anthony kenny - historia concisa da filosofia

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História Concisa da Filosofia Ocidental Anthony Kenny REVISÃO CIENTÍFICA Desidério Murcho Sociedade Portuguesa de Filosofia

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  • Histria Concisa da Filosofia Ocidental

    Anthony Kenny

    REVISO CIENTFICA

    Desidrio Murcho Sociedade Portuguesa de Filosofia

  • Ttulo original: A Brief History of Western Philosophy Autor: Anthony Kenny Anthony Kenny, 1998 Traduo: Desidrio Murcho, Fernando Martinho, Maria Jos Figuei-redo, Pedro Santos e Rui Cabral Reviso cientfica: Desidrio Murcho Reviso do texto: Antnio Jos Massano Capa: Antnio Rochinha Diogo Fotocomposio: Alfanumrico, L.da Impresso: SIG Sociedade Industrial Grfica, L.da

    (Bairro de S. Francisco, Lote I, 6, Camarate, 2685 Sacavm) 1 .a edio: Setembro de 1999 ISBN : 972-759-???-? Depsito legal: ?????????????????????? Temas e Debates Actividades Editoriais, L.da

    Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1 1050-499 Lisboa Tel. 762 60 03 Fax 762 62 47 E-mail: [email protected]

  • Para Norman Kretzmann

  • ndice

    Prefcio ............................................................................................ 13

    Agradecimentos ................................................................................. 17

    1 Na infncia da filosofia...................................................................... 19

    Os Milsios ....................................................................................20 Xenfanes......................................................................................23 Heraclito ....................................................................................... 25 A Escola de Parmnides ...................................................................28 Empdocles....................................................................................36 Os Atomistas..................................................................................39

    2 A Atenas de Scrates ........................................................................45

    O Imprio Ateniense........................................................................45 Anaxgoras.................................................................................... 47 Os Sofistas .....................................................................................48 Scrates.........................................................................................50 Eutfron ........................................................................................ 53 Crton ........................................................................................... 57 Fdon............................................................................................ 57

    3 A filosofia de Plato..........................................................................65

    Vida e Obra....................................................................................65 A Teoria das Ideias.......................................................................... 67 A Repblica de Plato...................................................................... 72 O Teeteto e o Sofista ........................................................................83

  • 4 O sistema de Aristteles....................................................................93

    Discpulo de Plato, Mestre de Alexandre............................................93 A Fundao da Lgica......................................................................96 A Teoria da Arte Dramtica ............................................................ 100 Filosofia Moral: Virtude e Felicidade................................................ 102 Filosofia Moral: Sabedoria e Entendimento....................................... 107 Poltica.........................................................................................110 Cincia e Explicao.......................................................................112 Palavras e Coisas............................................................................ 115 Movimento e Mudana.................................................................... 117 Alma, Sentidos e Intelecto.............................................................. 120 Metafsica.................................................................................... 123

    5 A filosofia grega depois de Aristteles ............................................... 129

    A Era Helenstica .......................................................................... 129 Epicurismo.................................................................................. 130 Estoicismo................................................................................... 133 Cepticismo................................................................................... 136 Roma e o seu Imprio.................................................................... 138 Jesus de Nazar............................................................................ 140 Cristianismo e Gnosticismo............................................................ 143 Neoplatonismo............................................................................. 146

    6 A filosofia crist primitiva................................................................ 151

    Arianismo e Ortodoxia.................................................................... 151 A Teologia da Incarnao ................................................................155 A Vida de Agostinho.......................................................................157 A Cidade de Deus e o Mistrio da Graa .............................................161 Bocio e Filpono.......................................................................... 165

    7 A filosofia medieval primitiva ........................................................... 171

    Joo Escoto Ergena....................................................................... 171 Alkindi e Avicena .......................................................................... 174 O Sistema Feudal .......................................................................... 176 Santo Anselmo............................................................................. 178 Abelardo e Helosa .........................................................................181 A Lgica de Abelardo..................................................................... 183 A tica de Abelardo....................................................................... 185 Averris....................................................................................... 187 Maimnides................................................................................. 189

  • NDICE

    8 Filosofia no sculo XIII.................................................................... 193

    Uma Era de Inovao..................................................................... 193 S. Boaventura............................................................................... 197 A Lgica do Sculo xiii ................................................................... 199 Vida e Obra de Toms de Aquino..................................................... 201 A Teologia Natural de Toms de Aquino ........................................... 204 Matria, Forma, Substncia e Acidente............................................. 205 Essncia e Existncia em Toms de Aquino.......................................208 A Filosofia da Mente de Toms de Aquino......................................... 209 A Filosofia Moral de Toms de Aquino.............................................. 212

    9 Os filsofos de Oxford .................................................................... 219

    A Universidade do Sculo xiv .......................................................... 219 Duns Escoto................................................................................. 221 A Lgica da Linguagem de Ockham.................................................. 228 A Teoria Poltica de Ockham ........................................................... 231 Os Calculadores de Oxford.............................................................. 234 John Wyclif.................................................................................. 236

    10 A filosofia do Renascimento........................................................... 241

    O Renascimento............................................................................ 241 O Livre-Arbtrio: Roma versus Lovaina ............................................ 243 O Platonismo do Renascimento....................................................... 246 Maquiavel.................................................................................... 248 A Utopia de More.......................................................................... 251 A Reforma ................................................................................... 254 A Filosofia do Perodo Ps-Reforma................................................. 259 Bruno e Galileu............................................................................. 261 Francis Bacon............................................................................... 263

    11 A era de Descartes......................................................................... 269

    As Guerras Religiosas.................................................................... 269 A Vida de Descartes....................................................................... 270 A Dvida e o Cogito ....................................................................... 273 A Essncia da Mente...................................................................... 276 Deus, Mente e Corpo ..................................................................... 278 O Mundo Material ......................................................................... 282

    12 A filosofia inglesa no sculo XVII...................................................... 287

    O Empirismo de Thomas Hobbes..................................................... 287 A Filosofia Poltica de Hobbes......................................................... 290

  • A Teoria Poltica de John Locke....................................................... 292 Locke, Ideias e Qualidades.............................................................. 295 Substncias e Pessoas ....................................................................300

    13 A filosofia do continente na poca de Lus XIV .................................. 307

    Blaise Pascal ................................................................................ 307 Espinosa e Malebranche..................................................................311 Leibniz........................................................................................ 316

    14 A filosofia britnica no sculo XVIII.................................................. 323

    Berkeley ...................................................................................... 323 Hume e a Filosofia da Mente........................................................... 329 Hume e a Causalidade.................................................................... 334 Reid e o Senso Comum................................................................... 337

    15 O iluminismo............................................................................... 341

    Os Philosophes ............................................................................. 341 Rousseau..................................................................................... 343 Revoluo e Romantismo............................................................... 347

    16 A filosofia crtica de Kant............................................................... 351

    A Revoluo Copernicana de Kant.................................................... 351 A Esttica Transcendental .............................................................. 354 A Analtica Transcendental: A Deduo das Categorias........................ 356 A Analtica Transcendental: O Sistema dos Princpios......................... 361 A Dialctica Transcendental: Os Paralogismos da Razo Pura............... 364 A Dialctica Transcendental: As Antinomias da Razo Pura................. 366 A Dialctica Transcendental: Crtica da Teologia Natural ..................... 370 A Filosofia Moral de Kant............................................................... 373

    17 O idealismo e o materialismo alemes.............................................. 377

    Fichte.......................................................................................... 377 Hegel .......................................................................................... 379 Marx e os Jovens Hegelianos .......................................................... 384 O Capitalismo e os seus Descontentes............................................... 386

    18 Os utilitaristas ............................................................................. 389

    Jeremy Bentham........................................................................... 389 O Utilitarismo de J. S. Mill ............................................................. 394 A Lgica de Mill............................................................................ 396

  • NDICE

    19 Trs filsofos do sculo XIX ............................................................ 401

    Schopenhauer............................................................................... 401 Kierkegaard.................................................................................409 Nietzsche..................................................................................... 412

    20 Trs mestres modernos................................................................. 417

    Charles Darwin............................................................................. 417 John Henry Newman..................................................................... 423 Sigmund Freud............................................................................. 428

    21 A Lgica e os fundamentos da Matemtica........................................ 437

    A Lgica de Frege.......................................................................... 437 O Logicismo de Frege....................................................................440 A Filosofia da Lgica de Frege......................................................... 443 O Paradoxo de Russell ................................................................... 444 A Teoria das Descries de Russell ................................................... 446 Anlise Lgica.............................................................................. 449

    22 A filosofia de Wittgenstein............................................................. 453

    Tractatus Logico-Philosophicus ...................................................... 453 O Positivismo Lgico..................................................................... 456 As Investigaes Filosficas de Wittgenstein..................................... 459

    Posfcio.......................................................................................... 473

    Sugestes de leitura complementar ..................................................... 479

    ndice analtico................................................................................ 489

  • Prefcio

    52 ANOS, Bertrand Russell escreveu uma Histria da Filo-sofia Ocidental num volume, que ainda muito lida. Quando

    me foi sugerido que poderia escrever um equivalente moderno, fui o primeiro a ficar intimidado pelo desafio. Russell foi um dos maiores filsofos do sculo e ganhou um prmio Nobel de literatura; como poderia algum aventurar-se a competir com ele? Contudo, esta obra no , em geral, enc arada como uma das melhores de Russell, que notoriamente injusto com alguns dos maiores filsofos do passado, como Aristteles e Kant. Alm disso, Russell agia segundo pressupos-tos sobre a natureza da filosofia e do mtodo filosfico que hoje em dia seriam postos em causa pela maior parte dos filsofos. Parece, na verdade, haver espao para um livro que oferea uma panormica da histria deste tema de um ponto de vista filosfico contemporneo. A obra de Russell, por mais inexacta no pormenor, aprazvel e estimulante, tendo proporcionado a muitas pessoas um primeiro gosto pelo que h de emocionante na filosofia. Procuro neste livro atingir a mesma audincia de Russell: escrevo para o leitor culto em geral, sem uma formao filosfica especial, que deseja ficar a conhecer a contri-buio dada pela filosofia para a cultura em que vivemos. Tentei evitar o uso de quaisquer termos filosficos sem os explicar quando surgem pela primeira vez. Os dilogos de Plato oferecem-nos aqui um mode-lo: Plato foi capaz de estabelecer resultados filosficos sem usar qual-quer vocabulrio tcnico, pois nenhum existia quando escreveu. Por esta razo, entre outras, tratei algo detidamente vrios dos seus dilo-gos nos captulos 2 e 3. O aspecto da prosa de Russell que mais me esforcei por imitar foi a clareza e o vigor do seu estilo. (Russell escreveu, um dia, que os seus prprios modelos de autores de prosa eram Baedeker e John Milton.)

    H

  • 14

    Um leitor que tenha acabado de chegar filosofia achar por certo difceis de seguir algumas partes desta obra. Em filosofia no h guas pouco profundas; todo o aprendiz de filsofo tem de lutar para no se afundar. Mas fiz o meu melhor para assegurar que o leitor no ter de enfrentar quaisquer dificuldades de compreenso que no sejam intrnsecas ao tema. No possvel dar uma explicao prvia do que trata a filosofia. A melhor maneira de aprender filosofia ler as obras dos grandes filso-fos. Este livro pretende mostrar ao leitor quais os temas que interessa-ram aos filsofos e quais os mtodos por eles usados para os enfrentar. Em si, os resumos das doutrinas filosficas so pouco teis: engana o leitor quem lhe apresentar apenas as concluses de um filsofo, sem uma indicao dos mtodos pelos quais elas foram alcanadas. Por esta razo, apresentei e critiquei o melhor que pude o raciocnio que os filsofos usam para apoiar as suas teses. Ao lanar-me assim na discusso com os grandes espr itos do passado no pretendo faltar-lhes ao respeito. assim que se leva um filsofo a srio: no papa-gueando o seu texto, mas digladiando-se com ele e aprendendo com os seus pontos fortes e com os seus pontos fracos. A filosofia , simultaneamente, a mais emocionante e a mais frus-trante das matrias. emocionante porque a mais ampla de todas as disciplinas, explorando os conceitos bsicos que atravessam todo o nosso discurso e pensamento sobre qualquer tema. Alm disso, pode empreender-se o estudo da filosofia sem qualquer formao ou instru-o especial preliminar; qualquer pessoa que esteja disposta a pensar muito e a seguir um raciocnio pode fazer filosofia. Mas a filosofia tambm frustrante porque, ao contrrio das disciplinas cientficas ou histricas, no oferece nova informao sobre a natureza ou a socieda-de. A filosofia no procura proporcionar conhecimento, mas com-preenso; e a sua histria mostra como tem sido difcil, mesmo para os grandes espritos, desenvolver uma perspectiva completa e coerente. Pode dizer-se sem exagero que nenhum ser humano conseguiu ainda alcanar uma compreenso completa e coerente nem mesmo da lin-guagem que usamos para pensar os nossos pensamentos mais simples. No foi por acaso que o homem que muita gente considera o fundador da filosofia enquanto disciplina autoconsciente, Scrates, afirmou que a nica sabedoria que possua era o conhecimento da sua prpria ignorncia. A filosofia no cincia nem religio, apesar de historicamente ter estado entrelaada em ambas. Procurei mostrar como, em muitas reas, o pensamento filosfico surgiu da reflexo religiosa e como se

  • 15

    transformou em cincia emprica. Muitos assuntos que foram tratados por grandes filsofos do passado j no contam hoje em dia como filosficos. Assim, concentrei-me nas reas objecto dos seus esforos que ainda hoje seriam enc aradas como filosficas, como a tica, a metafsica e a filosofia da mente. Como Russell, fiz uma escolha pessoal dos filsofos a incluir nesta histria e do espao devotado a cada um. Contudo, no me afastei tanto quanto Russell das propores comummente aceites no cnone filosfico. Como Russell, inclu a discusso de no -filsofos que influenciaram o pensamento filosfico; por isso que Darwin e Freud surgem na minha lista de autores. Dediquei um espao considervel filosofia antiga e medieval, apesar de no tanto quanto Russell que, a meio do seu livro, ainda no tinha passado de Alcuno e Carlos Magno. Terminei a narrativa por alturas da II Guerra Mundial e no tentei abranger a filosofia continental do sculo XX . Uma vez mais como Russell, esbocei o pano de fundo social, hist-rico e religioso das vidas dos filsofos, mais detidamente ao tratar de perodos remotos e muito brevemente medida que nos aproximamos dos tempos modernos. No escrevi para os filsofos profissionais, apesar de esperar, claro, que eles achem a minha apresentao rigorosa e que se sintam von-tade para recomendar o meu livro aos seus estudantes como leitura secundria. Para os que j esto familiarizados com o tema, a minha prosa ter as marcas da minha prpria formao filosfica, que come-ou por ser na filosofia escolstica de inspirao medieval e depois na escola da anlise lingustica que tem sido dominante na maior parte deste sculo no mundo de lngua inglesa. A minha esperana, ao publicar este livro, que ele possa transmi-tir aos que sentem curiosidade pela filosofia alguma da sua emoo e que os encaminhe para os prprios textos dos grandes pensadores do passado. Estou em dvida para com o corpo redactorial da Blackwell e para com Anthony Grahame, pela assistncia concedida na preparao do livro; e para com trs consultores annimos que fizeram sugestes teis com vista ao seu aperfeioamento. Estou particularmente grato minha mulher, Nancy Kenny , que leu todo o livro em forma de manus-crito, eliminando muitas passagens por serem ininteligveis para o no-filsofo. Tenho a certeza de que os meus leitores iro partilhar a minha gratido para com ela por os ter poupado a um trabalho intil.

    Janeiro de 1998

  • Agradecimentos

    O autor e os editores agradecem reconhecidamente a autorizao para reproduzir materiais protegidos pelos direitos de autor:

    T. S. Eliot: pelos versos de Four Quartets, copyright 1943 by T. S. Eliot, renovado em 1971 por Esme Valerie Eliot, para a Faber & Fa-ber Ltd.

    W. B. Yeats: pelos versos de Among School Children, de Col-lected Poems (Macmillan, 1995), agradecemos a A. P. Watt Ltd em nome de Michael Yeats.

    Os editores pedem desculpa por quaisquer erros ou omisses na lista anterior e ficaro reconhecidos se forem avisados relativamente a quaisquer correces que devam ser incorporadas na prxima edio ou reimpresso deste livro.

  • 1 Na infncia da filosofia

    S MAIS ANTIGOS filsofos ocidentais eram gregos: filsofos que falavam dialectos da lngua grega e que estavam familiarizados

    com os poemas gregos de Homero e Hesodo, tendo sido ensinados a prestar culto a deuses gregos como Zeus, Apolo e Afrodite. Estes fil-sofos no viviam no continente grego, mas em centros afastados de cultura grega, nas costas do Sul de Itlia ou na costa ocidental do que hoje a Turquia, e floresceram no sculo V I a. C. o sculo que come-ou com a deportao dos judeus para a Babilnia ordenada pelo rei Nabucodonosor e que acabou com a fundao da Repblica Romana depois da expulso dos reis das jovens cidades. Estes primeiros filsofos foram tambm os primeiros cientistas, e muitos foram tambm lderes religiosos. A princpio, a distino entre cincia, religio e filosofia no era to clara como viria a tornar-se em sculos posteriores. No sculo V I, na sia Menor e na Itlia grega, havia um caldeiro intelectual no qual elementos de todas estas futu-ras disciplinas fermentavam em conjunto. Mais tarde, os devotos religiosos, os discpulos da filosofia e os herdeiros da cincia viriam todos a poder olhar retrospectivamente para estes pensadores como os seus antecessores. Pitgoras, honrado na antiguidade por ter sido o primeiro a trazer a filosofia para o mundo grego, ilustra na sua prpria pessoa as carac-tersticas deste perodo antigo. Nascido em Samos, ao largo da costa da Turquia, emigrou para Crotona, na extremidade da pennsula itli-ca. Pitgoras tem direito a ser considerado o pai da geometria enquan-to estudo sistemtico. O seu nome tornou-se familiar a muitas gera-es de crianas europeias em idade escolar porque lhe foi atribuda a

    O

  • 20

    primeira demonstrao de que o quadrado da hipotenusa de um trin-gulo rectngulo igual em rea soma dos quadrados dos outros dois lados. Mas Pitgoras fundou tambm uma comunidade religiosa com um conjunto de regras ascticas e cerimoniais, a mais bem conhecida das quais era a proibio de comer feijes. Pitgoras ensinou a doutri-na da transmigrao das almas: os seres humanos teriam almas inde-pendentes dos seus corpos e, aquando da morte, a alma de uma pessoa poderia migrar para outro tipo de animal. Por esta razo, ensinava os seus discpulos a absterem-se de carne; diz-se que, uma vez, ter impedido um homem de aoitar um cachorro por ter reconhecido nos seus ganidos a voz de um amigo querido j falecido. Pitgoras acredi-tava que a alma, tendo migrado sucessivamente para diferentes tipos de animais, podia ac abar por reencarnar num ser humano. Ele prprio afirmava lembrar-se de ter sido, alguns sculos antes, um heri no cerco de Tria. Em grego, chamava-se metempsicose doutrina da transmigra-o das almas. Fausto, na pea de Christopher Marlowe, depois de ter vendido a alma ao diabo e estando prestes a ser levado para o Inferno cristo, expressa o desejo desesperado de que Pitgoras tenha acerta-do:

    Ah, a metempsicose de Pitgoras! Que fosse verdade E esta alma abandonava-me, transformando-me eu Numa qualquer besta bruta.

    Os discpulos de Pitgoras escreveram biografias suas cheias de prodgios, atribuindo-lhe a segunda viso e o dom da bilocao e fazendo dele filho de Apolo.

    OS MILSIOS

    A vida de Pitgoras est envolta em lendas. Sabe-se bastante mais sobre um grupo de filsofos, aproximadamente seus contemporneos, que viv eram na cidade de Mileto, na Jnia, ou sia grega. O primeiro deles foi Tales, que era suficientemente velho para ter podido prever um eclipse em 585. Como Pitgoras, era um gemetra, apesar de lhe serem atribudos teoremas bastante simples, como o de que o dime-tro de um crculo divide este ltimo em duas partes iguais. Tambm como Pitgoras, Tales misturava a geometria com a religio: quando descobriu como inscrever um tringulo rectngulo num crculo sacrifi-

  • 21

    cou um boi aos deuses. Mas a sua geometria tinha um lado prtico: foi capaz de medir a altura das pirmides medindo as suas sombras. Tales interessava-se tambm por astronomia, tendo identificado a constela-o da Ursa Menor, sublinhando a sua utilidade para a navegao. Foi, diz-se, o primeiro grego a fixar a durao do ano em 365 dias e fez estimativas dos tamanhos do Sol e da Lua. Tales foi talvez o primeiro filsofo a levantar questes sobre a estrutura e a natureza do cosmos como um todo. Sustentava que a Terra repousa sobre a gua, como um madeiro que flutua num regato. (Aristteles perguntaria, mais tarde: a gua repousa sobre o qu?) Mas a Terra e os seus habitantes no se limitavam a flutuar na gua: Tales pensava que, num certo sentido, tudo era feito de gua. Mesmo na antiguidade as pessoas no podiam fazer mais do que levantar conjec-turas sobre as bases desta crena: seria porque todos os animais e plantas precisam de gua ou porque todas as sementes so hmidas? Por causa da sua teoria sobre o cosmos, os autores posteriores chamaram fsico ou filsofo da natureza a Tales (physis a palavra grega para natureza). Apesar de ser um fsico, Tales no era materia-lista, isto , no pensava que mais nada existisse a no ser a matria fsica. Um dos dois adgios que nos chegaram dele textualmente Tudo est cheio de deuses. Uma indicao do que ele queria dizer talvez dada pela sua afirmao de que o man, porque desloca o ferro, tem alma. Tales no acreditava na doutrina da transmigrao de Pit-goras, mas sustentava a imortalidade da alma. Tales no foi apenas um teorizador. Foi um conselheiro poltico e militar do rei Creso da Ldia e ajudou-o a passar um rio a vau desvian-do um caudal de gua. Prognosticando uma colheita de azeitona extraordinariamente boa, arrendou todos os lagares e enriqueceu. No entanto, adquiriu a reputao de ser um distrado, apartado das coisas mundanas, e assim que nos surge numa carta que um antigo autor apcrifo simulou ter sido escrita por Mileto a Pitgoras:

    Tales encontrou um destino cruel na sua velhice. Saiu do ptio de sua casa para ver as estrelas noite, como era seu costume, com a sua serva e, esquecendo-se de onde se encontrava, enquanto contemplava as estrelas, chegou beira de um talude ngreme, de onde caiu. Foi nestas circunstncias que os milsios perderam o seu astrnomo. Que aqueles que foram seus alunos, como ns, prezem a sua memria, e que esta seja prezada pelos nossos filhos e alunos.

  • 22

    O verdadeiro autor desta carta era um jovem contemporneo e aluno de Tales chamado Anaximandro, um sbio que fez o primeiro mapa do mundo e das estrelas, tendo inventado tanto o relgio de sol como um relgio das estaes. Ensinava que a Terra tinha a forma cilndrica, como uma seco de uma coluna. Em volta do mundo exis-tiam anis gigantes, cheios de fogo; cada anel tinha um buraco atravs do qual o fogo podia ser visto, sendo os buracos o Sol, a Lua e as estre-las. O tamanho do anel maior era 28 vezes o da Terra, e o fogo avistado pelo seu orifcio era o Sol. As obstrues nos orifcios explicavam os eclipses e as fases da Lua. O fogo no inte-rior destes anis fora uma grande bola de chama que rodeara a Terra primitiva e que gradualmente se desfizera em fragmentos que se ins-creveram em coberturas como as das rvores. Os corpos celestes have-riam de voltar ao fogo original.

    As coisas a partir das quais se originam as que existem so tambm as coisas em que se transformam quando se destroem, de acordo com o que tem de ser. Pois elas ofertam justia e reparao umas s outras pela sua injustia de acordo com as disposies do tempo.

    A cosmogonia fsica est aqui misturada no tanto com a teologia, mas com uma grande tica csmica: os diversos elementos, tal como os homens e os deuses, tm de se manter dentro de limites para sempre fixados pela natureza. Apesar de o fogo desempenhar um papel importante na cosmogonia de Anaximandro, seria um erro pensar que ele o encarava como o constituinte ltimo do mundo, como a gua de Tales. O elemento bsico de tudo, sustentava, no podia ser a gua nem o fogo, nem nada de semelhante, pois, caso contrrio, esse elemento invadiria gradual-mente o universo. Tinha de ser algo sem uma natureza definida, a que chamou o infinito ou o ilimitado. O infinito o primeiro princ-pio das coisas que existem: eterno e sem idade e contm todos os mundos. Anaximandro foi um proponente antecipado da evoluo das esp-cies. Os seres humanos que conhecemos no podem ter sempre existi-do, defendeu. Os outros animais so capazes de olhar por si prprios pouco tempo depois de terem nascido, ao passo que os seres humanos precisam de um longo perodo de aleitamento; se os seres humanos tivessem originalmente sido como so agora, no poderiam ter sobre-vivido. Anaximandro sustentou que, numa poca anterior, havia ani-mais semelhantes a peixes no interior dos quais os embries humanos

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    cresceram at atingirem a puberdade antes de se precipitarem no mundo. Devido a esta tese, apesar de no ser vegetariano noutros aspectos, Anaximandro pregava contra a ingesto de peixe. O infinito de Anaximandro era um conceito demasiado rarefeito para alguns dos seus sucessores. O seu contemporneo mais novo em Mileto, Anaxmenes, apesar de concordar que o elemento ltimo no poderia ser o fogo nem a gua, afirmava que era a partir do ar que tudo o mais se tinha gerado. No seu estado estvel o ar invisvel, mas, quando se move e se condensa, torna-se primeiro vento, depois nuvem e a seguir gua, e, finalmente, a gua condensada torna-se lama e pedra. Presumivelmente, o ar rarefeito torna-se fogo, o que completa a gama dos elementos. Para apoiar a sua teoria, Anaxmenes apelava experincia: Os homens libertam das suas bocas tanto o calor como o frio; pois o sopro arrefece quando comprimido e condensado pelos lbios, mas, quando a boca se relaxa e o ar se exala, torna-se quente em virtude da sua rarefaco. Assim, a rarefaco e a condensao podem gerar tudo a partir do ar subjacente. Isto ingnuo, mas cincia ingnua: no mitologia, ao contrrio das narrativas clssicas e bblicas do dilvio e do arco-ris. Anaxmenes foi o primeiro defensor da Terra plana: pensava que os corpos celestes no viajavam sob a Terra, como os seus predecessores tinham defendido, mas que rodavam em torno das nossas cabeas como um chapu de feltro. Anaxmenes era tambm um defensor da Lua plana e do Sol plano: O Sol, a Lua e os outros corpos celestes, sendo todos gneos, viajam pelo ar por serem planos.

    XENFANES

    Tales, Anaximandro e Anaxmenes constituram um trio de intrpi-dos e engenhosos filsofos especulativos. Os seus interesses distin-guem-nos mais como os antecessores dos cientistas do que dos filso-fos modernos. As coisas so diferentes no que respeita a Xenfanes de Clofon (prximo da actual Esmirna), que viveu no sculo V. Os seus tpicos e mtodos so reconhecivelmente os mesmos dos filsofos das pocas posteriores. Ele foi, em particular, o primeiro filsofo da religio, e alguns dos argumentos por ele propostos so ainda levados a srio pelos seus sucessores. Xenfanes detestava a religio presente nos poemas de Homero e Hesodo, cujas histrias blasfemavam, atribuindo aos deuses o roubo,

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    a manha, o adultrio e todo o tipo de comportamento que, entre os seres humanos, seria vergonhoso e condenvel. Sendo ele prprio um poeta, Xenfanes atacou ferozmente a teologia homrica em versos satricos hoje perdidos. No que Xenfanes afirmasse possuir uma compreenso clara sobre a natureza do divino; pelo contrrio, escre-veu que a verdade clara sobre os deuses nenhum homem jamais viu nem nenhum homem ir alguma vez conhecer. Mas afirmava saber de onde vinham essas lendas dos deuses: os seres humanos tm ten-dncia para representar toda a gente e tudo o que h sua imagem. Os etopes, afirmou Xenfanes, fazem os seus deuses escuros e de nariz achatado, ao passo que os trcios os fazem de cabelo ruivo e olhos azuis. A crena de que os deuses tm um tipo qualquer de forma humana um antropomorfismo infantil. Se as vacas, os cavalos ou os lees tivessem mos e pudessem desenhar, os cavalos desenhariam as formas dos deuses semelhantes a cavalos, as vacas deuses semelhantes a vacas, fazendo os corpos dos deuses semelhantes aos seus prprios corpos. Apesar de ningum vir jamais a ter uma viso clara de Deus, Xen-fanes pensava que, medida que a cincia progredisse, os mortais poderiam aprender mais do que o que tinha originalmente sido rev e-lado. H um Deus, escreveu, o maior de entre os deuses e os homens, dissemelhante dos mortais tanto em forma como em pensa-mento. Deus no era limitado nem infinito, mas completamente no espacial: o divino uma coisa viva que v como um todo, pensa como um todo e ouve como um todo. Numa sociedade que adorava muitos deuses, Xenfanes era um firme monotesta. S havia um Deus, defendia, porque Deus a mais poderosa de todas as coisas e, se houvesse mais de um, todos teriam de partilhar o mesmo poder. Deus no pode ter uma origem; pois o que vem existncia ou o faz partindo do que lhe anlogo, ou do que no lhe anlogo e ambas as alternativas conduzem ao absurdo no caso de Deus. Deus no infinito nem finito, no mutvel nem imutvel. Mas, apesar de Deus ser de certo modo impensvel, no destitudo de pensamento. Pelo contrrio, distncia e sem esforo, s com a sua mente, Ele governa tudo o que existe. O monotesmo de Xenfanes digno de nota no tanto por causa da sua originalidade, mas por causa da sua natureza filosfica. O pro-feta hebraico Jeremias e os autores do livro de Isaas j tinham pro-clamado que s existia um deus verdadeiro. Mas ao passo que a sua postura se baseava num orculo divino, Xenfanes ofereceu uma demonstrao do seu ponto de vista por meio de argumentao racio-

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    nal. Em termos de uma distino que no seria traada seno sculos depois, Isaas proclamou uma religio revelada, ao passo que Xenfa-nes era um telogo natural. A filosofia da natureza de Xenfanes menos emocionante do que a sua filosofia da religio. As suas ideias so variaes de tpicos pro-postos pelos milsio s que o precederam. Xenfanes tomou a terra, e no a gua nem o ar, como o seu elemento ltimo. Pensava que a terra se prolongava at ao infinito abaixo de ns. O Sol, sustentava, origina-va-se cada dia a partir de uma congregao de minsculas centelhas. Mas no era o nico sol; na verdade, havia uma infinidade de sis. A contribuio cientfica mais original de Xenfanes foi ter chamado a ateno para a existncia de fsseis, apontando para o facto de em Malta se encontrarem impressas em rochas as formas de todas as criaturas marinhas. Com base nisto, Xenfanes concluiu que o mundo tinha passado por um ciclo de fases alternadas terrestres e marinhas.

    HERACLITO

    O ltimo e o mais famoso destes primeiros filsofos jnios foi Heraclito, que viveu no princpio do sculo V na grande metrpole de feso, onde mais tarde S. Paulo viria a pregar, a residir e a ser perse-guido. A cidade, quer no tempo de Heraclito quer no tempo de S. Pau-lo, era dominada pelo grande templo da deusa da fertilidade, Artemi-sa. Heraclito denunciou o culto praticado no templo: rezar a esttuas era como sussurrar mexericos a uma casa vazia, e oferecer sacrifcios para nos purificarmos do pecado era como tentar lavar a lama com lama. Visitava o templo de tempos a tempos, mas s para jogar aos dados com as crianas dali uma companhia muito melhor do que a dos polticos, dizia, recusando-se a desempenhar qualquer papel na poltica da cidade. Foi tambm no templo de Artemisa que Heraclito depositou o seu tratado em trs tomos sobre filosofia e poltica, uma obra, hoje perdida, notoriamente difcil to enigmtica que algumas pessoas a tomaram como um texto de fsica e outras como um tratado poltico. (O que dela consigo compreender excelente, disse Scra-tes mais tarde, o que no consigo compreender pode muito bem ser tambm excelente; mas s um mergulhador do mar alto poder che-gar-lhe ao fundo.) Nesse livro Heraclito falava de uma grande Palavra, ou Logos, sempre subsistente e de acordo com a qual todas as coisas se originam. Escrevia de modo paradoxal, afirmando que o universo simultanea-

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    mente divisvel e indivisvel, gerado e no gerado, mortal e imortal, Palavra e Eternidade, Pai e Filho, Deus e Justia. No admira que toda a gente, como ele se queixava, achasse o seu Logos consideravelmente incompreensvel. Se Xenfanes, com o seu estilo de argumentao, era semelhante aos filsofos profissionais modernos, Heraclito estava muito mais de acordo com a ideia popular moderna do filsofo como guru. Heraclito no tinha seno desprezo pelos seus predecessores filosficos. Muito estudo, dizia, no nos ensina a ser homens sensatos; caso contrrio, teria feito de Hesodo, Pitgoras e Xenfanes homens sensatos. Hera-clito no argumentava, proferia: era um mestre das mximas fecundas de ar profundo e sentido obscuro. O seu estilo dlfico era talvez uma imitao do orculo de Apolo que, nas suas prprias palavras, nem fala, nem esconde, mas manifesta-se por sinais. Os seguintes adgios contam-se entre os mais bem conhecidos de Heraclito:

    O caminho a subir e a descer um e o mesmo. A harmonia oculta melhor do que a manifesta. A guerra pai de todos e de todos soberana; a uns apresenta-os como deuses e a outros como homens; de uns ela faz escravos, de outros homens livres. Uma alma seca mais sbia e melhor. Para as almas, tornar-se gua a morte. Um brio um homem conduzido por um rapaz. Os deuses so mortais, os seres humanos imortais, vivendo a sua mor-

    te, morrendo a sua vida. A alma uma aranha e o corpo a sua teia.

    Heraclito explicava assim a ltima observao: tal como uma ara-nha, no meio de uma teia, se d conta assim que uma mosca quebra um dos seus fios e de longe se precipita como se estivesse em aflio, tambm a alma humana, se alguma parte do corpo est magoado, se precipita imediatamente para a, como se no conseguisse suportar a injria. Mas, se a alma uma aranha diligente, tambm , segundo Heraclito, uma centelha da substncia das gneas estrelas. Na cosmologia de Heraclito, o fogo desempenha o papel que a gua tinha em Tales e o ar em Anaxmenes. O mundo um fogo sempre ardente: todas as coisas vm do fogo e vo para o fogo; todas as coi-sas se podem trocar pelo fogo, como os bens se trocam por ouro e o ouro por bens. H um caminho descendente, no qual o fogo se trans-forma em gua e a gua em terra, e um caminho ascendente, no qual a

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    terra se transforma em gua, a gua em ar e o ar em fogo. A morte da terra tornar-se gua, a morte da gua tornar-se ar e a morte do ar tornar-se fogo. H um nico mundo, o mesmo para todos, e no foi Deus nem o homem que o fizeram; sempre existiu e sempre existir, passando, de acordo com ciclos determinados pelo destino, por uma fase de inflamao, que a guerra, e uma de combusto, que a paz. A viso de Heraclito da transmutao dos elementos num fogo sempre ardente conquistou a imaginao dos poetas at aos nossos dias. T. S. Eliot, em Quatro Quartetos, decidiu glosar a afirmao de Heraclito de que a gua era a morte da terra:

    H inundao e seca Por sobre os olhos e na boca, guas mortas e mortos areais Que pela primazia guerreais. O solo, ressequido e desventrado, Fica de boca aberta pelo labor anulado E ri-se sem alegria nesse exerccio Que da terra o final excio.

    Gerard Manley Hopkins escreveu um poema intitulado Que a Natureza um Fogo Heracliteano, repleto de imagens provenientes de Heraclito:

    Milhes atestados, consome-se a grande fogueira da natureza. Mas extinto o mais formoso e mais querido, a centelha mais sua, O homem, e o ctipo de fogo deste, a sua presena no esprito, desapa-

    rece ligeiro! Ambos esto num insondvel, tudo est num sombrio enorme Submergido. Oh! mgoa e indignao! Apario humana, que refulgiu Desapareceu, disjungida, uma estrela, a morte invade com o oblvio

    Perante esta situao, Hopkins busca conforto na promessa de uma ressurreio final uma doutrina crist, claro, mas uma doutrina que conhece a sua antecipao numa passagem de Heraclito que fala de seres humanos que regressam e se tornam guardies vigilantes dos vivos e dos mortos. O fogo, disse Heraclito, vir e julgar e conde-nar todas as coisas. O aspecto dos ensinamentos de Heraclito que mais impressionou os filsofos no mundo antigo no foi tanto a viso do mundo como uma fogueira, mas antes o corolrio segundo o qual tudo no mundo estava num estado de constante mudana e fluxo. Tudo passa, disse Heracli-to, e nada permanece; o mundo como um curso de gua corrente. As

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    guas que vemos perante ns, nas margens de um rio, no so as mesmas em dois momentos distintos, e no podemos banhar os nossos ps duas vezes nas mesmas guas. At aqui, tudo bem; mas Heraclito foi mais longe e afirmou que nem sequer podemos entrar duas vezes no mesmo rio. Isto parece falso, quer seja tomado literalmente, quer seja tomado alegoricamente; mas, como veremos, esta ideia foi extre-mamente influente na filosofia grega posterior.

    A ESCOLA DE PARMNIDES

    A situao filosfica muito diferente quando nos voltamos para Parmnides, que nasceu nos ltimos anos do sculo VI. Apesar de ter sido, provavelmente, um discpulo de Xenfanes, Parmnides passou a maior parte da sua vida no na Jnia mas em Itlia, numa cidade chamada Eleia, cerca de 110 quilmetros a sul de Npoles. Diz-se que Parmnides redigiu um excelente conjunto de leis para a sua cidade, mas nada sabemos da sua actividade poltica nem da sua filosofia poltica. Parmnides o primeiro filsofo cujos escritos nos chegaram em quantidade aprecivel: escreveu um

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    poema filosfico nuns versos desajeitados, do qual temos cerca de 120 linhas. Na sua obra no se dedicou cosmologia, como os primeiros milsios, nem teologia, como Xenfanes, mas a um estudo novo e universal que a ambos abrangia e transcendia: a disciplina a que os filsofos posteriores chamaram ontologia. A ontologia deriva o seu nome de uma palavra grega que, no singular, on e, no plural, onta: esta palavra o particpio presente do verbo grego ser que define o tema de Parmnides. O seu singular poema pode reivindicar o ttulo de carta rgia fundadora da ontologia. Para explicar o que a ontologia e do que trata o poema de Parm-nides, necessrio entrar em mincias relativamente a questes de gramtica e de traduo. A pacincia do leitor relativamente a este pedantismo ser compensada, pois entre Parmnides e os dias de hoje a ontologia viria a ter um crescimento vasto e luxuriante, de modo que s uma compreenso firme do que Parmnides queria dizer, e do que no conseguiu dizer, nos permite traar um percurso claro, ao longo dos sculos, pela selva ontolgica. O tema de Parmnides o to on, o que, traduzido literalmente, quer dizer o que . Antes de explicarmos o verbo, temos de dizer qualquer coisa sobre o artigo. Em portugus usamos por vezes um adjectivo, precedido por um artigo definido, para referir uma classe de pessoas ou coisas, como quando dizemos os ricos, para referir as pessoas ricas. A formulao correspondente era muito mais frequente em grego do que em portugus: os gregos podiam usar a expresso o quente para referir as coisas quentes e o frio para referir as coisas frias. Assim, por exemplo, Anax menes afirmava que o ar se tornava visvel pelo quente, pelo frio, pelo hmido e pelo mvel. Em vez de um adjectivo depois de o, podemos, claro, usar um substantivo, em particular um substantivo deverbal, como quando falamos, por exem-plo, de o assistente para referir as pessoas que assistem (a um espectculo, por exemplo). Mas em grego era possvel tambm fazer suceder ao artigo um particpio presente propriamente dito, que em portugus corresponde ao gerndio; e esta construo que ocorre em o que , que literalmente quer dizer o (que est) sendo. O que aquilo que est sendo, tal como o assistente designa aqueles que (por exemplo) assistem ao espectc ulo. Uma forma verbal como assistir tem em portugus pelo menos dois usos diferentes: pode ser um verbo no infinitivo de pleno direito, como em gostei de assistir ao espectculo, ou pode ser um verbo substantivado, como em assistir a filmes violentos prejudicial aos jovens. Quando os filsofos escrevem tratados sobre o ser, usam

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    geralmente a palavra como verbo substantivado: propem-se explicar o que isso de

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    algo ser. No isso, pelo menos principalmente, aquilo de que Parm-nides se ocupa: ele est preocupado com o que , isto , com seja o que for que, por assim dizer, est sendo. Para distinguir este sentido de ser do uso como verbo substantivado, e para evitar a estranheza da traduo portuguesa literal o que , a tradio tem usualmente dignificado o tema de Parmnides com um S maisculo. Seguiremos esta conveno, segundo a qual o Ser se refere a seja o que for que est sendo, e o ser o verbo ser substantivado. Muito bem; mas se isso o que o Ser , para perceber do que est Parmnides a falar temos tambm de saber o que o ser, isto , o que isso de algo ser. Compreendemos o que algo ser azul, ou um cacho r-ro; mas o que isso de algo ser apenas, sem mais? Uma possibilidade auto-evidente esta: ser existir, ou, por outras palavras, o ser a existncia. Se assim for, o Ser ser, pois, tudo o que existe. Em portugus, ser pode certamente querer dizer existir. Quando Hamlet se interroga ser ou no ser, eis a questo, est a debater-se com a ideia de pr, ou no, fim sua existncia. Na Bblia podemos ler que Raquel chorava pelos seus filhos e no sentia con-forto por eles no serem mais. Este uso em portugus potico e arcaico, no sendo natural dizer coisas como A Torre de Belm ainda , e o cinema Monumental deixou de ser, quando queremos dizer que o primeiro edifcio ainda existe, ao passo que o segundo j no. Mas a afirmao correspondente seria perfeitamente natural em grego anti-go; e este sentido de ser est certamente presente no discurso de Parmnides sobre o Ser. Se isto fosse tudo o que est em causa, poderamos limitar-nos a dizer que o Ser tudo o que existe, ou, se quisermos, tudo o que ou, ainda, tudo o que est sendo. Trata-se, sem dvida, de um tema sufi-cientemente lato. No poderamos censurar Parmnides, como Hamlet censurou Horcio, dizendo que

    H mais coisas nos cus e na terra Do que sonhas na tua filosofia.

    Pois tudo o que h nos cus e na Terra cair sob a designao do Ser. Infelizmente, contudo, as coisas so mais complicadas do que isto. A existncia no tudo o que Parmnides tem em mente quando fala do Ser. Ele est interessado no verbo ser no apenas tal como ocorre em frases como Tria j deixou de ser, mas tambm tal como ocorre em qualquer tipo de frase, seja ela qual for quer se trate de frases como Penlope uma mulher, Aquiles um heri, Menelau

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    louro ou Telmaco alto. Compreendido deste modo, o Ser no apenas o que existe, mas aquilo em relao ao qual qualquer frase que contenha verdadeira. Alm disso, o ser no apenas o existir (o ser, sem mais), mas ser qualquer coisa, seja o que for: ser vermelho ou azul, ser quente ou frio, e assim por diante ad nauseam. Tomado neste sentido, o domnio do Ser muito mais difcil de compreender. Depois deste longo prembulo, estamos em condies de deitar um olhar sobre alguns dos versos do misterioso poema de Parmnides.

    O que podes nomear e pensar tem de ser o Ser Pois o Ser pode, e o nada no pode, ser.

    O primeiro verso destaca a vasta extenso do Ser: se podemos chamar Argo a um co, ou se podemos pensar na Lua, ento o Argo e a Lua tm de ser, tm de contar como parte do Ser. Mas por que razo nos diz o segundo verso que o nada no pode ser? Bem, qualquer coisa que possa realmente ser tem de ser uma coisa ou outra; no pode limitar-se a ser coisa nenhuma. Parmnides introduz, para corresponder noo do Ser, a do No-Ser.

    Nunca poder suceder que o No-Ser seja; No permitas ao teu esprito tal pensamento.

    Se o Ser aquilo em relao ao qual uma coisa ou outra, no impor-ta qual, verdadeira, ento o No-Ser aquilo em relao ao qual absolutamente nada verdadeiro. Mas isto , sem dvida, absurdo. No s o No-Ser no pode existir, no pode mesmo ser pensado.

    No poders conhecer o No-Ser isso no pode fazer-se Nem proferi-lo; ser pensado e ser uma s coisa.

    Dada a sua definio de ser e No-Ser, Parmnides tem, sem dvida, razo neste aspecto. Se algum nos disser que est a pensar em algo e lhe perguntarmos em que tipo de coisa est a pensar, ficaremos desconcertados se essa pessoa nos disser que no se trata de nenhum tipo de coisa. Se lhe perguntarmos ento com o que se parece isso e se essa pessoa nos disser que no se parece com nada, ficaremos descon-certados. Poder ento dizer-me seja o que for sobre o que est a pensar?, podemos ns perguntar. Se essa pessoa nos disser que no, podemos com toda a justia concluir que ela no est realmente a

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    pensar em coisa alguma na verdade, no est sequer a pensar. Nesse sentido, verdade que ser pensado e ser so um e o mesmo. Podemos concordar com Parmnides at aqui; mas podemos tam-bm fazer notar que h uma diferena importante entre dizer

    O No-Ser no pode ser pensado e dizer

    O que no existe no pode ser pensado. A primeira frase , no sentido explicado acima, verdadeira; a segunda falsa. Se fosse verdadeira, poderamos demonstrar que as coisas existem limitando-nos a pensar nelas; mas, ao passo que tanto podemos pensar em lees como em unicrnios, os lees existem e os unicrnios no. Dado o carcter enredado da sua linguagem, difcil ter a certeza se Parmnides pensava ou no que as duas afirmaes eram equivalentes. Alguns dos filsofos posteriores acusaram-no de fazer essa confuso; outros parecem ter sido eles prprios vtimas dela. Concordmos com a rejeio do No -Ser de Parmnides. Mas mais difcil acompanhar algumas das concluses que ele retira do carcter inconcebvel do No-Ser e da universalidade do Ser. Eis como Parmnides continua:

    H um caminho, assinalado deste modo: O Ser nunca nasceu e nunca morre; Firme, imvel, no permitir nenhum fim Nunca foi, nem ser; sempre presente, Uno e contnuo. Como poderia nascer Ou de onde poderia ter -se criado? Do No-Ser? No Isso no pode dizer-se nem pensar-se; no podemos sequer Chegar a negar que . Que necessidade, Anterior ou posterior, poderia o Ser do No-Ser fazer surgir? Portanto, tem inteiramente de ser ou no. Nem ao No-Ser ir a crena atribuir Qualquer progenitura alm de si mesmo []

    Nada pode provir do nada um princpio que tem sido aceite por muitos pensadores bastante menos intrpidos do que Parmnides. Mas no houve muitos que tivessem retirado a concluso de que o Ser no tem princpio nem fim, nem que no est sujeito mudana tem-

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    poral. Para perceber por que razo tirou Parmnides esta concluso, temos de admitir que ele pensava que ser gua ou ser ar se rela-cionava com ser da mesma maneira que correr depressa e correr devagar se relaciona com correr. Uma pessoa que comece por correr depressa e que depois corra devagar continua todo o tempo a correr; analogamente, para Parmnides, o que for primeiro gua e depois ar continua a ser. Quando a gua de uma chaleira se evapora, tal pode ser, nas palavras de Heraclito, a morte da gua e o nascimento do ar; mas, para Parmnides, no a morte nem o nasc imento do Ser. Sejam quais forem as mudanas que possam ter lugar, no so mudan-as do ser para o no-ser; so sempre mudanas no Ser e no mudan-as do Ser. O Ser tem de ser eterno, pois no poderia ter tido origem no No-Ser nem tornar-se no No-Ser, pois no h tal coisa. Se o Ser pudesse per impossibile provir do nada, o que poderia fazer com que isso acontecesse num momento em vez de outro? Na verdade, o que dife-rencia o passado do presente e do futuro? Se no um tipo de ser, o tempo ser irreal; mas, se um tipo de ser, ento tudo ser parte do Ser, e o passado, o presente e o futuro no sero seno um Ser. Parmnides procura mostrar, com argumentos anlogos, que o Ser indiviso e ilimitado. O que iria dividir o Ser do Ser? O No-Ser? Nesse caso, a diviso seria irreal. O Ser? Nesse caso no haveria div i-so, mas o Ser contnuo. O que poderia impor limites ao Ser? O No-Ser no pode fazer nada a coisa alguma; e, se imaginarmos que o Ser est limitado pelo Ser, ento o Ser no alcanou ainda os seus limites.

    Pensar uma coisa pensar que , nem mais. parte o Ser, seja o que for que exprimamos, O pensamento no alcanar. Nada ou ser Para alm dos limites do Ser, visto que o decreto do Destino O agrilhoou, inteiro e imvel. Todas as coisas so nomes Que a credulidade dos mortais forjou Nascimento e destruio, ser tudo ou nada, Mudanas de lugar, e cores que vo e vm.

    O poema de Parmnides tem duas partes: a Via da Verdade e a Via da Aparncia. A Via da Verdade contm a doutrina do Ser, que exami-nmos at agora; a Via da Aparncia trata do mundo dos sentidos, o mundo da mudana e da cor, o mundo dos nomes vazios. No temos de nos demorar na Via da Aparncia, pois o que Parmnides nos diz sobre isso no muito diferente das especulaes cosmolgicas dos

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    pensadores jnicos. Foi a sua Via da Verdade que estabeleceu um programa de aco para a filosofia dos sculos seguintes. O problema que os filsofos posteriores enfrentaram foi o seguinte: o senso comum sugere que o mundo contm coisas que perduram, como montanhas rochosas, e coisas que mudam constantemente, como cursos de gua impetuosos. Por um lado, Heraclito tinha decla-rado que, a um nvel fundamental, at mesmo as coisas mais slidas estavam em fluxo perptuo; por outro lado, Parmnides defendeu que at mesmo o que aparentemente mais fugaz , a um nvel fundamen-tal, esttico e imutvel. Pode qualquer das doutrinas ser refutada? H alguma maneira de as reconciliar? Para Plato e para os que se lhe seguiram, responder a estas perguntas era uma das tarefas fundamen-tais da filosofia. Um aluno de Parmnides, Melisso (acme em 441), ps em prosa escorreita as ideias que Parmnides tinha exposto em versos opacos. Dessas ideias extraiu duas consequncias particularmente chocantes. Uma delas era a de que a dor era irreal, pois implicava uma deficincia do ser. A outra era a de que o espao vazio ou o vcuo era coisa que no existia: teria de ser parte do No-Ser. Logo, o movimento era impossvel, pois os corpos que ocupam espao no tm outro stio para onde se deslocar. Zeno, um amigo de Parmnides cerca de 25 anos mais novo que ele, desenvolveu uma engenhosa srie de paradoxos, concebidos para mostrar, alm de qualquer dvida, que o movimento era inconcebvel. O mais conhecido destes paradoxos prope-se demonstrar que quem se desloca depressa nunca consegue ultrapassar quem se desloca dev a-gar. Suponhamos que Aquiles, um atleta rpido, faz uma corrida de 100 metros com uma tartaruga que s consegue correr a da sua velocidade, dando tartaruga um avano de 40 metros. Na altura em que Aquiles tiver chegado aos 40 metros, a tartaruga estar ainda 10 metros sua frente. Quando Aquiles tiver percorrido esses 10 metros, a tartaruga estar 2,5 metros sua frente. De cada vez que Aquiles vence o hiato entre os dois, a tartaruga origina outro hiato, mais pequeno, sua frente; assim, parece que Aquiles no pode nunca ultrapassar a tartaruga. Outro argumento, mais simples, procurava mostrar que ningum consegue correr de uma ponta a outra de um estdio, pois, para chegar ao outro extremo, temos primeiro de chegar a meio do estdio, para chegar a meio do estdio temos primeiro de chegar a meio dessa distncia, e assim por diante ad infinitum.

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    Estes e outros argumentos de Zeno partem do princpio de que as distncias so infinitamente divisveis. Esta suposio foi contestada por alguns pensadores posteriores e aceite por outros. Aristteles, a quem devemos a preservao dos enigmas, foi capaz de deslindar algumas das ambiguidades. Contudo, s depois de muitos sculos os paradoxos conheceram solues que satisfizessem tanto os filsofos como os matemticos. Plato diz-nos que, quando Parmnides era um homem de cabelos grisalhos com 65 anos, viajou com Zeno de Eleia para assistir a um festival em Atenas, tendo a conhecido o jovem Scrates. Isto teria ocorrido por volta de 450 a. C. Alguns especialistas pensam que a histria uma inveno com fins dramticos; mas o encontro, se teve lugar, inaugurou de modo esplndido a idade de ouro da filosofia grega em Atenas. Regressaremos j de seguida filosofia ateniense; entretanto, falta ainda ter em considerao outro pensador da penn-sula italiana, Empdocles de cragas, e mais dois fsicos jnicos, Leu-cipo e Demcrito.

    EMPDOCLES

    Empdocles atingiu a sua plenitude em meados do sculo V e era um cidado da cidade da costa sul da Siclia que agora se chama Agri-gento. Tem fama de ter sido um poltico activo, um democrata ardente a quem foi oferecida a posio, por ele recusada, de rei da sua cidade. Mais tarde foi banido e praticou a filosofia no exlio. Era clebre como mdico, mas, de acordo com os bigrafos antigos, tanto curava por magia como recorrendo aos medicamentos, tendo mesmo devolvido vida uma mulher morta h 30 dias. Nos seus ltimos anos, dizem-nos os seus bi grafos, chegou a acreditar ser um deus, encontrando a sua morte ao saltar para o vulco Etna para estabelecer a sua divindade. Quer Empdocles tenha sido um taumaturgo, quer no, merece a sua reputao como filsofo original e imaginativo. Escreveu dois poemas, maiores do que o de Parmnides e mais fluentes, se bem que tambm mais repetitivos. Um deles era sobre a cincia, e o outro sobre a religio. Do primeiro, Da Natureza, possumos cerca de 400 versos dos originais 2000; do segundo, Purificaes, s so breviveram peque-nos fragmentos. A filosofia da natureza de Empdocles pode ser encarada como uma sntese do pensamento dos filsofos jnicos. Como vimos, cada um deles escolheu uma certa substncia como o ingrediente bsico do

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    universo: para Tales, era a gua; para Anaxmenes, o ar; para Xenfa-nes, a terra; para Heraclito, o fogo. Para Empdocles, todas estas qua-tro substncias estavam em p de igualdade enquanto elementos bsi-cos (ou razes, para usar o seu termo) do universo. Empdocles pensava que estes elementos tinham existido desde sempre, mas que se misturavam uns com os outros, em vrias propores, para dar origem quilo que constitua o mundo.

    Destes quatro proveio o que foi e e sempre ser rvores, bestas e seres humanos, homens e mulheres, todas As aves do ar e os peixes gerados pela gua brilhante, E tambm os deuses de vida longa, h muito adorados nas alturas. Estes quatro so tudo o que h, cada um deles misturando-se E, na mistura, a variedade do mundo alcanando.

    O entrelaamento e a mistura dos elementos, no sistema de Emp-docles, causado por duas foras: o Amor e a Discrdia. O Amor com-bina os elementos, fazendo surgir uma coisa de muitas coisas, e a Discrdia obriga-as a separarem-se, fazendo surgir muitas coisas a partir de uma. A histria um ciclo no qual por vezes dominante o Amor, outras a Discrdia. Sob a influncia do Amor, os elementos unem-se numa esfera homognea e gloriosa; depois, sob a influncia da Discrdia, separam-se em seres de diferentes tipos. Todos os seres compostos, como os animais, as aves e os peixes, so temporariamente criaturas que vo e vm; s os elementos so sempiternos, e s o ciclo csmico no cessa nunca. As descries que Empdocles faz da sua cosmologia so, umas vezes, prosaicas e, outras, poticas. A fora csmica do Amor muitas vezes personificada na exultante deusa Afrodite, e as primeiras fases do desenvolvimento csmico so identificadas com uma era de ouro em que ela reinava. O elemento do fogo por vezes denominado Hefesto, o deus-sol. Mas, apesar das suas roupagens simblicas e mticas, o sistema de Empdocles merece ser levado a srio enquanto esboo de explicao cientfica. Estamos habituados a considerar o slido, o lquido e o gasoso como os trs estados fundamentais da matria. No era absurdo con-siderar o fogo, e em particular o fogo solar, como um quarto estado da matria, de igual importncia. De facto, pode dizer-se que o surgimen-to, no nosso sculo, da disciplina de fsica do plasma (que estuda as propriedades da matria temperatura solar) reconquistou para este quarto elemento a paridade em relao aos outros trs. O Amor e a

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    Discrdia podem ser identificados como os anlogos antigos das foras de atraco e repulso que tm desempenhado um papel significativo no desenvolvimento da fsica terica ao longo dos sculos. Empdocles sabia que a Lua brilhava por reflectir a luz; pensava, contudo, que o mesmo se passava com o Sol. Tinha conscincia de que os eclipses do Sol eram causados pela interposio da Lua. Sabia que as plantas se reproduziam por via sexual e defendia uma teoria elabo-rada segundo a qual a respirao estava relacionada com o movimento do sangue dentro do corpo. Apresentou uma teoria rudimentar da evoluo . Num estdio primitivo do mundo, defendia ele, o acaso formou, a partir da matria original, membros e rgos isolados: bra-os sem ombros, olhos fora das rbitas, cabeas sem pescoos. Estas partes de corpos de animais, semelhantes a peas de lego, juntaram-se, de novo por acaso, em organismos, muitos dos quais eram monstruo-sidades, como bois com cabeas humanas ou seres humanos com cabea de boi. A maioria destes organismos fortuitos era frgil ou estril; apenas as estruturas mais aptas sobreviveram para dar origem espcie humana e s outras espcies de animais que conhecemos. At mesmo os deuses, como vimos, eram produto dos elementos de Empdocles. Por maioria de razo, a alma humana era um composto material, feito de terra, ar, fogo e gua. Cada elemento e na verdade as foras do amor e da discrdia desempenhava o seu papel no funcionamento dos nossos sentidos, de acordo com o princpio de que o semelhante percepcionado pelo semelhante.

    Com a terra vemos a terra, com a gua, a gua, Com o ar o ar do cu, com o fogo o fogo consumidor; Com o Amor percepcionamos o Amor, a Discrdia com a triste Discr-dia.

    O pensamento, estranhamente, identifica-se com o movimento do sangue volta do corao: o sangue uma mistura refinada de todos os elementos, o que explica a natureza abrangente do pensamento. O poema religioso de Empdocles intitulado Purificaes torna evidente que ele aceitava a doutrina pitagrica da metempsicose, a transmigrao das almas. A discrdia castiga os prevaricadores, atri-buindo as suas almas a outros tipos de criaturas, terrestres ou mari-nhas. Empdocles recomendava aos seus seguidores que se abstives-sem de ingerir criaturas vivas, pois os corpos dos animais que come-mos so a morada das almas castigadas. No claro se, para evitar estes risc os, seria suficiente adoptar o vegetarianismo, uma vez que, do

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    ponto de vista de Empdocles, uma alma humana podia migrar para uma planta. O melhor destino para um homem, dizia ele, era tornar-se um leo, se a morte o transformasse em animal, e um loureiro, se o transformasse em planta. Mas o melhor era transformar-se em deus; aqueles que tinham mais probabilidades de conseguir este enobreci-mento eram os videntes, os autores de hinos e os mdicos. Empdocles, que era estas trs coisas, dizia ter ele prprio sofrido a metempsicose:

    Pois eu j fui um rapaz e uma rapariga, Um arbusto e um pssaro, e um peixe mudo do mar.

    A nossa existncia actual pode ser miservel, e as nossas perspecti-vas para depois da morte sombrias; mas depois da expiao dos nossos pecados por meio da reincarnao podemos esperar o descanso eterno mesa dos imortais, livres de cansaos e sofrimentos. Era sem dvida isto que Empdocles esperava quando mergulhou no Etna.

    OS ATOMISTAS

    Demcrito foi o primeiro filsofo significativo a nascer no conti-nente grego: era originrio de Abdera, no extremo nordeste do territ-rio. Foi discpulo de Leucipo, acerca de quem pouco se sabe. Na anti-guidade, os dois filsofos so frequentemente mencionados em con-junto, e o atomismo que os tornou a ambos famosos foi provavelmente criao de Leucipo. Aristteles conta-nos que Leucipo tentou reconci-liar os dados dos sentidos com o monismo eletico, isto , com a teoria de que havia apenas um Ser eterno e imutvel.

    Leucipo pensava ter uma teoria que estava de acordo com a percepo dos sentidos, que no iria abolir o nascer, nem a morte, nem o mov i-mento, nem a multiplicidade das coisas. Isto concedia ele s aparn-cias, concedendo qu eles que defendem o uno que o movimento impossvel sem o vazio, que o vazio No-Ser e no parte do Ser, por-que o Ser era um plenum absoluto. Mas no havia unicamente um tal Ser, mas muitos, infinitos em nmero e invisveis devido pequenez da sua ma ssa.

    Contudo, no mais do que uma linha de Leucipo sobreviveu intacta. Para termos acesso ao contedo da teoria atmica, temos de recorrer

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    ao que possvel saber a partir do seu discpulo. Demcrito era um polmato e o prolixo autor de quase 80 tratados sobre temas que iam desde a poesia e a harmonia tctica militar e teologia babilnica. Mas sobretudo pela sua filosofia natural que conhecido. Conta-se que Demcrito dizia preferir descobrir uma s explicao cientfica a tornar-se rei dos Persas. Mas era tambm modesto nas suas aspiraes cientficas: No tentes saber tudo, dizia ele, seno vais acabar por nada saber. A caracterstica fundamental do atomismo de Demcrito era a de que a matria no era infinitamente divisvel. De acordo com o ato-mismo, se tomarmos uma poro de qualquer tipo de matria e a dividirmos tanto quanto pudermos, teremos de parar em alguma altu-ra, naquela altura em que chegarmos a fragmentos to nfimos que sejam indivisveis. O argumento que levou a esta concluso parece ter sido filosfico e no experimental. Se a matria fosse divisvel at ao infinito, suponhamos ento que esta diviso foi feita pois se a mat-ria for genuinamente divisvel deste modo, nada de incoerente haver nesta suposio. Qual o tamanho dos fragmentos que resultam desta diviso? Se tiverem alguma magnitude, ento, pela hiptese da divisi-bilidade infinita, seria possvel dividi-los de novo; portanto, tm de ser fragmentos sem extenso, como os pontos geomtricos. Mas aquilo que pode ser dividido pode ser juntado outra vez: se serrarmos um tronco, dividindo-o em muitos pedaos, podemos voltar a junt-los para formar um tronco do mesmo tamanho. Mas se os nossos frag-mentos no tm qualquer magnitude, como podem eles ter sido junta-dos para formar a poro extensa de matria com que comemos? A matria no pode consistir meramente em pontos geomtricos, nem mesmo num nmero infinito deles; temos de concluir, portanto, que a divisibilidade tem um fim e que os fragmentos mais pequenos tm de ser partculas com tamanho e forma. Foi a estas partculas que Demcrito chamou tomos (tomo precisamente a palavra grega que significa indivisvel). Demcrito pensava que os tomos eram demasiado pequenos para serem detecta-dos pelos sentidos, que eram infinitos em nmero e que existiam em infinitos tipos. Como partculas de poeira iluminadas por um raio de sol, distribuam-se pelo espao vazio infinito, a que ele chamou o vazio. Existiam desde sempre e estavam sempre em movimento. Entravam em coliso uns com os outros e ligavam-se uns aos outros; alguns eram cncavos, outros convexos; alguns pareciam ganchos, outro olhos. Os objectos de tamanho mdio que nos so familiares so complexos de tomos unidos desta maneira casual; e as diferenas

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    entre as diferentes espcies de substncias devem-se a diferenas nos seus tomos. Os tomos, dizia ele, diferiam no modo (como a letra A difere da letra N), na ordem (como AN difere de NA) e na posio (como N difere de Z). Os crticos antigos de Demcrito queixaram-se de que apesar de ele explicar tudo o resto apelando para o movimento dos tomos, no tinha qualquer explicao para o prprio movimento. Outros, em sua defesa, afirmavam que o movimento era causado por uma fora de atraco em funo da qual cada tomo procurava tomos que se lhe assemelhassem. Mas talvez uma fora de atraco por explicar no seja melhor do que um movimento por explicar. Alm disso, se uma fora de atraco tivesse estado operativa ao longo de um perodo de tempo infinito sem que nenhuma outra fora a contrariasse (como a Discr-dia de Empdocles), o mundo consistiria agora em complexos de to-mos uniformes o que muito diferente dos agregados ocasionais com que Demcrito identificava os seres animados e inanimados que conhecemos. Para Demcrito, os tomos e o vazio eram as duas nicas realida-des: tudo o mais era aparncia. Quando os tomos se aproximam, colidem ou se ligam uns aos outros, os agregados tomam a forma de gua ou fogo ou plantas ou seres humanos, mas tudo o que realmente existe so os tomos no vazio, os quais lhes subjazem. Em particular, as qualidades percepcionadas pelos sentidos so meras aparncias. O mais citado aforismo de Demcrito era:

    Por conveno existem o doce e o amargo, o quente e o frio, por con-veno existe a cor; na realidade, tomos e vazio.

    Quando dizia que as qualidades sensoriais eram por conveno, contam-nos os comentadores antigos, Demcrito queria dizer que as qualidades eram relativas a ns e no pertenciam natureza das pr-prias coisas. Por natureza, nada branco, preto, amarelo, vermelho, amargo ou doce. Demcrito explicou em pormenor como os diferentes sabores resul-tavam dos diferentes tipos de tomos. Os sabores penetrantes resulta-vam de tomos pequenos, finos, angulares, com reentrncias. Os sabo-res doces, por outro lado, tm origem em tomos maiores, de forma mais arredondada. Se algo tem um sabor salgado, porque os seus tomos so grandes, speros, cortantes e angulares. No apenas os sabores e os odores, mas tambm as cores, os sons e as qualidades tcteis eram explicados pelas propriedades e relaes

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    dos tomos subjacentes. O conhecimento que nos proporcionado por todos estes sentidos o gosto, o olfacto, a vista, a audio e o tacto um conhecimento que obscuridade. O conhecimento genuno completamente diferente, sendo prerrogativa daqueles que conhecem a teoria dos tomos e do vazio. Demcrito escreveu quer sobre fsica, quer sobre tica; os aforis-mos que nos chegaram sugerem que, como moralista, era mais edifi-cante do que inspirador. O comentrio seguinte, sensato mas pouco entusiasmante, representativo de muitos outros:

    Satisfaz-te com o que tens e no gastes o teu tempo a sonhar com bens que provocam a inveja e a admirao; pe os olhos nas vidas daqueles que so pobres e vivem em sofrimento, de modo a que o que possuis possa parecer grandioso e invejvel.

    Um homem que tiver sorte com o genro, dizia, ganha um filho, ao passo que aquele que tiver azar perde uma filha uma observao que tem sido inconscientemente citada, muitas vezes de forma confusa, por muitos oradores em muitos casamentos. Tambm muitos refor-madores polticos tm feito eco da sua ideia de que melhor ser pobre numa democracia do que prspero numa ditadura. Os aforismos de Demcrito que foram preservados no constituem um sistema moral e no parecem ter qualquer relao com a teoria atmica que d forma sua filosofia. Alguns desses aforismos, porm, embora paream lacnicos e banais, so suficientes, se forem verda-deiros, para deitar por terra sistemas inteiros de filosofia moral. Por exemplo:

    A pessoa boa no se abstm apenas de fazer o mal; nem sequer o dese-ja.

    Isto entra em conflito com o ponto de vista, muitas vezes defendi-do, de que a virtude atinge o seu estdio mais elevado quando triunfa sobre uma paixo que a contraria. E de novo:

    melhor sofrer o mal do que infligi-lo. Isto no concilivel com a teoria utilitarista, comum no mundo moderno, segundo a qual a moral deve apenas ter em conta as conse-quncias de uma aco e no a identidade do agente.

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    No fim da antiguidade e no renascimento, Demcrito era conhecido como o filsofo que ri, sendo Heraclito conhecido como o filsofo que chora. Nenhuma das duas descries parece ter bases muito slidas. Contudo, h comentrios atribudos a Demcrito que confirmam a sua identificao com a boa disposio, o mais notrio dos quais o seguinte:

    Uma vida sem festejos como uma estrada sem estalagens.

  • 2 A Atenas de Scrates

    O IMPRIO ATENIENSE

    Os dias mais gloriosos da Grcia Antiga tiveram lugar no sculo V a. C., ao longo de 50 anos de paz entre dois perodos de guerra. O sculo comeara com guerras entre a Grcia e a Prsia e terminaria com uma guerra entre as cidades-estado da prpria Grcia. No perodo intermdio, floresceu a grandiosa civilizao de Atenas. A Jnia, onde tinham surgido os primeiros filsofos, estivera sob o domnio persa desde meados do sculo VI. Em 499, os gregos da Jnia rebelaram-se contra o rei persa, Dario. Depois de esmagar a revolta, Dario invadiu a Grcia para castigar os que tinham ajudado os rebel-des a partir da metrpole. Uma fora militar constituda sobretudo por atenienses derrotou o exrcito invasor em Maratona, em 490. Xerxes, filho de Dario, enviou uma expedio mais numerosa em 484, derro-tando um corajoso batalho de espartanos nas Termpilas e forando os atenienses a fugir da sua cidade. Mas a sua armada foi derrotada perto da ilha de Salamina por uma marinha grega unificada, e uma vitria grega em terra, em Plateias, em 479, ps fim invaso. Depois das invases, Atenas assumiu a liderana dos aliados gre-gos. Foram os atenienses que libertaram os gregos da Jnia, e era Atenas, apoiada por contribuies de outras cidades, que controlava a armada que assegurava a liberdade dos mares Egeu e Jnio. Aquilo que comeara como uma federao deu origem a um Imprio Atenien-se. Internamente, Atenas era uma democracia, o primeiro exemplo fidedigno dessa forma de organizao poltica. Democracia , em

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    grego, a palavra que significa o governo do povo; e a democracia ate-niense era um exemplo muito fiel de um tal regime. Atenas no era como uma democracia moderna, na qual os cidados elegem repre-sentantes que formam um governo. Em vez disso, cada cidado tinha o direito de participar em pessoa no governo, comparecendo numa assembleia geral onde podia ouvir os discursos dos lderes polticos e depois dar o seu voto. Para se ver o que isto significaria em termos actuais, imagine-se que os membros do governo e da oposio fala-vam na televiso durante duas horas, aps o que era apresentada uma moo e tomada uma deciso com base nos votos fornecidos por cada espectador ao premir ou o boto do sim, ou o boto do no no televisor. Para tornar o paralelo rigoroso, teria de acrescentar-se que apenas aos cidados do sexo masculino com mais de 20 anos seria permitido premir o boto mas no s mulheres, nem s crianas, escravos ou estrangeiros. Os poderes judicial e legislativo eram, em Atenas, atribudos por sorteio a membros da assembleia com mais de 30 anos; as leis eram aprovadas por um painel de mil cidados, escolhidos apenas por um dia; e os julga-mentos mais importantes realizavam-se perante um jri de 501 cidados. At os magistrados aqueles a quem cabia executar as decises do gover-no, quer fossem judiciais, financeiras ou militares eram maioritariamen-te escolhidos por sorteio; apenas cerca de 100 eram eleitos. Nunca antes ou desde ento os cidados comuns de um Estado partic iparam to activamente no seu governo. importante ter isto presente quando lemos o que os filsofos gregos diziam acerca dos mritos e demritos das instituies democrticas. Os atenienses afir-mavam que a sua constituio era contempornea das reformas de Clstenes de 508 a. C., e esse ano muitas vezes considerado o do nascimento da democracia. A democracia ateniense no era incompatvel com a liderana aris-tocrtica. No seu perodo imperial Atenas foi, por escolha popular, governada por Pricles, sobrinho -neto de Clstenes. Pricles instituiu um ambicioso programa de reconstruo dos templos da cidade que tinham sido destrudos por Xerxes; ainda nos dias de hoje vm visitan-tes dos quatro cantos do mundo para ver as runas dos edifcios que Pricles erigiu na Acrpole, a fortaleza de Atenas. As esculturas com as quais estes templos foram decorados encontram-se entre os objectos mais preciosos dos museus pelos quais esto hoje espalhadas. O Par-tnon, o templo em honra da deusa virgem Atena, foi construdo como oferenda pelas vitrias nas guerras prsicas. Os mrmores Elgin que esto no Museu Britnico, trazidos das runas desse templo por Lorde

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    Elgin em 1803, representam um grandioso festival ateniense, o das Panateneias, que Parmnides e Zeno tinham presenciado na poca em que se iniciavam as obras de construo. Quando o programa de Pricles se completou, Atenas no tinha rival no mundo inteiro no que dizia respeito arquitectura e escultura. Atenas tambm tinha a primazia no teatro e na literatura. squilo, que tinha combatido nas guerras prsicas, foi o grande autor na rea da tragdia; trouxe para o palco os heris e heronas da pica homri-ca, e a sua reconstituio do regresso e assassinato de Agamnon ainda nos fascina e horroriza. squilo levou tambm cena as catstrofes mais recentes de que o rei Xerxes tinha sido vtima. Dramaturgos mais novos, como o conservador e piedoso Sfocles e o mais radical e cpti-co Eurpedes, estabeleceram os padres do teatro trgico. As peas de Sfocles acerca do rei dipo, assassino de seu pai e esposo de sua me, e o retrato que Eurpedes faz de Medeia, assassina de crian as, no s fazem parte do reportrio do sculo XX, como ainda perturbam a men-talidade contempornea. A historiografia propriamente dita comeou tambm neste sculo, tendo as Crnicas das Guerras Prsicas, de Herdoto, sido redigidas nos primeiros anos do sculo, e a narrao que Tucdides faz da guerra entre os gregos, nos ltimos.

    ANAXGORAS

    Tambm a filosofia chegou a Atenas na poca de Pricles. Anax-goras de Clazmenas (perto de Esmirna) nasceu em cerca de 500 a. C. sendo, portanto, cerca de 40 anos mais velho que Demcrito. Foi para Atenas quando as guerras prsicas acabaram, tendo-se tornado amigo e colaborador de Pricles. Escreveu um tratado de filosofia natural ao estilo dos seus antecessores jnios, reconhecendo ter uma dvida especial para com Anaxmenes; diz-se que foi o primeiro tratado do gnero a conter diagramas. A explicao que Anaxgoras faz da origem do mundo extraordi-nariamente semelhante a um modelo explicativo popular hoje em dia. No incio, dizia ele, todas as coisas estavam juntas, numa unidade infinitamente complexa e infinitamente pequena, destituda de todas as qualidades perceptveis. Este seixo primevo iniciou um movimento rotativo, expandindo-se medida que rodava e expelindo ar e ter, e por fim as estrelas, o Sol e a Lua. Aquando da rotao, o denso sepa-rou-se do rarefeito, bem como o quente do frio, o claro do escuro e o seco do hmido. As substncias heterogneas do nosso mundo foram

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    assim formadas, tendo o denso, o hmido, o frio e o escuro confludo naquilo que agora a nossa Terra, e tendo-se deslocado o rarefeito, o quente, o seco e o claro para as zonas exteriores do ter. De certo modo, porm, defendia Anaxgoras, tal como as coisas eram no incio, assim elas esto agora todas juntas, ou seja, em cada coisa h uma poro de tudo o resto; h um pouco de brancura no negro e um pouco de leveza no pesado. Isto sobretudo bvio no caso do smen, o qual tem de conter cabelo, unhas, msculos, ossos e mui-tas outras coisas. A expanso do universo, de acordo com Anaxgoras, continuou at ao presente, continuar no futuro e talvez esteja neste mesmo momento gerando mundos desabitados diferentes do nosso. O movimento que gera o desenvolvimento do universo desenc a-deado pelo Esprito. O Esprito algo completamente diferente da matria a cuja histria preside. infinito e independente e no parti-cipa no processo geral de mistura dos elementos; se participasse, entraria no processo evolutivo e no poderia control-lo. Entre 430 e 420, quando a popularidade de Pricles comeou a diminuir, o seu protegido Anaxgoras foi alvo de ataques. Anaxgoras dissera que o Sol era uma bola incandescente, um pouco maior que o Peloponeso. Isto foi considerado inconsistente com o culto do Sol como um deus e motivou uma acusao de impiedade. Anaxgoras fugiu para Lmpsaco, no Helesponto, e a viveu exilado at sua mor-te, em 428.

    OS SOFISTAS

    Anaxgoras no teve rival, no perodo do regime de Pricles, como filsofo oficial de Atenas. Mas nesse perodo a cidade recebeu a visita de vrios fornecedores itinerantes de conhecimentos, os quais deix a-ram uma reputao no inferior dele. Estes professores ou conselhei-ros itinerantes eram chamados sofistas: estavam dispostos, a troco de dinheiro, a ensinar muitos tipos de proficincia e a servir de conselhei-ros em vrios assuntos. Como no havia, em Atenas, um sistema pblico de ensino supe-rior, cabia aos sofistas a instruo dos jovens que podiam pagar os seus servios nas artes e no tipo de informao de que precisariam na vida adulta. Dada a importncia da oratria pblica na assembleia e nos tribunais, a habilidade retrica era preciosa, e os sofistas eram muito procurados para ajudar e ensinar a apresentar uma causa da maneira mais favorvel possvel. Os crticos alegavam que, porque

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    estavam mais preocupados com a persuaso do que com a busca da verdade, os sofistas no eram verdadeiros filsofos. Todavia, os melhores deles eram perfeitamente capazes de enfrentar uma discus-so filosfica. O mais famoso dos sofistas foi Protgoras de Abdera, que visitou Atenas vrias vezes em meados do sculo V e foi contratado por Pri-cles para redigir a constituio de uma colnia ateniense. A maior parte do que sabemos de Protgoras chega-nos a partir das obras de Plato , que no gostava dos sofistas e os considerava uma m influncia para os jovens, encorajando o cepticismo, o relativismo e o cinismo. Mesmo assim, Plato levou Protgoras a srio e empenhou-se em dar resposta aos seus argumentos. Protgoras era, do ponto de vista religioso, um agnstico. No que diz respeito aos deuses, afirmava, no posso ter a certeza de que existem ou no, ou de como eles so; pois entre ns e o conhecimento deles h muitos obstculos, quer a dificuldade do assunto, quer a pouca durao da vida humana. Era mais um humanista do que um testa: O homem a medida de todas as coisas, rezava a sua mxima mais famosa, quer das coisas que so que o so, quer das coisas que no so que o no so. Na sua interpretao mais provvel, isto significa que aquilo que, seja pela percepo, seja pelo pensamento, parece a uma determinada pessoa ser verdade, verdade para essa pessoa. Isto acaba com a ver-dade objectiva: nada pode ser absolutamente verdadeiro, mas apenas relativamente a um indivduo. Quando as pessoas tm crenas contra-ditrias, no verdade que uma delas tem razo e a outra no. Dem-crito, e depois Plato , objectaram que a doutrina de Protgoras se autodestrua pois se todas as crenas so verdadeiras, ento entre elas est a crena de que nem todas as crenas so verdadeiras. Outro sofista, Grgias de Lencio, foi discpulo de Empdocles. Era sobretudo um professor de retrica, cujos ensaios sobre estilstica influenciaram a histria da retrica grega. Mas era tambm um filso-fo, com tendncias ainda mais cpticas do que Protgoras. Diz-se que defendia que nada existe, que se h algo no pode ser conhecido e que se algo puder ser conhecido no poder ser comunicado por uma pes-soa a outra. Na altura em que Grgias visitou Atenas, em 427, tivera incio uma guerra entre Atenas e Esparta, conhecida como guerra do Pelopone-so. Pouco tempo depois da ecloso desta guerra, Pricles morreu e as campanhas corriam cada vez pior para Atenas. Os reveses e as epide-mias afectaram brutalmente os atenienses, que se tornaram cruis e

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    sem escrpulos em combate. Deitaram por terra qualquer pretenso de elevao moral quando, em 426, ocuparam a ilha de Milo, chacina-ram todos os adultos do sexo masculino e escravizaram as mulheres e as crianas. As ltimas tragdias de Eurpedes e algumas comdias do seu contemporneo Aristfanes exprimiram um protesto eloquente contra a conduta dos atenienses na guerra. Esta terminou com uma esmagadora derrota naval em Egosptamos, em 405 a. C. O Imprio Ateniense chegou ento ao fim, e a liderana da Grcia passou para Esparta. Mas os grandes dias da filosofia ateniense ainda estavam para vir.

    SCRATES

    Entre os que tinham servido na infantaria pesada ateniense estava Scrates, filho de Sofronisco, que tinha 38 anos quando a guerra comeou. Participou em trs das mais importantes batalhas dos 11 anos de guerra e ganhou fama de corajoso. De volta a Atenas, em 406, fez parte da Assembleia numa altura em que um grupo de generais foi levado a julgamento por ter abandonado os corpos dos soldados mor-tos na batalha naval de Arginusa. Era ilegal julgar os generais colecti-vamente em vez de individualmente, mas Scrates foi o nico a votar contra este modo de proceder, e eles foram executados. Quando a guerra acabou, em 404, os espartanos substituram a democracia ateniense por uma oligarquia conhecida como os Trinta Tiranos, que instituram um reinado de terror. Scrates recebeu ordem para prender um inocente, mas ignorou-a. Em breve pagaria o preo da rectido que o tinha tornado impopular tanto junto dos democratas como dos aristocratas. A importncia de Scrates no desenvolvimento da filosofia tal que todos os filsofos de que falmos at agora so agrupados pelos histo-riadores sob a designao de pr-socrticos. No deixou, porm, obra escrita; e os pormenores da sua vida, alm dos principais aconte-cimentos mais dramticos, so ainda obscuros e objecto de controvr-sia entre os estudiosos. No lhe faltaram bigrafos; e, de facto, muitos dos seus contemporneos e sucessores escreveram dilogos em que Scrates desempenhava um papel primordial. A dificuldade est em distinguir os factos sbrios da fico laudatria. Todos os seus bigra-fos nos dizem que Scrates tinha um aspecto descuidado e que era feio, que tinha uma barriga protuberante e o nariz arrebitado; mas o consenso no vai muito alm disto. Os dois autores cujas obras sobre-

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    viveram intactas, o estudioso de histria militar Xenfanes e o filsofo idealista Plato , traam retratos de Scrates to diferentes entre si como o Jesus de S. Marcos diferente do de S. Joo. Em vida, Scrates foi ridicularizado pelo comedigrafo Aristfanes, que o descreveu como um excntrico corrupto que falava de modo ininteligvel e que se interessava por curiosidades cientficas com a cabea literalmente nas nuvens. Mas, mais do que um filsofo da natu-reza, Scrates parece ter sido um sofista de um tipo pouco comum. Como os sofistas, passava muito do seu tempo a discutir e a debater ideias com jovens abastados (alguns dos quais viriam a ocupar posi-es de poder quando a oligarquia substituiu a de