antropologia e imagem - andrea barbosa

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  • Coleo Passo-a-PassoCINCIAS SOCIAIS PASSO-A-PASSODireo: Celso Castro

    FILOSOFIA PASSO-A-PASSODireo: Denis L. Rosenfield

    PSICANLISE PASSO-A-PASSODireo: Marco Antonio Coutinho Jorge

    Ver lista de ttulos no final do volume

  • Andra BarbosaEdgar Teodoro da Cunha

    Antropologia e imagem

  • Sumrio

    Introduo

    Antropologia e imagem:primeiros encontros

    Outras histrias paralelas:Flaherty e Malinowski

    Paradigmas de um cinema antropolgico:Mead e Bateson, Rouch e MacDougall

    Qual o lugar da imagem napesquisa antropolgica?

    Concluso

    Referncias e fontes

    Leituras recomendadas

    Vdeos e filmes sugeridos

    Sobre os autores

  • IntroduoA constituio de um campo da disciplina antropolgica na rea da discusso da imagem questo que vem sendo debatida internacionalmente h pelo menos 40 anos. Nem por isso hunanimidade quanto ao termo que designaria esse campo ou mesmo as subreas que a elepoderiam estar relacionadas. Em vrias instncias e instituies observa-se a utilizao deexpresses como antropologia visual, antropologia da imagem e do som, antropologia doaudiovisual, antropologia da imagem e outras mais.

    Todas elas guardam um pouco das facetas da longa discusso acerca desse assunto: aimagem (fotografia, cinema ou vdeo) como uma questo de mtodo; a imagem pensada comoartefato cultural e por isso passvel de se transformar em objeto da antropologia; a linguagemaudiovisual como um caminho possvel para elaborao e divulgao dos resultados depesquisa, constituindo-se em alternativa etnografia clssica; e ainda a utilizao do debateem torno da imagem, realizada em qualquer um desses casos, como subsdio para umadiscusso epistemolgica da prtica antropolgica.

    Este livro tem por objetivo mapear um percurso de contato e interlocuo entre aantropologia e a produo de imagens. Trata-se de trazer uma discusso sobre oestabelecimento de relaes efetivamente construdas ou possveis entre a elaborao doconhecimento antropolgico e o universo da imagem. Percorreremos, assim, desde os pontosde contato das histrias do nascimento da antropologia como disciplina e do cinema comolinguagem at as experincias paradigmticas da utilizao da imagem no mbito da pesquisaetnogrfica. O intuito, nesse sentido, discutir as vrias possibilidades que a introduo daimagem no campo da antropologia pode oferecer.

  • Antropologia e imagem: primeiros encontrosA histria da construo da linguagem fotogrfica e cinematogrfica desenvolveu-separalelamente elaborao dos mtodos clssicos da antropologia. Houve muitasaproximaes ao longo dessa histria, mas, de forma geral, elas expressaram formas de olhare de construir problemas de maneira homloga uma colaborao ao mesmo tempo distantee provocadora, mas que evidencia o quanto a antropologia, a fotografia e o cinema, enquantoconstrues culturais, podem compartilhar o desafio de entender e significar o mundo e suadiversidade.

    Embora a construo da noo de medida humana e sua importncia para a reflexosobre o mundo e a vida remontem antigidade clssica e ainda que descries de diferentesgrupos e povos com os quais os gregos se relacionavam j estivessem presentes na obra deHerdoto, Aristteles e Xenofontes, no podemos classificar essa produo como umadisciplina. A antropologia, como campo de produo que posteriormente se transformar emdisciplina cientfica, uma criao do humanismo do sculo XVIII, um momento bastanteespecfico da histria do pensamento, preocupado com a sistematizao racional doconhecimento humano sobre diversas reas, a includos o prprio homem e sua vida emsociedade. Nesse momento, tornava-se importante sistematizar o conhecimento sobre osoutros, no-europeus, distantes no espao, mas simbolicamente prximos o bastante paraserem considerados ameaadores.

    Diante dessas preocupaes, o pensamento filosfico humanista e ilustrado do sculoXVIII construiu uma noo de alteridade, enquanto percepo das diferenas, enfatizando assemelhanas. O projeto de cincia do homem, defendido por Voltaire, Montesquieu eRousseau, criava uma histria natural, oposta teleologia, que defendia uma natureza humanauniversal. Nesse sentido, as diferenas entre os homens so colocadas tambm na ordem danatureza. So externas e incmodas, existindo por interferncia de fatores exteriores enaturais, como clima, localizao geogrfica e outros elementos que as produzem.

    A idia do bom selvagem de Rousseau a referncia para pensar com interesse e, svezes, condescendncia sobre grupos tnicos americanos, africanos e asiticos colocados emcontato permanente com os europeus pela expanso mercantilista empreendida desde finais dosculo XV. Eles so considerados o que foram os europeus num passado mtico: povosdistantes e no corrompidos pelo estabelecimento da sociedade contratual. A diferena aqui colocada em posio ambivalente entre natureza e cultura. Iconograficamente, podemoslembrar das imagens produzidas pelos viajantes e artistas da misso de Maurcio de Nassauao Brasil. Albert Eckhout (1610-65) foi um desses artistas que esteve no Brasil entre 1639 e1644, e foi a partir dessa experincia que pintou, em telas de grande tamanho, os tiposhumanos locais, como ndios, mestios e africanos, alm de espcimes da fauna e florabrasileiras.

    Eckhout pintou oito figuras humanas, quatro casais em retratos posados, com suassingularidades. So eles ndio tupi e ndia tupi, ndio tapuia e ndia tapuia, Mulhermameluca e Homem mestio, Mulher africana e Homem africano. Neles podemos percebercerta ambivalncia no tratamento dos personagens quanto a sua humanidade e ao lugar queocupam no mundo. So quadros monumentais, em que as figuras humanas foram concebidaspraticamente em tamanho natural, com inmeros pormenores etnogrficos, botnicos e

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  • zoolgicos, associados como atributos dos personagens. Cada um deles representadoisoladamente, com o olhar voltado para o observador, ocupando a posio central do quadro ese destacando do segundo plano composto com elementos locais: plantas exticas, pequenosanimais, objetos, cenrios e adereos que, alm de conferirem carter descritivo s pinturas,lhes atribuem significados particulares. Os indgenas ora so uma alegoria da domesticao epor isso humanizados, como os ndios tupi, ora so uma alegoria da selvageria e da barbrie,como os ndios tapuia. Por meio dos atributos associados a cada personagem o artista constrivalores opostos, e essa ambivalncia que torna esses retratos to instigantes at hoje.

    A alteridade, nesses casos, marcada pela busca de uma origem da humanidade cujamemria se perdeu h muito por questes externas ao prprio homem, mas que de algumamaneira esses homens selvagens poderiam fazer relembrar. Interessante tambm perceberque, acompanhando as reflexes filosficas, estava o movimento de representar plastica eesteticamente essa alteridade, de tornar visvel esse semelhante distante, mesmo que aindaextico e muitas vezes opaco.

    , contudo, o evolucionismo, na segunda metade do sculo XIX, que vai transformar aalteridade, a diferena, em problema epistemolgico. E vai faz-lo rompendo com a idia deuma natureza humana filosfica. O selvagem torna-se o primitivo, o que vive em situaosemelhante do homem civilizado europeu em seu passado histrico. A histria dahumanidade passa a ser concebida como uma srie de estgios sucessivos de desenvolvimentodos grupos humanos, em que os chamados povos primitivos seriam os remanescentes deetapas iniciais desse desenvolvimento, e as sociedades europias, o ponto mais elevado doprocesso de evoluo das sociedades humanas. Dessa maneira, as sociedades ditas primitivasseriam sobreviventes de uma forma de vida que fatalmente desapareceria pela evoluonatural das sociedades.

    A idia da diferena perde sua ambivalncia e se torna um problema epistemolgico paraa cincia justamente quando deslocada para o mbito da cultura. essa noo de alteridadebaseada numa diferena cultural que inaugura a necessidade do conhecimento emprico dooutro. A cultura no estaria apenas nos artefatos, mas tambm em hbitos, valores ecomportamentos que precisavam ser apreendidos pela observao e registrados. A questoagora era trazer o que estava longe para perto, to perto que se tornasse um passadopresentificado. O perodo entre o final do sculo XIX e o incio do sculo XX marcado porvrias expedies etnogrficas realizadas com esse sentido da busca do longnquo, dando-lhevisibilidade, e nesse ponto que o encontro anunciado entre a antropologia e a fotografia e ocinema vai acontecer.

    Para a jovem antropologia desse perodo, essa operao de estabelecimento de distnciase proximidades seguia o movimento de encaixar toda a diversidade cultural constatada pelomovimento colonial do sculo XIX nos modelos para o estudo evolucionista dasmanifestaes da natureza humana.

    Nesse primeiro momento, pontuado pelo esforo racionalista, pesquisa antropolgica etcnicas e linguagens visuais estavam juntas. Um exemplo dessa parceria a expediomultidisciplinar ao estreito de Torres realizada em 1898 e comandada pelo pesquisadorAlfred Haddon, da Universidade de Cambridge. Dela participaram vrios cientistas, entre elesC.G. Seligman e W.H. Rivers, na qualidade de antroplogos. Nesse projeto, a cmera

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  • fotogrfica e o cinematgrafo constituram ferramentas fundamentais para o registro dosdiferentes tipos fsicos e culturais. Eram considerados instrumentos cientficos, tanto quanto omicroscpio, capazes de ampliar o olhar do cientista, pois ao estabilizar ou fixar osdados obtidos em campo facilitariam anlises posteriores. Para o antroplogo Marc-HenriPiault, o patrimnio imaterial que a antropologia pode hoje vangloriar-se de ter contribudopara inventariar materializa-se paradoxalmente nos rolos de filme produzidos nessesprocessos. Segundo essa perspectiva, gestos, falas, movimentos e expresses poderiam serconservados nos filmes assim como se conservam potes de barro e mscaras.

    Nas fotos antropomtricas, produzidas nas diversas expedies realizadas na virada dosculo XIX para o XX, podemos perceber um exerccio para construo de uma taxionomiados tipos fsicos e culturais e de seus estgios de desenvolvimento. Em uma fotografia daexpedio ao estreito de Torres, por exemplo, figura um grupo fazendo fogo com um graveto.Em outra pgina de relatrio de uma expedio ndia, temos a foto de uma menina colocadaao lado de uma folha de espcime botnico local. Nesse esforo classificatrio, homens eplantas compartilham um mesmo lugar nas observaes e nos registros cientficos. Ainda paraPiault, essa necessidade, criada pelo positivismo, de um conhecimento cientficoclassificatrio do homem e da natureza que justifica a ao civilizadora na explorao domundo.

    nesse momento tambm que se difunde na Europa o fascnio pelo mundo extico eprimitivo. Cartes-postais com retratos de aborgines com seus adereos primitivos, comolanas com ponta de pedra ou gravetos e ossos atravessados no nariz, so amplamentedivulgados e circulam como suvenires entre as classes abastadas europias. Estima-se que, sna Gr-Bretanha, milhes desses cartes-postais circularam nas primeiras dcadas do sculoXX.

    Nessa concepo, embora seja a cultura e no a natureza que produz a diferena entre ospovos, os chamados povos primitivos eram sempre representados visualmente de forma aaproxim-los do mundo natural em oposio ao mundo civilizado europeu: nudez, artefatosmanuais, costumes exticos e no racionais e outros mais eram as situaes e os elementosescolhidos para a construo dessas representaes imagticas.

    No esforo de demonstrar os ganhos advindos das descobertas tcnicas e cientficasdessas formas de conhecer o outro a antropologia com palavras e a fotografia e o cinemacom imagens , os pesquisadores esqueceram-se de considerar um elemento fundamental quepermeia a ao de ambos: a imaginao. Tanto a antropologia como a fotografia e o cinema,em seus diferentes processos de construo do conhecimento, elaboram mtodos e formas derepresentar, de dar corpo a uma imaginao existente sobre a alteridade. Imaginao aquimencionada em seu sentido mais interessante, que o de formular imagens de objetos esituaes, que j foram ou no percebidos articulando novas combinaes de conjuntos e dereferncias.

    Se, como dissemos, num primeiro momento a fotografia e o cinema se constituam comoinvenes tcnicas inseridas na lgica racionalista e da crena na potencialidade damodernidade como soluo para o desenvolvimento humano, no final do sculo XIX elatambm j era utilizada para encantar e maravilhar os homens, apresentando uma preocupaonarrativa: temos o cinema se tornando linguagem.

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  • Ao lado dos filmes que mostram cenas em tempo real, como os de paisagens e cenas docotidiano, trens chegando em estaes, crianas sendo alimentadas, tambm eram produzidosfilmes que reproduziam nmeros de magia, encenaes de contos populares e de contos defada, estes exigindo uma elaborao narrativa que fugia considerao do cinema como merodispositivo de registro documental.

    O mesmo processo pode ser pensado em relao antropologia, que em alguns casosdesenvolve uma metodologia voltada, justamente, para a construo do que seria uma boadistncia capaz de permitir a comunicao e ainda a produo de conhecimento sobre ooutro, baseadas nessa experincia.

    Como exemplo desse momento, podemos tomar os trabalhos pioneiros de Franz Boasrealizados nos Estados Unidos (The Central Eskimo, 1888) e de Bronislaw Malinowskirealizado nas ilhas Trobriand, na Oceania (Argonautas do Pacfico Ocidental, 1922).

    A boa distncia, ou seja, uma distncia que permita a comunicao entre realizador,documentarista, pesquisador, analista e os grupos e processos nos quais eles estointeressados configura-se, desde esse perodo seminal, como um desafio tanto para aantropologia como para o cinema, e nesse sentido que podemos estabelecer alguns paralelosentre trabalhos paradigmticos tanto em um campo como em outro.

    Cronologia flmica

    1895 Chegada do trem estao, Sada da fbrica, A refeio do beb, dos irmos Lumire1901 Canguru Ceremony, Austrlia, Baldwin Spencer1913/14 Sertes de Matogrosso, Brasil, major Thomaz Reis1914 The Land of The Head Hunters, Canad, Edward Curtis1917 Rituais e Festas Bororo, Brasil, major Thomaz Reis1922 Nannok of the North, Estados Unidos, Robert Flaherty

    Cronologia etnogrfica

    1871 Publicao de Primitive Culture, E.B. Tylor1888 Publicao de The Central Eskimo, de Franz Boas1889 Publicao de Native Tribes of Central Austrlia, de Baldwin Spencer e F.J. Gillen1890 Publicao de The Golden Bough, de James Frazer1898 Realizao da Expedio da Universidade de Cambridge ao estreito de Torres (entreAustrlia e Nova Guin)1922 Publicao de Argonautas do Pacfico Ocidental, de Bronislaw Malinowski

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  • Outras histrias paralelas:Flaherty e Malinowski interessante traar um paralelo entre dois trabalhos cujos mtodos e propostas estiverambem prximos sem necessariamente terem se tocado. Estamos nos referindo ao cineasta RobertFlaherty com seu Nannok of the North, de 1922, por muitos considerado o marco inicial docinema documental, e ao antroplogo Bronislaw Malinowski com Argonautas do PacficoOcidental, tambm de 1922, considerado o marco do mtodo do moderno trabalho de campona antropologia.

    O sculo XIX, em seu contexto social e histrico, marcado pela busca da compreenso eassimilao do mundo pelos europeus, caracteriza o surgimento e consolidao da etnografia edos registros visuais, como a fotografia e o cinema, apontando para questes fundamentaissobre essas formas de representao da realidade social. As expedies cientficasmultidisciplinares e as tcnicas fotogrficas e flmicas, que se multiplicam a partir dessapoca, vo possibilitar o registro de acontecimentos de um mundo mais amplo que odelimitado pelo continente europeu e permitir a apreenso da diversidade racial e social.

    tambm no final desse sculo que a ambio do Ocidente em organizar o mundo setraduzir em processos como o da expanso colonial. A cincia, o cinema e a fotografiaassumem lugares fundamentais como disciplina e instrumentos privilegiados para aobservao da experincia humana. A investigao cientfica propicia empresa civilizadorados estados-naes europeus a certeza da existncia de uma medida racional que explica adiversidade racial e cultural do mundo, que a expanso colonial explora, e mesmo justifica alegitimidade dessas formas de ao. O cinema e a fotografia garantem a esse mesmomovimento civilizador um carter de objetividade ao materializar corpos e hbitos que setornam assim passveis de catalogao e classificao.

    Ainda nesse perodo, a etnologia dos antroplogos de gabinete realiza-se a partir dosregistros visuais e escritos que os missionrios e funcionrios do governo e das expediescientficas traziam do campo. Nesse mtodo de organizao dos dados cientficos, o cinemaassumir o papel de objeto significante que representar em imagens uma determinadarealidade emprica. O registro de outros povos, em imagens flmicas e fotogrficas, , dessaforma, construdo por meio de elementos que distinguem e caracterizam a relao ambguaentre homem e natureza, apresentando imagens de seres humanos que os europeus pensam estarmais prximo da natureza do que da civilizao.

    O perodo entre o final do sculo XIX e o incio do XX , portanto, fundamental para odesenvolvimento da antropologia e do cinema. Nele, nem documentrio, nem etnografiacientfica so categorias consolidadas, e esse momento pode ser considerado de formao, noqual se reconhece a necessidade de novos mtodos, abordagens e tcnicas para lidar com ahumanidade, em seu sentido amplo. Com a expanso do capitalismo, a criao de mercadosmundiais e a intensificao da industrializao h uma reviso dos conceitos de tempo eespao e das teorias evolucionistas. Conceitos como brbaros e civilizados passam porprofundo processo de reviso e a fotografia e o cinema se afirmam como parte integrante e aomesmo tempo integradora do mundo, mostrando coisas at ento no vistas por olhoseuropeus.

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  • As primeiras dcadas do sculo XX foram um perodo de grandes turbulncias etransformaes. As cincias e as artes, com suas buscas metodolgicas, estticas e delinguagem, procuram criar novas formas de conhecimento e representao de um mundoimerso em processos de transformao acelerada, crises e turbulncias. Nessa busca, torna-seimportante o contato com o mundo em primeira mo, tarefa naquele momento pensada comopossvel com os novos mtodos etnogrficos e instrumentos de registro audiovisual. Cientistase cineastas, lanando mo de diferentes recursos, buscam de alguma maneira responder questo a respeito de para onde caminharia a civilizao.

    A Primeira Guerra Mundial introduz vrios elementos no processo de conhecimento sobreos povos no europeus; coloca em xeque, por exemplo, os modelos evolucionistas dahumanidade, evidenciando a barbrie presente no homem civilizado europeu e abrindo apossibilidade de se perceber uma civilizao no corao do homem selvagem. Inseridosnesse contexto, tanto Malinowski quanto Flaherty vo em busca da construo de um novoolhar sobre os chamados povos primitivos. Para o primeiro, era necessria a construo deum novo mtodo de pesquisa que possibilitasse antropologia ter acesso ao ponto de vistado nativo. O segundo aspirava a um novo mtodo de realizao capaz de construir um filmeque apresentasse os nativos em sua luta cotidiana. Ambos realizaram em seus trabalhos ummovimento de perceber esses povos em seus prprios termos por meio da identificao desemelhanas aparentes que eram transformadas em diferenas pelos processos de construodas respectivas representaes etnogrficas e flmicas.

    Novo olhar etnogrfico. Malinowski inicia sua carreira como antroplogo nesse momento dedefinio e consolidao da disciplina, no qual as experincias das expedies cientficas dofinal do sculo anterior incentivaram, pelo menos na Inglaterra, as pesquisas realizadas emcampo, em oposio aos estudos de gabinete empreendidos at ento. Nos Estados UnidosFranz Boas tambm far um trabalho pioneiro nesse sentido, mas o de Malinowski que serconsagrado como aquele que inaugura o moderno mtodo etnogrfico. Em 1914 Malinowskifoi surpreendido em campo, na Melansia, pela Primeira Guerra Mundial. Impedido deretornar Europa, iniciou uma nova pesquisa nas ilhas Trobriand, onde permaneceu por quasedois anos distribudos em duas viagens. Essa longa permanncia em meio ao grupo estudadointroduziu uma nova postura no mtodo do trabalho de campo, que permitia o acompanhamentoe a participao do pesquisador na vida social e cotidiana de seu objeto de estudo. Aexperincia trouxe para discusso no s ricos dados etnogrficos sobre os trobriandeses,como tambm uma srie de questes de ordem epistemolgica que influenciaramprofundamente os fundamentos da disciplina.

    Para Malinowski a pesquisa de campo fundamental justamente por permitir, pelaconvivncia intensiva, o acesso a um rico material sobre as vrias instncias da vida dogrupo, sempre orientado pelo cotejamento do que seus informantes dizem com o que eleobserva. Segundo Malinowski, salienta Eunice Durham, necessrio contrapor as idias semoes, o comportamento observado ao comentrio que sobre ele tece o nativo, a viso queo antroplogo constri da cultura sntese inconsciente que, presente na cabea do nativo,orienta e d significado s suas aes.

    Esse cuidado com a observao e as formas de utilizao dos dados empricos fundamental no trabalho que ele desenvolve, pois essa a forma possvel de penetrar e

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  • compreender a especificidade dos diferentes grupos sociais. A busca de maneiras de percebere entender a lgica prpria de cada grupo um dos princpios que norteiam sua prticaantropolgica. Seu objetivo reconstruir uma realidade cultural especfica como um universointegrado e singular de significados.

    Essa postura uma crtica contundente forma evolucionista de pensar os diferentesgrupos humanos, pois na abordagem de Malinowski no fazia sentido uma comparao entreeles por meio de elementos isolados da vida social. preciso entender o grupo em sua lgicae seus contextos especficos, pois eles formam um sistema integrado no qual um elementodepende do outro. A realidade social de cada grupo considerada uma totalidade que deveser compreendida internamente.

    Esse procedimento terico leva Malinowski a construir um modelo de anlise, quechamamos de presente etnogrfico, em que o pesquisador isola um determinado grupo notempo e no espao, mergulhando nessa realidade justamente para dar conta de perceber ecompreender seu funcionamento como uma totalidade. Para Malinowski, cultura no apenasum conjunto de manifestaes rituais, mas um conjunto amplo que inclui tambm as tcnicas etecnologias empregadas na vida prtica, a arte, a religio e as prprias relaes sociais, todasintegradas e inter-relacionadas. O ponto de partida para a compreenso dessas mltiplasfacetas a ao concreta dos indivduos.

    A novidade do trabalho de Malinowski est no mtodo de pesquisa e no contedo a partirdele elaborado, e tambm na forma com que organizava e trazia a pblico sua pesquisa. Seustextos etnogrficos so muito ricos em imagens. Neles, os trobriandeses so descritos em todasua vivacidade e humanidade. Os leitores so levados a esse mundo to diferente do nossopela compreenso. Os costumes estranhos ou selvagens tornam-se pouco a poucofamiliares, j que so compreensveis. Suas atitudes no so apenas do mundo da natureza,mas profundamente humanas, posto que investidas de sentido, de uma lgica prpria, ereferenciadas a um universo simblico compartilhado.

    Novo olhar cinematogrfico. Ainda no incio do sculo XX, algumas experincias derealizao flmica vinculadas a contextos etnogrficos acontecem na Amrica, e o cinemaconsagrado ao real torna-se bastante popular. Edward Curtis, conhecido por suas sriesfotogrficas sobre os ndios norte-americanos, faz um pico sobre os Kwakiutl denominado Inthe Land of the Head Hunters (1914), renomeado ao ser relanado em 1973 como In theLand of the War Canoes, aps remontagem e sonorizao realizadas a partir de fragmentos dooriginal pela University of Washington e o Burke Museum. Nesse filme Curtis constri umafico, uma histria romntica protagonizada por um casal kwakiutl, entremeada de danas,rituais e diversos aspectos da cultura material dos Kwakiutl. A viso romntica desse filme,associada feitiaria e a rituais exticos, deixou marcas importantes no imaginrio construdoa respeito dos grupos indgenas norte-americanos e no cinema produzido por Hollywood nosanos 1940 e 50.

    Tambm nesse perodo, no Brasil, o major Luiz Thomaz Reis, responsvel pela Seo deCinematografia e Fotografia da Comisso Rondon, enveredou por um caminho em que arealizao flmica estava vinculada a contextos de grande interesse etnogrfico. As atividadesda Comisso abrangeram um amplo territrio fronteirio e, at aquele momento, poucoconhecido do interior do Brasil, e ao longo dos anos de atuao, seus membros travaram

  • contato com inmeros grupos indgenas, muitos ainda desconhecidos.Desses anos de atividades resulta o enorme legado a que hoje temos acesso na forma de

    publicaes, documentos, relatrios, estudos de carter etnogrfico e lingstico, fotografias efilmes. O major Reis foi pea fundamental nesse processo de documentao imagtica,deixando-nos filmes como Rituais e festas Bororo, de 1917, de expressiva importncia para ahistria do filme etnogrfico, dados seu pioneirismo e sua proposta narrativa, alinhada snovidades da poca. Reis aborda de maneira singular um importante ritual do grupo indgenabororo, do Mato Grosso, buscando construir seu sentido a partir de elementos da lgica local,fato raro em contexto de absoluta exotizao, cuja pauta era tratar filmicamente elementos deoutras culturas.

    Esse filme faz parte de um conjunto mais amplo de imagens produzidas pela ComissoRondon e traduz um momento da construo da imagem do ndio como ser intocado, exemplode uma cultura que mantm intacta suas prticas tradicionais e que, em virtude do contatopermanente com as frentes de expanso, assimilado, civilizado e finalmente incorporado sociedade nacional, como apontam os filmes posteriores.

    Em 1922, Robert Flaherty realiza seu filme sobre os esquims, Nanook of the North, e, talcomo Malinowski fizera entre os trobriandeses, segue um plano de insero no contexto detrabalho baseado numa longa permanncia entre o grupo. Ao observar a cultura nativa,Flaherty introduz o conceito de cmera participante, que no s toma parte dos eventosregistrados, mas tambm procura refletir a perspectiva do nativo. Isso se realiza por meio dasexibies do material filmado, ao longo da produo do filme, aos Inuit (denominaomoderna para os esquims) e na abertura para seus comentrios, que iam sendo incorporadosao processo de realizao do filme.

    Outro grande mrito desse filme reside no fato de o espectador ser levado a identificar-secom pessoas reais que pertencem a um contexto social definido e distinto. A representaodesses indivduos marcada por sua luta incessante contra uma natureza hostil e pelaafirmao do homem como agente, temas recorrentes nos filmes posteriormente produzidospor Flaherty, como Moana (1926), Man of Aran (1934) e Louisiana Story (1948).

    Tanto quanto Malinowski, Flaherty acreditava que a histria deveria emergir do materialde campo. Ele, contudo, reconstri esse mundo a partir de uma perspectiva que , em algunssentidos, fixa. Sua cmera esttica, obviamente tambm por causa dos limites tcnicos dapoca, que colocavam disposio dos realizadores cmeras pesadas e pelculas lentas. Noentanto, essa postura tambm contribui para a circunscrio da abordagem que, como naetnografia de Malinowski, cria uma idia de presente etnogrfico. Flaherty passou 12 mesesfilmando Nanook, interessado, como estivera Malinowski, em traar o perfil de uma culturapor meio das aes dos indivduos que lhe do corpo. Havia ento grande conscincia dapessoa como indivduo nico e da importncia de falar sobre as culturas por meio de seussujeitos e de suas prticas.

    Seu interesse pelos Inuit inicia-se com uma viagem realizada em 1910 a fim de trabalharem estudos preliminares para a construo de uma ferrovia no norte do Canad. Flahertyproduziu, durante seis expedies que realizou rea ocupada por esse grupo, uma grandequantidade de material flmico, que foi perdido em um incndio depois de seu retorno aToronto. Felizmente, comenta o prprio Flaherty em artigo escrito na poca sobre a realizao

  • de Nanook, justificando-se por considerar aqueles filmes ainda muito amadores.A partir da cresceu seu interesse pelo cinema e, em 1920, inicia uma nova filmagem,

    agora com patrocnio de uma empresa que comercializava peles. Seu aparato tcnico incluatambm a possibilidade de revelar os filmes em campo, o que permitia mostr-los aos Inuit medida em que eram feitos, compartilhando dessa forma o processo de realizao.

    Nanook era um dos lderes do grupo de esquims e tornou-se seu principal informante.Durante as filmagens, trs rapazes tambm auxiliavam Flaherty, porm muitas outras variveisestavam envolvidas esposas, famlias, cachorros, trens, caiaques e equipamento de caa.No filme, uma seqncia se destaca pela dramaticidade: a caa foca. Nela, acompanhamosNanook munido de um arpo andando em solo gelado e olhando com ateno para onde seusps pisam. Ele procura algo. Pouco depois o vemos observar um pequeno orifcio em meio agrossa camada de gelo e arremessar seu arpo em direo a algo dentro dele. A partir da umlongo processo se inicia. Parece que Nanook de fato acertou com seu arpo um animal, que,contudo, parece resistir bravamente captura. Nanook puxa e puxado. Tenta novamente iaro animal da gua e novamente puxado. Aps vrias tentativas, chama seus companheiros esua famlia para ajud-lo.

    Essa uma das mais belas cenas do filme: num plano com enorme profundidade de campovemos em primeiro plano Nanook agarrado corda presa ao buraco e, atrs dele, chegandoat o horizonte longnquo, um imenso branco, no qual alguns pontos pretos atestam a presenade outros homens. Aos poucos, num grande plano-seqncia vemos essas pessoas e, agoratambm, ces se aproximarem. Todos, homens, mulheres e crianas, num esforo coletivo,finalmente conseguem trazer o animal superfcie. Ao final dessa longa seqncia, na qual nosenvolvemos intensamente, todos comem com expresso de rejbilo a carne da foca recm-caada.

    Essa foi justamente a primeira seqncia filmada e a todos mobilizou. Foi tambm aprimeira parte do filme vista pelos esquims durante o processo de realizao de Nanook, e aprimeira vez que eles assistiram a um filme. O dilogo estabelecido com Nanook e seuscompanheiros ao longo de todo o processo de filmagem intensificado justamente por essaexperincia de devoluo do material filmado ao grupo o que firma uma relao deconfiana entre Flaherty e seus sujeitos e marca todo o trabalho realizado. Nanook contavasuas faanhas a Flaherty e esperava que ele tivesse interesse em film-las. No caso daseqncia da caa foca, foi exatamente isso que aconteceu.

    Tanto Flaherty quanto Malinowski estavam interessados em um modo particular de ver ereconstruir a realidade tratada: uma representao estvel em termos de tempo e espao e comuma certa aura. As transformaes no eram o foco de interesse, como se ao seremabordadas pudessem colocar em risco a permanncia da especificidade desses povos. Tanto otrabalho de campo quanto a imagem em movimento foram utilizados para elaborar umaimagem totalizante e nica dessas sociedades, alm de serem narrativas contundentementerealistas. Enquanto Malinowski procurou retratar o ponto de vista do nativo trobriands, ofilme de Flaherty procurou descrever o mundo dos Inuit a partir de Nanook.

    Nanook of the North foi o primeiro filme ao qual se aplicou o termo documentrio,cunhado por John Grierson, cineasta ingls atuante nos anos 1930 que defendia a criao deum gnero flmico especfico, preocupado com a representao da realidade. Flaherty era um

  • cineasta amador e viajante, exatamente o tipo de perfil de trabalho do qual a modernaantropologia cientfica queria se distanciar nesse perodo de consolidao de novosparadigmas na disciplina. Provavelmente por esse fato ele foi ignorado pelos antroplogospor muitos anos. No entanto, podemos perceber que a ameaa no estava na figura doaventureiro, mas na postura consciente, compartilhada por Malinowski, da necessidade deprovocar uma reflexo sobre a natureza da humanidade.

  • Paradigmas de um cinema antropolgico:Mead e Bateson, Rouch e MacDougallEmbora as relaes entre construo do conhecimento antropolgico e de narrativas flmicassempre tenham sido bastante instigantes, a constituio de um campo de pesquisa daantropologia que lidasse com anlise e produo de imagens demorou a se constituir.

    A partir dos anos 1930 o paralelismo entre as duas histrias apontadas at aqui atinge seuponto crtico com o estabelecimento de duas categorias: a etnografia cientfica e o filmedocumentrio. Nesse momento elas se espelham uma na outra a ponto de nos perguntarmossobre o porqu dessa separao to drstica. Na histria da antropologia temos algumasexcees no que tange tentativa de integrar a produo audiovisual e fotogrfica pesquisaantropolgica, e elegemos trs dessas experincias para analisar aqui: a de Margaret Mead eGregory Bateson, a de Jean Rouch e a de David e Judith MacDougall.

    Margareth Mead e Gregory Bateson: ambio e experimentalismo. Entre 1936 e 1939 osdois antroplogos, na poca casados, fizeram seus estudos de campo sobre comportamento emBali, Indonsia, e produziram cerca de 25 mil fotografias e sete quilmetros de rolos de filme.As fotos editadas, com uma anlise antropolgica, foram publicadas no livro BalineseCharacter, em 1942. O material flmico s foi montado dez anos depois, sem a participaode Bateson, e forma, ao final, um conjunto de sete filmes. Nessa experincia pioneira, Mead eBateson buscavam por meio do registro visual apreender e compreender o thos balins. Nopretendiam realizar uma pesquisa sobre os costumes balineses, mas sobre o balins, ou seja,como ele incorpora (embody) essa abstrao que chamamos de cultura por meio domovimento, dos gestos e dos olhares.

    Seguindo o caminho aberto por Marcel Mauss, em seu estudo sobre as tcnicas corporais,e a influncia direta do culturalismo de Franz Boas, Mead e Bateson objetivavam estudar emBali as relaes e os comportamentos estabelecidos pelas regras culturais expressas porelementos da comunicao no verbal, como padres gestuais e corporais nas relaes entrepais e filhos, irms e irmos e nas condutas vinculadas a relaes pautadas pelo respeito,elevao, hierarquia etc.

    Mead e Bateson atriburam utilizao de fotografias e filmagens um papel fundamentalem sua pesquisa. Contudo, esse papel estava vinculado crena na objetividade do registrofotogrfico e flmico como suporte para preservao de registros das expresses visuais depadres culturais que estariam fadados extino. Seria tarefa da antropologia dar a conhecer,estudar e produzir registros das culturas de todo o mundo antes que elas viessem adesaparecer, e, nesse sentido, a fotografia e o cinema, considerados em seu aspecto tcnico, seconfiguravam como instrumentos poderosos.

    Antes de realizar sua pesquisa em Bali incorporando o cinema e a fotografia comoinstrumentos de pesquisa para abordagem de temas ligados a comportamentos e regras sociais,e estimulada por Franz Boas, seu orientador, Mead j realizara outras pesquisas sobreassuntos afins, como sua abordagem da temtica da puberdade e da sexualidade.

    Boas incentivava investigaes comparativas, embora defendesse a idia de que oconhecimento do que h de comum entre as diversas culturas s teria sentido se primeiro osantroplogos se empenhassem em dar sentido a suas singularidades na tentativa de

  • compreend-las em seus prprios termos. Boas tambm estava muito interessado no estudodas relaes dos indivduos com os laos culturais, e, nesse sentido, percebemos suainfluncia no trabalho de Mead, que avanava cada vez mais no caminho de uma abordagempsicoculturalista a partir de uma perspectiva intercultural. Esses trabalhos de Mead forampublicados como Growing Up in New Guinea (1930) e Sex and Temperament in ThreePrimitive Societies (1935).

    Por sua vez, Bateson, antes de empreender a pesquisa com Mead em Bali, aproximando-sedo funcionalismo antropolgico ingls de Malinowski e Radcliffe-Brown, j havia realizadoum trabalho entre os povos da Nova Guin (Naven, 1936), no qual realizou umaprofundamento crtico em relao s noes de funo e estrutura, procurando perceber opapel que o elemento sensvel e emotivo desempenhava dentro de uma cultura: os papis dothos e do eidos. Para Bateson, nenhum estudo funcional de uma cultura estaria completo se apercepo do papel do thos, compreendido como a tonalidade afetiva geral da cultura, nofosse levada em considerao.

    Juntando suas experincias anteriores e partindo da noo de thos construda porBateson, os dois antroplogos partiram para Bali com o objetivo de realizar um estudo sobrea constituio do conhecimento cultural no verbal, como ele se estrutura e se expressa navida cotidiana. Para isso, lanaram mo da fotografia e do cinema como aliados poderosos.

    Como informa o antroplogo Etienne Samain, que dedica um longo artigo contextualizao e problematizao desse trabalho, Mead e Bateson acreditavam na imagemcomo instrumento de controle dos diferentes graus de sofisticao do lugar do pesquisador napesquisa. E supunham que as anotaes escritas no dariam conta da riqueza de detalhes que oregistro fotogrfico e flmico poderia oferecer para o estudo desses elementos da cultura.

    Mead e Bateson apostaram no s em outra forma de registro etnogrfico, mas tambm emoutra maneira de expresso da reflexo antropolgica quando optaram pela utilizaoextensiva de imagens na publicao dos resultados da pesquisa no livro Balinese Character:A Photographic Analysis (1942).

    Nessa empreitada, ambos assumiram o desafio de construir uma anlise na qual existisseuma circularidade, uma mtua dependncia e complementaridade entre a narrativa verbal e avisual, bem como o desafio de desnudar todo o trabalho de edio dos dados da pesquisa,comum a qualquer projeto etnogrfico, mas que nunca explicitado como parte do processode construo do conhecimento ou na apresentao de seus resultados.

    No livro, o corpo central composto por cem pranchas fotogrficas, perfazendo o total de759 fotos dispostas lado a lado com as anlises verbais. A leitura do texto precisa das fotospara adquirir sentido. A leitura das fotos depende das informaes que os autores apresentampara se constituir como narrativa etnogrfica.

    O estabelecimento dessa relao dialgica entre texto e imagem no uma tarefa simples,ainda mais se pensarmos na problematizao que Mead e Bateson fazem do prprio carterontolgico da imagem. Para ambos, a imagem polissmica: se, por um lado, ela tem acapacidade de evocar e elucidar coisas que o texto no consegue expressar, por outro, ela por demais aberta e precisa de um discurso verbal para direcionar o olhar, a leitura, nosentido da discusso que o pesquisador quer desenvolver.

    Outra questo fundamental provocada por Mead e Bateson em Balinese Character a de

  • que, assim como o texto, as imagens produzem idias. Essa produo de idias, contudo,parece ser mais anrquica e, para ser utilizada como ferramenta cientfica, precisa serdisciplinada em seu cotejamento com o discurso verbal. Essa conteno dos sentidospossveis, no entanto, parece tambm ter limites, pois, alm de anrquica, a imagem tambmseria rebelde, escapando, mesmo com o trabalho de associao ao texto, s intenes dosautores e provocando outras possveis associaes e sentidos na interao com o leitor.

    A utilizao da imagem no trabalho antropolgico teria, assim, de lidar com essapolissemia, que acaba por tornar mais complexos o movimento de ordenao epistemolgicadas informaes obtidas em campo e tambm a prpria produo de conhecimento, que se fazem vrias instncias: na interao entre antroplogos e sujeitos da pesquisa, na interao dosantroplogos com os dados (nesse caso, imagens e observao de campo para articulaesmais abstratas) e na interao dos leitores com a ordenao e anlise apresentada pelosantroplogos. Mead e Bateson tinham plena conscincia dessa problemtica, mas, mesmoassim, assumiram o risco de no s realizar a pesquisa de campo, como tambm desistematizar suas reflexes a respeito utilizando a fotografia e o cinema.

    Segundo Etienne Samain foram justamente essas caractersticas, por um ladoexperimentais e por outro ambiciosas, de Balinese Character e dos filmes de Margaret Meade Gregory Bateson, no tocante articulao do discurso verbal e imagtico para a construodo conhecimento antropolgico, que acabaram levando essa iniciativa a ser considerada, nosanos 1980, obra referencial, fundadora de um campo que passou a ser designado comoantropologia visual.

    Na dinmica do trabalho de campo, Bateson era o responsvel pelas filmagens efotografias e algumas pistas nos indicam que a interao dos dois quanto ao estatuto daimagem nessa fase do trabalho no era um ponto pacfico. Mead considerava a cmera quaseum olho espio, para utilizar expresso da antroploga Anna Grimshaw. A cmera deveriaestar esttica, registrando impassvel a cena que ocorria a sua frente. Ela almejava a menorinterferncia possvel no comportamento e nas atitudes das pessoas filmadas. J Batesonparecia ser da opinio de que essa cmera espi era incapaz de ver qualquer coisa. Acmera precisava do olho do antroplogo, que intencional, ou seja, est sempre buscandoalgo. No de estranhar, portanto, o fato de o material filmado em campo s ter sido montadono incio da dcada de 1950 por Margaret Mead, sem a participao de Bateson.

    Os sete filmes curtos montados a partir do material produzido em Bali e Nova Guinversam sobre temticas como as relaes familiares (A Balinese Family, 1951), a infncia(Karba's First Years, 1952; First Days in the Life of a New Guinea Baby, 1952; ChildhoodRivalry in Bali and New Guinea, 1952; e Bathing Babies in Three Cultures, 1954) e a danatradicional balinesa (Trance and Dance in Bali, 1952; e Learning to Dance in Bali, 1978).

    Esses temas foram trabalhados por intermdio de personagens e situaes sempreapresentados pela narrao da prpria Margaret Mead, inserida na poca da montagem dosfilmes. Os enquadramentos so sempre abertos e a cmera, esttica, o que faz com que assituaes sejam feitas para ela ou para os antroplogos atrs dela, cujo olhar parece estarencantado com os corpos em movimento, seja num momento ritual, seja numa situaodomstica cotidiana. O olhar da cmera e, no esqueamos, do antroplogo, privilegia essecorpo social em movimento, em relao.

  • Nesse sentido, percebemos pelos filmes que no so as marcas explcitas no corpo queinteressam a Mead e Bateson para compreender o thos balins, mas marcas sutis, presentesnos gestos, olhares e posturas. Aqui o olhar do antroplogo que quer dar conta de conheceruma alteridade supostamente fadada ao desaparecimento se amplia, buscando o registroextensivo de todos os procedimentos e performances que no poderiam ser descritos de outraforma seno a visual. As imagens captadas equivalem a anotaes minuciosas queposteriormente foram analisadas, e so essas anlises que se acrescentam s imagens nomomento da montagem do filme, da mesma forma que j fora feito com as fotografias.

    Jean Rouch: o antroplogo-cineasta. Se at aqui a imagem estava sendo pensada pelaantropologia como uma janela de acesso ao mundo ou como um instrumento de registro darealidade mais minucioso, no trabalho de Jean Rouch essa relao entre o fazer antropolgicoe a produo de imagens torna-se mais complexa.

    Com formao em engenharia, Jean Rouch parte a trabalho para a frica no final dos anos1940 e l entra em contato com uma realidade bastante heterognea e diferente da que chegava Frana pelas etnografias clssicas. Decide, ento, continuar seus estudos em etnologia einicia pesquisa sob orientao de Marcel Griaule. Desde o incio, inclui a cmera em suaestratgia de pesquisa, mas o faz de forma questionadora. A perspectiva que vai seconstruindo no a de uma cmera de filmar que registra dados etnogrficos, mas a de uminstrumento de comunicao com a realidade etnogrfica. Esse o primeiro elementocomplexificador introduzido por Jean Rouch, que torna mais densas as situaes etnogrficasnas quais ele se envolve.

    A cmera estimula a relao no campo com os sujeitos da pesquisa e provoca a relao,fora do campo, com os espectadores do filme. A prtica etnogrfica associada ao cinemapropiciaria o estabelecimento de uma antropologia compartilhada, alvo importante do trabalhodesenvolvido por Jean Rouch, em tempos de reviso e crtica ao colonialismo, e, no casoespecfico do campo de Rouch, da descolonizao e emancipao das nascentes naesafricanas.

    A recusa, naquela poca, por parte de instituies acadmicas como a Sorbonne na Frana,em considerar o cinema etnogrfico uma forma de produo antropolgica legtima acabou poralijar a produo cinematogrfica de Rouch e de outros das esferas de discussopredominantes da antropologia. Essa situao acabou por estimular a discusso que Rouchdesenvolvia quanto ao fazer antropolgico. O prolfico antroplogo-cineasta produziu mais decem filmes em sua trajetria de mais de 50 anos de trabalho.

    Rouch foi um incansvel defensor da expresso da subjetividade no filme etnogrfico eainda do fazer flmico como espao privilegiado que possibilitava a associao da linguagemcinematogrfica em sua plenitude com os mtodos de construo do conhecimento da pesquisaantropolgica. Sua questo era como construir reflexes antropolgicas com e a partir dofilme. Seu foco foi a utilizao do filme como uma forma de contar e expressar coisas que nopoderiam ser expressas de outra forma, principalmente o imaginrio que povoa a vida dosindivduos em seu contexto de vida. A cmera e seu operador-antroplogo tornavam-se nessepercurso agentes e sujeitos na realidade etnogrfica. No havia nenhuma inteno de confundiro espectador quanto ao processo de construo que envolvia esse tipo de elaborao doconhecimento: pelo contrrio, era imprescindvel que ficasse claro o ponto de vista que

  • alinhavava o filme.Rouch elege a reflexibilidade e a subjetividade como pilares de sua produo intelectual.

    A verdade do filme estava justamente em tornar clara esta perspectiva: a realidade filmada eraa realidade presente nas relaes estabelecidas entre o antroplogo e os sujeitos com os quaisfilmava. Herdeiro por um lado de Flaherty, no que tange a uma cmera participativa, integradano cotidiano dos sujeitos, e, por outro, do russo Dziga Vertov, que defendia a presena doautor como construtor da realidade ou da verdade flmica, Rouch construiu um mtodo detrabalho calcado na provocao, na negociao e na criao.

    Sua discusso antropolgica no se d na esfera das grandes teorias, mas da prtica. Aantropologia rouchiana, como aponta Renato Sztutman, definida pela prtica cinematogrficae com ela pretende compor um programa tico. Para Rouch a questo era menos realizar adescrio de uma dada realidade do que estabelecer com o grupo estudado um dilogo semprepotencializado pelo cinema que, como linguagem, poderia ajudar a pensar a prticaetnogrfica e, por conseguinte, a prpria antropologia.

    A cmera subjetiva, as improvisaes, atuaes dos sujeitos filmados e a narraomarcando ou sugerindo um olhar especfico para o que foi filmado fazem parte de um projetotico e esttico, no qual discurso etnogrfico e experincia etnogrfica so indissociveis.Rouch, mesmo tendo colaborado para o aperfeioamento do projeto do Nagra, gravador desom inventado por Stefan Kudelski nos anos 1950, que permitia a sincronizao do som com aimagem, no utilizou esse recurso na chave realista. A verdade, para Rouch, que gostava deparafrasear Vertov, est no filme. a verdade do filme. , portanto, considerando o filme umaforma de acesso a essa outra realidade que leva em conta o imaginrio individual e cultural,que Rouch realiza seus filmes. Moi, un noir (1957) e Chronique d'un t (1961) so bonsexemplos da maneira questionadora com a qual Rouch considerava a realizao flmica parteda sua prtica antropolgica.

    Em Moi, un noir, a narrao, caracterstica de boa parte dos trabalhos de Rouch, se d emtrs instncias, evidenciando a preocupao do autor em criar dentro do filme um espao dedilogo sem, no entanto, abrir mo da autoria. Na primeira instncia, de carter maisdescritivo e tradicional, o narrador, no caso o prprio Jean Rouch, nos introduz aospersonagens e ao ambiente de Treichville, bairro de Abdijan, na Costa do Marfim, que o filmetoma como cenrio. Na segunda e na terceira instncias inserem-se as vozes dos personagens como Robinson que conduzem a narrativa.

    O autor traz cena ainda alguns dilogos entre os atores, que, curiosamente, jamaiscorrespondem imagem que se v. A seqncia final do filme um bom exemplo disso, nelaEddie Constantine e Edward Robinson, em um travelling ao longo da costa litornea deAbdijan refletem sobre a experincia imaginria da guerra da Indochina e sobre seus projetosfuturos.

    Nessa seqncia, imagem e som esto em evidente descontinuidade, no entanto, integradosem uma unidade de grande lirismo e dramaticidade, evidenciando os dispositivos do filmeenquanto linguagem, e principalmente como processo. Isso se d tambm na utilizao dedepoimentos dos protagonistas do filme registrados aps a captao, sobrepostos s imagens,comentando sua prpria performance e suas indagaes ao longo do processo ocorrido.

    Chronique d'un t, dirigido em parceria com o socilogo Edgar Morin, exemplar dessa

  • espcie de feedback propiciado pelo dispositivo do filme. Boa parte dele tematiza aapreciao de seus personagens a respeito de suas performances no filme e, a partir da, novasquestes se colocam e a narrativa se desdobra em caminhos surpreendentes.

    David e Judith MacDougall: cinema como meio de pensar a antropologia. David e JudithMacDougall encontram a antropologia nos Estados Unidos, nos anos 1960, em um movimentode busca de um modo de trabalhar com reas negligenciadas da vida social. O ambienteuniversitrio era ento permeado por ideais democrticos, provocado pela memria de umps-segunda guerra ainda vvido e pelo movimento de crtica ao estado homogeneizadornorte-americano e de oposio Guerra do Vietn.

    Questes sociais fervilhavam e movimentos ticos e estticos apontavam como possveisrespostas aos caminhos abertos pelo neo-realismo italiano, pelo cinema direto norte-americano, pelo cinema verdade de Jean Rouch e at mesmo pela Nouvelle Vague francesa.No final da dcada de 1960 David e Judith participaram de um curso coordenado por ColinYoung na Universidade da Califrnia, Los Angeles, que tentava aliar uma perspectiva docinema direto norte-americano inspirao retirada da etnografia clssica de Malinowski,cuja ateno se voltava para a vida cotidiana. Surge assim o chamado observational cinema,cinema de observao.

    Para esse novo gnero, a questo do mtodo era fundamental: em seus filmes, entrevistasno so bem-vindas, pois elas privilegiariam a voz enquanto meio de objetivao de umargumento, em detrimento da imagem, marcada pela performance, pelo ato e a ao. Segundoessa viso, ao falar sobre como vivem, as pessoas estariam fazendo uma racionalizao daao, e no esse o foco das questes que mobilizam esse tipo de cinema. O que interessa aao propriamente dita, que contm a possibilidade de refletir a seu respeito e de seusignificado para os sujeitos do filme.

    A performance para a cmera pressupe uma afinidade com as performances cotidianas, ea opo justamente mostrar os sujeitos na vida e no falando sobre ela. Nesse caminhoestaria a chave da utilizao do cinema como instrumento para construo de um conhecimentoantropolgico. A realizao cinematogrfica apresenta-se como uma possibilidade de refletirsobre questes epistemolgicas, j que o prprio processo de construo do filme passariapor uma discusso de categorias e mtodos muito prximos aos da antropologia. Essapreocupao perpassa todo o trabalho de ambos, que ainda hoje esto em franca produo, jcontando com mais de duas dezenas de filmes.

    Ainda no final da dcada de 1960, os MacDougall vo para a frica e l realizam duastrilogias: uma em Uganda, com os povos Jie (The Live with Herds, 1968-72; Nawi, 1968-72; eUnder Mens Tree, 1968-74) e outra no Qunia entre os Turkana (The Wedding Camels, 1974-77; Lorangs Way, 1974-79; A Wife Among Wives, 1974-81).

    Nessa primeira fase do trabalho existe significativa adeso proposio do cinema deobservao, segundo a qual o cineasta deveria tornar-se invisvel no campo a fim de obter dossujeitos uma atuao mais prxima de sua vida cotidiana. Nessa perspectiva, a familiaridadecom o contexto seria a responsvel por fazer a cmera desaparecer na cena e, com ela, orealizador. Esse caminho visa a um resultado esttico muito prximo dos objetivos do cinemaneo-realista, cujos filmes procuram mostrar a vida acontecendo diante das cmeras.

  • Caracterstica bastante interessante no trabalho dos MacDougall justamente a constantereavaliao dos objetivos e estratgias colocados nos diversos filmes. Essa postura altamentereflexiva atenua o excesso de racionalismo e fornece ao conjunto da produo extraordinriacoerncia, cada filme tentando resolver os limites epistemolgicos encontrados no anterior.

    Aps o perodo africano, David e Judith se transferem para a Austrlia, onde atuam comopesquisadores do Centre for Cross-Cultural Research da Universidade Nacional da Austrlia.Trabalham tambm em colaborao com o Australian Institute of Aboriginal Studies eproduzem uma srie de filmes a partir de uma demanda poltica realizada por gruposaborgines. Entre eles, esto Good Bye Old Man, 1975-77; Take Over, 1978-81; e ThreeHorsemen, 1978-82.

    Na reflexividade que sempre esteve presente no cinema etnogrfico que eles empreendemdesde os anos 1960 j estavam presentes elementos como a relevncia da experinciaindividual, o universo afetivo e sensrio e as escolhas que fazem parte de todo trabalho decampo, mas que raramente aparecem nas etnografias escritas. Seus filmes querem nos levar apenetrar os momentos da vida cotidiana sem qualquer dramaticidade. Seu foco no recai sobrerituais ou processos de produo da cultura material, mas sobre situaes corriqueiras quemuitos no perceberiam como bons objetos flmicos.

    Outra caracterstica relevante que seus personagens/sujeitos so sempre pessoas com asquais os MacDougall criaram vnculos durante a pesquisa etnogrfica. Essa situao sempreexplicitada em sutis aparies, como um comentrio lacnico dos pesquisadores ou mesmo aincluso no filme de perguntas dos sujeitos a eles direcionadas.

    Se por um lado percebemos sua filiao ao que chamamos de cinema de observao, poroutro, eles se afastam da idia mais radical de objetividade inconteste e explicitam a presenado realizador como participante da situao de pesquisa. Seus filmes no oferecem apresuno da oniscincia dos documentrios expositivos dirigidos pela narrao, nem umapretenso de objetividade, marca dos documentrios de observao.

    Eles mostram de forma sutil a participao dos pesquisadores no processo de construode conhecimento sobre o outro. Esta , alis, a questo central de todo o trabalho de David eJudith MacDougall: a construo do conhecimento pela interao da realizaocinematogrfica na pesquisa etnogrfica.

    Seus filmes, sempre cuidadosos em relao ao dilogo com seus interlocutores, nos fazemrealizar o que David MacDougall reafirmou diversas vezes em textos e entrevistas: Refletirsobre a vida de algum e suas relaes com os outros tambm dela participar. A reflexono ocorre aps o trabalho de campo, mas durante todo o processo em que vivemos a situaodo campo e o grande desafio como construir essa experincia flmicamente.

    Partindo dessa perspectiva, impossvel separar a elaborao da pesquisa da prpriasituao flmica. Ao optar por filmes sem muitas entrevistas ou narraes, mas com dilogosexplcitos ou implcitos entre pesquisador e sujeitos e com cenas longas em queacompanhamos as aes dos sujeitos, eles pretendem trazer para o filme a qualidade de nosfazer mergulhar na experincia da relao construda para a pesquisa.

    A reflexividade expressa-se como estilo ou proposta porque no h como separar arealizao do filme das preocupaes epistemolgicas que acompanham esse processo: comoo filme representa o conhecimento? que tipo de conhecimento est disponvel para os

  • antroplogos/cineastas? como lembrar aos espectadores que os filmes sempre marcam umponto de vista que construdo numa situao de pesquisa que tambm a prpria situaoflmica?

    Para David MacDougall a reflexividade est sutilmente presente no filme e, para perceb-la, o espectador precisa engajar-se de forma mais imaginativa; a reflexividade, portanto, noest na presena fsica dos pesquisadores ou do aparato tcnico nos enquadramentos, mas nomovimento de cmera, no enquadramento, na seleo do que est dentro e fora do quadro, naopo da montagem, enfim, em uma grande quantidade de elementos que o prprio cineastano pode precisar, justo porque ele est intimamente envolvido na situao vivida e filmada.

    Aqui existe mais um dado interessante a se perceber no trabalho de David e Judith: ascaractersticas etnogrficas no esto somente no assunto tratado, que pode ser mais ou menosextico, nem na explicitao verbal dos objetivos, tampouco num suposto respeito tico paracom os sujeitos do filme. Est essencialmente na esttica que construda no filme.

    Em finais dos anos 1980, os MacDougall passam a desenvolver projetos de pesquisa nandia e o primeiro filme dessa fase Photo Wallahs (1988-91). Nele, o foco recai sobre aquesto da visualidade ou, melhor, nas formas visuais do conhecer. Existe uma preocupaoexplcita em tratar flmicamente questes como a experincia, a subjetividade e a intuio noprocesso de construo da vida cotidiana e do conhecimento antropolgico.

    Photo Wallahs tem como tema central a questo da hierarquia social e tambm a dahierarquia esttica. No h qualquer inteno de fixar um significado estrito por meio dofilme, pois ele, assim como as fotografias, que so seu tema, permanece aberto eindeterminado. O filme est ancorado, por um lado, em uma perspectiva temporal e, por outro,numa perspectiva espacial.

    Pergunta-se o significado da fotografia e de seus usos para pessoas de uma cidade tursticanas montanhas. Mostram-se fotos que so produzidas no momento das filmagens e fotos antigasapresentadas por alguns fotgrafos veteranos. Somos levados a outra questo, que o vdeo,tambm se colocando como faceta importante para entender as novas e antigas relaesconstrudas sobre a imagem. Essas questes vo sendo apresentadas no num discurso direto eracional, mas numa srie de justaposies de imagens e tempos: imagens que evocam em vezde explicitar um significado. A questo epistemolgica que se coloca numa proposta comoessa : que tipo de conhecimento produzido quando lidamos com fotografias e filmes ouvdeos produzidos num contexto no qual seu sentido desliza?

    Interessante, tambm, perceber que o ato de realizar um filme parte de uma preocupaoetnogrfica em compreender os contextos com os quais se est envolvido, o que no implicanecessariamente a realizao de uma etnografia escrita sobre essa mesma experincia. EmboraDavid Mac-Dougall escreva bastante sobre suas reflexes, o momento-chave para que essaetnografia acontea o momento da realizao do filme, pois nessa situao que podemoscompreender aspectos culturais que no surgiriam de outra forma.

    Aqui a cultura no est sendo considerada algo anterior e que preciso fazer o filmemostrar. A cultura expressa nas relaes que so construdas e evocadas em situaescontextuais, como a da realizao do filme. Existe nessa perspectiva um certo posicionamentocrtico em relao a uma noo essencializada de cultura embutida na noo de presenteetnogrfico. Nesse sentido, os filmes de MacDougall se afastam da inspirao malinowskiana.

  • De maneira sinttica, podemos dizer que as preocupaes que norteiam o trabalho deDavid e Judith MacDougall caminham no sentido de colocar a noo de realidade e derepresentao justapostas para instaurar uma possvel reflexo entre essas duas instnciassempre apresentadas em oposio.

    O filme se configura assim como uma arena para se exercer uma forma de engajamento nomundo, expressando uma relao entre filme e poltica, e uma forma de questionamento domundo. Ele exige um papel ativo e criativo do espectador, pois evoca em vez de demonstrar eo coloca tambm na posio de agente, tanto quanto o sujeito e o pesquisador, na construodos sentidos possveis.

    O filme construdo com esse propsito capaz de tornar-se experincia, de tornar-se partedas subjetividades envolvidas na sua realizao. Aqui chegamos a um ponto importante, que o fato de David MacDougall desenvolver em seus artigos as questes epistemolgicas quemobilizam suas pesquisas/filmes e neles ter forjado o conceito de cinema intertextual para otipo de cinema etnogrfico que ele prope e realiza. A partir desse conceito, a relaoconstruda entre realizao cinematogrfica e pesquisa ou entre pesquisador/realizador esujeitos do documentrio torna-se o foco do problema. O cinema intertextual cria no espao derealizao do filme um ambiente tambm privilegiado para a reflexo antropolgica, pois pensado como o lugar do encontro, como o espao em que observadores e observadosno esto essencialmente separados, e em que a observao recproca e a troca estabelecidaforam o centro sobre o qual recai o foco intersubjetividades criando intertextualidades.

    Se lembrarmos que no incio do cinema e da antropologia havia uma tendnciacatalogadora das diferenas, percebermos que, com o passar do tempo e com as mudanasepistemolgicas, essa preocupao cede terreno, embora no se esgote, para uma postura queassume a troca de olhares. O significado no dado a priori nem espera para ser decifrado; antes construdo a partir da interao entre os sujeitos envolvidos na experincia daconstruo do conhecimento que, no caso das experincias aqui levantadas, potencializadapela realizao flmica.

    interessante perceber que a questo da reflexividade presente nas experincias daproduo de imagens no mbito da pesquisa etnogrfica antecede seu aparecimento naexperincia etnogrfica ou antropolgica mais tradicional e expressa na etnografia escrita ques vai ser problematizada ao longo da dcada de 1980. A utilizao da linguagem audiovisualdespida de seu efeito de real, de sua naturalidade, apresentou-se, assim, como um recursofrtil para incorporar a reflexividade no fazer etnogrfico. A linguagem audiovisual ajudou decerta forma a evidenciar e a problematizar a construo ou o efeito de real das etnografiasclssicas.

  • Qual o lugar da imagem na pesquisa antropolgica?At aqui exploramos alguns aspectos do desenvolvimento paralelo do cinema e daantropologia demarcando os pontos de contato e a consolidao de uma prtica audiovisual nocampo antropolgico. Olhando, porm, para esse longo processo de desenvolvimento, cabeperguntar acerca dos usos da imagem em geral e da imagem em movimento, em particular nombito da antropologia. Imagem como mtodo ou tcnica adotados na pesquisa de campo,dado bruto de pesquisa ou registro, expresso de um processo de pesquisa e ainda a imagem,ou narrativas visuais e audiovisuais, como objeto de anlise para a antropologia so algunsdos caminhos abertos nesse sentido.

    Se verdade que a antropologia sempre teve grande interesse pelo visual, tambmevidente sua dificuldade quanto maneira de lidar com ele na prtica antropolgica, o que seexpressa na prpria dificuldade em definir um estatuto claro para esse campo.

    Historicamente, como vimos, o foco na utilizao de imagens estava a princpiodirecionado para o contedo, para uma alternativa mais segura e mais objetiva de registrodas observaes de campo. A cmera era considerada quase um instrumento de preciso, masaos poucos o recurso da imagem na pesquisa antropolgica foi-se descolando da funo deregistro de dados etnogrficos e ganhou outras possibilidades.

    Produo de imagens como mtodo ou tcnica adotado na pesquisa de campo. Mesmoquando o propsito do uso de imagens na pesquisa possui um cunho mais documental deregistro de informaes e situaes de campo, elas podem ser utilizadas no trabalho com umasrie de variaes. A produo de imagens no mbito da pesquisa de campo pode, nessesentido, ater-se a uma aderncia realista, na qual elas figuram como material comprobatrioda presena do antroplogo em campo, um exemplo palpvel de situaes e contextosetnogrficos ou ainda como descries visuais destas mesmas situaes.

    H, contudo, outra aproximao, segundo a qual essas imagens captadas no processo depesquisa so, elas mesmas, objeto de reflexo e anlise. Neste ltimo caso, a imagem no vista como dado emprico objetivo, mas como ponto de partida para uma reflexo conjuntasobre determinados contextos e situaes, e podem ou no constituir material a ser includo noformato final de apresentao dos resultados da pesquisa, seja tese, artigo ou relatrio. Soimagens de um processo e a deciso de exp-las na reflexo final depende das escolhas e dosobjetivos do pesquisador.

    Nessa situao, podemos citar, como exemplo, imagens captadas que so utilizadas comoparte da devoluo do trabalho do antroplogo aos grupos pesquisados, como vdeos efotografias que so mostrados e comentados pelos sujeitos durante o prprio processo depesquisa, e tambm imagens utilizadas com mediadores para o estabelecimento de vnculoscom os sujeitos no campo, como retratos e gravaes em vdeo por eles solicitadas e cujarealizao firma importante reciprocidade para o desenvolvimento da pesquisa.

    A imagem como expresso de um processo de pesquisa. O desenvolvimento esttico dodocumentrio influenciou profundamente os moldes do filme etnogrfico. Se, por um lado, oscineastas contribuem para o questionamento da objetividade e do realismo do registro flmico e desse aspecto a antropologia dificilmente conseguir se desvencilhar , por outro lado,

  • os antroplogos contribuem para o questionamento sobre a forma de apreenso e interpretaoda realidade filmada.

    A antropologia que mobiliza imagens em sua prtica mostra que, isoladamente, aobservao possui limitaes quanto produo de conhecimento. Mostra que a pertinnciada observao etnogrfica est centrada na construo de um olhar compartilhado, resultanteda interao e do confronto entre universos culturais distintos. Pensamos que nesse aspectoque o filme etnogrfico pode potencialmente distanciar-se do filme documentrioconvencional.

    Existe uma longa discusso sobre a pertinncia ou no da denominao filme etnogrfico eela tambm se confunde com a discusso mais geral da definio de um campo para a prticaantropolgica que lida com a imagem. De forma geral, essa categoria pleiteada porantroplogos que realizam filmes e vdeos em suas pesquisas e sentem necessidade dedistinguir essa realizao das empreendidas pelos meios de comunicao de massa ou mesmopor cineastas e jornalistas, que atuariam orientados por objetivos diversos do projetoantropolgico.

    O primeiro elemento levantado como bandeira a presena de uma longa pesquisa queinforma e forma o filme. No basta o tema ou o contexto de realizao do filme sertipicamente etnogrfico, como grupos minoritrios ou tradicionais, ou conflitos sociais. Paraser classificado como etnogrfico, seu processo de realizao deve ser informado porpreocupaes antropolgicas. A realizao do filme deve fazer parte de um processo dereflexo antropolgica na qual ele se afirma como expresso.

    parte toda uma discusso sobre os graus de valor etnogrfico, ou sobre o quanto umfilme pode estar mais prximo ou mais distante dos propsitos antropolgicos, encabeadapor Karl Heider em seu livro sobre o filme etnogrfico, talvez a busca de uma especificidadedesse tipo de filme se coloque no mbito de um processo tambm especfico de realizao.Nesse sentido, nem sempre essa caracterstica visvel no produto final.

    Muitas pessoas julgam precipitadamente que o filme etnogrfico deva ter tcnica e estticatoscas, como se esse dado fosse menos importante que o contedo tratado. Contudo,percebemos nos exemplos de Jean Rouch e David MacDougall que tanto tcnica como estticaso elementos constitutivos do que a linguagem audiovisual pode oferecer comopossibilidades para uma reflexo acerca de um tema de interesse antropolgico.

    O julgamento que se apia em morfologias a fim de conferir ao filme um rtulo ou mesmoum status e, no fundo, disso que se trata vai depender de informaes queinvariavelmente esto fora do filme e esvaziam discusses de natureza classificatria.

    Quando falamos a respeito da imagem como expresso de um processo de pesquisa,estamos de certa forma assumindo o quo estril pode ser a tentativa de classificar e rotularuma prtica, o que no significa, entretanto, que estamos renunciando a refletir sobre aespecificidade dessa prtica.

    Podemos retomar, nesse sentido, o conceito de cinema intertextual de DavidMacDougall, ou seja, que o espao de realizao do filme serve tambm reflexo, desde quepensado como o lugar do encontro e possibilitando, dessa forma, um entendimento daproduo de imagens ou narrativas audiovisuais como inseparveis da produo de questestericas no mbito de uma pesquisa etnogrfica.

  • Nesse caminho vo tambm as reflexes de Etienne Samain ao afirmar que as linguagensaudiovisuais definem formas especficas de apreenso do mundo e proporcionam estiloscognitivos e modos de compreenso e interpretao prprios. Elas oferecem alternativas paraa construo de modos de ver, elaborar e construir o conhecimento.

    Assim, alm de mtodo, as linguagens visuais e audiovisuais promovem matrizesgerativas de uma outra maneira de pensar novos e velhos campos da antropologia e semostram particularmente eficazes para compreender em novas direes o imaginrio humano,individual e coletivo.

    Imagens ou narrativas visuais e audiovisuais como objeto de anlise. Imagens fotogrficas,flmicas e, mais recentemente, videogrficas retratam a histria visual de uma sociedade,expressam situaes significativas, estilos de vida, gestos, atores sociais e rituais eaprofundam a compreenso de expresses estticas e artsticas. Nesse caso, o que est emjogo a anlise de imagens e discursos visuais, produzidos no mbito de uma cultura, comouma possibilidade para dialogar com as regras e os cdigos dessa cultura. Imagens podem serutilizadas como meio de acesso a formas de compreenso e interpretao das vises de mundodos sujeitos e das teias culturais em que eles esto inseridos.

    Nossa sociedade confere ao olhar um enorme poder. At mesmo os atos de pensar e deconhecer parecem ter origem no olhar, se levarmos em conta disciplinas como a antropologia,que se baseia sobretudo no mtodo da observao. Partindo desse princpio, construmos todoum conjunto de cdigos e significaes fundamentados na experincia visual que so, namaioria das vezes, naturalizados. Podemos perceber facilmente o quanto a leitura e a escritarequerem um longo esforo de aprendizagem, mas no costumamos considerar o mesmo emrelao s linguagens visuais. Talvez por estarem ligados a nossas relaes mais primriascom o mundo, olhar e ver no se distinguem.

    O antroplogo que lida com a imagem no pode, no entanto, destituir o olhar de sua forade significao. O olhar capta o que pode significar, diferentemente da viso, que umacompetncia fsica do corpo humano. Sua viso genrica, o olhar intencional, e as formasde olhar so resultado de uma construo que cultural e social.

    Os trabalhos antropolgicos que lidam com a anlise da imagem nessa perspectiva lidamtambm com o cruzamento de olhares: o do autor das imagens, os dos sujeitos da imagem e odo prprio pesquisador. nesse cruzamento de intencionalidades que reside a possibilidadede pensar a imagem como um objeto frtil para a reflexo antropolgica.

    A imagem sempre esteve presente na experincia humana se a entendermos como qualquerrepresentao da realidade. No entanto, no mundo contemporneo, ela se tornou o centrodas formas de fruio do mundo est nas ruas, nas casas, no cu, nas roupas, nos jornais,nos carros, formando uma espcie de banco de referncias para a construo da experinciacotidiana. A comunicao se estabelece por meio de signos e estes se transformamculturalmente em significaes. As representaes so justamente as manifestaes exterioresdessa significao construda pelos indivduos em seu fazer cotidiano. Uma representao no uma realidade observvel, mas um conjunto abstrato que s conhecemos por certasmanifestaes exteriores que reconstitumos mediante relatos, imagens e narrativas.

    Nesse sentido, o contexto em que as imagens so construdas e articuladas fundamental

  • para percebermos os possveis significados criados. O contexto crucial na anlise dosfilmes no por ser definitivo, mas por ser provocativo, sugestivo, por viabilizar a construode um quadro de possibilidades. As imagens que compem um filme so elementos que,considerados em conjunto, nos permitem pensar, articular significados que, de forma isolada,no aconteceriam.

    Que representaes surgem na produo cinematogrfica de uma poca ou de um gruposocial? Que imagens se integram s representaes? Em que medida, no cinema, essasrepresentaes se tornam coletivas? Trabalhar com filmes exige saber que se est trabalhandocom a representao de um imaginrio cotidianamente recriado e em movimento.

    Uma forma bastante comum de olhar a relao entre cinema e sociedade a que define oprimeiro como um reflexo da segunda. Talvez essa seja a forma mais imediata, emboratambm a mais enganosa, de lidar com essa relao.

    Outra viso, a nosso ver mais rica e cheia de possibilidades, a que encara a relaoentre cinema e sociedade como uma rua de mo dupla. O cinema , sim, produto das formaspelas quais uma sociedade constri suas representaes. Um filme opera os cdigos culturaisda sociedade da qual ele originrio. Ele faz parte de um contexto. Mas esse mesmo filme,por suas caractersticas de interao com o indivduo por meio de sua linguagem, possibilitaum retorno, de forma digerida ou ressignificada, dessas representaes para a sociedade.O cinema faz parte da realidade social contempornea e, como parte irredutvel do social,constitui uma dimenso pela qual os homens constroem a percepo de si mesmos e do mundo.

    Dessa perspectiva, o cinema no pode ser entendido como algo pronto e operacionalmenteutilizado para fortalecer regras e definir relaes sociais, nem tampouco s ser consideradoem seus termos tcnicos ou estticos. Como Clifford Geertz alertou: a arte faz parte da vida. preciso entend-la, ento, como parte de um complexo processo pelo qual procura-se darsentido ao mundo, e o cinema como um processo que busca imprimir uma significaopossvel para o mundo operando sua reelaborao visual e sonora.

    Elementos estticos como a luz, a cor e o enquadramento, quando observados desse pontode vista, tornam-se elementos simblicos, e os filmes, artefatos culturais extremamente frteispara o estudo antropolgico. Em um movimento espiralado estamos continuamente ordenandoe, de maneira simblica, recriando o mundo e, nesse sentido produzindo conhecimento.

    De acordo com a antroploga Sylvia Caiuby Novaes, a anlise de filmes e vdeos permiteoutra entrada na histria cultural de grupos sociais, bem como um melhor entendimento dosprocessos de mudana social, do impacto do colonialismo e da dinmica das relaesinterculturais. Dessa forma, imagens de arquivo ou contemporneas coletadas em pesquisa decampo podem e devem ser utilizadas como fontes que conectam os dados tradio oral e memria dos grupos estudados.

    Assim, o uso da imagem acrescenta novas dimenses interpretao da histria cultural,permitindo aprofundar a compreenso do universo simblico que, por sua vez, se exprime emsistemas de atitudes pelos quais se definem grupos sociais, se constroem identidades e seapreendem mentalidades.

    Como antroplogos, nos interessamos pelo estudo de mitos, mscaras e rituais,procurando, mediante anlises detalhadas, elementos que nos permitam uma melhorcompreenso da organizao social de uma determinada sociedade e do universo de valores

  • que orientam padres de comportamento e mesmo as categorias bsicas de um pensamento que culturalmente marcado.

    Muitas vezes no percebemos que, tanto quanto esses aspectos da organizao social e dacultura material, imagens flmicas e fotogrficas podem revelar dados fundamentais sobrenossa prpria sociedade e nosso modo de pensar. Da mesma maneira que essas outrastemticas, abordadas tradicionalmente por antroplogos e socilogos quando querem teracesso esfera simblica de um coletivo social especfico, tambm o cinema, enquantoartefato cultural, uma via de acesso privilegiada para os objetivos a que a antropologia e ascincias sociais em geral se propem.

    As imagens flmicas, tal como mitos, rituais, vivncias e experincias, condensam sentidose dramatizam situaes do cotidiano, descortinando a vida social e seus contextos designificao. Os aspectos recorrentes e inconscientes do agir social esto igualmente presentesnas imagens flmicas e fotogrficas, cabendo ao pesquisador investigar as relaes que seconstroem e os significados que as constituem.

    Se mesmo contemporaneamente cientistas sociais vem com reservas uma maioraproximao com a imagem, isso talvez seja pelo fato de eles ainda associarem a imagem asignos naturais em oposio s palavras como signos convencionais. Uma oposio dessaordem ignora o fato de que olhar no apenas um fenmeno fisiolgico assim comoimagens flmicas ou fotogrficas no so apenas cpias do mundo visvel e tambm nossacapacidade de perceber por meio da linguagem exatamente aquilo que procuramos estruturar eordenar, sobretudo aquilo que conhecemos. Concebemos o mundo por valores que delimitamnossa capacidade de olhar, nossa percepo e nossas possibilidades de apreenso de sentido.

    Dessa forma, a problematizao dos modos de ver impe-se como uma tarefa quepossibilita a expanso do olhar e a delimitao de novos problemas, permitindo a passagemde um exerccio de construo de conhecimento baseado na imagem como objeto para outro,em que as imagens podem ser pensadas como modos de ver, olhar e pensar, ampliando aspossibilidades de anlise dos domnios do visvel.

  • ConclusoIndicando os pontos de contato e interlocuo entre antropologia e imagem, pretendemostrazer luz o quanto a antropologia, disciplina dedicada ao estudo de alteridades, se tornaela mesma aberta a variaes no processo de construo do conhecimento. Graas ao fato deestar em permanente contato com outras formas de pensar e inventar o mundo, a antropologia uma rea do conhecimento que necessita de engenho e criatividade para se reinventar em facedos novos desafios cotidianamente colocados.

    Estamos aqui utilizando o termo inveno no sentido de criao, como fictio, algoconstrudo. A antroploga Marilyn Strathern, alis, em artigo da dcada de 1980 quando sevivia um momento de grande questionamento ps-moderno quanto s representaesconstrudas nas etnografias clssicas , classifica a produo etnogrfica como ficessrias.

    O que esse momento crtico traz uma provocao bastante pertinente, na medida em quetoca o ponto central da disciplina: a relao do antroplogo com o conhecimento que produz.Essa reflexividade no interior da antropologia, desencadeada naquele perodo e direcionadasobretudo para a crtica da representao escrita do conhecimento etnogrfico, acaba porpossibilitar a abertura do enquadramento e o retorno a discusses de trabalhos como osempreendidos por Margaret Mead, Gregory Bateson, Jean Rouch e David e JudithMacDougall que, como sublinhamos, vinham sendo desenvolvidos, desde muito tempo, margem das grandes discusses realizadas no meio acadmico antropolgico. Mesmo otrabalho que Mead e Bateson, antroplogos de grande popularidade, desenvolvem com asimagens permanece sem grande repercusso.

    A inventividade sempre esteve presente, e a incorporao da imagem, seja ela fotogrficaou em movimento, ao processo de construo da prtica antropolgica constitui, assim, nomera questo de mtodo, mas sobretudo uma questo epistemolgica. No se trata, portanto,de um novo meio para simplesmente produzir dados de pesquisa ou de estabelecer contatos evnculos no campo, mas de propor, a partir da incluso da imagem, novas questes e novosproblemas.

    Terminamos sugerindo aos leitores que assistam aos filmes comentados ao longo do texto. certo que nem todos so de fcil acesso, e esta uma sria dificuldade que ainda temos deenfrentar: a pssima distribuio dos documentrios em geral e, especificamente, daqueles decunho antropolgico. Vale, porm, o esforo para quem tem interesse em enveredar por essaseara. Nos filmes os leitores podero perceber as questes apontadas ao longo deste texto epossivelmente muitas outras, dado o carter polissmico da imagem, que tambm foi aquitratado.

  • Referncias e fontes

    Devemos mencionar uma questo geral que a pouca quantidade de livros em lnguaportuguesa que discutem os temas aqui desenvolvidos. Listamos a seguir algumas obrasimportantes para quem deseja aprofundar as questes abordadas.

    Um livro fundamental sobre as relaes entre cinema e antropologia: Piault, Marc-Henri.Anthropologie et Cinema (Paris: Editions Nathan, 2000).

    Para a discusso sobre os modos de construir o olhar na antropologia: Grimshaw, Anna. TheEthnographers Eye (Cambridge: Cambridge University Press, 2001).

    Para acompanhar por meio das palavras do prprio autor sua experincia de realizar Nanookof the North: Flaherty, Robert. How I filmed Nanook of the North (in Geduld, Harry, ed.Film Makers on Film Making. Penguin, 1969).

    As referncias a Sylvia Caiuby Novaes no item Mtodo, objeto de pesquisa ou forma deexpresso? vm de seu artigo O uso da imagem na antropologia que faz parte da coletneaO fotogrfico, organizada por Etienne Samain (So Paulo: Senac, 2005).

    Outra importante coletnea de textos sobre quem pensa e defende um campo para aantropologia visual: Hockings, Paul (org). Principles of Visual Anthropology (New York:Mouton de Gruyter, 1995).

    Uma coletnea importante que discute a imagem como possibilidade de reflexoepistemolgica na antropologia: MacDougall, David. Transcultural Cinema (Princeton:Princeton University Press, 1999).

    Citamos, no tpico Experincias Paradigmticas, o trabalho inovador de Mead e Bateson,cuja referncia completa : Bateson, Gregory e Mead, Margaret. Balinese Character: APhotographic Analysis (New York: New York Academy of Sciences, 1942; 2a edio, 1962).Um comentrio criterioso sobre esse livro: Samain, Etienne. Balinese Character Revisitado(in Alves, Andr. Os argonautas do mangue. Campinas: Editora Unicamp; So Paulo:Imprensa Oficial, 2004).

    Uma sntese sobre o trabalho e a proposta de prtica antropolgica de Jean Rouch pode serencontrada em: Sztutman, Renato. Jean Rouch: um antroplogo cineasta (in Barbosa,Andra; Cunha, Edgar Teodoro da et al. Escrituras da imagem. So Paulo: Edusp, 2004) eem: Sztutman, Renato. Jean Rouch e o cinema como subverso de fronteiras (in Sexta-Feira Antropologia artes humanidades, v.1. So Paulo: Pletora, 1997).

    Uma coletnea importante sobre a temtica da fotografia e antropologia: Elizabeth Edwards,Anthropology and Photography (London: Royal Anthropological Institute, 1992).

  • Para ler Malinowski em sua obra seminal: Malinowski, Bronislaw. Argonautas do PacficoOcidental (So Paulo: Editora Abril, Coleo Os Pensadores, 1978). Uma boa comentaristado trabalho de Malinowski Eunice Durham, em seu livro A reconstituio da realidade (SoPaulo: tica, 1978).

  • Leituras recomendadas

    Embora a literatura sobre o tema, em lngua portuguesa, no seja muito vasta, temos boascoletneas que oferecem textos interessantes, tanto do ponto de vista terico como do ponto devista etnogrfico.

    BARBOSA, Andra; CUNHA, Edgar Teodoro da et al. Escrituras da imagem. So Paulo: Edusp,2004.Coletnea bastante instigante, organizada por ns e outros colegas do Grupo deAntropologia Visual da USP, contm seleo de artigos que narram diversas experinciasda imagem sendo utilizada como parte da reflexo antropolgica. Inclui, alm de artigos,ensaios fotogrficos e anlises crticas de vdeos recentes produzidos em contexto depesquisa.

    Cadernos de antropologia e imagem, Rio de Janeiro: Uerj.Toda a coleo dessa revista, que j tem duas dezenas de volumes, fundamental paraquem quer acompanhar as discusses atuais sobre o tema e ainda ter acesso traduo detextos de autores estrangeiros importantes, assim como a artigos de pesquisadoresbrasileiros que tm refletido sobre as relaes possveis entre imagem e antropologia. Osnmeros 1 e 2 so especialmente importantes por inaugurar essa iniciativa com textosclssicos e fundamentais para a compreenso da questo.

    Horizontes antropolgicos. Nmero temtico: Antropologia visual. Ano 1, nmero 2, 1995.Esse nmero foi pioneiro em reunir reflexes sobre o campo da antropologia visual. Neleh artigos muito instigantes, como o de Etienne Samain sobre Malinowski e a fotografia eo de Dominique Gallois e Vincent Carelli sobre experincias com vdeo e dilogointercultural.

    LEITE, Miriam Moreira e FELDMAN-BIANCO, Bela. Desafios da imagem. Campinas: Papirus,1998.Coletnea bastante abrangente que trata de temas bem diversos, como a relao entre textoe imagem e o relato de experincias da utilizao da imagem em contextos de ensino nascincias sociais.

    SAMAIN, Etienne (org.). O fotogrfico. So Paulo: Senac, 2005.O livro que j est em sua segunda edio e conta com ensaios bastante heterogneos, masque do conta de uma discusso ampla da fotografia como modo de ver e pensar, naspalavras do prprio Etienne.

  • Vdeos e filmes sugeridos

    Muitos dos clssicos mencionados neste livro, a exemplo da bibliografia, s so encontradosno exterior ou nos poucos centros de pesquisa que se dedicam ao tema em nosso pas. A seguirindicamos alguns ttulos fundamentais que podem ser encontrados no Brasil.

    Robert Flaherty. Nanook of the North, 1922, 79 min. Esse o clssico que tantomencionamos no texto. Existe uma verso em DVD lanada pela The Criterion Collection(EUA) em 1998. Algumas videotecas de universidades possuem cpias em vdeo. Vale a penaprocurar e assistir por seu carter histrico, mas tambm pelo carter esttico. um filmeinstigante e fundamental.

    Jean Rouch. Cronique d'un et, 1960, 80 min e Moi, un noir, 1958, 80 min. Dois filmestambm fundamentais na extensa filmografia deste antroplogo-cineasta.

    Dominique Gallois e Vincent Carelli. A arca dos Zo, 1993, 22 min. Esse trabalho exemplar da utilizao do vdeo como uma ferramenta de comunicao intercultural mediada. possvel ter acesso a ele em algumas videotecas universitrias ou diretamente com o ProjetoVdeo nas Aldeias www.videonasaldeias.org.br

    Luiz Thomaz Reis. Rituais e festas Bororo, 1917, 20 min. Esse e outros filmes podem serencontrados no Museu do ndio, no Rio de Janeiro, ou em algumas videotecas universitrias.

  • Sobre os autores

    Andra Barbosa doutora em antropologia pela Universidade de So Paulo (USP) epesquisadora de temas urbanos e da relao entre antropologia e produo audiovisual.Participa do Lisa Laboratrio de Imagem e Som em Antropologia da USP desde 1996,tendo desenvolvido pesquisas nos projetos temticos da Fapesp Imagem em foco nasCincias Sociais (1997-2002) e Alteridade, expresses culturais do mundo sensvel econstrues da realidade (2003-). Atualmente desenvolve pesquisa de ps-doutorado juntoao Departamento de Antropologia da USP, onde a relao entre memria, imagem eexperincia vivida foco da produo de uma srie de documentrios sobre personagensannimos da cidade de So Paulo. O e-mail para contatos [email protected]

    Edgar Teodoro da Cunha doutor em antropologia pela USP e pesquisador associado doLisa, onde faz parte do projeto temtico da Fapesp Alteridade, expresses culturais domundo sensvel e construes da realidade. Desde 1996 vem desenvolvendo pesquisas nasreas de etnologia e antropologia da imagem, das quais resultaram sua dissertao demestrado Cinema e imaginao: a imagem do ndio no cinema brasileiro dos anos 70 e suatese de doutorado Imagens do contato: representaes da alteridade e os Bororo do MT.Dirigiu ainda os documentrios Jean Rouch, subvertendo fronteiras (2000, 40 min) e Ritualda vida (2005, 30 min). Atualmente coordena o curso de ps-graduao em cinemadocumentrio da FGV/EESP/CPDOC em So Paulo. O e-mail para contatos [email protected]

  • Coleo PASSO-A-PASSO

    Volumes recentes:

    CINCIAS SOCIAIS PASSO-A-PASSO

    Sociologia do trabalho [39], Jos Ricardo Ramalho e Marco Aurlio Santana

    O negcio do social [40], Joana Garcia

    Origens da linguagem [41], Bruna Franchetto e Yonne Leite

    Literatura e sociedade [48], Adriana Facina

    Sociedade de consumo [49], Lvia Barbosa

    Antropologia da criana [57], Clarice Cohn

    Patrimnio histrico e cultural [66], Pedro Paulo Funari e Sandra de Cssia Arajo Pelegrini

    Antropologia e imagem [68], Andra Barbosa e Edgar T. da Cunha

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    Maquiavel & O Prncipe [46], Alessandro Pinzani

    A Teoria Crtica [47], Marcos Nobre

    Filosofia da mente [52], Claudio Costa

    Espinosa & a afetividade humana [53], Marcos Andr Gleizer

    Kant & a Crtica da Razo Pura [54], Vinicius de Figueiredo

    Biotica [55], Darlei Dall'Agnol

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