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115 CHAUD, E e SANT’ANNA, T. F. (Orgs.). Anais do VII Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual Goiânia-GO: UFG, FAV, 2014 ISSN 2316-6479 “BRASIL NATIVO/ BRASIL ALIENÍGENA” A PERFORMANCE FOTOGRÁFICA DE ANNA BELLA GEIGER Armando Coelho PPGACV FAV/UFG Resumo Este estudo sobre a obra “BRASIL NATIVO/ BRASIL ALIENÍGENA” da artista carioca Anna Bella Geiger analisa sua contribuição em um processo em que arte brasileira se expande em sua percepção física e filosófica durante os anos 60 e 70 no Brasil. A base deste trabalho se encontra em detalhar os avanços que este novo pensamento surgido na arte brasileira inscreveu na História da Arte no Brasil assim como dialogou com os avanços da filosofia mundial. Palavras chave: Anna Bella Geiger, história da arte brasileira, fotografia no Brasil. Abstract This study about the art work “BRASIL NATIVO/ BRASIL ALIENÍGENA” by Anna Bella Geiger, an artist from Rio de Janeiro, Brazil, analyses her contribution in a process where Brazilian art expands in its physical and philosophy perception in the 60’s and 70’s in Brazil. The basis of this work tries to outline the advances that this new knowledge emerged in Brazilian art, which has written in Brazilian art history as it dialogues with the world philosophy. Keywords: Anna Bella Geiger, Brazilian Art History, Brazilian photography. 1. Anna Bella Geiger e a arte no Brasil do início dos anos 70 Seria um equivoco fazer a leitura desta série de 1977, “Brasil nativo/Brasil alienígena”, de Anna Bella Geiger, sem situar a artista dentro do contexto da arte dos anos 70 no Brasil e sem remontar, mesmo que brevemente, alguns processos pelos quais se configurou a História da Arte Brasileira. Seria insuficiente porque a arte de Anna Bella Geiger como um todo, mas especificamente esta série, apresentou durante aqueles anos questões até então novas dentro do pensamento artístico do país, e para compreendermos seu trabalho por completo temos que retornar a postura da arte brasileira dos anos 70 e a realidade da fotografia no país durante o período. Sabemos que em abril 1967 ocorreu a mostra Nova Objetividade Brasileira no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, tendo a figura de Hélio Oiticica como um teórico deste novo processo escrevendo em 1968 o texto “O Objeto – Instâncias do Problema do Objeto”:

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79 “BRASIL NATIVO/ BRASIL ALIENÍGENA” A PERFORMANCE FOTOGRÁFICA DE ANNA BELLA GEIGER

Armando CoelhoPPGACV FAV/UFG

ResumoEste estudo sobre a obra “BRASIL NATIVO/ BRASIL ALIENÍGENA” da artista carioca Anna Bella Geiger analisa sua contribuição em um processo em que arte brasileira se expande em sua percepção física e filosófica durante os anos 60 e 70 no Brasil. A base deste trabalho se encontra em detalhar os avanços que este novo pensamento surgido na arte brasileira inscreveu na História da Arte no Brasil assim como dialogou com os avanços da filosofia mundial.Palavras chave: Anna Bella Geiger, história da arte brasileira, fotografia no Brasil.

AbstractThis study about the art work “BRASIL NATIVO/ BRASIL ALIENÍGENA” by Anna Bella Geiger, an artist from Rio de Janeiro, Brazil, analyses her contribution in a process where Brazilian art expands in its physical and philosophy perception in the 60’s and 70’s in Brazil. The basis of this work tries to outline the advances that this new knowledge emerged in Brazilian art, which has written in Brazilian art history as it dialogues with the world philosophy.Keywords: Anna Bella Geiger, Brazilian Art History, Brazilian photography.

1. Anna Bella Geiger e a arte no Brasil do início dos anos 70

Seria um equivoco fazer a leitura desta série de 1977, “Brasil nativo/Brasil alienígena”, de Anna Bella Geiger, sem situar a artista dentro do contexto da arte dos anos 70 no Brasil e sem remontar, mesmo que brevemente, alguns processos pelos quais se configurou a História da Arte Brasileira. Seria insuficiente porque a arte de Anna Bella Geiger como um todo, mas especificamente esta série, apresentou durante aqueles anos questões até então novas dentro do pensamento artístico do país, e para compreendermos seu trabalho por completo temos que retornar a postura da arte brasileira dos anos 70 e a realidade da fotografia no país durante o período.

Sabemos que em abril 1967 ocorreu a mostra Nova Objetividade Brasileira no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, tendo a figura de Hélio Oiticica como um teórico deste novo processo escrevendo em 1968 o texto “O Objeto – Instâncias do Problema do Objeto”:

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79O Objeto é visto como ação no ambiente, dentro do qual os objetos existem como sinais e não simplesmente como ‘obras’. È a nova fase do puro exercício vital, onde o artista é um propositor de atividades criadoras. O Objeto é a descoberta do mundo a cada instante, ele é a criação do que queiramos que seja. Um som, um grito, pode ser o Objeto. (OITICICA, 1968, p.03)

E foi essa noção ampla de objeto que fundamentou dois eventos em Belo Horizonte, “Objeto e Participação”, no Palácio das Artes, e “Do Corpo a Terra”, no Parque Municipal de Belo Horizonte, em 1970, com curadoria de Frederico Morais. Foram vários os aspectos inovadores em ambos os eventos. Pela primeira vez no Brasil, artistas eram convidados não para expor obras já concluídas, mas para criar seus trabalhos diretamente no local. Com isso uma pratica performática se constituía no Brasil já no inicio dos anos 70.(MORAIS, 2006, p.96) Em fevereiro de 1970, Frederico Morais, publicou na revista Vozes, do Rio de Janeiro, o ensaio “Contra a arte afluente: o corpo é o motor da obra”, no qual analisava a produção recente da arte brasileira a partir do que Morais chamava de “guerrilha artística”. Esse texto, que funcionou quase como um “manifesto” encontrava-se disponível na exposição. Uma passagem deste texto manifesto de Morais explica bem as novas diretrizes da arte do período:

“Da arte à anti arte, do moderno ao pós-moderno, da arte de vanguarda à contra-arte, a abertura é sempre maior. O horizonte da arte, hoje, é aberto, impreciso. Situações, eventos, rituais ou celebrações – a arte não se distingue mais, nitidamente, da vida e do cotidiano. (...) A vida que bate no seu corpo – eis a arte. O seu ambiente – eis a arte. Os ritmos psicofísicos – eis a arte. A vida intra-uterina – eis a arte. A supra-sensorialidade – eis a arte. Imaginar – eis a arte. O pneuma – eis a arte. A apropriação de objetos e de áreas – eis a arte. O puro gesto apropriativo de situações humanas ou vivencias poéticas – eis a arte.” (MORAIS, 2001, p.169, 178)

Enquanto a Nova objetividade chacoalhava o meio artístico nacional, questionando o suporte e introduzindo a ação no objeto, a fotografia produzida no Brasil continuava a saga pela busca da identidade do brasileiro. A razão da própria fotografia passou a ser no Brasil, o registro, ou a construção, da identidade do brasileiro, mapeando o Brasil humano, tornando visíveis suas várias expressões e modos de vida, uma função que a fotografia retirou da pintura desde o realismo do século XIX. Aparentemente esgotada essa função, essa necessidade de criar itens precisos de identidade nacional por meio de imagens paradigmáticas começou então a se deteriorar no país a partir de meados dos anos 70. (CHIARELI, 1999)

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79A fotografia, desde seu início no Brasil, por um lado serviu como registro da paisagem física e humana do país e, por outro, impulsionou certos artistas a realizar uma imersão mais vertical na busca do autoconhecimento como indivíduos ou seres sociais. (CHIARELI, 1999, p.115)

No caso da artista carioca Anna Bella Geiger, a fotografia não foi um meio para conhecer o mundo, “mas um instrumento pra conhecer-se e conhecer o outro no mundo”, frase inicialmente colocada por Tadeu Chiarelli para se referir à geração de fotógrafos que iria surgir a partir da década de 90, mas que se enquadra bem para uma análise da produção de Geiger. A série “Brasil nativo/ Brasil alienígena”, da artista, realizada nos anos 70, questionou esse processo de busca por uma identidade brasileira e abriu caminhos para essa nova geração de fotógrafos/artistas surgidos da década de 90, reconhecidos por Chiarelli, e que apresentaram a impossibilidade de caracterizar o brasileiro como ser social ou individual. O autor observa que essa geração, precedida pela produção extremamente crítica Geiger, rompe com a caça pelo “Eu” simbólico, e parte para o questionamento do “Eu” dissolvido na massa populacional, o seu “apagamento“, o seu nivelamento, sem traços distintivos dentro da complexidade social do país. (CHIARELI, 1999)

2. A performance fotográfica de Anna Bella Geiger

A artista, em “Brasil nativo/ Brasil alienígena”, propõem um jogo entre a sua figura e a figura do índio brasileiro, uma contraposição de costume, entre a relação direta com o solo, com um pequeno número de pessoas, prazeres e deveres contra a autoconsciência notável da mulher intelectual da grande metrópole, portanto, um discurso social, porem mais relacionado com os significados do que com as simbologias. A viagem antropológica proposta pela artista parece processar a velha busca por uma identificação nostálgica com o elemento nativo brasileiro, o índio e seus costumes. Uma identificação por meio da repetição de gestuais indígenas apresentados em cartões postais. Porem, a identidade do brasileiro não era o objeto de preocupação da artista, sua preocupação era exatamente o oposto. Uma identidade simulada vendida como uma identidade real observada pelo abismo entre os personagens conflitantes. Nesta série, o índio brasileiro é apresentado de forma crítica a essa procura por uma identidade nacional. O exótico promove o lado da teatralização favorecendo assim uma percepção ficcional dos ritos. As fotografias da artista ganha contornos de ironia quando a diferença salta aos olhos e apresenta a real impossibilidade de identificação com o outro. O eu e o outro, observados

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79em “Brasil nativo/Brasil alienígena”, desmascara essa impossibilidade total de identificação entre uma mulher metropolitana, artista e intelectual, e a caricatura do índio, nativo brasileiro.

Figura 1 - Anna Bella Geiger, Brasil Nativo / Brasil Alienígena, 1977

Figura 2 - Anna Bella Geiger, Brasil Nativo / Brasil Alienígena, 1977

Geiger, em Brasil nativo/Brasil alienígena, mexe com as contradições evidenciando mecanismos de representação cultural, de uma busca por uma identidade nacional, que vem desde os primeiros discursos modernistas no Brasil. A artista neste trabalho desconfia da missão pedagógica das imagens do Brasil nativo. Os postais vendidos nas bancas de todo o país como imagens dos índios brasileiros, na ação de revelar e promover a cultura nativa exerce, na verdade o extermínio dessa cultura, mitificando, folclorizando, submetendo o índio a uma realidade de alegoria, fantástica e simulada. Escondendo de fato seu comportamento e seu cotidiano, que hoje sabemos se assemelha mais ao sertanejo ribeirinho que ao selvagem de arco e flecha. Documentos de grupos primitivos no Brasil transcendem esse caráter de registro quando

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79são remontadas em assemblages dialogando com fotografias de performances miméticas. O mimetismo da ação revela a impossibilidade da identificação denunciando o processo simulatório e alegórico. E é dentro deste contexto que toda a especulação regionalista ufanista se esvai não se confirmando, restando assim somente uma artista, e sua relação com a percepção cultural de seu país.

A interrogação que a simulação coloca, é que a verdade, a referência, a causa objetiva deixaram de existir. O que nos deixa em uma deriva conceitual dentro da história do comportamento. Precisamos de um passado visível, um continuum visível, um mito visível da origem, que nos tranqüilize sobre os nossos fins. (BAUDRILLARD, 1991) Anna Bella Geiger manipula o meio fotográfico não somente para registrar seu entorno, mas para buscar a si mesma. Sua reprodução performática revelara se seu objeto esta na identidade ou na sua fragmentação.

Já não se trata do símbolo da absoluta auto-referência, mas de um signo de total despersonalização do indivíduo na sociedade atual, incapaz de reconhecer nem a si memo. Os trabalhos de Anna Bella Geiger denunciam a impossibilidade de que o artista contemporâneo possa criar uma fusão feliz entre o eu e o outro, em seu sentido mais amplo. (CHIARELI, 1999, p.115)

Para conquistar esse pressagio contestador, Geiger se utilizou de um procedimento artístico que estava na ordem do dia em 1970, a performance. Mesmo não apresentando seu trabalho como uma performance artística, sua série “Brasil nativo/Brasil alienígena” possui uma grande carga performática. Tanto pelo fato da artista simular os gestuais indígenas em registro fotográfico, como também por alçar mão da “apropriação” como procedimento de construção da obra. Nota-se que a performance e a apropriação são procedimentos previstos pela “Nova Objetividade”, sendo citados tanto por Hélio Oiticica, quanto por Frederico Morais em seus textos teóricos. Anna Bella Geiger sabia o que estava falando quando apresentou sua dicotomia de esquartejamento nativo/alienígena e ainda inaugurou o retorno ao museu das ações efêmeras, sugerindo a fotografia como técnica útil de registro de happenings.

Uma fotografia contaminada pelo olhar, pelo corpo, pela existência de seus autores e concebida como ponto de intersecção entre as mais diversas modalidades artísticas, como o teatro, a literatura, a poesia e a própria fotografia tradicional. Assim, Geiger seria vista como fotógrafa, mas como artista que manipula o processo e o registro fotográfico, contaminando-os com sentidos e práticas oriundas de sua vivência e do uso de outros meios expressivos. (CHIARELI, 1999, p.115)

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Figura 3- Anna Bella Geiger, Brasil Nativo / Brasil Alienígena, 1977

Estas performances da artista, registradas pelo fotografo Luiz Carlos Velho (à direita), e apresentadas ao lado de cartões postais da editora Bloch (à esquerda), configuram o trabalho final da artista, o qual, Geiger não tem participação no registro das imagens, somente no processo de pensar e produzir a simulação do gestual nativo.

Em “A Morte do Autor” (1977), Roland Barthes sustenta a “dessacralização da imagem do autor”, ele argumenta que o “autor é uma figura moderna, criada pela sociedade que a criou”. Comentando mais especificamente da produção literária, Barthes afirma que “... um texto não é uma linha de palavras que liberam um significado único, mas um espaço multidimensional no qual vários escritos, nenhum deles original, se fundem e se chocam” (BARTHES, 1977, p.146)

Um texto é constituído de múltiplos escritos, hauridos em muitas culturas e que ingressam em relações mútuas de diálogo, de paródia, de contestação, mas há um lugar que essa multiplicidade focaliza, e esse lugar é o leitor, e não, como se disse até agora, o autor (...) O nascimento do leitor se deve fazer ao preço da morte do autor (BARTHES, 1977, p. 148).

Trazendo para o campo da produção visual questões que Barthes levanta sobre a “morte do autor” podemos notar que esta polifonia, e polissemia, observadas em seu texto ganha contornos práticos em “Brasil nativo / Brasil alienígena”, de Anna Bella Geiger. O cartão postal da Bloch, apropriado por Geiger, se re-significa em contato com a imagem da artista em ação mimética, e a artista, desta forma, se coloca assim dentro do discurso daquela imagem, construindo discurso e, portanto, reconstruindo a própria imagem.

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79A fotografia de apropriação é capitaneada no Brasil pela artista Rosangela Rennó. Assim como em “Brasil nativo / Brasil alienígena”, de Geiger, a produção de Rennó põem em dúvida a questão autoral de sua produção “pelo suposto distanciamento proposto pela artista entre ela e seu objeto de investigação”. (CHIARELI, 1999, p.141)

Embora a fotografia de apropriação no Brasil tenha ganho força ainda nos anos 70, com as produções de Anna Bella Geiger e Regina Silveira, entre outros, foi nos anos 90, e sobretudo com o exemplo marcante da produção de Rennó, que ela se expandiu no país. (CHIARELI, 1999, p.142)

A apropriação é um procedimento derivado dos objet trouvé (objeto encontrado) que por sua vez é derivado do conceito de readymade criado por Marcel Duchamp em 1912. Readymade consiste em um ou mais artigos de uso cotidiano, produzidos em massa, selecionados sem critérios estéticos e expostos como obras

de arte em espaços especializados (museus e galerias). Já o objet trouvé é escolhido em função de suas qualidades estéticas, de sua beleza e singularidade (implicando então num juízo de gosto)1. A apropriação é a ação destes dois conceitos, é o ato de apropriar-se de um objeto escolhido por suas qualidades estéticas ou não, e apresentados em conjunto com outros objetos ou individualmente, e exposto em espaços de legitimação artística. Observando esses procedimentos de apropriação nota-se que esse gesto alavanca um discurso que ultrapassa ao universo pictórico promovendo um jogo mental, que circula entre a proposição e a contestação.

Figura 4- Anna Bella Geiger, Brasil Nativo / Brasil Alienígena, 1977

1 E-enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais - www.itaucultural.org.br

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79A artista brasileira Regina Silveira, contemporânea de Anna Bella, segundo Chiarelli, a partir do contato com a obra de Marcel Duchamp, nos anos 70, conseguiu perceber que o caminho para a maturação de sua poética era recuperar, em chave crítica, aqueles códigos anteriormente desprezados, reinventando-os, para deles retirar outras possibilidades de significação, promovendo sempre a subversão do olhar do espectador. (CHIARELI, 1999, p.36)

Nota-se que a arte é permeada de sistemas organizados e repletos de regras. São essas regras, que a partir de Duchamp, e dos dadaístas, transitando entre a filosofia e o cotidiano, estão sempre prontas a serem enfrentadas ou colocadas em xeque pelo artista. “A Morte do Autor” (1977) de Barthes, e “O que é um Autor?” (1979), de Michel Foucault são bons exemplos desta prática. A polifonia prevista por Barthes e a autonomia do texto em relação ao autor observada por Foucault na passagem: “a maneira pela qual um texto aparentemente aponta para essa figura que esta fora dele e o antecede”, também aborda a questão da subversão da percepção. (FOUCAULT, 1979, p.19) Dentro deste raciocínio de questionamento da autoria podemos argumentar que tanto os postais da editora Bloch como as fotografias das performances de Geiger, que foram registradas pelo fotografo Luiz Carlos Velho, são polissêmicos e polifônicos, e que ambos contêm e expressam significados que vão além dos pretendidos pelos indivíduos que são seus autores. São semânticas que perpassam tanto na autoria das imagens, quanto na autoria do trabalho artístico. Embora a vozes da obra se originem, evidentemente, do pensamento do autor, sua multiplicidade vem da complexidade do mundo social no qual o autor está localizado.

Dentro desta perspectiva de re-significação, podemos evidenciar a afirmação de Chiarelli que o eu e o outro, observados em “Brasil nativo/Brasil alienígena”, desmascara a impossibilidade total de identificação entre uma mulher, artista, intelectual, e o índio, nativo brasileiro. Essa impossibilidade se da exatamente pela simulação. Observando esse ato de Geiger pela perspectiva teórica dos “Simulacros e Simulação” (1991), de Jean Baudrillard, a simulação neste caso já não é a simulação de ato, de um referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade. A ação já não precede a simulação, nem lhe sobrevive. É agora a simulação que precede a ação, como diz Baudrillard, é a precessão dos simulacros, é ele que engendra a ação cujos fragmentos apodrecem lentamente sobre a simulação de Geiger. É o real, e não a simulação, cujos vestígios subsistem aqui e ali. (BAUDRILLARD, 1991)

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Figura 5 - Anna Bella Geiger, Brasil Nativo / Brasil Alienígena, 1977

Pela repetição da pose, a artista anula qualquer possibilidade de confluência entre os dois personagens, entre o eu e o outro. Aqui o outro é o índio pateticamente transformado em sua própria caricatura e o eu de Geiger sendo a caricatura da caricatura. (CHIARELI, 1999, p.116) Algo então permanece na obra da artista, a diferença soberana entre a ação e a simulação, que constituí o encanto da abstração, como diz Baudrillard. Pois é na diferença que consiste a poesia da simulação de Geiger e o encanto da ação primitiva do índio, a magia do conceito e o encanto do real. (BAUDRILLARD, 1991)

Referências biliograficas

BARTHES, Roland. A Morte do Autor, in: O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa : Relógio D’Água, 1991

CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. São Paulo: Lemos-Editorial, 1999.

FOUCAULT, Michel. O que é um Autor?. 3.ed. Lisboa: Veja, 1992

MORAIS, Frederico. Contra a Arte afluente: o corpo é o motor da “obra”. In:

BASBAUM, R. (org.) Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções,

estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 169-178.

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79_____________. Do corpo à terra. In: FERREIRA, Glória (org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.

OITICICA, Hélio. O Objeto – Instâncias do Problema do Objeto. In:

Revista GAM, Rio de Janeiro, julho 1968.

_____________. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

Minicurrículo

Armando Coelho – Possui graduação em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás (2002) e mestrado em Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (2009). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Artes, atuando principalmente nos seguintes temas: arte contemporânea, arte brasileira, mercado de arte, arte goiana, anos 80.