“vivo uma liberdade total” · e estar à vontade, a fazer o que quisesse. ser livre era saber...

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“Vivo uma liberdade total”Aos 81 anos, Daniel Serrão afirma-se,sobretudo, como um homem livre, que faz,com a maior alegria, aquilo que mais gosta:ensinar. Nunca foi nostálgico, mas recordaque antigamente falava mais daquilo quesabia. Hoje fala mais do que sente.E reconhece que gosta mais das pessoasdo que gostava quando tinha 40 anos.

Filipa Melo entrevista

Victor Machado fotógrafo

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Daniel dos Santos Pinto Serrão nasceu em Vila Realem 1928. Aos 23 anos, concluiu o curso de Medicinana Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.Aos 31, doutorou-se com 19 valores. Aos 43,foi aprovado por unanimidade como ProfessorCatedrático. Entre os 47 e os 75 anos, dirigiuum laboratório privado de Anatomia Patológica,responsável, durante esse período, pela realizaçãode cerca de um milhão e seiscentos mil exameshistológicos e citológicos.Após a aposentação, em 2002, este professore investigador, um dos mais respeitados médicosportugueses, continua a ensinar Bioética a médicose enfermeiros, na Universidade Católica.Católico convicto e conselheiro do Papa, opositordas práticas de aborto e eutanásia, tem seis filhose dez netos. Diz que já ajustou as contas que tinhapara ajustar com a Morte. Que vive o momentoda velhice como um dos mais felizes da sua vida.Aos 81 anos, Daniel Serrão afirma-se, sobretudo,como um homem livre.

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Qual é a sua definição de velhice?Passa por dois aspectos principais: a idadee a saúde. Após a infância, a adolescênciae a idade adulta, considera-se que, acimados 65 anos, as pessoas entram na categoriados seniores.Dentro desta classe, existe o envelhecimentosaudável e o envelhecimento com doença.Num envelhecimento saudável, o séniorindependente e activo é um cidadão comooutro qualquer.

Com os mesmos direitos, claro.Mas, e em termos de representação social?Hoje, muitas empresas são dirigidas porpessoas com mais de 65, de 70 ou mesmode 80 anos. Existem cada vez mais seniorescom uma postura social inteiramente normale uma importância no tecido económicocomparável à dos adultos.

Quais são as mais-valias desses seniores?O envelhecimento pode trazer muitas coisaspositivas, que actualmente até se supõe quetenham um suporte neurobiológico. O cérebrofunciona de maneira diferente à medida queos anos avançam, correspondendo a umenorme capital de percepção do mundoe interpretação dessa percepção. A granderiqueza das pessoas é precisamente o queelas arquivam da sua experiência de vida.Ora, o sénior não só não perde a capacidadede adquirir mais experiência, como pode serainda melhor a forma como a integra e memo-riza. Embora se torne menos exigente noplano racional e intelectual, essa experiênciatorna-se muito mais rica no plano afectivoe emocional. Hoje, o sénior decide-se muitomais pelos afectos do que pelas ideias.E isso habilita-o, por exemplo, a tomar deci-sões com maior rapidez do que uma pessoacom 50 ou 60 anos.

Um sénior é mais condescendenteconsigo mesmo?Muitíssimo mais condescendente consigomesmo, e com os outros.

Dou como exemplo a minha experiência.Durante o tempo em que fui professore investigador e em que tive responsabilidadesdirectivas, a minha exigência profissional era,a todos os níveis, um dever absoluto, umaescravatura. A partir da aposentação, deu--se uma relativização. Assumi que ia viveruma vida nova e diferente, e aquele rigorracional e espartano atenuou-se muito.Esta postura de tolerância vai-se enriquecendoà medida que a idade avança. Hoje, à minhavolta, está tudo arredondado. Já não há ares-tas finas, nem cortantes, e tudo é passívelde ser bem integrado. Sei que gosto maisdas pessoas do que gostava quando tinhaquarenta anos.

Ou seja, interpreta as novas experiênciastambém de uma forma nova...... que coloco ao serviço dos outros.Gosto tanto e desejo tanto viajar como quandoera jovem. Mas, agora, estou mais livre parao fazer e tenho uma postura muito maisaberta. Antes, nas conferências ou comunica-ções científicas no estrangeiro, assumia umapostura seca, rigorosa e afirmativa.Hoje, faço-as perante uma audiência de seis-centas pessoas com uma enorme alegriae já sem qualquer angústia.

Nesse sentido, agora, sim,a sua entrega é total.E as pessoas percebem-no, o que tornatudo mais cativante.

A ausência de competitividade é comcerteza um factor importante para o idoso.No seu caso, fez sentido abdicar, por fim,do lugar que conquistara ao longo da vida?Vivi uma batalha permanente de afirmaçãoenquanto me formei, me doutorei e fizo concurso para catedrático.Foi uma competição constante contraas dificuldades naturais e também contraos atalhos complicados de uma carreiraacadémica. Depois, enquanto directorde serviço, passei a ter a enorme responsa-

bilidade de formar outros. Quando chegoua idade da aposentação, decidi estender pormais cinco anos a altíssima responsabilidadede trabalhar como patologista, arriscandofazer diagnósticos de doenças, nos quais nãose admite, de forma alguma, o erro. Aos 75anos, terminei a minha actividade de um diapara o outro, sem qualquer problema.Desde então, faço com a maior alegria aquiloque mais gosto de fazer: ensinar.E vivo uma liberdade total.

Quais são as suas memórias mais fortesde vivências de liberdade na infânciae na idade adulta?Na infância, a maior liberdade era poder estarsozinho. Fechar a porta do meu quartoe estar à vontade, a fazer o que quisesse.Ser livre era saber que, embora integradonuma família, podia durante algum temponão estar submetido a qualquer ordem.Quando assumi a vocação de médicoe comecei a trabalhar, a minha maiorexpressão de liberdade era poder pensar,escrever e comunicar aos outros aquiloque eu achava que era a minha verdade,sem limitações, sem censuras.

Nesse percurso de afirmação de liberdadeindividual, como é que finalmente se chegaaos outros?Essa liberdade foi evoluindo. Entre os 14e os 17 anos, por exemplo, reneguei todae qualquer consequência da educaçãocatólica, da catequese que tive na infância.Não havia nada que me limitasse; nem sequerDeus. Depois, nesta matéria da realidadeda transcendência, fui evoluindo de maneirasdiferentes. No entanto, o importante é quevivi esta, como outras matérias, sempre comouma forma de descoberta pessoal, nuncaimpingida de fora, nunca dependente da opi-nião de outros. Integrei várias descobertaspessoais ao longo do tempo. Antigamente,falava do que sabia. Hoje, falo mais do quesinto, do que vivo. É isso que procuro transmi-tir aos outros: a minha forma de estar na vida.

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O desafio maior talvez seja o de aceitarque essa afirmação enquanto pessoatermina com a aproximação do momentode morte enquanto experiência maissolitária, mais singular e intransmissível.A morte é, de facto, a experiência mais radical.Eu estou com muita esperança na minhamorte. Mas... Não existe a Morte. A Mortenão é nada, não passa de um instante. Existoeu que morrerei. Por isso, gostaria de vivera minha morte com normalidade psíquicasuficiente para que possa fazer dela umaespécie de estudo antropológico.Essa será inevitavelmente uma experiênciaradical, incomunicável e solitária.

Ou seja, na velhice, a consciência e vivên-cia da aproximação da Morte pode seruma experiência de plenitude, a de alguémque se consuma enquanto pessoa?Absolutamente. Gostaria de poder vivera minha própria morte na intimidade. Sei quevai ser fácil fazê-lo com tranquilidade. Se erapreciso fazer algum luto antecipado, já o fizhá muitos anos. Agora, resta a curiosidade.

E uma espécie de desafio consigo mesmo?Sim. Quando tive uma doença maligna, fizessa experiência: analisei-me como portadorde uma doença maligna. Porque o meu corpoestava doente, mas eu, enquanto pessoa,

estava de perfeita saúde e não sucumbiriaà doença.

Conheci um doente em estado terminalque, ainda assim, repetia todos os diaso mesmo mantra: «Ordeno às minhas célu-las que trabalhem para a saúde». De queforma é que o envelhecimento é tambémuma luta contra a degenerescência celular?Provavelmente, cada uma das nossas célulastem também uma vida individual, emboratenha de aceitar viver com outras célulasiguais e constituir sociedades, que são osnossos órgãos. O cérebro é o nosso órgãomais importante porque é constituído porcélulas isoladas; cada célula vale por si própria,ainda que estabeleça comunicação comoutras. O que espero é que, ainda que outrosórgãos estejam estragados ou deixem defuncionar, se mantenha razoável até ao fima estrutura celular cerebral que permite essasconexões, as sinapses entre as célulase a minha manifestação como espírito.Espero que essa pequena parte do cérebrofronto-supra-orbitário que nos distinguedos primatas mais próximos me permitadespedir-me de mim.

Ou seja, espera morrer coma autoconsciência activa, é isso?É ela que determina tudo.

Espero que a minha autoconsciência se man-tenha vigilante até que deixe de funcionar ese apague. Esse seria um fim natural, semqualquer sofrimento. Costumo dizer que«autoconsciência» é o nome moderno paraa antiga noção de «espírito».Na tradição hebraica, o Homem recebeude Iavé o sopro da vida e o sopro do espírito.Este último é que o diferenciou de todos osoutros animais, enquanto ser capaz de ascen-der ao conhecimento e ao julgamento entreo bem e o mal - a tal árvore da simbologiado Génesis. O ser humano possui esta pro-priedade nova, que fez que construísse aolongo de milénios uma espantosa culturaexterior simbólica. É isso que o torna capazde tomar decisões, a partir da ponderaçãode valores que resultam da experiência domundo e da sua transformação em memóriasvalorizadas, com componente ético e afectivo.Vamo-nos fazendo homens à medida queabsorvemos toda esta cultura simbólica exte-rior e criamos um mundo próprio em respostaao sistema ecológico, aos estímulos externos.A cultura é o espírito do homem.

Como vê a evolução do espírito do homemno sentido de um aumento da esperançamédia de vida?O esforço da inteligência do homem temservido para melhorar o tratamento médico

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das doenças. Sobretudo e mais importante,tem servido para melhorar a prevenção dasdoenças, a principal causa do aumento daesperança de vida. Quanto mais desenvolvidoe mais amplo for este espírito do homem,maior capacidade teremos de criar à nossavolta outras formas de mundo, nas quaisvamos poder viver durante mais tempo.

Esse é necessariamente um caminhocontra a biologia?Toda a acção dos médicos é contra a biologia.Mas eles não visam impedir a morte, e simimpedir a morte antecipada. Cada ser humanopossui um programa genético que o preparapara que, em determinado momento, as suascélulas parem de conservar a água. Um idososaudável morre quando o seu organismo setorna incapaz de fixar a água. Nós vivemosnove meses dentro de água e, depois, vive-mos fora dela porque possuímos uma reservade água que protegemos e que, com os sais,permite o funcionamento de todos os órgãos.Quando as células deixam de ter capacidadeenergética para manter esse líquido intersticial,perdemo-lo e os orgãos secam e deixam defuncionar. Essa é que é a morte natural; aquiloa que, no Norte do país, o povo chama«morrer sem doença nenhuma, sequinho».A medicina apenas consegue contrariara morte antecipada, evitando que morramos

antes do prazo programado pela genética.A Morte é uma obrigação biológica, um prazocontrolado até ao fim pela genética. Somosnós que estragamos tudo, com os factoresextra-genéticos. Por exemplo, uma das condi-ções para viver mais tempo é passar fome.Quem passa fome, morre muito mais tarde.

Por isso é que, nos paísessubdesenvolvidos, existem mais idosos?Precisamente. A esperança de vida diminuinas áreas do mundo em que existe maiorabundância e, consequentemente, maisexcessos na alimentação.

Mas, no caso dos idosos, o prazerda mesa é um factor de satisfaçãoimportante...Atenção: o prazer alimentar nunca advémdo excesso. Para ter prazer, há que ter mode-ração: peso, conta e medida. Passa-seo mesmo com o prazer sexual. Um indivíduoque deixa de ter limitações na provocaçãodo orgasmo sexual, vai desgastando a pos-sibilidade de prazer. O excesso pode levá-loa uma insatisfação crónica.

Portanto, a idade sénior deve sera da temperança à mesa.E perante o prazer sexual?A forma de obter prazer na relação corporal

vai evoluindo com o tempo. Habitualmente,ela é de má qualidade na adolescência, masassume formas diversas no período da fecun-didade e da gravidez. Hoje em dia, o homemtem até muito tarde possibilidade de produzirespermatozóides e de ter erecção. Na idadesénior, a mulher tem também de encontrarformas de compensação afectiva, emocionale corporal. Na verdade, à medida que o tempoavança, o prazer não corporal acaba portornar-se o mais importante, porque podeser repetido constantemente: não tem limites,não se gasta. O amor e a vivência dos afectosmantêm-se e podem ser muito enriquecidos.Há formas de comunicação amorosa e sexualdos idosos que não passam pela relaçãocoital, mas são riquíssimas em termos de sa-tisfação corporal global. Deste modo, tantoo homem como a mulher seniores podematingir uma espécie de orgasmo difuso, tãovalioso como o orgasmo do coito que, entre-tanto, perdeu interesse.

Até que ponto é que a intervenção do ido-so na sociedade é ilimitada? Talvez o sejase também nesse campo o considerarmos,já não a partir da sua capacidade de exe-cução, mas por exemplo como umobservador crítico...Alguns idosos têm uma coisa curiosa... Estãoali no largo da sua terra, sentados e quietinhos,

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a avaliar tudo o que se passa à sua volta,a comentá-lo de modo crítico, irónico, porvezes, até jocoso. Eles têm a noção de quejá não participam na situação a que assistem,mas analisam-na à luz da sua experiência devida, com uma complacência muito especial.

É essa espécie de distanciamentoactivo que define a sabedoria do idoso?Mais do que como uma acumulação de sabe-res, a sabedoria do sénior deve ser interpreta-da como o cruzamento dos vários saberespara a criação de uma sabedoria nova.Ele pode mais facilmente relacionar-se comos outros num clima afectivo e de compreen-são, ou seja, de maior sabedoria. É inegávelque, por exemplo, eu hoje tenho muito maiscapacidade para interpretar os comportamen-tos dos meus netos do que tive aos 30 anos,com os meus filhos.

A sociedade portuguesa está muitolonge de perceber o valor desse tipode contributo...Mas vai ser rapidamente obrigada a reconhe-cê-lo. Porque, provavelmente, dentro de umano ou dois, existirão cerca de dois milhõesde portugueses com mais de 65 anos.Uma parte significativa dessas pessoas serãoindivíduos saudáveis, independentes e autóno-mos, cidadãos como quaisquer outros, coma mais-valia da possibilidade de serviremcomo sábios mediadores. Essa mediaçãoprudente começa a ser reconhecida.E sê-lo-ia ainda mais, se os meios de comuni-cação social abrissem espaço para umaimagem positiva e produtiva dos cidadãosseniores e da sua influência na sociedade.No Ocidente, continuamos a viver o primadoda autonomia.

Em que sentido?No sentido em que se considera que ummiudinho de 14 anos já pode tomar decisões...Estamos longíssimo, por exemplo, da socie-dade chinesa, que acha que só depoisdos 70 anos é que se pode assumir grandes

responsabilidades. Ali, vive-se o primadodos seniores. Porque há muito tempo queos chineses chegam aos 80 ou 90 anos emcondições normais, de sabedoria máximae de saúde. A própria sociedade está baseadana família, e quem manda na família é o sénior.É ele quem decide e quem governa como estatuto de quem sabe o que é melhorpara todos.

No século XX Ocidental, os avançostecnológicos foram permitindo umacada vez maior autonomia dos idosos.Quais foram os avanços que maiso surpreenderam?Do ponto de vista médico, o maior avançotecnológico de que fui beneficiário foi podercurar uma neoplasia maligna através de umacirurgia realizada a tempo e horas.Outro avanço possibilitou-me uma visão muitomelhor, através de uma cirurgia de substituiçãodo cristalino que demorou nove minutos paracada olho. Em muitíssimos outros aspectos,a tecnologia facilita a vida do idoso, tornando--a incomparavelmente mais confortável emais autónoma do que há algumas décadas.

De que é que tem nostalgia do passado?Não sou, nunca fui um nostálgico. A diferençamaior é a velocidade a que vivemos. A nossavida hoje é toda muitíssimo mais rápida.Houve como que um encurtamento do tempo.Os avanços nos meios de comunicaçãoe um formidável acesso à informação poten-ciaram essa aceleração. Mas, às vezes,por falta de tempo de maturação, chega-sea decisões demasiado apressadas, contrapro-ducentes e até com maus resultados.

Ao mesmo tempo, ultrapassar esseslimites físicos e temporais conduziu-nosao que os filósofos chamaram«o fim das certezas»...Os filósofos do pós-modernismo defendemmuito essa ideia de que desapareceram ascertezas. A verdade é que foi no campo daciência que elas começaram por desaparecer.

Primeiro, Ilya Prigogine [1917-2003, PrémioNobel da Química em 1977] escreveu o ensaio«La Fin des Certitudes», referindo-se a certe-zas físicas e matemáticas e apontando, maisdo que o fim das certezas, a existência deáreas de indeterminação. Essa noção foidepois alargada do campo da interpretaçãodo universo físico e astronómico para os cam-pos psicológicos, filosóficos, da reflexão men-tal e intelectual e, por fim, da religião. O Maiode 68 foi o início do fim das certezas. Aconteceé que não podemos viver sem nos apoiarmosem certezas.

Aos 81 anos, tem alguma certeza absoluta?Temos todos uma certeza absoluta, que éa da finitude da vida humana. Sabendo quevou morrer, eu devo apoiar-me nessa certezapara criar, construir e viver outras certezas.Eu tenho a certeza de que, se for bom paraos outros, serei mais feliz do que se for mau.Essa é a certeza de que a ética e a solidarie-dade funcionam independentemente de tudoresto. A ética dos comportamentos humanosresulta da aceitação dos valores individuaisde cada membro da sociedade, valores essesque dependem de cada experiência de vidaparticular. Mas a vida em sociedade obrigaa uma ética de dois, à compatibilidadee à aceitação e interiorização de valoresuniversais. Eu tenho a certeza absoluta deque a morte do homem pelo homem éinadmissível, em toda e qualquer circunstância.Todos os dias em Portugal há um ser humanoque é morto por outro. E isso acontece porqueaquele que mata não interio-rizou o valorabsoluto da Vida. Enquanto o respeito pelaVida, tal como respeito pela Morte, for umvalor relativo, estaremos ainda muito longeda hominalidade perfeita. Tenho a certezaabsoluta de que, quando acabar a mortedo homem pelo homem, atingiremos de factoa paz definitiva entre os homens, entre asreligiões e entre as nações. Só então existiráa felicidade absoluta na terra, e ascenderemosà verdadeira categoria de seres humanos,de pessoas livres na Vida e na Morte.

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