”
Aquela frase provoca em mim uma reacção brutal, como se um raio de
luz iluminasse todo o meu pensamento.”
125
Mas antes de proferir qualquer questão, Volton adianta-se e diz:
“Sei muito bem o que me queres perguntar. Ouve com atenção aquilo
que te irei dizer, pois, no mundo para onde vamos, tais palavras não as
posso pronunciar.”
O meu ouvido inclina-se para ouvir com a maior atenção possível.
“Todos os humanos tem a capacidade de sonhar enquanto dormem. E
um processo comum que ocorre no nosso cérebro com a finalidade de
regenerar e restaurar a actividade cerebral. A presença do sonho
ocorre no consciente de cada cérebro ou, como nós o denominamos,
um sistema construído para entretê-lo, denominado mundo 6. É muito
fácil lembrarmo-nos com exactidão daquilo que sonhamos mas, o
mesmo não ocorre no outro lado.” Responde Volton seriamente.
“Que outro lado?” Pergunto com admiração. “O sonho não provem
todo da mesma fonte?”
“Não Jonathan. Existe um outro lado denominado mundo 7. Durante o
sono, existe um momento em que o cérebro se desconhecia do
consciente e entra no subconsciente. Em teoria, nenhum sonho se
deveria produzir em tal estágio, pois, a mente desliga-se do mundo
real. É nesse exacto momento, após a desconexão com o mundo que
conheces, a tua mente tem acesso a uma zona desconhecida, um
lugar onde todos os humanos se conectam, um mundo onde o único
objectivo é receber instruções sobre o que fazer no dia seguinte.”
“Não pode ser!” Exclamo admirado, rejeitando tal pensamento.
Ponho as mãos na cabeça como quem deseja rejeitar a todo o custo
aquela ideia.
Mas por incrível que pareça, as poucas pecas do puzzle que eu
possuo começam a encaixar no lugar certo.
“Nunca te aconteceu participar no mesmo sonho de uma outra
pessoa? Já alguma vez tiveste a sensação de ter estado num
determinado sitio ou de teres feito algo no passado sem nunca lá teres
126
estado? Porque é que os grandes génios obtiveram as suas grandes
ideias depois de um sonho?” Volton bombardeia-me com perguntas e
mais perguntas que, diferente das anteriores, não me confundem, mas
iluminam o caminho que estou a percorrer.
“Então o que estás a afirmar é que, todas as mentes humanas se
encontram conectadas a uma gigantesca rede ao atingirem o
subconsciente?” Pergunto.
“Eu não afirmo. Digo-te a verdade e mostro-te como as coisas
são.”Responde Volton.
“Custa-me um pouco a acreditar no que estas a dizer Volton. Se isso
fosse verdade, eu não seria o primeiro a sabê-la. Afinal, não passo de
uma pessoa comum comparado com as mentes brilhantes que existem
no mundo.
"Sete mentes libertas. Sabes o que isso significa?” Pergunta Volton.
“Nunca ouvi falar de tal.” Respondo eu em toda a minha ignorância.
“No pequeno manuscrito que encontramos, existe uma profecia em
que sete mentes seriam libertadas com o objectivo de resgatar a
humanidade da escravidão, concedendo-lhe o poder do livre-arbitrio.”
Tais palavras me fizeram recordar o que Max me dissera, momentos
antes da porta se fechar. A medida que as pecas se juntam, mais claro
se torna a imagem contida nele.
“Mas, que capacidade possuem estas sete mentes?” Pergunto.
“Vou-te mostrar algo lá em baixo que te esclarecera algumas dúvidas
tuas. Basta seguires-me.” Mediante estas palavras, não hesito em
seguir Volton.
Recuando no telhado de chapa zincada, acompanho-o de perto sem
proferir palavra que fosse pois, ele tem a capacidade de no seu próprio
tempo, saciar todas as minhas dúvidas.
Volton bate forte com o pé em cima de uma espécie de tampa redonda
que se encontra no centro daquele telhado. Com o impacto, ela abre o
127
suficiente para caberem os dedos de uma mão. Volton abre a tampa e
inicia a descida por entre as escadas que se encontram nela. Espreito
para baixo mas não sou capaz de distinguir o que lá existe devido a
escuridão. Mas, tal visão não me impede de acompanhar Volton na
sua descida.
Uma vez atingindo o patamar inferior vazio e escuro, Volton dirige-se
para uma porta de um elevador. Carrega no botão e a porta
automaticamente abre-se. Entramos nele e a descida inicia-se.
“As sete mentes tem a capacidade de se auto-controlarem durante o
seu subconsciente. O restante da humanidade não. Estas mentes
recordam-se do sonho que tiveram no mundo sete. O restante da
humanidade nem lhe passa pela memória.
Mas nem tudo é ouro para as sete mentes. Assim como o Oleiro sabe
o poder que tem ao controlar a humanidade, ele apercebe-se bem
daqueles que não se deixam controlar.”
“Como assim?” Pergunto surpreso.
“Lembras-te da primeira vez que me vistes?” Pergunta Volton.
Tento procurar tal episódio na minha mente, como quem vasculha uma
casa em busca de pistas importantes.
“Sim. Lembro-me de que estavas em cima de um muro e que eu fugia
de alguém, mas não me lembro porquê.”
Volto vira a face para a porta do elevador e diz:
“Este mundo está sob o domínio do Oleiro. Ele, para defender o seu
império de invasores, possui uma poderosa forca de elite que o
defende. Assim como o César possuía pretorianos, o Manipulador
deste mundo possui agentes denominados de
bloqueadores.”Responde Volton.
“Bloqueadores? Quem são e qual é o seu objectivo concreto?”
Pergunto.
Volton apenas estende o dedo e carrega num dos muitos botões que
128
se encontram na parede. O elevador abranda e para. As portas abrem-
se e uma grande avenida com altos prédios pousa perante o nosso
olhar. Tudo parece fluir naturalmente, as pessoas que caminham
calmamente, o trânsito que percorre avenida sem problemas.
Mas, de repente, ouve-se gritos. Vejo uma mulher a correr por entre os
automóveis como se estivesse possuída por algo. Bem atrás, um grupo
de homens armados tentam alcança-la. Um veículo pesado entra na
outra faixa de rodagem e, em contra mão, abalroa os automóveis que
por ali circulam. Cercada pelo camião e por aquele grupo de homens a
mulher tenta inutilmente arranjar um meio de fuga, mas sem sucesso.
Os homens cercam-na e começam a desferir golpes de bastão nela.
Mediante os seus gritos por clemência, a minha alma não se resigna a
ficar imóvel como espectador. O meu coração bate forte, a minha visão
concentra-se unicamente naquele grupo de homens iníquos. Dou um
passo em frente em direcção daqueles gritos, como se possuísse
todos os poderes do mundo.
Dando o segundo passo, sinto uma mão a agarrar-me no braço.
Volto a face para trás e vejo Volto que diz um claro não com a sua
expressão facial. Volto para trás e pergunto-lhe:
“Mas porque não? Temos de a ajudar!”
Volton apenas carrega num outro botão e a porta do elevador fecha-se.
Encontro-me profundamente indignado com a acção de Volton, que
com o seu comportamento neutro, acaba de consentir o sucedido.
Quanto a Volton, a paz e a tranquilidade invadem todo o seu ser.
Mediante tal passivo comportamento, não recuso em perguntar:
“Mas porque não fizemos nada?”
Com os olhos postos na porta, Volton apenas responde:
Ainda te encontras no mundo seis Jonathan. Aquilo que vistes e mera
ficção, apenas existiu na tua mente.”
Ainda a tremer da pura emoção e adrenalina, começo a respirar fundo
129
de alívio ao entender que era apenas uma visão, nada mais.
“Aquilo que tu vistes é apenas uma parte do dever de um bloqueador.
Aquela personagem fictícia teve acesso ao mundo sete, ou em outras
palavras, tudo o que via estava a ser gravado no seu consciente, o que
lhe daria a oportunidade de se recordar do sonho no dia seguinte. Os
bloqueadores actuam de uma forma agressiva provocando aquilo que
se chama de pesadelo. O individuo que sofre um pesadelo e acaba por
acordar do seu sonho, retirando qualquer possibilidade de continuar a
explorar tal mundo.”
Ainda um pouco céptico, pergunto-lhe:
“Mas de onde vem toda esta informação? Onde se situa o núcleo de
todas estas operações?”
Volton olha para o relógio e responde-me:
“Ainda tens um longo caminho a percorrer Jonathan. Está atento e
aproveita a oportunidade que terás no grande momento.”
Mas qual e o caminho a percorrer? Que tipo de grande oportunidade
posso eu aproveitar? O que é o grande momento?
Reorganizo todas as ideias e perguntas na minha cabeça para que
Volton possa iluminar cada vez mais o meu caminho. Mas, quando me
preparo para indagar sobre tudo isto, Volton carrega num outro botão
fazendo o elevador abrandar e parar novamente.
O que ira acontecer agora? Que mistérios sairão mais uma vez
daquela porta.
A porta abre-se e, para surpresa minha, apenas vejo um corredor
comprido com paredes de metal cinza. A ilumina-lo, existem pequenas
lâmpadas de ambos os lados em todo o seu cumprimento. Bem no
fundo desse corredor, existe uma porta metálica. Saio do elevador para
investigar aquele lugar. Nesse preciso momento, a porta dele fecha-se
atrás de mim, fazendo Volton desaparecer. Volto a minha face para
trás e apresso-me em alcançar o elevador novamente. Ponho os dedos
130
nas anteriores frinchas entre as duas portas do elevador, mas sem
sucesso. As frinchas já não existem, apenas reside um risco que
pretende imitar um espaçamento que não existe mais.
Sem alternativa, volto-me para a porta cinzenta. Caminho lenta e
defensivamente na sua direcção, sem saber que coisas residirão no
seu interior. Alcançando a porta, ponho a mão no manípulo. Mas desta
vez a porta não abre.
“Isto não e normal!” Exclamo, indagando tal estranha situação.
Forço a fechadura, tento com toda a minha energia vital abrir aquela
maldita porta, mas sem resultados. A porta e sólida como um cofre,
nem sequer vibra com os fortes impactos provocados por mim. Tomo
balanço, tentando inutilmente arromba-la. Cansado e exasperado
debruço-me sobre a porta com as palmas das mãos colocadas nela.
Fecho os olhos e enquanto restauro as minhas energias novamente,
pergunto-me porque não consigo abrir a porta. Nisto, sinto atrás de
mim a presença de alguém. Quase sem energias para me voltar e de
olhos fechados, sorrio ao dizer:
“Porque me fazes isto, Volton?”
Mas, abrindo os olhos, o meu corpo estarrece de medo profundo, o
meu coração pára com o que observo.
“Desiste Jonathan, ou terei de destruir a ti e aos teus.”
Quem pronuncia estas palavras era o homem da gabardina que me
perseguiu num dos meus sonhos anteriores.
Ele agarra-me pelo pescoço eleva-me bem alto.
O ar começa-me a faltar a medida que as suas mãos apertam-me
como se dois torniquetes se tratassem.
Dele apenas vejo um sorriso maquiavélico de quem asneava fazer
aquilo já a bastante tempo.
A forca com que ele me aperta é tão grande que começo a perder a
visão. Em seguida, insatisfeito com a sua acção iníqua, ele arremessa-
131
me para bem longe da porta. A medida que o meu corpo varre a
parede do corredor, as lâmpadas estilhaçam-se com a forca do
impacto por mim provocado. Restaurando temporariamente os
sentidos tento erguer a minha cabeça do chão. Ao longe, mas com a
visão totalmente desfocada, observo o individuo a dirigir-se rápido
como o vento na minha direcção.
Com a voz rouca e sem forca na língua apenas pronuncio um
silencioso “Não!”
Mas de nada adianta apelar pela sua misericórdia. Com o seu potente
pé, sou pontapeado para bem longe como se de um trapo me tratasse.
O meu corpo bate estrondosamente na antiga porta do corredor.
Jazo no chão, completamente inanimado. Dos meus cinco sentidos,
apenas a audição não me abandonou por completo. Ouço os seus
passos a caminharem lentamente na minha direcção semelhante ao
bater rítmico e ordeiro de um relógio. Vendo o meu corpo semi-morto
no chão, ele para me observar melhor.
“Quem pensas que és, Jonathan?” Pergunta o individuo.
Nisto, ouço ele a ir-se embora. Tento abrir os olhos e observo a porta
cinzenta a se fechar.
“Não, não. Tu não podes entrar aí?” Suplico muito baixo, como se o
mudo ousasse gritar.
A porta fecha-se por completo produzindo um intenso ruído,
semelhante a um grande portão metálico quando é trancado a chave.
Nisto, ouço um forte ruído, semelhante ao rodado de um grande
camião de mercadorias. Olho em todas as direcções tentando localizar
a origem do barulho, mas com extrema dificuldade devido ao eco
produzido pelas paredes daquele apertado corredor.
Após breves segundos, o som intensifica-se muitíssimo. Olho para a
porta metálica ao fundo e vejo o corredor a desabar rápido como um
relâmpago, semelhante à queda matemática de meras pecas de
132
dominó. Ao ver a destruição fulminante, tento me levantar, mas sem
conseguir. Volto a cara para o outro lado do corredor, na esperança de
que alguém me resgate do fim iminente. Breves segundos antes dessa
avalanche me alcançar, dou um encurtado grito desesperado de
aflição, fazendo-me:
Acordar.
133
Capitulo 8
Ergo o meu corpo da cama como se aquilo que sonhei fosse uma
realidade e não imaginação da minha mente. Com as palmas das
mãos limpo o suor da minha cara e esfrego os olhos inchados da
pressão do meu sonho.
Começo a ouvir os pássaros a chilrear lá fora. Tal ruído melódico faz-
me automaticamente olhar para o relógio do quarto. Faltam apenas
dois minutos para ele despertar. Incrível! Como consegui acordar
mesmo a tempo.
Mas como fui sonhar uma vez mais com Volton? Como e que ele entra
sempre nos meus sonhos? Ou será mesmo verdade que, durante o
sono estamos ligados a uma grande rede?
Não possuo muito tempo para meditações! Esperarei antes pelas
respostas na próxima noite.
Levanto-me da cama para iniciar mais um círculo de vida viciado. Após
vestir-me, preparo o pequeno-almoço ao som da minha única
companhia leal, o rádio.
“A noite foi marcada por um insólito acidente na auto-estrada do sul.
Um veículo pesado de mercadorias perdeu toda a sua carga ao
embater num outro veículo pesado que efectuava a manutenção do
troco 16 no sentido norte-sul. Mediante o grande aparato provocado
pelo acidente, não existem registos de feridos graves. Apenas o
condutor do veículo acidentado teve de ser transportado de
ambulância por apresentar ferimentos ligeiros.”
Esta notícia faz-me lembrar da tarefa para hoje à tarde, descarregar a
134
mercadoria, mas, ao mesmo tempo, o compromisso que tenho coma
Jennie.
Reorganizo as ideias na minha caneca, não quero que nada falhe em
parte alguma pois, logo a noite, a Jennie vai merecer toda a minha
atenção.
O tempo não anda, o tempo não flúi. Quando estamos empenhados, o
tempo corre. Dirijo-me a garagem e, abrindo a porta, saio mais uma
vez para o trabalho de bicicleta.
O dia continua aborrecido e cinzento, não obstante, ameno e sereno.
Algumas pingas de restos de chuva da noite anterior, ainda ameaçam
cair. O ar límpido e leve ajuda-me no percurso daquela estrada
encharcada de água rumo a cidade.
Chego a loja na hora certa, mas não encontro Robert. Ora, isto e raro
pois, Robert é como um relógio no que toca a entrar e a sair, sempre
na hora exacta.
Todos falhamos e todos sofremos do inesperado imprevisto. Talvez
seja apenas um pequeno atraso, nada mais.
Pelo sim e pelo não, o melhor e iniciar as tarefas do dia antes que a
hora de abrir a loja chegue.
Inicio na íntegra o ritual de sempre, com o objectivo de que nada possa
eventualmente falhar. São raros os empregos nesta pequena cidade,
por isso, há que dar valor ao que se tem.
Enquanto efectuo as minhas tarefas na íntegra, ouço um automóvel
chegar e a estacionar perto da entrada da loja. Curioso, olho do balcão
para a grande frincha que se encontra na porta de madeira.
“Já esta hora!” Exclamo.
Isto é um caso extraordinariamente raro de se ver. O meu chefe
chegou antes da abertura da loja. Ouço a porta do veículo fechar,
fazendo-me apressar cada vez mais nas minhas tarefas. Ele entra na
loja com o seu normal olhar de pessoa profundamente desconfiada,
135
como se alguém lhe estivesse a roubar algo, ou se alguém estivesse a
planear um grande tumulto dentro daquele pequeno negocio.
“Bom dia chefe.” Apresso-me a ser o primeiro a dar o passo das boas
maneiras.
Ele, com aquela cara de mau encarado, diz:
“O Robert está doente e não vem trabalhar. Por isso, tomas conta do
trabalho que esta designado para o dia hoje.” Responde secamente
enquanto que se dirige para o corredor do armazém, sem se dignificar
em olhar para a minha pessoa.
“O camião! Quem me ajudará a descarregá-lo?” Pergunto-lhe ao
imaginar o pior dos cenários.
Ele, bem do fundo do corredor, responde aridamente:
“Tens duas mãos, não tens?”
Aquela resposta causa-me um misto de ódio e frustração pelas suas
atitudes. A causa disso, é que a noite de hoje está deveras
comprometida. Em vez de sair uma hora mais tarde, arrisco a passar
aqui a noite.
A minha grande oportunidade, o tanto esperado momento de toda a
minha vida, confinado a uns simples caixotes de papelão.
A vontade que tenho naquele momento é simplesmente desaparecer
deste mundo e ser livre.
O problema, é que a liberdade compra-se com o dever. Não tenho
muitas oportunidades de escolha e, para minha profunda revolta, terei
de me resignar ao seu capricho.
Enquanto que o meu coração resiste a ideia de perder o encontro com
a Jennie, a minha mente não para de me aconselhar a permanecer.
Após um longo e estafante tempo em busca da solução, concluo que o
único remédio para a resolução do problema, está definitivamente
concentrado na organização. Se deixar tudo organizado horas antes de
o camião chegar, possivelmente, e com muita sorte, conseguirei
136
poupar imenso tempo.
Mais animado com resultado da minha estratégia para logo a tarde,
deito velozmente mãos a obra. Não a tempo a perder, especialmente,
quando partimos em desvantagem.
A manhã passa rapidamente. Talvez o segredo seja mesmo este, ser o
mais dinâmico possível.
“Bom dia Jonathan! Será que me podes abrir o portão do armazém?
Tenho a carrinha à porta para levar os metais que encomendei na
semana passada.” Apela Mike da porta da entrada.
“Bom dia Mike. Vou agora abrir-te a porta. Dá-me apenas uns
segundos.”
Enquanto que Mike se dirige para as traseiras do edifício, eu tento
procurar as chaves do portão. Tomei conhecimento que elas se
encontram dentro da segunda gaveta do lado esquerdo do balcão. O
problema é que elas estão misturadas com outras centenas de chaves
que nem eu mesmo sei onde pertencem. A resolução do problema
resume-se em tirar um bom molho delas e tentar uma a uma. Como faz
falta o meu amigo Robert.
Dirijo-me ao silencioso armazém onde apenas os meus passos e o
telefone do escritório se pronunciam em todo aquele espaço.
Aproximo-me da fechadura e tento uma a uma na esperança de não
retardar muito o tempo de espera do meu amigo Mike.
Finalmente e após varias tentativas, a fechadura cede face a
combinação certa. O grande retráctil portão metálico finalmente se
abre, produzindo o seu habitual grito de abertura, como quem acorda a
fera do seu sono profundo.
Enquanto Mike efectua as manobras, eu posiciono o guindaste sobre
os materiais encomendados.
No momento em que o veiculo se aproxima, a minha mente concentra-
se no novo emprego do Mike. Ele tinha tanto prazer em seguir carreira
137
que gostava, mas acabou por ser forcado a escolher algo que não
desejava.
“E tudo muito estranho.” Digo eu enquanto suavizo o meu queixo com
o dedo indicador.
O mesmo se passou comigo. Gostaria de ter seguido arquitectura mas
não me foi possível.
Será que Volton tinha razão quando disse que todos somos
seleccionados a desenrolar uma determinada tarefa, não importando
se a desejamos ou não? Não disse ele que cada um de nós é
escolhido para efectuar uma determinada função, consoante a vontade
do Oleiro?
E se aquilo que sonhei é mesmo verdade?
Nesse momento, ouço a buzina do camião, fazendo-me assustar.
“Então Jonathan! Já está bom assim ou queres que vá mais para
trás?” Pergunta Mike, olhando para trás através da janela.
“Esta perfeito!” Exclamo, acenando com os braços no meio de todo
aquele barulho.
O carregamento inicia-se logo em seguida. Não sou muito prático com
o guindaste, devido ao facto deste ser o trabalho de Robert. Mas
mesmo assim, com toda a lentidão do mundo, vou emparelhando a
encomenda no camião.
“Eu vou a loja do lado comprar algo para comer. Queres que te traga
qualquer coisa?” Pergunta Mike.
“Obrigado Mike, mas não necessito de nada para já.”
Descendo apressadamente as escadas do cais de descarga, Mike diz:
“Então voltarei dentro de cinco minutos.”
Mike é uma boa pessoa e um bom amigo. Simplesmente merecia
concretizar os seus sonhos na vida pelo enorme esforço que faz e por
nunca baixar os braços a um bom desafio. Enfim, talvez o destino
assim o quis.
138
Enquanto perco tempo a raciocinar sobre as banalidades da vida, não
reparo que um ângulo da mercadoria se encontra em risco de colidir
com o taipal do camião. Felizmente, dou conta do sucedido e o pior
não se concretiza. Contudo, não consegui evitar que a palete ficasse
presa numa outra mercadoria que já lá se encontrava.
Tento infrutiferamente desencravar a palete do camião que, a cada
segundo que passa, mais bloqueada fica.
Paro um pouco e penso na solução.
“Como e que isto foi acontecer? Qual será o melhor meio de resolver o
problema?” Pergunto a mim próprio em voz alta.
O problema deu-se por não ter espaço suficiente entre a plataforma de
descarga e o camião. A solução passaria por avançar um pouco o
camião, recuperando mais espaço útil de manobra.
Mas existe um grande problema. Eu não sei conduzir veículos
pesados. Não significa que não o consiga, afinal de contas, a solução
passa apenas por avançar um pouco mais com o camião, nada mais.
Tal manobra não me obriga a dar uma volta pela cidade.
Embora o raciocínio seja lógico e coerente, ainda assim falta-me
coragem para o fazer. Tenho receio de estragar algo, especialmente,
se esse algo não me pertence.
Ouço lá em cima, na zona dos escritórios, o telefone do chefe que não
para de tocar. Ouvindo tal ruído, imagino o que seria se o meu chefe
espreitasse lá de cima e visse esta situação! Agora sim, o meu
raciocínio foi coerente o suficiente para me motivar a acção.
Largo o controlo do guindaste e salto da plataforma de descarga para o
piso onde se encontra o camião.
O meu coração palpita cada vez mais ao passo que abro a porta e
subo as três pequenas escadas em aço. Sento-me e observo os
comandos do veículo.
Vejo tantos barómetros e ampulhetas que a minha mente fica confusa
139
ao tentar iniciar as manobras.
Faço um esforço e tento-me concentrar em três coisas, a ignição, o
volante e a embraiagem. Recuo com a maneta das mudanças para o
ponto morto e em seguida ligo o motor. Finalmente, após alguns
segundos, o motor responde com um rugido de quem esta pronto a
começar. Todas as ampulhetas sobem nesse mesmo instante como se
alguém as tivesse acordado do seu sono. Ponho a embraiagem na
primeira mudança e solto levemente o pedal da embraiagem. A rotação
do motor começa a diminuir cada vez mais a cada segundo que passa.
Não aguentando a pressão, o motor desliga-se, a cabine imite um som
alto e agudo, o painel de controlo enche-se de luzes vermelhas e as
ampulhetas caiem todas ao mesmo tempo. A minha vontade era
desistir, mas, tento mais uma vez todo o processo. Só que desta vez,
opto por acelerar um pouco mais. Ligo o motor e solto levemente a
embraiagem. A rotação do motor parece cair outra vez, mas a
determinado ponto, ela se mantêm e o veículo começa a avançar
lentamente. Após ter deslocado o camião por um metro, desligo
imediatamente e salto da cabine o mais depressa possível. Ainda com
o coração a bater forte, reinicio a tarefa e finalizando-a com sucesso.
Nesse preciso instante chega Mike. Passando ele pelo camião, a sua
feição muda ao ver que os rodados dos pneus se encontram numa
posição diferente da que havia deixado primeiro.
“Esta bem!” Responde ele, ignorando aquilo que viu.
“Já está tudo carregado Mike. Aguarda só um instante. Tenho que ir lá
dentro e buscar as facturas.”
“Não tem problema Jonathan.”
Desloco-me rapidamente até a loja desejando perder o mínimo de
tempo possível. Ao caminhar pelo corredor, consigo ouvir vozes de
pessoas, que pela amplitude delas, não se trata de pouca gente. Ao
entrar na loja, observo que aquele pequeno espaço se encontra cheio
140
de gente.”
“Meu Deus!” Exclamo. “Daqui não saio tão cedo!”
Agarro no livro das facturas e saio disparado ao encontro de Mike.
A minha respiração aumenta com a pressão que vou sofrendo no dia
de hoje.
O compromisso com a Jennie parece ficar cada vez mais longe do meu
alcance.
“Aqui tens Mike.”
Assinando os papéis, Mike despede-se e regressa ao trabalho.
Eu voo para o balcão com o máximo de prioridade. A loja encheu ainda
mais.
O relógio não para, e o meio-dia de hoje já pertence a historia.
“Hoje já não almoço.” Profiro estas palavras em voz baixa, em sinal de
descontentamento.
Cliente atrás de cliente, pedido atrás de pedido e eles lá se vão
embora, esvaziando a loja dos artigos e das suas próprias presenças.
Sento-me um pouco no meu banco. A minha face verte suor de tanto
trabalho decorrido naquelas últimas horas. O grande problema é que a
cidade é pequena e toda a gente se conhece. Se algum cliente não fica
satisfeito com o atendimento que teve, é muito fácil e provável que ele
se queixe directamente ao meu patrão.
Felizmente, a ideia que tenho é que tudo correu lindamente,
exceptuando o atraso sofrido no início.
Olho para a parede e observo as horas.
“Já são três da tarde?” Pergunto a mim próprio, admirado de como o
tempo passou.
A Jennie hoje não me viu. Espero que ela se lembre da nossa saída de
logo a noite.
Ainda a pensar nestas palavras, ouço um enorme ruído de uma buzina.
O telefone do balcão começa a tocar. Dirijo-me a ele e, levantando o
141
auscultador, ouço uma voz conhecida saindo através dele.
“Jonathan, o camião já chegou. Fecha as portas da loja e descarrega
o camião.” Responde o meu patrão no seu habitual tom autoritário.
Sem que me desse a oportunidade de lhe responder, ele abruptamente
desliga o telefone na minha cara. São reacções que não me chocam
mais. A minha mente já esta calejada o suficiente para se deixar
magoar ou alterar-se com aquelas habituais reacções.
Levanto-me do banco e dirijo-me a porta de entrada. Fecho a porta e
corro para o cais de descarga. A medida que caminho pelo armazém,
vou observando o que me aguarda dentro daquela enorme caixa
metálica. Não é muito difícil de ver o que reside dentro pois, o camião
está atulhado de tralha ate a porta.
“Bom dia!” Cumprimento o motorista que acaba de sair da cabine.
“Boa tarde!”Responde o motorista com um toque de quem quer corrigir
o meu erro.
“Para mim ainda é de manhã, pois, ainda não almocei.” Respondo.
“Tem tido muito trabalho?” Pergunta o motorista num tom amistoso.
“Tem sido um inferno. Geralmente nunca temos clientes da parte da
manhã, mas hoje foi uma excepção como eu nunca vi!”
“Há dias assim meu amigo.” Responde o motorista, tentando suavizar
o problema.
“Então vamos lá começar isto.” Respondo com um suspiro, mas ao
mesmo tempo, com o desejo de terminar esta tarefa o mais cedo
possível.
As horas vão passando ao som do motor sempre activo do empilhador.
Caixa a caixa e o enorme veículo de mercadorias fica cada vez mais
vazio.
A luz do dia perde lentamente a sua vitalidade, marcando o final de
mais um dia.
Faltam vinte minutos para as sete e ainda não se vê o fundo do
142
contentor.
A esta hora, Jennie deve se perguntar onde estarei pois, não me viu no
almoço nem possivelmente me irá ver a hora marcada.
As luzes do armazém acendem-se com a escuridão que ameaça cobrir
o mundo lá fora.
Apresso-me o mais rápido que posso.
“Finalmente o fundo!” Exclamo de alegria.
Não demora muito até que a ultima caixa seja retirada do camião.
“Agora e só assinar aqui e estamos tratados.” Conclui o motorista.
Assino o papel da encomenda e despeço-me dele. Ele entra no camião
e avança para fora. A medida que fecho o grande portão, vou olhando
para o negrume da noite.
São sete horas e quarenta e dois minutos e nem tive tempo de trocar
de roupa. Agora já não tenho oportunidade, apenas faltam alguns
minutos para o filme começar. Inicio o fecho da loja rápido como um
relâmpago. Desta vez nem arrumo papeladas, nem despejo o lixo,
simplesmente desligo as luzes e tranco a velha porta da entrada a
chave.
Corro pela avenida fora totalmente desfraldado, correndo o risco de ser
apelidado como louco por quem me vir correndo de forma. As
situações transformam-nos, não importa quem somos ou pretendemos
ser. Simplesmente adaptamo-nos a realidade nua e crua, tal e qual
como ela é.
As ruas estão desertas e silenciosas, como se toda aquela gente
tivesse abandonado esta área deixando apenas ligados os iluminantes
lampiões do passeio que testemunharem o que realmente se passa.
O grande silêncio é apenas quebrado pelos meus passos que
chapinam no alcatrão molhado da estrada.
Ao longe vejo a casa da Jennie com a luz do alpendre ligada.
“Espero não ter chegado tarde demais.” Suplico a mim próprio.
143
Abrando o passo, tentando de alguma forma ganhar fôlego para
enfrentar o que for preciso.
Ao me aproximar mais um pouco, observo alguém sentado nas
escadas.
É a Jennie que me espera, sentada e com o cotovelo apoiado na perna
e a mão no queixo. Ouvindo ela os meus ruidosos passos de corredor,
ergue a cabeça e, sacudindo a saia com a palma da mão levanta-se
para se encontrar comigo.
Ela está realmente linda, não porque hoje é um dia especial, pois o seu
encanto se manifesta a cada dia mas, ela está deveras excepcional.
Parece uma verdadeira dama de gala, comparado comigo, um
vagabundo que se apresenta com a camisa de fora, despenteado e
quase sem folgo. Ela sorri, quase adivinhando o que me poderia ter
acontecido de insólito para ter chegado tão tarde. Vim todo o caminho
a pensar nas mil e umas desculpas que lhe poderia apresentar, mas,
aquele sorriso deitou por terra qualquer argumento meu, sobrando
apenas a pergunta:
“Então, vamos?” Pergunto com um tom galante de um boémio que
descora a razão e ilude-a com a fantasia sedutora. Dobro o meu braço
direito permitindo que ela encaixe o seu braço esquerdo no meu.
“Já é um pouco tarde para ver o filme, não é Jonathan?” Pergunta
Jennie com os seus grandes e tentadores olhos verdes, de quem não
está realmente interessada nele, mas sim, em mim próprio.
“Melhor filme que o nosso não pode haver.” A minha resposta fá-la
sorrir de prazer, como se fossem as palavras que ela desejaria ouvir.
Continua-mos a caminhar, sem rumo certo, apenas guiados pela nossa
intuição ao embalo de tantas palavras e feições, sentimentos e
emoções, que inflamam ardentemente aquele momento único.
A noite é só nossa e não pertencerá a mais ninguém.
Sentamo-nos na beira do fontanário que se situa bem no meio daquela
144
grande avenida, deserta de vida. Apenas se houve os nossos risos e
gargalhadas à medida que partilhamos os nossos passados, os nossos
presentes e o futuro que virá.
Envoltos naquele cenário maravilhoso, não damos conta do tempo
passar. Os pássaros começam a chilrear e ao longe, um risco azul
anuncia a chegada de um novo dia.
Jennie encosta a sua cabeça no meu ombro. Eu abraço-a e juntos,
vemos o sol nascer apartir daquele fontanário.
“Tenho de ir Jonathan.” Pede Jennie.
São quase seis e trinta e a Jennie entra ao serviço em apenas uma
hora.
“Eu acompanho-te.” E de mãos dadas, levei a salvo a minha princesa
até ao seu castelo.
Retorno directamente ao trabalho, pois não tardará muito até chegar a
hora de ele começar.
Caminho satisfeito, cheio daquela energia que inebria a felicidade do
ser humano e a transforma numa espécie de euforia electrizante. Perdi
um almoço e um jantar, mas, nem mesmo assim, a fome me dominou
por todo este tempo decorrido.
Existem momentos que superam todo o básico desejo carnal do ser
humano. Momentos esses que dão um real sentido a uma vida de
inteira solidão.
O sol já se mostrou ao mundo, iluminando todo o chão, transformando-
o em ouro. Atrás de mim, apenas me segue a minha grande sombra.
Em poucos minutos, chego ao meu destino de cada dia. Retiro as
chaves do bolso e abro a porta. A loja parece diferente, talvez por ser a
primeira vez que entro assim tão cedo. Recupero o tempo perdido de
ontem por finalizar as tarefas que deixei para trás. Mesmo assim,
sobra-me algum tempo útil. Olho para o relógio e vejo que falta mais de
meia hora para a loja abrir. Por fim, o cansaço toma conta de mim
145
levando-me a sentar no banco do balcão e encostar o meu corpo ao
móvel que esta por detrás de mim. Embora cansado, não consigo
parar de sonhar com aquilo que eu e a Jennie vivemos esta noite. Uma
noite verdadeiramente mágica.
Os meus olhos começam a ficar pesados como chumbo e os meus
sentidos lentamente se vão desligando deste mundo.
Nesse momento, começo a ouvir um barulho de chaves e uma porta
ferrugenta a abrir-se. O mesmo processo se repete quando ela se
fecha. Ouço passos que se deslocam na minha direcção. Segue-se um
prolongado silêncio, apenas fazendo-me sentir a presença de alguém
que olha concentrado em mim.
“Jonathan!” Ouço uma voz ao longe, uma voz grave, típica de um
ancião.
A voz repete-se acompanhada por um leve abanar do meu ombro.
Os meus olhos começam a abrir, desfocados com o intenso cansaço
que acumulado.
“Então, o que e que se passou?” Diz essa voz.
Esfrego os olhos e começo a ver claramente.
“Que bom vê-lo novamente Sr. Robert.” Respondo
Bocejo e espreguiço-me sem tirar os olhos do relógio.
“Que aborrecimento! Parece que a hora chegou.” Aquela visão faz
erguer o meu corpo mole do cansaço o que tem.
“Estou a ver que fizestes ontem horas extraordinárias.” Diz Robert, no
seu típico tom humorístico.
Escondendo a verdade evolvida naquela situação, eu respondo.
“Sim, acabei muito tarde ontem. E você, como está? Já se sente
melhor?”
“Já estou muito melhor, isto não foi nada. Mas, mesmo assim, tenho
de ter muito cuidado quando me constipo. Os meus pulmões são muito
frágeis e todo o cuidado e pouco.” Reponde Robert a minha pergunta.
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“O Sr. nem sabe a falta que faz aqui. Isto não é nada sem a sua
presença.” Afirmo com apreciação pelo se bom trabalho.
“Ora, os anos pesam meu filho! E ás de ver que um dia ainda me
substituirás.”
“Não fale assim Sr. Robert, ninguém é substituível!”
Deslocando-se para o corredor do armazém e com os olhos fitados na
ombreira da porta, Robert lamenta-se:
“Era bom se assim fosse meu filho, era mesmo muito bom. Enquanto
que cá estamos, todos cumprimos um dever, uma missão, como se
fossemos enviados ou determinados a fazer algo. Tudo depende se
aceitamos esse caminho ou não. Pelo menos, é assim que eu penso.”
A hora da abertura chega depressa, mas, o tempo para estar com a
Jennie, esse parece não querer passar.
A manha corre muito lentamente, especialmente quando o cansaço
começa a invadir todo o corpo. Para agravar o meu estado físico, o dia
de hoje esta muito fraco, fazendo-me quase adormecer no meu próprio
posto.
Finalmente, o relógio decide por si próprio, marcar a hora tanto ansiada
por mim, a hora do almoço.
Fecho a loja e caminho pela avenida fora guiado pelo meu coração. O
cansaço parece ter fugido outra vez, assim como a fome que sentia
anteriormente. A paixão é sem dúvida, a melhor anestesia que poderia
existir. Aconteça o que acontecer, estamos sempre fora de nós
próprios.
Entro ao som do pequeno sino que se encontra na porta, apenas para
presenciar toda aquela agitação infernal, típica da hora do almoço.
Tento encontrar a Jennie no meio aquele mar turbulentamente
esfomeado. Ela encontra-me primeiro e acena-me com a mão lá do
fundo da sala. Eu respondo-lhe com um aceno idêntico e um sorriso de
quem deseja estar com ela outra vez.
147
Encontrando uma mesa, sento-me e espero por ela.
A sua beleza é sempre grande, não importa se vestida de gala ou com
o seu uniforme de trabalho. Simplesmente, ela supera o que o mundo
de melhor tem a exibir.
“Pareces cansado Jonathan!” Exclama ela no seu habitual tom meigo,
mas sem esconder o seu sorriso de quem sabe a razão.
“Um cansaço assim vale sempre a pena.” Respondo completamente
enamorado por ela.
A minha resposta fá-la corar, tornando-a ainda mais sublime.
“O que vais desejar para hoje?” Pergunta ela.
“Aquilo que tu quiseres.” Respondo-lhe com os meus olhos bem fixo
naqueles grandes olhos verdes que eu tanto adoro.
“Esta bem, vou ver se sou capaz de te surpreender.” Responde ela,
entusiasmada com o desafio.
Quer ela o deseje quer não, só a sua presença já é o suficiente para
encher toda a minha alma de alegria e admiração.
A paixão é lenha, mas o amor é diamante, belo e eterno.
Não existem palavras neste mundo que obtenham a capacidade
suficiente para descrever a Jennie. Pergunto-me, como não fui capaz
de descobrir este tesouro já por tanto tempo? Mas a vida é mesmo
assim, ilude-nos no nosso caminho e coloca-nos num outro, totalmente
diferente, quer para bem, quer para mal. Apenas devemos desfrutar da
vista a medida que o curto caminho a percorrer se vai desenrolando.
O meu caminho infeliz e solitário, transformou-se em alegria e
esperança ao ter a Jennie como companhia neste admirável percurso.
“Estas muito pensativo Jonathan!” Observa Jennie.
Acordo do sonho imaginativo que estou a ter e, meio embaraçado com
a sua abordagem, respondo:
“Mais ou menos.”
“Toma, espero que gostes da minha escolha.”
148
Mesmo que não gostasse ou fosse alérgico, teria a plena certeza que
iria adorar.
Não penso no momento que vivo, mas sim, no futuro imediato. Por
isso, estudo uma maneira de dar seguimento a noite mágica de ontem.
Espero pelo seu regresso a mesa onde me encontro para lhe fazer
uma pergunta que mais se assemelha a um pedido.
Jennie observa-me a finalizar a minha refeição e, não perdendo tempo
precioso, dirige-se directamente a mim.
“Então, estava do teu agrado?” Pergunta ela, esperando por uma
resposta afirmativa.
“Muito bom, estava mesmo delicioso.”
Ela sorri e recolhe o meu prato da mesa.
Não perco tempo e faço-lhe um convite que espero não ser ousado
demais.
“Estas muito ocupada depois do trabalho?”
“Não, porque?” Pergunta Jennie, esperançosa do convite que lhe
poderei vir a fazer.
“Vai haver um mercado de noite na praça principal, não sei se gostas
disso mas, estou a pensar em ir. Se quiseres vir comigo podemos
marcar a hora.”
“Sim, eu gostaria muito! Queres passar por minha casa as oito horas?”
Com um grande sorriso de contentamento, respondo:
“Combinado, as oito lá estarei.”
“Então até logo.” Despede-se ela, com o seu rosto a transplandecer de
verdadeira felicidade, como um cristal que intensifica o raio de luz que
por ele passa.
Retorno ao trabalho, contente e satisfeito com aquela sublime
sensação de quem se sente completo por dentro e que apaga qualquer
rasto de sofrimento passado. É um sentimento que nos faz sentir
grandes e omnipotentes, sem que o maior dos maiores problemas
149
fosse suficientemente grande para nos causar qualquer tipo de receio
ou dor.
Será isto paixão ou amor? Só o tempo dirá.
Entro pela loja a dentro com um assobio alegre de boa disposição. Tal
facto não passa despercebido a Robert que, na sua curiosidade,
pergunta:
“Tens andado muito contente Jonathan. Ás de me dizer qual é o elixir
para todo esse contentamento!”
Eu apenas sorrio com aquela exclamação de Robert. Tomara eu sabe-
lo também.
A vida é curta e estes momentos doces não duram para sempre.
Insensato é quem os rejeita.
A tarde passa a correr e a loja inicia o seu fecho. Esta na hora de ir ter
com a Jennie e, desta vez, não haverá atrasos.
Fecho a porta da loja à chave e respiro fundo. Caminho lentamente
pela avenida, pois, ainda é cedo para o encontro com a minha amada.
O sol já se pôs a algum tempo, deixando o seu rasto de azul-escuro na
orla do horizonte. O silêncio começa a imperar, deixando a minha
mente tranquila para pensar em tudo o que se passou ontem, à luz dos
lampiões do passeio. A noite promete e, não importa o que traga, será
bem aceite. Vejo a casa da Jennie ao longe, com as suas luzes a
acenderem e apagarem-se. Estará atarefada? Como se sentira neste
momento? Será que esta tomada de paixão por mim assim como eu
estou por ela? Não vale apena pensar em muitos pormenores. A nossa
curta vida permite-nos saborear lentamente cada momento. Apenas
cabe-nos a nós permitir que aconteça.
Chego bem próximo da casa dela, mas não observo qualquer
movimento. Tomo a ousadia de subir as escadas do alpendre.
Chego a porta de entrada e, após aguardar uns instantes, bato a porta
lentamente.
150
A luz do corredor acendesse e a fechadura da porta começa a emitir o
seu ruído de abertura.
A porta abre e vejo a Jennie. Tal aparição faz o meu coração bater
loucamente de nervos e de alegria.
“Chegastes cedo Jonathan!” Responde Jennie surpreendida.
As palavras que tenho na mente querem todas sair ao mesmo tempo,
atropelando-se no momento em que devem fluir lentamente.
“Hoje saí mais cedo e aproveitei para vir ao teu encontro, mas eu
espero por ti, não te preocupes.”
Ela sorri com a minha atrapalhação.
“Dá-me só mais dez minutos e eu já venho ter contigo.” Diz ela.
Oh meu Deus, não sabes quanto estas palavras me fazem sentir tão
feliz, tão realizado!
Enquanto espero, o meu corpo não consegue estar parado pela
agitação de sentimentos que está a viver. É um turbilhão de sensações
que só pode exprimi-los quem passa por eles.
Os dez minutos de espera não são nada comparados a uma inteira
vida de solidão.
Finalmente, ouço passos em direcção da porta de entrada. Levanto-me
do degrau do alpendre e ajeito a minha camisa. A porta abre-se e
Jennie vem ao meu encontro, bela como a lua, atraindo-me de uma
forma tal, que nem o próprio oceano descreveria tal poder.
“Vamos?” Pergunta ela, com o seu admirável tom meigo que me deixa
sempre perplexo com cada letra que sai por aqueles doces lábios.
Damos a mão e partimos pelo meio daquela romântica noite.
Á luz dos lampiões e pelo silêncio daquela rua, as nossas conversas
não param de fluir. É como se nunca tivéssemos tido a oportunidade
de falar ou ate mesmo, de nos conhecer. Partilhamos o passado, o
presente, os planos para o futuro e todo o conhecimento que
possuímos, desde o mais importante até a mera futilidade, sem perder
151
um minuto que seja naquele curto momento.
Finalmente chegamos ao mercado. A vida da cidade parece estar toda
concentrada naquele grande espaço. O ruído de gente que fala, que
vende e que compra, faces surpreendidas, sorrisos e alegria tomam
conta daquele lugar. As multicolores luzes que são emitidas de cada
bancada, dão vida aos infindáveis produtos que lá se vendem. Os
olhos da Jennie se concentram em cada objecto exposto nas
bancadas, desde o mais minúsculo até ao mais surpreendente. Quanto
a mim, simplesmente não consigo tirar os olhos dela.
Vejo a face da Jennie pela primeira vez, maravilhada com o que vê. Tal
visão enche-me de alegria ao saber que consigo fazer alguém feliz. O
dinheiro pode trazer alegria, a saúde e satisfação, mas o amor, esse
traz a verdadeira felicidade.
O mercado não é muito grande, e não dura muito ate chegar-mos ao
seu fim. A Jennie vê ao longe um homem que faz algodão doce com a
sua redonda maquina cinzenta.
“Queres algodão doce Jonathan?” Pergunta Jennie.
Eu gosto de algodão doce, mas, ele perde toda a sua doçura
comparado com a Jennie.
“Sim, já há bastante tempo que não como algodão doce.”
Dirigimo-nos ao tal idoso senhor da máquina de algodão doce, sempre
sorridente e simpático.
“São dois algodões doces por favor.” Peço ao homem da máquina.
“Tu és a Jennie, não és?” Pergunta o ancião.
Surpreendidos por aquela pergunta, Jennie responde:
“Sim, eu sou a Jennie.” Responde admirada.
Ele continua o seu discurso com as suas palavras roucas, devido a
longa idade que possui.
“Possivelmente nunca me vistes nem me conheces, mas eu conheço-
te.” Responde o velho sem parar de fitar os olhos nela.
152
Incomodado com aquela situação, opto por cortar a conversa.
“Ora bem, então quanto e que lhe devo?”
“Ora, não é nada para estes novos pombinhos.” Terminando de
proferir tais palavras, o seu olhar dirige-se para a máquina do algodão
doce.
Completamente surpreendidos com o que acabamos de ouvir,
decidimos simplesmente agradecer pelo gesto bondoso.
Quando nos distanciamos por bem mais de quatro metros, aquele
ancião ergue os olhos para mim e diz-me muito seriamente:
“Toma cuidado Jonathan!”
Nesse momento, paramos os dois, semelhante a duas estátuas. Volto-
me para o velhote, mas ele não está mais ali.
“Mas que raio!” Exclamo em voz baixa.
“O que foi Jonathan?” Pergunta Jennie com o braço entrelaçado no
meu e com o algodão doce na outra mão.
“Não é nada.” Respondo ao olhar para a antiga posição do ancião,
tentando-o encontrar.
“Vamos?” Pergunta Jennie ao ver-me estático, concentrado no que se
passou atrás.
Por fim, não encontrando vestígios do homem idoso que se acabara de
evaporar, prossigo caminho com a Jennie.
Mas a minha curiosidade não se consegue conter dentro de mim, e
quando nos apartamos daquele lugar ruidoso, faço-lhe a seguinte
pergunta:
“Conheces aquele homem?”
“Não, nunca o vi na minha vida. Possivelmente ele já me viu no
restaurante ou então na rua. A cidade e bem pequena e isso facilita
sermos conhecidos por quase toda a gente.” Responde Jennie,
admirada com tal personagem.
“Deixa lá, não te importes com isso. Não quero que tal episódio
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estrague a nossa noite.”
Esquecido o incidente, o foco de atenção centraliza-se em nós os dois.
A lua já está no seu topo da glória nocturna e brilha como uma luz
delicada e tímida sobre tudo em nosso redor.
Jennie sente-se cansada, embora tente disfarçar. Queria estar mais
tempo com ela, mas seria egoísta da minha parte força-la a fazer algo
que a prejudicasse. Assim como lentamente a noite avança, da mesma
forma, lentamente, regressamos para o nosso anterior ponto de
partida.
Por fim, chegamos a casa da Jennie, cansados mas repletos de
alegria.
“Obrigada por este momento Jonathan, já há muito tempo que não
saia para me divertir.”
Apenas sorrio com tal agradecimento, na plena convicção de que fiz
algo de bom, ou melhor, fiz alguém feliz.
“Não tens de agradecer, eu também gostei.”
Jennie sobe lentamente as escadas do alpendre com a cabeça
inclinada para baixo. Estará a meditar na nossa noite? Será que ela me
ira dizer algo importante?
O meu coração palpita na expectativa do que poderá sair nas
entranhas daquele silêncio.
Ela volta a face para trás e diz com o seu tom meigo:
“Quero te ver amanhã Jonathan, pode ser?”
A noite estava escura e silenciosa, mas na minha cabeça, milhares de
foguetes rebentavam em explosões multicolores. A felicidade tomou
mesmo conta de mim ao ouvir tal pedido inegável.
“Eu também quero ver-te amanhã Jennie.”
“Então até amanhã Jonathan.” Diz ela, sorrindo de contentamento,
antes de entrar para casa.
Não consigo tirar os olhos dela, como se ela tivesse algum
154
magnetismo super potente, do qual, tudo o que me pertence deixa de
me obedecer, apenas para a servir.
A medida que a porta fecha, os seus brilhantes olhos verdes ficam
fixos em mim. Lentamente a porta fecha e aquela bela imagem retém-
se na minha mente.
Não existe beleza natural que se possa igualar a Jennie. Ela é, sem
dúvida, o bem mais precioso que poderia cruzar-se na minha vida.
A noite já avançou bastante e ainda tenho que apanhar a bicicleta na
loja. Não tenho absolutamente vontade nenhuma em passar mais uma
noite naquele sítio.
Cheio de energia, corro em direcção a loja. Encontro a minha bicicleta
no mesmo sítio e, desbloqueando a corrente, dirijo-me como um
relâmpago para casa.
Enquanto que pedalo naquele profundo negrume, unicamente
iluminada pela lua, a minha boca não para de assobiar e cantar
desafinadamente todas as musicas que conheço. Mesmo com as
energias já no fim, o meu corpo tem vontade e o desejo de, se for
possível, construir o mundo inteiro.
Após alguns minutos decorridos, começo a identificar as luzes
provenientes dos alpendres dos meus vizinhos. Apenas a minha casa
reside nas trevas, mas não por muito tempo. A noite esta calma e
amena, o silencio domina esta pequena rua, exceptuando o som dos
grilos e um latir canino que vem de muito longe.
Abro o portão em madeira, e com a bicicleta nas minhas mãos, vou
percorrendo o chão em betão até atingir a porta da garagem. Os olhos
pesam-me bastante do cansaço que acumulei nestes dois dias. É fácil
aguentar a fadiga quando partilhamos um momento com alguém que
amamos, mas difícil se torna quando a solidão toma conta de nós outra
vez, auto denominando-se como a nossa fiel e confidente companhia.
Fecho a porta da garagem e entro na sala, tudo está exactamente na
155
mesma, exactamente como a deixei a dois dias atrás.
Já é muito tarde, mas a fome persiste em não me deixar.
Sem hipóteses de ir direito para o quarto, passo pela cozinha em
busca de algo rápido que seja capaz de encher o meu estômago, Após
uma brevíssima selecção, preparo a típica refeição de um homem
solteiro quando tem fome, mas não vontade de cozinhar. Ela é a
magnífica sandes. As pernas começam-me a falhar, dando o sinal de
que a hora do descanso é eminente. Ponho a sandes no microondas e
temporizo-o por três minutos.
Enquanto decorre esse tempo, sento-me no banco da cozinha com os
cotovelos na mesa e as palmas das mãos na testa. E muito complicado
quando as ultimas forcas nos abandonam por completo. Os três
minutos assemelham-se a uma eternidade. Finalmente, ouço o tão
esperado som, semelhante ao ruído de um pequeno sino que
testemunha o final da sua operação. Esfrego os olhos, tentando obter
por meio daquele gesto, mais energia para completar este dia
interminável. Torno a ouvir o mesmo som do pequeno sino uma vez
mais.
As palmas das minhas mãos param de esfregar os olhos.
“Que estranho, porque e que o microondas tocou duas vezes?”
Enquanto pergunto a mim próprio pelo sucedido, o mesmo som repete-
se outra e outra vez mais. Paro de esfregar os olhos e olho na direcção
daquele ruído. Quando ergo os meus olhos, vejo um grande balcão
castanho, iluminado pela luz do sol que penetra por entre as grandes
vidraças da entrada. Nesse balcão, um homem toca uma campainha,
produzindo aquele som que me é tanto familiar.
Não tara até entender que me encontro no mundo 7. Um outro homem,
por trás do balcão, dirige-se até ele e o diálogo inicia-se. Olho em meu
redor, para a grande sala repleta de sofás e cadeiras pretas. Não
existe um lugar vago e mais gente chega com malas. Um piano branco
156
contrasta o negro existente na sala e as paredes vermelhas ganham
vida com os candeeiros amarelos na parede. Enquanto olho para trás
sentado numa poltrona, ouço uma voz feminina.
“Aqui esta o seu café Sr. Jonathan?”
Volto-me para a frente e observo uma jovem com uma veste preta e
curta, com um avental bordado de cor branco.
A primeira ideia que tenho é a correcta, trata-se de uma empregada.
Mas surgem outras perguntas. Como sabe ela o meu nome? Onde e
que eu estou?
Baralhado como um monte de cartas, apenas me sai uma única
palavra.
“Obrigado.”
Ela, por sua vez e com todo o profissionalismo pergunta:
“Quer o seu café com açúcar ou com mel?”
“Com mel, se não se importa.” Respondo eu.
Ela retira um pequeno pacote branco do qual eu o identifiquei
prontamente como sendo de açúcar”
Ela deixa o pacote no meu pires e retira-se.
Eu, descontente com o serviço, aceno com a mão e, em voz alta, tento
inutilmente chamá-la e leva-la a razão.
Ela simplesmente segue o seu caminho, ignorando o meu pedido.
Olho para a embalagem e digo em voz alta:
“E agora o que faço com isto.”
Ergo o pequeno pacote ao nível dos olhos e, para minha surpresa,
observo umas minúsculas letras inscritas nele.
Olho com o triplo da atenção e tento descodificar o que vejo.
A inscrição minúscula diz:
-2 Emergência
1 Porta vermelha
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3 Homem
1 Chave
Estas quatro inscrições não portam qualquer senso.
O que significava a combinação “-2 emergência?” E o que quereria
dizer “3 homem”? Onde é que isto iria dar?
Leio e tento descodificar as quatro combinações, mas sem sucesso.
Uma coisa é certa, nada neste mundo acontece ao acaso, muito
menos por coincidência.
Absorvo mais tempo para descodificar a primeira combinação.
Levanto-me da poltrona com o objectivo de localizar um número 2. Mas
não existe nada na grande sala que porte tal número. Decido vasculhar
os compartimentos que estão agregados a esta grande área. Mas a
minha pesquisa torna-se infrutífera.
Encurvado, encosto-me a parede e observo atentamente o cenário a
minha volta. Mesmo ao meu lado direito, ouço um som semelhante a
uma campainha acompanhada por um breve ruído de pequenos
rolamentos.
“Quarto piso se faz favor.” Diz um homem, vestido de fato e gravata,
ao entrar para um elevador.
Nesse mesmo instante, a minha mente produziu como que um clique,
uma pequena ponte para a resolução deste enigma. O número 2 só
poderia referir a um piso. Mas o que dizer da palavra emergência? Não
existe maneira de descobrir, a menos que comece por uma ponta. Sem
grandes hesitações, aproveito a porta aberta do elevador e entro
naquela gaiola metálica.
O elevador é todo ele espelhado, com o chão alcatifado a vermelho.
Mas a minha atenção não é depositada aí, mas sim, naqueles números
redondos ao lado direito da porta. Enquanto que mais pessoas entram
nele, eu concentro-me em todos os números. De facto, o número 2
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encontra-se lá inscrito naquele painel, mas, mesmo assim, face a
algumas evidências, não consigo convencer-me plenamente do
sucedido. Tiro o pequeno papel do bolso e volto a ler a primeira
inscrição.
'”2 emergência”.
Desta vez a minha concentração é colocada num pequeníssimo e
quase insignificante sinal, o travessão. Olho atentamente para o painel
do elevador, em busca não do 2, mas sim, do -2. A conclusão a que eu
chego é que não existe ali o-2, mas sim, apenas números positivos.
As pessoas que esperavam pela sua entrada no elevador já se
encontram dentro e o operador daquele engenho metálico prepara-se
para subi-lo. Descobrindo que aquele caminho que estava a tomar era
o errado, não hesito em colocar uma pergunta ao empregado do hotel.
“Como é que se vai para o -2?”
Ele olha-me com uma cara de desconfiado, como quem prevê alguma
acção maléfica da minha parte. Tal reacção faz os restantes
passageiros concluírem que se tratava de alguém malévolo, um
terrorista sem escrúpulos.
Nesse momento aprendo a grande lição da minha vida:
“Nunca perguntes nada a ninguém.”
Ser discreto em certos momentos vale tanto como o ouro,
especialmente num mundo onde todos desconfiam de tudo.
“Este elevador parte apenas do rés-do-chão.” Diz o empregado com
uma certa arrogância.
A porta do elevador começa a se fechar e a vontade de lhe fazer mais
perguntas termina ali. Tenho de descobrir o caminho por mim próprio.
Ponho a palma da mão na porta do elevador, impedindo assim, que ela
se fechasse completamente. Saindo do elevador, dirijo os meus paços
incertos por aquela grande área, vasculhando todo e qualquer pedaço
de informação que me possa ser útil.
159
Raciocino comigo próprio, pensando naquela expressão “-2
emergência” que se torna a cada minuto, mais e mais enigmática.
Desencorajado com as adversidades, sento-me no chão de mármore
branco e, com a cabeça encostada ao papel de parede vermelho,
suspiro ao ritmo lento e leve de uma luz verde. A minha concentração
devota-se naquela luz intermitente e o meu olhar foca-se como um
tigre na sua presa. Levanto-me lentamente, sempre concentrado
naquela luz. Aproximo-me dela e tento descodificar o que lá esta
escrito. Observando bem as letras, a minha mente ilumina-se de ideias
e razões, capaz de por a minha pele arrepiada e a tenção cardíaca a
funcionar ao triplo.
“Esta e a resposta!” Exclamo em voz baixa. A razão toma conta de
mim.
No letreiro do sinal verde intermitente existe uma inscrição com a
palavra 'EMERGENCIA'. Aquela era a resposta que eu procurava. O
único meio de alcançar o -2 deveria ser pelas escadas de emergência!
Não perco mais tempo com raciocínios e tomo a acção de seguir
aquele sinal ate ao seu fim. Corro por entre o corredor branco como se
o mundo atrás de mim estivesse a desabar. As pessoas que por ali
cruzavam deveriam pensar que de um louco se tratava.
Finalmente, chego a uma porta de metal anti incêndio verde clara, a
qual empurro arduamente. Uma vez aberta, entro naquele
compartimento de infinitas escadarias. Desço rapidamente as escadas
ate atingir o patamar -2.
Uma vez lá, observo atentamente todos os cantos, mas sem um único
sinal de uma porta. Apenas dois corredores emanam daquele patamar
onde estou. Sigo em frente e entro no corredor direito. O corredor é
escuro, timidamente iluminado por pequenas e fracas lâmpadas de
parede. Existem muitas portas naquele corredor, mas são todas
metalizadas e por mais que tente abrir alguma delas, todas estão
160
fechadas a chave. A situação torna-se desanimante mais uma vez ao
ver que um possível esforço meu reduz-se a uma grande inutilidade.
Percorro lentamente o corredor até ao fim, desanimando cada vez
mais ao ver a parede de betão mesmo no culminar daquele túnel
sombrio. Mas quando a esperança estava quase perdida, descubro
que, uma das últimas portas do lado esquerdo é vermelha, bem
diferente das outras. Ponho esperançosamente a minha mão no
manípulo e rodo-o com toda a vivacidade. Mais, uma vez mais, para a
minha perfeita desilusão, a porta não abre como as outras. O manipulo
roda, mas nem com os meus fortes empurrões como se de um aríete
me tratasse, ela se move. Ponho as palmas das mãos e a testa
apoiadas na porta pensando o que mais poderia acontecer. Enquanto
que me encontro naquela posição, como quem lamenta uma tragédia
contra aquele pedaço de chapa vermelha, o ruído de uns sapatos
fazem-se ouvir através do eco do corredor. Tiro o papel branco do
bolso e leio o enigmático “3 homem”. Ao longe, aproxima-se um
velhote com um carro puxado pela sua mão com varias ferramentas.
Ao longe, observo ele a olhar para uma lâmpada fundida, a qual, ele
pára e toma as devidas providencias para a concertar. Eu penso para
mim próprio:
“Como e possível serem três quando apenas vejo um?” Tal pergunta
não foi suficientemente forte para me intimidar, e assim sendo, dirijo-
me ao encontro daquele velhote que assobia de contentamento.
Chegando ao pé dele, olho com precaução para ambos os lados.
Vendo que tudo ainda se encontra tranquilo, tomo a ousadia de lhe
fazer a seguinte pergunta:
“O Sr. sabe como posso abrir aquela porta vermelha lá do fundo?”
Ele para de assobiar e, franzindo as sobrancelhas responde:
“Não faço a mínima ideia.” Responde ele.
“Saberia me dizer onde posso encontrar tal chave para a abrir?”
161
“Não faço a mínima ideia meu jovem.” Responde ele concentrado na
remoção da velha lâmpada, sem sequer olhar para mim.
“Não há nada a fazer, este tipo não sabe de nada.” Desabafo para
mim próprio em voz baixa. Volto as costas para ele e dirijo-me mais
uma vez até aquela inexpugnável porta vermelha. A meio do caminho,
retiro o pedaço de papel que guardo no meu bolso. Volto a ler a
expressão com a devida atenção e tento imaginar o que ela poderá
tentar explicar-me. Nesse momento, as minhas pernas param e,
olhando fixamente para a frente, a minha mente dá-me uma possível
resposta. O enigma não estaria a falar de três homens, mas sim de
outra coisa. Retorno atrás, uma vez mais, em direcção daquele
velhote. A medida que me aproximo dele, os meus passos parecem se
apressar a medida que espero ver a concretização da verdade. Mais
uma vez, interrogo aquele velhote simpático.
“ O Sr. não faz a menor ideia de como posso abrira aquela porta?”
Ele retira o olhar daquilo que faz e fixa a parede à sua frente.
Em seguida, olha para mim e pergunta:
“Mas qual porta?”
“É aquela vermelha lá do fundo.” Respondo eu esperançoso na busca
da verdade.
Ele põe a mão no bolso e diz:
“Tenho algures aqui no meu bolso.” Tal resposta deixa-me
completamente nas nuvens mas numa tempestade de ansiedade ao
mesmo tempo.
Vasculhando o outro bolso ele diz:
“Aqui tens o que procuras.” Responde ele, depositando a pequena
chave na minha mão. Tal dádiva faz-me correr como um relâmpago
por aquele estreito corredor. Chego à porta, introduzo a chave e a
fechadura rola levemente. Empurro-a e entro por ela com a ânsia de
descobrir o que lá se esconde. A porta apenas da acesso a mais um
162
corredor escuro e sombrio com outra porta na sua extremidade.
“Estará também fechada aquela porta?” Raciocino para mim próprio.
As vezes, apenas existe uma maneira de saber a verdade,
enfrentando-a.
Coloco-me em frente a ela e, com a palma da mão, empurro-a
lentamente. Para meu ânimo, a porta abre-se, dando acesso a casa
das máquinas. O ruído contínuo e abafado das caldeiras dominam
aquele espaço velho e húmido. Olho em todas as direcções, em busca
de uma outra saída, mas em vão. Como é possível ter percorrido todo
este caminho apenas para acabar numa sala quente, escura e
húmida? O senso desta viagem perde-se a cada segundo que passa,
fazendo os meu passos se enredarem como que numa teia de
confusos enigmas. O arranque inflamável de uma grande caldeira atrás
de mim faz-me saltar de susto. Em seguida, ouço um ruído,
semelhante a um clique de um termóstato. A água corre com uma
potente pressão através dos tubos galvanizados.
“Vou sair daqui!” Digo em voz baixa, com os olhos fitados na tubagem
instalada no tecto, temeroso com o que poderá acontecer. Dou meia
volta e volto a minha face na direcção da porta de entrada.
Exactamente nesse instante, um vulto se intromete bem na minha
frente. O meu coração quase que explode com aquela aparição face a
face.
“Não vais a lado nenhum Jonathan!” Diz o vulto bem na minha frente,
parcialmente iluminado pela fraca luz amarelada proveniente das
caldeiras.
“Quem és tu?” Pergunto em puro terror.
O vulto dá um passo em frente e a sua face torna-se visível.
“Sou eu, Francesco, ou já não te lembras de mim!”
Respiro fundo e inclino a cabeça tentando descomprimir os nervos
provenientes daquela situação.
163
“Assustaste-me Francesco, não sabes aparecer de outra maneira?”
Pergunto-lhe ainda com o coração aos saltos.
“Tomara que houvesse, mas não existe outra solução.” Responde ele
com um tom sério.
“Sucedeu algo de mal?” Interrogo-o, preocupado com a sua resposta.
“Pensamos que te tinha-mos perdido ontem Jonathan. A tua ausência
deixou-nos deveras preocupados.”
“Ontem nem tive mesmo tempo para dormir, foi um dia em cheio!”
Digo eu com um sorriso estampado na cara.
“Mas o que aconteceu ontem?” Pergunto-lhe.
“Explico-te pelo caminho. Eles andam bem perto de nós, mais do que
a gente pensa.” Adverte Francesco.
A nossa caminhada prossegue por entre aquela maquinaria ruidosa.
Ao fundo desse escuro compartimento, existem umas escadas de ferro
verticais, enferrujadas pela humidade daquele lugar. Francesco sobe
na frente e eu acompanho-o logo em seguida. É uma subida longa por
entre um poço apertado, rumo a uma pequena frincha de luz branca
que trespassa algo bem lá em cima. Chegando por fim ao topo,
Francesco empurra vigorosamente aquele objecto redondo metálico
semelhante a uma tampa. Ao retirá-la, a luz que emanada do exterior,
ofusca os meus olhos por breves momentos, mas não o suficiente para
abrandar a minha subida. Francesco atinge o topo e logo depois, o
topo é alcançado também por mim.
“Então Jonathan, por onde tens andado?” Pergunta uma voz que não
me e desconhecida.
Volto a face em direcção a origem dessa voz. Atrás de mim vejo o
furgão preto com a porta lateral aberta, estando Sophie, Bland e Volton
em seu redor.
“Foi um dia muito complicado Volton, não pude mesmo comparecer.”
Justifico-me sem desejar dar a resposta a minha ausência.
164
“Ontem a tua presença seria o suficiente para evitar a tragédia que
ocorreu.” Lamenta Volton
“Mas que tipo de tragedia?” Pergunto num tom de preocupação.
Volton olha com o seu ar suspeito para a esquerda e para a direita e,
pondo os óculos de sol responde-me.
“Vamos embora daqui, não tardará ate que eles cheguem!”
Todos entram no furgão, impelindo-me também a fazê-lo.
Jaimie conduz o veículo por entre a apertada rua até ao seu final. O
silêncio e descontentamento imperam no interior daquele veículo.
Volton, no assento da frente, resigna-se com os braços cruzados a
vigiar cada ponto do caminho. Sophie esta sentada à minha frente,
pensativa, com os cotovelos em cima dos joelhos, a apoiarem o queixo
com as palmas das mãos. Bland, simplesmente se encontra encostado
a porta do furgão, com a cabeça inclinada para o teto do veículo.
Francesco não tira os olhos de um papel, como se tentasse decifrar um
código de extrema importância.
Ninguém pronuncia uma palavra que seja, tornando o silêncio naquele
furgão em algo arrepiante.
Por entre os solavancos da estrada, tomo a decisão de quebrar o
silêncio.
“Mas o que e que aconteceu ontem?”
Jaimie responde-me, sem tirar os olhos da estrada:
“Fomos atacados na nossa base.”
“Como assim?” Pergunto intrigado com aquela resposta.
“Já estava-mos todos reunidos, só faltavas tu Jonathan.” Responde
Francesco.
“Mas assim que começamos a receber o sinal da tua aproximação,
ouvimos um grande estrondo na porta. Só tivemos tempo de evaporar
dali para fora.” Afirma Sophie.
“Mas quem eram eles?” Pergunto
165
“Os mesmos do costume Jonathan, os mesmos cães do costume.”
Responde Bland sem mover a sua cabeça inclinada para trás.
“Os bloqueadores localizaram-nos e destruíram a nossa base, agora,
não temos para onde ir.” Profere Volton com um tom pesado.
“O pior de tudo, foi que eles arruinaram todos os nossos trabalhos e
pesquisas bem como o manuscrito que estava a ser descodificado.
Não faço a mínima ideia de como aqueles tipos nos descobriram.”Diz
Jaimie, batendo com as mãos no volante em sinal de profunda revolta.
“Felizmente, não aconteceu nada de mal a nenhum de nos.”
Responde Sophie, apaziguando a situação.
Passados alguns instantes, o veículo abranda e Jaimie olha
atentamente para o exterior.
“É aqui!” Diz Volton.
O veiculo por fim para e Bland abre a porta do furgão. Assim como
todos os outros, levanto-me e saio par fora. Olho em redor e a única
coisa que consigo discernir, é que nos encontramos numa zona
industrial completamente deserta de vida.
Os enormes pavilhões e armazéns de chapa cinzenta dominam toda
aquela enorme e larga estrada.
Em silêncio, caminhamos para um desses armazéns. Apenas se ouve
os nossos passos a estalar a gravilha fina que se encontra na estrada.
Volton aproxima-se de uma porta de metal e, com uma chave, abre o
cadeado que a bloqueia. Todos, excepto Francesco, entramos por
aquela pequena porta para o interior daquele monstro metálico.
Os raios de luz penetram através das placas de telhado plastificadas,
iluminando assim aquele lugar vazio e sombrio.
Bland dirige-se para o grande portão do armazém e, retirando a trave
colocada nele, abre-o vigorosamente. Francesco entra com o furgão
para o centro do armazém. Bland volta a fechar o portão e coloca a
trave nele outra vez.
166
Todos reunimo-nos no centro do armazém junto ao furgão.
“Bland, vem comigo, preciso de dar uma vista de olhos a parte de
cima.” Diz Volton.
Sophie decide investigar a parte direita do edifício e Francesco, a parte
dos fundos.
Apenas resto eu e Jaimie.
“Vou precisar da tua ajuda Jonathan.” Diz Jaimie ao abrir a porta
lateral do furgão.
Eu aceno com a cabeça e sigo-o de perto, observando atentamente
cada movimento elaborado por ele. Jaimie abre um painel repleto de
fios eléctricos no interior do veículo. Com um pequeno computador, ele
conecta alguns cabos a uma pequena caixa cinzenta.
A minha curiosidade aumenta a cada minuto que passa, não pelo que
ele esta a fazer, mas sim, o porquê de estarmos ali.
“Não convêm andarmos muito tempo ao descoberto” Informa Jaimie.
“Porque não?” Pergunto, surpreso com tal novidade.
Sem tirar os olhos do que faz, Jaimie responde:
“O sistema e muito apurado. Qualquer manobra que lhe seja
desconhecida é considerada como uma espécie de desobediência as
leis do equilíbrio.”
Tal explicação deixa-me completamente confuso.
“Não estou a entender. Estas a falar de que sistema?”
Jaimie pára o que esta a fazer e, olhando para mim, inicia o
proferimento de uma enorme revelação.
“Tudo começou à dois anos atrás. Algo não estava muito bem comigo,
pois eu conseguia, através dos sonhos, prever parte do futuro
imediato. Pensei que tivesse algum tipo de dom mas, descobri algo
ainda mais abismante. Depois de algum tempo, encontrei-me
acidentalmente com Volton. Ele esclareceu-me o porquê das coisas ao
ponto de entender claramente tudo o que se passa para lá do domínio
167
real. Este mundo onde nos estamos, determinado por mundo 7,
apenas existe no nosso subconsciente, mas e tão real como o mundo
em que irás acordar de manhã. Ao contrário do mundo 6, que apenas
reside no nosso consciente, regendo-se sobre as coisas que gravamos
ao longo do dia anterior, o mundo 7 é como um projecto de um
arquitecto.”
“Como assim.” Pergunto-lhe completamente estarrecido com aquela
explicação.
“É neste mundo que tudo é determinado, e neste sistema que as
orientações são dadas a cada um de nos. No dia seguinte, cada ser
humano irá cumpri-las na íntegra.”
“Mas isso e o que acontece a robots?” Respondo completamente
chocado com aquela afirmação.
Jaimie continua a sua explicação por dizer:
“Chamemos-lhe apenas uma ausência de livre arbítrio. No fundo, é
como se os humanos fossem programados a efectuarem uma tarefa
para o dia seguinte. É evidente que se eu fosse contar ao mundo
aquilo que se passa com cada humano, o mais provável seria não me
darem ouvidos. A humanidade arranjou uma expressão para justificar
tal acto manipulador. Chamam-lhe de destino, o responsável por tudo
de bom e de mau, ignorando a verdade por detrás de tudo.
“Mas, não é o destino uma realidade? Não temos já uma linha traçada
logo após o nosso nascimento?” Pergunto-lhe na plena convicção do
que me foi ensinado.
Jaimie apenas sorri ao ver quão grande é a minha ignorância, mas ao
mesmo tempo se contem por saber que, assim como o resto da
humanidade, também ele viveu nas trevas da mentira.
Neste preciso momento, Sophie aproxima-se de nós com vivo
interesse na nossa conversação.
“Destino Jonathan, que destino?” Responde Jaimie. “As pessoas
168
gostam muito de ludibriar a verdade com desculpas esfarrapadas.
Acomodam-se a serem manipuladas e, quando a vida corre mal,
simplesmente afirmam serem impotentes, acabando por deitar as
culpas no pobre destino”
Aquela teoria do Jaimie deixa-me profundamente pensativo. Mas ele
prossegue com a seguinte ilustração:
“Se alguém com autoridade te ordena a atirar uma pedra contra um
vidro, farias isso?”
“Sim, se tem autoridade para dar tal ordem é evidente que o faria.”
Respondo, tentando rapidamente saber onde Jaimie quer chegar com
aquele raciocínio.
“E se o vidro parte, será que foste destinado logo no início do dia a
parti-lo?” Pergunta ele.
Tal pergunta faz-me raciocinar profundamente.
“Não, parti o vidro porque decidi obedecer a uma ordem.”
“Bingo!” Exclama Sophie ao ouvir a minha resposta.
“Da mesma forma, a humanidade escolhe inconscientemente seguir
as ordens do Oleiro. Simplesmente, quando o pior acontece, preferem
deitar as culpas no destino como se ele realmente existisse.”
Responde Jaimie.
Seguem-se alguns minutos de profundo silêncio, pois, a minha mente
concentra-se totalmente naquela ultima frase. É triste quando se gasta
tantos anos de vida a acreditar em algo quando, na realidade, tudo não
passa de uma farsa. É claro que não me refiro ao destino, mas sim, a
pobre humanidade que vive controlada por alguém sem escrúpulos,
sem ter a oportunidade de ser bem sucedida nos seus próprios sonhos
e objectivos.
Enquanto penso e repenso em todas as coisas, Francesco entra no
furgão.
“A zona oeste está limpa! Existe uma tomada telefónica bem no fundo
169
do corredor. Abri a caixa e parece-me que ainda funciona.” Diz
Francesco.
Jaimie larga os fios e levanta-se.
“Muito bem, vou lá dar uma vista de olhos.” Diz Jaimie ao sair do
furgão.
“É tudo muito complicado, não e Jonathan?” Pergunta Sophie,
compadecendo-se do meu estado confuso.
“É difícil de compreender, mas uma coisa é certa, tudo encaixa
perfeitamente. Talvez seja por isso que me é difícil de entender.”
Respondo sem tirar os olhos do chão, como quem faz um esforço para
entender aquilo que se passa.
“No início, quando fui encontrada por Volton, pensava que tudo era um
sonho, que tudo era irreal. Nunca me passou pela cabeça que estava a
falar com pessoas que realmente existem no mundo real.” Argumenta
Sophie com o seu típico jeito carinhoso de uma verdadeira amiga.
“Lembras-te daquele incidente que tivestes com uma idosa num
autocarro?” Pergunta Francesco tentando-me levar a razão.
Após vasculhar as minhas memórias, tal episódio vem-me a mente.
“Sim, é verdade. Lembro-me de ter pisado a dona Olímpia no
autocarro.” Sorrio ao conseguir recuperar aquele fragmento de
memória na minha mente.
“Lembras-te o que fizestes no dia seguinte quando a encontras-te?”
Torna Francesco a perguntar.
“Sim, mas porque me perguntas isso?” Indago eu com semelhante
pergunta.
“O que realmente aconteceu?” Insiste Francesco com a mesma
pergunta.
“Bem, no dia seguinte, fui contar-lhe o meu sonho.” Respondo,
tentando saber onde ele quer chegar.
“E ela o que te disse?” Pergunta Francesco novamente.
170
Com o dedo no queixo, como quem tenta puxar algo escondido,
respondo-lhe:
“Bem, deveras foi tudo muito estranho, pois, ela teve exactamente o
mesmo sonho que eu tive. Foi como se aquele episódio tivesse
ocorrido na realidade.” Respondo mais uma vez.
“Esse é o ponto que eu queria chegar contigo, Jonathan. Tudo o que
tu aqui vês existe veramente. Quer sejam pessoas, quer sejas lugares
e até mesmo edifícios. Tudo realmente existe.” Responde Sophie,
relatando tal facto com alguma ansiedade.
“O mundo 7 e apenas uma maqueta de algo que terá o seu devido
cumprimento no futuro. É como um plano do que se ira concretizar.”
Elucida Francesco.
Fico imóvel como pedra ouvir tal explicação lógica e coerente. A minha
mente simplesmente não quer acreditar no que ouve, embora se
aperceba de que aquilo que foi proferido é a plena verdade dos factos.
“Então se vocês realmente existem, será que nos poderíamos
encontrar para esclarecer melhor este assunto?”
“Não e possível Jonathan.” Responde Sophie com alguma tristeza.
“Possível até é, mas sabes o que aconteceria depois?” Pergunta
Francesco.
“Não faço a mínima ideia.” Respondo-lhe desconhecendo as
consequências de tal acto.
“O que te aconteceu na noite após teres revelado o teu sonho àquela
idosa?” Pergunta Francesco novamente.
Após breves segundos de profunda concentração naquilo que se
passou nessa noite, eu respondo:
“Lembro-me de ter sido abordado por uns polícias e de ser conduzido
para uma pequena sala subterrânea. Fizeram-me várias perguntas a
respeito de Volton, as quais eu não respondi. Mas o que isso tem
haver com o facto de ter relatado o sonho aquela idosa?” Pergunto-lhe
171
sem ter a mínima ideia de onde ele quer chegar.
“Quando entramos no mundo 7, não estamos simplesmente a viajar
no nosso cérebro. O mundo 7 é um domínio mundial, coligado por
milhões de outras mentes. É exactamente aquilo que acontece com um
computador que se conecta a Internet. Cada mente se assemelha a
um computador que, por sua vez, se conecta ao servidor, o chamado
mundo 7. Aí, todas as mentes interagem no seu próprio meio e é
exactamente aí que a mente humana é carregada com informações
sobre o que deve ou não fazer. O Oleiro tem a capacidade de
determinar quem está ou não conectado a esta poderosíssima rede.
Quando uma mente acede neste domínio, ela simplesmente
descarrega todas as informações armazenadas do dia anterior,
informações essas, minuciosamente recolhidas e estudadas por ele.”
Responde Jaimie.
“Mas o que isso tem haver com o facto de relatarmos sonhos que
tivemos a outros?” Pergunto tentando construir uma ligação entre o
que se passa entre os dois mundos.
“Diferente de nós os seis, nenhum humano tem a capacidade de se
lembrar de um sonho que se passa no inconsciente. Apenas vem a
memoria aquilo que se passou no consciente. Mas, quando relatas o
sonho que certa pessoa teve neste domínio, consegues trazer a
superfície do consciente desse individuo o seu próprio sonho. Mais
tarde, quando tal pessoa adormece, a sua mente vai ser vasculhada,
assim como acontece todas as vezes, mas desta vez, com um
desfecho diferente. Um alerta de intrusão irá alertar o Oleiro de que
alguém acedeu sem autorização aos registros do domínio 7. A mente
do invadido descarrega todos os dados com respeito a identificação e
localização do invasor ou espião. Na próxima vez que este espião
adormecer, ele sofrerá uma pequena visita desagradável” Relata
Francesco, cheio de convicção no que diz.
172
Após este comentário, a minha mente enche-se de luz, fazendo-me
exclamar:
“Agora consigo entender o que aconteceu naquela noite após ter
falado com aquela idosa. Realmente, tudo faz senso, tudo bate certo!”
Sophie interfere com um gesto de quem recapitula o alerta:
“E por isso que nos nau podemos compartilhar nenhuma informação
pessoal entre nós, pois, se formos apanhados, deixamos de ser livres.”
“Como assim? O que queres dizer com deixar de ser livres?” Pergunto
curioso em saber a resposta.
Francesco medita no que ira dizer, tentando resumir de uma forma
clara e simples a resposta a minha pergunta.
“O manuscrito encontrado por Volton, revelava que nos últimos dias,
sete mentes iriam libertar a humanidade da escravidão. Possivelmente,
tal profecia não se referia ao facto em que todas as sete mentes
deveriam chegar juntas ate ao final. Pois, se assim fosse, seria
impossível atingir o fim visto que perdemos o nosso amigo Max. Mas,
entendemos que, após a identificação da sétima mente, a profecia
começaria a ter o seu cumprimento. Apenas estas sete mentes se
encontrariam livres do poder subversivo e tirânico do Oleiro. Seriam
mentes autónomas, livres de pensarem e de criarem o seu próprio
futuro, sem que alguém o estivesse a controlar. Mas tal ideia não
agrada o
Oleiro. Ele tenta destruir-nos com os seus agentes do mal, os
Bloqueadores. Tais maquiavélicas e poderosas personagens tem dupla
função. A primeira é que eles são encarregados de eliminar um
individuo que está a recordar no seu consciente, aquilo que se passa
no mundo 7 através de um pesadelo, fazendo-o acordar. O segundo
aspecto já tem haver com as mentes livres. Eles tentam eliminar-nos
como que, matando-nos neste domínio, retirando a liberdade e
escravizando a nossa mente ao seu mundo.”
173
“Mas não se trata só de um assassinato virtual.” Interfere Sophie. “O
Oleiro também destrói quem quer no mundo real!”
“Matar quem quer? Como assim?” Pergunto completamente perplexo
com aquela afirmação.
“O Oleiro é a personagem que rege o que ele determina por equilíbrio.
Para o manter, ele cria génios, muda os caminhos dos humanos, e
elimina os inúteis ou aqueles que se intrometem no seu caminho.
Nunca te perguntastes a ti próprio como e possível que certos crimes
bárbaros e atentados sem qualquer explicação sejam cometidos por
uma mente humana?
Simplesmente não encontras resposta a esta pergunta, a menos que
conheças a origem do problema. O Oleiro ergue quem ele quer e
elimina quem deseja. Fica certo em saber que, se ele descobre a
nossa identificação no mundo real, a dívida será paga com as nossas
vidas.”
Tal explicação deixa-me terrivelmente perplexo mas ao mesmo tempo,
feliz por conhecer a verdade.
“Existem apenas duas regras neste mundo.” Continua Francesco. “A
primeira é, "nunca reveles nada a ninguém, quer seja aqui ou no
mundo real". A segunda baseia-se no final de cada operação diária,
Nunca te esqueças de sair pela porta.”
Aquela segunda regra enigmática deixa-me um pouco confuso.
“Mas o que envolve "sair por uma porta"?”
Sophie responde com um gesto sereno:
“Quando um de nós sai deste domínio por uma porta, tudo aquilo que
viveste ser-te-á recordado quando acordares.”
“Mas há mais.” Interfere Francesco. “A porta não é uma qualquer, mas
sim, aquela que serve como "portal" de ligação entre os dois mundos.
Se algo te faz despertar deste mundo sem teres tempo de sair por um
portal, a tua mente fragmenta-se e jamais terás acesso a este mundo
174
com uma mente livre. É de extrema importância que sigas este
mandamento.” Adverte Francesco seriamente.
As estranhas palavras que ouço, deixam-me completamente absorto
na minha mente, sem saber por onde devo iniciar a minha reflexão.
Tudo é novo, mas não se torna confuso ao sê-lo, pois, o que
Francesco acaba de proferir, acontece exactamente comigo. O efeito
de cada palavra que sai da boca dele, resulta na libertação de novas
peças deste enigmático puzzle, criado na minha mente. Peças essas,
que se encaixam perfeitamente no sítio correcto, dando-me um quadro
visual deste misterioso mundo.
“A ligação é perfeita e o ponto de conexão com exterior não tem
identificador. Preparem-se para a acção, estamos prestes a iniciar!”
Exclama Jaimie do exterior do furgão, demonstrando um grande
contentamento no rosto. Francesco levanta-se e auxilia Jaimie com a
conexão de todos aqueles cabos multicolores provenientes do furgão.
“É tudo muito complicado para ti, não é Jonathan?” Pergunta Sophie
em voz baixa.
“Pode ainda ser um pouco difícil de entender, mas no fundo, tudo faz
sentido. Só me pergunto em como podemos libertar a humanidade da
escravidão. Por que ponta devemos começar.” Pergunto ainda com o
pensamento absorto nas palavras de Francesco.
“Isso só se descobrirá no confronto final com o Tirano. Até agora não
existem pistas da sua localização exacta. Aquilo que sabemos é que
irá ser libertado muito em breve um artefacto, algo que dá plenos
poderes ao oleiro para efectuar o seu trabalho.” Informa Sophie,
tentando de todas as formas saciar as minhas dúvidas.
“Mas em que consiste tal artefacto?” Pergunto com muita curiosidade,
indagando-me a mim próprio, com respeito a sua importância.
“Não sabemos o que é Jonathan. A única coisa que sabemos é que tal
artefacto dará plenos poderes ao seu usuário, poderes esses de fazer
175
o que ele quiser neste mundo. Tal libertação está a deixar o sistema
temeroso de um possível furto, fazendo com que a segurança deste
domínio se multiplique vezes sem conta.” Esclarece Sophie com o
conhecimento que possui.
“O momento é este meu amigo, estamos bem perto de interceptar a
verdadeira origem do Ditador.” Responde Volton com a sua voz
imperial ao entrar no furgão. “Muito em breve, irá sair uma mensagem
por correio a todas as unidades deste mundo, com dados informativos
acerca da localização do artefacto.”
“E encontrando o artefacto, encontramos o Oleiro.” Finaliza Sophie,
animada e esperançosa por ver o desfecho da profecia.
Tal afirmação lança-me para a borda da razão. Não hesito em
perguntar "o porque" de tal veredicto.
“Mas que tipo de correio?”
“O sistema da ordens através de agentes ao qual os identificamos por
correio. Não são humanos nem nossos inimigos. Apenas cumprem a
função de conduzir as mensagens a cada humano, com respeito ao
que deve fazer quando acordar. É o meio usado pelo o Oleiro de
manipular os humanos.” Responde Volton
“Mas não seria melhor começar pela eliminação desses agentes? Se
tal sucedesse, não haveria meio da mensagem se propagar!” Exclamo
ao tentar encontrar uma solução para este desafio.
“Não e possível. Estes agentes não são destrutíveis, e mesmo que um
desaparece-se, outro se ergueria no seu lugar. A única maneira de
impedir que a mensagem chegue a mente do destinatário é
simplesmente rouba-la. Mas farias isso quando existem milhões e
milhões de mentes?” Raciocina Volton.
“A nossa única e última esperança é a intercepção da mensagem que
sairá em breve. Afirma Francesco, ouvindo a conversa do lado de fora.
“Já faltou mais tempo meu amigo, agora é o momento de saborear
176
todo o nosso empenho nesta missão.” Regozija-se Jaimie, enquanto
conecta um mar de pequeníssimos cabos uns nos outros.
Francesco entra no furgão, e acciona alguns botões que se encontram
num painel acima das nossas cabeças. Accionados os comandos,
várias luzes minúsculas de tons amarelados e vermelhadas acendem-
se. Em seguida ele acciona o computador instalado numa espécie de
prateleira em frente a porta lateral.
“Jaimie. Anda ver isto!” Exclama Francesco enquanto que clica no
teclado daquele computador.
Jaimie aproxima-se e olha atentamente para a tela do ecrã.
“Bom trabalho rapaz, conseguimos a conexão.” Responde Jaimie com
um ar sério mas sereno com os resultados obtidos.
Volton levanta-se do assento e dirige-se a eles os dois.
“Então, já podemos continuar?” Pergunta Volton com o olhar fixo na
tela.
“Esta tudo pronto para recomeçarmos.”
Ouço aquelas conversas, mas sem saber o seu significado. Algo de
importante vai acontecer. Agora só falta saber o que é e quando
sucederá tal evento. Ao menos, uma coisa e certa. O mar de dúvidas
que eu possuía na minha mente, reduziu-se a um pequeno ribeiro.
Ainda restam dúvidas em torno da minha mente, mas estou certo de
que o tempo ira esclarecer cada detalhe delas.
Nesse preciso momento, um pequeno ruído semelhante a um alarme
toca. Jaimie ergue a cabeça da tela do computador e fixa a sua
atenção num pequeno dispositivo preto com uns led's vermelhos.
“Esta na hora, tendes que sair daqui!” Ordena Jaimie.
Aquela ordem deixa-me intrigado. Todos se levantam e organizam-se
para receberem instruções. Aproximo-me de Sophie e pergunto-lhe:
“O que e que vai acontecer?”
“Atingimos o perímetro de segurança, ou seja, o início de um novo dia
177
no mundo real está para chegar. É tempo de retornar antes que algum
de nós seja acordado antes do tempo. Neste momento, Jaimie irá abrir
portas para cada um de nos.”
“Bland, tu tens uma porta no andar de cima. Percorre o corredor ate
ao fim.” Instrui Jaimie.
“Vemo-nos amanhã amigos.” Despede-se Bland com a sua típica voz
grossa.
“Sophie, tu tens a tua porta no lado sul do armazém.”
“Obrigada Jaimie. Até à manha Jonathan.” Despede-se Sophie,
caminhando em direcção do negrume canto daquele velho armazém.
“Francesco, tens uma porta nas traseiras do armazém.”
“Arriverderci amici!” Despede-se Francesco na sua língua materna.
“Volton, a tua porta localiza-se no armazém 22.”
“Vemo-nos amanha.” Despede-se Volton, levantando-se do assento e
dirigindo-se para o exterior do furgão.
“Jonathan, tu tens a tua porta no armazém da frente.”
Levanto-me do assento e avanço para fora do furgão.
“Até amanha Jaimie.” Despeço-me ao mesmo tempo que avanço mais
uns paços. Reflicto nas palavras de Jaimie achando algo
definitivamente estranho. Algo tão insólito que me leva a perguntar:
“E para ti? Quem te vai abrir uma porta?” Pergunto, surpreso com a
resposta que ele anteriormente me dera.
“Eu não preciso de sair.” Responde Jaimie sem tirar os olhos da tela.
Mas como isso era possível? Todos nós precisamos de sair deste
mundo para acordarmos. Como era possível que ele não o fizesse?
Mesmo assim, evito que a minha curiosidade se intrometa no meu bom
senso, preferindo que seja o tempo a dar as respostas a todas as
minhas perguntas. Apenas uma pergunta me foge da boca.
“Amanha encontramo-nos aqui?”
“Sim.” Responde Jaimie, sem retirar os olhos da tela.
178
Eu, um pouco reticente, volto a fazer uma segunda pergunta:
“E como eu faço para vir cá ter directamente?”'
Jaimie vira-se na sua cadeira rotativa para elucidar as minhas dúvidas.
“Existem duas maneiras de cá apareceres. A primeira é a gente meter-
te directamente cá. A segunda baseia-se na tua memória remota.
Antes de adormeceres, pensa no último local onde estivestes e lá
aparecerás.”
Elucidado com tal resposta, retiro-me daquele sítio e dirijo-me para fora
do armazém. A larga rua continua deserta soprada por uma leve brisa
que quebra aquele silêncio de pedra. O armazém que procuro está uns
dezoito metros a minha frente e assim como este, ele também possui
uma pequena porta metálica. Abro com facilidade essa porta e entro o
mais apressadamente possível. Semelhante ao armazém anterior, este
também reside nas trevas. Não existe absolutamente nada nele,
apenas uma porta ao fundo. Apresso os meus passos até atingi-la.
Uma vez na sua frente, abro-a lentamente sem saber o que jazerá lá
dentro. A escuridão é a única inquilina a residir no seu interior. Entro
por ela e fecho a porta e...
Acordo.
179
Capitulo 9
Abro os olhos apenas para dar comigo sentado no sofá da sala. Olho
para o relógio da parede e, nesse preciso momento, o ponteiro sala
para as sete da manhã, fazendo o despertador do quarto tocar como já
é habitual. Esfrego os olhos e ergo-me da poltrona da sala com a
roupa totalmente encorrilhada e com uma dor de pescoço como nunca
tive anteriormente. Desligo a televisão e caminho sem rumo para
enfrentar mais um da. Lentamente, dirijo-me à janela para observar
mais uma manhã. Bem ao longe, observo o azul no horizonte a
anunciar mais um novo e quente dia.
Preparo o meu pequeno-almoço ao som do rádio e das notícias que lá
rolam.
O relógio não pára e a hora de ir para o trabalho chega no seu tempo
certo. Abro a porta da garagem, sento-me no meu único meio de
transporte e aí vou eu.
Penetrando por aqueles raios de sol intensos que se encontram ao
nível do horizonte terrestre, vou-me deliciando com a suave brisa de
mais um dia que nasceu para a humanidade.
Enquanto que os meus olhos se concentram no branco tracejado da
estrada, a minha mente não deixa de pensar no que aconteceu esta
noite. As perguntas sem aparente resposta, inundam o meu
pensamento mais uma vez. O que é o artefacto que nos iria conduzir
ate ao oleiro? Que tipo de poderes possui tal personagem? Como
poderia ser libertada a humanidade? São perguntas intrigantes, as
quais não encontro resposta. Apenas o futuro poderá dar tal explicação
com respeito ao rumo a tomar. Finalmente chego ao meu local de
180
trabalho. Encosto a bicicleta a parede e abro a porta com o grande
molho de chaves que possuo. Ligo as luzes e preparo os papéis para
mais um dia. Dirijo-me ao balcão e, abrindo a porta do mesmo, reparo
que o livro das facturas se encontra ligeiramente afastado dos
arquivos.
“Que estranho!” Exclamo eu ao ver tal deslocamento. Digo isto pois,
tenho o hábito de o encostar ordeiramente aos arquivos que lá se
encontram. Pelo que sei, o Sr. Robert não é pessoa para bisbilhotar o
meu serviço. E em falar nele, ouço uma tosse rouca vinda do exterior,
típica de Robert.
“Já estás aqui Jonathan? Hoje madrugaste!” Diz Robert ao entrar na
loja, admirado por ter chegado antes da hora de abertura.
Encolhendo os ombros eu respondo:
“Há dias em que o sono desaparece, obrigando-nos a despachar o dia
mais cedo.”
“És tão novo e já vais assim? Espera a te chegares a minha idade!”
Respondo Robert com um leve tom humorístico.
“Não sei se sabes, mas amanhã vai chegar uma grande encomenda
da parte da manhã.” Adverte Robert, enquanto veste a sua farda. “É a
mercadoria para o novo centro comercial.”
“Não se preocupe, deixarei tudo organizado no final deste dia.”
Respondo com a certeza de quem já possui bastante experiência neste
campo.
“Eu bem sei que posso sempre contar contigo, tu nunca me deixastes
ficar mal.” Testemunha Robert, com um sorriso no rosto.
Tais palavras elogiosas deixam-me fora de mim. Não é que seja
orgulhoso nem jactante, mas todo o humano necessita de ser elogiado
e respeitado para ser feliz. Faz parte da nossa composição natural.
“Se precisares de alguma coisa, eu estarei ao fundo do armazém.”
Informa Robert voltando-se para o corredor do armazém.
181
Não tarda muito até os primeiros clientes aparecerem na loja, fazendo
com que o tempo passe a correr. E a correr chega a hora do almoço, o
momento alto do dia. O momento em que posso estar mais perto da
pessoa que enche a minha alma de luz divina, dando-me a razão da
minha existência.
No fundo do armazém, Robert alça a voz e pergunta-me:
“Esta na hora do almoço. Fechas essa porta?”
“Fique descansado que eu tranco-a.” Sabendo de antemão que ele
não ira sair por ela.
Dirijo-me ao quadro da electricidade e desligo a energia. Fecho a porta
a chave e deixo-me guiar pelos meus passos, por entre a calçada
daquela deserta avenida. O céu vestiu-se de cinzento claro, ao
contrário das expectativas para o dia de hoje. A brisa matinal
transformou-se num leve vento. Vendo o dia a piorar
consideravelmente, opto por acelerar o meu passo até ao local de
trabalho da Jennie. O restaurante encontra-se apinhado de gente para
não variar, fazendo com que a Jennie não tenha nem um segundo de
paz neste dia. Eu, em vez de procurar um lugar naquele pandemónio
infernal, fico especado a olhar para a sua beleza. A razão de tal
comportamento é que já se passaram mais de doze horas que não a
via, fazendo com que o meu coração transborde de saudade por ela.
Ela repara em mim e, subitamente, a sua face de menina concentrada,
desvanece-se num doce sorriso. Tendo as mãos ocupadas com loiça,
Jennie acena com a cabeça, indicando-me para tomar um lugar,
evitando assim, ficar ali como uma estátua, sem saber o que fazer.
Finalmente, tomo a decisão de me sentar enquanto que espero por ela.
Não demora muito até ela vir ter comigo.
“Olá Jonathan, estás bem?” Pergunta ela com uma alegria nunca vista
por me ter encontrado outra vez.
“Agora sim.” Respondo eu.
182
“Já encomendei o teu pedido na cozinha, é só esperares um pouco.”
Informa Jennie.
“Se estiveres sempre ao meu lado não e difícil esperar.” Respondo
como quem cai por amores.
Ela, timidamente baixa os olhos e sorri com a minha resposta.
“Tens planos para o final do dia?” Pergunto-lhe, tentando uma forma
de passar mais tempo com ela.
“Não, hoje não tenho nada de especial para fazer.” Responde Jennie
com um tom de quem sabe o que irei dizer a seguir.
“Queres dar uma volta a cidade comigo?” Pergunto-lhe.
“Sim, pode ser. A que horas queres?” Responde ela rapidamente,
como quem anseia muito o resultado daquela pergunta.
“Pode ser as mesmas horas de sempre em frente a tua casa.” Digo
eu.
“Para mim é perfeito!” Exclama Jennie de alegria.
Ao fundo, ouve-se um pequeno sino e uma voz que grita dizendo:
“Jennie, Jennie!”
“Tenho de ir Jonathan, o cozinheiro precisa de mim.”
“Não tem problema. Respondo eu, querendo sempre o melhor para
ela.”
Mal posso esperar por o final da tarde para estar com ela outra vez.
Não tarda muito e a minha hora de entrar mais uma vez ao trabalho
chega como de vez. Levanto-me da cadeira e aceno a ela com a mão.
Ela responde-me com um sorriso, encolhendo os ombros ao mesmo
tempo. A minha vida está mudar por completo, pela primeira vez, para
melhor. Saio do restaurante e dirijo-me directamente para o local de
trabalho com um passo apressado e pensativo em tudo o que o futuro
me poderá trazer neste momento em diante. Finalmente, chego a loja e
saúdo Robert mais uma vez. Ele por sua vez, possui uma cara triste e
pensativa, de quem tenta solucionar um enigma complexo e remediar
183
todas as suas maléficas acções. A sua feição desperta toda a minha
preocupação ao ponto de lhe perguntar:
“Aconteceu algo de mal?”
Ele hesita em responder, temeroso daquilo que pode ser considerado
verdade.
“Tens a certeza de que o camionista trouxe tudo o que listava na
factura?” Pergunta Robert, indagando a origem do problema.
“Sim, ele trouxe tudo aquilo que lhe pedimos, mas porque? Aconteceu
algum problema?” Pergunto-lhe com um ar de extrema preocupação,
de quem fica aflito com uma possível má noticia.
“Durante a hora do almoço, o chefe teve a verificar a encomenda e
reparou que muitos dos artigos pedidos não estão lá, mas foram
cobrados na mesma.” Responde Robert, na esperança de que eu lhe
esclareça o problema.
“Como isso foi possível? Eu anotei cada unidade no papel, é
impossível que só parte da encomenda chegasse até nós!” Exclamo
preocupadíssimo com tal notícia.
“Então só existe uma resposta. A mercadoria foi roubada.” Responde
Robert coçando a cabeça, como se tal acção o ajudasse a pensar
melhor.
Aquela resposta deixa-me completamente aterrorizado pois, os únicos
a ter as chaves de todo o complexo sou eu e Robert.
“Mas existem evidências de um arrombamento, de um vidro partido,
ou até mesmo de uma fechadura vandalizada?” Pergunto, tentando de
alguma forma encontrar uma solução, uma resposta para me ilibar de
uma possível acusação de roubo.
“Infelizmente não Jonathan. Se houve alguém que poderia ter entrado
para levar algo, esse alguém teria de ter uma chave. Apenas nós os
dois possuímos essa chave. Não é que desconfie de ti, tu bem sabes
disso! O problema é que esta é a segunda vez que acontece. Algo de
184
estranho está acontecer aqui.” Desabafa Robert com o sucedido.
Enquanto que tento encontrar uma solução para este misterioso
desaparecimento, o telefone do balcão toca. Por estar mais perto,
Robert atende a chamada. Ainda a pensar no problema, o meu olhar
fixa-se em Robert. Ele fala muito baixo e com os olhos postos no chão.
Dele apenas ouço palavras semelhantes a sim, não, não sabe o que se
passou, já lhe perguntei, está bem, e no final, a frase que menos
gostaria de ouvir se concretiza:
“Ele vai já.”
Essa foi a minha sentença de execução, ter de enfrentar a fera pela
segunda vez sem qualquer dó nem piedade.
“O chefe quer falar contigo.” Informa Robert, com tristeza ao
reconhecer a minha possível púnicas pelo sucedido.
O meu coração bate violentamente e a vontade de fugir e torna-se
imensa. Ao som daquela ordem, caminho a um passo lento, rítmico,
semelhante ao tambor de comando de uma galé. O pensamento foge-
me a cada passo dado só de pensar naquilo que será de mim se
perder este trabalho. Subo as temíveis escadas até ao ninho da águia.
Atingindo a porta do escritório, respiro fundo para me acalmar um
pouco, pois no fundo, tudo isto não passa de um mal entendido. Bato
ligeiramente a porta e entro de seguida.
“O Sr. chamou-me?” Pergunto eu humildemente, com um pé dentro e
outro fora do escritório.
Ele demora uns instantes a responder, agoniando aquela situação,
mas quando decide intervir, simplesmente levanta os olhos por um
curto momento, para de seguida, voltar-se a concentrar naquilo que lê.
O silêncio naquela sala e brutal. Posso até afirmar que consigo ouvir a
minha própria pulsação agitada.
Ele simplesmente lê o jornal com toda a calma do mundo, como se
ninguém ali estivesse a olhar para ele. Todavia, ele bem sabe da
185
minha presença, fazendo de propósito, com o único objectivo de
aumentar a minha já grande ansiedade. Com o dedo indicador e o
polegar, ele segura os grandes óculos que possui. Apenas os seus
olhos se mexem naquela face gorda e maquiavélica.
Terminando a sua leitura, ele dobra o jornal e coloca-o no lado direito
da secretaria. Cruzando os dedos nas palmas das mãos, ele responde
calma e friamente:
“Sabes Jonathan, em doze anos nunca desapareceu nada deste
armazém, nada, nem sequer um parafuso. A quanto tempo tu trabalhas
aqui?” Pergunta ele ardilosamente.
“Vai fazer cinco anos daqui a dois meses.” Respondo com toda a
dificuldade do mundo, como se a voz me falhasse a cada letra
proferida.
“Pois bem.” Responde ele. “Em apenas um ano, desapareceu o
equivalente a cinco meses de ordenado teus.” Ele levanta-se da
poltrona e vagueia pela sala como se fosse um filósofo pensador.
“Onde terá ido tal mercadoria?” Pergunta ele cinicamente. “Será que
alguém a comeu sem querer? Será que tinha pernas e saiu correndo?”
Pergunta cinicamente. “Sabes Jonathan, estou farto de ser roubado e
de perder dinheiro. Se tu não assumes o que fizestes eu não tenho
outra hipótese senão despedir-te.”
“Mas eu não fiz nada, eu nunca levei nada daqui fosse o que fosse. O
Sr. bem pode perguntar ao Robert a respeito de mim. Jamais faria uma
coisa dessas!” Suplico ao ver a calamidade a se aproximar.
Ele apenas sorri como quem diz para si próprio: "continua a enganar-
me que eu gosto".
“Vou ser benévolo contigo.” Diz ele como se tivesse o dom de Deus
para perdoar pecados. “Dou-te uma semana para encontrares a causa
deste problema ou para confessares o que fizestes. Se não
conseguires, escusas de aparecer na segunda-feira.”
186
“Mas isso não é justo, eu não sei...”
“Podes ir para baixo, já estamos esclarecidos.”
Alçando a sua voz, ele interrompe abruptamente a minha defesa com o
seu argumento frio e injusto.
Levanto-me da cadeira revoltado com aquela situação. Desço as
escadas rapidamente e desloco-me mais uma vez para o balcão da
loja. Robert entretêm o tempo a limpar umas ferramentas na loja,
enquanto que aguarda o resultado deste assunto.
“O que disse ele?” Pergunta Robert sem interromper a sua limpeza.
Eu não respondo, apenas dirijo-me rapidamente para o balcão com o
objectivo de vasculhar toda a documentação em busca de uma
possível pista. O meu olhar sério e revoltado preocupa a Robert,
fazendo parar o seu serviço e dirigir-se até mim.
“O que aconteceu Jonathan?” Pergunta ele com toda a preocupação
paterna.
Eu volto a minha face para cima e respondo-lhe ao mesmo tempo que
vasculho as gavetas debaixo do balcão.
“Tenho menos de uma semana para descodificar este enigma do
material desaparecido.”
Robert, ao mesmo tempo que pensa, comprime o queixo com os dedos
da mão direita, como se isso o ajudasse a encontrar uma pista na
resolução deste mistério.
Mas ele não profere nem uma única palavra.
E aí, nesse preciso momento, uma luz iluminou o meu cérebro,
fazendo uma interrupção nas minhas rebuscas e petrificando-me com
a aparente verdade. A minha mente por mais cálculos que faça dá-me
sempre o mesmo resultado. O ladrão só pode ser Robert. Sento-me
estrondosamente no chão a reflectir naquilo que menos queria
acreditar. Por mais que o tente proteger, as minhas ideias acusam-no
como o único e possível réu deste enigma.
187
“Não pode ser!” Exclamo incrédulo. “Mas para é que ele quer tais
materiais? Como é possível, após tantos anos de serviço leal, transigir
de tal forma? A minha cabeça transforma-se num tribunal, onde Robert
é acusado e ilibado, sem se chegar a um veredicto final. Mas por mais
acurado que seja, um crime nunca e perfeito. A grande evidência surge
na prova que nos acompanha dia a dia, as chaves. Os únicos a
possuírem tal instrumento são três pessoas, eu, Robert e o chefe. Esta
é a evidencia clara de que um de nós os três é o real culpado. O
problema é que as chaves são apenas uma pista e não uma prova. Se
o quero apanhar, tenho de ser ardiloso. Ergo-me do chão e respondo-
lhe:
“Não se preocupe, a verdade vem sempre ao de cima.”
Ele, com o seu olhar triste e condoído, responde-me:
“O que eu poder fazer por ti diz-me Jonathan? Podes contar comigo.”
Voluntariza-se Robert, penalizado com o sucedido.
Hipócrita, como as pessoas podem disfarçar tão bem as suas
monstruosidades. Ele faz-me acreditar que eu sou inocente, embora
possua uma das três chaves, facto esse, que me lança num dos três
possíveis malfeitores. Embora o meu desejo se torne numa obcecável
busca pela verdade, o meu coração não avança com tal condenação.
O coração pode ser mais traiçoeiro que todas as outras coisas e quem
se guia por ele acaba na perdição. Ele não serve para ser patrão, mas
sim, como amigo que nos elucida sobre o lado bondoso e sensível da
vida.
Tal conflito entre a mente e o coração deixa-me de mãos atadas, sem
saber o que fazer e por onde começar.
“Vais ver que vamos encontrar os responsáveis por esta situação.”
Afirma Robert com convicção. “Amanha ira chegar uma nova
encomenda. Temos de colocar as caixas em sítios estratégicos para
apanhar esse maldito "rato"!” Exclama Robert, com um ar de quem
188
quer descobrir a verdade.
“Assim espero.” Respondo sem nenhuma convicção.”
“Eu vou lá para dentro, se precisares de mim é só dizer.” Diz Robert,
mais animado com a nossa curta conversação. Talvez esteja animado
por nunca mais ser descoberto e ser ilibado de todos os pecados
cometidos. Ergo os ombros e digo em voz baixa:
“Alguém tem sempre de ser o bode expiatório.”
A tarde decorre com lentidão, sempre com a mente posta na quente
discussão de hoje e no que virá depois.
Após algumas horas decorridas, a hora do fecho chega. É tempo de
aliviar a mente junto da pessoa que mais amo neste mundo. Desligo as
luzes e fecho a porta sem me despedir de Robert, algo nunca sucedido
nos meus quatro anos de serviço nesta loja.
“Já chega de pensar em tragedias por hoje. Cada mal no seu próprio
dia, não vou aborrecer-me mais por algo que já passou ou no que virá
futuramente.” Desabafo para mim próprio.
Desbloqueio a minha bicicleta e dirijo-me para a casa da Jennie o mais
rápido que posso. Ao menos, tenho um motivo para viver, uma razão
para ser feliz junto de quem mais amo neste mundo, a minha Jennie. O
sol começa a esconder-se no horizonte daquela planície repleta de
pinheiros. Apenas se ouve crianças que riem com as suas brincadeiras
no jardim em frente ás suas casas. O cheiro de grelhados suculentos,
emana por toda aquela rua florida por pequenos vasos multicolores. A
vida é perfeita, apenas está no nosso poder mantê-la no bom caminho.
Ao longe, observo a Jennie sair de casa e descer o alpendre. A sua
beleza e capaz de ofuscar a luz do próprio sol e de atrair a minha alma
com mais forca do que a lua a atrair o grande oceano. Os seus belos
cabelos castanhos encaracolados balançam suavemente a cada leve
passo que ela dá. O seu vestido primaveril faz dela a flor mais bela e
única de todo este jardim do Éden. Aproximo-me dela sem ter a
189
capacidade ou a forca de retirar os meus olhos dos seus magníficos
olhos verdes. Ela, como de hábito, sorri ao ver o meu constante estado
de quem se contempla a observar o que mais de magnífico e precioso
se pode encontrar neste mundo.
“Vamos?” Pergunta ela com uma doçura inimaginável.
Abandono a bicicleta logo ali no chão e, estendendo o meu braço,
respondo:
“Com toda a certeza do mundo.”
Ela sorri e cora ao mesmo tempo. Embora nunca tivesse declarado o
meu amor por ela, a nossa intimidade fala por nós e aos outros que
nos vêm sempre de mãos ou braços dados. Os momentos que passo
com a Jennie são inexplicáveis. Apenas os compreende quem já amou
ou se deixou ser amado. Diferente da cega e ardente paixão, o nosso
amor não arde rápido como um papel mas lentamente como um
grande toro de lenha. Talvez alguém nos critique de não mostrar em
publico a terna afeição que demonstramos um para com o outro, mas
isso não nos importa. Melhor que o rápido prazer egoísta é o doce
saboreio de quem partilha o presente e o futuro com quem desejamos
estar.
Podia classificar e exemplificar o Universo que reside na simples
palavra "amor", mas se o assim fizesse, perderia toda a minha preciosa
vida na sua definição. O amor não se explica, sente-se. O amor não se
recebe, partilha-se. Para todas as equações existe uma fórmula. O
amor é a única equação que não a possui. Tento comprar o máximo de
tempo possível para estar com ela pois, por mais tempo que partilho
com Jennie, nunca é o suficiente para ficarmos completamente
saciados deste amor eternamente infinito.
A noite já caiu a bastante tempo e a brilhante lua posiciona-se no topo
do mundo, aconselha-nos a despedirmo-nos de mais um dia.
Acompanho Jennie até casa e no suave silêncio da noite, ouço a sua
190
doce voz baixa dizendo:
“Até amanha Jonathan.” E com um belo sorriso, ela volta-se e sobe as
escadas do alpendre. Quanto a mim, resto ali, na rua, petrificado ao
olhar para o anjo mais belo de todos, a obra-prima da criação do
Grande Escultor. A porta fecha-se lentamente ao embalo daqueles
brilhantes olhos verdes. Ela acena e fecha a porta de seguida. Eu
apenas suspiro, não de pesar pela amargurada vida que levei, mas
sim, pelo tesouro que encontrei. Volto as costas e tento encontrar a
bicicleta que abandonei no chão. Olho em frente e encontro-a
encostada a uma grade. Alguém gentilmente viu ela no chão e a
colocou lá. Pego nela e pedalo até casa ao som do silencioso canto de
grilos, harmoniosamente afinados, cantando o seu hino da vida.
Por fim chego a casa, cansado, mas com uma fome de leão. Abro o
frigorífico sempre vazio, obrigando-me sempre a improvisar algo para o
jantar. Depois de pronta a refeição, opto por comer em pé, pois já é
tarde e estou cansado, não quero perder mais tempo com este dia que
já passou. Penso assim, não porque esteja verdadeiramente cansado,
mas sim, ao contemplar a poltrona da sala, pensando no sucedido na
noite passada, como se uma força oculta estivesse-me a atrair cada
vez mais, com uma intensidade brutal.
Ponho a loiça na banca, e dirijo-me para o quarto. Ainda com a roupa
vestida, deito-me na cama e de barriga para cima, contemplo o teto do
quarto a medida que os meus olhos se fecham lentamente. Uma vez
fechados, sinto a minha mente a desligar-se deste mundo e o meu
corpo a mergulhar num profundo e negro abismo.
Ouço vozes, mas não consigo discernir quem é que as pronuncia.
Tento empurrar o que quer que esteja a minha frente na direcção
daquelas vozes. Finalmente toco em algo e uma porta se abre,
deixando que a minha face seja iluminada pela luz do exterior. Uns
bons metros a minha frente, encontro Sophie, Bland, Francesco, Volton
191
e Jaimie em pé em redor de uma mesa iluminada por um pequeno
candeeiro.
Sophie, sentindo a minha presença, volta-se e diz sorrindo:
“Bom dia Jonathan!”
Todos se voltam e olham para mim.
“Estava-mos mesmo a falar de ti, aproxima-te!” Responde Volton.
Aproximo-me daquela mesa, sempre observando o sítio em meu redor.
Ao fundo, do lado direito, vejo o furgão que me ajuda a identificar
prontamente o sítio onde me encontro, o mesmo do dia anterior.
Plenamente convicto onde me encontro, avanço em direcção daquela
mesa. Papéis e mais papéis dominam toda aquela superfície, bem
como arquivos e mapas.
Olho para aquela confusão sem entender claramente o que se esta a
passar.
“Esta a chegar o grande momento Jonathan. A revelação inicia-se
hoje.” Informa Volton de uma forma calma e entusiástica.
“O que queres dizer com isso?” Pergunto, surpreso com tal afirmação.
“O artefacto foi libertado e a sua localização vai correr pelo sistema e
pelos elementos que o compõem.” Responde Volton.
Só temos de interceptar o correio e apanhar a correspondência.”
Reforça Jaimie.
“Queres dizer que a informação referente a localização do artefacto
será transportada pelo correio?” Pergunto uma vez mais.
“O correio é a depenicado por nos encontrada, usada para identificar o
agente encarregado de conduzir as ordens do mestre supremo deste
mundo.” Elucida Sophie.
“Para obtermos a "morada" deste indivíduo temos que rebentar com o
correio.” Responde Bland.
Tal resposta deixa-me deveras impressionado, não com a operação
em si, mas da forma radical expressada por Bland. Foi a primeira vez
192
que o ouvi a tomar partido de uma acção. O primeiro impacto foi
deveras impressionante, deixando claro o tipo de temperamento ele
tem.
“Com Bland não se brinca.” Sorri Sophie, como que lendo a minha
mente.
“E isso mesmo!” Sorri Bland, deixando brilhar os seu dentes
branquíssimos em contraste com a sua pele mulata, à medida que
colide repetidamente o seu punho direito na mão esquerda.
“O plano roda mesmo aqui.” Inicia Volton com a explicação do plano
estratégico. Abrindo um grande mapa e centrando-o na mesa, ele
continua:
“Não existem muitos pontos para uma emboscada bem sucedida.
Melhor dizendo, apenas existe um. A localização do ponto encontra-se
na zona C42, na saída entre a estrada estatal e a auto-estrada.”
“Isso é exactamente antes da ponte do viaduto.” Afirma Francesco.
“Exactamente. A saída para a auto-estrada localiza-se uns vinte e
cinco metros antes da ponte. O ponto de emboscada localiza-se entre
a estatal e a auto-estrada, comportando uma distância de setenta e
três metros. É aí que iremos bloquear o correio.” Continua Volton.
Completamente aparte de todas aquelas coordenadas, interrompo a
conversação com a pergunta:
“Mas, onde se situa a Zona C42?”
“Neste mundo, as coordenadas e os lugares não são os mesmos que
no mundo real. Embora o que aqui observes seja exactamente igual a
realidade, as localizações não coincidem com as do mundo real.”
Explica Jaimie o melhor que pode.
“Então, como posso encontrar tal zona?” Pergunto uma vez mais.
“Existem três formas de localizares directamente a zona desejada.
Primeiro, se quiseres "despertar" directamente em determinada zona,
apenas tens de te concentrar no endereço dela bem antes de
193
adormeceres. A segunda forma é seres conduzido por um de nós
durante a tua conexão com este sistema. A terceira baseia-se neste
mundo. Se já aqui estiveres, apenas precisas de passar pelos portais.
Não existe maneira de te perderes.” Responde Volton com toda a
serenidade do mundo.
“Que tipo de artilharia precisas?” Pergunta Francesco, organizando o
trabalho de amanha.
“Vou precisar de dois camiões TIR, uma pickup e do nosso furgão.”
Informa Volton.
Jaimie tecla no computador a medida que Volton se pronuncia.
“Vou também necessitar de explosivos. Tenho quase a certeza
absoluta que a caixa é blindada.”
“Vou providenciar o necessário.” Responde Francesco, com os seus
braços cruzados de quem se encontra tranquilo.
Clicando pela última vez, Jaimie informa:
“Tenho tudo o que me pediste e as suas localizações.” Acabando de
proferir estas palavras, Jaimie roda o monitor para Volton. Ele dá uma
vista de olhos e responde:
“Bom trabalho, era mesmo isso que eu queria. Podes imprimir todos
os documentos.”
Após a completa impressão, Volton organiza as folhas lado a lado e
diz:
“Bland, tu conduzes o veículo pesado na dianteira, eu conduzirei o
camião da retaguarda.
“Sem problemas” Responde Bland, com os braços cruzados a deixar
transparecer todos os seus enormes músculos.
“Francesco e Jonathan, vocês conduzem a pickup bem na frente de
Bland. Sophie tu conduzirás furgão.
“Sem problemas.” Responde Sophie
Francesco esta pensativo com respeito a este plano, dando a entender
194
que algo de ameaçador pode surgir.
“Esta tudo bem contigo Francesco?” Pergunta Sophie.
“Tenho uma pequena dúvida em relação ao plano.” Responde
Francesco.
“Qual é a duvida?” Pergunta Jaimie.
“Qual é o espaço de tempo entre uma interferência no sistema e o
aparecimento dos bloqueadores?” Pergunta Francesco com alguma
preocupação.
Jaimie não perde tempo e tenta encontrar a resposta. Volton ouve-o
com toda a atenção do mundo.
“Temos exactamente doze minutos até ao seu aparecimento.”
Responde Jaimie.
“Era o que eu previa. Acho que não é o suficiente para tamanha
operação.” Confessa Francesco com bastante preocupação.
“É mais que suficiente Francesco. Também se não arriscarmos agora,
como iremos saber a localização do artefacto?” Raciocina Volton.
“Lá isso é verdade.” Responde Bland.
Francesco continua pensativo. Volton dá uma leve palmada nas suas
costas e diz:
“Não existe outra maneira a não ser esta. Simplesmente temos de
tentar.” Responde Volton, extremamente convencido do rumo a tomar.
“Já sabes que podes sempre contar comigo.” Responde Francesco
após um grande impasse.
“Vamos lá voltar ao plano. A pickup vai na frente de Bland. Existe uma
pequena rotunda a uns seiscentos metros antes do ponto final. A
pickup entrará na rotunda seguida pelo camião bem antes da entrada
do correio nela. Certifiquem-se de que não existe outro veículo entre o
correio e Bland. Em seguida, logo após a vossa passagem, eu entrarei
com o camião logo trás do correio. Ele irá virar à direita para a auto-
estrada. Todos seguem a mesma rota. Quando o meu camião entrar
195
completamente nessa via secundária, eu darei o sinal para abrandar-
mos e parar-mos todos ao mesmo tempo. O correio ficará encurralado
como um pássaro na gaiola entre os dois camiões. Ele tentará fugir
mas sem sucesso, pois, os rails não o deixarão escapar. Nesse
momento, suará o alarme de intrusão no sistema. Os doze minutos
iniciarão a sua contagem decrescente. Francesco irá detonar a
carrinha blindada e em seguida, retiramos a mercadoria e apanhamos
o furgão que se encontrará na ponte logo em cima. Sophie
cronometrará e vigiará todos os momentos da operação.” Explica
Volton.
Parece fácil, mas o medo de me perder ou de não encontrar a zona
ainda reside em mim.
Volton, como que lendo a minha preocupação, responde:
“Não te preocupes com a chave do carro nem como lá irás ter, apenas
segue o teu instinto.”
“Vamos a isso.” Responde Jaimie, entusiasmado por, pela primeira
vez em dois anos, observar os seus esforços serem bem sucedidos.
Sophie pega no mapa e dirige-se para o interior do furgão. Ela senta-
se e concentra-se naquilo que vê. Eu aproximo-me dela num esforço
em compreender o que sucederá amanha.
“É fascinante, não é?” Diz ela, enquanto que observa delicadamente o
mapa. “ Tudo o que existe neste mundo, existe tal e qual na realidade.”
Eu observo o mapa e respondo-lhe:
“É um pouco complicado para entender.”
Sophie sorri e diz-me:
“É tudo uma questão de tempo. Apenas desfruta a oportunidade que
tens e ajuda-nos a cumprir esta missão.”
“Mas é mesmo possível visitar todo o mundo através deste sistema?”
Pergunto curioso em saber tal resposta.
“Este mundo existe na realidade, é aquilo que Volton chama de
196
maqueta.” Responde Sophie, trazendo-me a memória as palavras de
Volton.
“Então podemos vasculhar tudo, até mesmo sítios que ainda não
foram explorados pelo homem?”
“Calma aí Jonathan! Nem tudo são rosas. Podes vasculhar tudo o que
quiseres mas, se alterares algo neste sistema, o alarme de intrusão vai
despertar e aí começa o grande problema. Os bloqueadores aparecem
e é muito difícil de prevalecer contra eles com o seu enorme poder
sobre-humano. Quanto a explorar o mundo, até o podes fazer, mas só
aquele visto pelo olho humano.”
“Como assim?” Pergunto.
Sophie, com os cotovelos em cima dos joelhos, coloca os dedos
indicadores e polegares na forma de triângulo bem junto a sua boca,
em sinal de quem reflecte no que irá dizer, antes de proferir um
esclarecimento.
“Por exemplo, se uma equipa de cem exploradores visita uma zona
virgem do globo nunca dantes vista por um humano, tal zona será
carregada no mundo 7 quando adormecerem. Todas as mentes do
mundo, quando conectadas a este sistema, poderão visitar tal zona.
Mas se no regresso, o avião em que seguem essas cem pessoas cai e
todas morrem, tudo o que elas viram será apagado do mundo 7.”
Ilustra Sophie com toda a calma e uma imensa vontade em ajudar.
“Já entendi!” Exclamo ao ser iluminado com tal explicação. “Cada
mente contribui para carregar o sistema. Quando uma mente se
"apaga" todas as suas recordações são eliminadas com ela.”
“Exactamente Jonathan, é por isso que este mundo não é completo,
logo, as coordenadas não podem ser perfeitamente iguais a realidade.”
A minha mente pensa e repensa em tudo o que ouviu e decifrou.
Todas as equações e pensamentos profundos que são formalizados na
minha mente, levam-me a ter uma ideia brilhante.
197
“Sophie, preciso de visitar um certo sítio, sabes qual é a porta pela
qual devo entrar.”
“O teu instinto te guiará, apenas, deixa-te levar por ele.” Responde
Sophie.
Levanto-me do furgão e dirijo-me para fora. Percorro o armazém até ao
fim. Tento encontrar uma porta, mas não encontro nenhuma. Observo
bem acima de mim uma escada metálica que desaparece num intenso
negrume. Subo as escadas até ao topo, onde se encontra uma
plataforma metálica. Ao fundo de dela, existe uma porta de chapa
zincada. Abro a porta e entro mais uma vez no escuro. Fecho a porta,
espero uns momentos e abro-a outra vez.
Nem acredito no que vejo! Parecia ter acordado do meu sonho e estar
a presenciar a realidade. Encontro-me na avenida que vai directa ao
meu local de trabalho. Depois de um breve maravilhar daquele mundo
que me é muito familiar, inicio a minha caminhada até ao meu local de
trabalho. Ao percorrer a avenida, observo o grande centro comercial já
na fase final. O centro comercial é exactamente igual ao que o
Engenheiro Fred tinha em mãos. Eu não paro de me perguntar em voz
alta:
“Como e que e possível?” Parece não existir outra expressão para o
que eu contemplo. Esforçando um pouco mais a vista, observo Mike de
pé, imóvel, bem perto de umas placas de contraplacado branco que
jazem ali no chão.
“Olá Mike!” Aceno repleto de emoção por aquilo que acabei de
descobrir. Mike acena lentamente com a mão enquanto que a outra
segura um envelope branco. A sua face é de espanto e abatimento. O
que se passa com ele? Amanha pergunto-lhe pois, o tempo que tenho
é mesmo reduzido. Dirijo-me a passos largos em direcção ao meu local
de trabalho. Não preciso de chaves para entrar, basta apenas querer
que aconteça. Entro pela porta e, tendo em conta que se vasculhar
198
algo, o alarme será despontado, preparo-me para ser o mais rápido
possível. Dirijo-me as prateleiras e tiro um dos arquivos confidenciais.
Ponho-o em cima da mesa e, quando me preparo para abrir, ouço o
barulho metálico do portão do armazém a abrir-se. Desloco-me para o
corredor, curioso por saber o que realmente se está a passar. Entro no
armazém e a primeira coisa que observo é a encomenda que se
encontra ao fundo do lado direito da plataforma de descarga.
“Neste mundo a encomenda já chegou!” Exclamo.
Lentamente, dou uns passos em direcção à encomenda.
Inesperadamente, ouço um ruído misto entre passos e palavras. Recuo
rapidamente e escondo-me atrás de um cortador de aço. Observo com
toda atenção o que por ali se passa. Os intrusos sobem as escadas
para a plataforma de descarga. Os três homens não se encontram
mascarados nem com roupas especiais. Enquanto que um deles
observa o ambiente em seu redor, os outros dois removem
rapidamente o plástico protector que envolve as caixas de cartão.
Removido o plástico, os três homens começam a transportar as caixas
para fora, não deixando nem sequer uma delas no armazém.
“Bandidos!” Exclamo revoltado com o que observo, mas conduzido por
aquilo que pensei acerca do Sr. Robert. Nesse momento aprendi uma
grande lição. Não se julga alguém sem ter as devidas provas
concretas. Mas os ladrões não ficam pelo roubo da encomenda. Um
deles sobe as escadas até ao escritório do chefe e, retirando uma
chave do bolso, entra nele. Passam apenas dois minutos e ele retorna
para o armazém, mas desta vez, com um arquivo amarelo nas mãos.
Todos saem e o último fecha o portão atrás de si.
“Então é isto que se tem passado!” Reflicto no sucedido. Como
poderia prevenir tal roubo? A minha mente trabalha sem parar, apenas
para chegar a uma conclusão:
“Eu aqui não resolvo nada. Tenho que retornar ao outro armazém.
199
Levanto-me do meu esconderijo e dirijo-me a uma porta dos fundos.
Abro-a e entro nela. O processo repete-se. Quando a abro a
novamente porta, encontro-me mais uma vez no Armazém. Jaimie é o
único que se encontra a trabalhar em volta da mesa. Todos os outros
já desapareceram.
“Estava a ver que querias ficar comigo!” Exclama Jaimie com o seu
típico humor.
“Tens uma porta no andar de cima, mas apressa-te, está quase na
hora!”
“Obrigado Jaimie. Vejo-te amanha.”
“Até amanha amigo.” Responde ele.
Inicio a minha corrida uma vez mais por entre aqueles degraus
metálicos. Exausto e a transpirar por todo o lado, encontro a porta que
ele falara. Entro nela e fecho-a.
No preciso momento em que ela bate, eu acordo do sono.
200
Capitulo 10
Abro bem os olhos e observo a claridade de um novo dia a penetrar na
janela do quarto. Volto a face para o despertador e observo as horas.
“Já são sete e meia?” Pergunto ao despertador, incrédulo, como se
ele tivesse a culpa pelo meu esquecimento em programa-lo. Levanto-
me rapidamente e mudo de roupa ás pressas. Tomo o pequeno-
almoço e dirijo-me o mais rapidamente possível para o trabalho. O
tempo está definitivamente em contagem decrescente. Pelo que
prevejo, o pior está para chegar e esta será sem duvida a minha
grande oportunidade para provar a minha inocência, isto é, se aquilo
que sonhei for realmente verdade. Chegando ao local de trabalho,
encosto a minha bicicleta à parede e entro pela porta já aberta. Tal
indício demonstra a presença de Robert no seu interior, comprovando
a sua extrema pontualidade.
Desta vez não inicio o dia por organizar as coisas, mas antes, opto por
encontrar Robert e perguntar-lhe algumas informações com respeito da
encomenda para hoje.
“Bom dia Sr. Robert. Sabe a que horas chega a encomenda?”
Antes de responder, Robert põe a mão na boca e tosse duas vezes
seguidas, devido aos inúmeros anos de fumador que foi.
“Olá Jonathan. A encomenda virá em princípio depois do almoço, isto
é, se não houver atrasos.”
“Esta bem, era só para saber. Tenho que organizar o meu trabalho
para o dia de hoje.” Digo eu, retirando-me para o meu posto de
trabalho. A manhã passa a correr, devido ao facto de manter a minha
mente sempre a trabalhar num esquema lógico e viável, com o único
201
objectivo de enlaçar os responsáveis pelo desaparecimento da
mercadoria e assim, limpar o meu nome uma vez por todas.
É hora do almoço e como já é habito, Robert sai pelos fundos e eu
tranco a porta principal da loja. Uma vez mais, dirijo-me para ver a
minha doce Jennie, tentando não demonstrar a preocupação que sinto
pelo que esta a suceder. Não quero que ela seja perturbada com os
meus problemas, se for possível da minha parte, eu apenas a quero
ajudar. Mas o grande dilema e: " Como pode um homem simular o seu
comportamento perante a mulher que o ama?" Digo isto pois, as
mulheres não vêm com os olhos, mas sim com o coração. Elas, de
uma forma inexplicável, lêem o que vai no coração de um homem,
como se ele próprio desabafasse com ela, sem o seu próprio dono o
saber. Existem coisas realmente excepcionais demais para entender
ou para a ciência tentar responder. E é exactamente isso o que
acontece quando ela me vê. O meu sorriso de quem aparenta estar
alegre e tranquilo é quebrado pelos gemidos intensos de uma alma em
profunda angústia. Ela aproxima-se de mim e pergunta-me:
“Passa-se alguma coisa contigo, Jonathan?” Pergunta ela, inclinando
a cabeça mas, ao mesmo tempo, não perdendo o equilíbrio da bandeja
que suporta na sua mão esquerda.
“Não, não! Está tudo bem Jennie. É que hoje estou um pouco
cansado, é só isso. Obrigado pela tua preocupação Respondo-lhe.
Ela apenas morde o lábio inferior e imite um leve e abafado "ah" de
quem faz de conta que acredita no sucedido.
“Hoje temos um prato do dia especial, queres provar?” Pergunta ela,
ansiosa de me surpreender mais uma vez.
“Se tu o recomendas, quem sou eu para dizer o contrario?” Respondo
a sua pergunta de um modo sorridente, de quem confia a cem por
cento na sua escolha que fez.
“Aguarda dez minutos que eu trago-te.” Responde ela, satisfeita pela
202
confiança que deposito nela. Não existe nada de mais belo do que
estabelecer uma relação nos pilares da confiança. Por mais
tempestades que aflijam o edifício, ele jamais cairia. Enquanto que
espero pelo meu pedido, vou observando a Jennie no seu mais puro
dinamismo de trabalho. Ela, sozinha, toma conta de uma sala com bem
mais de vinte pessoas. É incrível vê-la trabalhar, com todo aquele
dinamismo e força em acção. Jennie
“Aqui tens a tua refeição Jonathan. Espero que seja do teu agrado.”
“Muito obrigado Jennie, és muito atenciosa.”
Ela apenas responde-me com um sorriso ao encolher os seus ombros.
No entanto, a minha postura pensativa não lhe passa despercebida.
Contudo, ela guarda para si tal questão, esperando uma melhor
oportunidade para saber o que se passa.
Termino a refeição e levanto-me da cadeira. A Jennie encontra-se no
balcão à espera de um pedido que entrou na cozinha. Aproximo-me
dela e enquanto que visto o meu casaco, faço-lhe o seguinte convite:
“Queres dar uma volta ao centro da cidade depois do trabalho?”
“Sim, quero. A que horas nos encontramos?”
“As oito horas em frente a tua casa, pode ser?”Pergunto-lhe.
“Perfeito!” Responde ela, satisfeita com o meu convite.
“Então vejo-te logo.”
Ela sorri como quem esconde uma grande timidez por detrás daquela
divina e bela face.
Continuo a minha jornada habitual até ao local de trabalho. Ao
percorrer a avenida, por entre o gradeamento que separa os pedestres
das grandes obras de construção que por ali decorrem, reparo que o
novo centro comercial avança a passos largos a cada dia que passa.
Os pilares em betão já estão firmados e as vigas e abobadas em puro
aço maciço já se estendem por aquele mar de cimento que ali se
encontra. Do outro lado da avenida, as velhas casas que ali se
203
encontravam foram demolidas para darem espaço a novos complexos
habitacionais que se preparam para nascer. Esta cidade cresce a
passos largos como nunca ocorreu primeiro. Por fim chego à rua onde
se encontra o meu local de trabalho. Ao fundo dela, bem na esquina,
aproxima-se o camião que transportas as prometidas encomendas. Tal
visão, induz-me a apressar ainda mais o meu passo para dentro da
loja. Entrando nela, vou directamente para o armazém, com toda a
curiosidade, em averiguar o número e a medida das caixas que
suportam a encomenda. O camião entra no cais de descarga,
entoando um ruído grave e forte. O motorista sai cabine e abre as
portas de trás do veículo. Robert posiciona o empilhador para uma
rápida e eficiente descarga da mercadoria. Após umas breves horas
contínuas de esforço braçal, toda a encomenda é retirada do camião.
Robert assina o recibo e o motorista segue o seu caminho para outras
terras. Olho para as caixas que se encontram alinhadas no centro do
cais de descarga.
Robert, ao ver-me concentrado nas caixas com um ar pensativo,
pergunta:
“Esta tudo bem contigo Jonathan?”
Acordando do meu sonho, respondo-lhe:
“Sim, sim. Está tudo bem.”
Reflectindo mais um pouco nas caixas, eu pergunto-lhe.
“Sr. Robert, você vai querer as caixas aqui no chão ou aquarteladas
nos seus devidos lugares?” Profiro tal pergunta, sabendo de antemão
que Robert não se agrada de deixar uma única caixa no chão.
Robert encontra-se encurvado a tirar referências de uns tubos em aço
que se encontram empilhadas. Ele, ou ouvir a minha pergunta, ergue-
se lentamente e responde-me:
“Vou querer no seu devido sítio, mas agora não tenho muito tempo
disponível para o fazer.” Ele faz uma pausa e olha em seu redor.
204
“Mas também no meio do cais de descarga não pode ficar. Um bom
sítio para as colocar provisoriamente é sem dúvida ao fundo da
plataforma.”
“Bingo!” Exclamo em voz baixa. Tudo está a concretizar-se”. Sem dar
mais respostas ou perguntas, sigo directamente para o balcão de
atendimento. Agora só falta uma maneira de os expor esta noite. Mas
como? Que estratégia poderei usar para apanha-los em flagrante? A
tarde passa sem me dar uma resposta sobre o que fazer com este
dilema, aumentando assim a minha frustração. Estou ciente de que
este e o caminho certo a tomar, mas também reconheço que, se algo
corre mal e se me apanham no momento em que o roubo esta a ser
concretizado, posso não só arruinar a minha carreira profissional como
a minha vida pessoal.
“Olá Jonathan.” Responde Alfred, com um ar de quem se fartou com
algo.
“Boa tarde Alfred. Do que precisas?” Pergunto-lhe.
“De não ter tanto azar na vida.” Responde com seriedade, mas não
escondendo o seu típico humor. '”Preciso de uns cinquenta parafusos
de trinta milímetros.”
Está bem, dá-me só um minuto.”
“Não tem problema, o que tinha a fazer já fiz.” Diz Alfred, com alguma
apatia.
Tentando quebrar aquele gelo, eu pergunto-lhe:
“E a família como está?”
“Está bem obrigado. Agora estou a fazer uns aumentos no quarto do
rapaz, mas estou a ver que não vou conclui-los neste mês ao contrário
do que previa.”
“E porquê?”
Alfred não aguentando mais a pressão sofrida, desabafa sobre aquilo
que o deixa tenso.
205
“O salário é cada vez mais curto face ao custo de vida que aumenta
de dia a dia. Já não sei o que mais poderei fazer para inverter esta
situação.”
“Não é só aqui meu amigo. Isto está assim por todo o país.” Respondo
ao juntar-me no seu lamento.
“Ai meu caro camarada! A minha vida dava um filme. Bastava ter
dinheiro para comprar uma câmara que o guião era fácil de escrever.”
Suspira Alfred, pesaroso coma situação.
Ainda ele estava com as palavras na sua boca quando, de repente,
uma ideia brilha na minha mente. Ergo a cabeça e olho para Alfred.
“É isso mesmo!” Exclamo atónico com a minha descoberta.
“É isso o quê?” Pergunta Alfred.
“Nada Alfred! São coisas que se passam na minha cabeça.” Respondo
à medida que retorno fazer aquilo que tinha interrompido.
“Aqui tens o teu pedido. Precisas de mais algum coisa?”
“É tudo. Passo aqui amanha para pagar, pode ser?” Pergunta Alfred.
“Não tem problema.”
“Então até amanha Jonathan.”
“Tem um bom dia e o melhor do mundo para ti.” Respondo-lhe
“Obrigado.” Diz Alfred já no exterior.
Finalmente, a solução poderia estar mais perto do que o previsto.
“Jonathan, podes fechar a porta da loja? Eu vou sair pela porta dos
fundos.” Pergunta Robert do armazém.
Olho para o relógio e admiro-me de ver que a hora de sair já chegou.
“Não se preocupe, eu trato do resto.
“Então vemo-nos amanha.” Despede-se Robert com a sua voz rouca.
São sete da tarde e a loja que vende material informático fecha em
meia hora. Despacho-me a encerrar a loja e, montando a minha
bicicleta, pedalo a toda a velocidade para a loja que vende aquele
artigo. Faltam apenas cinco minutos para fechar, quando eu, ofegante
206
até não poder mais, consigo atingir a porta da entrada a tempo.
“Sempre a correr Jonathan, tu és realmente impressionante.” Comenta
Angeline.
Tento ganhar o fôlego para dar uma resposta a tal comentário.
“É uma vida muito complicada Jessica, verdadeiramente complicada.”
“Jonathan, esta não e a Jessica.” Corrige Marie, uma senhora
elegante, com os seus cinquenta e poucos anos que se encontra atrás
do balcão. Marie é a dona da única loja de artigos electrónicos da
nossa pequena cidade.
“Fico muito chateada contigo Jonathan. Ainda não me consegues
distinguir.” Responde Angeline com as mãos na cintura, sorrindo pela
gafe que cometi.
“E muito difícil de distinguir vocês as duas. Parecem duas autênticas
fotocópias!” Exclamo, tentando justificar o meu erro.
Angeline e Jessica são duas gémeas com os seus vinte e três anos. O
facto de serem idênticas, aliado ao mesmo penteado liso e curto do
cabelo castanho e ao mesmo estilo de roupa que usam, torna o
reconhecimento num verdadeiro desafio.
“Então Jonathan, o que te trás por cá?” Pergunta Marie com a sua
simpática e quotidiana apresentação profissional.
“Preciso de comprar uma câmara de filmar que possua um disco de
alta memória.”
“Mais ou menos de quantas horas?” Pergunta Marie.
“Doze seria o ideal.”
Marie vasculha todos os arquivos na busca de um artigo que me
satisfaça as minhas exigências.
“Aqui esta que procuras. Basta colocares o DVD e tens memória para
mais de doze horas.” Informa Marie.
O produto era mesmo aquele que eu desejava mas, o problema era o
preço dele
207
“E qual e o preço de tudo isto?”
Marie pega num livro vermelho e numa calculadora e inicia a contagem
megalómana em comparação com o que tenho na carteira.
“Aqui está.” Diz ela mostrando-me o recibo.
Nem quero acreditar. O preço era simplesmente todo o dinheiro que
tinha mais aquele que havia amealhado ao longo de meses. Não é fácil
para uma pessoa dar tudo o que tem para concertar algo que não lhe
compete fazê-lo. Esforço-me por ver a situação num outro prisma. Se
eu não compro a câmara, esta noite a mercadoria vai desaparecer e o
meu trabalho, em vez de encerrar daqui a dois dias, encerrara já
amanha. Se eu gasto todo o meu dinheiro, não poderei comer mas, ao
menos manterei o meu trabalho. Trata-se de uma questão de puro
investimento.
“Então, vais querer levar os artigos?”Pergunta Marie, ao ver tanta
hesitação da minha parte.
“Sim, eu preciso mesmo.” Respondo meio convicto, mas também,
receoso do que poderá acontecer.
Enquanto que esvazio a minha carteira, Marie põe as compras num
saco de plástico branco.
“Obrigada Jonathan, volta sempre.” Despede-se Marie
Indo em direcção a porta de saída, despeço-me delas dizendo:
“Obrigado Marie. Até uma próxima Angeline.” Despeço-me e apresso
o meu passo para o exterior já escuro. A porta da loja fecha lentamente
o que me da a capacidade de ainda ouvir o assunto que elas as duas
falam, embora, muito baixo.
Angeline comenta:
“Este Jonathan é uma jóia de rapaz, mas anda sempre a correr. É
impressionante! Imagina que eu ontem sonhei que ele corria para o
local de trabalho!” Tal frase transforma-me numa estátua.
“Mas como ela soube desse facto?” Pergunto para mim próprio. Volto-
208
me para trás e vejo-as a sorrir. Não hesito e volto atrás. Abro a porta e
interfiro na sua conversa.
“Sonhastes ontem que eu corria?” Pergunto-lhe admirado com tal
descoberta.
“Sim, sonhei que corrias pela avenida fora até ao teu trabalho. Depois
disso, não me lembro de mais nada. Mas porque perguntas?” Indaga
Angeline
“Nada, nada.” Respondo, tentando desviar o assunto para não revelar
a minha identidade. “Apenas achei interessante. Isso mostra que tenho
de levar uma vida mais calma.” Profiro tais palavras como quem não
desejei revelar um segredo importantíssimo. Ao longe, apenas as ouço
dizer:
“Que estranho. O que ele quereria dizer com aquilo?”
Não perco tempo com palavras fugazes e voo na minha bicicleta para
a loja. Está quase na hora de me encontrar com a Jennie, por isso,
despacho-me o mais rápido que posso.
Entro na loja e acendo apenas as luzes do armazém. Só tenho uma
câmara, mas preciso de cobrir dois sítios ao mesmo tempo, o escritório
e a encomenda. É arrepiante olhar para os caixotes que jazem no
exacto sítio onde eu ontem os vi. Até mesmo a posição e ângulos são
exactamente iguais. Olho para o tecto à procura de um lugar onde
pousar a câmara. No topo, a uns oito metros, encontra-se uma viga de
ferro que suporta a grua metálica. Com bastante perícia, elevo-me no
gancho da grua até atingir o sítio desejado. O meu corpo treme de
adrenalina e nervosismo misturados ao efectuar aquele acto arriscado.
Sei que não estou a cometer nenhum crime mas, se isto não resultar, o
meu fim nesta companhia será catastrófico. Lentamente, elevo-me até
ao topo. A minha garganta esta seca e o meu coração galopante é o
único ruído que se deixa ouvir a seguir aos grunhidos metálicos da
grua que me eleva. Por fim chego ao topo. Ajusto o foco, o ângulo de
209
visão e a posição da câmara. Pressiono o botão para iniciar a gravação
e pronto, agora está tudo nas mãos de Deus e da tecnologia. Desço
dali para baixo e arrumo a grua. Antes de desligar as luzes, dou uma
ultima olhadela para aquele espião, o guardião da noite que observa o
mundo dali de cima, qual águia.
Saio para o exterior e fecho a porta. Estou meia hora atrasado, o que
me leva a pedalar com mais vivacidade até à casa do meu bem mais
precioso. Aproximando-me da sua casa vejo-a sentada no alpendre
com a mão a apoiar o queixo e a outra a desenhar na madeira
castanho-escuro do alpendre. A sua feição é de quem se encontra
abatida e triste, talvez seja de tanto esperar. Contudo, assim que ela
ouve-me chegar, a sua feição muda, os seus olhos como que brilham
naquele escuro nocturno, fazendo-a ergue-se das escadas.
“Desculpa o atraso Jennie. Tive umas pequenas complicações no
trabalho e estive lá até agora para as resolver.”
"Não faz mal." Responde baixinho, como se todo o mal fosse agora
parte do passado. "O importante é que agora estas aqui."
Essas palavras enchem-me de uma alegria profunda e de um sentido
de vida forte e verdadeiro. Estar com ela faz-me sentir
verdadeiramente bem.
“Vamos?” Pergunto-lhe, estendendo a minha mão. Ela, com os seus
dedos finos e delicados, como se de uma princesa se tratasse,
envolve-os nos meus, formando uma cadeia inquebrável de afecto
único, como se ela me pertence-se e como se eu fosse dela. A noite
corre magicamente romântica ao embalo da lua e a valsa das estrelas
que parecem girar sobre a nossa abobada celestial.
Divertimo-nos, amamo-nos e apaixonamo-nos nestes momentos
únicos e inesquecíveis. Apenas a hora de retornar a casa faz dividir e
cancelar, por breves momentos, o nosso contentamento. Noite após
noite, resgato-a de casa e devolvo-a a ela novamente.
210
Despedimo-nos e proferimos as habituais promessas do dia seguinte.
Ela sobe os degraus e eu pedalo pela estrada fora, mas não faz mal.
Quem ama não vê barreiras, quem ama, não se intimida com o pior.
Por fim, quando chego a casa, sei exactamente qual é o meu círculo
vicioso de cada dia. Tudo gira em torno do comer, arranjar-me e deitar-
me. E assim passa o dia. Quando dou por mim, já estou deitado à
espera que este dia acabe para que um novo tome o seu lugar. O sono
começa a tomar conta de mim e o código C42 vem-me à memória
apartir do nada.
“É hoje o grande dia!” Já nem me lembrava das palavras de Volton
com tanta agitação que passei nele.
“Não me posso esquecer da Zona C42.” E pronunciando tal
coordenada, o meu corpo cai num profundo sono.
Estendo a mão e toco em algo no meio daquele escuro. A medida que
empurro esse objecto, o pequeno feixe de luz branca começa a
aumentar. A claridade ofusca-me os olhos por breves segundos mas, à
medida que eles se habituam à luz, dou conta que me encontro no
topo grande parque de estacionamento semelhante ao de um
hipermercado. Bem no meio de todo aquele alcatrão, apenas se
encontra uma pickup branca, aquela que eu procuro. Dirijo-me até ela
e entrando nela, rodo a chave que lá se encontra. Dirijo-me o veículo
bem perto do parapeito desse espaço apenas para contemplar a visão
da cidade que se estende em meu redor. Desço aquele silo automóvel
até atingir o patamar terrestre, sem que ninguém me bloqueie ou que
me questione com respeito ao que estou a fazer. Por fim, saindo
daquele parque, acedo à movimentada avenida. Não sei que lado
tomar, apenas olho com atenção para ambos os lados e sigo aquele
que me é mais atractivo. Enquanto conduzo, sinto um incómodo no
ouvido direito, tal como nunca sentira anteriormente. Primeiro ouço
interferências mas, em seguida, consigo ouvir uma voz com toda a
211
nitidez.
“Dá-me a tua posição, Jonathan.”
Era sem duvida Francesco que tentava comunicar comigo. Ponho o
dedo no ouvido direito para tentar compreender como aquilo era
possível. O meu ouvido não possui nada, contudo, é capaz de receber
comunicações vindas de não sei onde.
“Eu encontro-me perto de um grande prédio em vidro. No topo parece-
me ter um símbolo de um banco!” Respondo, esforçando-me por olhar
para cima no pára-brisas.
“Vira a direita e segue por baixo do viaduto. Existe lá uma paragem de
autocarros, eu estarei lá.” Informa Francesco.
Sigo rigorosamente aquelas coordenadas que Francesco me deu. Num
instante, encontro-me debaixo do viaduto e, localizando a paragem do
autocarro, encosto-me a berma da estrada. Francesco sai por detrás
de um grande pilar de ferro, expondo-se o mínimo possível. Coloca a
mala que tem ao ombro na traseira da pickup e entra para dentro dela.
“Agora sim, esta tudo pronto!” Diz Francesco ao por o cinto de
segurança.
Avanço direito por aquela via até ter a noção de que devo virar.
Instintivamente, vou conduzindo aquela carrinha como se conhece
perfeitamente todo aquele subúrbio. Percorridos alguns quilómetros,
visualizo a rotunda mesmo à minha frente. Na primeira saída da
rotunda vejo um grande camião TIR negro. Saindo na primeira saída,
inverto a marcha e posiciono-me bem na sua frente. O tempo que
passa lentamente faz-nos arder em pura ansiedade. Apenas se ouve o
vento que abana ligeiramente o nosso veículo. O céu começa a ficar
encoberto, com pesadas nuvens cinzentas, como se elas próprias,
anunciassem o pior que viria.
“Mantenham as vossas posições, já tenho contacto visual com o alvo.
Ele não se encontra escoltado por ninguém.” Diz Sophie do topo da
212
ponte.
Bland liga o motor da sua pesada máquina e eu sigo o mesmo passo,
bem na sua frente. Tudo se encontra pronto para o assalto, é só
esperar pela ordem.
“Jonathan e Bland, entrem na rotunda.” Ordena Sophie.
Eu avanço para a rotunda e visualizo de imediato um folgado branco.
Bland segue lentamente atrás de mim, como se eu estivesse a reboca-
lo.
“Saiam da rotunda.” Instrui Sophie novamente.
Eu e Bland saímos harmoniosamente da rotunda como se de nada se
tratasse. O correio sai da rotunda mesmo atrás de Bland.
Avanço pelos seiscentos metros e observo a minha direita outro
camião TIR negro a ganhar velocidade na berma. Uma vez
ultrapassado por todos nós, Volton entra na estrada e posiciona-se
bem atrás dele, arremessando um veículo ligeiro para fora da estrada
que se intrometera na sua frente. Aproximamo-nos lentamente da zona
de impacto e, observando pelos espelhos laterais, vejo o correio a
fazer sinal para virar à direita. Em uníssono, todos nós fazemos o
mesmo, para em seguida, entramos nos setenta metros finais.
“Bloqueia a estrada Jonathan!” Comanda Sophie.
Ao som desta ordem, imobilizo rapidamente o carro ouvindo em
seguida, o ruído dos hidráulicos dos dois camiões que também
abrandam. O correio também abranda e pára, mas não por muito
tempo. Neste mundo, tudo flúi segundo uma ordem perfeitamente
harmoniosa, não dando oportunidade a imprevistos ou incidentes.
Apercebendo-se o correio que se trata de uma emboscada, acelera
com toda a forca, apenas para embater no imóvel veículo pesado, que
balouça um pouco com tal impacto.
“O alarme foi dado. Os doze minutos estão em contagem
decrescente.” Informa Sophie.
213
O correio faz marcha-atrás, apenas para estilhaçar-se no camião de
Volton.
“É agora rapazes!” Ordena Volton.
Imobilizado o alvo, todos saem dos veículos como que a voar.
Vendo-se encurralado e sem nenhuma hipótese de salvar a
mercadoria, o correio salta do furgão blindado e corre em direcção a
auto-estrada. Francesco pousa a mala que trouxe consigo para perto
do furgão. Abrindo-a, retira um engenho preto e vermelho.
“Nove minutos para a chegada dos bloqueadores!” Informa Sophie,
sem esconder a emoção e ansiedade que flúi nas suas palavras.
Francesco conecta os cabos do engenho explosivo com todo o
cuidado. Os automóveis que passam pela auto-estrada abrandam ao
ver todo aquele aparato.
“Estamos a atrair muita atenção.” Diz Bland, preocupado com tal facto.
“Cinco minutos rapazes, despachem-se por favor.” Implora Sophie ao
ver o tempo a encurtar-se.
“Concluído!” Exclama Francesco. “Afastem-se do veículo.” Segundo
as suas ordens, todos recuam para trás do camião.
Francesco pressiona o gatilho e uma explosão abafada entoa no ar,
deixando um rasto de fumo branco. Ainda com o interior do furgão
repleto desse fumo, Volton salta para dentro em busca da mercadoria.
“Dois minutos! Vocês tem apenas cento e vinte segundos para sair
daí.” Informa Sophie sem conseguir conter a aflição que a envolve.
Eu e Francesco entramos atrás de Volton naquele cubículo metálico.
Para nosso espanto, nada se encontra ali, a não ser, uma pequena
caixa azul escura dentro de uma pequena gaiola de rede em aço.
“Bland, é a tua vez.” Diz Volton ao observar o primeiro imprevisto.
“Trinta segundos! Por favor, saiam daí.” Suplica Sophie, sem já saber
o que fazer.
Bland introduz os seus grossos dedos nos buracos da rede e, olhando
214
para o chão, exerce a sua monstruosa forca naquela rede maciça. Os
seus músculos definem-se com a resistência oferecida pela rede.
“Acabou, o tempo esgotou-se, saiam já daí!” Ordena Sophie.
Naquele momento, tudo se torna silencioso pois, esgotado o tempo,
eles não tardarão a aparecer.
Volton põe a mão nos ombros de Bland. Ele ergue os olhos e ambos
se fitam um ao outro.
“Tu consegues campeão, acredita que consegues!” Diz Volton, dando
ânimo e forca a Bland. Ele por sua vez, liberta um grito de guerra e,
novamente, com os olhos no chão, puxa violentamente a grade como
se fosse um bulldozer. A rede começa a dobrar-se como se de uma
fina chapa de metal se tratasse. Os parafusos folgam-se e caiem até
que por fim, a grelha parte e cai. Francesco deita a mão na caixa e
todos saímos a correr.
“Corram, corram que já passaram quatro minutos. Eles estão mesmo
aí a chegar!” E proferindo tais palavras, bem no fundo da auto-estrada,
vemos dezenas de carros da polícia que se aproximam a toda a
velocidade.
“Isto vai ficar mesmo feio se não sairmos já.” Diz Francesco.
Em conjunto, todos corremos em direcção a estrada anterior. Jaimie,
como que num relâmpago, desloca o nosso furgão bem na nossa
frente. Sophie abre a porta lateral e todos entramos para dentro. Jaime
arranca a toda a velocidade para longe dali.
Ninguém consegue esconder o contentamento e a alegria por ter
cumprido a missão com sucesso. Apenas Francesco não se rejubila
muito com o sucedido. O seu ar de desconfiado estende-se como um
aviso a cada um de nós.
“O que tens Francesco.” Pergunto.
“Algo aqui não bate bem.” Responde ele.
“Não bate bem porquê? Já temos o que queremos, não é verdade?”
215
Pergunta Volton.
“Sim, é verdade mas, existe qualquer coisa aqui que não está bem. Os
bloqueadores nunca se atrasam quando dispara o alarme de invasão.
“Lá isso é verdade. Tal nunca aconteceu.” Confirma Jaimie com os
olhos postos na estrada enquanto dirige o furgão.
Ninguém mais comenta tal afirmação pois, nenhum de nós possui uma
racionável teoria lógica que explique tal lapso do sistema que já por si
só, é perfeito.
Depois de alguns minutos percorridos na periferia de cidade,
chegamos finalmente ao nosso quartel na zona industrial. Os portões
abrem-se automaticamente e o furgão entra para dentro. Todos
dirigem-se com a caixa resgatada para a mesa de madeira que se
encontra no centro do complexo. Ela é iluminada apenas por um feixe
de luz branca que atravessa aquelas placas transparentes do telhado,
dando um toque misterioso a tudo o que esta a acontecer. Volton
verifica a caixa de todos os lados e ângulos, procurando algo de bem
pequeno nela. Jaimie estende um cabo cinzento desde o furgão até
Volton. Em seguida, Volton conecta o cabo à caixa azul, fazendo com
que uma pequeníssima luz amarela brilhe num dos ângulos. Todos se
debruçam em torno da mesa, expectantes com respeito ao conteúdo
daquele objecto. Por fim, a caixa responde aos impulsos eléctricos e
abre uma pequena frincha. Volton abre a tampa por completo e retira o
envelope que lá se encontra. O coração de todos nós bate com muita
intensidade, enquanto que a mente, espera pelo conteúdo gravado
naquele papel. Volton desdobra o envelope convertendo-o numa carta.
Estampada na carta, jazem as seguintes palavras:
No sextante do conhecimento
216
A sabedoria será revelada
Pelo grau imperfeito da luz
Até a plenitude jamais abalada
“Mas o que e isto?” Pergunta Francesco, completamente desiludido
com o que ouve,
“Mas onde estão as coordenadas do artefacto?” Pergunta Sophie.
Volton concentra-se no papel branco e franzindo a testa diz:
“Não estou a entender! Isto deveria ser um mapa, não um enigma.”
O papel roda por todos, mas sem interpretação possível.
“Mas que parceria tem o sextante do conhecimento com a plenitude?”
Pergunta Jaimie com o papel nas mãos.
“E o que é o grau imperfeito?” Pergunta Francesco, sem que alguém
responda.
Eu penso profundamente com as mãos na mesa e com o olhar para o
chão, como que esperando que este me revelasse algo.
Por fim, ergo a cabeça e respondo:
“Temos de descobrir primeiro o que é o sextante do conhecimento.
Esta é a base de todo este enigma. A menos que o descodifiquemos,
não podemos continuar com a nossa jornada.” Respondo confiante de
estar a tomar o rumo certo.
O silêncio torna-se grande naquele armazém à medida que todos
meditam nas minhas palavras.
“Concordo plenamente contigo, Jonathan. O mapa está descrito no
início da estrofe, só precisamos de o descodificar.” Concorda Volton
com as minhas palavras.
“Mas como vamos descodifica-lo?” Indaga Francesco uma vez mais.
“Talvez conheço quem pode ajudar-nos a fazê-lo.” Responde Volton,
pensativo com respeito a fazê-lo ou não.
“Quem é ele?” Pergunta Jaimie.
“É o velho dos moinhos, o ancião mais antigo deste sistema.”
217
Responde Volton.
“Mas quem é essa pessoa?” Pergunto ao ouvir tal opinião.
“O velho dos moinhos não é uma pessoa como nós. Digamos que foi
um antigo agente do sistema que fora criado com o objectivo de o
equilibrar. Mas assim como os humanos não são perfeitos, o sistema
também não o é. Por vezes, ele se desintegra, deixando tais
fragmentos a vaguear livremente por ele. O velho dos moinhos é um
fragmento do sistema, completamente independente do domínio do
ditador. Ele é o ancião mais antigo e sábio deste mundo.” Explica
Volton quem realmente ele é.
“Queres dizer com isso que existem outros indivíduos?” Pergunto-lhe,
ansioso por abrir mais a minha mente.
“A maioria dos fragmentos deste sistema são pacíficos, a única coisa
que desejam é serem livres. Contudo, existe um pequeno número de
fragmentos que são terrivelmente maquiavélicos, sedentos pela pura
maldade. Os bloqueadores não se podem comparar com a extrema
força e astúcia destes mercenários.”
Aquela resposta arrepia-me um pouco. Já não bastava existirem
bloqueadores e pessoas desconfiadas e ainda teria de haver tais
personagens?
“Este nunca foi um mundo fácil e nunca o será, a menos que, toda a
humanidade seja liberta desta escravidão e este mundo perca o seu
poder.” Diz Volton, com a experiência e autoridade suficiente para as
relatar.
Volton continua por dizer:
“Agora temos de entrar em contacto com ele no vale dos rios.”
“Detesto esse sítio!” Exclama Jaimie com um ar de quem teme algo.
“Ali até as próprias pedras fazem queixa de ti.”
“Mas não existe outra solução.” Comenta Sophie ao concordar com a
resposta de Volton.
218
“Amanha encontramo-nos todos na grande colina.” Ordena Volton,
marcando o ponto de encontro para o dia sucessivo.
Todos acenam com a cabeça embora o silêncio reine em nosso redor.
Após tais palavras, todos dirigem-se aos seus afazeres. Sophie
aproxima-se de mim e diz-me:
“Hoje fiquei realmente temerosa sobre o que poderia ter acontecido.”
“Foi um dia muito complicado e cheio de acção. Ainda bem que tudo
correu debaixo do plano estipulado.” Respondo.
Sophie, com as mãos nos bolsos do seu polar, volta a face para o
grupo ao redor daquela mesa e diz-me:
“O Jaimie também estava possuído de nervos. Nunca o vi tão ansioso
com uma missão.”
Ao ouvir tais palavras, a minha mente concentra-se no historial de
Jaimie. Dúvidas afloram no meu cérebro ao pondo de não as conseguir
reter mais.
“Sophie, porque e que o Jaimie fica sempre para trás? Porque é que
ele é sempre o ultimo a sair?” Pergunto.
“Não sabemos o porquê de ele não sair do sistema. Já há mais de
dois anos que ele continua como que preso aqui em baixo.”
“Há mais de dois anos! É estranho.” Comento enquanto que penso
numa possível resposta à pergunta lançada.
“Ele não revela o porquê de estar preso aqui em baixo. Jaimie contou-
nos que se o revelasse, a sua vida estaria em risco. Por isso, não nos
interessa saber o porque do problema.” Responde Sophie.
Eu não comento tal afirmação, apenas penso no que poderia
realmente ser.
“Tal condição traz-lhe vantagens. Jaimie possui um sentido
extremamente aguçado e uma percepção super sensível a tudo o que
se passa aqui em baixo. Tal dom, possibilita-nos uma maior mobilidade
dentro deste sistema.” Comenta Sophie com respeito as suas
219
capacidades.
“É um mundo cruel este aqui. Não podes revelar nada, não podes
confiar em ninguém. Apenas confinas a tua mente a uma gaiola.”
Argumento.
“Não é bem assim Jonathan. Para o resto da humanidade, este mundo
é o seu Senhor Soberano. Eles estão confinados à escravidão do seu
mestre. Nós somos diferentes. Somos livres de escolher o nosso
caminho sem que alguém nos predite ou nos ordene sobre o que fazer
ou pensar. Cabe a nós a pesada responsabilidade de libertar a
humanidade de tal vil sistema.” Responde Sophie com entusiasmo,
vivendo intensamente cada palavra que profere.
Nesse momento, ouço dois leves toques de punho na chapa do furgão.
“Jonathan, Sophie. Está na hora de retornar.” Informa Francesco.
Ambos nos levantamos do assento e dirigimo-nos para o exterior.
“Sophie, tens uma porta no armazém ao lado. Vemo-nos amanhã.” Diz
Jaimie.
“Obrigado Jaimie. Até amanhã Jonathan.”
Aproximo-me a passos lentos da mesa de madeira onde se encontra
Jaimie. A curiosidade cresce em mim, sedenta em saber a razão pela
qual ele difere dos outros. Chego bem perto dele e tento observar o
que se está a passar na tela do computador. Ele, por sua vez, sem tirar
os olhos do computador, informa-me:
“Tens uma porta no segundo piso do armazém da frente.”
Sinto-me tentado a perguntar-lhe o porquê da situação, visto que só
nos encontramos os dois naquele armazém. Mas como diz Sophie, "
nunca estamos sozinhos". Por isso, não vale a pena arriscar. Limito-me
apenas a retribuir a sua boa vontade com um " vemo-nos amanhã ".
Após isso, dirijo-me o quanto antes até ao meu portal do outro lado da
estrada. Uma vez encontrado, entro por ele e...
Acordo.
220
Capitulo 11
Esfrego os olhos e volto a face para o despertador. Faltam quinze
minutos para o alarme tocar, contudo, não prossigo o meu descanso
pois, o meu sono foge a medida que o enigmático correio invade a
minha mente.
O que poderia ser o sextante do conhecimento? Qual é o grau
imperfeito da luz pelo qual a sabedoria seria revelada? Em que sentido
a plenitude jamais seria abalada?
Todas estas perguntas dominavam completamente a minha mente
sem que houvesse espaço para outras coisas, por mais básicas que
fossem. Uma coisa tenho certeza, este enigma é o mapa que
determina a posição do artefacto e a coordenada para alcançar o
Oleiro. Contrariando a minha mente, tomo as rédeas de mim mesmo e
tomo acção no iniciar de mais um novo dia. Pego na minha bicicleta e
dirijo-me para o trabalho já com cinco minutos de atraso com respeito
ao horário normal de saída. Assim como a minha mente, os meus pés
não param de pedalar em direcção a loja até que algo me surpreende.
Dois veículos da polícia estão estacionados bem na frente da porta da
loja. Repleto de admiração pelo que se está a passar, decido encostar
a bicicleta à parede e entrar na loja como habitualmente faço. Ninguém
se encontra na loja, por isso, decido seguir para o armazém.
Verdadeiramente estranho que, com tanto aparato, não esteja cá
ninguém. Chego ao armazém e encontro o meu chefe e Robert
rodeados por quatro agentes da polícia que, com um caderno,
parecem fazer anotações. O meu chefe ergue os olhos para mim,
enterrados naquela cara gorda e arrogante e olha-me fixo, como se
221
estivesse na presença de um fantasma. Ele aponta o dedo para mim,
fazendo com que dois agentes se desloquem até a entrada do
armazém, onde eu me localizo.
“Bom dia Sr. Jonathan, como está? Gostaríamos que o Sr. fizesse a
gentileza de nos acompanhar até à esquadra.” Diz um dos agentes.
“Mas o que é que eu fiz?” Respondo tomado de aflição, calculando
mais ou menos o que se estava a passar.
“Não se preocupe, só queremos fazer algumas perguntas. Talvez o Sr.
nos possa ajudar.
“Só queria pedir-lhe um favor, se for possível.” Peço receoso de a
minha estratégia ter falhado.
“O que é?” Diz o agente.
“No topo daquela viga de ferro, eu pus uma câmara de filmar e se os
Srs. me derem autorização, eu gostaria de levar a gravação comigo.”
“Pode ser, tem cinco minutos para o fazer.” Diz o agente ao consultar
o seu colega.
Desloco-me até à grua e subo ao seu topo. Robert e o meu chefe ficam
admirados com esta minha reacção anormal. Quando chego ao topo, o
meu chefe grita lá debaixo dizendo:
“Vais pagar pelo que fizestes Jonathan!” Robert tenta acalma-lo da
sua fúria.
Eu apenas sigo o meu caminho, de consciência leve e livre, embora
me aperceba de que, se algo correu mal com a gravação, a minha vida
poderia mudar para sempre.
Observo a memoria e a bateria da câmara. Encontra-se descarregada,
impossibilitando-me de obter a certeza do meu êxito ou fracasso.
Em veículos separados, dirigimo-nos todos a esquadra sob os olhares
curiosos daquela gente da província. Saio do veiculo e subo as
escadas que dão acesso à porta principal da esquadra, sempre
escoltado pelos dois agentes da policia. O eco das botas entoa pelo
222
corredor fora até chegarmos ao seu fim. Ao fundo deste corredor
tingido de um amarelo velho encontra-se uma porta que possui uma
minúscula janela. Um dos agentes abre tal porta para entramos os três.
Dentro desta sala sem janelas existe uma outra sala muito mais
pequena. As suas paredes são de vidro e no seu interior, existe
apenas uma mesa metálica com três cadeiras. Na sala exterior apenas
existem varias cadeiras e três secretarias. Entrando na sala mais
pequena tomo o meu lugar numa ponta da mesa, enquanto que os dois
agentes, se sentam noutra. Na sala exterior vejo Robert e o meu chefe
a tomarem os seus lugares.
O interrogatório começa com a descrição dos meus dados pessoais e
sobre as minhas funções na empresa. As perguntas mais complexas
viriam a seguir.
“Diga-me Sr. Jonathan, sabe de alguma coisa com respeito ao que se
passou esta noite?” Pergunta um dos agentes.
Fazendo de conta que nada sei, respondo:
“Não!”
“Houve um assalto no seu local de trabalho e toda a mercadoria que
chegou ontem foi roubada.” Informa o agente esperando uma reacção
da minha parte.
“Sou-lhe franco, não sei absolutamente de nada.” Ao ouvir tal
resposta, o agente volta-se para trás, exactamente para o meu chefe.
Por sua vez, o meu chefe fala ao ouvido de Robert.
“Então esclareça-me um assunto. A que horas você e o Sr. Robert
fecham a loja?” Pergunta o agente.
“Nós fechamos a loja as sete em ponto.” Afirmo na minha inocência.
“Então porque que o Sr. Jonathan foi visto ás oito da noite a entrar
para a loja?”
“Fui apenas concluir assuntos relacionados com o negócio.” A este
momento, o suor escorre-me pela testa de nervosismo. Não que eu
223
não tenha uma consciência leve, mas sim, por um motivo mais
alarmante.
“Então você não faz a mínima ideia do que sucedeu na noite
passada?” Repete o agente a mesma pergunta de à pouco.
“Absolutamente!” Respondo convicto, ocultando perfeitamente o que
sei.
“Então porque raio é que traz essa câmara consigo?” Indaga o agente,
alçando a voz.
A situação torna-se excessivamente complicada e sem volta a dar. Se
conto a razão de ter usado a câmara encontrar-me-ei em sérios
problemas quando aceder ao mundo 7, no entanto, se escondo a
razão, perderei o trabalho e enfrentarei severa punição. O meu patrão
apenas ri de tanto sadismo que lhe escorre nas veias. A hora da
verdade chegou. Será que o mundo 7 é uma realidade? Será que tudo
o que lá se passa é uma antevisão do futuro? Ou não passara tudo de
um sonho lúcido?
“Sr. agente, só existe uma maneira de provar a minha inocência.”
Após dizer estas palavras, retiro o DVD do aparelho e entrego a eles.
O agente que se manteve calado durante toda a sessão levanta-se e
introduz o DVD num leitor para o efeito. A televisão está de costas para
a assistência, por isso, apenas eu e os dois agentes podemos ver a
gravação.
Não cheguei nem mesmo a testar o aparelho mas a definição de
imagem gravada era óptima. Os primeiros minutos passam rápido sem
que algo aconteça. As seguintes horas são passadas em modo rápido.
Mas as provas aparecem no seu devido tempo. Às quatro e meia da
manhã, o portão abre-se e três indivíduos entram pelo mesmo. Aquela
visão traz-me arrepios e a minha cara fica pálida como a neve. Até a
própria roupa que eles vestiam era a mesma que eu havia sonhado.
Todos os passos que davam eram exactamente os mesmos. O
224
momento em que eles esperam no cais de descarga, o modo como
levam as caixas e até o outro ladrão que rouba o arquivo amarelo, fez
com que o meu sonho se tornasse numa profecia realizada. Ao ver tal
acontecimento, a minha alma rejubila mas ao mesmo tempo
permanece temerosa com respeito ao outro domínio. Os agentes falam
entre si e chegam a uma conclusão.
“Sr. Jonathan, podemos mostrar esta gravação ao seu patrão?”
“Com certeza.” Respondo completamente aliviado.
Eles levantam-se e mostram a gravação ao meu chefe. Ele compõe os
óculos e fixa a concentração no televisor. A dado momento, a sua face
de concentrado converte-se numa cara de encabulado. Ele olha para o
chão e põe a mão na testa. Robert tem a mão no queixo, alegre pela
minha inocência mas pesaroso pelo sucedido. Os inspectores fazem
uma pergunta e ele acena com o dedo indicador como que um não a
qualquer coisa. Logo de seguida ele levanta-se e sai daquele lugar
sem mesmo por os olhos em mim. Apenas Robert espera para me
felicitar e contar o sucedido. Os dois inspectores entram na sala e
estendem a mão para me cumprimentar.
“Sr. Jonathan, pedimos desculpa pelo enorme mal entendido. O seu
patrão retirou a queixa sobre si.”
Eu levanto-me e saio daquela pequena sala. Robert acompanha-me
até a porta principal.
“Boa jogada Jonathan! Com esta ninguém contava.” Felicita Robert.
“Mas porquê, conheces aquela gente?” Pergunto ao ouvir tal
comentário.
“Afinal os ladrões também tinham a chave.” Responde Robert.
“Como assim?” Pergunto sem saber onde ele quer chegar.
“Os ladroes são familiares do patrão! Ele contava que fosse o mundo
inteiro, menos os do próprio sangue.” Conclui Robert.
Quem diria. A própria família a roubar-se a ela mesma. Mas nem tudo
225
foi mau. Afinal de contas, consegui limpar o meu nome.
Com toda esta aventura, chega a hora do almoço. Mal posso esperar
por contar a Jennie tudo o que aconteceu. Dirijo-me directamente ao
restaurante com uma cara de quem transborda de alegria.
Jennie olha para mim e nota logo a diferença de hoje relativamente a
de uns tempos para cá.
“Estas muito bem disposto! O que e que ganhastes?” Pergunta Jennie,
ao ver o meu estado de espírito alegre.
“Ganhei razão, foi só isso.” Respondo eu.
“E qual foi a razão?” Pergunta ela.
Nesse momento, desbobino todas as situações e enredos ocorridas
até então, como se fosse uma cassete de fita.
Jennie fica surpreendida ao ouvir tal assunto e comenta:
“As voltas que o mundo dá!”
“É verdade!” Comento com um ar de vitorioso, sem saber que tais
palavras se iriam concretizar em mim próprio como uma fiel profecia.
“Queres dar uma volta comigo neste final de tarde?” Pergunto-lhe,
lançando tal convite irrecusável.
“Sim, mas só com uma condição!” Diz ela com um tom humorístico.
“Não te podes atrasar tanto!”
Eu sorrio e respondo:
“Nem que caiam as árvores na estrada ou chova fogo do céu me
impedirão de chegar a horas ao nosso encontro. Hoje tu és a minha
patroa, és tu que mandas. Ela apenas sorri e regressa ao seu
atarefado trabalho. O tempo também passa rapidamente e com ele,
chega a hora de voltar ao trabalho.
Robert encontra-se em redor das prateleiras tomando nota do stock
que existe.
“Sr. Robert, sabe se o chefe já chegou?” Pergunto.
“Não, mas deve estar a chegar.” Responde Robert.
226
Mal ele acaba de responder a minha pergunta, ouvimos um carro a
parar e a estacionar.
“Aí está ele!” Exclama Robert ao se inclinar sobre si próprio, tentando
observa-lo pela porta da entrada.
Eu tomo a minha posição atrás do balcão enquanto que Robert
continua o seu trabalho nas prateleiras. Ouço a porta do automóvel a
bater, seguidos por passos na nossa direcção.
Ai vem ele, digo eu para mim próprio. O que ele me dirá depois de ter
tomado conta das injustiças que veio cometendo contra mim ao longo
do tempo?
Ele percorre aquele espaço em direcção ao armazém e diz a Robert
sem sequer parar:
“Vou precisar que ponhas de parte cinco barras de cinquenta
milímetros.” Dito isto, ele nem sequer se dignificou em me pedir
desculpa daquilo que me fez, nem sequer disse um mero "olá, como
tens passado", não, o seu coração continua empedernido como
sempre foi.
“Não te ofendas com isso.” Diz Robert, como quem leu o meu
pensamento. “Se ele tiver calado é sinonimo que gosta do teu trabalho.
“Mas também, ele poderia ser mais humano. Aliás, todos nós temos
essa capacidade.” Critico tal acção da sua parte.
Logo em seguida a ter terminado esta frase, ouço o barulho de
ambulâncias e veículos da polícia a deslocarem-se pela avenida fora.
Geralmente nunca se passa nada de grande aqui, tal aparato, sem
duvida irá atrair a atenção da gente em redor.
“É coisa grande.” Diz Robert, com um ar de quem teme o pior.
Eu volto para dentro e respondo-lhe:
“O que for que aconteça não escapará sem ser-nos revelado.”
Robert abandona a porta de entrada e desloca-se em direcção do
armazém.
227
“Se precisares de algo estou ali dentro.”
“Obrigado Sr. Robert.” Agradeço tal disponibilidade.
A tarde está quase a chegar ao seu fim e o último cliente entra na loja.
“Boa tarde Jonathan, precisava de trinta parafusos de vinte milímetros
e de trinta anilhas.”
“Com certeza.” Respondo ao seu pedido.
Enquanto ponho os parafusos no saco plástico transparente, o cliente
informa-me:
“Já sabes da tragédia ocorrida no início da tarde?”
“Não! O que foi que aconteceu?”
O cliente prossegue:
“Foi nas obra do novo centro comercial. Uma equipe de trabalhadores
estavam a montar um grande andaime quando, sem qualquer
explicação, o andaime entra em colapso e cai, arrastando cinco
trabalhadores. Um morreu e os outros quatro ficaram em estado
crítico.”
“Mas quem é que morreu?” Pergunto numa curiosidade banal.
“Eu não o conheço, mas acho que era um tal Mike.”
O meu coração para ao ouvir o seu nome e os meus movimentos
congelam-se.
“Mas, tem a certeza do que esta a dizer?” Pergunto em aflição. Talvez
fosse um lapso da sua parte. O povo em geral é bom em confundir as
notícias.
“Pelo que sei, era um rapaz novo que estava para se casar. Pobre
rapariga que perdeu o seu noivo assim, desta maneira! Obrigado pelos
parafusos. Tem uma boa noite.” Diz o cliente, despedindo-se.
Eu permaneço de pé, como se de uma estátua me tratasse, não
querendo, por nada deste mundo, acreditar no que tinha acabado de
ouvir. Com árduo esforço, consigo descongelar o meu corpo de tal
paralisia e tomo a acção de telefonar para casa dos pais da Michael, a
228
sua noiva. Eles são clientes nossos, por isso, possuímos alguns dos
seus contactos. As minhas mãos tremem cada vez mais a medida que
este agoniante tempo passa. Depois de tanto vasculhar o que eu
queria, o número aparece de vez. Digito-o no telefone e espero que
alguém me atenda. O telefone toca sem que alguém o atenda. Insisto
quatro vezes mas sem algum sucesso. Pouso o telefone e, com as
mãos em cima do balcão, imagino se aquela notícia poderá ser mesmo
verdade. Finalmente, ocorre-me uma boa ideia capaz de acabar com
toda a minha ansiedade. Um conhecido meu, o Sr. Jonhson, conhece
muito bem a família da noiva de Mike. Sem hesitar por mais tempo que
fosse, pego na lista telefónica e retiro o seu número de telefone.
Rapidamente digito os números lá gravados e o telefone inicia a
comunicação.
O telefone toca sem que ninguém atenda.
“Não acredito! Será que ninguém está em casa desta vez?” Suspiro ao
ver outra tentativa resultar em nada.
Quando a chamada esta prestes a terminar, ouço um ruído
acompanhado por uma voz que diz:
“Estou sim?”
Apanhado de surpreso, gaguejo sem saber por onde devo iniciar a
conversa.
“Boa noite, eu sou Jonathan da loja de artigos em aço. Estou a falar
com a família Jonhson?”
“Sim, é a esposa do Sr. Jonhson.” Responde ela acompanhada por
um leve e grave rumor de gente que murmura atrás dela.
“Desculpe estar a incomodá-la, mas eu queria esclarecer uma dúvida
de um rumor que ouvi. Eu sou amigo do Mike e gostaria de saber o
que...” Neste momento, a minha conversa é interrompida ao som de
soluços e de lágrimas da Sra. Jonhson.
“Pobre Mike, pobre Mike.” Lamenta profundamente a Sra. Jonhson a
229
medida que o pesar lhe vai aumentando. Eu deixo cair o telefone em
cima do balcão, completamente fora de mim, apoio-me no móvel por
trás do balcão. Deslizo lentamente por ele abaixo, ao passo que,
milhares de lembranças que possuo do Mike me vêem à memória.
Desde os tempos de infância, do liceu, o Mike fazia parte da minha
vida. Agora, ele desapareceu de uma forma brutal, sem mais nem
menos. Sentado no chão, não consigo conter as lágrimas de pesar,
mas também de revolta, intensa revolta pela injustiça cometida. Como
alguém se poderia atrever de retirar a vida a um jovem excepcional.
Enquanto que tento canalizar a minha revolta contra qualquer coisa, a
visão que tive na noite passada me vem a mente. Consigo ver
claramente aquilo que visualizei. Afinal, aquele aparato que eu vi no
meu último sonho, tinha sido a sua condenação. Nesse momento, o
telefone toca. Enxaguo as lágrimas com o braço direito, envolto num
profundo e misto sentimento de culpa e de raiva pelo que aconteceu.
Levanto-me do chão, atendo o telefone e respondo sem me lembrar da
apresentação inicial da nossa loja.
“Quem fala?”
“Olá Jonathan, sou eu, a Jennie.”
Com o nariz vermelho e um grande nó na garganta, respondo:
“ Oh Jennie, nem sabes o que aconteceu!”
“Acabei agora de o saber. Um cliente aqui no restaurante acabou-me
de dar a noticia. Eu vou precisar de ir ter com a minha amiga Michael,
não te importas de cancelar a nossa saída de hoje?”
“De maneira nenhuma Jennie.”
“Queres vir comigo?” Este convite da Jennie consola-me e conforta-
me do meu grande pesar.
“Terei todo o gosto em te acompanhar. Passarei no fim do trabalho em
tua casa, pode ser?” Pergunto-lhe a medida que limpo as minhas
lágrimas e ajeito a roupa.
230
“Sim, fico a tua espera.”
“Então até já!” Despeço-me dela.
A voz da Jennie acabou por recarregar o meu corpo débil de energia,
dando um novo impulso em seguir por este trilho imprevisível chamado
vida.
Não tarda muito, e o tempo de fechar a loja finalmente chega.
Despeço-me de Robert e dirijo-me em direcção a casa de Jennie.
Já é de noite e Jennie espera-me sentada nas escadas do seu
alpendre, iluminada por uma fraca lâmpada do exterior.
Aproximo-me dela e, sem o pedir, ela entrelaça o seu braço no meu,
como já e habito nosso. Iniciamos a nossa penosa procissão até a
casa dos pais da Michael. Ser amigo e humano não evolve apenas rir
com os que riem, mas sim, também chorar com os que choram.
A rua onde mora Michael esta deserta. As vivendas em seu redor
encontram-se nas trevas, com as luzes desligadas, ou apenas, com
uma pequena luz de presença. No fim da rua, a casa dos pais da noiva
de Mike encontra-se totalmente iluminada. Aproximamo-nos da porta e
subimos as três pequenas escadas da entrada. A porta encontra-se
aberta, deixando transparecer uma frincha de luz amarela para o
exterior. Eu bato a porta ao ritmo do meu coração que palpita lento de
tristeza. O ruído de passos num soalho de madeira vai aumentando de
volume à medida que se aproxima de nós. A porta abre e uma senhora
de meia-idade, alta e elegante abre-nos a porta. Ela é a mãe da
Michael. Com um lenço a pressionar o nariz vermelho devido ao choro
e sem proferir o que quer que fosse, Jennie e Ruth abraçam-se a
chorar. Ruth olha nos vermelhos olhos da Jennie e com as mãos na
sua face, enxagua-os com a ponta dos polegares.
“Obrigado por terem vindo. Venham para dentro.”
Sem dizer uma palavra, entramos para dentro. As acções falam mais
alto que as próprias palavras. Percorremos o corredor com parede em
231
cor pérola bem iluminado, decorado com quadros de todos os estilos e
feitios e uma mobília antiga, mais muito bem conservada. Viramos
numa porta à esquerda e ali, no fundo daquela sala, encontra-se
Michael com o seu pai, amigos e amigas. Jennie larga-me e corre para
junto da Michael. Ambas abraçam-se e irrompem num grande choro.
Nem eu próprio consigo conter as minhas lágrimas em pesar pela
tragédia que se abalou nesta tarde. Eu aproximo-me de Michael que
chora junto com a Jennie. Quando se separam, elas seguram-se por
um curto período pelas mãos a olharem uma para a outra. Michael olha
para mim e, com aquela cara vermelha de sofrimento e sem dizer uma
única palavra, abraça-me com a gratidão da nossa presença, num
momento tão pesaroso como este. A alegria que se dissolve nos
momentos da nossa vida, apenas serve para ludibriar a realidade do
fim de todos os nossos caminhos.
Após aquele momento, eu deixo espaço para os restantes que acabam
de chegar e que desejam condoer-se com Michael e sua família.
Jennie permanece junto a ela enquanto que eu dirijo-me para um canto
da sala. O seu pai, homem alto, forte e de bigode, aproxima-se de
mim.
“Obrigado por terem vindo.”
“É mais do que a minha obrigação estar aqui.” Respondo.
“O funeral é depois de amanhã por volta das quatro horas da tarde.”
Informa o pai da Michael.
“Lá estaremos.” Afirmo.
Mike não tinha família, e os primos afastados que tinham, nem sequer
sabiam que ele existia. Era a minha obrigação representá-lo na sua
última homenagem.
Por fim, Jennie levanta-se e despede-se de Michael, dirigindo-se até
mim.
“Podemos ir para casa.”
232
Acompanho Jennie até a sua casa enquanto que ouço o historial de
amizade construída entre ela e Michael até ao dia de hoje. Conseguia
entender e sentir profundamente o significado daqueles sentimentos.
Mike era mais do que um irmão, pois os irmãos não se escolhem, mas
sim um verdadeiro amigo.
Saímos para o exterior, pensativos e em luto pelo que aconteceu.
Enquanto que acompanho Jennie até casa, ela resume-me a conversa
que teve com Michael.
“Ainda se encontraram esta manhã. Ela preparou-lhe uns doces
caseiros como só Michael sabe preparar.” Relembra Jennie no escuro
daquela rua deserta de vida, à medida que mais e mais recordações
lhe vão afluindo daquela conversa que teve com a sua amiga Michael.
“Era um casal fantástico. As vezes pergunto-me porque que estas
coisas acontecem? Porque é que não podemos mudar o nosso
destino?” Pergunta Jennie tristemente.
Eu agora sei a resposta, mas seria um risco expor-me. O momento
ainda não tinha chegado.
“Fiquei toda arrepiada quando Michael me disse que, esta manhã, ele
tinha tido um pressentimento de que algo de mal iria acontecer. Ele
tinha tido um sonho a dois dias atrás que o perturbou muitíssimo.”
“Que tipo de sonho?” Pergunto na esperança de desvendar um caso
que já se encontra encerrado.
“Ela não me soube explicar bem o que o deixou tão perturbado.
Segundo ela, foi algo relacionado com um objecto branco que ele
recebeu.”
Ouço as suas palavras, mas sem revelar o verdadeiro significado.
Tudo está ainda muito fresco, especialmente, as nossas emoções.
Finalmente, chegamos a casa da Jennie. Despedimo-nos com um
abraço bem apertado.
“Vejo-te amanha Jennie.”
233
“Obrigado pela companhia Jonathan. Vemo-nos amanha.”
E assim, cada um segue o caminho para os seus lares, pois, o dia
acabou e um pesado dia dará inicio amanha.
Chego a casa emotivamente exausto. Tenho fome, muita fome mas
pouca vontade em fazer algo para me saciar. O cansaço vence-me a
cada segundo que passa. Apenas deito-me no sofá como uma pedra
atirada ao rio, esperando recuperar forcas para cozinhar algo.
Passados apenas alguns instantes, ouço água a correr na cozinha.
Levanto-me e admiro-me com o que vejo. Encontro-me num profundo
escuro, acompanhado pelo eco de uma cascata de água que por ali se
encontra. Do outro lado, vejo uma pequena luz branca que mais se
parece com o exterior. Caminho por entre as trevas, à medida que os
meus olhos se vão habituando ao negrume. Consigo visualizar o
alcatrão velho por baixo das solas dos meus sapatos. Aí, dou conta de
onde me encontro. As paredes deste túnel são feitas de pedra negra
com pequenas raízes de árvores penduradas por aquele teto fora. A
brisa fresca aumenta de intensidade à medida que avanço por aquele
espaço que transborda de água por tudo o que é parede, com uma
única saída. Finalmente atinjo a boca do túnel e os meus olhos mal
enxergam o cenário que existe fora dele. Não consigo conter a
admiração que sinto ao contemplar tamanha vista. Montanhas
vertiginosas seguidas por vales profundos completamente verdejantes
enchem aquele mundo riquíssimo em cascatas de água. Aproximo-me
do pequeno parapeito que existe na orla da estrada e contemplo a
visão bem lá para baixo. Todo o vale é contornado por um rio e as
suas escarpas, tornam a escalada impossível.
“Chegastes cedo Jonathan.” Ouço a voz de Volton mesmo por detrás
de mim.
“Onde é que estamos?” Pergunto
“No único sitio onde se pode encontrar o velho dos moinhos, o ser
234
mais sábio em quem podemos confiar.” Responde Volton.
“Ele mora por aqui perto?”
“Bem no fundo deste vale. Existe um acesso que nos levará com
segurança até ele.”
Ainda Volton proferia tais palavras, quando o furgão preto chega com
Jaimie, Francesco, Bland e Sophie.
As portas abrem e os quatro saem para fora. Jaimie e Francesco
retiram duas malas negras semelhantes a sacos de viagem do seu
interior.
“Estamos todos prontos?” Pergunta Volton.
“Não poderíamos estar melhor.” Responde Jaimie, com um sentimento
positivo para este dia.
“Sigam-me.” Ordena Volton ao iniciar a descida por um trilho íngreme
de pedras rústicas e mal calcetadas.
O silêncio impera naquela descida, estando Jaimie e Bland sempre
atentos a tudo o que se passa ao nosso redor.
Apenas se ouve os nossos passos e o barulho da vegetação cortada
por nós em conjunto com a suave brisa fresca que varre toda aquela
região.
Finalmente, chegamos ao nível do rio com a vegetação cada vez mais
alta, densa e verdejante. Após a última curva naquele trilho paralelo ao
rio, um portão pequeno de madeira velha, antigamente pintada de um
azul agora gasto, delimita a fronteira entre o terreno privado e o
exterior.
Volton pára e os restantes param junto a ele.
“E aqui!” Exclama Volton ao olhar para a vegetação que reside a um
nível cima das nossas cabeças. A caminhada prossegue quanto Volton
empurra aquele pequeno portão. Após breves metros, observo uma
casa velha, pintada de branco gasto com várias trepadeiras que por ela
se erguem. Do lado esquerdo da casa, o trilho acidentado prossegue
235
caminho, enquanto que do lado direito, uma grande roda de madeira
gira ao sabor das correntes daquele rio sereno e silencioso.
Contornamos a casa pelo mesmo caminho irregular de rochas brancas
naquele denso verde. Por detrás da casa, existem umas escadas de
pura rocha granítica. Tais escadas não foram edificadas pela mão do
homem, mas sim, escavadas pela poderosa natureza. Nesse patamar
de baixo observo, de costas, um ancião de cabelos brancos e
compridos, trajado de uma veste de linho branco, muito concentrado
naquilo que faz. Voltado para o rio e sentado num tronco de madeira
cortado, ele tenta compor um veio da mó com as suas mãos
enrugadas e trementes.
“Eu sabia que virias!” Diz o ancião de costas para nós, apercebendo-
se da nossa presença silenciosa.
A atenção redobra para não perder absolutamente nada do que será
dito.
“Trouxe-lhe o homem!” Diz Volton, representando o grupo que se
posta em meia-lua em torno do velho dos moinhos.
Ele, com a sua coluna encurvada e apoiado num bastão de madeira,
levanta-se e caminha lentamente com dificuldade na minha direcção.
As perguntas disparam no meu cérebro até ao momento em que ele
me fita nos olhos à medida que vem ao meu encontro. Ele examina-me
muito bem, tentando descobrir algo de importante que eu talvez
possua.
Ele dá um pequeno gemido e, voltando-se lentamente para Volton, diz:
“É um pouco jovem de mais. Não creio que seja capaz de suportar o
que virá a seguir.”
“Tenho fé que sim.” Diz Volton. “Eu acredito que ele é a chave.”
Mas que conversa era esta? Porque é que eu era o escolhido, se ainda
mal conhecia este mundo?
“Precisamos da ajuda da sua grande sabedoria na resolução de um
236
enigma.” Diz Volton.
“Se eu conhecer a resposta, terei todo gosto em vos ajudar meus
filhos.”
“Recebemos uma informação com respeito à localização do artefacto,
mas os dados recebidos estão envoltos num enigma.” Responde
Volton com seriedade.
“Não fiquem de pé meus filhos, sentem-se por favor!” Diz o ancião.
Todos nós tomamos acento nas lajes de pedra em meia-lua. No centro
dessa meia-lua, o ancião toma o seu acento no velho tronco de
madeira, como que representando o sol no sistema solar.
“Revela-me o enigma por favor.” Diz o ancião, redobrando a sua
atenção nas palavras que serão proferidas por Volton.
“O enigma é o seguinte:
No sextante do conhecimento
A sabedoria será revelada
Pelo grau imperfeito da luz
Até a plenitude jamais abalada"
O ancião pensa profundamente em tais palavras, suavizando a sua
longa barba branca com a mão direita. Os seus olhos percorrem
aquele céu límpido em busca da resposta a tal enigma. Passado
breves segundos, ele diz o que ninguém esperava.
“Não consigo interpretá-lo. Lamento meus filhos, mas não vos posso
ajudar.”
“O quê?” Pergunta Volton em voz baixa com um tom grave de
profundo desapontamento. Surge um pequeno murmúrio no grupo
pois, tal resposta era a única que não se contava.
Enquanto todos se consultam uns aos outros com Volton, pondo até
mesmo em causa o resultado da missão, eu aproveito para reflectir
237
mais uma vez no enigma e nas palavras do ancião. À medida que a
minha mente abre novos caminhos no pensamento, decido aproximar-
me do homem idoso para esclarecer um ponto em questão. Baixo-me
até atingir o nível dos seus olhos negros em sinal de respeito e
humildade.
Ele sorri, querendo mostrar simpatia e acolhimento apartir daquele
gesto.
“Gostaria de lhe fazer uma pergunta.” Neste momento, todo o grupo
pára de se lamuriar e concentra a sua atenção em mim.
“No que eu poder ajudar, sem dúvida que o farei.” Responde o homem
idoso.
“Como posso eu descobrir a verdadeira sabedoria através do
conhecimento?”
Ele ouve com atenção a minha pergunta, usando breves segundos
para reflectir nela.
Passado esse momento de meditação, ele ergue-se lentamente do
tronco com ajuda do bastão.
“Quero mostrar-te uma coisa que talvez possa iluminar o teu
caminho.” Diz o ancião.
Lentamente, sigo-o segundo os seus passos até chegarmos ao limite
entre a terra e o rio.
“Assim como as águas deste rio desaguam no grande mar, assim, da
mesma forma, toda a sapiência se concentra no vasto mar do
conhecimento. Lá navegarás pelo esplendor das suas maravilhas
dignas de serem vistas e pela oculta luz da sabedoria, serás guiado até
ao seu término, o centro de toda a sabedoria.”
Tal resposta aparentava ser outro enigma que acabara por deixar o
grupo uma vez mais confuso.
“Lembra-te meu filho, o conhecimento é teórico e absorvível. O
conhecimento enfuna o homem terreno. Mas a sabedoria é diferente.
238
Ela é aplicável, prática e activa. Apenas os que arduamente a
procuram nas profundidades do conhecimento, a encontrarão.”
Finalizando de proferir tal mensagem, uma forte brisa sacode as
árvores por todo aquele vale. O velho dos moinhos concentra a sua
atenção na agitação que passa em seu redor.
“Vamos embora Jonathan, temos que nos movimentar.” Informa
Volton.
Apercebo-me que a hora de partir chegou e sem mais demoras,
agradeço ao ancião a ajuda que nos prestou.
“Não tens de agradecer. Cumpre o teu objectivo, conclui com hesito a
missão que tens nas mãos.”
E com aquelas palavras, todos seguimos o mesmo caminho de volta
pelo vale a cima.
“Mas o que ele quereria dizer com todas aquelas palavras?” Pergunta
Sophie, confusa com todas aquelas ideias.
“Não faço a mínima ideia do que poderá ser.” Responde Jaimie com
desalento.
“Não esperava tal resultado.” Acrescenta Volton.
“E tu Jonathan, o que achaste de tudo isto?” Pergunta Bland.
Ao ouvir tal pergunta, paro para reflectir e ao mesmo tempo, para
relaxar o corpo da grande subida. Vendo que eu parei, todos
interrompem a subida e se juntam a mim num pequeno circulo. No
meio daquele trilho, contemplamos o abismo verdejante que se
estende para baixo até ao rio e para o alto, até aos céus.
“Não é o velho dos moinhos apenas um fragmento antigo deste
sistema?” Pergunto tentando raciocinar com o grupo.
“Sim, ele é um dos fragmentos mais sábios de todo o mundo 7.”
Afirma Francesco.
“Então se ele é um fragmento do sistema, independente das ordens e
comandos do oleiro, como poderia ele saber a localização de algo
239
extremamente confidencial?” Pergunto com o objectivo de faze-los
raciocinar.
“Ele tem razão.” Comenta Sophie.
Todo o grupo chega a mesma conclusão mas, tal resultado não ilumina
o enigma.
“A que ponto desejas chegar Jonathan?” Pergunta Jaimie.
“Ele jamais saberia a localização exacta do artefacto, no entanto, ele
possui a experiência necessária de nos indicar o caminho que
devemos tomar.”
“Como assim?” Pergunta Jaimie, ansioso de descobrir a resposta.
“Este mundo é controlado por um elemento que baseia toda a sua
atenção e dedicação em "equilibrar" o mundo real, exacto?”
“Sim.” Concorda o grupo em uníssono.
“Qual é a sua real função neste contexto?” Pergunto.
“A sua função é inspirar determinados humanos, construir génios que
iluminam o mundo e guiar a humanidade ao seu bel-prazer, nem que
para isso, tenha de rebaixar os “inúteis” como se fossem lixo. É ele
quem controla e mantêm em submissão a mente humana.” Comenta
Jaimie.
“Para ele, o mais importante não é fama nem gloria, muito menos o
dinheiro. A ele só o conhecimento e a sabedoria são importantes.”
Comenta Sophie.
“Daí é que vem a ideia de serem inspirados a fazer algo ou a
desempenhar alguma função através da sua sabedoria.” Finaliza
Bland.
“Exacto, esse é o ponto!” Exclamo entusiasticamente. “Quando o
velho dos moinhos disse, Assim como as aguas deste rio desaguam no
grande mar, assim da mesma forma, toda a sapiência se concentra no
vasto mar do conhecimento, ele queria dizer que todo o conhecimento
humano e a sua experiência são canalizadas directamente para ele,
240
como se fossem carregadas quando cada mente humana acede a este
servidor.”
“Por essa razão ele sabe sempre tudo o que se passa!” Comenta
Francesco em voz baixa, embora muito pensativo.
“Mas, a que ponto queres chegar?” Pergunta Jaimie.
“A resposta está na segunda parte do enigma, quando ele disse lá
navegaras pelo esplendor das suas maravilhas dignas de serem vistas.
O mar do seu conhecimento fez com que maravilhas fossem criadas.”
Respondo, juntando mais uma peça deste complexo puzzle.
Nesse momento, ouve-se o som de uma ave de rapina. Volton olha
para o céu e observa um falcão pairando bem no alto sobre as nossas
cabeças. Tal reacção de Volton chama a atenção de todo o grupo.
“Vamos embora daqui!” Exclama Volton.
Ao som deste mandamento, todos apressam muitíssimo o passo por
aquela colina a cima.
“Mas o que se passa?” Pergunto com o coração a palpitar fortemente.
“Estamos a ser vigiados.” Responde Francesco entre a sua respiração
ofegante.
“Como é que o sabes?” Pergunto ao olhar para todos os lados.
“Uma zona neutra não é constituída por mentes humanas nem por
animais. Aquele falcão apenas poderá representar um agente do
sistema, possivelmente, um fragmento dele.
“Vamos lá, mais um esforço. Temos um abrigo mesmo ali em cima!”
Diz Volton ao olhar para um amontoado de rochas a poucos metros de
nós. Todos corremos velozmente para lá, como se uma avalanche
estivesse para ocorrer bem ali sobre nós. Bem no centro daquele
amontoado de rochas encontra-se uma pequena concavidade.
Dirigimo-nos para o seu interior e, sem dizer palavra que fosse, todos
se sentam no interior dela, tentando ganhar fôlego do imenso esforço
despendido.
241
“Achas que fomos detectados?” Pergunta Francesco, ofegante de
tanto esforço.
“Temos que sair daqui, o mais rápido possível.” Afirma Volton sem
esconder o cansaço nas suas palavras.
“Mas então, como vamos sair daqui?” Pergunta Francesco.
“Já sei!” Exclama Sophie em voz alta, como se um raio a tivesse
iluminado muitíssimo. Todos olham para ela com admiração pela sua
ideia entusiástica.
“Então, qual é o teu plano para sair-mos daqui?” Pergunta Jaimie.
“Não é nada disso. Eu acho que sei o que significam as "maravilhas a
serem vistas"!”
“Como assim?” Pergunta Volton, surpreendido com tal afirmação.
“Existiu no passado um poeta e escritor grego chamado Antipatro de
Sídon, criador de uma lista chamada Ta hepta Thaemata.”
"As sete coisas dignas de serem vistas". Interrompe Volton.
“Lá são reveladas as sete maravilhas erigidas pelo homem que
deveriam ser vistas por toda a humanidade.” Conclui Sophie o seu
raciocínio.
“É isso! Não poderia existir nenhum outro grande orgulho para o Oleiro
que não fosse as suas maravilhosas criações. Mas, quais são elas?”
Pergunta Francesco entusiasmado pela descoberta.
“Existem as antigas e recentes maravilhas do mundo. Á medida que o
tempo passa, novas listas se formam.” Argumenta Sophie.
“Só existe uma maneira de saber quais são e como estão envolvidas
no próximo enigma.” Respondo
“Podemos começar pela Grande Biblioteca. Se essa lista ainda existe,
é lá que se encontra.” Informa Jaimie.
“E se não estiver lá? O que poderemos fazer?” Pergunta Bland.
“Existe uma segunda hipótese. Vasculhar o museu central. Lá
certamente encontraremos aquilo que desejamos.” Conclui Jaimie.
242
Volton encontra-se no seu estado pensativo, planeando uma forma de
obter a chave de abertura para este enigma.
“Não temos muito tempo para descobrir o que se encontra no interior
daquela lista. O melhor é nos dividirmos em dois grupos.” Diz Volton.
“Excelente ideia!” Concorda Jaimie.
“Eu vou com Jaimie e Sophie. Francesco e Bland irão contigo
Jonathan.”
Finalmente, a bruma daquele mistério parecia desvanecer-se cada vez
mais face ás novas iluminações que surgiam diante de nós.
Não demorou muito tempo até atingir-mos a estrada onde se encontra
o furgão. Todos entramos nele e dirigimo-nos por aquela estrada fora,
a serpentear todo aquele abismo.
Por fim, entramos num longo túnel escuro sem fim aparente. Ao longe,
observo luzes brancas mas sem distinguir o que realmente são. A
estrada vai alargando e a qualidade do piso torna-se realmente boa.
Todo o túnel é bem iluminado comparado com o seu negro começo. A
anterior estrada estreita converteu-se numa via com duas faixas para
cada sentido, e o trânsito nela aumenta vertiginosamente.
Finalmente saímos do longo túnel e entramos numa caótica cidade
nocturna.
Olho para o vidro completamente surpreendido pela radical evolução
do cenário.
“Como é possível ser de noite se ainda há pouco estávamos a meio
do dia?” Pergunto completamente surpreendido com aquela visão.
“O sítio onde estivemos não existe na realidade. É aquilo que nós
chamamos de zona neutra.” Responde Volton.
“É como os bastidores num teatro. A humanidade apenas vê o palco
sem dar conta que eles existem por detrás.” Reforça Jaimie.
“No entanto, são sítios perigosos, patrulhados por uma elite especial
de hostes cruéis ao serviço do Oleiro. Contudo, somente nesses sítios
243
podemos encontrar os fragmentos do sistema.” Conclui Volton.
“Estamos a chegar ao cruzamento!” Avisa Jaimie ao volante do furgão.
Volton olha pelo vidro e diz:
“É aqui! Encosta o carro.” Fazendo-o subir o passeio metros antes do
cruzamento. “Vocês já sabem o que têm a fazer. Iremos contactar-vos
assim que podermos. Mantenham-se vigilantes.” Ordena Volton.
A porta lateral do furgão abre-se e nós precipitamo-nos para o mar da
multidão que por ali vagueia.
Confuso e sem saber por onde começar, limito-me a olhar em meu
redor para os grandes prédios enfeitados de imensas luzes
publicitarias.
“Como vamos descobrir o caminho para a biblioteca?” Pergunto.
“Apenas deixa-te guiar pelo teu instinto, ele te mostrara o caminho.”
Responde Francesco ao mesmo tempo que tenta localizar um táxi.
“Ali esta um!” Exclama Bland ao observar um táxi do outro lado da
grande e movimentada avenida.
As pressas, atravessamos aquele pandemónio de veículos em
movimento até atingirmos o outro lado da estrada em direcção ao táxi.
Entramos todos nele e seguimos viagem sem dizer ao motorista o sítio
desejado. Bland vai no assento da frente, como que vasculhando tudo
o que vê. Eu e Francesco encontramo-nos nos assentos de trás,
pensativos sobre tudo o que possa existir neste mundo. O táxi pára no
sinal vermelho, dando-me a oportunidade de observar mais
atentamente o que vai se passando por aqueles passeios. Observo um
grupo de amigos bem dispostos que não se deixam intimidar pelas
amarguras da vida. A amizade é um dom precioso, podendo ser
apenas cancelada pelo próprio ou pela grande inimiga da humanidade,
a morte. O abatimento toma conta de mim a medida que penso no
desaparecimento do meu amigo Mike e da forma brutal como ele
abandonou o mundo dos viventes. Enquanto que recordo pedaços de
244
memórias que possuo na minha mente, o sonho que tive na noite
anterior à tragédia me vem à mente. Lembro-me de ver Mike com um
objecto branco. Mas o que poderia ele representar? Enquanto que
reflicto em tais memórias, o veículo avança por entre aquela estrada de
alcatrão.
“Esta tudo bem contigo, Jonathan?” Pergunta Francesco em voz
baixa.
Pensativo e concentrado em tal raciocínio, respondo:
“Existe algo que me deixou perplexo, sem saber o significado do que
vi.”
“O que foi que observastes?” Pergunta ele pela segunda vez.
“Na noite passada, vi um dos meus melhores amigos ser recolhido
sem vida do seu local de trabalho. Mas o que me deixou mais
perplexo, foi o facto que ele recebera há dois dias atrás um objecto
branco. Tal objecto produziu em si um pressentimento de que algo de
mal lhe iria ocorrer.
A última frase faz com que Francesco se incline para mim, redobrando
a sua atenção.
“Infelizmente, esse meu amigo faleceu ontem.”
“Ele recebeu o envelope branco!” Exclama Francesco.
“Envelope branco? O que queres dizer com isso?” Pergunto intrigado
com tal exclamação.
“Lamento o que aconteceu Jonathan.” Diz Francesco. O envelope
branco representa a sentença de morte. Quem o recebe tem a
execução num período de 48 horas.”
“Como assim? Quem determina tal ordem?” Pergunto mais uma vez,
incrédulo com o que acabo de ouvir.
“Tudo o que tu vês neste mundo tem a sua interpretação, Jonathan. O
Oleiro é quem determina quem sobe e quem desce, mas não só. Para
cumprir os seus objectivos, o oleiro elimina aquilo a que ele chama de
245
empecilhos. Infelizmente, ele tem o poder para determinar quem deve
viver ou morrer.”
“Como assim?” Pergunto chocado com tal afirmação.
“Tudo baseia-se no seu conceito de equilíbrio. Quem estiver fora
desse contexto ou quem tente evadir-se das suas orientações, só tem
um caminho a percorrer aos seus olhos. Não é que ele mate a pessoa
na vida real, no entanto, ele ordena a outros para o fazerem no seu
subconsciente, quer seja propositada quer acidental. Por isso é que,
para certos crimes horríveis, não haja uma explicação humanamente
possível.” Explica Francesco.
“Não pode ser!” Respondo cada vez mais incrédulo.
“Os humanos no mundo não passam de marionetas. Aqueles que
cumprem as suas ordens têm alguma paz, pois vivem na ignorância.
Aqueles que tentam encontrar um futuro melhor e saírem do círculo
que lhes fora predito, esses encontrarão sérios problemas.” Comenta
Bland, sem tirar os olhos da estrada.
“Não é raro ouvir relatos de pessoas que, momentos antes de
sofrerem uma tragédia, sintam um leve pressentimento de que algo
mau irá acontecer.” Comenta Francesco.
“Como isso é possível?” Pergunto.
“O mundo 7 não é um lugar completamente estanque, muito menos
perfeito. Por vezes, ocorre uma elevação subconsciêncial, mais
conhecido por "onda". Tal fenómeno ocorre quando passamos por um
episódio terrível neste lugar, semelhante a um pesadelo. Esta
sensação de aflição é tão poderosa que parte dela aflora no nosso
consciente, transportando pequenos fragmentos do sonho para a
nossa memória. Tais fragmentos irão ser recordados após o despertar,
dando-nos a sensação de que algo de mal ira acontecer, mesmo sem
saber o porquê.” Explica Francesco.
“O mesmo acontece a terceiros.” Comenta Bland, voltando-se para
246
trás. “Muitas vezes, amigos e familiares pressentem que algo de mal
ira acontecer a um ente querido. Existem muitos casos de pessoas que
sentiram uma má inquietação no momento exacto em que uma
tragédia ocorreu sobre alguém achegado. Tal acontece porque os
envolvidos participaram do mesmo sonho no seu subconsciente,
pressentindo o momento exacto da tragédia.”
Nesse momento, o silencioso e concentrado taxista, decide olhar-me
friamente pelo retrovisor como se me conhecesse.
A sua atitude incomoda-me, deixando-me em alerta máximo. Ele volta
a olhar-me fixamente nos olhos e, cansado de tal situação, pergunto-
lhe:
“O Sr. conhece-me de algum lado?”
Ele volta lentamente os olhos para a estrada respondendo-me fria e
calmamente:
“Tu és o escolhido, o libertador do mundo.” Responde ele com um
sorriso.
Aquela resposta deixa-nos completamente fora de nós. Como ele
poderia ter tal conhecimento?
“Encoste o carro!” Ordena Francesco em voz alta.
Ele tenta fazer tempo circulando de faixa em faixa.
“Já lhe disse!” Clama Francesco bem alto. “Encoste o maldito do
carro!”
Vendo que ele não obedece a esta ultima ordem, Bland, com a sua
forca de Bulldozer, neutraliza o taxista e imobiliza o veículo.
“Vamos depressa daqui para fora!” Ordena Francesco, segundos
antes de mergulhar na multidão. Eu e Bland seguimo-lo de perto.
“Não tardarão em aparecer!” Exclama Francesco em tom ofegante,
enquanto que percorremos o caótico passeio repleto de pessoas.
“Porque dizes isso?” Pergunto surpreso com tudo aquilo.
“Houve um furo no sistema, o alerta será dado em pouco tempo.”
247
Continuamos a nossa caminhada por breves minutos até atingirmos a
avenida transversal a esta. Entramos nela e, ao fundo, um imponente
edifício em granito, suportado por grandes colunas de pedra, se ergue
bem no fim daquela avenida.
“É ali a biblioteca central!” Informa Francesco.
Observando tal monumento, as nossas mentes se enchem de ânimo
para prosseguir caminho. Bem no centro da fachada do grande
edifício, num gigantesco triângulo em granito, estão gravadas as
seguintes palavras:
"A sapiência liberta o homem"
Fascinado com tal frase, olho petrificado para ela, contemplando o seu
significado. Bland e Francesco sobem as escadas apressadamente,
como quem foge de um inimigo invisível. Após a minha contemplação,
decido juntar-me a eles no topo daquele monumental edifício. Do
patamar da entrada, por entre as maciças colunas graníticas, observo
o mundo caótico e agitado que rola por aquela avenida fora.
“Tudo é vão!” Exclamo. “E mesmo assim, continuam a vivê-lo como se
fosse a pura realidade.” Comento ao observar a estúpida, cruel e
impiedosa actuação humana num mundo meramente imaginário, como
se da realidade se tratasse.
“Jonathan, por aqui!” Informa Bland enquanto que segura as grandes
portas de vidro da entrada principal.
Não hesito em segui-los para o interior daquele edifício. Ao entrar nele,
os meus olhos se enchem de deslumbre ao visualizarem tamanho
espectáculo! Como poderia ser possível tal magnânima construção?
Os meus olhos simplesmente não pestanejam, evitando assim,
perderem qualquer pormenor de tal visão! Enormes colunas em
mármore branco seguram o grandioso tecto coberto por frescos,
248
reflectidos no chão de mármore branco. Um enorme vidro transparente
que une o altíssimo tecto do brilhante chão, separa o exterior do
semicírculo do seu interior. Francesco abre a porta de vidro instalada
nessa grande muralha transparente e entra para o interior do semi-
circulo seguido por Bland e por mim. Se o exterior é deveras fantástico,
o interior e veramente divino. Toda aquela área em semi-circulo e
composta por sete estantes de dois metros de altura com o mesmo
formato semi-circular. Apenas diminui de comprimento à medida nos
aproximamos do centro, como se de um funil se tratasse. A gigantesca
parede semi-circular e coberta unicamente por estantes divididas em
quatro patamares, todos eles coligadas por uma escada em espiral.
“Isto é deveras magnânimo!” Exclamo ao contemplar semelhante
visão.
“É deveras grandioso, não é?” Pergunta Francesco.
“Nunca vi nada igual.” Respondo-lhe ao observar todos aqueles livros
multicolores que revestem toda a enormíssima parede a nossa volta.
“Esta é a biblioteca central. Tudo o que existe no mundo real encontra-
se depositado aqui.” Explica Francesco a medida que caminhamos por
entre as sete estantes rumo ao centro do semicírculo.
Poucas são as pessoas que se encontram naquele espaço silencioso
e, aquelas que cá estão, parecem sentir-se incomodadas com a nossa
presença. A medida que nos aproximamos do centro, observo
atentamente os livros colocados nas estantes e eis que, algo estranho
acontece. Vejo livros simplesmente a desaparecerem e outros a
tomarem o seu lugar. Tal fenómeno estranho chama-me
verdadeiramente a atenção ao ponto de fazer semelhante pergunta:
“Porque é que alguns livros aparecem e outros desaparecem!”
“O cenário deste mundo e tudo o que ele comporta é algo carregado
unicamente pela mente humana. Alguns livros podem nem mesmo
existir na realidade mas, se alguém o leu antes de ele desaparecer e
249
se esse alguém ainda é vivo, tal livro ainda existe na sua mente.”
Explica Francesco sem abrandar o passo.
“A sua mente está a carregar semelhante informação todos os dias
nesta biblioteca.” Comenta Bland.
“Mas ao contrário” continua Francesco “quando uma pessoa morre, as
suas recordações são apagadas da sua memória. Por essa razão, se
tal pessoa for a ultima no mundo real a ter conhecimento de tal livro e
se ela morrer, tal manuscrito desaparece da biblioteca.”
“Este mundo existe porque é diariamente carregado com o que existe
na memória das pessoas!” Conclui Bland.
“Ao entrarmos no mundo 7, temos acesso à fascinante rede mental.”
Afirma Francesco.
Finalmente, chegamos ao último semi-circulo de livros, o mais pequeno
de todos. Francesco procura atentamente o livro como um falcão
vasculha os arbustos em busca da sua presa.
“Encontrei!” Exclama Francesco.
Ele retira da prateleira um arquivo preto e coloca-o na mesa de
madeira que existe bem no centro daquele complexo.
O arquivo contém manuscritos antigos dentro de bolsas transparentes
para a sua protecção. Vários fragmentos ali se encontram, alguns
deteriorados pelo fogo ou apenas pelo tempo, outros encontram-se em
excelente estado.
“Aqui está ele!” Exclama novamente Francesco ao encontrar o
manuscrito que desejamos.
"Ta hepta Thaemata- As sete coisas dignas de serem vistas". Leio o
seu título em voz alta.
Francesco posiciona o manuscrito bem na sua frente e inicia a leitura
do documento em voz baixa.
"Pousei os meus olhos sobre a muralha da doce Babilónia
250
Que e uma calcada para as carruagens
E dos seu seus jardins suspensos
E a estatua de Zeus dos alfeus
E o colosso do Sol
E a enorme das mais altas pirâmides
E o vasto tumulo de Mausoléu
Mas quando vi a casa de Artemisa encarnada pelas nuvens
Os outros mármores perderam o seu brilho
E disse: A parte deste Olimpo
O sol nunca parece tão grande."
Após a leitura do manuscrito, segue-se um enorme silencio entre nós
os três. A concentração naquele texto é elevada a medida que um
novo enigma nasce no lugar da resposta asneada.
“O que quererá dizer este texto?” Pergunta Bland, confuso com tal
descoberta.
“Não faço a mínima ideia.” Responde Francesco, sem tirar os olhos do
texto em questão.
“Isto não é um enigma.” Respondo eu. “Aqui encontra-se parte da
resposta com respeito à localização do artefacto. Só precisamos de
algum tempo para encaixar as peças.”
Enquanto tentamos obter a resolução do enigma, bem no centro da
biblioteca, o olhar incomodativo de alguém desperta a minha atenção.
Decido olhar rapidamente como um relâmpago para tal pessoa,
apanhando-a desprevenida. Tal individuo que nos observa bem do alto
do quarto patamar, desvia os olhos para os livros atrás de si.
Tal sensação causa em mim um sentimento de desconfiança, de que
estamos a ser seguidos.
“E melhor irmos embora. Estamos a atrair muita atenção.”
Francesco volta-se para mim e, em silêncio, olha em seu redor.
251
“Achas que estamos a ser seguidos?” Pergunta ele num tom de
preocupação ainda com o documento nas suas mãos.”
“A biblioteca ficou vazia, o melhor é regressarmos ao armazém.”
Comenta Bland.
Sem mais demoras, Francesco repõe o documento no seu lugar
habitual e depois disso, apressamo-nos em sair dali para fora.
Por fim, chegamos ao patamar das escadas que dão acesso a avenida
principal. Algo bizarro chama-me a atenção naquele momento.
“Ainda a pouco esta avenida estava cheia de gente! Para onde é que
todos foram?” Pergunto surpreso ao observar a avenida vazia.
“Tal cenário indica-nos que o tempo neste sistema já se esgotou.
Temos de retornar ao armazém o mais depressa possível.” Responde
Francesco, apressando o passo devido a tal situação.
Não perdemos o nosso pouco tempo útil em observações e
especulações com respeito à descoberta que realizamos à pouco. O
nosso objectivo fulcral é a concentração em retornar a nossa base.
A medida que caminhamos sem rumo na bem iluminada avenida,
Francesco põe o dedo da mão direita no ouvido, tentando receber
algum tipo de orientação.
“Jaimie, já vimos o conteúdo do manuscrito. Ele diz:
Pousei os meus olhos sobre a muralha da doce Babilónia
Que e uma calcada para as carruagens
E dos seu seus jardins suspensos
E a estatua de Zeus dos alfeus
E o colosso do Sol
E a enorme das mais altas pirâmides
E o vasto tumulo de Mausoléu
Mas quando vi a casa de Artemisa encarnada pelas nuvens
Os outros mármores perderam o seu brilho
252
E disse: A parte deste Olimpo
O sol nunca parece tão grande.
Agora, só precisamos sair daqui.”
Francesco ouve atentamente o que Jaimie diz, como se algo de
extrema importância estivesse a ser revelado.
“Está bem.” Responde Francesco. “Está a uns metros de mim do outro
lado da avenida.” E com essas e outras curtas palavras, Francesco
finaliza a sua conversação com Jaimie.
“Vamos atravessar a avenida.” Diz Francesco, precipitando-se nela.
“Temos de apanhar o autocarro até à última estacão. Eles estão lá à
nossa espera.”
A permanência por hoje no mundo sete está no seu culmine. Razão
essa evidenciada pelo cansaço que domina o nosso corpo, ou melhor
ainda, a nossa mente. Tal comportamento não passa despercebido a
Bland.
“O que se passa contigo?” Pergunta-me Bland. “Pareces abatido.”
Suspirando de cansaço, respondo:
“Não é nada de grave, meu amigo. Apenas tenho o corpo cansado
que não me para de pedir descanso.”
Voltando-se para mim, Francesco responde:
“Ora ai é que te enganas. O teu cansaço neste mundo não é físico,
mas apenas mental, devido ao esforço que estás a fazer. Nunca te
aconteceu acordares mais cansado do que quando te deitastes?”
Evito responder subitamente, apenas medito um pouco naquela teoria
veraz formulada por Francesco.
“Se dominares a tua mente a cem por cento, até o teu próprio cansaço
poderás controlar.” Conclui Bland.
Finalizando tal comentário, o autocarro desejado abranda e para bem
na nossa frente. Entramos nele e verificamos que apenas meia dúzia
253
de pessoas viaja no seu interior.
Eu tomo o meu acento no meio do veículo. Francesco senta-se do
outro lado e Bland, toma o seu lugar dois acentos a frente de
Francesco. O autocarro arranca dando-nos a possibilidade de
relaxamos no acento da longa jornada que efectuamos. Apenas se
ouve o barulho do motor que acelera de mudança para mudança e o
ruído das coscuvilhices de duas idosas nos lugares da frente do
veículo. Bland deita a sua cabeça para trás como quem quer dormir
enquanto que Francesco, com as pernas flectidas no acento da frente,
olha pelo vidro, reflectindo pensativo no dia de hoje.
O trânsito diminui muitíssimo pela avenida fora e os transeuntes que a
percorrem vão desaparecendo lentamente. O autocarro pára mais uma
vez fazendo-me duvidar se realmente é esta a paragem. Mesmo sem
dizer nada, Francesco apercebe-se do meu pensamento e responde-
me sem olhar para mim:
“Ainda não é esta Jonathan.”
Tal resposta faz-me relaxar mais uma vez no acento do autocarro.
Todos os passageiros saem. No entanto, algo curiosíssimo chama-me
a atenção. Uma jovem que percorre o corredor do autocarro
acompanhada por uma amiga, fala de modo estranho. Parecem duas
vozes a repetirem a mesma frase, como se de duas pessoas se
tratassem.
“Francesco” pergunto intrigado, “porque é que aquela jovem fala como
se fossem duas pessoas?”
Francesco olha para a jovem que sai do autocarro e responde-me:
“São gémeas.”
“Como assim?” Pergunto surpreso com tal resposta.
“No mundo 7, cada pessoa é um único indivíduo. Cada humano
recebe uma identificação. Como os gémeos são idênticos, o sistema
não profere qualquer distinção entre eles, cedendo a mesma
254
identificação tanto a um como a outro.” Explica Francesco.
“Nunca ouvistes falar de gémeos que partilharam o mesmo sonho?”
Pergunta Bland.
“Sim, já ouvi casos semelhantes, mas isso indica que eles são mentes
libertas?” Pergunto.
“Não, de maneira nenhuma.” Explica Francesco. “O facto de terem a
mesma identificação, possibilita-lhes de vez em quando, uma pequena
fuga de informações que serão recordadas quando acordarem.
Agora já entendia porque Angeline se recordou em ver-me a correr
pela avenida. Tudo parecia encaixar-se a seu tempo, no seu devido
lugar.
O autocarro fica vazio, restando apenas eu Bland e Francesco. O
veículo arranca mais uma vez na sua viagem interminável pela noite
dentro. Na minha mente, as palavras do ancião fundem-se lentamente
com as letras do manuscrito do enigma interminável. Embora tenha os
olhos postos no exterior, o meu pensamento foca a sua atenção
unicamente em desvendar o que se encontra por detrás daquelas
letras. Ainda com a visão desfocada, observo um veículo negro a
colocar-se à esquerda do autocarro seguido logo por um outro igual.
Tal estranho aparato chama-me subitamente a atenção. Olho para
Francesco que se encontra relaxado no banco, de olhos fechados, com
a maior tranquilidade do mundo. Antes de proferir palavra que fosse,
dois outros veículos colocam-se silenciosamente do lado direito do
autocarro.
Apercebido de algo errado, Francesco abre os olhos e olha para fora.
Apenas breves milésimos de segundos do início da tal observação,
Francesco clama como um louco:
“Abaixem-se!”
Ainda não tinha terminado tais palavras quando uma chuva de balas
trespassa os vidros do autocarro, produzindo um mar de estilhaços de
255
vidro que voam por todo aquele grande veículo. Eu e Bland não
perdemos tempo, obedecendo prontamente as palavras de Francesco.
Deitados no chão, esperando que aquele inferno estridente passasse,
os nossos corpos parecem estatuas de pedra, completamente
bloqueados sem saber o que fazer mediante tal cenário.
“Volton, consegues ouvir-me?” Pergunta Francesco, tentando fazer-se
ouvir no meio daquele ruído apocalíptico.
Francesco tenta comunicar-se com Volton, mas todos os seus esforços
se tornam infrutíferos.
Nesse momento, sinto o autocarro a abrandar e as balas cessam de
alvejar o veículo. Olho para Francesco e para Bland esperando obter
uma ideia ou um plano que fosse para nos tirar daqui.
“O autocarro está a parar, vamos ser apanhados!” Exclama
Francesco.
“Apenas seremos se não fizermos nada.” Respondo
Tento formalizar em breves segundos um plano de fuga minimamente
viável. A única hipótese que temos é tomar conta do autocarro e
barricarmo-nos nele até que tudo isto passe.
“Temos que chegar até o condutor e tomar posse do autocarro.”
Ordeno ao som do ruído agudo do veículo a travar.
“Estou contigo.” Diz Bland.
Começo a rastejar pelo chão em direcção ao condutor para não ser
visto pelos agentes lá de fora. Olho para o grande retrovisor do
autocarro e tenho a possibilidade de observar o condutor que se
concentra em abrandar o veículo. Continuo a rastejar rapidamente na
sua direcção sem tirar os olhos dele. Apercebendo-se da minha
aproximação, o condutor fixa-me nos olhos através do grande espelho.
A sua reacção é a menos esperada de todas. Ele volta-se e aponta-
nos uma arma contra a nossa posição completamente descoberta.
“Protejam-se, ele esta armado!” Exclamo
256
Tanto eu como Bland rolamos para trás dos acentos em busca de
alguma protecção. Uma segunda chuva de balas, desta vez conduzida
pelo motorista, atinge os estofes do veículo, enchendo o ar do
revestimento branco dos assentos.
“É um agente!” Exclama Francesco, sem saber o que fazer.
O verdadeiro momento crítico acabara por chegar. Encurralados atrás
de acentos baleados e com o veículo a abrandar a passos largos, o
nosso fim parece iminente.
O meu cérebro processa infindáveis ideias em busca de um escape.
Por fim, já com o nosso tempo expirado, olho para Bland e para a sua
arma. O plano que possuo se consolida e, sem hesitação, profiro a
seguinte pergunta:
“Bland, sabes usar armas?”
Ele olha para mim e diz:
“Sim.”
“Consegues atingir o condutor apartir daqui?” Pergunto-lhe.
Bland visualiza o alvo apartir de uma frincha do assento bem na sua
frente.
“Não será fácil pois, o vidro de protecção que se encontra atrás dele é
deveras resistente.”
“Queres dizer que isso é impossível?” Pergunto com a intenção de o
motivar a aceitar um bom desafio.
Bland sorri e diz em todo o seu orgulho:
“Nada é impossível.”
Bland concentra-se de costas para o alvo, carrega a arma e respira
fundo. Eu e Francesco preparamo-nos para tomar o veículo de assalto.
Bland levanta-se e dispara três tiros que atingem o vidro no mesmo
ponto, fazendo-o quebrar e permitindo que a terceira bala atinja de vez
o condutor. Os veículos negros no exterior, ao verem que Bland espora
a sua posição, não hesitam em tentar atingi-lo. Bland baixa-se
257
rapidamente para evitar o pior.
“O que achas Jonathan, foi atingido?” Pergunta-me Francesco, curioso
pelo resultado da operação.
Eu tento observar o condutor por entre os assentos e a chuva de
estilhaços produzida pelos veículos prosseguidores.
O condutor desvanece-se aos poucos até ficar completamente
inanimado. O seu corpo pesado cai sobre o painel do veículo fazendo-
o acelerar muitíssimo.
“Bland, apenas tu podes guiar um veículo pesado!” Exclama
Francesco entrincheirado num dos assentos. Olho para Bland que se
resigna a tomar controlo do veículo.
“O que se passa contigo Bland?” Pergunto-lhe do outro lado dos
assentos.
Bland, sentado no chão de costas para o assento, olha para mim com
uns olhos de sofrimento, tendo muita dificuldade em respirar.
“Isso não!” Exclamo, imaginando o que aconteceu.
Salto da minha posição e auxilio Bland.
“Desculpa, mas não posso continuar.” Diz Bland num tom de ofegante
sofrimento.
“O que se passa?” Pergunta Francesco ao aproximar-se de nós.
Nesse preciso momento, o autocarro embate em vários veículos que
circulam no mesmo sentido sacudindo-nos por breves instantes da
nossa posição.
“Bland foi atingido e precisamos de um condutor para controlar este
veículo.” Respondo.
“Mas eu nunca guiei um veículo pesado e tu sabes bem que, se não
tiveres a experiência no mundo real, o veículo não te obedecerá faças
o que fizeres.” Replica Francesco
A situação atingira o seu extremo. Um membro fora atingido
gravemente e estávamos a ser perseguidos por bloqueadores num
258
autocarro completamente desgovernado.
Tal pensamento meu trouxe-me a minha memória um episódio que
poderia alterar o rumo desta situação aflitiva.
“Francesco, eu lembro-me que, no meu trabalho, avancei alguns
metros com um camião. Achas que é experiência suficiente?”
Pergunto-lhe animado com tal descoberta.
“No mundo real não é suficiente! Quanto aqui, bem, se nunca tentares
nunca saberás.” Responde Francesco.
O momento de tomar o risco era este mesmo. Ergo-me no meio
daquele mundo despedaçado e tento alcançar o volante do veículo o
mais rápido possível. O autocarro acelera cada vez mais produzindo
mais e mais estragos pela sua passagem. Finalmente alcanço o
volante e retiro o corpo que o fizera descontrolar-se. O veículo abranda
fazendo com que os perseguidores se aproximem de nós. Respiro
fundo e tento tomar controlo do veículo. Suavemente, o autocarro
obedece com uma harmonia infindável ao meu toque, como se já me
conhecesse a muito tempo. Sorrio de alegria e volto-me para
Francesco dando-lhe a boa nova.
“Eu consigo ter controlo sobre o veículo!”
Ainda não tinha terminado a frase, quando uma potente chuva de balas
atinge a minha posição descoberta. Abaixo-me e guino sem querer o
volante para a esquerda e para a direita, embatendo em tudo o que
cruza aquela avenida. Retomando arduamente o controlo do veículo ao
som de balas e estilhaços, ouço Francesco a tentar comunicar-se com
o outro grupo.
Sem perder a atenção da estrada, olho rapidamente para trás com o
objectivo de saber se todos se encontram mais ou menos bem no meio
daquele inferno. Vejo Francesco desesperado a apoiar Bland que jaz
deitado no meio dos vidros.
“Como é que ele está?” Pergunto a Francesco, preocupado com a
259
enfermidade de Bland.
“Ele ainda está consciente, mas já deixou de falar. Temos de sair
daqui!” Exclama Francesco num tom aflitivo.
Esse era o meu objectivo mas, por mais que os tente despistar, eles
não deixam de perder o nosso rasto e a medida que o tempo passa,
mais agentes se juntam a eles nesta grande perseguição. Os
bloqueadores embatem com os seus veículos ligeiros no autocarro,
empurrando-o várias vezes para fora da estrada. A situação começa a
perder o controlo quando, ao longe, verifico que a estrada se encontra
barrada de agentes.
“E agora, o que é que eu faço?” Pergunto empedernido com tal visão,
sem abrandar o mínimo que fosse. A estrada não tem outra saída a
não ser voltar para trás ou embater na barreira. Definitivamente, voltar
a trás colocar-nos-ia completamente descobertos mas, seguir em
frente não seria a solução.
“Finalmente que alguém me responde!” Exclama Francesco ao
conseguir comunicar-se com o outro grupo.
“Estamos num sério aperto. O autocarro que seguimos está debaixo
de ataque. Jonathan está ao volante a tentar desembaraçar-se deles e
Bland foi atingido gravemente. Preciso de uma porta para ele com a
máxima urgência!”
Segue-se um curto silêncio entre Francesco e o outro lado.
“Esta bem, vamos tentar.” Finaliza Francesco olhando para mim
através do retrovisor.
Olho para Francesco sem saber minimamente o conteúdo de tal
conversação. Passados brevíssimos segundos, ouço um estranho
ruído no meu ouvido direito acompanhado logo a seguir por uma voz.
“Jonathan, estas a ouvir-me?” Pergunta tal voz.
“Sim mas, quem é que fala?” Pergunto surpreso com tal fenómeno no
meio daquele pandemónio ruidoso.
260
“Sou eu, Jaimie.”
“Jaimie, isto está a piorar cada vez mais. Agora tenho mesmo a minha
frente, talvez uns cem metros, um bloqueio de estrada. Para onde devo
ir?” Pergunto num estado de grande ânsia com o tempo a escassear
por cada metro percorrido.
“Já consegui localizar-te. Tens a doze segundos um beco sem saída a
tua esquerda, bem antes do bloqueio. Não podes falhar a entrada!”
Informa Jaimie apressadamente.
Ao observar ao longe a entrada do beco, dou me conta de que as
palavras de Jaimie são bonitas de se proferir mas difíceis de se
concretizar. A entrada do beco pelo que vejo, deverá ter apenas três
metros e meio de largura, enquanto que este veículo não tem menos
de três. Mesmo assim, fixo a visão naquele atalho, depositando nele
toda a minha esperança. A poucos metros da entrada, viro o grande
volante para a direita galgando o passeio e abalroando os
parquímetros e sinais que lá se encontram na sua posição vertical.
Aproximo-me o mais possível do alvo e, uma vez em esquadria com a
entrada, viro o volante completamente à esquerda, reduzindo
abruptamente a velocidade. Dois dos quatro veículos que nos
perseguem, não imaginam que tal manobra fosse possível provocando
a sua colisão na parte lateral do autocarro. As minhas mãos ferrão
muitíssimo o volante à medida que o grande veiculo raspa nas paredes
de blocos laranja naquele estreito corredor. Escadas de emergência e
pequenos contentores são arremessados para cima ou esmagados
sem qualquer piedade. À medida que estabilizo a direcção, o veículo
vai lentamente deixando de embater nas paredes, possibilitando uma
melhor aceleração.
“É inacreditável!” Exclama Francesco com Bland nas mãos. “Tu deves
ter anos de condução!”
“Parece que cinco segundos bastaram.” Respondo referente ao
261
episódio do camião de mercadorias no armazém.
Os perseguidores não tardam em ganhar terreno e, um atrás do outro,
tentam-nos alvejar pela retaguarda.
Eu acelero o máximo que o veículo pode até descobrir algo realmente
preocupante. O beco não tem saída.
“Jaimie, estás a ouvir-me?” Pergunto num tom de desespero.
“Sim.” Responde ele.
“O beco não tem saída, o que é que eu faço?” Pergunto.
“Acelera o máximo que podes, tens de a derrubar.”
“Como posso derruba-la se é uma parede de blocos?”
Nesse momento, Jaimie, com muita serenidade, revela-me algo que
iria mudar a minha vida por completo.
“Se acreditares, definitivamente irás conseguir.”
Não havia volta a dar, o caminho era mesmo em frente.
“Protege-te Francesco, temos uma parede para passar.”
Francesco obedece prontamente, colocando-se em posição de defesa,
protegendo a Bland também.
À medida que o muro se aproxima da minha visão, a minha
concentração faz com que o ruído do motor e das balas a estilhaçar a
carcaça do veículo diminuam de intensidade. Apenas ouço o bater da
minha pulsação à medida que me aproximo do muro. Girando a minha
face do muro à frente, apenas ouço um violento estrondo seguido por
uma chuva de pequenos pedaços de blocos que atingem o meu corpo.
Volto a olhar em frente e eis que o autocarro, embora num estado
deplorável, continua na sua fuga.
“Muito bem Jonathan, agora vais seguir em frente. Cruzarás uma
avenida e entrarás num segundo beco. Simplesmente não te
preocupes em virar para a direita ou para a esquerda, segue
simplesmente em frente!” Ordena Jaimie.
Ainda com o coração a bater muitíssimo e alagado em suor respondo:
262
“Está bem, vamos ver o que acontece.”
O fim do beco torna-se visível bem a minha frente, mas algo não bate
certo. Consigo ver parte da entrada do beco, a outra parte localiza-se
mais a direita.
“Isto não vai resultar. Não vou acertar na entrada a menos que vire. As
decisões mais difíceis de ser tomadas não se medem pelo seu
tamanho, mas sim, pelo tempo que possuímos para tomá-las.
Confuso e sem saber o que fazer, opto por acatar a orientação de
Jaimie. O veículo salta do beco e entra na avenida a grande
velocidade, bem na rota de colisão com a parede em frente. Os
veículos que circulam nos dois sentidos travam abruptamente,
deixando o cheiro pesado de pneu queimado. Um veiculo que circula
na minha esquerda não consegue abrandar e embate com toda a
violência na parte frontal do autocarro desviando-o para a direita. Outro
veículo em sentido contrário acaba por embater na parte frontal do
autocarro, endireitando a sua posição e permitindo que o veículo entre
pelo beco a dentro sem raspar o mínimo que fosse na parede.
“Isto sim é que é inacreditável!” Exclamo sem pestanejar os olhos,
completamente incrédulo com o que acabara de ocorrer.
A confusão que deixara a trás proporcionou um bom atraso aos nossos
perseguidores, dando-nos a oportunidade de nos dissolvermos no
meio da confusão.
“Jonathan, temos de ser rápidos. Bland perdeu os sentidos!” Avisa
Francesco cada vez mais preocupado com a sua situação.
Olho para trás e vejo Bland estendido no chão como se estivesse
morto.
“Jaimie, preciso urgentemente de uma porta para salvar Bland. Ele
não vai durar muito!” Exclamo impotente com tal situação.
“Tenho uma porta disponível a duzentos metros dai. Apenas tens de
virar a direita na saída do beco. O número do edifício é quinhentos e
263
vinte e seis, terceiro andar frente. Já estou a providenciar outras duas
portas.” Informa Jaimie.
A salvação começava a ser visível bem ao longe, como uma luz no
fundo de um tenebroso túnel.
Com calma e cuidado, saio do beco e entro na avenida sem embater
no que quer que fosse para não atrair atenções. Francesco e eu
procuramos cuidadosamente o número do edifício até que algo nos faz
mudar radicalmente os planos.
Chamado a atenção pelos movimentos subtis reflectidos pelo
retrovisor, observo um verdadeiro exército de veículos negros
dirigindo-se a toda a velocidade na nossa direcção. Olho para trás e
nem acredito no aparato que vejo.
“Jonathan!” Adverte Jaimie como um louco “Tens um batalhão atrás
de ti e outro vai se formar mesmo a tua frente!”
Vendo o caso mais uma vez tornar-se complicado, opto por deixar
Bland na porta mais próxima.
“Vou deixar Bland na porta que me falastes pois, ele não vai durar
muito tempo.” Respondo-lhe.
“Eles localizaram-te novamente, por isso, a porta que te falei foi
neutralizada!” Informa Jaimie.
“Como assim?” Pergunto surpreso com o que acabara de ouvir.
Por entre os assentos cravados de balas, Francesco responde:
“Enquanto que eles tiverem um campo visual sobre ti, porta alguma
pode ser desbloqueada. Tens de os despistar novamente, mas fá-lo
rápido pois, ele não vai durar muito!” Exclama Francesco num estado
de extrema preocupação.
Apenas breves segundos depois de Francesco finalizar a sua frase, um
enorme batalhão ergue-se bem na minha frente, escorrendo por tudo o
que é cantos e becos.
Sem pensar muito e com a adrenalina ao rubro, guino o volante para a
264
direita e projecto violentamente o autocarro contra o gradeamento de
um jardim, percorrendo-o como um louco.
Todos os agentes perseguem-me pelo jardim fora e mais se juntam a
eles a cada segundo que passa.
“O que é que eu faço Jaimie? Para onde devo ir agora?” Pergunto
num estado aflitivo, com as ideias a esgotarem-se por completo.
Segue-se um breve silêncio por parte de Jaimie. Após esse curto
momento, ele diz:
“Isto está veramente mau. Não faço a mínima ideia por onde devas ir.
Todas as estradas estão bloqueadas.”
Olho pelo retrovisor e observo os perseguidores a ganharem terreno
no meio daquele piso relvado irregular e lamacento.
Ao fundo, por entre as árvores, observo o fim do jardim cercado pelo
rio que o banha lateralmente. Dar meia volta é suicídio mas, ir em
frente, não ficará muito longe disso.
“Jonathan!” Exclama Jaimie “Consegues observar uma pequena ponte
a tua direita?”
Olho rapidamente para a direita e consigo enxergar uma ponte no meio
da vegetação.
“Sim, estou a vê-la. Ela tem cinco metros de largura e uns valentes
metros de comprimento sobre o rio!”
“É essa mesmo! Tens de conseguir alcança-la, é a tua única
oportunidade!”
Dirijo o veículo até à sua entrada e observo algo realmente
preocupante.
“Jaimie, a ponte é só para pedestres e encontra-se em obras!”
“Confia em mim!” Responde Jaimie. “Será a vossa ultima chance de
os despistares.
Deposito toda a minha confiança nas suas palavras e entro a toda a
velocidade naquela ponte com três metro de altura sobre o rio. Após
265
percorrer uma dúzia de metros, observo bloqueadores a surgirem do
outro lado da ponte.
“Estamos encurralados!” Exclama Francesco dominado pelo temor.
“Tem fé amigo. Acredita que pode ser possível.” Respondo-lhe com
confiantemente em voz baixa.
Acelero o veículo até ele atingir a sua máxima potência, bem em linha
recta com o bloqueio que nos espera no final da ponte, Quando não
existe saída e a rendição está fora de hipótese, a única alternativa
existente é enfrenta-los face a face.
O início das obras na ponte tornam-se visíveis através de uma barra
que vermelha que condiciona o trânsito pedestre a percorrer a segunda
metade dela. Sem muito lamurio, galgo a barreira como se tratasse de
uma fina e delicada peça em esferovite. O som do rodado alcatroado
dá lugar ao ruído de madeira que geme com o peso do veículo. Quanto
mais metros percorremos, mais alto e intenso se torna tal ruído ao
ponto de me fazer abrandar por precaução.
“Isto não vai aguentar!” Exclama Francesco, negativo quanto a ideia
tomada. Os faróis do veículo mal iluminam as tábuas que se estendem
por aquele chão a fora que range alto devido ao peso que suporta.
“Temos de conseguir! Não nos esforçamos tanto para ficarmos a meio
da nossa missão.” Respondo-lhe.
Acabando de proferir tal afirmação, vejo estilhaços de madeira a
saltarem por todo o lado, sentindo uma leve perda de gravidade. Por
milésimos de segundo, deixo de ver a estrada e passo a ver um
abismo de águas negras. Em seguida, a colisão brutal faz-me adivinhar
o que aconteceu. O autocarro acaba de cair por entre os destroços de
madeira da ponte. Ainda a recuperar do forte impacto, olho para trás e
observo Francesco agarrado firmemente ao corpo inconsciente de
Bland como se ele pudesse fazer algo.
Tomado de adrenalina, salto do assento e dirijo-me a Francesco numa
266
linha irregular, devido aos movimentos da forte corrente que sacode o
veiculo.
“Francesco, ajuda-me a carrega-lo, não temos muito tempo.”
Quebrado o gelo do pânico, Francesco gradualmente volta a ser dono
de si.
Num ápice, as janelas cobrem-se de água e os furos trespassados
pelas balas, fazem-nas parecer um fontanário. Jactos de água
emergem através das fissuras das duplas portas do veículo,
contribuindo para um rápido alagamento de todo aquele espaço.
Finalmente, o veículo atinge violentamente o leito do rio, projectando-
nos contra as cadeiras semi-imersas.
“Sinto que nos estamos a movimentar!” Exclama Francesco,
recuperado do intenso susto.
Bland ainda respira, mas o seu corpo pesado tende a não flutuar com
facilidade.
“Ajuda-me a manter a cabeça dele fora de água.” Ordeno num
momento em que todas as cadeiras se encontram submersas.
“Temos de encontrar uma saída, isto está a ficar completamente
inundado.” Afirma Francesco, tremendo de frio e de ansiedade ao
observar que poucas dezenas de centímetros separam as águas do
tecto.
“Se partimos um vidro, isto inunda-se em segundos e a corrente não
nos deixara sair, contudo, se esperarmos que tudo inunde
possivelmente não teremos forca para parti-lo sequer.” Respondo ao
tentar examinar os prós e os contras de tal plano. Já sem muitas ideias
de como sair daquela jaula e com a água já pelo pescoço, olho em
redor em busca de redenção. Nesse preciso momento de angústia,
observo o tejadilho do autocarro a escorrer água, dando-me a preciosa
ideia que eu procurava.
“Francesco, vamos esperar que tudo inunde e a seguir abrimos aquela
267
pequena abertura.”
Reticente, Francesco pergunta:
“E se não conseguimos abri-la?”
“Só existe uma maneira de o saber.” Respondo com toda a
positividade do mundo.
A agonia da espera intensifica-se a medida que a água vai subindo de
nível, apoderando-se do nosso precioso ar.
A adversidade está a chegar ao seu culmine, quando apenas parte das
nossas caras se encontram fora de água naquele tanque húmido e
quase irrespirável.
“Francesco, assim que a água tocar no tecto largas Bland e tentas
abrir o tejadilho, esta bem?”
“Sim!” Entoa a voz tremula de Francesco no pouco espaço que nos
resta de ar.
Rapidamente, todo o espaço fica submerso enquanto que eu tento
flutuar no topo com Bland tapando-lhe a boca e o nariz.
O tempo torna-se cruel e impiedoso, impelindo Francesco a abrir a
pequena janela no topo do veículo. Após breves milésimos de
segundos, Francesco abre a escotilha mas, algo corre fora do previsto.
O pequeno orifício apenas abre quarenta e cinco graus, não permitindo
nem mesmo que o magro Francesco passe por ela. A falta de oxigénio
misturada com a tenção de sair daquela jaula aumentar os nervos,
fazendo com que o pânico tome conta de Francesco. Ele tenta forçar a
abertura com as mãos e braços mas sem resultado. A força de um
bom impacto torna-se neutralizada dentro de água. Francesco tenta
desesperadamente com todas as suas energias forçar o clip de aço
que barra a sua completa abertura, mas sem sucesso. Ao ver o
abundante ar precioso que sai da sua boca, dou-me conta de que
Francesco não se aguentara muito mais tempo aqui dentro. Não me
resta outra opção senão largar Bland e, com a mente fria, localizar ás
268
cega naquelas negras águas o engenho metálico. Fecho os olhos num
esforço incansável de poupar todas as energias, apenas guiando-me
pelas minhas mãos. Finalmente e já no fim das capacidades vitais,
encontro a cavilha que bloqueia a sua abertura. Tento movimentá-la
para ambos os lados na esperança de que ela se desbloqueie e, após
breves instantes, a leve vibração anuncia a sua abertura. A escotilha
abre e Francesco sobe desesperadamente pela água a cima como se
de uma bala se tratasse. A minha mente ordena-me que eu suba
imediatamente mas, a minha consciência suplica-me para que eu salve
o homem que nos salvara primeiro. A minha capacidade de resistir
dentro de água está praticamente esgotada, dificultando-me a
localização de Bland no meio daquelas trevas. Finalmente, observo um
vulto negro a flutuar na retaguarda do veículo. Nado rapidamente e
alcanço Bland, rebocando o seu enorme físico para fora daquele
túmulo. A minha visão começa a falhar-me e o meu sentido de
orientação começa a se desgovernar num caos sem ordem. Mesmo
assim, atinjo a pequena abertura e subo em direcção a superfície,
agarrando Bland pelo colarinho. Por fim chego à superfície e provo a
mais deleitante sensação de alívio ao encher os meus pobres pulmões
com o ar precioso.
Francesco toma imediatamente conta de Bland após ele emergir da
água.
“Ainda tem pulsação mas já não respira. Temos que sair daqui!”
Exclama Francesco agarrando Bland pela sua veste.
Começamos a nadar os dois em direcção à margem do rio com Bland
a ser rebocado por nós os dois. Ao longe, enquanto nadamos, observo
um grande aparato em cima da ponte onde anteriormente tinha-mos
caído. Com grandes focos de luz, os agentes vasculham as negras
águas procurando o autocarro acidentado. Felizmente, a forte corrente
do rio arrastou-nos para bem longe das garras deles.
269
Finalmente, atingimos a margem arenosa do rio. Agarramos Bland de
ambos os lados, e caminhamos rapidamente em direcção a uns
edifícios bem na nossa frente. Atrás de nos, apenas restam as nossas
pegadas e duas linhas traçadas pelos pés moribundos de Bland.
“Jaimie, consegues ouvir-me?” Pergunta Francesco.
“Sim, o que foi feito de vós?” Pergunta Jaimie preocupado com a
demora.
“Não há tempo para explicar, Bland já está na linha do fim, arranja-me
uma porta imediatamente!” Exclama Francesco completamente
ofegante.
“Atravessem a avenida e entrem no edifício com o número trinta e
quatro. Subam ao primeiro andar, é a terceira porta à esquerda.”
Ao ouvir semelhante instrução, os nossos pés apreçam-se muitíssimo.
Após sair do areal, subimos três pequenas escadas que dão acesso ao
passeio da avenida. Atravessamos a estrada rapidamente e sem
qualquer demora, obrigando os veículos a travar bruscamente com a
nossa passagem. Mesmo à nossa frente está o número trinta e quatro
com a porta aberta. Subimos rapidamente as escadas, completamente
exaustos e banhados em água até ao primeiro andar, concentrados na
baixíssima pulsação de Bland. Francesco roda o manípulo da porta
mas sem sucesso. Sem hesitar, ele arromba a porta num único golpe.
Entramos dentro do apartamento e observamos uma família de quatro
pessoas que se encontra na sala, temerosa com tal abrupta presença.
Tentamos localizar a terceira porta à esquerda e após a localizarmos,
arrastamos Bland para dentro dela e fechamo-la atrás dele.
“Finalmente, este já esta a salvo.” Expira Francesco de alivio
retornando para a porta de entrada.
“Saiam imediatamente daí!” Ordena Jaimie. “Vocês foram localizados!”
Nesse momento, olho para dentro da sala e observo o chefe de família
com o telefone na mão.
270
“Temos de sair imediatamente daqui. Não tardarão em chegar.”
Responde Francesco.
Saímos a toda a velocidade daquele andar até ao exterior do edifício.
“A cem metros, existe um bloco com o número cinquenta e sete.
Existe uma porta no rés-do-chão e outra no terceiro andar. O edifício
encontra-se abandonado!” Informa Jaimie.
A corrida inicia-se por aquele passeio fora até ao edifício desejado. Já
bem perto do fim, ouvimos o som de sirenes, luzes e de vários veículos
que rumam na nossa direcção.
Finalmente atingi-mos o bloco desejado e, empurrando a porta,
entramos no seu interior.
“Vai para baixo que eu apanho a porta do terceiro andar.”Ordeno a
Francesco.
“Vemo-nos amanhã amigo.” Despede-se Francesco.
Após as suas palavras, inicio a minha subida por aquelas escadas
iluminada unicamente pela luz do exterior. Galgo os degraus com toda
a energia do mundo, como se uma última força me possuísse o corpo.
Finalmente chego ao terceiro andar e, no mesmo instante ouço os
veículos que nos perseguem a estacionar bem perto da porta. Sem
hesitações abro a porta e entro para dentro do andar. Bem na minha
frente apenas resta uma porta. O som de muitíssimos passos que
sobem apressadamente as escadas fazem apressar o meu passo
naquele tenebroso e poeirento corredor. Bem no limite do tempo, abro
a porta e entro na sua escuridão. Fecho a porta e...
Acordo são e salvo.
271
Capitulo 12
Volto a face para o relógio e observo as horas com a visão ainda
desfocada. No momento em que distingo os números, o alarme toca.
São sete e meia da manhã mas mais parece que passei o dia todo a
dormir. Tento me erguer da cama mas, as dores corporais são intensas
demais para o fazer.
“Parece que andei a correr toda a noite.” Digo enquanto que me
levanto lentamente da cama. O cansaço é tão intenso que pareço mais
cansado ao acordar do que quando me deitei.
Enquanto que me preparo para mais um dia, o meu cérebro vai
carregando todas as informações pendentes do dia anterior,
exactamente da mesma forma quando ele as descarrega no mundo 7.
A morte de Mike aflora repentinamente na minha mente misturando-se
com as palavras de Francesco com respeito a sua morte premeditada
anteriormente pelo Oleiro. Tudo começa a encaixar-se no seu devido
lugar mas, o maior desafio será descodificar o indecifrável enigma que
exporá a posição do tão desejado artefacto.
Como dia avança sem ter intenções de abrandar, apresso-me para o
meu local de trabalho. O dia está triste e encoberto com as nuvens a
ameaçarem aguaceiros por toda aquela planície. O ar abafado e
húmido dificulta o meu esforço em circular por este alcatrão ressequido
pelo extremo calor, típico da estação quente.
Por fim, chego a loja, encontrando-a já aberta pelo pontual Robert.
“Bom dia Sr. Robert.”
“Olá Jonathan.” Cumprimenta Robert, procurando algo em cima de
uma pequena escada por entre os cartões que lá em cima se
272
encontram.
A rotina habitual processa-se mais uma vez. O mesmo trabalho, o
mesmo serviço, o mesmo tempo enfim, apenas os clientes habituais
são os únicos que não tem hora exacta de chegar a loja.
Sem me dar conta, a hora do almoço chega rapidamente. Como de
habitual, Robert fecha a porta do armazém, enquanto que eu
responsabilizo-me pelo correcto fecho da loja.
A boa disposição enche-me sempre de alegria na hora do almoço. Não
pelo simples facto de saciar uma necessidade física, mas sim, de estar
com a pessoa mais importante deste mundo.
Chego ao local onde a Jennie trabalha e surpreendo-me com a
barafunda que presencio. O caótico ambiente promete atrasar os
clientes na sua hora de trabalho. Vejo dois rapazes a servirem a mesa
completamente atarefados por entre os clientes impacientes com o seu
pedido. Até o próprio cozinheiro esta a dar uma ajuda aos pobres
rapazes. Não demoro muito tempo até dar-me conta que falta a
presença de Jennie. Tomo o meu lugar e espero por um dos
empregados.
O tempo passa sem que eu seja atendido. Depois de tanto acenar pela
minha vez, um dos empregados se resigna a me servir.
“Bom dia, o que deseja?” Diz o empregado sem fôlego com tanta
correria.
“O mesmo do costume.” Respondo
“Desculpe, o que realmente vai desejar?” Inclina-se o empregado sem
saber realmente qual era o meu pedido.
Dando conta do erro, eu respondo:
“Desculpe, é o hábito.” Emendo o problema, sorrindo pelo embaraço
causado. “O que eu quero está no número doze da ementa.”
“Muito bem, aguarde só um instante.” Diz o empregado, recolhendo os
aperitivos.
273
“Diga-me uma coisa. A Jennie não se encontra por aqui?”
“A Jennie não trabalha hoje. Ela tirou o dia de folga para visitar uma
amiga sua.
Rapidamente concluo que fosse Michael, a noiva de Mike.
“Você é o Jonathan?” Pergunta o empregado.
“Sim.”
Pondo a mão no bolso, ele tira um papel e estende-o até mim.
“A Jennie pediu-me que lhe entregasse isto.”
Peguei no bilhete e abri-o rapidamente. A letra formosa de Jennie
explicava que hoje iria visitar Michael mas que esperaria para estar
comigo no final do dia no alpendre da sua casa.
A triste ausência da sua presença foi contrabalançada pela alegria de
poder estar com ela ao final da tarde. Um dia sem ver o meu bem mais
precioso, é um dia gasto inutilmente na minha vida.
Após me deleitar com a minha refeição predilecta, dirijo-me
apressadamente para o trabalho com o pouco tempo que me resta.
O meu desejo de que a tarde passe rápido para estar com a Jennie se
cumpre na íntegra. As sete da tarde por fim chegam e o fecho da loja
inicia-se. Deixo tudo pronto para o dia seguinte e despeço-me de
Robert.
Fecho a porta e, olhando para o céu carregado de altos castelos de
nuvens avermelhadas, desbloqueio a minha bicicleta sem grandes
atrasos. O mais importante agora é estar com a Jennie, tudo o resto
tem de esperar, até mesmo a chuva.
A noite ameaça escurecer o meu caminho, que se torna iluminado
pelos antigos candeeiros na extremidade do passeio.
Sentada no alpendre de madeira, iluminada por uma luz amarela e
solitária, encontra-se Jennie que aguarda por mim. Com os braços
cruzados em cima dos seus joelhos flectidos e com a cabeça pousada
neles, Jennie medita tristemente em algo que a faz sofrer.
274
“Olá Jennie, como estás?” Pergunto ao me aproximar do alpendre.
Ela sorri na tentativa de disfarçar a dor, mas logo após, limpa o olho
direito de uma lágrima que lhe escorre sem autorização.
Aproximo-me e sento-me bem junto dela. Com o meu braço esquerdo,
envolvo-a como quem protege algo muito precioso sem proferir palavra
que seja.
Jennie olha para mim com um sorriso que expressa um "obrigado"
apenas com a sua feição. Por fim, ela encosta a sua cabeça no meu
ombro e eu, por minha vez, encosto a minha cabeça na dela,
abraçando-a num abraço único, como se desejasse que tal momento
durasse para sempre.
Jennie respira fundo e, com uma voz tremente, responde:
“Porque é que temos de morrer? Porque é que se sofre tanto nesta
curta vida.”
Eu apenas ouço as suas palavras evitando expor a verdade dos factos.
“Quem me dera viver menos anos mas que, ao menos, fossem
repletos de momentos bons.” Comenta Jennie.
“Não penses assim minha pequenina. A vida trás bons e maus
momentos. O acaso e o imprevisto podem acontecer a qualquer um.”
Respondo ao contrariar a sua resposta.
“Isto é o destino Jonathan. Simplesmente ele não poderia ser feliz. Por
mais que o Mike lutasse para mudar a sua vida, mais problemas
surgiam. As vezes, o melhor é desistir e aceitar aquilo que nos
mandam fazer.” Diz Jennie possuída de tristeza.
“Nunca!” Exclamo, fixando os meus olhos em frente mas concentrado
nas suas palavras.
Tal afirmada deixa Jennie estupefacta a olhar para mim.
Apercebendo-me da situação causada, eu corrijo a minha actuação.
“Sabes Jennie, o destino não existe. Nós é que criamos o nosso
próprio destino. Apenas temos de ser fortes e tomarmos as rédeas da
275
nossa própria vida.”
Ela sorri e, olhando para o céu metade em nuvens metade adornado
com estrelas, responde:
“Tens razão! Cada um deve tentar viver a sua vida da maneira que
deseja. Seja ela curta como uma nuvem ou longa como uma brilhante
estrela.”
Tal bela afirmação faz-me sentir bem. Pelo menos, Jennie não se
sente profundamente triste.
“Sabes o que eu gosto de fazer, Jonathan?”
“O quê?” Pergunto curioso.
Jennie fita os olhos no céu e continua por dizer:
“Ás vezes, quando me sinto sozinha e não consigo dormir, sento-me
neste alpendre a contemplar as estrelas. Vejo tantas e tantas
constelações que tu não fazes ideia!” Exclama ela ao olhar para mim,
como se o seu sofrimento passado não mais existisse.
“Que tipo de constelações tu vez daqui?”
“Ainda são algumas, tais como a constelação da águia, leão e tantas
outras.
Mas muitas mais existem no Universo que simplesmente não são
observáveis apartir daqui.”
“Tais como?” Pergunto sem o objectivo de descobrir a verdade, mas
simplesmente, deleitar-me de a ouvir falar.
“Eu não sei todas, mas são de facto muitas, como por exemplo, a ursa
menor, o escultor…” Ouvi-la expressar-se com aquele sorriso
magnífico ao contemplar o céu, deixa-me profundamente deliciado. A
minha feição apenas muda quando ela menciona a palavra “sextante”.
Aquela última palavra caiu-me como um gigantesco peso no meu
estômago. O enigmático "sextante" chama completamente a minha
atenção. Tal referência faz perder a minha concentração nas restantes
constelações proferidas por Jennie, não hesitando em interrompe-la
276
com uma crucial pergunta.
“O sextante, o que isso é?”
“O sextante é uma constelação do equador celeste com a forma de
triângulo. Foi-lhe concedido tal nome devido aos seus ângulos
idênticos ao de um instrumento de navegação que leva o seu nome, o
sextante.”
Mais uma peça identificada deste puzzle. Agora só falta descobrir o
seu devido lugar. Mas, que enquadramento pode ter ele no mar que
devemos navegar?
“Passa-se alguma coisa contigo Jonathan?”
Acordando do meu pensamento, eu pergunto:
“O que dissestes? Desculpa mas não ouvi.”
“Perguntei se algo se passava contigo. Hoje estas muito pensativo!”
Exclama Jennie.
“Não, está tudo bem. Apenas estava a pensar nas descrições que
fazes das constelações celestes.” Tento dissuadir a verdade de Jennie,
salvaguardando-a de algum mal que lhe possa ocorrer.
A conversa entre nós continuou divagando pela noite fora mas, sempre
com o pensamento naquelas palavras.
Por fim, Jennie boceja profundamente de cansaço devido ao dia
emocionalmente pesado.
“Acho que me vou deitar.” Diz Jennie. “Hoje foi um dia muito pesado
para mim e amanha será outro como funeral do Mike.
“Então vemo-nos amanha.” Despeço-me com um beijo na testa de
quem visa primeiro pelos interesses dos outros e não os meus.
“Até amanha Jonathan.”
Enquanto que desço as escadas do alpendre, Jennie entra para dentro
de casa e fecha a porta á chave. Depois de me assegurar que ela fica
bem, dirijo-me também para o meu lar.
Também me sinto cansado do dia extenuante que passou, mas não
277
exausto o suficiente para bloquear a minha mente de tentar descobrir
aquilo que acabara de ouvir.
Só existe uma maneira de decifrar o enigma, estando no seu próprio
mundo.
Deito-me na cama e fecho os olhos.
Ouço o som de cadeiras a arrastar bem na minha frente. Estendo a
mão no escuro daquele espaço e, ao tocar num objecto frio, uma
frincha de luz de um branco pálido, ilumina a minha face. Empurro
esse objecto e, com a visão ainda sensível a luz, observo em baixo
uma mesa repleta de papéis com Jaimie, Volton, Bland, Francesco e
Sophie em torno dela. Caminho por entre a varanda de grades que da
acesso a uma escada. Os meus passos lentos naquela plataforma
metálica chamam a atenção de Volton.
“Eis o homem!” Exclama Volton seguido por palmas e assobios de
contentamento e admiração por uma arriscada missão bem sucedida.
Ainda atordoado por ter entrado no mundo 7, apenas alço a mão em
sinal de agradecimento. Em seguida, desço as escadas verticais e
junto-me ao grupo.
“Obrigado amigo por me teres salvo a vida.” Agradece Bland com vivo
contentamento.
“Fostes magnífico!” Exclama Sophie, com as palmas das mãos juntas
em sinal de alergia.
“Vais ser um osso duro de roer.” Diz Volton na brincadeira.
“Muito bem. Excelente missão.” Elogia Jaimie.
“A partir de agora, só entro em missões se o Jonathan participar
também!” Exclama Francesco ao fazer um ar de forte em contraste
com a sua estatura baixa e magra.
Todo o grupo desata em gargalhada ao ouvir tais palavras de
entretenimento vindas de um cómico como Francesco.
Após tal momento hilariante, a seriedade toma conta do grupo.
278
“Temos uma difícil tarefa em mãos meus amigos. As coordenadas
para localizar o artefacto estão aqui. O problema é a codificação não
esperada por nós.” Diz Jaimie.
“A correspondência que interceptamos do correio fala-nos
principalmente de "sabedoria" e uma "luz" que guiaria a humanidade a
uma "plenitude".”Afirma Volton com um ar pensativo.
“Essa "plenitude" possivelmente prende-se com a consolidação dos
planos do Oleiro em conduzir de uma vez para sempre a humanidade
a escravidão.” Comenta Sophie, tentando desvendar palavra por
palavra.
“O velho dos moinhos também falou acerca dos mesmos pontos. Ele
referiu-se ao "conhecimento" como um vasto mar. Nesse "mar",
iríamos navegar através das "suas maravilhas dignas de serem vistas".
Mas quais seriam as maravilhas? Refere-se ele ás sete maravilhas do
mundo? Se realmente forem elas, serão do mundo antigo ou
moderno?” Questiona Jaimie a si próprio.
O puzzle começa a ganhar forma à medida que novas peças vão
surgindo e outras vão sendo descodificadas.
“Segundo o manuscrito da biblioteca, escrito por Antipatro de Sidon,
as sete maravilhas do mundo seriam os jardins suspensos de
Babilónia, as suas muralhas, o colosso de Rodes, as pirâmides, o
mausoléu, o templo de Artemisa e a magnânima estátua de Zeus.”
Aponta Volton as sete possíveis maravilhas a que o enigma se refere.
Nesse momento, ao ouvir as palavras de Volton, a minha mente
consolida uma valiosíssima parte do enigma, como se tivesse sido
iluminado por um raio de sabedoria.
“Perfeito!” Exclamo eu em voz alta de admiração.
Todo o grupo olha para mim, surpreso de tal reacção eufórica da
minha parte.
“Preciso de um mapa, acho que descobri aquilo que andamos à
279
procura.”
Rapidamente, um mapa é posto diante de mim para consulta.
O silêncio impera naquele armazém, permitindo apenas ouvir a fricção
do lápis que uso ao pontear o mapa.
Finalmente, o mapa completa-se com sete pequenos pontos a carvão.
“Então essas são as localizações das sete maravilhas do mundo
referidas pelo poeta grego.” Argumenta Jaimie ao analisar o mapa.
“Todas elas se situam em torno do mar mediterrâneo, o mar que o
ancião dos moinhos referiu do qual, irai-mos navegar. É nesse mar que
se concentra a chave para o enigma!” Respondo em plena êxtase com
as descobertas que vão surgindo.
“Mas como? Que ponto nos poderá guiar nesse vasto mar”' Pergunta
Sophie, sem saber por onde começar a desvendar tal mistério.
“Os antigos navegadores possuíam instrumentos para navegar por
entre mares e oceanos. Eles usavam o astrolábio, o sextante e as
estrelas.” Respondo, tentando raciocinar com o grupo.
Volton interrompe o meu raciocínio com uma pergunta:
“Então isso quer dizer que, se usarmos o sextante apoiado nas sete
maravilhas, ele indicar-nos-á a localização do artefacto?”
“Exactamente. O sextante indica posições através dos ângulos
necessários.” Respondo
“Mas, como podemos ser guiados por entre o mar? Quais são as
coordenadas?” Pergunta Jaimie céptico com respeito a tal descoberta.
“Aí é que entra "o grau imperfeito da luz". Com esse grau, ou ângulo,
poderemos descobrir o caminho que nos conduzirá à "plenitude" ou, a
localização do oleiro.” Respondo mais uma vez. “Tudo começa a
ganhar forma.” Raciocina Volton com os olhos a vaguearem por todo
aquele complexo, enquanto que a sua mente trabalha sem parar. “A
questão é, onde devemos apoiar semelhante objecto para nos dar a
amplitude desejada?”
280
As dúvidas apoderam-se de mim, não sendo capaz de dar uma
resposta coerente aquela pergunta.
“Isso não te sei dizer.”
“Eu lembro-me de o velho dos moinhos proferir que navegaríamos
pelo esplendor das suas maravilhas e por uma oculta luz da sabedoria.
Tais factos nos conduziriam até ao nosso destino final.” Argumenta
Francesco.
“No manuscrito podemos encontrar duas referências com respeito à
luz”. Entrevem Sophie.
“Exacto!” Exclama Jaimie. “O colosso do sol em Rodes, dedicada ao
deus grego Hélio, o deus do sol.”
“Essa é uma excelente indicação.” Respondo surpreso com tal
descoberta.
“Mas existe outra maravilha relacionada com a luz.” Continua Jaimie.
“Antipatro fala-nos com respeito a Olimpo quando diz que o sol nunca
pareceu tão grande."
“Mas o que é esse Olimpo?” Pergunta Sophie.
“A morada dos deuses.” Entrevem Volton com uma voz baixa,
extremamente pensativa.
Olho para o mapa e surpreendo-me pelo que vejo.
“Essas duas maravilhas situam-se bem no coração do mar do
conhecimento do mundo antigo. Possivelmente, estes são os pontos a
que o velho dos moinhos se referia.”
“E o grau imperfeito? Qual será a sua amplitude?”Pergunta Bland
“Essa é uma boa pergunta.” Respondo encurvado ao olhar para o
mapa em cima da mesa, com as mãos apoiadas nela.
“Tem de ser um número inferior a 120 pois, essa é a totalidade da
amplitude do sextante.” Informa Sophie tentando ajudar na descoberta
do famoso número.
O tempo passa, todos meditam, mas o resultado e sempre o mesmo.
281
Ninguém consegue decifrar o maldito do número que dará a amplitude
exacta na descoberta do artefacto.
O desânimo e a tensão começam a imperar naquele espaço à medida
que o tempo, impiedosamente vai correndo por nós sem que o
possamos aproveitar.
Foi exactamente nesse momento que uma teoria numérica surge na
minha mente.
“O número 7 revela plenitude, universalidade, a totalidade de um
assunto. Por outras palavras, o número 7 revela perfeição, não é
verdade?” Pergunto com o objectivo de fazer o grupo raciocinar.
“Sim, de facto é verdade.” Diz Francesco, ciente deste facto a muito
tempo.
“Este número simbólico é usado para completar assuntos.” Diz Volton
“Tais como as 7 maravilhas do mundo, revelando todo o conjunto que
existe no universo. Outra referencia que determina a sua plenitude são
os 7 pecados mortais. Existem muitos mais pecados, mas este é o
conjunto inteiro deles.” Explica Sophie dando a revelar um facto
importante.
“Mas não só!”. Entrevem Francesco. “O conjunto inteiro de dias na
semana são 7, as cores principais da luz são 7.”
“Mas a que conclusão queres chegar com este raciocínio Jonathan?”
Pergunta Jaimie.
“A conclusão a que eu quero chegar é que o número imperfeito não
pode ser superior ao número que revela a plenitude total das coisas.”
“Então, a sua descoberta torna-se mais fácil. É um numero que vai de
1 a 6, não e verdade?” Pergunta Bland.
Depois de raciocinar por uns brevíssimos instantes, a minha mente
difunde o seu raciocínio.
“Porque é que o mundo 6 está determinado com tal número?”
“Porque é um mundo irreal, imaginário, incompleto e desprovido de
282
inteireza física. Tal mundo é apenas fruto da nossa criativa
imaginação.” Responde Jaimie.
“Exacto!” Exclama Francesco. “O número imperfeito só pode ser o 6.”
“O numero da fera diabólica.” Responde Volton num tom
extremamente baixo e pensativo.
O contentamento e a excitação pela grande descoberta, enche o grupo
de ânimo. Mais uma peça deste complicado enigma tinha sido
descoberta. Olho atentamente para o mapa, tentando com o grau
deste número chegar a alguma conclusão.
“Falta qualquer coisa aqui.” Respondo ao ver que a amplitude não
pode ser medida por apenas dois pontos.
“Precisas de mais um ponto referencial.” Diz Volton. “Nós temos a
amplitude dos lados, mas não possuímos o princípio da amplitude.”
Olha-mos para o mapa em busca de alguma ideia de apoio, que nos
auxilie na descoberta do ponto em questão.
A medida que o tempo passa, os suspiros do grupo tornam-se mais
intensos pela infrutífera busca.
Pego no manuscrito, no documento sequestrado e nas palavras do
ancião numa busca desesperada por algo que ilumine este novo
problema.
Descobrindo um assunto em comum dos três manuscritos, não hesito
em me expressar:
“Todos os três documentos revelam algo em uníssono.” Explico com
as ideias ainda muito vagas na minha mente.
“Que tipo de revelação encontrastes?” Pergunta Volton curioso.
“Todas eles destacam a grandiosa luz proveniente do Sol. Mas, que
significado poderá ter ele no desvendo de tal enigma?”
O silencio profundo reina mais uma vez mais no grupo, deixando-nos
sem hipótese de prosseguirmos para o próximo nível.
O tempo passa veloz ao ritmo das fúteis especulações que são
283
lançadas no ar.
Cansado da situação bloqueante, Jaimie levanta-se da cadeira e
dirige-se para o furgão enquanto que o restante do grupo debate a
melhor teoria possível para decifrar o enigma.
Eu sigo atrás dele e, espreitando pela porta lateral, observo-o a
desconectar e a conectar os fios vermelhos que percorrem todo aquele
chão, desde o veículo até a extremidade do armazém.
Com a mão na parte superior da porta e a testa apoiada no braço,
observo Jaimie concentrado no seu trabalho.
“Isto está complicado!” Exclama Jaimie ao ver-me ali de pé.
“Não vai ser nada fácil.” Comento a sua afirmação.
“Seja o que for, por mais difícil que seja, nós iremos conseguir.”
Responde Jaimie, tentando moralizar-me.
“Jaimie, quero te fazer uma pergunta.” Olho para os dois lados e
prossigo com ela.
“Quando eu dirigi o autocarro naquela ponte, tu sabias de antemão
que tal estrutura não suportaria o veículo?”
“Sim, sabia muito bem.”
“Então, porque não nos avisastes desse teu plano B?” Pergunto
intrigado com tal confissão da sua parte.
Jaimie olha fixamente nos meus olhos e diz-me:
“Neste mundo tudo tem ouvidos. Por mais que revelasse em voz
baixíssima os planos de fuga, todos os agentes acabariam, não sei
como, seguir as coordenadas bem antes de vocês atingirem as portas.”
“Mas como isso é possível?” Pergunto surpreso com tal afirmação.
Nesse momento, chega Francesco e interrompe a nossa conversa
confidencial, dizendo:
“Não conseguimos chegar a qualquer conclusão. O terceiro ponto é
mesmo um mistério.” Francesco ainda não tinha concluído a frase
quando, o pequeno LED no painel de controlo do furgão acende-se,
284
alertando a todos que chegara a hora de regressara superfície do
mundo real.
Mesmo com esse aviso, a vontade de descodificar o enigma é maior e
mais forte do que o perigo que enfrento. Sem grandes hesitações
decidido em resolve-lo. Dirijo-me a mesa onde Volton, Sophie e Bland
se encontram. Na euforia de tentarmos resolver o problema existente,
o grupo ali reunido nem da conta do desparamento do segundo LED.
Mas, parece que tal enigma não deseja, pelo menos hoje, de ser
desvendado.
Sophie e Francesco começam a desfalecer de cansaço acabando por
dizerem em uníssono:
“Nós temos mesmo que ir.”
“Vemo-nos amanha.” Responde Volton
“Eu também já vou. Até amanha camaradas.” Despede-se Bland logo
a seguir.
Ainda não tinham os três alcançado a porta do armazém, quando
Jaimie sai do furgão com um ar completamente estarrecido.
Extremamente pálido e a tremer das mãos, Jaimie olha para o grupo,
petrificado, sem saber o que fazer.
“O que se passa contigo, Jaimie?” Pergunta Sophie como seu ar
sempre amoroso e preocupado.
Jaimie olha para aquilo que tem seguro pelas duas mãos.
“Não posso acreditar!” Exclama Volton horrorizado com o que vê.
“Não é possível!” Exclama Francesco, incrédulo com o que vê,
correndo na sua direcção.
Todo o grupo corre para junto dele, menos eu. Andando lentamente na
sua direcção, observo e serenamente o objecto que ele possui nas
mãos.
“Mas como foi possível que eles te tivessem detectado?” Pergunta
Francesco, completamente chocado com a notícia. Jaimie começa a
285
verter lágrimas, transtornado com o que lhe aconteceu, dizendo
apenas:
“Não sei, não sei!”
O grupo abraça Jaimie, num abraço bastante emotivo, não de
despedida, mas sim, num total e incondicional esforço para o resgatar
da calamidade.
A surpresa toma conta de mim quando descubro que aquele objecto,
era sem mais nem menos, um envelope branco.
“Não te preocupes amigo. Temos ainda quarenta e oito horas para te
salvar. Nada, mas mesmo nada separarar-nos-á de ti, isso prometo!”
Exclama Bland com um ar de quem está disposto a sacrificar a sua
própria vida, se possível, pelo seu irmão de armas.
O terceiro LED acende-se e os barulhos vindos da superfície
começam-se a intensificar cada vez mais.
“Temos de ir!” Ordena Volton. “Não tarda e estamos todos a acordar.”
Segurando uma mão na parte detrás do pescoço de Jaimie, Francesco
conforta-o bem nos olhos dizendo:
“Amigo, vemo-nos amanha, está bem?”
Soluçando de tristeza e aflição, Jaimie diz:
“Obrigado amigos. Vocês são os maiores.”
Nesse momento, a minha visão perde-se por intermitentes momentos.
A hora de abandonar o mundo sete chegou, obrigando a todos nós de
voltar ás mesmas portas de onde viemos. Em agonia, subo as escadas
até chegar ao patamar de cima. O barulho intensifica-se a cada passo
que dou e a visão ameaça-se perder a cada instante. Finalmente atinjo
a porta, rodo o manípulo e abro-a. Mas antes de entrar, olho para
baixo, para o furgão e observo Jaimie. Ele exclama lá debaixo para
mim, dizendo:
“Liberta-os!”
Sem compreender o significado de tal palavra, sou arrastado para
286
dentro da porta por todo o cansaço que possuo e, fechando-se a porta,
Acordo.
287
Capitulo 13
O alarme do despertador toca desenfreadamente como um louco.
Desligo-o imediatamente com dureza. Ponho as mãos na cara e reflicto
no que possivelmente iremos enfrentar para salvar Jaime do terrível
destino que tantos outros tiveram.
Uma mistura de sentimentos entre a raiva e a angústia dominam-me
fortemente, vendo mais um companheiro a atingir a fronteira da vida.
Levanto-me rapidamente e preparo-me para sair de casa. O funeral de
Mike é hoje à tarde, tendo o meu patrão concedido apenas tal
momento livre.
O dia parcialmente enublado de ontem, tornou-se completamente
cinzento e sombrio. Ao ver tal panorama, aperto o casaco até cima e
dirijo-me até ao trabalho, como sempre, de bicicleta.
A porta da loja já se encontra destrancada, evidenciando assim, a
presença de Robert nela.
Entro dentro e ligo as luzes pois, a claridade exterior é deveras
reduzida no dia de hoje.
“Bom dia Jonathan.” Saúda Robert ao entrar na loja pelo corredor do
armazém.
“Bom dia Sr. Robert.”
“Hoje parece que vai chover, o tempo está deveras encoberto.” Diz ele
ao vasculhar as caixas colocadas nas prateleiras logo após a entrada
do corredor.
“Parece que sim, embora que não daria muito jeito pois, hoje é o
funeral de Mike.” Respondo-lhe.
Robert suspira e diz:
“Pobre rapaz, tão novo e cheio de vida. Maldito destino que o levou.”
288
“Se apenas existisse o destino, tudo seria diferente Sr. Robert.
Haveria ao menos a hipótese de o mudar.
Robert olha para mim, surpreso e com admiração pelas palavras por
mim citadas.
“Acaso alguém destina-se a si próprio ou é destinado por alguém?”
Respondo num tom cada vez mais revoltoso por aquilo que se passou.
“Isso não sei, mas gostaria de saber.” Responde Robert.
Calo a minha boca e não argumento mais nada com Robert. Não quero
que ninguém descubra a minha posição por revelar assuntos
confidenciais.
O tempo mau que se avizinha fez reduzir bastante os clientes da
manhã, ao ponto de não me levar muito trabalho a delegar o fecho da
tarde com Robert.
“Sr. Robert, tenho de me ir embora. O funeral começa dentro de uma
hora.”
“Vai em paz meu filho, eu trato do resto.” Diz Robert do outro lado do
corredor.
Saio para fora e misturo-me com a multidão que se dirige como apenas
uma para a casa fúnebre. Pelo caminho encontro Jennie.
“Olá Jennie.”
“Olá Jonathan.” Responde ela com os olhos e nariz vermelho da
comoção sentida.
Eu abraço o seu ombro, oferecendo-lhe forca para continuar nesta
despedida de mais uma inocente vítima de um grande criminoso. Mike
não era religioso e em seu respeito, a cerimonia religiosa é convertida
num pequeno discurso em memória de um homem bom e honesto.
A minha raiva aumenta a cada momento e a sede de vingança impera
por toda a minha mente, especialmente, quando vejo o meu melhor
amigo, Mike, a desaparecer nas trevas bem por baixo da nossa
impotente presença.
289
Jennie dirige-se a para junto da angustiada Michael tentando dar-lhe
algum conforto, mas em vão. Em certos momentos, resta-nos apenas
rir com os que riem e chorar com os que choram. A multidão despede-
se e, lentamente, se vai dispersando daquele lugar. Jennie persiste em
ficar mais um pouco com Michael. Eu dirijo-me para fora daquele lugar
sombrio e calmo onde todos os caminhos e trilhos da humanidade
desaguam. A medida que caminho lentamente, vou observando
acuradamente alguns memoriais de despedida ou de esperança por
entre as lajes em granito. Por fim, subo umas escadas de mármore
branco trajadas no topo por um arco de sebe verde, bem por cima da
minha cabeça.
Não estou muito longe da saída, apenas resta-me contornar mais uns
curtos caminhos no paralelo branco que reveste o chão, por entre as
estatuas monumentais que lá se erguem.
Lentamente, reduzo o meu passo a medida que observo algo familiar.
Mesmo ali na minha frente, semi-coberta por um pequeno cedro que ali
crescera e cercada por altas ervas, uma grande estátua representando
uma inocente moça faz despertar a minha curiosidade. Ela assemelha-
se a um anjo, trajada com uma comprida veste branca olhando triste
para o céu, como que pedindo redenção mas apontando o dedo, com o
braço flectido para a sua frente.
“Que estranho!” Exclamo pasmado ao olhar para aquela estatua. “Eu
já vi algo semelhante em algum lugar. Mas onde?”
Pergunto surpreso ao observar tamanha obra artística.
Vasculho arduamente todos os seus cantos da minha memória, em
busca da resposta. Não tarda muito e ela surge como um relâmpago
que ilumina o mundo.
“É isso! Esta estatua é idêntica a que sonhei momentos antes de me
encontrar com Sophie naquela larga rua.”
Continuo a contemplar a estátua que exclama aflitivamente por algo no
290
seu silêncio petrificado.
A estátua aponta com o indicador da mão direita para um sítio incerto,
enquanto que o seu olhar posto no céu, clama por absolvição. Rondo a
estátua em busca de algo gravado na rocha quadrangular por debaixo
dos seus pés mas sem sucesso. Opto por escavar mais fundo na
minha busca em desvendar a curiosidade que me cerca. Por isso, e
sem hesitações, vou retirando as ervas altas que circundam a base da
estatua. Bem no fundo da rocha quadrangular jaz uma inscrição repleta
de musgo e de terra, Abaixando-me, limpo o melhor que posso com os
meus dedos tal inscrição.
Lentamente, a inscrição ganha forma e torna-se arduamente legível.
Debruço-me mais um pouco, e leio as seguintes palavras:
Guia as nossas almas pela Tua luz, qual farol, neste mar da escuridão.
A minha mente pensa e medita profundamente naquelas palavras.
Uma combinação de ideias forma-se no meu cérebro como quem tenta
construir uma ponte sobre todo este mistério.
De repente, uma ligação de ideias surge inesperadamente, coligando
frases atrás de frases.
A "oculta luz da sabedoria" que o velho dos moinhos se referia, poderia
bem ser a maravilha do mundo antigo ocultada pelo poeta grego no
seu manuscrito, "O Farol de Alexandria."
“Exacto!” Exclamo eu em voz alta, maravilhado com a descoberta.
“Esse e o terceiro ponto que nos falta, uma das três maravilhas que
porta luz. Com este ponto, já é possível obter o ângulo imperfeito!”
“Jonathan, estas aí?” Pergunta uma voz pelo meio daquele jardim.
Levanto-me e tento ver quem chama pelo meu nome.
“Aí estás tu! Procurei-te por toda a parte.” Diz Jennie.
“Desculpa Jennie, estava a contemplar esta estátua e nem dei conta
291
do tempo passar.” Respondo ainda em êxtase pela descoberta do
último enigmático elo que restava.
“Eu não me sinto muito bem.” Responde Jennie. “Estou extremamente
cansada. Será que me poderias acompanhar até casa?”
“Com todo o prazer Jennie. Tu bem sabes que eu por ti faço tudo.”
Ela sorri com aquela doce cara ainda vermelha da comoção sofrida,
não hesitando em entrelaçar o seu braço no meu.
Juntos e inseparáveis, saímos em direcção a sua casa, conversando e
pondo em dia, toda a conversa que nos foi negada ontem. O dia
continua coberto por densas nuvens cinzentas que se convertem
lentamente num negro carregado.
Decorridos alguns minutos, chegamos a sua casa, bem antes da
tempestade se fazer sentir.
“Obrigado pelo teu apoio Jonathan. És um querido, não sei o que seria
a minha vida sem ti.” E nesse momento, ela abraça-me com aqueles
braços delicados e suaves em torno do meu pescoço. Não hesito em
abraça-la também e sentir mais profundamente o calor e o prazer de
ser abraçado por tão bela criatura no mundo. Nesse momento, o tempo
parou e nem que ele andasse para a frente ou para trás, eu notaria
qualquer diferença. Por fim, ela descola-se do meu peito e, sorrindo,
volta-se em direcção a porta de entrada no topo do alpendre.
A minha boca bloqueia-se e a minha língua ata-se num nó sem saber o
que dizer ao vê-la subir aquelas escadas. Ela abre a porta e diz-me
num tom de voz muito baixo:
“Quero ver-te amanha.”
“Assim será meu amor.” Respondo-lhe completamente inflamado de
paixão.
Ela sorri num sinal de amoroso agradecimento e em seguida, fecha a
porta lentamente. Quanto a mim, apenas resta-me dirigir para casa, o
meu único abrigo. Depois de uma grande calmaria, um vento começa a
292
soprar com muita intensidade.
“Não tardara muito até começar um aguaceiro.” Dito e feito. Passados
alguns segundos de ter pronunciado tais palavras, uma forte chuva
abate-se sobre a pequena cidade. Não tenho a bicicleta comigo, o que
me obriga a correr em direcção ao meu local de trabalho. Á medida
que a roupa se encharca cada vez mais, torna-se verdadeiramente
difícil manter o mesmo passo apressado. Por fim, chego a loja já
encerada e desbloqueio a minha bicicleta que se encontra no passeio.
Completamente encharcado e sem pensar em mais nada a não ser
chegar a casa, pedalo o máximo que posso para evitar o pior.
O tempo piora a cada segundo que passa com as rajadas de vento a
tentarem derrubar-me da minha bicicleta.
Por fim e já sem uma ponta seca de roupa, chego ao meu doce lar.
Enquanto que encosto a bicicleta no interior da garagem, vou-me
deleitando com o bater da chuva nas placas de zinco bem por cima da
minha cabeça.
O dia lá fora escureceu depressa com o tempo mau que se abateu.
Sem mais demoras, opto por tomar um bom banho quente e em
seguida, preparar algo para comer.
Sento-me no sofá a comer relaxadamente, no silêncio da casa, apenas
incomodado pelo ruído da chuva que cai lá fora.
As inscrições que vi na estátua surgem rapidamente na minha mente,
obrigando-me a especular o verdadeiro posicionamento do perdido
farol.
“Sentado aqui é que não resolverei nada.” Dizendo isto, levanto-me á
procura de um mapa.
Por fim, encontro o mapa que engloba as três maravilhas do mundo
antigo. Traço uma linha a começar pela ilha de rodes, onde se
localizava o colosso dedicado a Hélio, o deus do sol. A linha segue
directo verso a localização do antigo farol de Alexandria, no Egipto.
293
Para culminar os dados do enigma, a ultima das três linhas culmina na
Grécia antiga demarcando a localização do Olimpo, A casa dos deuses
gregos. Não deveriam existir dúvidas que, tal precioso objecto, só
poderia estar guardado na casa da divindade tirânica do mundo 7.
Infelizmente, a minha especulação perdeu a sua forca com a amplitude
do grau imperfeito. Traço uma linha que me leva a percorrer infindáveis
países sem que haja um limite de quilómetros imposto que determine
onde o grau imperfeito acaba.
A frustração aumenta a medida que o tempo passa sem que surja uma
solução para a localização do sítio exacto no mapa-mundo.
Inesperadamente, uma ideia brilhante resplandece na minha mente,
derrubando todas as ideias e teorias que formulei até então com
respeito ao mundo 7.
Eu estava a procura de uma localização em algures neste mundo sem
me dar conta que os problemas não se originam aqui, no mundo real,
mas sim, no mundo do inconsciente. Logo, a localização do artefacto,
já mais poderia ser neste mundo, mas sim, no mundo 7. Mas para isso,
teria de esperar pela hora de entrada nele.
Esperançoso com tal descoberta, ligo a televisão em busca de algo
que relaxe o meu nervosismo. Rodo alguns canais mas sem encontrar
nada de interessante. Por fim, vejo num canal uma mulher a chorar nas
notícias.
“Porque é que as noticias tem de ser sempre mas?” Comento tal
imagem com uma pergunta, mudando súbito de canal. Mas, algo ali
chama-me a atenção. Volto para tas e observo tal noticiário.
" Os familiares não se conformam com a ordem do hospital no
encerramento de mais uma máquina que liga pacientes em coma à
vida Um baixo assinado conta já com mais de cinco mil assinaturas
envolvendo familiares, amigos, dirigentes e sócios do movimento
294
"Amigos do Hospital" junto com uma vasta multidão de pessoas que já
mostraram o seu descontentamento com respeito a nova lei formulada
para combater o défice orçamental do hospital. Mas o ambiente
pesado que se vive aqui promete não se estabilizar nos próximos dias,
conforme diz a família directa do falecido, a justiça irá prevalecer e os
responsáveis irão ter de indemnizar a mulher e as duas filhas de seis e
oito anos do falecido Jaimie, em coma já por dois anos após ser vitima
inocente de um acidente de viação."
Ao ouvir o nome Jaime o meu coração parou. Dobro-me no sofá para
baixo com as mãos na cabeça e solto um grito de tristeza agoniante.
Não queria acreditar naquilo que acabara de ouvir. Jaimie acabara de
ser executado pelo Oleiro após dois anos de intensa luta em retornar a
superfície. A minha revolta anteriormente grande, transborda de ódio
pelo cruel assassino. Ao mesmo tempo, o misto de tristeza e
impotência face a tal inimigo deixam-me por terra após tanto esforço.
A minha memória puxa fragmentos de imagens da noite de ontem,
quando me despedi de Jaimie. Reflicto na resposta que ele me deu
antes de eu entrar por aquela porta. Ele já deveria saber muito bem
que não teria hipóteses de sobreviver.
“Pobre coitado, deixou as filhas e a mulher que tanto deveria amar.”
Os sentimentos de culpa afloram por último. Talvez se ficasse mais
uns instantes, nada de mal lhe teria acontecido.
“Agora é tarde demais. Apenas reside no meu poder concretizar o seu
ultimo pedido.”
Profundamente abatido, ponho o meu prato de lado e dirijo-me para o
quarto. Perdi dois amigos em apenas três dias. Pergunto-me:
“Quantos mais iremos perder até chegarmos ao fim?”
Deito-me de cabeça para cima e recordando todas as aventuras e
situações passadas com Mike e Jaimie, como se o tecto fosse a tela de
295
um retroprojector.
O cansaço finalmente acumula-se após passar a violenta descarga
emocional sofrida por todo este dia.
Fecho os olhos e finalmente adormeço.
No escuro, ouço a voz de alguém que chora. Abro a porta bem na
minha frente e sigo por um corredor mal iluminado que da acesso ao
interior armazém.
Entrando nele, observo Sophie, sentada a chorar, Bland de cabeça
caída e braços cruzados. Volton apenas caminha de um lado para o
outro sem saber o que fazer. Francesco encontra-se dobrado na
cadeira com as palmas das mãos na cara.
Após aparecer diante deles, a minha presença não passa
despercebida.
“Já sabes o que aconteceu?” Pergunta Sophie com a voz rouca e em
lágrimas.
“Infelizmente já.” Respondo, profundamente abatido com a situação.
“Mas como foi possível?” Desabafa Volton.
“Então era por isso que ele não conseguia evadir-se do mundo 7.”
Comenta Francesco em voz baixa.
“Embora estivesse em coma, ele continuava a viver no
subconsciente.” Responde Volton.
“Malvados!” Exclama Bland, dando um punho violento na parede,
possuído por profunda revolta. “Se apanho quem fez isso, eu acabo
com ele, com as minhas próprias mãos.”
“Acalma-te Bland.” Replica Volton. “Isto é uma batalha para homens,
não apenas para um único guerreiro.”
Evidentemente, tais palavras sábias não surtem qualquer efeito no
estado irado de Bland, capaz de enfrentar o mundo inteiro.
“Quantos como ele são dados como mortos no mundo real mas
continuam vivos aqui em baixo, atormentados com a ideia de que os
296
outros se esqueçam deles?” Comenta Francesco, extremamente
pensativo.
“Eu só me pergunto a mim próprio como é que ele foi localizado, visto
que ele era extremamente cuidadoso com o que dizia e fazia.” Digo
num tom pensativo.
“Realmente é verdade. Terá sido isso possível?” Pergunta Francesco.
Após uns breves momentos de reflexão, Volton responde:
“O facto de ele não poder sair deste sistema, fez dele uma pessoa
com notáveis capacidades sobrenaturais. Ele era único no seu
proceder. No entanto, a medida que alguém vai evoluindo, o círculo de
segurança restringe-se, sendo cada vez mais difícil manter a
confidencialidade das operações.” Especula Volton com respeito ao
caso de Jaimie.
“Agora só nos resta finalizar o que ele começou, cumprindo a nossa
missão.” Comenta Bland.
“Mas como? Ainda falta decifrar grande parte do enigma.” Comenta
Sophie.
Dirijo-me para a mesa e vasculho os papéis em cima dela.
“Acho que descobri algo que talvez nos ajude a decifrar a localização
do artefacto.”
A curiosidade do grupo aumenta bem como o seu ânimo. Todos
caminham lentamente para perto da mesa, tentando entender o que
quero dizer com aquela frase.
“O que queres dizer com isso?” Pergunta Volton.
“Possivelmente decifrei a "oculta luz da sabedoria" que nos daria o
feixe de luz, conduzido através do "grau imperfeito".' Respondo.
“Como assim?” Pergunta Francesco.
“O ponto que nos faltava para a criação do triângulo sextante não é
nada mais nada menos que o Farol de Alexandria”
“Exacto!” Exclama Sophie. “Essa é sem duvida a maravilha oculta do
297
enigma!”
“Mas já conseguistes obter as coordenadas da localização do
artefacto?” Pergunta Volton.
“Não, ainda não. Existe o princípio, que parte do farol, mas o seu fim
não foi descrito no enigma. Mas seja onde for, tal fim apenas poderá
ser localizado através deste mundo.” Respondo com as ideias a
formularem-se na minha mente.
“Então, o que estas a afirmar é que esta teoria é ainda muito vaga,
sem um provável termino para o feixe de luz.” Comenta Francesco.
“Talvez não.” Contrario o comentário de Francesco. “A resposta pode
estar bem perto de nós mas, num sistema totalmente aparte daquele
que procuramos no mapa.”
“O que queres dizer com isso?” Pergunta Bland, Sophie e Francesco
em conjunto.
“Uma zona neutra. “ Responde Volton em voz baixa e pensativa.
“Exacto, esse é o ponto!” Reforço a ideia de Volton. “O Oleiro não
pode ser encontrado na maqueta do mundo real, ou seja, no mundo 7.
É lógico que seja assim pois, de outra maneira, seria facilmente
descoberto. Antes, ele reside numa zona neutra, muito possivelmente
bem protegida.”
Tal resposta da minha parte surpreende o grupo outrora
desmoralizado, dando-lhe forcas para continuar em busca da
verdadeira liberdade.
“O problema continua a ser o mesmo. Como vamos encontrar essa
zona neutra?” Pergunta Francesco.
Volton pega no mapa seriamente, traçando uma linha desde o farol
num ângulo de seis graus a partir da "casa dos deuses" no Olimpo. O
silêncio naquele espaço é tão grande, que o ruído do lápis entoa por
todo aquele lugar. O risco que ele efectua passa por diversos países
europeus e culmina na Irlanda.
298
Ele ergue os olhos para o vazio escuro a sua frente e profere apenas
duas palavras:
“É aqui!”
Todos olham para o ponto assinalado por ele, tentando imaginar que
segredos poderiam guardar aquele sítio.
“Só existe uma maneira de saber o que lá realmente existe.”
Responde Francesco.
“Reconhecer o terreno.” Argumenta Bland.
“Onde poderemos encontrar o portal para alcançar-mos essa zona?”
Pergunto a Volton.
“Este portal está escondido, muito possivelmente num lugar
inacessível.” Responde Volton com um olhar pensativo.
“Porque dizes isso?” Pergunta Sophie, tentando obter alguma pista
evidente da sua localização.
“Há mais de quatro anos atrás obtive uma informação com respeito a
uns "portões" localizados nas profundas águas de um rio.” Responde
Volton.
“Mas que rio? Existem tantos.” Pergunta Francesco.
Sophie vê-me com a mão na cabeça, como quem puxa por uma ideia
que resiste em sair.
“Sentes-te bem Jonathan?” Pergunta com o seu doce tom de
preocupação.
“Eu acho que sei qual é o rio.” Respondo.
“Como assim?” Pergunta o grupo numa só voz.
“Eu lembro-me de o ancião ter-me dito que a sabedoria seria somente
encontrada por aqueles que arduamente a procuram nas
profundidades do conhecimento.” Respondo num esforço interminável
em juntar as ideias umas nas outras.
“Isso é verdade mas, qual é esse rio?” Pergunta Francesco.
“Ele quando proferiu tais palavras, chamou-me a parte, junto ao rio,
299
comparando as suas águas ao conhecimento do mundo.
Possivelmente, o que o velho dos moinhos quereria dizer era que, nas
profundezas daquele rio, poderia existir um portal que nos conduziria
até o nosso objectivo.”
O grupo é apanhado de surpresa, especialmente ao deduzir que teriam
de efectuar um reconhecimento numa zona neutra.
“Mas para isso, teremos de ter os meios necessários para varrer o
leito do rio.” Comenta Francesco, preocupado com o risco dessa
missão.
“Talvez não.” Responde Volton com o seu ar sério e pesado. “No fim
daquele curso de água, o rio alarga muito e culmina numa barragem. A
porta poderá estar dentro dela, "nas profundezas das águas”.”
“Então só nos resta localizar essa barragem e alcançar o portal.”
Deduz Francesco.
A minha mente não para de processar informações com respeito ao
assunto em questão, vidrando os meus olhos num grande relógio
redondo e branco com ponteiros negros. Seria essa a localização
exacta do portal, ou poderia isso ser convertido num gigantesco perigo
para toda a equipa?
Os meus olhos nem pestanejam devido ao assunto em voga quando,
de repente, algo estranho visto por mim faz-me perder toda a minha
concentração. Ergo a coluna do meu estado encurvado e olho
fixamente o grande relógio. Algo de estranho se passa com ele pois,
parece que o ponteiro dos segundos não deseja seguir em frente.
Sophie vê-me concentradíssimo no relógio, achando muito estranho
aquele meu proceder.
“Estas bem Jonathan?”
“Algo se passa de mal com aquele relógio.” Nesse momento, todos
olham para ele. “Parece que a sua bateria esta fraca. Os ponteiros
nem sequer têm forca para continuar a marcar o tempo.”
300
Nesse preciso momento, Francesco, Bland e Sophie olham
rapidamente para Volton.
“Ele está a carregar!” Exclama Volton em voz baixa.
“Temos de sai daqui!” Ordena Francesco.
“Mas afinal, o que e que se esta a passar?” Pergunto confuso ao ver
tamanha agitação.
“O tempo não avança porque está a ser carregado um ataque no
sistema. Não tarda e eles estarão aqui!” Responde Francesco num
estado de ansiedade pura.
Nesse momento, os grandes portões do armazém movem-se
ligeiramente para dentro, acompanhada apenas por um breve ranger,
com muita lentidão. Mas ao encontrar resistência por parte da grande
trave que os bloqueia, a barriga formada pela tentativa de abertura
volta ao seu estado plano anterior.
Todos olhamos uns para os outros, petrificados naquele silêncio
inóspito, sem saber o que fazer.
Nisto, uma violenta explosão atordoa-nos por completo, lançando-nos
no chão. Retomando os sentidos e erguendo-me, clamo:
“Todos para o furgão!”
Bland levanta-se e toma o controlo do veículo. Francesco e Volton
entram para dentro dele e em seguida, também faço o mesmo. O fumo
intensamente negro provocado pela explosão concede-nos tempo para
uma possível fuga.
“Estamos todos dentro?” Clama Bland.
“Sim! Avança!” Exclama Volton em voz alta.
O furgão arranca a toda a velocidade abalroando um pequeno portão
que da acesso ás traseiras do armazém. Bland circula a toda a
velocidade pelas traseiras dos armazéns, por entre as sucatas que se
encontram empilhadas no meio do caminho.
Contudo, a falta de alguém faz-me suar o alarme.
301
“Onde está Sophie?” Pergunto num estado crescente de preocupação.
“Então ela não está com vocês?” Pergunta Bland.
“Não acredito!” Exclama Francesco. “Deixamos a pobre rapariga para
trás!”
“Ela não se vai safar!” Suspira Volton.
“Não sozinha.” Respondo. “Bland, espera por mim no fim da zona
industrial. Prometo não demorar.” E dito isto, abro a porta do veículo e
lanço-me no exterior. De um lado, observo o furgão a afastar-se, do
outro, o fumo negro que emerge do telhado do armazém. Caminho
cautelosamente por entre os montes de sucata, em busca de
protecção. O silêncio domina toda aquela área, dando a entender que
ninguém se encontra ali.
Finalmente, atinjo o armazém e, encontrando a porta dos fundos, entro
na terrível boca do dragão. Subo as escadas metálicas e, por entre as
caixas de papelão, observo o ambiente em torno daquela área.
Silenciosamente, os bloqueadores procuram pela sua presa, enquanto
que Sophie, reside deitada em cima de um contentor verde, não muito
acima dos olhares deles. Não tardará até que algum deles suba as
escadas e a encontre. Mas por mais que pense, as probabilidades de a
salvar são remotas. Mais de vinte agentes militarizados e bem
treinados inspeccionam a pente fino toda aquela área. Eu nem sequer
possuo uma pequena navalha para salvar Sophie. Mas existe algo que
eu possuo muito melhor que isso. A arma de todas as armas. A mente
humana.
Olho para todos os cantos tentando obter uma ideia que permita livrar
Sophie daquele terrível problema. Cá de cima, consigo observar a sua
respiração ofegante do medo que a toma. Olho para trás e, num piscar
de olhos, acompanhado por uma lei física e matemática, encontro a
solução ideal para o problema apresentado. Entre a parede e o
passadiço metálico onde me encontro, apenas umas cavilhas unem
302
toda aquela estrutura suspensa. Um pequeno guindaste percorre todo
o tecto do armazém. Silenciosamente, apanho o comando e dirijo o
gancho bem em cima de Sophie, baixando o cabo lentamente sobre
ela. Ela vê-me mas sem pronunciar ruído que fosse assim como uma
pequena cria se cala diante da presença de um milhafre. Por fim, ato o
restante da corrente à estrutura metálica onde me posiciono. Certifico-
me que Sophie esta bem fixa à corrente, aguardando o melhor
momento para tirá-la dali. Inesperadamente, um agente aparece no
patamar, bem por debaixo dos meus pés, procurando-nos atentamente
como um cão que fareja presas escondidas. Não demora muito até ele
encontrar a indefesa Sophie e lançar o alarme. Agarro num pedaço de
ferro, e atinjo com toda a forca as três cavilhas que suportam os dois
patamares metálicos. Quando os bloqueadores se preparam para
alcançar o topo do contentor, a gigantesca estrutura metálica começa a
ranger e a inclinar-se lentamente para o solo. Nesse instante, eu salto
para as escadas verticais que se encontram fixas a parede do edifício.
A medida que a estrutura desce a corrente atravessada na roldana iça
Sophie para cima, entregando a eles a pesada estrutura metálica pela
vez dela. Vendo Sophie fugir-lhes por entre os dedos das mãos, os
bloqueadores fogem o máximo que podem daquela área em colapso
apenas para desaparecerem por entre o emaranhado aço que a queda
provocou.
Sophie aterra nos meus braços e, horrorizada, abraça-me com uma
forca intensa.
“Obrigado Jonathan!” Agradece Sophie com a voz a tremer do pânico
sofrido.
“Isto ainda não acabou!” Respondo. “Não tarda e mais estarão para
chegar.”
Inicia-mos a descida pela única estrutura metálica que ficou de pé, a
escada.
303
Nisto, ouço o ruído de gente que ordena algo, mas sem entender o
quê. Logo a seguir, uma forte percepção como nunca outrora havia
sentido, desperta na minha mente a urgência de sair daquele lugar.
“Sophie, salta!” Ordeno quando nos encontramos ainda a seis metros
de altura.
A queda forte faz Sophie coxear de modo que, eu apoio-a com o seu
braço por cima do meu ombro, o mais rápido possível para fora
daquele edifício. O seu ar de extenuada e dorida faz com que cada
passo se transforme num verdadeiro suplício para ela.
A umas poucas dezenas de metros do armazém, por entre os
pequenos montes de sucata por ali espalhados, ouço uma
violentíssima explosão que nos projecta para a frente. Ainda sem
conseguir ouvir fosse o que fosse devido ao forte barulho, volto-me
para trás e arrepio-me com a visão que tenho. O anterior armazém fora
substituído por uma enorme bola de fumo negro de onde, infinitos
pedaços de chapa de aço são lançados pelo ar, deixando um rasto de
fumo cinzento pela sua passagem. Agarro em Sophie e arrasto-a para
junto do monte de sucata mais próximo. Uma chuvada de fragmentos
letais arrasa toda aquela área em redor, cravando pedaços de chapa
enormes nos pneus velhos que nos protegem. A medida que o
estridente som vai aumentando, eu cubro Sophie, enquanto que ela,
temerosa daquele espectáculo de pirotecnia, protege a sua cabeça
com a palma das suas mãos, dobrada, desejando ardentemente
desaparecer daquele inferno. Lentamente, os fragmentos
arremessados cessam de cair, forçando-nos a sair daquela área o
mais depressa possível. Sophie está muito debilitada, por isso, opto
por carrega-la nas minhas costas até ao fim desta zona industrial.
Chegando ao seu término e já exaustíssimo, encontro o furgão
estacionado num beco à nossa espera. Mal nos vê, Bland dirige o
veículo rapidamente no nosso encalço. A porta do furgão abre-se e
304
deposito Sophie nas mãos de Francesco e Volton.
“O que foi aquele grande barulho?” Pergunta Francesco.
“Foi o pavilhão. Eles arrebentaram-no completamente.” Respondo
ofegante e banhado em suor.
“Estás bem Sophie?” Pergunta Volton com um ar preocupado.
“Sim, apenas dói-me a perna. Não consigo caminhar mais.” Responde
ela, sentada com a perna em cima do estofe, com a cabeça apoiada no
assento a olhar para mim, sorrindo, como quem agradece o gesto
heróico de à pouco. Tal gesto por parte dela deixa-me embaraçado
pois, Sophie é uma jovem muito atraente e doce nos seus tratos e
modos de falar. Mas o meu coração já tem dona. É a Jennie o bem
mais precioso que eu possuo. Por ela, eu arrisco a minha vida e tudo o
que tenho.
“Mas como foi que eles nos descobriram?” Pergunta Francesco.
“Não faço a mínima ideia. Mas uma coisa é certa. Não podemos
conectar à rede por muito tempo. Eles não tardarão em localizar-nos.”
Aconselha Volton. “Sophie está ferida, o melhor seria voltarmos todos
à superfície. Isto hoje está muito complicado e provavelmente irá
piorar.”
“Volton tem razão. Não tarda e as estradas ficarão cheias de agentes.”
Concorda Bland.
“Temos várias portas de saída no Grant Hotel, bem perto de nós.”
Responde Francesco.
Bland conduz o veículo até esse hotel, não muito longe do local onde
nos encontramos. A rua do hotel está deserta mas, mesmo assim, os
nossos olhos percorrem toda aquela área. Bem na nossa frente, e com
as lâmpadas velhas cheias de pó, o letreiro do Grant Hotel indica a
todos que por ali passam da sua existência. Com quatro andares e
revestido no seu interior de pinho maciço, o Grant Hotel faz lembrar um
negócio esquecido pela humanidade. Ninguém nos impede de subir as
305
ruidosas escadas estreitas em madeira até ao terceiro andar.
“É aqui.” Diz Francesco ao virar para um longo corredor com alcatifa
castanha e uma pequena janela na outra ponta.
A medida que Francesco indicava as portas, o grupo diminuía de
número. Finalmente, a minha vez chegara.
“Até amanha Francesco.”
“Vemo-nos amanha amigo.” Diz Francesco ao se despedir de mim.
Entro na porta escura e, fechando-a atrás de mim...
Acordo.
306
Capitulo 14
Passam apenas alguns minutos das seis, mas a vontade de adormecer
está bem longe de mim. As imagens de Jaimie e as suas palavras
rolam sobre a minha mente todo o tempo
Cansado de dar voltas na cama, opto por me levantar e iniciar mais um
dia de actividade.
A medida que nos aproximamos da revelação deste enigma, mais
compatriotas se perdem no ciclo brutal do mundo7. Quantos mais
ainda se perderão?
Uma coisa é certa, à medida que percorremos esta estrada, ela vai-se
estreitando cada vez mais na dificuldade em prosseguir com o mesmo
passo.
No silêncio da minha casa, enquanto que me preparo, o sol acaba por
mostrar a sua tímida presença ao espreitar pela planície, penetrando
os seus leves raios de luz por entre as persianas da janela.
“Mais um dia, mais uma batalha.” Respondo, relativo a típica praxe do
círculo vicioso da vida humana.
Mais uma vez, pego na minha bicicleta e dirijo-me para o local de
trabalho.
As nuvens de ontem desapareceram, deixando o límpido céu azul
claramente visível. A estrada, ainda húmida da chuva de ontem, faz
evapora a agua lentamente como uma cortina no ar.
Finalmente chego ao trabalho, sempre à espera para estar junto da
Jennie. Lentamente esse tempo chega, dando-me a oportunidade de
me encontrar com ela na minha pausa para o almoço.
Ao chegar ao restaurante, verifico que o pandemónio de gente que ali
307
se encontra deriva-se a falta de alguém que o costuma controlar. Ao
ver que a Jennie não se encontra a trabalhar, opto por perguntar ao
empregado atarefadíssimo por ela.
Tento uma aproximação e, com muita dificuldade, consigo perguntar-
lhe pela Jennie.
“Tu sabes se a Jennie está a trabalhar.”
“Não.” Responde ele rapidamente num tom ofegante. “Ela deixou um
recado para ti. Apenas disse “oito horas”.”
“Obrigado.” Repondo ao obter a resposta que queria. Tal recado
quereria dizer que hoje me encontraria com ela as oito da noite, depois
da minha habitual hora de saída do trabalho.
O inferno que se vive naquele lugar, associado a falta da Jennie, faz-
me desistir do meu almoço optando por comer um snack que trouxe
comigo.
A tarde passa a voar no desejo de estar com ela uma vez mais.
Finalmente, as sete e meia da noite chegam, anunciando o fecho da
loja. Encerrado o negocio por hoje, tranco a porta exterior e dirijo-me
para a casa da Jennie. Ao som do rodado da bicicleta e com a camisa
a ondular ao sabor do vento, o meu coração bate cada vez mais de
contentamento por vê-la mais uma vez. Aceno as criança que brincam
na relva em frente ás suas casas, sem cerca, como se o mundo fosse
um lugar verdadeiramente seguro.
Vendo-me ao longe, ela ergue-se do alpendre e acena-me ao descer
as escadas.
O seu doce sorriso anuncia o seu estado, de quem se encontra muito
melhor.
“Olá Jonathan.” Saúda Jennie.
“Como estas Jennie?”
“Muito melhor agora que tu chegastes.” Responde com a alegria
estampada naquele belo sorriso.
308
“Queres vir comer um gelado ao centro?” Pergunto-lhe, estendendo
um convite que sempre lhe interessou.
“Já sabes que sim.” Responde ela, satisfeita com a minha ideia.
Eu estendo o braço, como já é habitual, esperando que ela se
estrelasse nele. Mas desta vez, ela toma uma reacção inesperada por
mim. A medida que sinto os seus finos e suaves dedos a se
entrelaçarem nos meus, a minha mão baixa as suas defesas e deixa-
se conquistar pelo maravilhoso tacto dela. Em tantos meses, Jennie
nunca se sentira preparada para semelhante gesto de afectividade e
não seria eu a impor-lhe tal. Unidos assim, fomos pelo passeio a fora,
conversando tudo aquilo que ainda faltava conversar, nem que fosse
assunto repetido três ou quatro vezes. Sentados num banco do jardim,
a contemplar aquele espaço verde, cercado pelos variadíssimos
edifícios multicolores da cidade, Jennie abre o seu coração para mim,
contando os seus segredos mais profundos. A luz dos candeeiros
acende-se com a chegada do escuro. Após concluirmos a nossa longa
conversa, um silêncio suave envolve o ambiente ao nosso redor,
apenas acompanhada pelos olhares da lua prateada. Olhamo-nos nos
olhos por alguns minutos ao som de um fontanário que salpica a água
docemente. Os meus olhos fixam os seus por alguns instantes,
acendendo ainda mais o fogo que arde entre nós, não sendo capazes
de reter a verdade que se fazia sentir no nosso intimo. Sem hesitar, os
meus lábios rebelam-se e dizem aquilo que desejava dizer a tanto
tempo.
“Amo-te Jennie.”
Jennie inspira de surpresa, fazendo-me repensar naquilo que disse.
Talvez fosse cedo demais para me declarar ou, talvez ainda não
estivesse preparada para tal passo.
Enquanto que tento formalizar uma desculpa pelo sucedido, Jennie
aproxima-se de mim como um relâmpago e beija-me ternamente pela
309
primeira vez. Simplesmente, não acreditava que aquilo que estava a
sentir pudesse ser possível ao fim de tanto tempo. Sentia uma força
tão grande no meu corpo e ao mesmo tempo, uma paralisia pela forca
da sua sedução.
Por fim, os seus lábios descolam-se lentamente dos meus.
“Eu também te amo.” Responde Jennie.
A felicidade e desejo de um pelo outro cresce muitíssimo envolvendo-
nos num abraço interminável.
Também interminável é no tempo, esse temível monstro dos bons
momentos, que nos obriga a separar os nossos corpos.
A vida de um ser humano é marcada por bons momentos, mas
nenhum se pode comparar ao momento em que se é amado pela
primeira vez.
Levantamo-nos do banco e acompanho Jennie até a sua casa.
Os sorrisos trocados ao longo da estrada abrem as confissões mais
secretas do seu coração.
Estando a falar sobre um determinado assunto, observo que a atenção
de Jennie se mantém apartada para um outro assunto que a preocupa.
“Estas bem Jennie?”
Acordando do seu estado pensativo, ela responde:
“Sim, estou bem.”
“Pareces muito pensativa.” Comento o seu estado de deslocação
relativo à nossa conversa.
“Ah! Não é nada, são apenas coisas insignificantes.”
“Que coisa são?” Pergunto, querendo ajudar no que fosse possível.
Sorrindo, ela responde:
“Foi um sonho patético que tive esta noite, nada mais.”
“Que tipo de sonho?” Pergunto na minha boa disposição.
“Sonhei com um volto negro que me repetia vezes sem conta as
palavras "zona 36".'
310
A minha feição muda instantaneamente de aspecto ao ouvir tal familiar
assunto.
“Como assim? Qual foi o seu objectivo?” Pergunto.
“Eu perguntei-lhe mas não me respondeu. Apenas me deu algo para a
mão.” Responde ela, fazendo um grande esforço para se lembrar.
“Mas o que é que ele te deu afinal?” Pergunto cada vez mais
preocupado em saber a resposta.
“Não me lembro bem. Parecia algo semelhante a um envelope
branco.”
O meu coração pára ao ouvir aquelas duas últimas palavras e junto a
ele, todo o meu corpo se congela com tal resposta.
Não podia ser possível. Primeiro ele leva-me um amigo, em seguida,
um irmão de armas e agora quer levar o bem mais precioso que eu
tenho?
“O que se passa contigo, Jonathan? Pareces assustado?”
Voltando ao mundo real e não querendo desvendar assunto que fosse,
tento normalizar o meu estado de decadência aflitiva.
“Não se passa nada! Mas tens a certeza que foi só isso que
sonhastes?” Pergunto-lhe num estado de nervosismo absoluto.
“Sim, nada mais. Porque que isso te preocupa tanto?” Pergunta
Jennie, começando-se a afligir com a minha reacção.
“Não é nada. Apenas tive curiosidade em saber o que se tinha
sucedido.”
E terminando tal frase, retomamos o caminho para a sua casa.
Não queria acreditar que tal fosse possível. Enquanto que Jennie fala,
a minha mente se concentra na sua salvação. O silêncio domina a
minha mente à medida que olho para Jennie que fala e sorri com
aqueles lábios graciosos, e com os seus encaracolados cabelos
castanhos que cobrem os seus olhos de diamante, sem que ela tenha
a mínima ideia da tragédia que lhe baterá à porta subitamente.
311
Injustiça! Esta é a única palavra de revolta que a minha mente
consegue processar. Matar um anjo como a Jennie é um crime contra
a humanidade. Por mais que tente resgatá-la do seu penoso destino, a
minha mente desfalece ao ver o amor da minha vida desvanecer-se
por entre as minhas impotentes mãos.
“Obrigada por este momento, Jonathan.” Diz Jennie ao chegar ao
alpendre.
Eu abraço Jennie naquele escuro, acabando por nos beijar
ardentemente, ela, por ter descoberto o amor da sua vida, eu, por
perder quem mais amo neste mundo.
Ainda abraçado a ele, eu prometo-lhe:
“Nunca te irei abandonar Jennie, nem que para isso comprometa o
mundo.”
Ela apenas sorri sem ter a mínima ideia do que havia sido posto em
cima da "mesa de todas as decisões".
Por fim, Jennie sobe as escadas e abre a porta de casa. Antes de a
fechar, ela sorri para mim e responde por entre a porta meia aberta:
“Tem bons sonhos Jonathan. Vemo-nos amanha.” Despede-se Jennie
ao fechar a porta.
Regresso para casa, triste e abatido pela noticia ouvida, meditando em
toda a conversa que tivemos, especialmente a ultima.
O Oleiro irá destrui-la na zona 36 defrontando a minha impotência face
ao seu ilimitado poder.
Nesse momento, uma ideia tão resplandecente como uma estrela
incandescente, brilha no meu cérebro.
Ela teve o sonho na noite passada indicando que, apenas passaram
vinte e quatro horas desse sonho. Essa conclusão revela-me que a
execução seria ainda efectuada nas seguintes vinte e quatro horas. Tal
teoria dar-me-á a possibilidade de a resgatar na noite de hoje,
momento esse em que ela terá de sofrera a execução. Se ao menos a
312
puder resgatar no seu sonho, a possibilidade de uma inversão do seu
destino seria possível.
“Não há tempo a perder!” Exclamo, pedalando como um louco na
minha bicicleta.
A única hipótese de salvar a Jennie passa por resgata-la dentro do
mundo sete.
Mal chego a casa, deito-me logo, esperando adormecer. O nervosismo
associado a adrenalina de poder salva-la não me permite adormecer
com facilidade. Mas por fim, cansado de tanto tentar adormecer, o meu
corpo cede ao cansaço, desligando-se na escuridão total.
Subitamente, dou comigo no meio de uma grande ponte com quatro
faixas de rodagem de cada lado sobre um enorme rio. O vento forte
bate-me no cabelo e a visão que obtenho, deixa-me confuso na minha
localização. Passado alguns minutos de solidão, ouço uma voz no meu
ouvido direito.
“Já te localizamos Jonathan.” Era a voz de Francesco.
Tal informação faz-me subir a estrutura metálica até ao tabuleiro onde
circulam os veículos. Por fim, vejo o furgão preto a parar bem ao meu
lado. A porta abre-se e eu entro.
“Isto sem Jaimie torna-se um verdadeiro pesadelo. Ninguém consegue
"aterrar” onde é preciso".
“Temos que nos habituar meus amigos. A missão que temos em mãos
não pode retroceder.” Encoraja Volton.
O furgão inicia o seu percurso por aquela grande auto-estrada que
cruza aquele enormíssimo rio.
“Pareces preocupado Jonathan. Tens algum problema?” Pergunta
Sophie ao ver-me muito pensativo.
Olhando pela janela, liberto um suspiro.
“Eu não sei o que fazer. Primeiro foi o meu amigo Mike, depois foi
Jaimie e agora, ele determinou o fim do ser que mais amo neste
313
mundo.”
“O que queres dizer com isso?” Pergunta Volton, surpreso ao ouvir
tais palavras.
“A mulher que eu amo revelou-me ter sonhado na noite passada com
respeito a um vulto negro que lhe repetia vezes sem conta a
coordenada da zona 36. Após isso, o vulto deu-lhe um envelope
branco.”
“Meu Deus!” Exclama Sophie.
“Pobre moça!” Condói-se Volton.
Bland bate com o punho direito na palma da mão esquerda ao
expressar o seu furor contra tal animalesco personagem.
“Esse sonho sempre se passou na noite anterior?” Pergunta Volton.
“Sim.” Respondo prontamente em busca de auxílio.
“Então esta noite, ela será eliminada do mundo 7.” Conclui Volton.
“E se impedíssemos que tal sucedesse?” Especulo na esperança de
salvar Jennie.
“É muito difícil, mas ainda não foi provado ser impossível.” Responde
Francesco a olhar para Volton.
“Isso seria um suicídio! Uma vez entregue a carta, mais nada há a
fazer.” Contradiz Volton mediante a minha ideia.
“Então não terei hipóteses. Vou enfrenta-lo sozinho.” Respondo sem
ter muito por onde escolher.
“Sozinho não vais.” Responde Volton. “Para onde fores, eu irei
também.”
“Conta comigo irmão.” Diz Francesco batendo levemente no meu
ombro.
“Comigo também.” Responde Sophie.
“Se é para dar muita tareia não hesites em chamar-me. Se não o
fizeres, então ajustarei contas contigo.” Adverte Bland
humoristicamente, com o seu punho de ferro.
314
“Bland, leva-nos para a zona 36.” Ordena Volton.
“Obrigado amigos. Vocês não sabem a alegria que me proporcionam.”
“Amigos são amigos. Deveriam eles apenas estar nos bons
momentos?” Pergunta Francesco pondo a sua reticência de parte no
que toca em ajudar.
O veículo "voa" a grande velocidade por entre o trânsito que nos surge
pela frente, sem que nada nem ninguém possa impedir-nos do nosso
real objectivo, salvar a Jennie.
“Não deve faltar muito até que a execução seja consumada. Para não
perder tempo e para nos protegermos uns aos outros, teremos que nos
dividir em dois grupos.” Responde Volton, ao mesmo tempo que
formaliza o plano de resgate.
“O que pretendes fazer?” Pergunta Francesco com curiosidade.
“A zona 36 é composta por uma larga avenida. No fim dela, um velho
e abandonado edifício de escritórios dar-nos-á uma boa panorâmica
sobre todo o cenário. Apartir de lá, podemos informar-vos do que
realmente se passa. Tomarei o edifício de assalto junto com Sophie e
Bland. Tu terás de abordar a Jennie sozinho, evitando atrair atenções
indesejadas. Francesco irá se posicionar não muito longe de ti.” Instrui
Volton com a sua voz grave.
“Parece-me um bom plano.” Respondo satisfeito com a ideia.
“O edifício é este.” Informa Bland, olhando atentamente pelo pára-
brisas.
“Vamos, não há tempo a perder.” Ordena Volton ao sair do furgão.
Junto com ele, sai Sophie e Bland.
Francesco toma o acento do condutor e dirige o veículo para o centro
da zona 36. O silêncio toma conta daquele cubículo à medida que a
ansiedade aumentam a cada segundo. Quanto mais nos aproximamos
do alvo, menor é o fluxo de tráfego que percorre a velha avenida,
contornada por edifícios altos e antigos. Tal cenário proporciona uma
315
redobrada concentração em tudo o que se passa à nossa volta.
“O centro da zona 36 é aquela paragem do autocarro. Eu esperar-te-ei
neste beco por ti.” Informa Francesco a apontar para o lugar fulcral que
se distancia a uns cem metros do veículo.
Abro a porta do carro e dirijo-me para bem perto da vermelha estrutura
de ferro. O ambiente está calmo demais, como se algo estivesse para
acontecer. Os transeuntes que passam por mim, mantêm a cabeça
baixa todo o tempo, como se fossem induzidos a fazer tal gesto.
“Já tenho o teu contacto visual Jonathan.” Informa Volton apartir da
sua posição no edifício abandonado.
Postando-me na paragem do autocarro, observo tudo o que se passa
ao meu redor. O ambiente está deveras tranquilo, sem que nada se
passe de especial, mas também, ainda sem sinal da Jennie. Começo a
perguntar a mim mesmo se não estarei na zona errada pois, a Jennie
teima em não aparecer.
A minha presença ali não passa despercebida a um velho jardineiro
que, enquanto rega um pequeno relvado junto ao passeio, observa-me
friamente nos olhos.
“Consegues vê-la Jonathan?” Pergunta Francesco com a sua voz
trémula, possuída por um nervosismo miúdo.
“Ainda não.” Respondo ao mesmo tempo que olho de um lado para o
outro.
“Mantenham as posições, algo esta para acontecer.” Ordena Volton,
desconfiado de tanto sossego.
Um autocarro marca a sua presença por parar bem diante de mim,
naquela paragem. Algumas pessoas saem, ludibriando a minha
concentração que se foca no interior do veiculo. Observo o seu interior
e o que do outro lado existe através dos vidros. Logo em seguida, o
autocarro, dando-me um amplo contacto visual da avenida deserta. A
unia coisa que mudou misteriosamente foi o velho jardineiro que já lá
316
não se encontra.
“Olha em frente Jonathan!” Exclama Volton em sinal de alarme.
Olho em frente e, para o meu espanto, do outro lado da avenida,
observo a Jennie de costas, a caminhar pelo passeio fora e a
distanciar-se cada vez mais da minha posição.
O meu coração bate muito forte à medida que corro pelo meio daquele
alcatrão velho e gasto. Jennie opta por virar a direita no cruzamento
com outra grande avenida, obrigando-me a correr o máximo que posso
para não a perder de vista. Não se vê viva alma naquela avenida
fantasma, exceptuando a mim e a Jennie. Por fim, Jennie decide
atravessar a avenida no momento em que me encontro a uns escassos
metros dela. Subitamente, um grande camião aproxima-se de nós a
grande velocidade, destoando todo aquele ambiente em nosso redor.
Jennie pára e, antes de prosseguir caminho, ela olha para os dois
lados da avenida, concedendo-me tempo suficiente para a alcançar.
Mas para o meu espanto, ela não se intimida com a aproximação do
camião e, num acto suicida, decide atravessar a avenida. Ainda de
costas para mim, dirige-se para o limite do passeio, determinada em
atravessar para o outro lado, como se de um sítio seguro se tratasse.
Vendo a sua reacção e sem distância suficiente para uma eventual
paragem, o motorista do camião buzina impetuosamente, com um som
grave. Tal atitude radical por parte dele não provoca a mínima reacção
na sua atitude determinada.
“Jennie, Jennie!” Clamo na tentativa de chamar a sua atenção mas
sem qualquer resultado. Jennie caminha definitivamente para a boca
do lobo, com os seus encaracolados cabelos castanhos a serem
embalados pelo vento, sem que se aperceba minimamente.
“Jennie, para!” Ordeno vezes sem conta à medida que aumento o
ritmo dos meus passos na sua direcção.
Nesse instante, ouço a voz pensativa de Francesco num diálogo com
317
Volton.
“O Jonathan disse que ela tinha sonhado com um envelope branco?”
“Sim.” Responde Volton sem saber onde Francesco quer chegar.
“É estranho!” Exclama Francesco. “Ninguém possui a capacidade de
sonhar com tal objecto a menos que seja uma mente livre.”
“Oh meu Deus!” Exclama Sophie, possuída de um medo aterrorizante,
como se o fim do mundo lhe fosse postado perante os seus olhos.
“Jonathan, sai daí!” Clama Francesco de um modo estridente, envolto
num arrepiante sentimento de alerta
À medida que me aproximo de Jennie, a voz de Francesco vai
perdendo entoação assim como a buzina do camião perde a sua
intensidade, até restar apenas um silêncio entre mim e a Jennie.
Bem antes de atingir o limite do passeio, estendo a minha mão na
direcção da Jennie e seguro-lhe no ombro. Um sorriso de satisfação
invade a minha cara à medida que sinto Jennie parar bem antes do
desastre. Ela volta-se instantaneamente para mim. Ao observar a sua
face, o medo toma conta de mim paralisando todos os meus músculos
por um milésimo de segundo.
“Não pode ser!” Exclamo completamente surpreendido com a visão
que tenho.
A face da Jennie era semelhante a de um boneco de trapos.
Nesse momento, e ainda no silêncio de todo aquele aparato, sinto o
meu abdómen ser trespassado por três balas. Caio de joelhos no chão,
mais perturbado com a visão do que com os ferimentos. No momento
em que uma chuva de balas se deslocava na minha direcção, ouço um
estridente som bem perto de mim.
Francesco acabara de saltar com o furgão para bem perto de mim.
Apenas se ouve o som de balas a colidir com a chapa do veículo ao
mesmo tempo que Francesco se precipita dele.
“Estas bem?” Pergunta ele no meio daquele barulho infernal.
318
“Não sei o que aconteceu!” Respondo-lhe atónico com tudo aquilo que
se passou.
“É uma armadilha! Vamos embora daqui.” Ordena ele, ajudando a
erguer-me.
Francesco espera pelo melhor momento para abandonar a barricada e
entrar pelo beco a uns metros de nós.
“Aguenta-te amigo!” Encoraja Francesco, impulsionando-me a sair
dali. Percorridos alguns metros, ouço um zumbir, mesmo bem perto do
meu ouvido. Um segundo depois, uma enorme forca empurra-nos pelo
ar e arrasta-nos no passeio.
Deitados no chão e envolvidos por um fumo negro, Francesco
pergunta:
“O que foi isto?”
Ainda a recuperar parte dos sentidos, eu erguer a cabeça repleta de pó
e observo o que se passou.
Atrás de mim, no meio do fumo negro que nos rodeia, observo o que
ainda resta da carcaça do nosso furgão a arder.
“Não acredito, eles destruíram-no!” Responde Francesco, abatido com
a perda da nossa ferramenta chave de todas as operações.
“Antes ele que nós Francesco. Vamos embora daqui.”
Tomo ânimo e ergo-me junto com Francesco. Iniciamos a corrida por
entre um dos becos apertados e longos daquela velha avenida.
“Volton, acabamos de cair numa emboscada. Precisamos de sair
daqui.” Respondo sem diminuir o passo apreçado.
“Não estais muito longe. No final desse beco existe um outro mesmo
em frente. Tens de entrar nele.”
“Vamos Francesco. Temos de sair o mais rápido possível daqui.”
Respondo em sofrimento enquanto que precioso o abdómen ferido.
A corrida inicia-se pelo meio daquele estreito caminho repleto de
caixas de cartão vazias. O sabor da humidade sufocante dificulta-nos a
319
nossa deslocação naquele sítio, algo que não acontece aos
bloqueadores que são imunes a qualquer situação que possa
aparecer. O suor escorre pela minha face como se alguém tivesse
derramado um copo de água sobre mim. Finalmente, saímos do beco e
entramos numa avenida transversal.
“Como é que estás?” Pergunta Francesco, preocupado pelo meu
estado.
Toda aquela agitação sentida fez-me esquecer a dor que possuía a
uns momentos atrás. Inexplicavelmente, em vez de piorar, estava a
sentir-me cada vez melhor.
“Não sei o que se passa comigo mas, a dor que tenho esta a
desaparecer!” Respondo admirado com tal estranho facto.
“O que? Estás a sentir-te melhor?” Exclama Francesco,
completamente estupefacto com tal afirmação.
“Sim, é verdade!” Acabando de proferir tal resposta, o som de
inúmeros passos velozes fazem-se ouvir no fundo daquele inóspito e
sombrio corredor. Volto-me para trás e observo um grande batalhão
que se desloca furiosamente como as imponentes águas que se
deslocam através de um rio em plena fúria.
“Vamos, temos de continuar!” Ordeno ao som das primeiras balas que
quase nos atingem.
Desloco-me rapidamente pelo meio da movimentada avenida, com
uma harmonia perfeita entre os apressados veículos que ali circulam,
sem que nenhum trave ou colida comigo. Atingindo a outra parte,
apressamo-nos em entrar no segundo beco. Este é muito mais amplo
mas sombrio, sujo e repleto de vapor de água que emana das grelhas
posicionadas no chão. Absolutamente nada nos faz parar nem
abrandar o nosso urgente passo em busca de livramento. Bem a meio
do beco e ao nível dos nossos olhos, um enorme viaduto trespassa o
caminho bem na nossa frente, obrigando-nos a tomar uma passagem
320
inferior que acede a outra metade do beco. Descemos rapidamente as
escadas em cimento com as suas paredes repletas de grafites apenas
para colidir com uma enorme rede metálica que se estende no mesmo
sentido do viaduto mas por debaixo dele. Uma pequena porta
constituída de rede garante o acesso ao outro lado.
Francesco agarra o cadeado que, para nossa admiração, se encontra
aberto. Abrimos a porta e, uma vez do outro lado, bloqueamo-la com o
cadeado. A fuga reinicia-se uma vez mais por aquelas escadas acima,
aproximando-nos do fim daquele pesadelo. Chegando ao patamar de
cima, no mesmo nível de a pouco, ouvimos o som dos agentes a se
aproximarem ao longe.
“Agora já temos tempo suficiente. Primeiro que trespassem a rede,
perderão alguns minutos. Responde Francesco com satisfação.
“Não podemos abrandar o passo. Ainda estamos no seu mundo.”
Respondo com desconfiança.
“Então vamos amigo!” Responde Francesco, dando-me uma leve
palmada nas costas e iniciando a sua corrida uma vez mais. Apenas se
ouve o som dos nossos passos que pisam pequenos charcos de água
e a respiração ofegante dos nossos pulmões. A dor que possuía no
abdómen, ainda sem explicação plausível, passou-me quase por
completo. Tal fenómeno impressiona mais a Francesco que o facto de
termos caído numa emboscada.
Subitamente, deixo de ouvir a harmonia dos nossos passos para ouvir
apenas os meus. Não tardo a perceber que estou a correr sozinho pelo
beco a fora. Paro repentinamente e olho para trás na expectativa de
saber porque Francesco interrompeu o passo.
A visão que possuo nesse instante devasta o meu coração, sem que
seja necessária uma resposta ao que sucedeu. De joelhos no chão
molhado, Francesco olha para mim com um olhar triste de quem
apenas não quer acreditar no que aconteceu.
321
“Francesco!” Grito ao ver o meu melhor amigo a jazer no chão.
Do outro lado do beco, por entre o movimentado viaduto, um agente
sorri cruelmente ao fazer pontaria certeira em Francesco,
Corro imediatamente para junto dele e suporto o seu tronco com as
minhas mãos. A sua respiração está descontrolada, como se os seus
órgãos internos fossem impelidos a sair pela boca.
Os bloqueadores descem as escadas e não tardarão a se ouvir os
seus esforços em perfurar a rede com muita brutalidade.
Em aflição, olho para todos os lados sem que nenhuma ideia me surja.
Ainda me encontro longe do fim do beco e em breve, os agentes
atingirão a nossa posição. Sem muitas hipóteses, tento erguer
Francesco que cambaleia lentamente a cada passo que damos.
“Não dá Jonathan! Não tarda e seremos apanhados os dois.”
Confessa Francesco em agonia.
“Não amigo! Não te deixarei para trás.”
Francesco agarra-me nos braços e, olha-me bem nos olhos, como
quem quer transmitir a mensagem mais importante do mundo.
“Tu tens uma missão a cumprir. Tu libertarás a humanidade da
escravidão do seu ditador. A minha missão foi conduzir-te até ao
artefacto. Resta-me apenas esperar que nos libertes a todos.”
Responde Francesco, com uma respiração extremamente árdua.
“Não!” Suplico em voz baixa, enquanto que seguro a sua cabeça com
as lágrimas a escorrerem-me pela minha face.
As mãos de Francesco apertam os meus braços fortemente a medida
que ele suplica em voz baixa:
“Vai!”
A crueldade de deixar um amigo e camarada para trás, apenas para
ser devorado pelos "leões", tortura o meu intimo com sentimentos de
remorso e de culpa pelo que lhe aconteceu. Os inimigos não tardarão a
chegar, apenas deixando-me a terrível escolha de o abandonar para o
322
inteiro bem da humanidade. O nó na garganta, o som dos agentes a
chegar o suspirar de Francesco fazem-me derramar um mar de
lágrimas à medida que me distancio do pobre inocente. Olho para trás,
e vejo-o a arrastar-se para trás de um contentor do lixo, na inútil
esperança de se esconder, semelhante a pequeno rato que se
esconde por entre os seixos de um rio prestes a ser inundado por
fortes águas.
O seu olhar triste provoca uma extrema revolta em mim, cercada por
uma profunda tristeza ao vê-lo apagar-se deste mundo.
Enquanto que corro, olho para o céu fictício, como que, implorando a
Deus por ajuda, sabendo muito bem que ele não se encontra lá. A
medida que olho para cima, observo as paredes em tijolo que revestem
os edifícios com as suas minúsculas janelas e algumas peças de roupa
que ali se estende em cordas. Observo também escadas metálicas de
emergência que se estendem por cada bloco residencial. Tal visão
conecta ideias na minha mente ao ponto de obter um plano brilhante.
“Volton, existe algum portal aqui perto?” Pergunto na esperança de
uma resposta positiva.
“De facto existe uma no Bloco 173 no quarto andar direito. Estás a
vinte metros dele.”
“Obrigado amigo!” Respondo à medida que toneladas de adrenalina
são depositadas no meu sangue. Volto-me para trás e observo os
agentes a subirem as escadas ao longe. Francesco, atrás do contentor
do lixo, jaz no chão com a cabeça encostada a parede.
“Tenho de conseguir!” Encorajo-me a um sacrifício único, acreditando
que tudo pode acontecer neste mundo. A vida apenas completa a sua
plenitude, o seu real objectivo, quando estamos dispostos a perde-la
apenas para cedê-la a outro ser humano. Mais que decidido, tomo a
suicida e inesperada decisão de voltar para trás. Corro na direcção de
Francesco com toda a minha vitalidade, como se uma forca infinita se
323
apoderasse de mim.
Chegando perto dele e, abaixando-me, coloco-o sobre os meus
ombros.
“O que estas a fazer Jonathan?” Pergunta Francesco, completamente
moribundo.
“Achas que deixava-te aqui a descansar? O nosso trabalho ainda esta
longe de acabar!” Humoriso enquanto que tento com muito sacrifício,
transportar o seu corpo pelo beco sombrio.
“Não devias arriscar Jonathan. Contudo obrigado por não te
esqueceres de mim.” Agradece Francesco com a sua respiração
agoniante.
Não demora muito até se ouvir as primeiras balas a rasparem por tudo
quanto existe ao nosso redor. Arduamente, carrego Francesco até à
escada de emergência, bem por cima de um contentor do lixo.
Deposito Francesco no seu topo e tento puxar a escada que lá se
encontra retraída. Uma vez em baixo, agarro Francesco novamente e
inicio a subida vertical. As balas fazem ricochete no metal, bem perto
dos meus dedos, mas sem que tal abrande a minha subida. Quando
chego ao topo de tal escada, uma bala perdida acerta-me na minha
perna esquerda, roubando-me o equilíbrio. Com muito sacrifício,
bloqueio Francesco contra a escada e seguro ela com as duas mãos.
Restabelecido o equilíbrio, prossigo a penosa subida. Chego ao
patamar de cima e, pousando Francesco no chão, retraio a escada
para cima sem mais demoras. O mar de balas aumenta cada vez mais
ao se aperceberem que consegui escapar-lhes miraculosamente entre
os seus próprios dedos. Concentrado na minha rápida subida pelas
escadas em diagonal, subo com Francesco nos meus ombros até
encontrar uma janela que nos liberte daquele inferno. Por fim, encontro
uma janela no segundo andar que se encontra fechada. Sem demoras,
parto o vidro com o pé e entro para dentro. O cheiro a mofo da alcatifa
324
velha contrasta com o verde pálido das paredes daquele apartamento
vazio. Curioso com a actividade dos agentes lá em baixo, espreito para
o beco com todo o cuidado do mundo. A visão que obtenho faz-me
redobrar a minha atenção ao verificar que, a multidão de agentes que
lá se encontrava à pouco, desapareceu misteriosamente.
“Para onde e que eles foram?” Pergunto a mim próprio, surpreendido
com o seu rápido desaparecimento.
“Despacha-te Jonathan, algo está para acontecer. Tens de
desaparecer rapidamente daqui!” Ordena Volton com muita
preocupação, esperando que o pior venha inevitavelmente a
acontecer.
Ainda com Francesco nos ombros, caminho rapidamente por entre
aquele apartamento em busca da porta exterior. Atingindo a saída,
subo as escadas apenas iluminadas pela luz do sol que penetra
através dos vidros. Apenas se ouve o som dos meus passos e a
respiração ofegante, garantindo-me que a prosseguira, terminou por
breves momentos. Banhado em suor, atinjo a porta do quarto andar
direito. Faço uma pausa para tentar recuperar o fôlego do asfixiante
esforço sofrido. O silêncio domina todo aquele bloco residencial, dando
a entender que o mundo parou. Ponho a mão no manípulo da porta e
rodo-o lentamente, abrindo-a com muita facilidade.
“Deixa Francesco na segunda porta a direita.” Informa Volton.
Avanço com precaução à medida que passo pela porta de uma estreita
cozinha iluminada pela luz amarelada de um pequeno candeeiro. A
próxima porta encontra-se fechada. Avanço até ela e, abrindo-a,
deposito Francesco na sua escuridão profunda. Em seguida, fecho a
porta. Volto a abri-la rapidamente pela segunda vez, apenas para
observar uma sala com alguma mobília antiga em mogno, com pratos
decorativos nas suas prateleiras. O chão e revestido em pinho claro,
suporta no seu centro uma mesa igualmente antiga com quatro
325
cadeiras harmoniosamente ordenadas em cada lado. As janelas
antigas dão uma visão dos edifícios frontais, também eles antigos, a
apenas quinze metros de distância do outro lado da rua.
“Volton, onde fica aproxima porta?” Pergunto sem ter a coragem de
me mover daquele sítio, sabendo bem que, os bloqueadores se
encontram emboscados a minha espera.
“Tens uma porta a dois quarteirões dai, num restaurante a três ruas
paralelas a essa que observas.”
“Mas como faço para sair daqui? Possivelmente, lá em baixo, tudo se
encontra polvilhado de agentes!” Exclamo em sinal de preocupação.
Após um breve silêncio, Volton volta a responder:
“Sobe até ao telhado, é a única saída que possuis.”
Sem demoras, dou meia volta naquele chão ruidoso e dirijo-me para as
escadas do prédio. Ainda não tinha atingido a porta da sala quando,
uma leve vibração, faz vibrar os vidros da sala e deslizar os pratos na
prateleira onde estavam anteriormente de pé.
“Que estranho!” Exclamo surpreso ao presenciar tal cenário.
A segunda vibração, muito mais intensa, atira alguns pratos de
colecção no chão, partindo-os por completo.
“Volton, o que esta a acontecer?” Pergunto assustado com
semelhantes vibrações.
Uma terceira vibração acompanhada por um ruído semelhante ao da
passagem de um camião, sacode as cadeiras e os móveis da sala.
“Mas o que se está a passar? Volton, estas a ouvir-me? O que
realmente esta a acontecer?” Pergunto a medida que os nervos
aumentam cada vez mais.
Desta vez, o som de um rebentamento anuncia o quarto e intenso
tremor que abala todo o edifício. O tremor é tão grande que eu apoio a
mão na porta para não perder o equilíbrio. Os pratos que restaram na
prateleira caiem dela, sendo os seus pedaços de cerâmica arrastados
326
pelo chão fora até à parede onde se encontra a janela. Lentamente, as
cadeiras e a mesa deslizam pelo chão fora até embaterem na mesma
parede.
“O chão está desnivelado!” Exclamo perplexo com tal descoberta.
Tal indício leva-me a analisar de perto o que realmente se passa.
Dirijo-me até à janela e, olhando para baixo, observo muitos agentes
em plena actividade.
“Jonathan, tens de sair daí! Eles vão demolir o edifício!” Grita Volton.
“Não pode ser!” Respondo incrédulo com tal notícia.
Mas a quinta implosão faz-me recobrar o bom senso, recuando para
trás com o objectivo de atingir o telhado do edifício. Chego a porta da
sala uma vez mais e, voltando-me para trás, observo que já e tarde
demais.
“O prédio vai cair!” Clama Volton uma vez mais.
Pela janela, consigo observar as varandas e janelas do edifício em
frente a se erguerem por cima de mim.
“Tarde de mais!” Concluo aterrorizado num petrificado temor.
Nesse momento, sinto uma forca intensa que me impulsiona a tomar
acção à medida que o inteiro prédio inicia o seu colapso. Com frieza,
fito uma varanda do edifício à minha frente. Ganho balanço e corro
como um relâmpago na sua direcção. Atravesso o vidro da janela,
reduzindo-o a meros estilhaços e, voando como um projéctil em
câmara lenta, atravesso aquela rua sobre os olhares estupefactos dos
agentes, bem por baixo de mim. Violentamente embato na varanda de
ferro que me tinha destinado a agarrar. O forte impacto deixa-me
atordoado e preso apenas pela mão direita. O prédio anteriormente
abandonado por mim, desmorona estrondosamente no chão,
barricando a entrada do prédio onde me encontro. A intensa nuvem de
pó eleva-se rapidamente pelo ar, cobrindo o meu corpo ainda
pendurado nos ferros da varanda de um pó cinzento miúdo. Esforço-
327
me para sair daquela varanda no meio daquele nevoeiro cerrado de
partículas cimentadas. Atingindo o seu interior, quebro o vidro da porta
que dá acesso ao interior do andar. Aproveito o tempo ganho daquele
aparatoso evento e corro o máximo que posso para atingir a porta que
me está destinada a dois quarteirões dali. Ainda não tinha saído
daquele compartimento, quando um potente empurrão me propulsiona
brutalmente contra o chão da sala onde me encontro. Por momentos,
deixo de ouvir o que se passa a minha volta, para mais tarde me
aperceber que a minha posição fora atingida por um morteiro. Com
dores por todo o corpo, ergo-me lentamente do chão, repleto de
estilhaços de cimento e tijolo.
Cambaleio lentamente até a porta de saída daquele andar até alcançar
as escadas exteriores. Desço o mais rapidamente que posso com o
objectivo de atingir o piso térreo. Mas, ao alcançar o primeiro andar,
deparo-me com uma situação não esperada. Ouço muitíssimos passos
de gente em fúria que emanam do patamar bem debaixo dos meus
pés.
“Isto está a correr pior do que pensava.” Desabafo completamente
exausto e em agonia de tanto correr e de tantos ferimentos suportar.
A minha frente, bem acima das escadas, uma janela alta mas estreita,
dá um vislumbre do exterior repleto de telhados em chapa zincada que
albergam garagens por baixo. Não hesito em perder mais tempo na
busca de uma outra saída, se não aquela. Vigorosamente, parto a
janela com o pé e salto em seguida para cima daquele telhado. Corro o
máximo que posso por aquele labirinto de telhados que se estende por
uma vasta área. Não tarda até que os agentes saltem para o telhado e
iniciem a sua feroz e implacável perseguição. Um helicóptero negro
segue os meus passos de perto, não hesitando em tentar balear-me
com uma terrível chuva de balas. Salto de telhado em telhado,
simulando caminhos que não tomo, despistando os agentes o máximo
328
que posso apenas atrasando-os por meros segundos da sua
implacável perseguindo. Saltando mais uma vez para um outro
telhado, o pior acontece quando uma chapa de zinco cede ao meu
peso e faz-me cair violentamente no chão em cimento. Mesmo assim,
já quase na boca do leão, arrasto-me até uma garagem perto de mim.
Fecho a porta e, naquele cubículo, apercebo-me que não existe saída
possível dali. Não tarda até que se ouça os agentes a saltar dos
telhados para o pequeno átrio que circunda as garagens. Porta a porta,
os agentes arrombam e investigam o que lá dentro se encontra.
“Estou tramado!” Suspiro em agonia, enquanto que apoio a cabeça
num armário em metal, em pleno sinal de derrota, face ao cansaço
sofrido. Olho em redor daquele tecto zincado, esperando ser
descoberto para a absolvição de todo o meu sofrimento.
Os agentes aproximam-se cada vez mais de mim à medida que ouço
com maior intensidade, a forma bruta como eles revistam cada
garagem.
No tecto, por cima de mim, observo um espelho colocado numa
posição angular. Após visualiza-lo, foco a minha visão no que ele
reflecte. Rapidamente, o animo toma conta de mim a medida que
descodifico a visão que tenho.
Dirijo-me para o objecto jazido chão, reflectido pela imagem milagrosa
do espelho. No seu topo lê-se as seguintes iniciais:
"A P".
“È isso!” Exclamo ao encontrar a minha salvação.
Bem próximo de mim, uma enorme tampa de ferro jazia no chão, com
aquelas duas iniciais que clamavam para mim "águas pluviais".
Com ardor, puxo as duas pregas instaladas provisoriamente nela,
retirando-a do seu sítio. O cheiro fétido de águas estagnadas evade-se
por aquela abertura num vapor quente. Ainda deitado no chão, olho
para baixo e vejo uma escada metálica que desaparece na escuridão.
329
Não existe tempo para interrogações e incertezas, a descida tem de
ser efectuada antes seja descoberto. Desço lentamente na escuridão à
medida que o ar húmido e quente dificulta a minha respiração.
Descidos quatro longos metros, salto para a pouca água que se
encontra no fundo. Dois grandes tubos com um metro e meio de
diâmetro trespassam aquela enorme caixa em betão. A escolha é
limitada, por isso, resigno-me a olhar para a lenta corrente de água que
escorre pelo tubo. O reflexo da luz natural vinda de cima, reflecte na
água que escorre lentamente, deixando claro a direcção da corrente. A
água escorre da direita para esquerda fazendo-me deduzir que,
possivelmente, aquela conduta iria conduzir-me até um rio. O plano de
fuga era bom mas, a minha percepção indica-me que devo tomar o
caminho mais difícil e possivelmente, sem saída. Repleto de dores que
aumentam a cada passo dado, caminho encurvado pela conduta a
dentro. Quantos mais metros caminho, mais o fluxo de água corrente
reduz-se, da mesma forma, o diâmetro do tubo reduz-se a cada passo
dado. O eco dos agentes entoa em toda aquela tubagem, indicando a
sua chegada ao fundo do poço. Os seus passos rápidos na água
indicam a sua movimentação num dos dois sentidos.
O tubo onde me encontro tem um diâmetro tão pequeno que as minhas
tentativas de locomoção são reduzidas ao mínimo. O eco dos agentes
é tão intenso, que não consigo entender a direcção que eles estão a
tomar. Apalpando tudo ao meu redor, reconheço que me encontro
numa outra caixa de betão. O próximo tubo é pequeno de mais para
mim, de modo que paro sem saber o que fazer. Os ferimentos e o
cansaço reflectem-se cada vez mais ao ponto de não os conseguir
suportar mais. É nesta hora agoniante que apropria morte é desejada,
semelhante a um elixir que resolve, até mesmo, os problemas mais
profundos da humanidade. Encosto-me à parede de betão húmida,
naquele escuro infinito, limitando-me a ouvir a minha pulsação que
330
bate cada vez mais lenta. O ruído dos passos anteriormente apagados
pela distancia voltam-se a ouvir ao longe, indicando que os agentes
acabaram por descobrir a direcção tomada por mim.
“Agora sim, o meu fim chegou.” Desabafo num tom de alívio.
O cerco aperta cada vez mais, à medida que ouço o arrombamento da
tampa mesmo por cima de mim. Retirada a tampa, uma ofuscante luz
branca brilha sobre mim ao ponto de me encandear completamente.
Ouço passos de alguém que desce as escadas, mas sem reconhecer
quem é.
Tal pessoa se abaixa e olha-me na cara. A medida que os meus olhos
se vão habituando a luz, identifico a face de uma pessoa negra diante
de mim.
“Estás bem Jonathan?” Pergunta essa voz que rapidamente a
reconheço.
“Bland, que bom ver-te!” Exclamo alegremente, completamente
fragilizado com toda a situação sofrida.
“Vamos embora daqui!” Encoraja, pondo-me em seguida nos seus
musculosos e negros ombros.
Sair daquele lugar húmido, escuro e sufocante foi como uma
ressurreição dentre os mortos para mim.
O meu estado tão lastimável não me permite identificar onde estou.
Apenas dou conta que entrei numa cozinha de um restaurante e que
estou a ser levado para os fundos dela.
“A porta é aquela!” Indica Volton, apontando para uma enorme porta
de uma arca frigorífica.
Volton abre a porta e Bland deposita-me no seu interior escuro.
A porta fecha-se e…
Acordo.
331
Capitulo 15
Arregalando bem os olhos, ergo-me e inspecciono o meu abdómen e a
perna.
“Que alivio!” Expiro num descarregar de emoções fortíssimas.
Nem queria acreditar que me tinha livrado daquela situação
aparentemente sem saída.
O meu corpo está em perfeito estado, apenas sinto dores de cansaço
por todo ele no momento em que me ergo da cama. Nesse momento, o
meu cérebro dispara uma informação vital que me bloqueia todo o meu
raciocínio.
“A Jennie!”
O que lhe teria acontecido? Será que ela se encontra bem?
Salto da cama e visto-me sem tempo a perder. Pego na bicicleta e
pedalo como um louco até a casa dela.
São sete e quarenta quando o meu pé pousa no seu alpendre, cedo
demais para ele sair de casa.
Voo pelo alpendre e bato à porta com toda a vitalidade, como se um
maremoto estivesse para chegar a cidade.
“Jennie, Jennie!” Clamo eu em voz alta mas sem qualquer resposta.
Após chama-la repetidas vezes sem aparente sucesso, decido
procura-la no seu local de trabalho, o segundo possível local onde ela
poderá estar. A medida que pedalo, a angustia toma conta de mim.
Penso se ela não se encontrará em casa, amarrada ou então a sofrer
uma agoniante morte. Finalmente chego ao seu local de trabalho e,
sem perder tempo, arremesso a minha bicicleta para o passeio,
correndo o mais que posso em direcção a porta da entrada.
332
Espreito para dentro e, após identificar algumas luzes acesas, tento
rodar o manípulo da porta que se encontra fechada.
Bato a porta repetidas vezes até que alguém se incomode e me abra
aporta. Finalmente, saturado de tanto barulho, o cozinheiro decide abrir
a porta.
Mau humorado pergunta:
“O que é queres? Isto esta fechado!”
“Eu sei e peço desculpa. Mas eu só queria saber se a Jennie se
encontra aqui!” Respondo numa humildade angustiante.
Ele volta-se para trás e chama-a em voz alta:
“Jennie, tens aqui uma pessoa que quer falar contigo!” Voltando-se
para mim, ele diz num tom mais amigável:
“Podes entrar rapaz.”
Ao entrar, observo Jennie sair da cozinha, com a sua farda azul e com
as mãos cheias de pratos empilhados.
Admirada com a minha presença, ela pergunta:
“O que se passa?”
Expiro de alívio e encho-me de alegria ao ver que ela se encontra bem.
“Estás bem Jennie?” Pergunto ao caminhar na sua direcção.
Ela, sorri com um sorriso de quem não entende minimamente o que se
está a passar.
“Sim, mas o que e que aconteceu.”
“Não aconteceu nada. Apenas tive um pressentimento mau com
respeito a ti. Ainda bem que nada de mal aconteceu.”
Ela sorri e desvia o olhar para a mesa onde esta a por os pratos.
“Jennie?” Chamo-a carinhosamente.
“O que foi Jonathan?” Pergunta um pouco entediada.
Ao ver os seus belos cabelos aos caracóis, ouso tocar neles com a
minha mão direita.
Ela, por sua vez, desvia a cabeça da minha mão, negando aquilo que
333
anteriormente amava que o fizesse.
“O que se passa Jennie?” Pergunto completamente surpreso com a
sua acção negativa.
“Nada, estou na mesma. Porque?” Responde ela friamente.
“Não sei, sinto-te estranha hoje.” Pergunto completamente admirado
com a mudança dos seus sentimentos com respeito a mim.
“Jonathan!” Responde Jennie com um grande intervalo de tempo.
“Ontem fomos longe demais. Eu apenas quero um amigo, entendes.
Não preciso de nada mais. Agora se não te importas, tenho muito
trabalho a fazer e não me quero atrasar nas minhas tarefas.”
Responde em voz baixa mas com toda a seriedade do universo.
Nesse momento, sinto os pilares do mundo a desabarem sobre mim.
Como podia ser possível tal resposta? Nós amávamo-nos um ao outro,
como pode o amor desaparecer assim, de um dia para o outro? De
todos os sentimentos que já provei, a morte parecia o mais desejável
para mim. Não tinha mais razões para viver naquele momento.
Completamente desolado e com os ombros descaídos, retiro-me
lentamente daquele lugar sem saber que rumo deveria seguir. A
sensação de abandono faz-me sentir igual ao valor de um pedaço de
lata enferrujada, que desliza pela estrada fora ao sabor e dureza do
vento.
Apenas a palavra "porquê" se faz ouvir na minha mente.
Pego na bicicleta e dirijo-me para casa uma vez mais, sem ter a
mínima força para suportar mais um dia de trabalho.
Arrasado e sem mais energia para fazer seja o que fosse, fecho-me
em casa e resigno-me a ver o tempo a passar. As memórias do
harmonioso romance construído durante meses, tornam o meu ser
incrédulo com respeito ao que se passou. As seguintes horas são as
mais penosas e torturantes, especialmente quando me lembro das
cruéis palavras proferidas hoje por ela. Simplesmente não queria
334
acreditar que tal fosse possível. E por essa mesma razão, quando o
relógio aponta para as oito horas, tempo esse que nos costumava unir
todos os dias, opto por lhe telefonar.
A minha interminável espera pela sua resposta, faz o meu coração
bater tão forte como uma locomotiva a vapor.
“Quem fala?” Pergunta ela, com aquela voz de anjo doce. Tal voz
deixa-me perplexo em toda aquela doçura celestial.
“Estou sim?” Repete ao ver que ninguém lhe responde.
Finalmente, eu acordo do meu sonho e respondo:
“Olá Jennie, sou eu, o Jonathan!”
Ela suspira e responde.
“Olá Jonathan, o que queres?”
A sua reacção empedernida faz-me recuar um pouco, deduzindo de
antemão a sua clara posição relativo a nossa relação.
Sem nada a perder, eu abro completamente o jogo.
“Jennie, eu amo-te! Ontem a noite nós declaramo-nos um ao outro.
Como é possível que o nosso amor tenha terminado assim, sem mais
nem menos?”
Ela suspira e, após um curto intervalo silencioso, responde.
“Desculpa ter de te fazer sofrer tanto Jonathan. Mas a realidade é
esta: Tu não és o homem ideal para mim. Sei que fui longe de mais e
que a culpa é minha, mas alguém tinha de por fim a uma relação que
não daria a lado nenhum.”
“Como assim? Como podes ter a certeza disso?” Pergunto na ânsia
de saber o porquê de tudo isto.
“Jonathan! Peço-te que não me fales mais neste assunto, esta bem?”
Mais uma vez deitado por terra, respondo:
“Com certeza Jennie, não mais te perturbarei com tudo isto.”
“Tem uma boa noite Jonathan.” Despede-se ela, desligando o telefone
em seguida.
335
Se antes estava mal, agora encontro-me pior, como se me
pontapeassem no chão poeirento.
Simplesmente não podia nem queria acreditar, não que a nossa
relação pudesse terminar, mas sim, nas palavras frias e cruéis dela
que me ferem mais do que o fim do nosso relacionamento.
Completamente desmoralizado e com a mente fora do mundo, deito-
me sem ter vontade de comer seja o que for. O melhor que posso fazer
neste momento é desaparecer deste mundo, na esperança que tudo
passe rápido.
O leve e lento barulho de um engenho mecânico entoa na escuridão
onde me encontro. Do meu lado direito, a contrastar com as trevas
onde me encontro, uma pequena luz branca pisca intervaladamente
com números inscritos em cor verde-escuro. Finalmente, o número
zero aparece e o engenho silencia-se. Uma pequena porta retrai-se,
dando-me o vislumbre de um corredor inóspito e vazio, apenas
iluminado pela luz exterior que penetra através de um rectângulo de
vidro de uma porta no fundo do corredor.
Alcançando essa porta, abro-a apenas para observar uma parede a
minha frente e um aguaceiro que cai do céu ruidosamente. À minha
direita existem umas escadas em cimento que conduzem para cima,
para fora daquele buraco.
Ganho coragem e subo as escadas que transbordam em água.
Chego ao topo das escadas e, com o forte vento que me sacode o
corpo violentamente, observo uma enorme rua que circundada por
edifícios. O facto estranho é que não se vê viva alma em lado nenhum,
como se todos tivessem fugido dali sobe a ameaça de uma vindoura
explosão nuclear. Percorro o passeio fora, por entre os charcos de
água que se acumulam no chão e que escorrem para parte incerta
assim como eu, que me deixo arrastar por entre aquelas ruas sem ter a
mínima noção para onde ir.
336
Ao percorrer aquela estrada, noto uma particularidade única num
edifício grande e antigo, todo ele constituído em pura rocha granítica.
As seis grandes colunas em pedra e umas escadas largas que se
estendem até um patamar no topo, fazem deste edifício, uma
construção arquitectónica única nesta zona. A grande entrada no topo
do patamar convida-me a entrar para dentro dele. Subo as escadas
que escorrem água semelhante a um rio até ao topo do patamar
protegido da chuva. Subias as escadas, entro no edifício
cautelosamente, como se esperasse que algo ocorresse, na
curiosidade de obter uma resposta com respeito a minha localização.
Por dentro, o eco provocado pelo meu calcado molhado, indica a
ausência de tudo, um vazio completo, exceptuando um grande relógio
que se encontra centrado no alto de uma grande parede, mecanismo
esse, parado no tempo. No canto esquerdo, uma pequena bilheteira de
metal com um vidro a toda a volta indica a antiga presença de alguém
que vendera bilhetes a muito tempo atrás. Por baixo desse grande
relógio, uma entrada larga e alta indica o prosseguir do meu caminho.
Mantendo sempre mesmo passo, entro nesse novo compartimento,
apenas para me deparar com mais escadas em pedra, desta vez mais
estreitas que me conduzem a um andar que circunda todas as quatro
paredes mas sem cobrir as escadas. Subo por elas apoiando-me no
corrimão em pedra que acompanha toda aquela escadaria. Por fim,
chego ao topo desse patamar também vazio, varrido por uma corrente
de ar fria que invade todo aquele espaço. À minha frente encontra-se
uma entrada. A claridade do dia brilha intensamente, levando-me
direito a ela.
Uma vez ultrapassada a entrada, observo uma linha de comboio que
percorre o fundo do patamar onde estou. Por cima dele, uma cobertura
metálica é suportada por estreitas colunas de ferro negro posicionadas
na fronteira entre o patamar e o poço da linha-férrea.
337
Chove muitíssimo sobre a cobertura metálica, originando um ruído
estridente naquela estacão completamente desprovida de vida
humana.
Observo uns bancos encostados ao edifício nos quais eu me sento,
esperando que algo aconteça e me revele o caminho a seguir.
De um momento para o outro, a chuva para de cair fazendo-me
levantar do assento e caminhar até ao limite do patamar para olhar o
céu. Espantado, observo que o céu diluviano converteu-se de um
segundo para o outro num céu de um azul único. No silêncio
incomodativo daquele mundo, sinto inesperadamente uma mão que
me agarra o ombro direito. Petrificado de terror, não ouso voltar a cara,
mas sim, planear a fuga daquela aparente emboscada.
“Não tenhas medo! Sou eu, Volton.”
Respiro de alívio ao reconhecer que não se tratava de um inimigo.
“Que valente susto me deste, Volton!”
Ele sorri e responde com um ar de quem conhece o mundo em que
pisa.
“Neste mundo Jonathan, nunca, mas mesmo nunca permaneças de
costas quando uma situação ou cenário muda, seja ela qual for. A sua
mudança revela que alguém ou algo foi carregado no sistema.”
Profundamente admirado, escuto Volton, como se fosse um aluno a
ouvir o seu mestre.
“A propósito, quero elogiar-te pelo teu desempenho mostrado ontem
com respeito à emboscada sofrida, ao salvamento de Francesco e a
tua fuga. As tuas habilidades crescem muitíssimo a cada dia que
passa, algo para o qual, as defesas deste sistema não se encontram
preparadas.” Elogia Volton, em voz baixa.
Bem antes de Volton concluir o seu comentário com respeito a mim,
um som proveniente das linhas aumenta a cada segundo que passa,
anunciando a aproximação de algo grande. Uma dezena de segundos
338
depois, ouço o ruído de uma locomotiva que anuncia a sua chegada.
“Aqui está ele.” Responde Volton, sem tirar os olhos do comboio que
se aproxima lentamente.
“Para onde vamos?” Pergunto ao alçar a voz, devido ao ruído
provocado pela locomotiva que pára bem à nossa frente.
Volton, com as mãos no corrimão da carruagem e com a perna direita
já na escada, responde-me:
“Até ao confins da terra!”
Sem demoras, acompanho-o para dentro da carruagem. No momento
em que entro, a locomotiva reinicia a sua viagem com uma partida
confortável e silenciosa.
Absolutamente ninguém se encontra sentado naqueles enumeres
assentos de napa em castanho claro. Chegando ao fim daquela
carruagem, Volton abre a porta que interliga a unidade onde nós
encontramos com a próxima. Entrando nela, encontramo-nos
imediatamente com o Francesco, Sophie e Bland.
Apercebendo-se da minha presença, Francesco volta-se para trás e ao
ver-me, exclama:
“Jonathan!”
“Olá amigos.” Saúdo a todos em geral.
“Como é que estás?” Pergunta Sophie, sempre preocupada com os
sentimentos dos outros.
“Arrasado. Não esperava tal reacção por parte dela.”
“Com relação ao quê?” Pergunta Francesco.
Só o facto de puxar todas as lembranças ao de cima, cria-me um nó na
garganta, como se a culpa do fim da relação que tinha com a Jennie
fosse toda minha.
“A moça que tentei salvar ontem, que apenas não passava de uma
armadilha, mudou completamente de personalidade. Tinha-mos um
romance tão belo mas, dessa noite em diante, tudo mudou como que
339
do preto para o branco.” Respondo em ainda remoendo todos aqueles
sentimentos.
“Estranho!” Comenta Francesco, meditando naquilo que dissera.
“Não é assim tão estranho.” Contradiz Volton. Tal resposta faz o grupo
girar toda a sua atenção para ele.
“Como assim?” Pergunto-lhe surpreso com tal comentário.
“Só existem duas maneiras de cairmos numa emboscada neste
mundo. A primeira consiste em "pisar a linha", ou seja, impedir o fluxo
normal planeado e ordenado pelo oleiro. Qualquer actividade estranha
no seu mundo imite "ondas" facilmente detectáveis pelos seus
inúmeros tentáculos.” Responde Volton, com o seu habitual ar de
seriedade.
“É como tocares com um ramo uma leve corrente de um ribeiro, Se
acompanhares a corrente, nada acontece mas, se a desafiares, tal
objecto produzira pequenas ondas de atrito.” Ilustra Francesco.
“E qual é a outra maneira?” Pergunto com curiosidade.
Volton prossegue em voz baixa ao olhar-me bem nos olhos.
“A segunda e mais complexa é difícil de detectar do que talvez
possamos imaginar. Pensa bem, Jonathan. Qual é a maneira de seres
detectado neste mundo, sem que para isso necessites de fazer algo?”
Após um curto período de pensamento, a resposta vem-me a mente.
“Se revelar a alguém o sonho que tive. Tal pessoa se recordara
fazendo com que, quando ela entrar neste mundo, a sua mente
carregará a informação de que o seu subconsciente foi vasculhado,
lançando assim, o alerta de intrusão.”
“Muito bem!” Responde Volton. “Será que algum dia revelaste-lhe
algum sonho?”
“Não, acho que não!” Respondo-lhe ao mesmo tempo que,
incansavelmente, procuro por algum detalhe que talvez me pudesse ter
fugido, detalhe esse, sempre contradito pela precaução e cuidado que
340
tive em nunca revelar a minha posição.
Não demora muito tempo até vir à superfície da minha memória, um
episódio que me deixa completamente de rastos.
“Há muito tempo atrás, bem antes de vos conhecer, eu sonhei com
essa rapariga. Sonhei que ela usara um acessório no cabelo e,
achando interessante o que vira naquela noite, acabei por lhe contar o
seu sonho.”
“E qual foi a sua reacção?” Pergunta Sophie.
“Lembro-me de ela parar subitamente e, com um ar sério, reflectir
naquilo que eu acabara de dizer. No princípio, pensava que ela poderia
apenas estar a pensar nas minhas palavras mas, agora entendo que, o
que acabara por fazer, deduziu-se em trazer o seu sonho ao seu
consciente.”
“Apartir daí, o vosso relacionamento amigável mudou por completo.
Ela tornou-se mais meiga e se aproximava de mim o mais que podia.”
“Bingo!” Exclama Volton. “Aí tens a resposta à tua pergunta. Tu destes
a tua posição e a dela a este sistema. Ele manobrou-a como tua
melhor amiga ou amante para te conduzir a uma armadilha. Sendo que
ele falhou o seu propósito, a mascara que ele colocou nela, caiu após
essa trama, revelando os seus verdadeiros sentimentos.” Deduz Volton
com toda a clareza do mundo.
Ao ouvir tais palavras, encosto-me em silêncio no banco com a cabeça
para cima, meditando em tudo o que ele acabara de dizer.
Não queria acreditar que todo aquele romance que floresceu entre nós,
poderia ser apenas uma manobra de sedução cruel.
O tempo passa e a viagem decorre tranquila e suavemente. Olho pelo
vidro da janela como se ele fosse uma tela de um retroprojector
coligando as minhas memórias. Com os olhos postos lá fora, mas com
a mente na Jennie, vou revivendo tudo aquilo que se passou entre nós,
todos os bons momentos que partilhamos.
341
Até a sua própria face, fruto da imaginação da minha mente, consigo
ver reflectida no vidro. Olho com atenção para tal imagem maravilhosa,
apenas para meditar naquilo que perdera. Focando o meu olhar em tal
imagem, observo a face da Jennie no vidro a se converter na face
igualmente bela de Sophie, que me olha através do reflexo do vidro.
Apercebendo-se de que, acidentalmente estou a observa-la, ela
timidamente desvia o seu olhar de mim. Sorrateiramente, olho para ela
através do reflexo do vidro, observando as belas feições da sua face
miúda, do seu nariz fino e delicado, do seu cabelo liso castanho claro
sempre apanhado. Pergunto-me como serão aqueles cabelos na sua
esplendorosa liberdade. Mas o que mais me impressiona não e a sua
beleza delicada mas sim, a forca incansável que possui, diluída numa
bondade e carinho infinitos. O meu olhar não passa despercebido e,
desta vez, é ela quem olha para mim através do reflexo. Não querendo
incomoda-la, desvio o meu olhar para aquilo que se passa lá fora.
A cidade deserta onde estávamos desapareceu por completo, dando o
vislumbre de uma planície infinita de vegetação dourada, devido a
secura que não mais suportou.
“Estamos a chegar!” Deduz Volton com muita seriedade, sem tirar os
olhos da janela.
“Como é que tu sabes?” Pergunta Bland em nome de todo o grupo.
“Tenho uma forte percepção de que será por aqui perto.”
Ainda Volton não tinha acabado a fase, quando o grande comboio
inicia o abrandamento.
“Preparem-se, temos de ser rápidos!” Alerta Volton, levantando-se do
assento e dirigindo-se para a saída.
Sob o seu comando, todos nos levantamos com alguma ansiedade e
nervosismo, sem saber o que aquela planície infinita poderia vir a
oferecer.
Por fim, o comboio imobiliza-se completamente, avisando-nos de que a
342
saída deverá ser iminente.
Uns atrás dos outros saímos da carruagem para o mundo deserto a
nossa volta. Por todo o horizonte, a única elevação que existe por toda
aquela área é o comboio que contrasta com a natureza árida. O calor
que se sente constrói um ar abafado, fazendo-nos transpirar a cada
passo dado. Um silêncio inóspito causa arrepios, especialmente
quando não se sabe onde se está a pisar.
Volton, após olhar em todo o redor, aponta o dedo em sinal de decisão:
“Por ali! O que procuramos está naquela direcção.”
A caminhada inicia-se por aquela vasta planície, possuindo apenas
Volton como nossa bússola.
Sophie aproxima-se de mim, caminhando lado a lado comigo. O meu
coração estremece ao recordar a mesma sensação que sentia quando
estava com Jennie. Ela era uma pessoa muito especial para mim e
ainda continua a ser um grande exemplo para todas as mulheres mas,
a Jennie nunca se importou com o que me passava na alma, na ânsia
de curar as feridas abertas nela. Não que fosse por má intenção, pois
era o Oleiro que a manobrava. Sendo ele um ser insensível e cruel,
como poderia ele implementar o toque do verdadeiro amor nessa
relação?
Sophie, ainda ao meu lado, comenta o dia que passou, dizendo:
“Gostei muito da tua actuação de ontem, Jonathan. Ninguém
acreditava que poderias sair com vida daquela emboscada, quanto
mais, imaginar que poderias vir ainda a salvar Francesco.”
“Era o meu dever Sophie. O que fiz a Francesco não é nada em
comparação ao que eu estaria disposto a fazer por ti.” Respondo sem
saber ao certo o que digo, provocando um pequeno embaraço há
muito desejado em Sophie.
“Vamos camaradas, não estamos longe.” Responde Volton a caminhar
na frente do grupo, com o seu olhar fixado no horizonte de um amarelo
343
infinitivo. Como pode ele ter certeza disso quando, aquilo que apenas
vemos, é um deserto plano desprovido de vida? Embora todos
raciocinem da mesma maneira, ninguém tem a ousadia de questionar
a vasta experiência de Volton.
Percorridos alguns metros, o paradoxo de Volton começa a ganhar
uma feição visível, quando começo a distinguir uma diferente textura
da vegetação seca a nossa frente. Nas primeiras centenas de metros,
a vegetação é distinguível em todos os seus pormenores mas, fora
desse limite, a restante vegetação que se estende ate ao horizonte
longínquo, possui uma textura indistinguível, como se estivesse muito
longe da anterior.
Um vento árido que se fazia sentir é convertido num vento húmido e
fresco. Apenas se houve o ruído das ervas secas a estalarem por
baixo dos nossos pés. Um ruído grave e perturbador ruge bem perto
da nossa posição, anunciando a presença de algo monstruosamente
forte. A pulsação bate cada vez mais forte à medida que nos
aproximamos daquele Harmagedom que emerge do solo. Olho para
Volton que segue destemido em frente, sem que nada o demova.
Volto-me para o lado esquerdo e observo Francesco que, por sua vez,
olha em silêncio para mim, com um ar preocupado. Bland vem atrás de
mim com o seu característico ar sério, nada receoso com a fera que
poderá sair daquele chão.
A medida que caminho, começo a ver uma linha castanha clara
constituída por rochas que se estende numa linha horizontal,
separando a textura compreensível daquela indecifrável. A cada metro
que percorremos, mais profunda se torna aquela muralha de escarpa
rochosa e mais intenso o barulho se revela.
O nosso passo apressa-se, acabando por converter o receio numa
curiosidade descomedida.
Por fim, chegamos ao limite da caminhada, sem querer acreditar no
344
que os nossos olhos contemplam. Pasmados e boquiabertos com a
majestosa e poderosa visão, ninguém possui forcas para descrever,
nem mesmo com uma única palavra, aquilo que a nossa mente permite
visualizar.
Bem à nossa frente um profundo precipício de escarpas rochosas, guia
um gigantesco rio através das suas formas irregulares, culminando
numa imponente barragem que suporta tamanha massa de água com
toda a serenidade possível. Do outro lado da barragem, um enorme
abismo negro e sem fim dá continuidade as escarpas que se estendem
pelo restante horizonte infinito. Desse mostro de betão cinzento, jorra
um grande jacto de água, que se precipita no abismo. Sendo o seu
fundo irreconhecível, o fluxo de água dispersa-se no ar e evapora
nesse penhasco temível.
"Apenas os que arduamente a procuram nas profundidades do
conhecimento a encontrarão". Cita Volton as palavras do velho dos
moinhos.
“As águas do conhecimento convergem neste ponto.” Responde
Francesco.
“Isso quer dizer que, o portal estará ali, algures na profundidade deste
rio.” Comenta Sophie sem tirar os olhos do abismo.
“Como é que descemos até lá?” Pergunta Bland.
Enquanto que o grupo procura em uníssono um caminho, eu olho
atentamente para um mecanismo de grandes rodas metálicas,
completamente enferrujadas, que suportam longos cabos de aço, que
terminam num poste próximo da barragem.
Aproximo-me desse mecanismo metálico e observo-o com muita
atenuado o seu imóvel funcionamento.
“O que estás a ver, Jonathan?” Pergunta Sophie em voz baixa, bem
perto de mim.
“Acho que descobri a maneira de descer-mos até lá.” Respondo com o
345
pensamento focado naquele engenho enferrujado.
Sophie toca suavemente na velha cabine do teleférico com um olhar
atento e perscrutador.
“Achas que isto nos levara até lá em baixo? Duvida Francesco, céptico
quanto a ideia de descer em tal engenho degradado pelo tempo.
“É apenas um mono cabo, no entanto, deve suportar-nos a todos.
“Só existe uma maneira de o saber.” Respondo ao olhar para aquele
veículo aéreo. Tentando.” Respondo ao deixar claro que a única
solução existente é aquela mesma.
Abro a porta que da acesso ao interior da cabine e entro para dentro.
Atrás de mim, entram os demais, provocando uma leve oscilação nos
cabos.
“Será que isto aguenta connosco?” Pergunta Bland, preocupado com
o seu único ponto fraco, a vertigem.
“Um mecanismo como este tem a capacidade para suportar o triplo do
nosso peso.” Tal resposta de Sophie deixa o grupo um pouco mais
descansado até a sua próxima observação, quando ela argumenta,
dizendo - Mas talvez não no estado em que está.”
“Que bom!” Ironiza Volton. “As minhas preocupações são apenas
águas passadas.”
O velho teleférico possui apenas dois botões, com uma seta para cima
e outra para baixo. Carrego com firmeza no botão que tem a seta para
baixo. Nesse momento, o mecanismo começa a ranger, para logo de
seguida, iniciar a sua descida lentamente. Sophie, receosa com a
viagem dá-me a sua mão e a segura firmemente. Pela primeira vez
sinto Sophie, nem que seja através de uma visão irrealista. Bland, de
olhos fechados, segura-se ao corrimão colocado por debaixo das
quatro janelas, como se o chão pudesse ceder a qualquer momento.
Lentamente e sem muito aparato, chegamos à pequena estacão
instalada próximo da barragem. Abro a porta e contemplo o
346
enormíssimo barulho que aquelas gigantescas massas de água
provocam ao sair da barragem. O grupo não se contem de tremor ao
observar as duas enormíssimas muralhas de escarpas que se
estendem pelo rio a cima.
“Amigos, não se esqueçam da regra básica. Estamos numa zona
neutra, perder a vida aqui, significa a morte no mundo real.
Mantenham-se unidos.” Adverte Volton.
A sombra provocada pelo buraco onde estamos, associada a
gigantesca massa de água, provoca um ar frio capaz de arrepiar
qualquer humano.
Volton segue na frente e todo o grupo o acompanha de perto, olhando
nele, como a única solução para atingir o fim daquele labirinto
complexo.
Ele dirige-se a uma pequena estrutura de betão quadrada com três
metros quadrados, semelhante a uma pequena casa de arrumos. Ele
abre a porta verde que lá se encontra num dos quatro lados. Tal
pequeno compartimento dá acesso a umas escadarias em cimento que
nos conduzirão definitivamente para baixo. Volton desce as estreitas
escadas seguido por mim, Sophie, Francesco e por último, Bland.
À medida que descemos por entre os males iluminados degraus para o
ventre daquele mostro de betão, o ruído místico das turbinas em
máxima rotação aumenta cada vez mais.
Após vários minutos de descida, chegamos por fim a uma porta de aço
metalizada com um sinal que diz " Proibida a entrada de pessoas não
autorizadas".
Todos passamos por ela, dando entrada na grande sala das máquinas.
Em cima de um patamar metálico, observamos em baixo inúmeras
turbinas vermelhas que produzem um ruído estridente, acompanhadas
por imensas alavancas e barómetros que controlam o seu
funcionamento. Volton desce as escadas metálicas até ao piso em
347
baixo, acompanhado em seguida por todos nós.
Ninguém pronuncia palavra que seja pois, seria escusado devido ao
intenso barulho que emana das turbinas. Volton dirige-se a uma outra
porta blindada do outro lado da sala. Ele entra seguido por todos nós
num estreito mas extenso corredor também ele, fracamente iluminado
por umas amareladas lâmpadas no tecto.
O silêncio impera nesse corredor, absorvendo o ruído das turbinas de
há pouco. No fim desse corredor, mais escadas aparecem, fazendo-
nos descer cada vez mais no coração daquele enorme rio. Mais
minutos decorrem até chegarmos a uma outra porta blindada. Volton
abre a porta deixando o som de uma forte torrente de água invadir as
escadas que finalizamos de descer. Desta vez, o enorme espaço desta
sala é marcado por corredores metálicos que flúem em diversas
direcções e em alturas diferentes. Um enorme poço com quase trinta
metros de largura, divide o enorme compartimento, coligado um ao
outro apenas por uma estreita passagem metálica. Naquele poço, a
oito metros de profundidade, corre uma enorme e imponente massa de
água, que alimenta as turbinas dos gigantescos geradores do piso de
cima. Descemos as escadas metálicas, analisando criteriosamente
cada metro daquele espaço gélido e bem iluminado.
“Tem de haver aqui uma outra passagem.” Responde Volton a olhar
para todas as direcções.
“Estamos no leito do rio?” Pergunta Francesco.
“Este é o sítio mais profundo que podemos aceder.” Responde Volton
sem tirar os olhos daquelas paredes.
O grupo dispersa-se em busca do grande portal tanto aguardado,
vasculhando cada centímetro quadrado daquele espaço. Sophie
decide procurar o portal junto a mim, como uma verdadeira
companheira que sabe trabalhar em equipa.
As aventuras que vivemos juntos neste mundo, com todos os seu
348
perigos e mistérios, descobrem a escondida identidade dos nossos
corações, à medida que a intimidade e a envolvente paixão arde em
nós, aumenta cada vez mais a sua intensidade.
“Isto está difícil.” Responde Bland na sua busca infrutífera da porta
desejada.
“Concordo plenamente contigo!” Exclama Francesco.
“Não desanimem!” Encoraja Volton. “Tem de ser aqui.”
Quanto mais o tempo passa, mais aumenta a ânsia e a decepção.
“Isto não está a levar a lado nenhum.” Comenta Sophie.
O único sítio não estacionado parece ser o menos provável. Dirijo-me
para o posso e, debruçando-me, tento encontrar algum indício, um
espaço, uma fissura que revele algo lá escondido. O que observo é
apenas betão e uma fortíssima corrente de água que corre para trás de
mim, bem debaixo dos meus pés.
“Tem de ser aqui! Não existe outro lugar.” Insiste Volton.
Com as palmas das mãos no gradeamento metálico daquela grande
abertura e ao som daquela torrente de água, a minha mente procura
uma alternativa viável que não seja retornar para trás. No silêncio da
procura e da minha meditação, o som dos geradores lá em cima ainda
se faz ouvir, embora muito abafado pela corrente que passa bem por
baixo de mim. Olho para Sophie que colabora com o restante grupo,
activa, carinhosa, séria e preocupada. A sua grande beleza reside no
seu íntimo, beleza tal, capaz de ofuscar o seu próprio exterior belo.
Ela olha de repente para mim e sorri. Eu sorrio também com algum
embaraço, acabando por desviar o meu olha dela. O tempo cura as
feridas e atrás de uma montanha, outra maior se ergue. Estar com
Sophie é como reviver das cinzas novamente, sentir um novo mundo
pela frente, acompanhado por alguém que nos ama, disposto a
partilhar o que a vida traz de bom e o menos bom.
Enquanto que me deleito a observa-la no silêncio daquelas buscas,
349
apercebo-me que o leve ruído das turbinas deixou de se ouvir por
completo. Tento ouvir com atenção o seu barulho mas em vão. Volto-
me para o poço ruidoso e observo algo anormal. O fluxo de água corria
da minha frente para trás das minhas costas. Agora, o fluxo corre na
direcção oposta, bem para a minha frente. A mudança repentina de
cenário, conforme explicado por Volton, desperta em mim um alerta
vermelho de que algo estará prestes a acontecer.
Ainda a pensar no sucedido, ouço um grande estrondo vindo de cima.
Tal ruído interrompe as buscas do grupo.
A única porta metálica que aquele grande compartimento possui é
aberta violentamente como se fosse um dos portões do Coliseu, a abrir
a sua boca para o terrível divertimento.
“Protejam-se!” Foi a única palavra que consegui proferir ao ter o
pressentimento de que algo mau iria começar.
Sem saber o porque, o grupo lentamente abriga-se para ser
rapidamente surpreendido por uma chuva de balas interminável.
“Estamos cercados!” Clama Francesco, protegendo-se atrás de um
enorme tubo de aço. Os agentes descem rapidamente as escadas
metálicas, num número aparentemente interminável.
“Isto vai ficar feio!” Exclama Bland.
Olho para todos os lados, em busca de uma saída naquela jaula de
betão. Contudo, a única saída que observo é resistir ao ataque.
“O que fazemos agora?” Grita Sophie por entre o ruído de um mar de
balas, encostada a uma parede de betão.
O grupo olha para mim, dando-me a responsabilidade total por esta
operação.
“Só existe uma solução. Lutar ate ao fim.” Respondo pensativo.
“Mas isso é suicídio!”Exclama Volton
“Temos duas opções, ou tentamos o suicido numa ousada resistência,
ou esperamos aqui sentados pela nossa execução.
350
O grupo entende a mensagem e, em uníssono, todos concordam na
resistência e na luta antes da rendição.
Olho em redor, por entre o emaranhado de tubos, cabos eléctricos,
escadas metálicas e passagens areias em busca de um plano que não
demore muito a aparecer.
Um plano surge de imediato na minha mente, no momento em que nos
encontramos barricados naqueles engenhos metálicos.
“Não podemos defronta-los directamente. A única hipótese que temos
é de o fazer de uma forma rápida, ludibriando-os por entre tudo que
possa servir-nos de protecção.”
“Eu concordo.” Responde Volton. “A única forma é a aproximação
indirecta.”
“Conta comigo irmão!” Responde Francesco.
Silenciosamente, Bland pisca o olho em sinal de aprovação.
Faço um sinal para Sophie, ordenando-lhe que se mantenha protegida
na barricada em que se encontra. Ela, por sua vez, concorda com a
minha ideia. Sabendo que ela está protegida, o temor de uma luta
feroz diminui grandemente em mim.
Num único sinal meu, todo o grupo se dispersa naquele labirinto
metálico, obrigando os bloqueadores a se dividirem rapidamente.
Neutralizado o ataque com armas de fogo, os agentes se preparam
para uma violenta luta de corpo a corpo. Cada um de nós luta
intensamente, sempre com o cuidado de não se deixar cercar,
excepção essa, abolida por Bland que, num único golpe, lança dois
deles no poço turbulento. A sua aparência atemoriza qualquer mortal,
mas ver Bland na sua plena fúria, é como assistir ao colapso do inteiro
mundo. Sem as suas armas de fogo e com apenas um bastão de ferro,
Bland despedaça o inimigo como Sansão os filisteus. Usando a
excelente estratégia de não perder muito tempo com cada bloqueador,
o seu número reduz-se a passos largos, restando a proporção de dois
351
agentes para cada um de nós. A luta torna-se cada vez mais intensa à
medida que o tempo passa pois, os seus níveis de defesa e ataque
evoluem a cada contactado que tem connosco. Cercado e exausto de
tanto lutar, vou sendo encurralado aos poucos contra o grande poço.
Nenhum de nós consegue obter um desempenho positivo, nem por
mais pequeno que ele seja.
O suor escorre-nos pela face à medida que todos os golpes árduos
que efectuamos, são facilmente neutralizados pelos agentes. O
sentimento de impotência, desmancha a esperança positiva com
respeito a uma vitoriosa defesa. Nesse momento, estando
completamente cercado por eles, ouço um gemido que se apaga
rapidamente. Volto-me para trás, para o outro lado do compartimento,
dividido pelo grande poço e vejo algo que me esmorece
completamente por dentro.
“Não!” Clamo em angustia profunda, com o que vejo.
“Alguém a ajude!” Clama Francesco em pânico.
Os bloqueadores haviam apanhado Sophie com o objectivo cruel de a
entregar a morte.
De joelhos no chão, Sophie é lentamente estrangulada por um cabo de
um dos dois bloqueadores que a cercam. O assassino olha-me nos
olhos com um sorriso pérfido, de quem toma conhecimento do
sofrimento que me causa.
Ao ver a sua amiga a jazer aos poucos no chão, Bland despedaça com
toda a fúria os dois agentes que o mantinham preso, como se fossem
meros pedaços minúsculos de madeira seca. Francesco, num hábil
gesto acrobático, liberta-se deles. Ambos correm pelas escadas
metálicas com o objectivo de atingir o outro lado.
“É tarde demais!” Admito ao ver o gesto infrutiferamente demorado de
Bland e Francesco.
Os lindos olhos azuis de Sophie convertem-se no branco globo ocular.
352
Descongelada a minha paralisia mental, volto-me para os dois agentes
e, em apenas alguns simples mas convictos golpes, lanço-os no
abismo profundo. Sadicamente, os dois agentes que aprisionam
Sophie, riem-se ao observar a nossa incapacidade em salvar um dos
seus membros numa zona neutra, à medida que Sophie se encontra
na sua agonia final.
Olho imediatamente para o chão e observo uma arma que um dos
agentes deixara cair. Pego rapidamente nela e, à medida que Bland e
Francesco correm desesperadamente por aquele corredor metálico,
aponto a mira no agente que estrangula Sophie. Ao ver a minha
reacção, o agente da gargalhadas de puro sadismo e desprezo pela
minha actuação, sabendo ele que eu nunca pegara antes numa arma
de fogo.
“Não vais conseguir Jonathan. Não tiveste a experiência no mundo
real!” Exclama Volton, ainda ocupado com dois agentes.
As palavras de Jaime obscurecem o conselho de Volton, redobrando
toda a minha concentração no alvo a frente. O ruído estridente de tudo
o que se passa a minha volta desaparece num compasso rápido.
Naquele momento, apenas conseguia sentir a arma e observar o alvo,
tudo em meu redor tornara-se negro. Primo o gatilho e, como que em
câmara lenta, a bala sai do cano da arma e voa pelo poço fora até
atingir o agente bem no peito, deitando-o completamente por terra.
“Não é possível!” Exclama Volton, como se estivesse a sonhar com
algo completamente irreal. Nem mesmo o agente junto a ele tem a
capacidade mental de acreditar no sucedido. Nesse momento, Sophie
põe as mãos na garganta ferida e começa a tossir compulsivamente.
Vendo que ela sobreviveu ao primeiro ataque, o agente rapidamente
se volta para a parede, dando um golpe com o cotovelo num vidro de
uma caixa de socorros a incêndios. Com uns olhos de besta postos em
mim, o bloqueador vasculha o interior da caixa por entre os pedaços de
353
vidro que lá se encontram. Finalmente, ele encontra o que quer e,
retirando o seu braço, eu visualizo o pior. Com um machado nas mãos,
ele prepara-se para eliminar Sophie de uma vez por todas.
Ele levanta o braço enquanto que Sophie, de joelhos e sem
capacidade para gritar, observa o seu gesto em grande aflição. A
adrenalina toma conta de mim, guiando-me para cima do gradeamento
do poço. Ninguém entende o porquê de tal acção da minha parte ao
colocar-me do outro lado da vedação, bem perto do abismo com
quinze metros de largura. Apenas foco o meu olhar no agente, assim
como o falcão foca o seu olho infalível na sua presa. Num único e
fulgurado impulso, atravesso aquele abismo como se ele não existisse,
dobrando completamente a vedação em aço, como se de um fino
arame se tratasse. Pálido e terrificado com a visão, o agente
interrompe a sua acção, apenas para sentir o seu corpo a penetrar
dentro do betão com o impacto sofrido.
Os outros agentes que ali ainda se encontraram tomam a decisão de
escapar rapidamente dali. Sobem as escadas e trancam a única porta
daquele compartimento.
Cheio de pó de cimento devido a violenta colisão balística, aproximo-
me de Sophie, ainda a recuperar do ataque sofrido e da visão que
acaba de ter.
“Estas bem?” Pergunto ao colocar a mão sobre a sua cabeça. Tento
levantá-la lentamente do chão mas sem a pressionar muito.
“Como é que conseguistes?” Pergunta Sophie, ainda com a voz rouca.
“Não sei explicar. Senti a capacidade de o fazer!”
“Foi inacreditável!” Exclama Francesco.
“Nunca vi nada assim!” Responde Bland com um ar admiradíssimo.
“Não pode ser possível!” Exclama Volton em voz baixa.
“Que interessa se é possível ou não! Ele salvou milagrosamente
Sophie.” Contradiz Francesco em pura êxtase.
354
“A tua mente ultrapassou os limites e leis impostos pelo criador do
mundo 7.” Responde Volton admirado. “Ela está a atingir o patamar
ilimitado!”
“O que queres dizer com isso?” Pergunto admirado com tal facto.
“Significa que estás prestes a libertar-te completamente deste mundo,
não tendo absolutamente nenhum limite nele.” Explica Volton, ainda
incrédulo com tal visão.
Nesse momento, ainda com a frase por concluir, um estranho rumor
abate-se numa forma de eco por todo aquele compartimento. O nível
da água que corre no fundo daquele poço, aumenta vertiginosamente.
“O que se esta a passar?” Pergunta Sophie, amedrontada com aquela
estranha situação.
Logo em seguida, inúmeras fissuras no betão, rasgam aquela grande
sala de um lado ao outro, seguido por breves tremores que estalam
pedaços de betão do tecto.
“Não acredito que tenham feito isto!” Exclama Volton, profundamente
revoltado e preocupado ao olhar para o tecto.
“O que e que se passa afinal?” Pergunta Bland, nervoso com tanto
mistério.
“A barragem está a entrar em colapso. Temos de sair daqui!”
Todos corremos em direcção à porta de saída, na única esperança de
sair dali.
Francesco abre a porta mas eis que algo de estranho acontece. O
anterior corredor que ali estava não existe mais, apenas um muro de
betão se ergue na sua vez.
“Eles mudaram o cenário!” Ruge Volton furiosíssimo com a situação.
As fissuras começar a jorrar água gradualmente, lançando o alerta
vermelho. A água que emerge do poço já submergiu o patamar inferior.
“Tem de haver uma saída!” Clama Sophie aterrorizada.
Os pequenos jorros de água que emanam das paredes tornam-se num
355
curto espaço de tempo em cascatas, inundando e derrubando algumas
pontes metálicas que acedem a outra parte do poço.
Com o suor frio a escorrer-me pela face, tento localizar um ponto alto,
que nos permita ter mais tempo para formalizar um plano de fuga.
Do outro lado do compartimento, existe umas estreitas escadas
verticais que culminam num pequeno patamar metálico, bem acima de
todos os outros. Sem tempo a perder, eu clamo:
“Por aqui! Temos de subir até aquele topo.” Todo grupo me segue, à
medida que as pesadas paredes de betão se desmoronam como
esferovite, deixando as potentes massas de água inundarem com
rapidez aquele compartimento. Olho para traz e observo a corrente a
derrubar a nossa passagem aéria, aproximando-se cada vez mais.
“Rápido, subam até ao topo!” Ordeno com urgência, segurando-me na
escada vertical com uma mão e impulsionando Sophie, Volton e Bland
por elas acima.
O peso das águas faz a estrutura metálica, onde nos encontramos,
dobrar para a esquerda, anunciando o seu imediato colapso.
“Corre Francesco!” Clamo para ele, que por sua vez, se apressa
rapidamente em alcançar o ultimo reduto, as escadas que dão acesso
ao último patamar. Estando ele já a poucos metros de mim, observo a
estrutura metálica a desabar como um dominó no abismo turbulento.
“Salta!” Clamo ao máximo da minha voz.
Milésimos antes da estrutura fugir-lhe debaixo dos seus pés,
Francesco impulsiona-se num vigoroso salto, agarrando a minha mão,
no último instante de tempo possível. Suspensos sobre o abismo, tento
alcançar num esforço desmesurado, uns degraus mais acima.
Finalmente, Francesco alcança um dos degraus da escada, facilitando
a nossa árdua subida. Todos alcançam o topo que, por sua vez, não
possui saída possível, apenas nos concede mais algum tempo para
pensar no que fazer.
356
Olhando para baixo, observo o grande compartimento completamente
inundado num turbilhão de águas furiosas.
“E agora, o que fazemos?” Pergunta Sophie, dominada pelo medo.
Desmoralizado, Volton diz:
“Nada, espera apenas pela morte.”
“Tem de haver uma solução!” Respondo com o objectivo de dar ânimo
ao grupo.
“Não posso crer que chegamos tão longe, apenas para morrer-mos
nesta jaula!” Exclama Bland, dando um murro de ira num quadro
eléctrico. A sua forca bruta, dobra a frágil porta vermelha.
Na minha curiosidade, aproximo-me dessa porta e abro-a lentamente,
enquanto que o grupo se concentra em observar o imparável nível da
água a subir.
Arranco os inúmeros fios multicolores que se interligam no quadro
eléctrico, obtendo um resultado não esperado, contudo, desejado.
“Venham aqui, rápido!” Ordeno empolgado com a minha descoberta.
Escondida por entre o emaranhado de fios eléctricos, uma pequena
passagem, extremamente estreita, jazia ali. Avanço por ela de lado,
com estrema dificuldade, por entre aquele sombrio e estreito espaço.
Todos me seguem, na esperança de chegar a algum sítio seguro. O
árduo corredor minúsculo termina numa outra pequena porta metálica.
Abro essa porta e visualizo aquilo que tanto esperava. Numa sala
circular com uma abobada em betão, uma porta blindada de cor cinza
metálica, com grandes parafusos que a suportam em seu torno, ergue-
se bem na minha frente.
“O portal!” Exclama Volton numa alegria infinita.
Todos corremos em direcção a essa porta a qual, é aberta
rapidamente por Volton. Sophie entra seguida por Francesco, que mal
pode conter de tanta alegria. Olho para a abobada acima, e observo de
um momento para o outro, jactos de água que a perfuram
357
violentamente.
“Anda Jonathan, isto está perto do colapso total!” Clama Volton com
autoridade.
Olho para a porta de metal e observo Bland, com o seu corpo robusto,
a tentar passar com todo o sacrifício por aquele estreito corredor.
“Anda Bland!” Clamo impaciente, já com água pelos tornozelos.
“Só mais um pouco, estou quase lá!” Responde Bland.
Partes de betão cedem da abobada, inundando aquele pequeno
espaço circular.
“Fecha a porta Francesco!” Ordena Volton.
“E Bland? Não o podemos deixar morrer!” Suplica Sophie por
misericórdia.
“Fecha a porta! Se não a fechares, morreremos todos!” Repete Volton
com um ar amedrontador.
Eu apenas segurava aquela porta do Hades, esperando pela salvação
de um amigo, correndo o risco de nos condenar todos a morte.
“Espera Jonathan, estou quase!” Suplica Bland.
“Rápido amigo!” Clama Francesco
“Fecha a maldita porta!” Clama Volton impaciente. “Queres condenar-
nos todos a morte?”
A decisão cruel tem de ser tomada. Bland, escorrendo em suor,
encontra-se longe demais da saída. Por sua vez, a infra-estrutura
ameaça ceder a qualquer momento. A água chega aos joelhos e
ameaça subir continuamente. O betão começa a rachar e a cair em
pedaços.
Volton põe a sua mão no meu braço que segura a porta e diz-me com
toda a calma do mundo
“Amigo, nem todos podem ser salvos nesta missão. Tu tens de chegar
ao fim, nem que tenhamos que pagar um alto preço por essa decisão.”
Volto-me para Bland, que ao ver-me a olhar de tal maneira e com água
358
pela cintura, desiste do seu árduo esforço.
“Não!” Exclama Sophie em voz baixa, chorando ao ver um amigo fugir
por entre os dedos. Francesco deixa escapar as suas lágrimas. Eu, por
minha vez, com um grande nó na garganta, fecho lentamente a porta
sob o olhar triste de Bland.
Perder alguém na nossa impotência em salva-lo é cruel mas, vê-lo
desaparecer deste modo, tão perto do fim é deveras terrível.”
A porta fecha-se quase por completo, deixando apenas um estreito
feixe de luz quando, novamente, as palavras de Jaime voltam-me a
entoar na cabeça como se ele estivesse ainda vivo por ali, indicando-
me o caminho a tomar.
“Francesco, segura a porta!” Ordeno ao abrir a porta e a irromper por
entre aquele espaço em pleno colapso, repleto de água ate ao peito.
“Isto é uma insensatez!” Volta já!”Clama Volton como um louco.
“Volta para lá!” Ordena Bland.
Deito as mãos em Bland e respondo-lhe:
“Já me vistes deixar um amigo para trás?”
Bland sorri com as minhas palavras, dando-lhe um poder extra para
sair dali.
Francesco aproxima-se rapidamente, ajudando-me a tira-lo da sua
sepultura estreita.
Num esforço conjunto, misturado por uma intensa adrenalina
arrepiante, Bland sai por fim das entranhas da morte. Desviando-nos
por entre os pedaços de betão que caiem perto das nossas cabeças,
todos atingimos a porta. Nesse preciso momento, antes que tivesse
tempo para a fechar, um rio potente de água destrói aquele estreito
corredor fazendo desabar por completo todo o complexo. Vejo um
grande remoinho de água que distorce completamente a imagem que
obtivera daquele complexo. Volton fecha a porta com rapidez e…
Acordo.
359
Capitulo 16
Com os olhos bem abertos, giro a cabeça para os dois lados, ainda
com o corpo a tremer da situação passada.
Por fim, ao tomar conhecimento da minha presença no mundo real,
respiro de alívio por saber que conseguimos retornar todos sãos e
salvos daquela armadilha infernal.
À medida que avançamos em direcção ao centro do cérebro do mundo
7, as defesas vão aumentando e o intrincado sistema de segurança,
limita os nossos passos cada vez mais.
Levanto-me da cama para enfrentar mais um dia, não muito diferente
dos outros, sem a Jennie a fazer parte da minha vida, contudo, sempre
de cabeça erguida.
Chego ao trabalho para dar inicio a mesma rotina de sempre, com os
mesmos clientes de sempre e as situações diárias que nunca mudam.
Na hora exacta, o almoço inicia-se, como se a humanidade fosse
programada para obedecer aos parâmetros ditados por um mero
relógio de parede ou de pulso. O curto espaço de tempo para
abastecer o corpo termina, ordenando o regresso à jaula profissional
que nos susterá pelo resto da nossa existência aqui na terra.
Terminado o tempo, mais um ciclo chega ao seu fim, anunciando o
terminar de mais um dia na nossa curta vida. Dia esse, passado em
vão, na mera e corriqueira estafeta do dia a dia.
Dizem que o ser humano é livre e independente, criativo e original. A
evidência da vida demonstra claramente o oposto. O homem não
passa de uma pequena roda dentada, inserida na gigantesca
embraiagem da humanidade, que avança e pára, acelera e abranda ao
360
sabor do tempo, obrigando a cada ser humano a girar no mesmo fluxo,
tempo e velocidade. Quem ousa desobedecer e lutar contra a corrente,
simplesmente se despedaça e é rapidamente substituído por outra
peca, exactamente igual.
Enquanto que o mundo rola sob uma harmoniosa e tranquila
normalidade, bem lá em baixo, no centro do inconsciente de toda a
humanidade, a revolução está prestes a dar inicio, uma revolução que
ousa libertar a humanidade da escravidão e tirania do seu grande
senhor.
Fecho os olhos e mergulho mais uma vez no profundo mundo do
subconsciente humano, cada vez mais próximo da revelação final.
A noite está amena, delicadamente suavizada por uma leve brisa que
balança docemente a vegetação do campo.
“Onde é que estamos?” Pergunta Francesco.
À nossa volta, apenas presenciamos uma enorme planície, iluminada
pela luz dos astros celestiais, com pequenas montanhas que se
elevam da terra plana.
“Estamos a algures na Irlanda, numa zona neutra.” Responde Volton.
“É aqui perto que a luz do conhecimento termina.” Clarifico o
comentário de Volton.
“O último portal tem de estar algures por aqui.”Comenta Sophie.
“É verdade que estamos perto de algo importante mas, o artefacto não
se encontrará num sítio específico no mundo.” Argumenta Volton, com
o seu habitual ar pensativo.
“O que queres dizer com isso?” Pergunta Bland.
“Ainda temos de mergulhar mais profundo.” Respondo com seriedade.
Francesco concentra toda a sua atenção no horizonte, num ponto
luminoso no meio daquela escura noite.
“O que será aquele ponto de luz?” Pergunta Francesco.
“É aquilo que estamos a procura. Vamos, por aqui!” Responde Volton,
361
convicto de ter encontrado o caminho certo.
Apenas se ouve a brisa que calmamente varre a planície num som
conjunto do estalar de ervas bem debaixo dos nossos pés.
A medida que nos aproximamos, começamos por tomar conta de que a
luz se encontra num pequeno monte, no topo de algo, semelhante a
uma colina. Aproximando-nos cada vez mais da misteriosa luz que
emana do chão para o céu escuro. Duas altas colunas de pedra
graníticas em estado bruto, tendo uma outra rocha pousada
horizontalmente sobre os seus topos, deixa-se iluminar por aquela
branca e pura luz. Um caminho serpenteado estende-se até ao seu
topo, permitindo um fácil acesso.
“Chegamos ao marco final!” Exclama Volton com admiração ao
contemplar o estranho e misterioso monte.
Nesse momento, enquanto que todos observam a insólita colina, um
ruído semelhante a muitas vozes humanas, eleva-se do fundo da
planície.
“O que são estas vozes?” Pergunta Sophie, num misto de intriga e
desconfiança.
Vindos do nada, uma enorme multidão de jovens e idosos homens e
mulheres, bem como crianças, caminham alegremente pelo trilho que
conduz ao topo do monte à nossa frente.
Esta estranha procissão leva-nos a tentar descodificar o real
entendimento daquilo que observamos.
“São estas pessoas seres reais?” Pergunta Sophie.
“Não.” Responde Volton. “Nenhum humano tem acesso a uma zona
neutra, a menos que, seja uma mente livre.”
A multidão inicia a subida pelo monte acima com verdadeiro regozijo,
como se a vida eterna se encontrasse lá no topo daquele sagrado
monte.
“Mas, o que é que eles fazem aqui?” Pergunta Francesco.
362
“Só existe uma maneira de o saber. Temos de nos juntar a eles.”
Respondo com os olhos postos na multidão, avançando para junto
deles. Observando a minha iniciativa, o restante grupo acompanha-me
sem hesitar.
Gradualmente, à medida que subimos por aquele caminho
serpenteado, observo no negrume da noite as montanhas que
delimitam a linha do horizonte num negro ainda mais carregado.
A fictícia multidão, a qual nos encontramos misturados, não revela nem
uma única palavra. Apenas se ouve sorrisos e expressões alegres no
meio de todos os caminhantes.
Da mesma forma, mas sem sorrir, optamos em uníssono de não
libertar palavra que fosse, comunicando-nos apenas por gestos e
feições.
Finalmente, atingimos o alto do trilho serpenteado, o qual, continua a
sua descida do outro lado da montanha. A multidão que atinge o topo,
não pára, seguindo a sua caminhada para baixo. Nós, de maneira
diferente, contemplamos a multidão que desce alegremente, sem ter o
desejo de a acompanhar.
Escondida na vegetação que atinge o topo onde se encontram as
grandes colunas de pedra, encontram-se umas escadas constituídas
por grandes seixos de rio em decadente conservação.
“Por aqui!” Ordeno ao grupo, mostrando o caminho a tomar.
Com dificuldade e afastando o grosso mato que invade o percurso,
subimos escada a escada até ao topo.
Uma vez atingido o topo, resta-nos maravilhar o que contemplamos. As
enormes rochas graníticas no seu pleno estado bruto, erigem-se como
colunas potentes no negro daquele céu. Em seu torno, no chão,
encontra-se um grande círculo branco que abrange toda aquela
estrutura. Num círculo inferior, constituído por três pequenos triângulos
vermelho escuros e um quarto grande, fazem-nos relembrar a rosa-
363
dos-ventos, indicando-nos as coordenadas do mundo.
“É impossível que o triângulo grande represente o norte.” Responde
Volton, ao observar os quatro triângulos. “Neste mundo não existem
coordenadas, nem mesmo o norte e o sul.”
“Mas concordas comigo que existe uma explicação lógica para a sua
existência, não achas?” Pergunto com o objectivo de fazer o grupo
raciocinar.
Ninguém responde pois, todos sabem que é verdade aquilo que digo.
Nada que aconteça no mundo dos sonhos aparece sem significado,
por mais irrisório que pareça.
Caminho até atingir o limite daquele planalto, na mesma linha recta do
grande triângulo. Uma grande bruma cobre o horizonte sombrio num
silêncio petrificante. Investindo mais algum tempo a observa-lo,
tomamos conta de que a bruma se dissipa aos poucos, deixando o
horizonte cada vez mais visível.
Á medida que ela se dissipa, algo semelhante a uma luz pequena e
amarelada vai ganhando forca naquela escuridão.
“É ali!” Exclama Francesco, possuído de grande êxtase.
“Vamos, o portal tem de estar ali!” Informa Volton, empolgado com a
descoberta.
Não perdemos tempo e a descida inicia-se na ânsia em saber o que lá
se esconde, contudo, receosos por caminhar uma vez mais para o
centro deste infinito labirinto.
A medida que caminhamos apressadamente por entre as ervas, Bland
detecta um caminho em terra batida, o qual, ninguém hesita em tomá-
lo.
Cauteloso com a recém descoberta, caminho a um passo mais brando,
acabando por ficar na cauda do grupo. Ao meu lado direito, encontra-
se Sophie, bela como sempre, desejosa por ter um momento a sós
comigo, algo que teima em tardar.
364
Observando as suas doces e delicadas mãos, tomo a ousadia de lhe
dar a mão. Ela, surpresa, volta-se para mim e sorri docemente. Unidos
naquela caminhada, partilhamos sentimentos únicos com um simples
toque de mãos, unidas com o objectivo de durar para sempre.
“Gostava de me encontrar contigo, no mundo real.” Digo
sorrateiramente, levando-a bem perto da tentação.
“Bem sabes que não é possível.” Diz ela com um semblante triste. “Se
tal acontecesse, as nossas posições seria reveladas e as nossas vidas
correriam perigo.”
“Por ti estou disposto a correr todos os perigos do mundo. Só não
arrisco porque tal acção iria pôr-te em risco. Mas prometo-te que,
assim que tudo acabar, eu vou querer encontrar-me contigo.” Dito
estas palavras, ela abraça-me a cintura, como se não desejasse mais
separar-se de mim.
“É aqui!” Informa Volton, pasmado com a visão que tem.
Caminho em direcção ao grupo e observo ao longe um enorme castelo
medieval com quatro grandes torres, uma delas, iluminada no seu
interior por uma luz amarela semelhante a iluminação produzida por
velas.
Um caminho de pedra conduz-nos daquele alto para uma ponte em
pedra, mais abaixo. O som do mar revolto ao embater nas rochas
aumenta o temor por aquele sítio sombrio.
“O que lá se encontra escondido?” Pergunta Sophie.
“Temos de prosseguir caminho para descobrir-mos a resposta.”
Respondo, motivando o grupo a prosseguir o passo.
A medida que nos aproximamos do frio e gótico monumento de pedra,
a pulsação cardíaca aumenta a um ritmo imparável.
Uma grande porta de madeira guarda o interior daquele forte
inexpugnável. Tomo a ousadia em abrir a porta que, para minha
surpresa, já se encontra aberta.
365
Sem dizerem uma única palavra, todo o grupo me segue na grande
entrada. Em posição de defesa contínua, caminhamos passo a passo
por entre aquele amplo espaço escuro, sombrio e gélido. O chão é
semelhante a um mármore liso, nunca visto por mim, de uma cor negra
com fios de tamanhos mistos de uma cor esverdeada.
“Já vistes os enumeres pilares que aqui se encontram?” Chama
Sophie a nossa atenção ao seu grande numero.
"Os cento e quarenta e quatro pilares da criação." Responde Volton na
sua imensa admiração por aquele lugar.
“O que queres dizer com isso?” Pergunta Francesco.
“Estamos muito perto da criação de tudo, da verdadeira "caixa de
Pandora", o início de tudo.” Repete Volton, focado naquele amplo
espaço, admirando cada pedaço da sua constituição.
Á nossa frente, deparamo-nos com umas escadas que emergem num
infinito mundo acima de nós. Para nosso espanto, a presença de uma
jovem trajada de uma comprida veste branca, com uns cabelos longos,
lisos e muitíssimo negros, encontra-se de joelhos, agachada naquelas
escadas a olhar o infinito por cima dos seus olhos.
“Eu sabia que virias Jonathan.” Responde ela, sem tirar os olhos
daquele negro sem fim.
Como é que ela sabe o meu nome? Tal pergunta, com certeza, não e
feita unicamente por mim.
Ela volta-se, deixando transparecer os seu belos olhos puros de um
cinza cor de água.
“O mundo aguarda-te lá em baixo. Contudo, não és o único que
anseia o cumprimento da profecia.”
Tal resposta deixa-me completamente absorto no meu pensamento
“O que queres dizer com isso?” Pergunto intrigado com tal resposta.
“Saberás no tempo devido. O caminho que percorres é apenas um,
um trilho sem retorno.” Responde a jovem. “Percorre-o até ao seu fim e
366
receberas a recompensa.”
O grupo não ousa prenunciar nem uma única palavra sequer.
Estendendo a mão para mim, ela diz:
“Que tu os possas libertar a todos no harmonioso Jubileu da
humanidade.” Tal resposta enigmática, aumenta as minhas inúmeras
dúvidas, como se muito mais ainda estivesse escondido nas
profundezas deste mundo místico. Bem antes de pronunciar qualquer
palavra, a sua mão estendida dá origem a um ruído bem debaixo dos
nossos pés. Uma impetuosa brisa vinda do chão, alça os seus longos
cabelos negros a medida que o pavimento onde nos encontramos
começa a descer na forma de círculo por uns três metros de
profundidade. Estáticos e sem saber o que fazer, limitamo-nos a
esperar que algo aconteça. A medida que o grande circulo desce, uma
entrada em com as ombreiras em pedra maciça torna-se gradualmente
visível.
“Vai, que nada te impeça no teu caminho pois, o ultimo portal é o teu
único acesso a superfície.” Finalizando o seu discurso, a frágil donzela
é envolvida na escuridão que envolve todo o edifício.
“O que ela quis dizer com o facto de "o ultimo portal é o teu único
acesso à superfície?” Pergunta-me Francesco, preocupado com a
minha possível resposta.
Pensativo, respondo-lhe:
“Para acordar-mos no mundo real, temos de atingir o ultimo portal.
Caso contrário, a nossa mente se tornara prisioneira neste mundo.”
“Meu Deus!” Exclama Sophie.
“Chegamos ao ponto de não retorno.” Desabafa Volton.
Olhando para a sombria e escura entrada, não nos resta outra solução
que não seja entrar por ela. Entramos unidos naquela garganta do
inferno profundo para nos deparar com degraus que descem em
espiral, húmidos e cheios de musgo. Umas tochas que se encontram
367
pela parede fora, iluminam pobremente aquele espaço minúsculo e
abafado. À medida que descemos, o som do mar revolto aumenta cada
vez mais, num rugir que entoa naquele granito velho.
Por fim, uma outra abertura, anuncia o fim das escadas que nos
conduzem às confinadas profundezas.
Saindo daquele espaço húmido e abafado, tomamos súbito
conhecimento que nos encontramos no interior de uma gigantesca
garganta rochosa. O chão, constituído por grandes pedras redondas,
contrastada com o topo piramidal daquela caverna, negra e gélida
como a noite. O rugido do mar convida-nos a descer a gruta até ele.
Com dificuldade, percorremos aquele chão extremamente irregular
apenas para nos depararmos com algo insólito. A poucos metros da
água, uma porta em madeira ergue-se no centro daquela gruta sem
que nada, nem mesmo uma parede a suporte.
“Estamos perto, meus amigos.” Responde Volton.
“Será que iremos despertar ao passar-mos por aquele portal?”
Pergunta Bland.
“Não.” Respondo. “Esta porta é apenas o início do fim.”
Tomamos unidos a silenciosa decisão de entrar por ela, aconteça o
que acontecer.
Eu abro a porta apenas para observar um enorme escuro dentro de
ela.
Volton entra assim como o restante do grupo, fechando-a eu no final.
“E agora?” Pergunta Sophie, no meio daquela escuridão.
Ninguém está a altura de dar resposta que seja, apenas limito-me em
lhe dar a mão, segurando-a e protegendo-a contra todos os previsíveis
males.
“Algo terá de acontecer, não é verdade?” Ainda Volton não tinha
terminado a frase quando uma potente luz branca cega por momentos
a nossa vista. À medida que a nossa vista vai dissipando gradualmente
368
o branco que a encadeia, Sophie pergunta:
“Onde é que estamos?”
Volton caminha lentamente ao mesmo tempo que investiga as paredes
de metal cinza com as suas pequenas lâmpadas, com uma admiração
única, como se ali estivesse anteriormente.
“Estamos na ponte.” Responde Volton com admiração.
“Mas, de que ponte é que falas?” Pergunta Francesco.
“Esta é a ligação entre o mundo 7 e a fortaleza inexpugnável do deus
deste sistema. Vamos, não há tempo a perder.” Responde Volton ao
iniciar a sua corrida. Todos nós o acompanhamos por mais confusos
que nos possamos encontrar. Apenas se ouve os nossos passos no
chão vidrado à medida que nos aproximamos de uma porta metálica
cinza com grandes parafusos que reforçam em seu torno.
Vendo tal porta, o meu passo abranda, chamando imediatamente a
atenção de Sophie.
“O que tens Jonathan?”
“Eu lembro-me deste sitio, mas não sei onde.” Respondo ao olhar para
trás, em busca de algo, de um pormenor que eleve tal lugar na minha
memória.
“Vamos, não há tempo a perder. Isto pode desabar a qualquer
momento!” Clama Volton bem perto da porta, como se o mundo
estivesse para acabar.
“É isso! Um desabamento! Já me lembro Sophie, eu estive aqui no
mundo seis com Volton!” Exclamo completamente electrizado,
percorrendo-me um grande arrepio pela espinha dorsal.
“O quê?” Admira-se Sophie com tal resposta.
Nesse momento, as lâmpadas do corredor ameaçam falhar, a medida
que piscam num estado intermitente.
“O que está a acontecer?” Pergunta Bland, a olhar em seu redor,
completamente intrigado com tal fenómeno.
369
“Vamos, o portal não espera para sempre!” Clama Volton, nervoso
com tanto tardar.
"Vamos embora!” Ordeno ao saber o que irá acontecer.
Antes que pudesse-mos iniciar o percurso, as lâmpadas falham de vez,
deixando apenas uma fraca luz branca, semelhante a luz de uma
lâmpada florescente, iluminar o topo das nossas cabeças escuras.
“E agora, o que aconteceu?” Pergunta Francesco ao tactear aquele
sitio.
Olho para trás e contemplo o que não desejava ver. Inúmeras cabeças
se estendem atrás de nos e a nossa frente. Quando a luz retorna, o
cenário torna-se arrepiadamente ameaçador. Por trás de nós e a nossa
frente, dezenas de agentes cercam as nossas vidas, numa defesa
daquele ultimo reduto.
“Unidos, já!” Clamo no máximo da minha voz.
O grupo une-se costas com costas, numa defesa nunca antes vista,
preparados para o desafio mais duro de todos. Sem saída possível,
sem armas e esconderijos, a luta corpo a corpo era inevitável.
Num único grito de guerra, todos os agentes se precipitam com a maior
violência contra nós. Volton e Francesco protegem a frente enquanto
que eu e Bland ficamos com a retaguarda. A ágil Sophie encarregar-se
do centro do grupo.
A mais barbara luta que um humano carnal possa imaginar, não se
compara a brutalidade exercida pelos agentes. A medida que os
nossos movimentos evoluem a cada gesto, as habilidades dos agentes
também acompanham o mesmo ritmo cruel.
A intensa luta e a brutal forca exercida, faz o impacto dos nossos
corpos dobrarem as paredes de aço do corredor.
“Isto esta a perder o controlo!” Clama Bland, à medida que mais e
mais agentes emergem do nada para aquele espaço estreito.
“Só existe uma hipótese. Avançar!” Ordeno.
370
Lentamente, como se de um pesado veiculo militar se tratasse, o grupo
avança lentamente até a porta.
Num estado de exaustão e contusões sem paralelo, a porta encontra-
se finalmente limpa de agentes.
“Jonathan, tens de ser tu a abrir o último portal!”
As posições trocam à medida que Volton, Bland e Francesco
bloqueiam a passagem dos agentes enfurecidos.
Alcançando a porta, tento rodar o seu manípulo, mas sem sucesso.
Por mais que o tente rodar, ele não gira nem um único grau sequer, tal
e qual como anteriormente.
“Então, a porta não abre?” Pergunta Sophie em total desespero.
“Ela não abrirá amenos que os agentes desapareçam.” Respondo em
pleno desânimo. Como seria possível abrir tal porta se o número dos
agentes se perdia naquele corredor comprido.
“Vai ser impossível!” Desanima Sophie. “Eles multiplicam-se a cada
segundo que passa.”
Ouvindo tal suspiro, Volton clama para mim, dizendo:
“Jonathan! Sê rápido.” E metendo a mão ao bolso, retira uma pequena
chave de prata, arremessando-a logo em seguida para mim. Não perco
tempo e ponho-a na fechadura. No momento que rodo a pequena
chave, o manipulo roda automaticamente no mesmo sentido.
“Vamos embora!” Clama Volton no mais alto da sua voz.
Eu abro a pesada porta, apenas para ouvir um enorme estrondo. A
multidão de agentes começa a clamar à medida que todo o corredor
entra em colapso. Eu e Sophie entramos na porta, Volton, Bland e
Francesco, correm pelas suas vidas à medida que o longo corredor
desaba sobre os agentes em pânico. Segundos antes de tudo desabar,
os três saltam para dentro, fechando subitamente a porta de seguida.
Os nossos corpos tremem de pura adrenalina e medo aterrorizante.
“Foi por muito pouco.” Desabafa Volton, sentado no chão,
371
extremamente ofegante.
“Mas como é que tu sabias disto?” Pergunta Francesco.
Antes que Volton pudesse responder, um feixe de luz branca de cima a
baixo, divide uma das paredes do estreito compartimento onde nos
encontramos.
“É o acesso!” Responde Volton, extremamente preocupado com tal
facto.
“Mais parece um elevador.” Contraria Bland, ao sentir pequenas falhas
no campo gravitacional, ao sentir o seu corpo cada vez mais leve.
Volton levanta-se e encosta-se na parede paralela ao feixe de luz.
“Protejam-se, não irão gostar do que irá acontecer.”
Cada um de nos encosta-se numa das duas parede paralelas, o mais
longe possível de tal feixe de luz.
Ali, no escuro, a ouvir o ruído do mecanismo que nos lança cada vez
mais para baixo, sentimo-nos como gladiadores, esperando que os
portões se abram, apenas para vencer ou morrer. O coração bate
intensamente como se desejasse sair do peito à medida que o suor frio
escorre das nossas mãos.
Agarro Sophie naquela descida maquiavélica, ao mesmo tempo que, o
sentimento de culpa invade o meu ser só pelo facto de saber que ela
ali se encontra, nas portas do Harmagedom por minha causa.
Um barulho seco e metálico anuncia o fim da viagem. As portas abrem-
se deixando resplandecer uma brilhante luz branca natural.
“Corram!” Clama Volton como se estivesse possuído por um ser
maligno. Numa fuga cruzada, abandonamos o elevador, apenas para o
ver ser completamente destruído por um morteiro que não nos atinge
por milésimos de segundo. Bland lança-se atrás de uma enorme
estátua de pedra branca à medida que os restantes se protegem atrás
de vedações e arbustos densos.
Dou comigo e com Sophie deitados numa relva húmida, verdejante e
372
bem aparada, com um maciço arbusto que nos protege à frente. O som
das balas que percorrem as nossas cabeças não tarda a se ouvir.
Ergo-me lenta e cuidadosamente do chão, por entre o arbusto que se
barrica a minha frente. Bem a nossa frente, estende-se um belo jardim,
muito bem conservado e militarizado também. Nas primeiras centenas
de metros, observo um extenso e nivelado campo de relva muito bem
aparada. No seu limite, um parapeito de pedra, com menos de um
metro de altura, suportada por pequenas colunas, também em pedra
bem torneadas, marca a fronteira entre o relvado amplo dos arbustos
geometricamente verdejantes que se encontram num nível inferior.
Mais
à frente, no meio daqueles arbustos maciços, uma estranha figura de
pedra ergue-se no alto daquelas muralhas verdes. A figura parece
representar uma concha marinha, da qual, se evade um réptil do seu
interior inundado de água. A visão das estranhas figuras simbólicas
não pode ser comparado à plenitude e riqueza arquitectónica da
grande torre que domina o centro daquele jardim do Éden. Erigindo-se
no centro de toda a vegetação e proclamando-se no topo do céu azul,
a maravilhosa torre assemelha-se a um poderosíssimo forte. As
janelas ovais, cuidadosamente torneadas, intervalam com pequenas
colunas ao redor do seu diâmetro numa riqueza de detalhes única. O
seu telhado em forma de cone estende-se para fora do limite do
diâmetro da torre, suportando a sua base com traves em madeira.
“Jonathan, o que vez?” Pergunta Francesco, barricado atrás de uma
cerca de madeira.
“Isto está complicado.” Respondo ao agachar-me de costas para o
denso arbusto.
“Então qual é o plano?” Pergunta Bland, segurando a estátua com as
duas mãos à medida que as balas a vão estilhaçando.
“No centro do jardim existe uma grande torre. O nosso objectivo a
373
alcançar e a dominar. Mas para isso, temos de ultrapassar o batalhão
que se encontra no parapeito do relvado, que não será pêra doce.”
“Viste o seu armamento?” Pergunta Volton.
“Não! È precisamente isso que me preocupa. Mas não esperem nada
de leve, nem mesmo uma sombra do que enfrentamos. Este será o
desafio final.” Respondo ainda sem um plano em mente.
“Nada é impossível.” Responde Volton.
“Eles estão a aproximar-se!” Exclama Bland ao ver um pequeno grupo
de agentes caminhar sorrateiramente dispersos sobre o relvado.
“E agora? Não temos nem sequer uma arma para nos defender!”
Exclama Sophie na sua habitual preocupação em que tudo corra bem.
“Não te preocupes.” Respondo com o objectivo de a acalmar. “Não é
preciso trazer armas para este mundo. Elas vêm ter connosco.”
“É isso que eu gosto.” Responde Bland, estalando o seu pescoço,
animado com a minha resposta.
Com muita precaução, os agentes avançam, na expectativa certa de
não possuir-mos armas nenhumas.
Sophie geme de medo atrás de uma rocha, chamando a rápida
atenção dos bloqueadores. Caminhando através dos arbustos, os
agentes descobrem Sophie, barricada atrás daquela grande rocha
cinzenta. Sabendo que ela se encontra cercada, os agentes preparam-
se para executarem-na. Nesse momento, nós os três saltamos da
nossa emboscada e, com bastante facilidade, eliminamos o inimigo.
“Boa jogada! Temos armamento para começar.” Exclama Bland, cem
por cento motivado, com uma arma finalmente nas mãos.
“O plano é este.” Respondo ao juntar o grupo. “O que quer que lá
esteja além daquele parapeito, encontra-se barricado nos degraus
abaixo. Para eliminar a defesa, teremos de nos aproximar deles.”
Só existe uma hipótese. Entretê-los.” Aconselha Bland.
“Exacto. Temos de dar um espectáculo pirotécnico antes de rebentar
374
com a sua célula.” Responde Francesco.
“Quantas granadas de mão possuímos?” Pergunto
“Cinco.” Responde Bland.
Observando uma estátua caída no chão, uma ideia ergue-se de
imediato na minha mente.
“Vamos vestir aquela estátua.” Todo o grupo olha pasmado para mim.
“Sophie, tu vais disparar apartir do extremo lado direito do jardim.
Volton, tu ficas com o lado esquerdo. Francesco, as granadas são
contigo.
“Mas como vamos usar armas se nunca as usamos anteriormente?”
Pergunta Sophie.
Olho seriamente para ela e respondo:
“Acredita e todas as coisas ser-te-ão possíveis.”
O silêncio da nossa parte torna-se incomodo aos agentes que nos
esperam barricados.
Um leve abanar de arbustos chama a sua atenção. Espreitando
através deles, os agentes observam alguém com uma camisa escura e
um boné preto com uma arma na mão. Não demora muito até um fogo
cruzado entre os agentes e o indivíduo misterioso dar inicio. O que eles
não sabiam era que, o indivíduo misterioso, era apenas uma estátua
de pedra com a minha roupa manobrada por Bland. Á medida que a
estatua se despedaça, Francesco, num forte lanço, arremessa as cinco
granadas sobre uma ordem temporal. Sophie e Volton abrem fogo
antes que as granadas atinjam as posições inimigas. No momento em
que a primeira granada se faz ouvir, eu e Bland corremos como o
vento no descoberto daquele relvando. Atingindo o degrau do
parapeito, a posição dos agentes, ainda atordoados, torna-se fácil
debaixo dos nossos fuzis. Revertido o jogo, os agentes lutam pela sua
sobrevivência, a medida que Francesco, Volton e Sophie correm
naquele relvado sob a nossa total cobertura. Em minutos, a primeira
375
defesa cai, levando-nos a regozijar de alegria.
Olho em redor, observando o próximo passo a tomar. À nossa frente,
uma densa parede de arbustos erguem-se geometricamente bem
definidos.
“E agora?” Pergunta Francesco, pronto para o próximo passo.
Temos de ultrapassar estas sebes, custe o que custar.” Respondo,
concentrado em tal passo.
“Então vamos!” Responde Francesco.
“Calma! Isto está silencioso demais para mim.” Advirto rigorosamente.
“O que pensas que lá possa haver?” Pergunta Sophie em voz baixa.
“Muito silêncio e calmaria tornam um sítio como este muito suspeito.”
Respondo, tentando imaginar o que se escondera por detrás de tais
arbustos.
“Mantenham-se unidos!” Ordena Volton, carregando a sua arma de
fogo.
O grupo avança atrás de mim, com toda a cautela do mundo, atentos a
qualquer minúsculo barulho que possa surgir.
Um baixo e contínuo ruído grave desperta a nossa atenção.
“O que é isto?” Antes de Francesco terminar a pergunta, enormes
sebes se erguem do chão dividindo o grupo, deixando-nos
completamente isolados uns dos outros.
“Sophie!” Clamo ao vê-la largar a minha mão, separando-nos por uma
sebe. Sophie grita de medo.
“Não te preocupes, eu vou buscar-te!” Respondo ao tentar penetrar
através dos arbustos. Por mais que tente, os arbustos não sofrem
qualquer dano, nem mesmo atingindo-a com a arma que possuo.
“É uma armadilha!” Clama Bland do outro lado da sebe.
“Pior! É um labirinto.” Responde Volton
“E agora?” Pergunta Francesco sem saber o que fazer.
“Só existe uma solução. Chegar ao fim dele.” Respondo ao ver a
376
durabilidade das paredes do labirinto.
“Vamos, não há tempo a perder!” clama Volton ao avançar pelo
labirinto.
À medida que caminhamos ás cegas, ouvimos tiros de agentes que se
dirigem ao nosso encontro.
“Alguém foi atingido?” Clamo ao ouvir disparos.
“Fui eu que disparei!” Responde Bland, ridicularizando a actuação dos
agentes. “Apareceram aqui uns "ratos" e tive de os eliminar.”
“Tenham cuidado, eles vão continuar a aparecer.” Mal tinha terminado
a frase, três disparos se ouvem.
“Quem foi!” Pergunto na ansiedade de poder ter perdido alguém.
“Fui eu!” Clama Francesco. “Está tudo sob controlo.”
Logo em seguida, um grupo de cinco agentes aparece bem na minha
frente, abrindo um feroz fogo obrigando-me a recuar. Nesse momento,
o ruído de balas se faz ouvir por todo o labirinto, fazendo-me crer que
as nossas posições estão todas debaixo de fogo pesado.
Um misto de gritos, clamores e gemidos não ajudavam a identificar
quem baleava e era baleado.
“Estão todos bem?” Pergunto em voz alta mas sem sucesso.
“Estão todos bem?” Pergunto mais uma vez mas sem obter resposta.
A aflição aumenta à medida que o grupo não responde aos meus
apelos, especialmente, a minha frágil Sophie.
“Não há volta a dar!” Exclamo num estado de nervos brutal ao
carregar a minha arma.
Tomo coragem e salto da minha posição, arremessando as balas nos
agentes. Um a um e eles caiem como pequenos pássaros. Em vez de
procurar a saída, tento-me aproximar do ruído das balas, na esperança
de ajudar quem mais precisa. Canto atrás de canto se esconde um
agente, procurando pela minha alma, naquele labirinto infernal.
“Estão todos bem?” Pergunto mais uma vez.
377
“Estou a ficar sem munições!” Responde Sophie. Essas eram as
palavras que eu menos queria ouvir.
“Eu também estou no limite!” Clama Francesco lá no fundo, por entre
o rugido de inúmeras balas.
Nesse momento, ouço o estalar seco de uma arma, demonstrando o
fim de municies.”
“Ai!”Clama Sophie. “Ajuda-me Jonathan!”
“Sophie!” Clamo sem saber o que fazer. Inutilmente, tento penetrar
nos arbustos mas sem sucesso.
“Não!” Grita Sophie.
Tal "não" é delineado perfeitamente nos meus ouvidos, como se
conseguisse obter a sua posição exacta e, sob a minha alta
concentração, consigo identificar a direcção dos passos do inimigo.
Sem dó nem piedade, reconhecendo que Sophie se encontra perto do
seu fim, abro destemidamente fogo naquilo que penso serem as
posições dos agentes.
“Estas bem Sophie!”Pergunto ao cessar o tiroteio, na angustia de ter
perdido o meu bem mais precioso.
“Sim!” Responde ela, surpresa com o sucedido.
“Graças a Deus!” Exclamo de alivio. “Existe mais algum agente à tua
frente?”
“Não.”
“Então recua o mais que puderes, eu vou ajudar-te!”
“Jonathan!” Diz Sophie num tom baixo mas ofegante
“Sim!” Respondo com o ouvido colado a sebe.
“Amo-te. Não te quero perder.” Responde Sophie.
As suas palavras elevam-me ao mais alto dos céus, fazendo-me sentir
imortal na missão de a salvar.
“Eu também te amo.” Respondo em voz baixa, com toda a satisfação
do mundo. “Acredita que te vou buscar.”
378
Nesse momento, ouço Sophie a correr para longe de mim.
“Sophie, estás bem?” Mas ela não responde.
Em seguida, ouço vários passos, indicando-me o porquê da sua fuga.
Sem muito por onde escolher e temendo pela vida de Sophie, carrego
a minha arma e avanço como um tanque por aquele labirinto, abatendo
tudo o que se intromete no meu caminho. A força em mim torna-se
poderosíssima e o medo de ser derrubado torna-se nulo.
Após uma maciça carnificina, chego ao fim daquele labirinto diabólico.
Ainda ouvindo o som de balas, dirijo-me velozmente a umas escadas
em mármore onde, suportadas por quatro pequenas colunas brancas,
se encontra a concha com um enorme réptil de pedra branco que
emerge da água no seu interior. Com todo o vigor do mundo, elevo-me
até ao topo da cabeça do réptil, obtendo uma visão de todo o labirinto.
Observo Sophie a recuar e a ser perseguida. Vejo Francesco e Bland a
defrontarem-se como leões face ao enorme exercito que os bloqueia.
Do topo daquele maciço de rocha, com a grande torre bem por detrás
de mim, carrego a minha arma com todo o ódio e rancor do mundo.
Tiranicamente, disparo bala por bala, sem se perder um único fuzil
sequer. Um a um, os agentes vão caindo a medida que os invólucros
das balas vão mergulhando dentro da água negra no interior da grande
concha.
Abatendo todos os inimigos, o labirinto dá-se como vencido, secando
completamente num piscar de olhos.
Desço a concha e encontro-me com os meus camaradas em baixo.
Sophie corre para mim, abraçando-me de gratidão e eu, de alegria por
não a ter perdido.
“Bom trabalho Jonathan!” Elogia Bland
“Nem acredito que sobrevivemos.” Confessa Francesco, possuído de
alegria.
“Onde está Volton?” Pergunto preocupado com o que lhe terá
379
acontecido.
Todos olham em redor, mas sem o encontrar.
“Perdemo-lo!” Diz Francesco.
O grupo cai numa angústia profunda por ter perdido o membro mais
experiente.
“Ele lutou tanto para aqui chegar. Foi ele que nos encontrou e que nos
direccionou o caminho até aqui.” Comenta Sophie com tristeza.
“É injusto!” Responde Francesco, revoltado com a grande perda.
“Temos de continuar amigos, isto ainda não acabou.” Tento animar o
grupo em prosseguir caminho o mais rápido possível.
Bem a nossa frente, a enorme torre eleva-se numa atemorizante visão.
Subimos os pequenos sete degraus brancos que afunilam na grande
porta de madeira. No momento em que o primeiro pé toca nos
sagrados degraus, o céu cobre-se rapidamente de nuvens negras
impelidas por um forte vendaval e a luz do dia, é convertida em densas
trevas.
“O que está a acontecer?” Indaga Sophie, preocupada com a
mudança repentina de cenário.
“Não faço ideia, mas algo vai acontecer.” Respondo ao observar o céu
na sua drástica mudança.
Francesco avança para a porta de entranha e, pondo a mão no
puxador, exclama:
“A porta não se encontra bloqueada! Parece que alguém previu a
nossa entrada no edifício.”
No momento em que ele abre uma pequena frincha daquela grande
porta, uma forte brisa corre de dentro da torre para fora, originando um
ruído semelhante a uma fera quando ruge do seu esconderijo. O ruído
dissipa-se para o exterior, bem debaixo dos nossos pés, fazendo vibrar
todo o chão, como se de um terramoto se tratasse.
“Não estou a gostar disto, Jonathan.” Responde Sophie, amedrontada
380
com o tremor e com o céu repleto de nuvens negras, que rodam numa
espiral por cima da torre.
“O que irá acontecer?” Pergunta Bland, preocupado com a drástica
mudança do cenário.
“Não faço a mínima ideia.” Respondo no fundo das sete escadas,
olhando o cenário com dificuldade, à medida que o vento sacode-me o
cabelo com forca.
O barulho aumenta cada vez mais, provocando um pequeno pânico em
Francesco, Bland e Sophie.
“Vamos embora!” Clama Francesco, alçando a voz acima do altíssimo
ruído.
Eu olho com calma para aquele cenário que já não me amedronta
mais, estando prestes a descodificar aquilo que nos querem fazer
acreditar.
No preciso momento em que olho friamente para o jardim a ser
devastado pelo forte vento, o chão começa a ceder em fragmentos do
exterior para o centro onde se encontra a torre. O grande desabamento
lança aquele verde cenário num abismo negro sem fim.
“Fujam!” Clama Francesco, amedrontado com a terrível visão
apocalíptica.
Bland e Sophie correm o mais que podem pelas escadas até à grande
porta. Quanto a mim, resigno-me a observar o colapso calmamente,
com um pé na primeira escada e o outro apenas um degrau acima.
“Sai daí Jonathan!” Grita Sophie com medo de me perder.
Por incrível que pareça, o desabamento termina onde começa a
primeira escada. A um passo do abismo negro e infinito, solto um
sorriso irónico.
“Por que te ris?”Pergunta Francesco, ainda a tremer do sucedido.
Dou meia volta e, finalmente decido subir as escadas.
“Já alguma vez se perguntaram, porque é que sempre que vencemos
381
uma batalha, o mundo a nossa volta entra em colapso?” Pergunto, ao
tentar raciocinar com eles.
“Não! Porque dizes isso?” Pergunta Sophie, intrigada com o meu
raciocínio.
“Nós encontrámo-nos muito perto do fim, mas, por mais que o
tentemos alcança, o cenário entra em colapso, atirando-nos para a
próxima dimensão e assim por diante.”
“Então, o que queres dizer com isso é que o sistema tem nos mantido
entretidos este tempo todo?” Pergunta Sophie, raciocinando
correctamente.
“Exacto! Nós temos estado a andar em círculos este tempo todo.
Perdendo horas e horas essenciais.” Reforço o seu argumento.
“Então isto não passa de uma armadilha com o objectivo de nos levar
a exaustão!” Exclama Francesco ao reconhecer a verdade.
“Então o que podemos fazer?” Pergunta Sophie.
“Temos de ser mais rápidos do que o sistema. Quando estivermos
para terminar esta fase com sucesso, o sistema se protegerá, criando
um outro cenário, paralelo a este. Se conseguir-mos sair dele antes do
seu colapso, ele não terá tempo de construir um outro cenário.”
Respondo com toda a seriedade do mundo.
“Vamos, não temos tempo a perder.” Incentiva Bland a entrar no
edifício.
A porta abre-se lentamente ao som de um ranger de madeira antiga,
como se estivesse fechada por séculos. Espreitando para o seu
interior, observo um comprido e largo corredor com um pavimento
constituído por pequenos quadrados brancos e pretos, postados
diagonalmente. Varias colunas em mármore branco suportam o tecto
desse corredor em pequenas abobadas que se distribuem pelo correr
fora.
Junto a cada coluna, aos seus pés encontra-se uma estátua pagã,
382
referindo-se a um deus qualquer. Vinda de um sítio não reconhecível,
uma luz natural branca ilumina aquele corredor imaculado.
“Não existe ninguém aqui dentro.” Respondo para o grupo.
Todos entram no seu interior, muito atentos, receando sempre que
algo de mau aconteça. O som dos nossos passos lentos entoam
naquele lugar inóspito de vida. À medida que contemplamos cada
centímetro dele. No fim desse corredor, à esquerda, outro corredor, um
pouco mais largo, se estende por umas dezenas de metros. O corredor
é muito semelhante ao primeiro percorrido por nós, sendo a única
diferença, os enumeres frescos pintados nas paredes por toda a sua
extensão. Tais frescos revelam a origem do universo e do mundo,
revelando como tudo começou e o rumo que deverá tomar, como se de
uma cronologia em pintura se tratasse. Embora desejemos sair
daquele mundo o mais rápido possível, tal vislumbre prende
fantasmagoricamente a nossa atenção.
“Isto é o génesis!” Exclama Francesco ao visualizar o enigma do
mundo.
“É impressionante!” Exclama Sophie, maravilhada com tal visão.
“Estas paredes revelam os segredos mais profundos da humanidade,”
“Ele guarda um registro de tudo. Não devemos estar muito longe da
origem.” Mal havia pronunciado tais palavras, o som de muitos passos
começam a entoar naquele corredor em pedra. Tal ruído,
automaticamente nos coloca-nos em posição de defesa, preparando-
nos para o pior.
“Eles vem aí!” Advirto com preocupação.
Surgindo do fundo do corredor já percorrido por nós, aparece quem
menos esperávamos, deixando-nos completamente boquiabertos com
tal visão. Caminhando vigorosamente rápido e com os olhos postos em
mim, nada parece detê-lo da sua missão.
“Volton, estás vivo!” Exclama Francesco de alegria ao ver o seu
383
camarada retornar das cinzas.
Volton não responde a tal exclamação alegre, deixando-me pensativo
com respeito a tudo.
Logo atrás de si, as minhas dúvidas caiem por terra ao ver algo que
transtorna a mim e todo o grupo. Um enorme batalhão de agentes
segue-o de perto como se ele fosse o líder deles.
“Volton, eles estão atrás de ti, tem cuidado!” Exclama Sophie
Volton fixa o seu olhar em mim, como se os seus olhos ordenassem a
minha destruição. Apercebendo-me da realidade, clamo bem alto:
“Corram! Ele está com o inimigo!” Todos se encontram profundamente
confusos com tal comportamento de Volton, todos, menos Bland.
Sempre no seu silêncio de observador mas hábil em detectar
personalidades, Bland é o único que não se surpreende com tal
revelação. Na esperança de me dar tempo para a fuga, Bland corre
enfurecido num ataque suicida contra Volton. Ainda confusos com tal
visão, o grupo corre pelo corredor sem querer acreditar que o líder em
quem tanto confiava, não passava de um agente.
Bland agarra Volton, imobilizando-o por poucos segundos. Mas vendo-
me escapar pelos seus dedos, Volton, numa forca digna de um
bulldozer, arremessa Bland contra a parede, cravando o seu corpo
robusto naqueles frescos artísticos, como se de um leve pedaço de
lenha se tratasse.
“Não!” Grita Sophie ao ver o seu amigo perder os sentidos no chão.
Volton e os seus infames soldados correm num esforço desmedido
para nos travar de vez.
“Corre Sophie!” Ordeno ao vê-la a ficar para trás, transtornada com o
que aconteceu a Bland.
Sophie descongela e decide correr pela vida. Percorremos o longo
corredor ao máximo das nossas forcas até ao seu fim. O término do
corredor confina-se a uma pequena entrada com o seu interior mal
384
iluminado. Entramos rapidamente dentro dela apenas para nos
depararmos com uma longa escadaria em forma de quadrado que
desce nas profundas escuridades daquele mundo.
“Vamos, tem de ser por aqui!” Ordeno a Sophie e Francesco ao olhar
para baixo, sem ter a capacidade de observar o fundo.
A descida inicia-se por aquelas escadas de madeira velha que rangem
cada passo dado. Descido o primeiro lanço, dou conta que apenas eu
e Sophie estamos a descer as escadas. Volto-me para trás e observo
que Francesco não nos acompanha.
“Francesco! Francesco!” Clamo ao perdê-lo de vista.
Francesco espreita dois andares acima e responde:
“Não te preocupes comigo irmão, o momento chegou. Temos de
comprar o máximo tempo possível.”
“Tens a certeza que ficas bem?” Pergunto ao olha-lo lá debaixo.
“Vou tentar.”
Francesco volta para a entrada e decide bloqueá-la com o que tem à
mão, enquanto que eu e Sophie descemos as escadas o mais rápido
que podemos.
Apenas o som dos agentes a tentarem arrombar a porta me faz parar e
pensar na segurança de Francesco.
“Vamos Jonathan! Temos de acabar com isto o mais rápido possível.”
Encoraja Sophie.
“Tens razão!” Respondo ao reiniciar a descida.
O súbito som do rebentamento de uma porta é acompanhado pelo
desabamento contínuo de lanços de escadas, cujos fragmentos se
despedaçam no visível fundo daquele poço profundo. Finalmente, após
uma longa descida vertiginosa, chegamos ao fundo da escadaria. Olho
para cima na esperança de encontrar Francesco, mas a única visão
que possuo, é o desabamento de escadas, como se pecas de dominó
se tratassem. Um grande fragmento de uma escada desaba quase por
385
cima de mim, obrigando-me a recuar rapidamente.
“Vamos sair daqui! Francesco é hábil o suficiente para se livrar desta.”
Incentiva Sophie a continuidade da operação.
Prosseguimos caminho, somente eu e Sophie, sempre a passo
apressado.
Estando já longe do corredor, sinto um leve pressentimento de que
algo ira acontecer. Volto o olhar para trás e, nesse preciso instante,
observo Volton a aterrar no chão, agachando-se devido ao duro
impacto de um queda de dezenas de metros, sempre com aquele
malévolo olhar concentrado em mim, o inimigo numero um.
“Corre Jonathan!” Grita Sophie em pânico ao ver a face do mal,
mesmo atrás de nos.
Mais uma vez, corremos aterrorizados face a um inimigo implacável e
invencível. À nossa frente, uma entrada marca o fim do acesso que
percorremos. Diferente do anterior, desta vez deparamo-nos com uma
biblioteca. Entramos por ali a dentro como coelhos que se escondem
em tocas. Antes que Volton apareça, tentamo-nos dissolver por entre
as altas prateleiras repletas de livros naquele labirinto quadrado. As
paredes da biblioteca contrastam o seu branco com a cor escura dos
móveis em mogno, muitíssimo velho. Sendo o amplo espaço da
biblioteca quadrado as prateleiras seguem o mesmo padrão
geométrico em quadrado, tendo um curto espaçamento entre umas
das outras. Ao todo, existe o que parece a primeira vista, dez
quadrados de prateleiras, cada quadrado um dentro do outro. O chão
alcatifado não permite determinar a nossa posição a Volton, o qual, a
sua presença fora já pressentida por mim uma segunda vez.
“Entrega-te Jonathan. Jamais poderás concluir esta missão. Ninguém
a terminou até hoje e não serás tu a conclui-la com êxito.” Responde
Volton arrogantemente, tentando obter a minha localização.
Observando que o meu silêncio é a prova da minha defesa, ouço o
386
carregar duma arma. Automaticamente, ordeno através de gestos, que
Sophie se abaixe. Volton abre um pesado fogo, trespassado os livros
colocados harmoniosamente nas prateleiras, enchendo o ar de
pequenos estilhaços brancos de papel, que flutuam livremente por todo
o lado.
“Acabou Jonathan! Não existe saída possível.” E novamente, uma
chuva de balas destrói livros sem conta.
Enquanto que Volton investe o tempo em tenta-nos atingir, na
esperança de provocar um clamor, eu e Sophie penetramos até ao
final dos dez elos de estantes que se estendem naquela grande sala
quadrada. Finalmente atingimos o amplo centro, quase vazio, apenas
provido a norte, no ângulo esquerdo, de uma secretaria triangular e no
ângulo direito de uma minúscula secretaria quadrada. Na parte sul do
quadrado, uma estreita alcatifa castanha cor castanha, com a forma
rectangular, estende-se de um lado do quadrado ao outro. Á sua
frente, quase no centro da sala, duas pequenas secretarias
rectangulares, posicionam-se uma em frente da outra.
“E agora, como saímos daqui?” Pergunta Sophie, ao observar que nos
encontramos encurralados no centro da sala.
Olho em redor, mas em vão. Apenas observo muralhas de livros que
não nos deixam ver o fim do labirinto.
De um momento para o outro, ouço enumeres paços que anunciam
definitivamente os reforços de Volton. Silenciosamente, a caça aos
ratos tem início com os agentes a se espalharem por cada elo da
biblioteca.
“O tempo acabou! Temos de sair daqui.” Exclamo em voz baixa ao ver
a situação pior que há pouco.
“Mas como se não existe uma única saída?” Pergunta Sophie ao ver
que a única maneira de sair dali baseia-se em retornar pela entrada
anterior.
387
“Isso é suicídio! Tem de haver uma outra maneira.” Respondo sem ter
qualquer ideia por onde começar. Olho para todos os lados mas sem
sucesso. Desesperado, fixo o meu olhar num espelho que cobre os
lados da pequena secretaria a norte, observando algo incrível. No
ângulo direito do quadrado, bem na frente da pequena secretaria, um
corredor com a mesma alcatifa castanha se estende na diagonal, a
trespassar todos os dez vértices das prateleiras.
“Ilusão de óptica!” Exclamo ao voltar-me para tal acesso.
Para minha surpresa, ali estava a nossa fuga!
“Como é que não vimos tal? Pergunta Sophie, intrigada com o
sucedido.
“Em certas situações, um espelho serve de purificador,
desmantelando o que os outros nos querem fazer acreditar.”
“Como assim?” Pergunta Sophie uma vez mais.
“Não tenho tempo para te explicar!” Respondo ao agarrar-lhe a mão.
“Temos de sair daqui depressa!”
No momento em que acedemos a passagem por entre as livrarias, um
agente faz pontaria em mim, falhando por muito pouco pois, o móvel
com os seus inúmeros livros, serviu-me de escudo protector. Volto-me
para trás, por breves milésimos de segundos, para ver o efeito que tal
bala provocou e, é aí que o meu coração quase para ao ver Volton, no
lado norte da sala, a trespassar o centro de uma livraria, deixando-a
em pedaços. O seu estado de furor e puro e a sua corrida veloz
assemelha-se a um leopardo, que corre concentrado no seu alvo.
Aperto a mão de Sophie e auxilio-a a correr para além das suas
capacidades físicas.
A porta a nossa frente encontra-se fechada mas, a medida que nos
aproximamos, alguém a abre lentamente.
“Estamos cercados!” Exclamo impotente com o previsível ataque. No
entanto, a cabeça de Francesco que espreita pela porta faz-nos expirar
388
de alívio. Mal passamos a porta, Francesco fecha-a o melhor que pode
e inicia a corrida junto de nós.
“Como é que descobristes esta passagem?” Pergunto ao ver tal
fenómeno da sua parte.
“Não sei explicar! Estava já no fundo das escadas de madeira quando
observei que a porta pela qual saístes, já lá não se encontrava, mas
sim, uma porta no lado oposto.” Responde Francesco o melhor que
pode face ao acontecimento misterioso.
“Ele está a mudar o cenário. Temos de ser mais velozes, ele vai
querer modificar tudo em breve com mais um colapso.” Advirto em
plena correria.
Um brutal estrondo ouve-se atrás de nós com Volton a arrombar a
porta, sem que nada o detenha.
O nosso passo, já por si só veloz, torna-se ainda mais rápido ao ver-
mos Volton ganhar terreno.
Francesco ganha terreno sobre mim e Sophie, enquanto que eu a puxo
já no fim das suas forcas vitais. Volton aproxima-se cada vez mais,
fazendo-me aperceber que o seu alcance é iminente, pondo a nossa
vida em risco, especialmente a de Sophie. Num pequeno gesto com a
minha mão direita, impulsiono-a para a frente e decido, num acto
completamente suicida, enfrentar a besta com todas as minha
capacidade. Dou meia volta e corro com toda a velocidade em rota de
colisão com Volton.
“Não!” Grita Sophie, desesperada com tal acto louco mas corajoso.
O meu coração bate fortíssimo a medida que aquele ser diabólico se
aproxima e fixa o olhar em mim. O embate e avassaladoramente
demolidor, seguido por uma luta titânica, digna de um espectáculo
numa arena.
Por mais que me esforce, os punhos de Volton assemelham-se à pá de
um bulldozer e os seus músculos a um tanque de guerra, algo para o
389
qual não me encontro preparado. Por mais golpes que inflija em
Volton, os seus golpes são avassaladores. Por fim, o meu corpo cai
imóvel por terra, sem ter energias para continuar.
“Não!” Irrompe Sophie em choro, amparada por Francesco.
Volton olha para Sophie e ri-se sarcasticamente. Sabendo do mal que
causa, Volton pontapeia-me com tanta brutalidade, que o meu débil
corpo varre as paredes daquele corredor. Semi-morto, consigo ainda
abrir os olhos e observar Sophie a chorar em agonia. Estendo a mão,
desejando-me despedir-me dela pela última vez. Volton, assegurando-
se do controlo total, retira uma lança da parede e, aproxima-se
lentamente de mim, volta-a com a lâmina para baixo, cravando-a no
chão, bem perto do meu peito. Apercebo-me do que se passa, mas
não consigo retirar os olhos da minha amada, desejando que tudo
pudesse voltar atrás. Volton ergue os braços e clama blasfemamente:
“Eis o homem, o salvador do mundo!” E proferindo tais palavras, solta
um riso maquiavélico que entoa nas paredes do corredor. Pegando na
lança, Volton prepara-se para crava-la no meu peito. Toma um impulso
e, nesse momento, inexplicavelmente, um corpo potente perfura a
parede como se ela fosse esferovite, embatendo em Volton e
cravando-o na parede de betão.
“Bland, estás vivo!” Clama Francesco radiante de alegria.
“Pensei que não virias!” Exclamo, débil e em voz baixa, a jazer no
chão.
Bland ergue-me e responde:
“Tu achas que eu sou pessoa de perder um bom espectáculo?”
Eu apenas rio sem fazer barulho, a cambalear com dores. Sophie corre
ao meu encontro e abraça-me em lágrimas. Sentir o seu perfume uma
vez mais, faz-me acreditar que ainda me encontro vivo e os seus beijos
restauram a minha força uma vez mais.
Inúmeros passos anunciam a nossa partida uma vez mais, enquanto
390
que o corpo de Volton jaz cravado na parede.
“É melhor prosseguirmos antes que eles nos alcancem.” Adverte
Francesco. Dobrando a esquina do corredor, deparamo-nos com uma
enorme parede que anuncia o fim daquele caminho.
“Não é possível!” Diz Francesco ao ver-se encurralado entre uma
parede e miríades de agentes que se aproximam para a batalha final.
“Temos de resistir ao ataque. É o único meio.” Responde Bland
decepcionado.
Junto à parede, formamos a nossa posição de batalha, esperando que
aquele tumultuoso ruído de guerra dobre a esquina do corredor. Eu
encontro-me no centro, Bland a direita e Francesco a esquerda. Olho
para Bland e para Francesco, encorajando-os com o meu olhar. Eles,
por sua vez, acenam com a cabeça, anunciando a plena vontade de
lutar até ao fim.
“Aconteça o que acontecer cavalheiros, foi um prazer lutar ao vosso
lado.” Respondo com determinação.
Por fim, a avalanche dobra a esquina e se precipita possuída por um
instinto iníquo e brutal. Se Alexandre o Grande fosse vivo, ficaria
admirado com a nossa brutal defesa exercida sobre eles. Embora os
nossos passos recuem, o ataque é completamente amortecido como
se espartanos nos tratássemos.
Não dura muito tempo e começamos a ganhar terreno naquela luta
selvagem e animalesca.
Um ruído grave e profundo acompanha uma fissura no tecto que se
abre-se imediatamente, demonstrando que o meu plano está a
resultar.
“Preparem-se, ele está a mudar o cenário.”
Num ápice, a parede atrás de nós fragmenta-se e cai por terra,
deixando visível o último portal.
“O portal, ele está ali!” Clamo ao mais alto da minha voz.
391
“Abre a porta antes que tudo desabe outra vez.” Clama Bland na sua
luta enfurecida. Vendo pedaços de tecto a cair e fissuras a anunciarem
o colapso do edifício, dirijo-me rapidamente com Sophie para o portal.
Poucas dezenas metros antes de alcançar a porta, o chão desaba no
eterno negrume. Uma falha de sete metros põe em risco toda a
missão.
“Eu vou saltar e depois estender-te-ei a mão no teu salto, esta bem?”
“Sim.” Responde Sophie, com algum receio.
Volto para trás e concentro o meu olhar no último desafio. Embora tudo
desabe a nossa volta, aquela porta cinza é o meu ponto fulcral. Tomo
balanço num poderosíssimo impulso, quase que correndo sem golpear
o ar. No momento em que me aproximo do limite, o meu pé pisa o
ultimo bloco antes do salto, bloco esse que, inesperadamente cede,
fazendo-me perder o equilíbrio e encurtando grandemente a distância.
Apesar do incidente, consigo alcançar apenas com uma mão o ultimo
bloco do outro lado do corredor.
Sophie solta um grito de aflição ao ver-me completamente pendurado
com uma única mão sobre o grande precipício. Finalmente, apoio o
meu pé na rugosidade da rocha, erguendo-me daquela situação crítica.
Estando já em segurança, olho para trás e observo o pior. Mais de uma
dezena de metros de chão desabou no negro infinito, impossibilitando
a passagem da minha amada e dos meus dois camaradas.
Sophie olha para mim, incredulamente desolada pelo sucedido. Da
mesma forma assim se sente Bland e Francesco ao ver a sua
passagem para o outro lado brutalmente interrompida. Mesmo assim,
possuído de uma coragem e espírito de sacrifício infindável, Bland
clama:
“Vai Jonathan, liberta-nos antes que seja tarde demais! Cumpre a
missão que te foi entregue.”
Desolado, simplesmente não podia acreditar que, apesar de ter
392
superado tantos perigos, teria de deixar a minha muito amada Sophie
para trás, naquele mundo em colapso.
Ao longe, grandes pedaços de tecto desabam, informando-nos de que
o mundo esta perto do seu colapso.
“Vai.” Gesticula Sophie apenas com os lábios, sem pronunciar som
algum, despedindo-se de mim.
“Não!” Respondo, sem a capacidade de a poder resgatar do fim.
Os alicerces começam a ceder e os pilares a desabar num ruído
incrivelmente grave vindo debaixo de nós.
“Vai Jonathan!” Ordena Francesco ao ver tudo consumado.
Sophie olha para mim, sem pronunciar palavra que fosse, apenas a
lágrima que lhe escorre pela face testemunha o seu sofrimento.
“Eu vou voltar, não te abandonarei!” Respondo na tentativa de a
animar. Ela, por sua vez sorri, ao ver a minha determinação, sabendo
muito bem que não existe nenhuma hipótese de salvamento. Uma vez
fechada a porta, eu separar-me-ia dela para uma outra infinita
dimensão.
Abro a porta e despeço-me mais uma vez dela com o meu olhar triste.
No fundo do corredor, o ser mais arrogante e iníquo observa-me de
braços cruzados, por detrás daquele exército que luta furiosamente
contra Francesco e Bland. Volton ri-se sarcasticamente, como se a
batalha vencida por nós fosse também vencida por ele, sem que tenha
a menor vontade de me travar no último portal. Sem tempo a perder,
fecho a porta ainda com o olhar em Sophie. No momento em que a
fecho, o ruído do desabamento e dos furiosos agentes desaparece de
vez para dar lugar a um silêncio incrivelmente grande.
Volto-me para a frente e observo um grande negro por toda a minha
volta, como se me encontrasse para além das estrelas e dos planetas
no universo escuro e infinito.
Nem o próprio chão sou capaz de o definir.
393
Alço os meus olhos ao longe e observo uma luz vinda de cima,
daquele negro infinito. No centro desse pequeno foco de luz, alguém
se encontra sentado e encurvado junto ao um objecto que emite um
frágil e arcaico ruído.
Aproximo-me lentamente, tentando identificar tal indivíduo, um ancião
de cabelos brancos, que se encontra de costas para mim. Finalmente,
reconheço o indivíduo ao vê-lo trabalhar com uma roda de madeira que
gira na horizontal, da qual, é impulsionada através do toque do seu pé.
Postando-me bem perto dele, observo-o, num silêncio ancestral, a
moldar uma peca de barro com toda a harmonia do mundo, como se o
barro obedece-se aos seus suaves gestos imóveis das suas mãos.
“Eu sabia que virias.” Diz ele.
“Ordeno-te que os libertes!” Respondo ainda inseguro do novo terreno
que piso, mas não esquecendo o sofrimento que Sophie poderá estar a
enfrentar.
Sem retirar os olhos do seu trabalho, ele pergunta:
“Quem és tu, que deseja mudar o rumo do mundo já determinado?”
“Quem és tu para determinar o caminho da humanidade?” Contradigo-
o com seriedade.
“O mero humano é uma fortaleza na sua actuação, mas indefeso no
seu inconsciente. Assim como um barco à deriva se perde no vasto
oceano, assim a mente do homem se torna perdida sem um guia.”
Responde-me sem ousar levantar os olhos.
“Não é verdade!” Contradigo uma vez mais. “O homem possui a força
suficiente de encontrar o seu caminho.”
“Nem sempre o mal é mal”.
Confuso com tal resposta, pergunto-lhe:
“O que queres dizer com isso?”
“O bem acomoda-nos, por sua vez, o mal desenvolve-nos, prepara-
nos para o pior, evolui o caminho que percorremos.”
394
“O quê?” Interrogo-o incrédulo no que ouço.
“Os humanos indagam negativamente o resultado de uma tragédia, de
um crime ou atentado terrorista. O que eles não sabem é que, para
evitar tragédias em larga escala, o mal tem de acontecer a alguns.
Quando tal acontece, o mundo evolui dentro de si, protegendo o que
mais precioso existe dentro dela, a mente humana.”
“Isso não é justo!” Repudio tal conceito.
“O que é justo ou deixa-o de o ser é contrabalançado pela balança da
harmonia, pela ética do que não é bom, mas sim, o melhor para todos.”
Finalizando tal comentário cruel, ele volta a sua face para mim e
revela-me algo para o qual eu não me encontro preparado para ouvir.”
Existem forças que desconheces Jonathan, forças essas escondidas
nas zonas neutras, ansiosas pela libertação da humanidade, desejosas
de poder e de sangue que aguardam a tua chegada. A tua grande
conquista, redonda em grande vitoria para eles.”
“Como assim?” Pergunto sem entender o seu significado.
“A porta do grande oráculo foi projectada pela própria mente humana
para já mais ser invadida, impedindo que o poder do domínio mental
fosse espalhado pelos sete campos da terra. Mas assim como o ser
humano é imperfeito, a sua própria mente o trai a cada jubileu.”
Responde-me ao moldar um vaso com o barro húmido nas suas mãos.
“O que queres dizer com traição da mente a cada jubileu?” Pergunto
uma vez mais.
“De cinquenta em cinquenta anos, dá-se o grande jubileu. O
subconsciente humano liberta sete novas mentes, independentes do
meu poder, apenas presas pelo mundo 7. Nunca uma mente chegara
tão perto do grande oráculo, o centro do subconsciente humano, até o
dia de hoje. Ninguém me pode destruir, pois eu sou omnipresente. Eu
existo dentro da tua mente e, ao mesmo tempo, em todas as mentes.
Contudo, isso não origina o meu poder sobre o subconsciente
395
humano.”
“Impossível serem sete mentes pois, Volton é um dos teus!” Respondo
indignado com a sua resposta.
Ele ergue os olhos para mim e responde-me:
“Volton é um fragmento do sistema. Não tenho nada a ver com ele,
excepto uma coisa, o pacto de libertação que lhe fiz em troca da
protecção do grande artefacto.”
O choque toma conta de mim ao ouvir aquelas palavras. Afinal, todas
as situações, códigos e enigmas baseavam-se em estratégias de
Volton em entregar-nos a morte ao levar-nos a violar a entrada do
grande oráculo.
“Tarde demais Jonathan! O mundo sete foi fundido com as zonas
neutras e poderá não prevalecer por aqui. A harmonia e o equilíbrio
serão trocados pela ordem anárquica dos fragmentos. Prepara-te para
enfrentares o verdadeiro apocalipse, Jonathan.”
“E agora, o que pode ser feito?” Pergunto na esperança de remediar o
problema.
“Encontras-te verdadeiramente perto de libertar a mente humana.
Apenas terás de o fazer antes que se torne tarde demais. Para isso,
terás de encontrar o grande edifício em Ninua, o génesis de onde
provem todas as orientações, o cérebro do mundo 7. Terás de resgatá-
lo antes que alguém se antecipe. Se isso acontecer na sua plenitude, o
mundo perder-se-á no último caos.”
“Mas como posso descobri-lo?” Pergunto sem saber por onde
começar.
“Segue o grande rio que te conduzirá a Acadio. A grande estrela
guiara o teu nobre caminho.”
Antes que pudesse questionar o que quer que fosse, ele ordena-me:
“Os teus companheiros encontravam-se dentro de uma porta, a qual tu
fechastes, conduzindo-os imediatamente ao mundo de cima. Agora vai,
396
Jonathan! Cumpre a tua missão com êxito.” Finalizando tais palavras, a
luz que o ilumina desaparece lentamente, fazendo-o evaporar-se com
ela. Uma porta de madeira negra aparece bem na minha frente.
Alcançando-a, entro nela e, fechando a porta, um forte e rápido clarão
branco faz-me retornar ao mundo de cima.
397
Capitulo 17
O despertador toca já à muito tempo, sem que fosse capaz de me
acordar dos mais profundos e remotos lugares do subconsciente
humano. A revelação que acabara de receber havia deixado claro que,
para libertar a humanidade, teria de descer ainda mais, com novos
inimigos desconhecidos, desconhecendo por completo as suas
habilidades e características.
No entanto, o meu pensamento continua colocado sobre Sophie,
perguntando-me e imaginando se ela se encontra bem. Não só ela,
mas também Bland e Francesco. A memória não deixa escapar o
infiltrado Volton, que nos havia guiado a missões suicidas, tentando
eliminar-nos um a um, como fez com Max e posteriormente com
Jaimie. Mesmo assim, o último contacto com Volton deixou-me
pensativo com respeito ao seu propósito. Porque ele passou o tempo
todo a tentar-me eliminar se, no fim, acabara por ficar satisfeito com a
minha vitória?
Seja como for, o tempo agora correrá depressa, a conquista do
artefacto que tanto Volton falava, não se encontra com o oleiro, mas
sim, no centro da grande cidade, anteriormente bloqueada pelo portal
do grande oráculo. Enquanto que o mundo corre numa normalidade
quotidiana, os pilares do mundo inferior desmoronam-se na presença
de uma sombra anárquica e sem lei, que tentará espalhar-se até atingir
o seu objectivo final, a conquista do supremo poder da mente humana.
Resta-nos saber se somos a parte final da profecia, os libertadores que
viriam ao mundo do subconsciente, no último e decisivo Jubileu
humano.
398
A revelação foi dada a nós, contudo, as dúvidas e os riscos crescem a
medida que pisamos solo desconhecido, solo esse, nunca dantes
navegado por humanos, embora existente na enclausurada mente de
cada um de nós.
Mais um dia passa, mais um ciclo de vida fecha até ao momento em
que um novo começa, bem nas profundezas do mundo 7, guiando e
ordenando aos humanos sobre o que devem fazer. Deito-me mais uma
vez, sem ter a mínima ideia de onde irei ter ou do que enfrentar. Fecho
os olhos e, antes de descer as profundezas da mente humana, penso:
Se o apocalipse tiver de acontecer, então que aconteça de uma vez
por todas.
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