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Anais do III Encontro de Pesquisas Históricas - PPGH/PUCRS.
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ANOS 1920: REPRESENTAÇÕES DA PRIMEIRA GUERRA NAS
OBRAS DE HEMINGWAY E REMARQUE1
YEAR 1920: WAR OF REPRESENTATIONS IN HEMINGWAY'S WORKS AND REMARQUE
Alanna de Jesus Teixeira
Licenciada em História/UFRGS
Mayquel Ferreira Eleuthério
Licenciado em História/UFRGS
RESUMO
Este trabalho propõe analisar dois romances escritos na década de 1920 a respeito da experiência de seus escritores na
Primeira Guerra Mundial. "A Farewell to Arms” (“Adeus às armas", 1929) de Ernest Hemingway, e “Im Westen Nichts
Neues” ("Nada de novo no front”, 1929) de Erich Maria Remarque, proporcionam uma reflexão histórica a respeito dos
eventos da guerra, além de suscitar uma discussão sobre o período entre guerras, conhecido como "Les années folles".
Apesar das diferenças, as obras se debruçam sobre o tema comum dos efeitos do conflito na vida e na mente dos
personagens, que por sua vez dizem respeito às vivências dos próprios autores, revelando uma ligação estreita entre as
duas dimensões. A visão da guerra, em ambas as obras, está orientada segundo o contexto de sua produção, sobretudo
sua determinação em reavaliar a relação entre as ilusões constituídas sobre a guerra e sua realidade, suscitando também
um debate em torno do tema da memória e representação. As duas obras alcançaram enorme sucesso e se tornaram
notáveis fontes para uma história literária e para o conhecimento histórico, ao mesmo tempo em que contribuem para a
construção de uma memória literária sobre a Primeira Guerra e nos auxiliam em sua compreensão e repercussões.
Palavras-chave: Literatura. Memória. Primeira Guerra. Ernest Hemingway. Erich Maria Remarque.
ABSTRACT
This work aims to analyze two novels written in the 1920s about the experience of their writers in the First World War.
"A Farewell to Arms" (1929) by Ernest Hemingway, and "Im Westen Nichts Neues" ("All Quiet on the Western Front,"
1929) by Erich Maria Remarque, provide a historical reflection about the events of the war, and raise a discussion of the
interwar period, known as "Les années folles". Despite the differences, the works have addressed the common theme of
the effects of the conflict on the life and mind of the characters, which in turn relate to the writers own experiences,
revealing a close link between the two dimensions. the view of the war, in both works, is oriented according to the
context of its production, particularly its determination to reevaluate the relationship between illusions made about the
war and its reality, and also spark a debate on the memory and representation issue. The two works have achieved great
success and became notable sources for a literary history and historical knowledge, while contributing to the construction
of a literary memory on war and assiting us in its understanding and impact.
Keywords: Literature. Memory. First World War. Ernest Hemingway. Erich Maria Remarque.
Introdução
A Primeira Guerra Mundial deixou como herança, além de destruição e morte, milhões de
combatentes que sobreviveram, mas que jamais seriam os mesmos. Por quatro anos,
homens que marchavam alegres para o front — quando de seu recrutamento —
vivenciaram uma das experiências mais terríveis da história humana. A morte
1 Este estudo foi realizado a partir das discussões na disciplina de História Contemporânea II cursada em 2012,
ministrada pela Profª Carla Brandalise. Após uma primeira versão ser elaborada como trabalho final da disciplina,
o trabalho foi retomado e revisados pelos autores, considerando o interesse pelo tema das relações entre História
e Literatura, e da discussão sobre a reconstrução do passado e o conhecimento produzidos pelas duas áreas.
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dessensibilizada, o sacrifício inútil de uma geração, a convivência física e psíquica com o
horror de uma guerra cada vez mais sem sentido transformaram os combatentes em
pessoas diferenciadas, marcadas pelo conflito (FERRAZ, 2008, 467).
Embora a Primeira Guerra seja principalmente europeia, o seu cenário assombrou a toda
uma geração que entrava no século XX com o grande otimismo que lhe deixava a Belle Époque;
uma geração que foi envolvida de todas as formas na mobilização de guerra, mesmo que
indiretamente. Concluída a guerra, foi preciso lidar com o novo contexto internacional,
especialmente a ameaça comunista da Revolução Russa que poderia interferir no novo
equilíbrio interno que se buscava, além do domínio europeu no exterior. Era preciso reafirmar
o poder dos países da Europa ao mesmo tempo que sua capacidade de governar outros povos
ainda não havia sido esquecida. As discussões sobre os tratados de paz refletiram posições
divergentes, em especial a da França, que clamava por uma reparação que fizesse jus a todos
os seus esforços de guerra, de forma que a Alemanha não fosse capaz de se reconstruir e
competir com qualquer outra nação novamente. A questão das reparações desestabilizou os
países, contribuindo para o próximo conflito mundial, pois estiveram sempre além do possível
para os vencidos. Nem mesmo a intenção do presidente norte-americano Wilson de criar um
sistema internacional de “sociedade das nações” - uma forma de manter a paz e mediar conflitos
- foi capaz de aplacar os novos desacordos e ambições das jovens e velhas nações, como a
euforia dos anos 1920 também durou pouco tempo.
A breve recuperação econômica e estabilidade internacional alcançada entre 1925 e
1929 – início da recuperação alemã e poucas perturbações ao sistema europeu – deram
esperança a uma sociedade que ainda acreditava ser possível um mundo melhor em uma nova
era. A máquina e toda tecnologia que avançava pareciam trazer somente benefícios ao homem
que agora também buscava, nas grandes cidades, novos meios de expressão e criava uma cultura
de massas que refletiria um novo espírito, de um homem mais consciente do potencial de
destruição que possui a humanidade (JOLL, 1995, p. 403-442).
A literatura produzida na década participa dessa nova consciência e manifesta um novo
pensamento acerca do progresso. A Primeira Guerra demonstrou o potencial destrutivo da
tecnologia, levando escritores como Erich Maria Remarque a retomar uma reflexão de caráter
existencial acerca do homem e sua relação com os descaminhos da civilização. O confronto de
1914-1918 parecia ter mostrado que a tecnologia necessitava ser usada em benefício humano,
e não para sua destruição, de modo que a euforia e o otimismo da década seguinte seriam sempre
acompanhados da sombra da guerra. Romances escritos na década de 1920 que abordam o tema
da guerra, como Adeus às armas e Nada de novo no front, são visões que posicionam o conflito
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dentro do novo pensamento acerca da humanidade2. As reflexões que levam Henry à deserção,
em Ernest Hemingway, e as angustias que conduzem Baümer a questionar os porquês da guerra,
em Remarque, caracterizam uma postura de esvaziamento de sentido do conflito e mesmo da
ideia de progresso constituído pelo homem na história. Segundo Sandra Pesavento
(PESAVENTO, 2006), a literatura, sendo uma forma de interpretação do mundo, possui um
efeito multiplicador de possibilidades de leitura do real, de modo que a dedicação dos escritores
em utilizar a guerra como cenário de suas histórias pode ser vista como uma ponderação sobre
o conflito e uma oportunidade para tratar de outras questões relacionadas, como o trauma, a
vida dentro e fora do combate, o progresso humano, a civilização.
Assim, o caráter imaginativo da escrita ficcional dá vazão à formulação de problemas
que têm a realidade por referente. Não se trata, portanto, da existência efetiva ou não dos
personagens de Hemingway e Remarque, mas das questões que as narrativas suscitam, os
problemas que a leitura das obras faz emergir. Ambas foram escritas utilizando recursos de
memória dos autores, que participaram da guerra (Hemingway pelos Aliados, Remarque pela
Alemanha). Isso acrescenta à riqueza que o texto ficcional possui para a discussão da realidade
a contribuição da memória, gestão política do passado (SANTOS, 2007, p. 81), movimento não
linear ou permanente, que constrói e preserva, a despeito do engano ou esquecimento, perpassa
as diversas temporalidades, “reelaborando o passado, ressignificando o presente e abrindo
brechas para o futuro” (RAMOS, 2011). É na narrativa que são articuladas as lembranças da
memória do indivíduo, que não deixa de ser um ponto de vista sobre a memória coletiva de
acordo com o lugar social ocupado (RICOEUR, 2007). A imaginação atua na reconstrução, seja
ela no texto literário ou historiográfico, em busca da realidade por diferentes caminhos,
alcançando diferentes verdades, sem deixar de estar sob a “tutela do intelecto” (RAMOS, 2011,
p. 102). A memória se transforma em matéria comum à História e à Literatura, que lidam de
forma particular com relação a recordação, ausência e sua representação.
Como suporte produtor de memórias, à literatura é permitido adivinhar os silêncios, os
desvios e as lacunas, propositais ou não, da escrita historiográfica. [...] Além disso, pode
trazer à tona não só leituras compartilhadas do real [...], como fazer emergir o imaginável,
o possível e o impossível da “realidade” (RAMOS, 2011, p. 96)
2 Não será possível, no espaço deste texto, discutir a respeito das tendências literárias do período, embora seja
uma discussão importante para entender a escrita dos autores analisados. Salientamos apenas que se trata de um
período importante na história da literatura, com grande número de autores vanguardistas, opostos ao formato
literário tradicional, inaugurando novas formas e temas para o fazer artístico, introduzindo elementos modernos
para o campo da ficção.
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Obras pacifistas como as aqui estudadas mostram a relação dinâmica entre o assunto da
narrativa e os objetivos do escritor, de modo que o encontro do leitor com a guerra não se dá
meramente por uma recuperação de fatos, mas pelo choque com uma realidade discursiva que
potencializa os contrastes entre a guerra em sua brutalidade e o homem em seus sonhos e
ilusões.
Adeus às armas
A Paris da Primeira Guerra Mundial foi uma experiência breve, mas fundamental em sua
juventude, um interlúdio bélico que afetaria a sensibilidade dos seus anos de formação e
daria cor à obra literária futura (WISER, 1993, p. 19).
Ernest Hemingway é autor de uma extensa obra literária, que trata especialmente de seu
tempo e tem forte relação com suas experiências pessoais. As duas experiências mais lembradas
em sua carreira foram sua participação em 1918 na Primeira Guerra, e sua cobertura jornalística
da Guerra Civil Espanhola. Homem de seu tempo, deu fortes características modernas à sua
obra como uso de uma linguagem simples e coloquial, incorporação do cotidiano e grande
liberdade de expressão. Tais atributos não deixam de refletir o momento do início de sua
carreira como jornalista - profissão que o acompanhará ao longo da vida.
Nascido em 1899 em Oak Park, Illinois, nos Estados Unidos, cedo inicia sua carreira
como jornalista. Aos 19 anos, parte para Itália como motorista voluntário da Cruz Vermelha na
Primeira Guerra, como milhares de americanos o fizeram. E como tantos outros, foi gravemente
ferido na linha de frente austro-italiana e durante sua recuperação em Milão apaixonou-se por
uma enfermeira inglesa. Essa parte em particular de sua história será o tema de seu segundo
romance, um dos mais conhecidos de língua inglesa do século XX, A Farewell to Arms (Adeus
às Armas), publicado em 19293. A escrita direta e ao mesmo tempo extremamente descritiva
dos cenários, são a marca do autor. Nesta, como em outras obras de Hemingway, realidade e
ficção se mesclam, surpreendendo pela capacidade de representação da realidade pela
verossimilhança. Hemingway diria em 1952: “é incalculável o preço da experiência da guerra
para um escritor. Mas acaba por ser destrutiva, se for demais” (ASTRE, 1968, p. 36). Os
milhares de jovens que se alistaram na guerra não imaginavam o horror que veriam e viveriam,
pois tratava-se de um “período de entusiasmo juvenil, em que a guerra foi acompanhada como
se fosse uma competição esportiva” (CALDAS, 2007, p. 3). Entretanto, ficariam marcados em
suas vidas os momentos em que a experiência chegou ao seu limite, com a banalização da morte,
3 Neste trabalho foi utilizada a edição em português traduzida do inglês por Monteiro Lobato: HEMINGWAY,
Ernest. Adeus às armas. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
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as mutilações, os traumas psicológicos e, no momento da desmobilização, a dificuldade na
reintegração social, aprofundando os sentimentos de tragédia e fraqueza.
A experiência da guerra, pessoal para muitos e com repercussões políticas para o mundo
inteiro, seria repensada e sentida durante a década seguinte, influenciando a geração que
precisou lidar com o trauma. Seria preciso enfrentar inéditos desafios do novo contexto que se
desenrolava:
O imediato pós-guerra europeu e os anos 20 seguintes definiram-se em profundas
transformações sociais e políticas que foram necessariamente alterações de mentalidade.
Conjunturas agitadas levaram à instituição de novas estruturas modeladas pelas mudanças
de regime na Europa central vencida e pela Revolução Bolchevique, geradora de uma geral
oposição proletária ao establishment burguês ocidental – e neste, logo também, por um
desejo de viver em outros ritmos culturais, a renovarem uma “Belle Époque” que a guerra
enterrara e que, perdido o nobre adjetivo oitocentista, se proclamava, em desafio mundano,
período de alegres consumos, de “Années Folles”, até o crack de 1929 (FRANÇA, 1983,
p. 823).
É nesse contexto entre guerras que floresceu uma “sociedade”, embora pequena em
número, grande em manifestações. O centro será a Paris da década de 1920, em que a conjuntura
pós-Primeira Guerra, a ascensão de ideias socialistas e a modernização visível nas grandes
cidades, impulsionam uma sociedade que durante essa década buscará criar novos conceitos.
Conhecida como geração perdida – expressão cunhada por Gertrude Stein, escritora e mentora
de muitos artistas e escritores da época e grande figura do movimento modernista – sem
expressar uma ideologia em comum, antes, na prática, remetia ao contingente de norte-
americanos que, após a Guerra, instalam-se em Paris que era considerada o centro cultural e
espiritual para todos os que buscavam inspiração e sucesso. A vida na cidade não era cara, era
possível viver confortavelmente com pouco e ao mesmo tempo aproveitar todas as
conveniências e sociabilidades oferecidas. Os principais pontos de encontro, como cafés, a
livraria de Sylvia Beach Shakespeare and Company ou o estúdio de Gertrude Stein criavam um
ambiente de intercâmbio cultural importante na vida daqueles que o compartilharam. Um
grande número de revistas com edições efêmeras agrupava em torno de si escritores que
procuravam expressar seus movimentos e publicar suas obras – um importante exemplo foi The
Transatlantic Review editada por Ford Madox Ford e Ernest Hemingway. Com isso, a literatura
americana ganha impulso e notoriedade especialmente nas figuras literárias de Hemingway e
Scott Fitzgerald. Outro destaque é a expressiva presença feminina, tanto nas artes, na moda e
no jornalismo, demonstrando uma verdadeira contracultura. A variedade de novos conceitos
artísticos e culturais exprime quão produtivo e inventivo foram os anos 1920, em que o jazz
embalou e interpretou na forma da música.
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Contudo, esta geração “pouco propensa ao otimismo ideológico, é gente mais
empenhada em inventariar experiências pessoais do que em promover salvações coletivas” por
isso, distinguimos em muitos “um sentimento de desdém para com a política, seus
compromissos e instituições, incluindo neste rol a própria história” (MATHIAS, 2000, p. 386),
embora grandes nomes tenham se envolvido em movimentos políticos, o sentimento mais
comum ainda era o de perda e de desperdício. Por isso a necessidade de se reinventar, de
renovar, de alimentar um espírito novo dando vazão às incertezas que de alguma forma remetem
às experiências do contexto da guerra. O clima era de dissolução de uma ordem antes
estabelecida e por isso nascem movimentos que rejeitam o passado (futurista), o antigo conceito
de cultura (dadaísmo) e a razão (surrealismo). A ciência e a filosofia têm papel fundamental na
visão desse novo homem que, apesar do sentimento de perda, tem esperança de que o
sofrimento causado pelos conflitos mundiais levasse a uma nova ordem e fraternidade entre os
homens (JOLL, 1995, p. 453). No entanto, essa esperança se apaga com as novas crises e
conflitos que viriam pela frente.
A experiência prosaica do homem moderno está repleta de choques, de embates com o
perigo (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 73).
É essa experiência, por um lado comum e banal, por outro traumática, que alguns
romances sobre a Primeira Guerra procuram retratar. Em Adeus às Armas, Ernest Hemingway
retrata não as trincheiras, mas outros ambientes que fazem parte das linhas de frente, como os
postos de ambulâncias e hospitais que mostram a realidade de oficiais, médicos e enfermeiras.
Esse narrador sucateiro […] não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito mais
apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo que
parece não ter importância nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que
fazer (GAGNEBIN, 2006, p. 54).
É no cotidiano que se percebe, aos poucos, detalhes pouco conhecidos que não se
aprendem nas aulas de História, e que só são passíveis de transmissão através de relatos de
experiência dos que viveram e viram. Adeus às armas tem sua fonte de inspiração na
experiência do próprio autor na guerra que, como narrador, procura mostrar um pouco do que
viu e viveu.
O personagem principal é um oficial, tenente americano Frederic Henry que, tal como
Hemingway, alista-se voluntariamente como motorista de ambulância na Cruz Vermelha, na
frente austro-italiana. De sua posição, o tenente Henry observa a situação precária de soldados
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que lutam no front, a passagem de epidemias, as cidades que eram reduzidas a escombros e que
contrastam com a beleza das montanhas na fronteira da Itália e da Áustria. Estamos em 1917 e,
embora não houvesse perspectiva de um desenrolar final para o confronto, buscava-se, de
tempos em tempos, uma ofensiva que pudesse proporcionar ao menos um avanço de posição:
A ofensiva ia recomeçar, foi o que escutei. Nossa divisão estava designada para atacar
num ponto rio acima, e o major ordenou-me que controlasse os postos durante o ataque.
Teríamos de cruzar o rio num ponto estreito e nos espalhar encosta acima. Os postos para
os carros deviam ser o mais perto possível do rio e bem abrigados. Iriam ser escolhidos
pela infantaria, é claro... Na verdade, nós é que deveríamos fazê-lo. Eram coisas como
essas que nos davam um falso sentimento de estar servindo ao exército (HEMINGWAY,
2010, p. 28).
Para muitos, a guerra parecia sem sentido ou, ao menos, sem um motivo plausível para
tanto horror. O seu final era imensamente desejado por alguns, mesmo que através da derrota.
Enquanto permaneciam em seus postos, sem opções de saída, alguns personagens demonstram
também uma perda de referenciais de sua vida fora do confronto, tendo dificuldade em se
comunicar com suas famílias. Suas experiências não eram traduzíveis àqueles que estavam
longe:
Já fazia tempo desde a minha última carta para os Estados Unidos. Sabia que devia mandar
uma carta, mas deixara tanta coisa passar que no momento era quase impossível começar
a escrever. Não havia o que contar. Mandei dois cartões-postais da Zona di Guerra,
riscando tudo o que vinha impresso, salvo a frase “vou indo bem”. Isso ajudaria os cartões
a chegar. Na América, esses cartões dariam uma boa impressão; eram estranhos e
misteriosos. Era também uma zona de guerra estranha e misteriosa (HEMINGWAY, 2010,
p. 49).
Como tantos soldados que transportava em sua ambulância, tenente Henry é ferido
gravemente na perna e na cabeça em uma ofensiva austríaca em Isonzo, ao norte de Gorizia, na
Itália. A forma trivial como foi ferido (enquanto fazia uma refeição com outros motoristas) e o
pronto oferecimento de uma medalha de honra ao tenente demonstram como a ideia de “herói”
de guerra, ou seja, aquele que é digno de receber uma medalha, pode ser distorcida e não
necessariamente significar um ato altruísta por parte daquele que a recebeu. O próprio
personagem a recusa, alegando que não havia sido autor de nenhuma bravura.
A recuperação de Henry ocorre no recém instalado hospital americano em Milão. Henry
já havia conhecido a enfermeira Catherine Barkley que trabalhava perto do front como ele, e o
relacionamento dos dois se fortalece quando se reencontram no hospital em Milão. Embora os
dois personagens fiquem indiferentes à guerra, procurando aproveitar os momentos juntos, é
impossível esquecê-la ou afastar-se dela por muito tempo. A entrada dos Estados Unidos era o
fato mais comentado quando Henry volta ao front, após sua recuperação:
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Entrávamos na luta, nós, os americanos, mas ainda levaríamos tempo para reunir uma
massa de tropas suficientemente grande e treiná-las. [...] Os italianos estavam consumindo
uma tremenda quantidade de homens, e eu não sabia por quanto tempo mais lhes seria
possível continuar com aquilo! [...] Talvez as guerras já não fossem pelo sistema antigo,
em que há um vencedor e um derrotado. Talvez durassem para sempre. Talvez
estivéssemos em outra Guerra dos Cem Anos (HEMINGWAY, 2010, p. 137).
Logo em seguida ocorre a Batalha de Caporetto, na região de Isonzo, em outubro de
1917. O livro mostra o início da batalha no momento em que os austríacos e alemães avançam
pela Itália, obrigando as tropas dos aliados a se retirar. O fato dos alemães participarem dessa
ofensiva é marcante para os italianos, pois qualquer contato com eles era temido. A descrição
feita por Henry da retirada da qual participou mostra a sensação de derrota que ela causava:
Na noite seguinte, a retirada começou. Ouvimos dizer que os alemães e austríacos haviam
rompido nossas linhas ao norte e vinham descendo para os vales da Cividale e Udine. A
retirada corria em boa ordem, triste e encharcada. À noite, rodando lentamente pelas
estradas cheias, passávamos por tropas em marcha sob a chuva, carregando o que podiam
do front: baterias, carretas de cavalos, mulas, caminhões. Não havia mais desordem do que
num ataque (HEMINGWAY, 2010, p. 208).
É durante essa retirada que Henry deserta do exército italiano. A deserção se dá por dois motivos
práticos: Henry já havia perdido seus companheiros de ambulância e também os veículos que
fora incumbido de levar; seguindo a retirada a pé, é parado e acusado de traição juntamente
com outros oficiais, pois permitiram a entrada do inimigo no país. A maioria destes é morta,
mas Henry consegue fugir. Durante sua fuga, consegue apenas pensar no quanto quer estar
longe da guerra, não tinha mais nenhuma obrigação, sentia-se vazio, desejando apenas
encontrar sua amada Catherine. Juntos, o casal segue para Suíça onde se isolam e abstraem o
conflito, aproveitando as conveniências de um país que, além de neutro, oferecia belíssimas
paisagens e confortos:
A guerra parecia tão distante de nós quanto o futebol que se jogava nas universidades
americanas. Só pelos jornais é que eu constatava que ainda persistia a luta nas montanhas,
enquanto a neve não começava a cair (HEMINGWAY, 2010, p. 311).
A guerra fisicamente estava longe deles, contudo, o sentimento de tragédia parece
acompanhá-los onde quer que vão, sinônimo de sua curta felicidade. Hemingway dá um fim
trágico à obra, com a morte de Catherine Barkley após o parto, fazendo reaparecer a verdadeira
decepção vivida com a guerra: a descoberta da mortalidade (ASTRE, 1968, p. 96).
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Nada de novo no front
Entre os escritores cujas obras representaram os acontecimentos relacionados à guerra
na conjuntura de mudança da sensibilidade característica dos anos 1920, Erich Maria Remarque
tem lugar de destaque. Os temas de toda sua obra possuem por eixo as guerras e suas
consequências. O caminho de volta (1931) narra a experiência de retorno dos combatentes da
guerra e suas frustrações na sociedade. O obelisco negro, publicado em 1956, busca retratar a
caótica Alemanha dos anos 20, com sua desorganização crescente e a ascensão do nacional-
socialismo. Dois anos antes, 1954, publicara Tempo para viver, tempo para morrer, que tem
por cenário a Segunda Guerra Mundial, na frente oriental, onde o exército alemão avança sobre
a Rússia e os soldados são confrontados com todos os rigores que fazem da morte uma realidade
cotidiana. Arco do Triunfo (1946) e Sombras no paraíso (1971, póstumo) trabalham outra
dimensão da guerra: a condição daqueles que se refugiam, a angústia de viver sob uma falsa
identidade, à margem da sociedade, e a paranoia de viver em fuga, escondendo-se da polícia
hitlerista.
Tais obras são exemplos que mostram um traço capital da escrita de Remarque: o
sentimento de catástrofe oriundo da guerra é transmitido pela ótica de um protagonista que
experimenta os acontecimentos, e não de uma explanação sobre a totalidade do evento. Seja um
soldado ou um refugiado, é sob o olhar de um participante que o leitor toma contato com a
experiência da guerra, e um agravante é o fato de tratar-se sempre da realidade alemã, país mais
atingido pela turbulência do período. Isso é particularmente forte no romance Nada de novo no
front4. Antes, no entanto, é importante conhecer certos fatos da vida de Remarque que
influenciaram gravemente as escolhas que caracterizam sua obra.
Nascera em 1898, em Osnabrück, Alemanha, e, já aos 18 anos, quando frequentava a
Universidade de Münster, fora convocado para a guerra, e, após, transferido às trincheiras da
frente ocidental. Em junho de 1917, foi ferido por estilhaços na perna, nos braços e no pescoço,
e enviado a um hospital militar, onde permaneceu até o fim da guerra. Foi então que começou
a trabalhar em seu primeiro romance, Die Traumbude (sem tradução para o português).
Nada de novo no front é um romance construído a partir da experiência direta de
Remarque na guerra. Inicialmente, foi publicado em folhetim no jornal Wossiche Zeitung no
ano de 1928, e, em 1929, em livro, sendo sua segunda obra no gênero. Sua publicação em 1929
foi precedida de uma eficaz campanha publicitária, que, unida ao sucesso que o folhetim
4 Neste trabalho foi utilizada a edição em português traduzida do alemão por Helen Rumjanek: REMARQUE,
Erich Maria. Nada de novo no front. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008.
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alcançara e ao interesse do público em narrativas do conflito, trouxe à obra um sucesso sem
precedentes na literatura alemã. Menciona Luciana de Lima Martins que, no espaço de um ano,
Nada de novo no front teria sido traduzido para vinte idiomas (MARTINS, 2008, p. 56); em
1930, foi transformado em filme pelo diretor de cinema Lewis Milestone.
O sucesso do livro estabeleceu Remarque como escritor, mas também o colocou no
centro de uma discussão em torno da representação da guerra. A um público acostumado a ver
o conflito em obras que o envolviam em romantismo heroico, Remarque opôs a visão
testemunhal do soldado que efetivamente faz a guerra. A perturbação não só do público, mas
das autoridades, diante de um livro que mostrava o soldado alemão como um homem (ou
mesmo um menino) assustado, reduzido pelas circunstâncias à condição de animal, rendeu ao
autor sério atrito com os órgãos nacionalistas alemães, que ganharam força no entre guerras.
Em plena década de projeção do cinema de propaganda para fins nacionalistas, o livro
de Remarque e o filme de Milestone tornavam internacionalmente reconhecida sua forte crítica
pacifista. Zelosas de uma visão da guerra imbricada de nacionalismo, seguindo a tradição que
edificou ilusões sobre 19145, as autoridades alemãs proibiram, com a ascensão de Hitler em
1933, a exibição do filme, e, no mesmo ano, promoveram a queima do livro em praça pública,
em Berlim. Em 1938, o autor perde sua cidadania alemã e exila-se do país.
Remarque dedica seu livro à “geração de homens que, mesmo tendo escapado às
granadas, foram destruídos pela guerra” (REMARQUE, 2008, p. 8). Seu protagonista, Paul
Baümer, possui muitas características que levam a ver o livro como uma produção de carga
altamente autobiográfica: além da semelhança ao nome do autor (o nome de batismo de
Remarque é Erich Paul Remarque), Baümer tem a mesma idade de Remarque quando este fora
enviado ao front ocidental, lugar onde também se passa a história. Remarque, assim, procura,
através de um romance construído com sua memória6, e narrado em primeira pessoa7, atingir o
público no sentido de mostrar os terrores da guerra, que não destrói somente quem nela morre,
mas todos que por ela passam:
Será que lá em casa eles não se preocupam, às vezes, com isso? Dois anos de tiros e
granadas... não é algo que se pode despir como uma roupa. (...) Não somos mais a
juventude. Não queremos mais conquistar o mundo. Somos fugitivos. Fugimos de nós
mesmos e de nossas vidas. Tínhamos dezoito anos e estávamos começando a amar a vida
e o mundo e fomos obrigados a atirar neles e destruí-los. A primeira bomba, a primeira
granada, explodiu em nossos corações. Estamos isolados dos que trabalham, da atividade,
5 Ver FERRO, M. A guerra imaginária. In: A grande guerra, Lisboa: Edições 70, 1990, p 47-55. 6 Márcia Pereira dos Santos menciona a literatura como uma possibilidade de a memória emergir na sociedade.
Ver SANTOS, 2007, p. 90. 7 A narração em primeira pessoa é um artifício literário que aumenta a intensidade das experiências narradas. Ver
MARTINS, 2008, p. 58.
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da ambição, do progresso. Não acreditamos mais nessas coisas: só acreditamos na guerra
(REMARQUE, 2008, p. 74).
Dessa forma, Remarque procura demonstrar o distanciamento que a vivência da guerra
provoca no homem em relação à sociedade, um distanciamento que jamais será eliminado e que
se configura como um trauma8. O combatente, assim, retorna para sua casa, mas não retorna
como a pessoa que dali partiu, como Paul Baümer quando volta temporariamente: não é o
mesmo; suas roupas não lhe caem bem, sente-se estranho a seu peso, muito mais leve que seu
uniforme de soldado. A cidade é igual; ao protagonista, parece que a guerra não existe para
aquelas pessoas, e não entende como isso é possível:
Com certeza, fui eu quem mudou nesse intervalo. Entre aquela época e hoje há um abismo.
Naquela ocasião, ainda não conhecia a guerra; [...] Hoje, reparo que, sem perceber, fiquei
desiludido. Não consigo mais me orientar, é um mundo desconhecido. Alguns perguntam,
outros não perguntam, e vê-se que se orgulham disso; frequentemente, chegam até a dizer,
com um ar de compreensão e superioridade, que não se pode falar sobre essas coisas
(REMARQUE, 2008, p. 132).
Voltar para sua cidade natal após ter passado na guerra põe Paul Baümer em uma
situação de estrangeiro, não se sente confortável nem mesmo na companhia dos objetos que
evocam seu passado, pois a guerra é vivenciada como uma experiência definitiva. Baümer não
consegue estabelecer comunicação com aqueles que ficaram na cidade, não se sente capaz de
falar sobre as experiências que viveu no front e angustia-lhe haver pessoas que seguem suas
vidas alheias ao conflito:
[...] Tudo isso é tão mesquinho, como pode encher uma vida? É preciso acabar com isso.
Como podem ser assim, enquanto lá fora os estilhaços zunem sobre as trincheiras e os
foguetes sobem, os feridos são arrastados em lonas para a retaguarda e os companheiros
abaixam-se nas trincheiras? (REMARQUE, 2008, p. 135).
A impessoalidade do protagonista de Remarque diante de seus próximos remete à
pobreza em experiência comunicável referida por Walter Benjamin a respeito dos combatentes
que voltavam silenciosos das trincheiras (BENJAMIN, 1993, p. 115). A pobreza na experiência
dos indivíduos de Benjamin é justamente a destruição que a guerra causou àqueles que não
pereceram nela, que Remarque indica na dedicatória de seu livro.
Para representar o absurdo da guerra, o autor faz de seus heróis homens desprovidos de
convicções, que se tornam pequenos diante da monstruosidade da morte em grande escala. A
8 Segundo Carlos Henrique Armani, a alteridade da guerra, vivenciada por Remarque e expressa na obra, faz
fronteira com a indiferença e a impessoalidade. Ver ARMANI, 2006, p. 98.
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dignidade humana se reduz ao sentimento de companheirismo e a pequenos prazeres, como
comer e dormir. O protagonista, segundo Luciana de Lima Martins (MARTINS, 2008, p. 61),
defronta-se, na maior parte da narrativa, com experiências onde seus sentimentos e suas ações
se contradizem. O personagem vive um conflito entre o sentimento inspirado pelas instituições
de sua educação e a realidade da guerra. Os ensinamentos da escola são substituídos pelo
aprendizado adquirido no front, que dispensa qualquer valor que não seja a manutenção da
própria vida.
As ilusões construídas pelo discurso oficial das instituições nacionais e pelos pais da
geração de soldados chocam-se com a realidade da morte. Remarque aponta a desilusão dos
jovens combatentes:
O primeiro bombardeio nos mostrou nosso erro, e debaixo dele ruiu toda a concepção de
mundo que nos tinham ensinado. Enquanto eles continuavam a escrever e a falar, víamos
os hospitais e os moribundos; enquanto proclamavam que servir o Estado era o mais
importante, já sabíamos que o pavor de morrer é mais forte (REMARQUE, 2008, p. 18).
A Primeira Guerra trouxe aos combatentes situações-limite devido à escala industrial de
morte oriunda das novas tecnologias bélicas, envolvendo metralhadoras, tanques de guerra, etc.,
objetos feitos para produzir morte em massa. O soldado torna-se um homem transformado pela
banalização da morte. A narrativa de Remarque é uma tentativa de representar em texto essa
realidade. O desastre é evocado nu e o estilo é lacônico. O objetivo que Remarque se coloca
liga-se à questão dos limites da representação, assim como o soldado vive constantemente
situações que estão no limite da compreensão. A vivência de um evento que não corresponda a
nada dentro dos quadros referenciais do sujeito constitui uma experiência traumática
(SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 84).
Como representar uma situação além da capacidade de acepção, uma situação que não
possa ser recebida por não encontrar lugar em nossas referências? (SELIGMANN-SILVA,
2000, p. 88). A obra de Remarque representa a emergência de um novo sublime, que se fez
necessário, em tempos de guerra, para dar conta da incomensurabilidade do trauma.
Essas descrições de impossibilidade da descrição nos remetem à tradição da teologia
negativa e da estética do sublime. [...] Mas o sublime não designa mais o elo para o inefável
que ultrapassa nossa compreensão humana. Ele aponta para cinzas, cabelos sem cabeça,
dentes arrancados, sangue e excrementos. Um sublime de lama e cuspe, um sublime por
baixo, sem enlevo nem gozo (GAGNEBIN, 2006, p. 79).
Esse sublime por baixo se caracteriza pela literalidade da narrativa. Seu registro é
absolutamente literal, pois a metáfora daria uma ideia de comensurabilidade (SELIGMANN-
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SILVA, 2000, p. 91). Além do mais, o evento-limite tem uma singularidade que escapa a
qualquer forma de universalização característica da representação literária. A crueza do relato
de Remarque tenta demonstrar, por meio dessa literalidade traumática, a destruição do sujeito,
a destruição da faculdade de interpretação, da capacidade de distinguir o real do irreal e a
ausência de qualquer outra verdade para quem vive a verdade da guerra. As principais cenas da
obra devotadas a isso são a de um combate em um cemitério, em que as explosões retiram
caixões e seus cadáveres dos túmulos e a de um combate onde os cavalos são atingidos por tiros
e estilhaços, e gritam tão alto que os soldados são obrigados a tapar os ouvidos e, após, atirar
nos animais: “Um deles tem o ventre rasgado, as tripas penduradas para fora. Tropeça nos
próprios intestinos e cai, mas levanta-se novamente” (REMARQUE, 2008, p. 56).
O autor, em sua denúncia que só necessita ser literal para demonstrar o absurdo do fato,
também busca transmitir consternação ao narrar a atividade de crianças na guerra:
Sente-se um nó na garganta ao ver como saltam, correm e caem. Tenho vontade de bater
neles porque são tão bobos, mas, ao mesmo tempo, gostaria de pegá-los no colo e levá-los
para longe daqui: este não é o seu lugar. Vestem suas túnicas, calças e botas cinzentas,
mas, para a maioria, a farda é larga demais, flutuando-lhes ao redor dos membros; os
ombros demasiado estreitos, os corpos demasiado pequenos. Não havia uniformes feitos
para estas medidas de criança (REMARQUE, 2008, p. 117).
Conclusão
Os romances de Hemingway e Remarque salientam aspectos distintos do conflito, e seus
personagens vivem-no de maneira bastante diversa. Henry usufrui de um posto de oficial e sua
relação com a guerra guarda certa distância, salvo momentos críticos como o de seu ferimento;
vê no mundo civil, em seu relacionamento e na Suíça nortes para onde fugir do conflito, e
preserva como desertor sua porção de humanidade. Baümer tem uma relação inversa com a
sociedade. Ao voltar para casa, sente-se estrangeiro, e diversas vezes, no front, menciona a
incerteza sobre como conduzir a vida fora da guerra. Baümer e os combatentes de Remarque se
tornaram criaturas da guerra, que, ainda que sobrevivam, não têm mais condições psicológicas
e morais de sustentar uma vida civil. Sentem-se seguros na guerra, onde está a verdade
definitiva, sob o fogo, a fome e a doença.
Apesar das diferenças, as obras se debruçam sobre o tema comum dos efeitos do conflito
na vida e na mente dos personagens. O protagonista de Hemingway, em seu retiro, vive na
sombra do confronto, modificado por sua experiência; o de Remarque é avassalado por essa
experiência, assim como toda a geração de combatentes alemães. As experiências se cruzam
em um ponto: aqueles que um dia participaram do conflito não seriam mais os mesmos, são
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obrigados a pensar e senti-lo à sua maneira. A sensação de destruição se tornaria a marca que
os acompanharia a partir daí.
A visão da guerra, em ambas as obras, está orientada segundo o contexto de sua
produção, sobretudo a tendência de reavaliar a relação entre as ilusões constituídas sobre a
guerra (mas também sobre o progresso, sobre a civilização) e sua realidade. Baümer e Henry
têm suas expectativas chocadas na primeira experiência de combate, ou mesmo na visão dos
feridos, comum aos dois personagens. Fugindo à guerra ou mergulhando nela, reagem ao
choque cada um a sua maneira.
As duas obras - ambas publicadas em 1929 - alcançam enorme sucesso além de serem
grandes fontes para uma história literária e para o próprio conhecimento histórico, ao mesmo
tempo em que contribuem para a construção de uma memória literária sobre a Primeira Guerra
(MARTINS, 2008, p. 94).
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