antes de discutir a política migratória brasileira
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Qualquer tentativa de definição de uma política migratória terá que considerar os elementos mínimos comuns a toda e qualquer política migratória, a saber: o Estado, as pessoas (nacionais e estrangeiras) e a relação jurídica entre eles, que determinará as condicionantes do movimento das pessoas para dentro ou para fora do Estado. Sedo assim, o presente trabalho consiste em uma breve revisão da literatura e da história brasileira com o intuito de lançar uma luz inicial sobre a discussão que se fará posteriormente da política migratória brasileira.TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Antes de discutir a Política Migratória brasileira
Um ensaio conceitual
André L. SicilianoMestrado
28/09/2012
Artigo para ser discutido no Seminário da Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP.
RESUMO
Qualquer tentativa de definição de uma política migratória terá que considerar os
elementos mínimos comuns a toda e qualquer política migratória, a saber: o Estado, as pessoas
(nacionais e estrangeiras) e a relação jurídica entre eles, que determinará as condicionantes do
movimento das pessoas para dentro ou para fora do Estado. Sedo assim, o presente trabalho
consiste em uma breve revisão da literatura e da história brasileira com o intuito de lançar uma
luz inicial sobre a discussão que se fará posteriormente da política migratória brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Estado, Identidade Nacional, Cidadania, Direitos Humanos, Política
Migratória.
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INTRODUÇÃO
Uma política migratória pode ser definida, grosso modo, como o conjunto de medidas
adotadas por determinado Estado para controlar o fluxo de pessoas através de suas fronteiras,
bem como a permanência dos estrangeiros, com o intuito de proteger o bem comum de seu
povo. Percebe-se, logo, que a política migratória é uma relação direta entre Estado e pessoas,
vale dizer, entre o Estado e as pessoas nacionais (o seu povo) e entre o Estado e as pessoas
estrangeiras a ele. Considerando o interesse do povo de um dado Estado, serão definidas as
condições e circunstâncias que autorizarão o ingresso, a permanência e a saída de estrangeiros no
território daquele Estado, ou seja, será definida sua política migratória.
Desse modo, o presente trabalho pretende investigar sob o prisma das relações
internacionais a formação do Estado, o elo entre o Estado e seu povo, e as causa e os limites
dessa diferenciação entre nacionais e estrangeiros. Será tomado como referência e objeto de
estudo o caso brasileiro, de maneira que, ao final, seja possível identificar os elementos que
podem servir de alicerces à definição dos vetores de uma política migratória brasileira.
Sendo assim, o primeiro ponto deste estudo será uma investigação sobre as origens do
Estado-nação, qual a sua natureza, como se formou e se fortaleceu e qual a extensão da
necessidade de sua auto-preservação. Em seguida, será investigada a formação do povo
brasileiro, que povo é esse, quais as políticas já praticadas na história deste país e qual é a
identidade nacional a ser protegida. Compreendida a real dimensão do Estado e identificado o
povo que conforma a nação brasileira, será então investigado o elo que une o indivíduo ao
Estado, assegurando-lhe direitos e definindo seus deveres: a Cidadania.
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O ESTADO
As poderosas ideias que deram forma às sociedades humanas até trezentos anos atrás
eram quase todas religiosas, excetuando-se o Confucionismo chinês. Desde os acordos de
Westfália1, a principal ideologia secular que tem produzido efeitos ao redor do mundo é o
Liberalismo, uma doutrina associada ao surgimento de uma classe média - primeiramente
comercial e, depois, industrial - em algumas partes da Europa, no século XVII (FUKUYAMA,
2012). Conforme enunciado por pensadores clássicos como Locke, Montesquieu e Mill, o
Liberalismo prega que a legitimidade da autoridade estatal deriva da habilidade do Estado em
proteger os direitos individuais de seus cidadãos e que o poder do Estado deve ser limitado pela
lei.
O Estado-nação, entretanto, não é uma forma natural de organização política e social,
tampouco a melhor forma possível, mas apenas a que melhor se adaptou aos valores sociais e
políticos vigentes após o término do domínio religioso na condução da política internacional,
formalizado nos Tratados de Münster e Osnabrück (1644-1648). Segundo Dalmo Dallari, os
tratados de paz de Westfália tiveram o caráter de documentação da existência de um novo tipo de Estado, com
característica básica de unidade territorial dotada de um poder soberano (DALLARI, 1998). Igualmente, não
se deve admitir que a natureza humana seja a de uma vida estática, de acomodação ao local de
nascimento. Ao contrário, desde os tempos bíblicos há numerosos registros de migrações
humanas, seja por guerras, pela busca de riquezas, pelo comércio, por melhores terras para
cultivo ou por catástrofes ambientais, entre outros motivos.
1 Os tratados celebrados nas cidades de Münster e Osnabrück são chamados de Tratados de Westfália e foram os acordos que selaram a paz após a Guerra dos Trinta anos na europa (1618-1648). Esses tratados configuram uma nova lógica normativa nas relações internacionais e mesmo internamente em cada país, pois os Estados soberanos ignoram propositadamente a Igreja nas tomadas de decisões. A influência da Santa Sé nos temas políticos europeus é anulada pelos Estados soberanos (Romano, 2008).
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Com o passar dos séculos, a evolução do homem possibilitou a criação de formas de
organizações sociais e políticas que permitissem melhor aproveitamento dos recursos naturais e
melhores condições de sobrevivência, especialmente na competição com seus iguais. Os
territórios foram cercados para permitir o aproveitamento exclusivo e mais eficiente dos recursos
naturais pelo povo que os dominassem.
O fato é que, atualmente, em pleno século XXI, praticamente tudo é apropriável e
comercializável e os diferentes povos aceitam coexistir com os demais pacificamente2. O fluxo
de capital, de produtos, de ideias, de informações, é todo global. A produção de riqueza se vale
tanto dos recursos e insumos mais baratos, quanto dos mercados mais valorizados. Em 2012, a
sociedade e os desafios são globais e os Estados-nações estão relativamente esvaziados de suas
funções originais. Na ótica de Marx, Durkhaim, Weber e Parsons, uma crescente diferenciação,
racionalização e modernização da sociedade gradualmente reduziria a importância do sentimento
nacionalista (WIMMER & GLICK SCHILLER, 2002). O contrassenso dos tempos atuais reside
no fato de que, embora ainda haja razões para migração - como guerras, catástrofes naturais,
situações de insegurança de qualquer natureza-, espera-se que os homens fiquem confinados ao
pedaço de território do qual são tidos como frutos.
A verdade é que o mundo segue ordenado em Estados-nações, soberanos em seus
territórios e reciprocamente excludentes, e, não por outro motivo, o imigrante é percebido e
recebido ora como invasor, ora como promotor do desenvolvimento, de acordo com o interesse
dos Estados em cada momento (WIMMER & GLICK SCHILLER, 2002). A presunção de que
nação, Estado e sociedade são expressões políticas e sociais naturais do mundo moderno é
2 A ideia de convivência pacífica utilizada aqui se refere a ausência de conflitos sistemáticos, ou de instabilidade permanente. A principal exceção é a disputa entre israelenses e palestinos, que provavelmente é a única que talvez possa impactar o sistema internacional. Existem, evidentemente, outros episódios bélicos de intolerância registrados no continente africano, no Oriente Médio, no Leste Europeu e no Oeste Asiático, porém esses conflitos envolvem um contingente relativamente pequeno de pessoas, ou de recursos limitados, e são incapazes de influenciar o sistema internacional.
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chamada, por Wimmer e Glick Schiller, de “nacionalismo metodológico”, o qual, segundo
argumentam, estaria dividido de três modos.
O primeiro é o que decorre da ignorância, que se traduziria em uma cegueira sistemática
sobre o paradoxo de que a modernização leva à criação de comunidades nacionais em meio a
uma sociedade moderna, supostamente dominada pelos princípios da aquisição. Wimmer e Glick
Schiller mencionam que Parsons e Merton, Bourdieu, Habermas e Luhman não discutem, em
nenhum modelo, o aspecto nacional dos Estados e das sociedades na era moderna. Além disso,
essas teorias cegas ao aspecto nacional foram criadas em um ambiente de rápida nacionalização
de Estados e sociedades e, no caso de Weber e Durkhein, ao findar de guerras nacionalistas.
Já o segundo, é adotar os discursos nacionais, as agendas, as relações de lealdade e
históricas como se fossem uma realidade dada, fatos da natureza, sem problematizá-los ou torná-
los objeto de estudo. Economistas, cientistas políticos, antropólogos e historiadores assumiram o
Estado como unidade de referência de seus estudos, forjando uma unidade que, até então, não
existia. Os economistas, desde Adam Smith e Friedrich List, tomaram a chamada economia
interna e as relações externas como principais referências. Cientistas políticos assumiram que o
Estado-nação era a unidade de referência ideal no sistema internacional, mas não questionaram
por que o sistema era internacional. Antropólogos, ao abandonar o difusionismo e ao adotar a
teoria funcionalista, praticamente assumiram que as culturas a serem estudadas eram unitária e
organicamente ligadas (e fixadas) ao território. Mesmo a História passou a ser a história das
nações e não a dos homens3. Somente nessa última década foi possível superar a cegueira do
nacionalismo metodológico, indo além da dicotomia entre Estado e Nação, sem cair na
armadilha do Estado-nação (WIMMER, 1996b; 2002).
3 A história do Brasil é uma das poucas exceções no mundo ocidental, pois os brasileiros consideram que o país tem mais de 500 anos, ou seja, que sua origem é anterior ao surgimento da nação brasileira. A regra é que os países considerem como marco inicial de sua existência as respectivas unificações ou proclamações de independência, ou seja, o surgimento de uma unidade de identidade nacional exclusiva.
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O terceiro modo é a territorialização do imaginário da ciência social e a redução do foco
analítico para dentro das fronteiras dos Estados-nações. Vale dizer que a ciência social ficou
obcecada em descrever processos que ocorriam dentro das fronteiras de cada Estado-nação e
contrastá-las com outros externos a estes Estados, perdendo completamente a conexão entre
esses processos e os territórios determinados como nacionais (WIMMER; WIMMER & GLICK
SCHILLER, 2002).
As três vertentes mencionadas se interceptam e se reforçam mutuamente, formando uma
estrutura epistemológica coerente que se auto alimenta quanto ao modo de ver e de descrever o
mundo social. Cristaliza-se a ideia de que o imigrante é um estranho, que não se identifica com as
características e valores nacionais. Portanto, a identidade nacional passa a ser o elemento
diferenciador e determinante de quem é nacional e quem é estrangeiro, quem é cidadão e quem é
forasteiro. Segunda Saskia Sassen, poucas instituições modernas são tão emblemáticas sobre os
direitos do que a cidadania. Em uma definição estrita, cidadania descreve a relação legal,
incompleta, entre o indivíduo e a política (SASSEN, 2006).
IDENTIDADE NACIONAL
O Brasil é um país caracterizado pela forte miscigenação de seu povo, ocasionada tanto
pelo seu passado colonial (HOLANDA, 1995), como pelos significativos fluxos migratórios
recebidos durante os períodos Imperial e, principalmente, Republicano (IGLÉSIAS, 1993, p.
217). Ao lado de Estados Unidos, Canadá e Argentina, o Brasil é um dos países receptores de
milhões de europeus e asiáticos que vieram para as Américas em busca de oportunidade de
trabalho e ascensão social (FAUSTO, 1994, p. 275). Assim, é imprescindível tecer uma breve
análise histórica da imigração para compreender sua relevância no que tange o desenvolvimento
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brasileiro e, sobretudo, para demonstrar a importância que o estabelecimento de uma política
migratória tem para o país.
Dentre os fatores internos que historicamente impactaram na política migratória,
destacam-se: i) a necessidade de povoamento para assegurar a conquista de Portugal; ii) a
necessidade de fornecer mão-de-obra escrava para as atividades agrícolas e mineradoras, tanto
durante o período colonial, como no imperial; e iii) a substituição da mão-de-obra escrava no
final do século XIX por europeus, que ocorreu com maior intensidade na zona cafeeira do
estado de São Paulo, especialmente após a proclamação da República.
Embora o território que hoje conforme o Brasil já fosse extensamente ocupado
anteriormente, a história do Brasil se inicia como a parte da história de Portugal que se
desenvolve do outro lado do Oceano Atlântico, após o ano 1500. Nessa primeira fase, o
território que era ocupado por indígenas foi transformado gradualmente devido à ocupação dos
portugueses que chegavam ao litoral destas terras. Segundo Boris Fausto, quando os europeus
chegaram ao que viria a ser o Brasil, encontraram uma população ameríndia bastante homogênea em termos
culturais e linguísticos, distribuída ao longo da costa e na Bacia dos Rios Paraná-Paraguai (FAUSTO, 1994,
p. 37). Sem discutir o mérito de quem é o estrangeiro, ou o imigrante, o fato é que desde então,
nesta mesma terra, passam a coexistir dois povos: O europeu e o indígena.
Pouco depois, desde a década de 1570, foi incentivado pela Coroa portuguesa o tráfico
negreiro, que passou a fornecer escravos para trabalhar na terra que viria a ser o Brasil. Ao final
do período colonial, a população era bastante miscigenada, de modo que negros e mulatos
compunham 75% da população de Minas Gerais, 68% da população de Pernambuco, 79% da
Bahia e 64% do Rio de Janeiro (FAUSTO, 1994, p. 68).
O período de 1870-1930 marcou o último momento relevante de grande influxo de
estrangeiros, chamados, então, de imigrantes. Os dados de 1872 apontam que a população no
Brasil era de aproximadamente 9,93 milhões de pessoas, sendo que 62% eram negros ou
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mulatos, 38% eram brancos, havia 300 mil imigrantes europeus, dos quais metade eram
portugueses, que haviam ingressado no país nos últimos 30 anos e estimava-se a população
indígena em cerca de 800 mil pessoas. Durante o período de 1887-1930 o Brasil recebeu cerca de
3,7 milhões de imigrantes, inclusive japoneses, sírio-libaneses e judeus. No período subsequente
houve significativa redução da imigração devido à crise de 1929 e ao fechamento das fronteiras
decorrente da constituição de 1934, que estabeleceu cotas para o ingresso de imigrantes
(FAUSTO, 1994, p. 390).
Desde então, as restrições ao fluxo migratório se tornaram gradativamente mais rígidas,
tanto no Brasil quanto na Europa e nos Estados Unidos da América, especialmente durante o
regime militar. Apesar das restrições que foram sendo agravadas durante o século XX, o Brasil,
durante mais de quatro séculos, foi marcado pelo intenso fluxo migratório e inegavelmente uma
das principais características do povo brasileiros é a sua forte miscigenação4.
A influência externa nos fluxos de imigrantes
No âmbito do sistema internacional, verificam-se três momentos em que o Brasil teve o
fluxo migratório afetado: o primeiro pode ser estabelecido como era pré-guerra (1870-1918)5, em
que havia forte crescimento econômico e demanda por mão-de-obra, com algumas crises
econômicas pontuais. Nesse período, muitos países da Europa eliminaram o passaporte e o
sistema de vistos, seguindo o exemplo da França que, desde 1861, havia derrubado as barreiras
ao livre trânsito de trabalhadores (WIMMER & GLICK SCHILLER, 2002). Nesse período, em
4 Não é sem motivo que no mercado paralelo o passaporte brasileiro é um dos mais cobiçados do mundo, pois, dada a notória miscigenação do povo brasileiro, qualquer pessoa, independe de suas característica físicas/étnicas, é recebida como brasileira sem levantar suspeitas.
5 A divisão em 3 momentos (i-era pré-guerra, ii-durante as duas Guerras até a Guerra Fria e iii-Guerra Fria), proposta por Wimmer e Glick-Schiller, diz respeito a diferentes “momentos” em que se identificam padrões de comportamentos e tendências normativas nas políticas públicas em diversos Estados, de modo que a divisão não comporta uma data especifica, pois não há uma fato a ser destacado como divisor de águas. Portanto, mesmo que imprecisas, reproduz-se aqui as datas sugeridas por Wimmer e Glick-Schiller.
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que havia forte incentivo ao fluxo migratório, o Brasil também dispensou a exigência de
passaporte, permitiu que qualquer pessoa entrasse e permanecesse no país e declarava como
brasileiros todos aqueles que não manifestassem expressamente o desejo de permanecer com a
nacionalidade de origem6.
O segundo momento, desde a primeira Guerra Mundial até a Guerra Fria, foi marcada
pelo fim do livre trânsito de trabalhadores, pois, tanto pela guerra, como pela reconstrução dos
países destruídos ou recém-independentes, a mão-de-obra havia se tornado, por um lado, um
bem ainda mais valioso; por outro, uma grave ameaça. Parte da estratégia de defesa nacional
desses novos países foi o processo de fechamento das fronteiras. No Brasil, a Constituição de
1934 estabeleceu cotas ao ingresso de imigrantes e dispôs sobre a necessidade de se garantir a
integração étnica do imigrante e a “assimilação do alienígena”7.
6 Conforme disposto na Constituição da república dos Estados Unidos do Brasil, de 1891: art. 69 - São cidadãos brasileiros: 1º) os nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não, residindo este a serviço de sua nação; 2º) os filhos de pai brasileiro e os ilegítimos de mãe brasileira, nascidos em país estrangeiro, se estabelecerem
domicílio na República; 3º) os filhos de pai brasileiro, que estiver em outro país ao serviço da República, embora nela não venham
domiciliar-se; 4º) os estrangeiros, que achando-se no Brasil aos 15 de novembro de 1889, não declararem, dentro em seis meses
depois de entrar em vigor a Constituição, o ânimo de conservar a nacionalidade de origem; 5º) os estrangeiros que possuírem bens imóveis no Brasil e forem casados com brasileiros ou tiverem filhos
brasileiros contanto que residam no Brasil, salvo se manifestarem a intenção de não mudar de nacionalidade; 6º) os estrangeiros por outro modo naturalizados. Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos
concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 1º - Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. § 2º - Todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de
nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho.
§ 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum.
... § 8º - A todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas; não podendo intervir a polícia senão
para manter a ordem pública. § 9º - É permitido a quem quer que seja representar, mediante petição, aos Poderes Públicos, denunciar abusos das
autoridades e promover a responsabilidade de culpados. § 10 - Em tempo de paz qualquer pessoa pode entrar no território nacional ou dele sair com a sua fortuna e bens,
quando e como lhe convier, independentemente de passaporte. § 11 - A casa é o asilo inviolável do indivíduo; ninguém pode aí penetrar de noite, sem consentimento do morador,
senão para acudir as vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescritos na lei. § 12 - Em qualquer assunto é livre a manifestação de pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem
dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato. (grifos e destaques adicionados)
7 O disposto na Constituição Federal de 1934 era o seguinte:
10
Não obstante, os modelos de análise social construídos no período tomavam a
população de cada território como se fosse um dado estável, desconsiderando as migrações
internacionais. Advogou-se uma arbitrária assimilação. O imigrante passou a ser visto, mais do
que como um risco à segurança, como um elemento destruidor do isomorfismo entre nação e
povo e, então, um obstáculo maior ao projeto de construção do Estado-nação que estava em
andamento. Esse foi o período de fechamento das fronteiras e de contabilização (SASSEN,
2006).
O terceiro momento, o da Guerra Fria, foi o momento em que o ponto cego se
transformou em cegueira, pois se apagou quase que completamente as memórias históricas dos
processos transnacionais e globais havidos. A teoria da modernização fez com que a Europa
Ocidental e os Estados Unidos da América parecessem ter desenvolvido suas identidades
nacionais, e seus estados modernos, confinados dentro de suas fronteiras territoriais e não em
profunda relação com a economia global e com o fluxo de ideias e pessoas. Um exemplo
marcante desse período foi o da Alemanha Ocidental, que, em concorrência com a Alemanha
Oriental, forjou um consenso nacional, desenvolvendo o Estado de bem-estar social baseado em
generosos benefícios sociais restritos aos cidadãos anteriormente estabelecidos em seu território.
Isso tornou o conceito de cidadania elemento determinante na estrutura social, garantindo
direitos a alguns trabalhadores e não a outros (como àqueles que não eram considerados alemães,
mas foram utilizados para a reconstrução do país no pós-guerra).
Art 121 - A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. ...§ 4º - O trabalho agrícola será objeto de regulamentação especial, em que se atenderá, quanto possível, ao disposto neste artigo. Procurar-se-á fixar o homem no campo, cuidar da sua educação rural, e assegurar ao trabalhador nacional a preferência na colonização e aproveitamento das terras públicas....§ 6º - A entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as restrições necessárias à garantia da integração étnica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo, porém, a corrente imigratória de cada país exceder, anualmente, o limite de dois por cento sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinquenta anos. § 7º - É vedada a concentração de imigrantes em qualquer ponto do território da União, devendo a lei regular a seleção, localização e assimilação do alienígena. (grifos adicionados)
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Nesse período de Guerra Fria a política migratória brasileira foi fortemente influenciada
pelos desdobramentos dos acontecimentos e ideologias externos. Durante o regime militar, o
Brasil adotou políticas cuja vertente ideológica era norteada pela segurança nacional, pelo
desenvolvimentismo e pelo fortalecimento do nacionalismo. A Constituição brasileira de 1967 e
sua Emenda Constitucional de 1969 dispõem no capítulo VII (Do Poder Executivo), Seção V,
sobre a Segurança Nacional e, pela primeira vez, faz distinção no texto entre o brasileiro nato e o
naturalizado.
Se é verdade que a história do Brasil pode ser contada a partir de 1500, não é menos
verdade que a população brasileira se formou a partir da miscigenação de europeus brancos, com
índios, com negros, com asiáticos, etc. Autores como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr.
e Gilberto Freyre escreveram extensamente sobre o quanto essencial e determinante foi a
influência de diferentes povos na formação da identidade nacional brasileira.
O INDIVÍDUO E A POLÍTICA
A organização política do espaço territorial no mundo é a de exclusão mútua de
soberanias (ZOLBERG, 1994). Vale dizer que cada espaço é de soberania de algum Estado, que
exclui a de todos os demais, e nessa perspectiva o imigrante não é mais aquele que surge da
natureza do movimento (algo intrínseco à natureza humana), mas da transferência de uma
jurisdição à outra. O imigrante, então, começa a ser visto como o desviador da norma do novo
mundo politicamente organizado. Zolberg alerta que o fluxo de pessoas, a saber, o direito de
deixar um país e transitar entre fronteiras, reduziria significativamente a autoridade soberana
sobre aquele território, o que nos leva à reflexão de que, mais do que uma questão de segurança
ou de viabilidade econômica de gerir um território, a livre migração implica perda de poder do
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governo soberano sobre seu território e seu povo. Nas palavras de Catherine Dauvergne, “in
contemporary globalizing times, migration laws and their enforcement are increasingly
understood as the last bastion of sovereignty” 8 (DAUVERGNE, 2008, p. 2).
Um governo soberano, contudo, não se limita ao aspecto negativo de autoridade coatora
sobre as pessoas num dado espaço, mas detém, antes, outro aspecto de extrema importância que
é o da proteção e do amparo ao indivíduo. Significa dizer que o problema principal reside no
fato de que, nessa estrutura moderna, o único ente legitimado para cuidar do indivíduo seria o
Estado-nação. A comunidade internacional busca proteger, de alguma forma, os refugiados e/ou
perseguidos; quanto aos demais, “a comunidade internacional, na forma como constituída
atualmente, demonstra-se incapaz ou indisposta para atender as suas necessidades” (ZOLBERG,
1994, p. 170).
A cidadania
A função primordial do Estado-nação é proteger seus cidadãos, o que, aliás, é a origem
de sua legitimidade. Assim, a priori, o dever do Estado de proteger dizia respeito apenas aos
cidadãos reconhecidos como tais, ou seja, dotados de cidadania. Nesse aspecto, é irretocável a
observação de Dauvergne ao afirmar que ser detentor de cidadania em uma nação próspera é um
imenso privilégio que não ocorre naturalmente, pois esse privilégio é uma construção legal,
protegida e defendida por uma sólida e envolvente versão da Soberania (DAUVERGNE, 2003).
A natureza da cidadania, todavia, tem sido questionada, por exemplo, tanto pela erosão
do direito à privacidade, quanto pela proliferação de velhos temas que ganham nova atenção, tais
como o status de comunidades aborígenes, de expatriados, de refugiados, etc. (SASSEN, 2006).
8 Em tradução livre: nesses tempos de globalização contemporânea, as leis de migração e sua aplicação são, cada vez mais, os últimos bastiões da soberania.
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Essa consciência internacional da necessidade de proteção dos direitos básicos de todos os
povos, através de algum parâmetro universalmente aceitável, influenciou a Carta das Nações
Unidas, de 1945, em que se reafirma a “fé nos direitos humanos fundamentais, na igualdade de
direito entre homens e mulheres e entre nações grandes e pequenas” (IBHAWOH, 2007).
O compromisso de promover os direitos humanos expressos na Carta de 1945 foi
seguido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (UDHR, em inglês). Essas
convenções, posteriormente replicadas regionalmente na Europa, nas Américas e na África,
constituem, atualmente, a base dos padrões internacionais contemporâneos de direitos humanos.
A universalização dos direitos humanos visa assegurar direitos e garantias individuais a qualquer
homem, em qualquer território, resguardados pela comunidade internacional. Porém, essa
distinção entre homens e cidadãos criou um sério problema para a teoria política internacional:
como conciliar a atual diversidade e divisão das comunidades políticas com a crença recém-
descoberta da universalidade da natureza humana (LINKLATER, 1981).
O indivíduo, agora detentor de direitos universais9, independente do Estado-nação em
que se encontre10, passou a ser objeto de preocupação da comunidade internacional acima do
princípio internacional da soberania e da não intervenção, o que pode ocasionar uma possível
mudança estrutural do sistema que permitiria uma autodeterminação individual ou coletiva,
independente dos Estados (LINKLATER, 1981). Assim sendo, embora sem radicalismos, há
uma corrente de teóricos (cosmopolitas) que visualiza o surgimento de uma democratização
global, tanto das instituições como da participação política dos indivíduos na arena global como
um todo.
9 Consolidados principalmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.10 As convenções relativas aos refugiados e apátridas reconhecem, pela primeira vez, a existência do indivíduo no cenário internacional (REIS, 2004, p. 151). Em seguida, o princípio da Responsabilidade de Proteger (UNITED NATIONS, 2006) foi aprovado pela Assembleia Geral da ONU, em Nova York, 2005 (A/RES/60/161), por mais de 170 Estados e tem sido invocado para permitir a ocupação de Estados violadores dos direitos humanos pela comunidade internacional.
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Os cosmopolitas afirmam que a globalização ocasionou uma justaposição de jurisdições,
de maneira que, em um mesmo local, o poder soberano pode estar dividido entre as autoridades
internacionais, nacionais e locais, como ocorre na União Europeia, e acreditam que está em curso
uma reconfiguração do poder político, não mais norteada pelas demarcações tradicionais de
interno/externo e territorial/não territorial (HELD, 2004). Deste conceito, decorrem dois
outros: a democracia cosmopolita, que trata da possibilidade de novas estruturas de poder
representativas, e a cidadania cosmopolita, que é o reconhecimento dos direitos e garantias
individuais independentemente da subsunção do indivíduo a algum Estado Nacional.
De acordo como os cosmopolitas, a democracia, enquanto sistema de governo,
expandiu-se largamente após o fim da Guerra Fria e a vitória do Ocidente sobre o sistema
soviético (ARCHIBUGI, 2004). De fato, como decorrência de movimentos populares, muitos
países do Leste Europeu e do sul adotaram constituições democráticas e, apesar de inúmeras
contradições, aos poucos governos autônomos têm se expandido e se consolidado. Os recentes
eventos ocorridos no Oriente Médio reforçaram a tese de Archibugi, pois, ainda que não surjam
novas democracias, o processo de revisão e discussão dos sistemas políticos atuais naquela região
demonstra-se profundo, complexo e inegável11.
Essa mesma corrente teórica pondera, entretanto, que existe déficit democrático dentro
dos Estados-nações, destacando o fato de que uma decisão nacional pode não ser
verdadeiramente democrática se ela afetar os direitos de cidadãos que não pertençam àquela
comunidade. Lamenta-se, ainda, que outro desenvolvimento igualmente importante, decorrente
da vitória dos Estados liberais, não ocorreu: a expansão da democracia enquanto modelo de
governança global (ARCHIBUGI, 2004). Neste aspecto, embora haja indícios de mudanças,
como a discussão da representatividade dos países no Fundo Monetário Internacional (FMI), o 11 A chamada “Primavera Árabe” tem sido objeto de diversos estudos, com diversas interpretações acerca de suas causas e consequências, como pode-se observar em debate realizado por Salem Nasser, Arlene Clemesha e Gunther Rudzit e coordenado por Willian Waack, cujo vídeo está disponível em: <http://globotv.globo.com/globo-news/globo-news-painel/t/todos-os-videos/v/segundo-turno-da-eleicao-no-egito-traz-expectativas-diversas-para-toda-a-regiao/1986106/>. Acesso em: 14 jun. 2012.
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surgimento do G-20 como ator decisivo na seara econômica ou mesmo a reforma do Conselho
de Segurança da ONU, cogitada a todo o momento, ainda assim não é possível dizer que há
qualquer perspectiva de democratização da governança mundial, nem mesmo na
representatividade das decisões tomadas pela Assembleia Geral da ONU.12
Danielle Archibugi, contudo, ressalta que cada vez mais os Princípios do Estado de
Direito (the rule of law) e da Participação Compartilhada (Shared Participation) são aplicados às
relações internacionais, o que consistiria na ideia básica por trás do conceito de democracia
cosmopolita. A intenção de Archibugi, portanto, é a de reafirmar os conceitos básicos que
norteiam a democracia cosmopolita, sugerindo que pode haver ampliação e aprofundamento da
participação de cidadãos e de grupos de pessoas em âmbito global, bem como o
enfraquecimento do Estado Nacional enquanto representante legítimo e unitário do interesse das
pessoas.
Em relação à cidadania cosmopolita, é preciso ponderar que o quadro proposto pela
regulação cosmopolita baseia-se em uma cidadania global de direitos ainda fictícios. Vale dizer,
que não reconhece os direitos democráticos dos cidadãos, nem a expressão coletiva desses
direitos na soberania estatal, o que poderia implicar na perda da garantia da proteção de um
Estado-nação (CHANDLER, 2003). Além disso, enquanto o sistema predominante for o de
Estados-nações, a proteção aos direitos dos indivíduos, bem como a cidadania (sua garantia de
direitos e deveres), permanecerá dependente primordialmente dos Estados (CHANDLER,
2003).
Embora haja alguma divergência sobre a efetividade dos direitos universais dos cidadãos
globais, o debate suscitado pelos cosmopolitas demonstra de maneira incontroversa que o
12 “In the UN General Assembly, those member states whose total number of inhabitants represents just 5% of the planet’s entire population have a majority in the Assembly. Would it then be a more democratic system were the weight of each state’s vote proportional to its population? In such a case, six states (China, India, the United States, Indonesia, Brazil and Russia) that represent more than half of the world’s population would have a stable majority.” (ARCHIBUGI, 2004)
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Estado-nação que se observa no século XXI é substancialmente diferente de tudo o que já se viu
antes. Além disso, alertam que esses novos valores existentes (pois estão em debate) podem levar
a novas formas de gestão da ordem pública internacional e de garantias individuais. E é nesse
contexto que o Brasil precisará redefinir sua política migratória.
OS DIREITOS HUMANOS
Desde o final da Segunda Guerra mundial, com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, considera-se que todo e qualquer ser humano, independente de sua nacionalidade, é
detentor de direitos e liberdades individuais que devem ser assegurados por qualquer Estado a
qualquer pessoa humana. Em verdade, a internacionalização dos Direitos Humanos foi uma
resposta às atrocidades cometidas por governos totalitaristas durante as duas grandes guerras do
século XX, e se desdobrou em um movimento extremamente recente na história, conformando a
chamada concepção contemporânea dos direitos humanos (PIOVESAN, 2012).
Essa proteção mínima garantida a cada ser humano pelas Nações Unidas foi,
posteriormente, reproduzida regionalmente, nos continentes Americanos, Europeu e Africano, e
nacionalmente, com a incorporação dessas garantias no ordenamento jurídico nacional de cada
Estado. No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, os valores propalados pelos tratados
internacionais foram incorporados ao ordenamento jurídico pátrio e sucessivas ratificações de
tratados internacionais reforçaram o primado da prevalência dos direitos humanos. Assim,
intensifica-se a interação e a conjugação do Direito Internacional e do Direito interno, que
fortalecem a sistemática de proteção dos direitos fundamentais, com uma principiologia e lógicas
próprias, fundadas no princípio da primazia dos direitos humanos.” (PIOVESAN, 2012, p. 71)
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O sentido contemporâneo de direitos humanos evoluiu ao longo do tempo, de maneira
que esse conceito surge, também, da universalização dos direitos definidos através dos processos
políticos que surgem com os acordos internacionais. Assim, embora a maior parte dos
estudiosos, ao usar a expressão “direitos humanos”, esteja se referindo aos termos definidos na
UDHR, bem como nas convenções subsequentes, Bonny Ibhawoh define “direitos humanos”
como os direitos e liberdades que antecedem e que conformam a UDHR.
A proteção aos direitos humanos universais
O problema que decorre da concepção contemporânea dos direitos humanos é como
assegurar direitos e garantias fundamentais de pessoas que estejam fora do território de seu
Estado de origem. Para lidar com essa problemática, Rossana Rocha Reis desenvolve o conceito
de cidadania pós-nacional, em que argumenta que o fortalecimento do regime internacional de
direitos humanos levaria à transferência de direitos do cidadão para o indivíduo, de maneira que
a cidadania poderá deixar de ser o elemento garantidor de direitos tomados, então, como
garantidores da dignidade inerente da pessoa humana, não mais de sua nacionalidade (REIS,
2004). Um passo concreto nessa direção seria a possibilidade de que alguns direitos inerentes aos
cidadãos sejam, paulatinamente, estendidos aos imigrantes, como o direito de voto em eleições
locais, por exemplo.
Em outra perspectiva universalista, Antônio A. Cançado Trindade sustenta que os
direitos humanos são a parte essencial do Direito Internacional, ou seja, seria uma expressão do
jus gentium, que é o “direito natural identificado pela recta ratio, de modo a se apresentar como um
direito ‘superior’, de aplicação universal, que se propõe a regulamentar as relações humanas em
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uma base ética, formando uma espécie de ‘razão comum de todas as nações’ em busca da
realização do bem comum” (CANÇADO TRINDADE, 2006).
Cançado Trindade relembra a concepção de jus gentium de Hugo Grotius, para quem o
Estado não é um fim em si mesmo, mas “um meio para assegurar o ordenamento social
consoante à inteligência humana, de modo a aperfeiçoar a ‘sociedade comum que abarca toda a
humanidade’”. No início do século XVII, Grotius admite a possibilidade da proteção
internacional dos direitos humanos contra o próprio Estado, ao contrário da perspectiva
hegeliana, que identifica na personificação do Estado todo-poderoso uma influência nefasta na
evolução do Direito Internacional em fins do século XIX e na primeira metade do século XX.
A proposta de Cançado Trindade é a de resgatar o legado do jus gentium em evolução,
sustentando uma concepção universalista do Direito Internacional, voltada ao mundo em que
vivemos. Vale dizer, colocar o Estado a serviço das pessoas, não o contrário, bem como tomar o
Direito Internacional como o direito das gentes, e não um Direito entre Estados. Segundo o
Autor, “o ser humano passa a ocupar, em nossos dias, a posição central que lhe corresponde,
como sujeito do direito tanto interno como internacional, em meio ao processo de humanização
do Direito Internacional”.
Os Direitos Humanos dos estrangeiros
Para Guido Soares e André de Carvalho Ramos, os estrangeiros são indivíduos que,
embora estejam domiciliados ou residentes num determinado Estado, não possuem a
nacionalidade desse Estado. Trata-se, portanto, de um referencial negativo: qualidade ou status de
um indivíduo que não tem os mesmos direitos nem os mesmos deveres daqueles outros
indivíduos, os quais a ordem jurídica considera como seus nacionais. Desse modo, parte-se do
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estudo da nacionalidade das pessoas físicas e dos direitos e deveres atribuídos aos nacionais, e
que, em princípio, não se acham reconhecidos aos estrangeiros.
A caracterização do conceito de nacionalidade, que Guido Soares afirma ser o vínculo
mais antigo da História da Humanidade, vez que une as pessoas e entre elas e que estabelece as
bases para o exercício do poder, é a configuração por parte de uma autoridade local de uma
unidade política autônoma, a qual viria a constituir a unidade indivisível que compõe as relações
internacionais (SOARES, 2004). O estrangeiro seria, assim, o indivíduo alheio ao grupo social e,
por isso, vítima das maiores hostilidades. Para Carvalho Ramos, o estrangeiro pode ser
observado por diferentes realidades normativas: i) a do imigrante, que é o estrangeiro que migra
para outro Estado com o intuito de ali permanecer, legal ou ilegalmente; ii) o estrangeiro
transitório, que se desloca a outro Estado em caráter temporário; iii) o estrangeiro em situação
especial, que devido a acordos bilaterais, multilaterais ou regionais possuem os mesmo direitos
que os cidadãos nacionais; e iv) os refugiados (CARVALHO RAMOS, 2008).
Ao observar a realidade normativa do imigrante, Neide Lopes Patarra estabelece uma
classificação dos imigrantes em três categorias: i) documentados (que deveriam ser igualados aos
cidadãos nacionais); ii) não-documentados (cuja ocorrência deveria ser reduzida e,
simultaneamente, redobrada a atenção para evitar xenofobia, etnocentrismo ou racismo); e iii)
refugiados/asilados (que devem ter seus direitos fundamentais garantidos em qualquer lugar,
bem como deveriam ter acesso a alojamento adequado, a educação e a saúde) (PATARRA,
2005).
Dentre as categorias de estrangeiros estabelecidas por André de Carvalho Ramos, três
delas são menos problemáticas, a de estrangeiros temporários, de estrangeiros especiais e de
refugiados, pois todas estão submetidas a regimes especiais. Os estrangeiros temporários são
condicionados às determinações do país de destino; os estrangeiros especiais são condicionados
às determinações estabelecidas nos próprios tratados que os constituem como especiais; e os
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refugiados são tutelados por um regime protetivo especial internacional que conta inclusive com
um Alto Comissariado para Refugiados dentro da Organização das Nações Unidas(ACNUR).
A categoria que convém destacar é a dos imigrantes, que são os estrangeiros cujos
direitos seriam todos assegurados se estivessem sob a jurisdição de seu próprio Estado, mas
permanecem em território de outro Estado, que não o reconhece como cidadão nacional. Vale
dizer, são os estrangeiros desviantes da ordem moderna de Estados-nações de jurisdições bem
delimitadas e auto excludentes. A situação se agrava quando esses imigrantes não estão
devidamente documentados, o que significa que além de não pertencerem ao povo daquela
nação, são tratados como contraventores ou criminosos naquele Estado. Contudo, deve-se
destacar, também são titulares de direitos humanos e qualquer Estado deve assegurar a eles seus
direitos humanos fundamentais.
CONCLUSÃO
Os aspectos abordados acima são de fundamental importância para pensar quais os
vetores de uma política migratória. Mais especificamente, quais os vetores da política migratória
brasileira? A compreensão acerca de o que significa o Estado-nação, a identidade nacional e o
nacionalismo, a cidadania e os direitos humanos devem embasar e nortear a discussão sobre a
política migratória brasileira.
Restou evidente que a miscigenação do povo é o que, paradoxalmente, confere
identidade à nação brasileira, de modo que uma política migratória restritiva seria, antes de tudo,
uma agressão à identidade nacional brasileira. Também não restam dúvidas quanto à necessidade
de proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, tanto porque assim estabelece a
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Constituição Federal de 1988, quanto pela universalização dos direitos humanos. Portanto, é de
se esperar que qualquer discussão sobre a política migratória brasileira seja orientada no sentido
de ser garantidora da proteção aos direitos humanos e de ser receptiva às influências culturais
externas.
Quanto ao nacionalismo e a cidadania, restou demonstrado que, mesmo que haja avanços
e que se discuta novas formas de governanças globais, ainda é responsabilidade do Estado
brasileiro zelar e proteger todos aqueles que estejam em seu território, mesmo que sejam
estrangeiros e ainda que não estejam devidamente documentados. Sendo assim, deveriam ser
resguardados ao estrangeiro fixado em território nacional todos os direitos civis e políticos
atribuídos aos cidadãos nacionais, pois, sem pretender avançar na discussão da cidadania pós-
nacional, trata-se de permitir a todas as pessoas que habitam um mesmo local que possuam os
mesmos direitos.
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