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Ano 3 • Número 3 • OUTONO

ARTIGOSCOMENTÁRIOS DE JURISPRUDÊNCIARECENSÕESNA WEBCRÓNICA DA ACTUALIDADE

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Índice

ÍNDICE

Editorial – Eduardo Paz Ferreira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Convidado de Outono – Alberto Xavier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

ARTIGOS

Heleno Torres – Interpretação das normas tributárias . . . . . . . . . . . . . .

José Mauricio Conti – Considerações sobre o Federalismo Fiscal Brasi-leira em uma perspectiva comparada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Ana Cláudia Akie Utumi – O uso de empréstimos intercompanies no Brasil. Normas de subcapitalização e temas conexos. Breves refl exões

Mary Elbe Queiroz – A Proporcionalidade no âmbito administrativo--tributário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Diogo Leite Campos – A “total impossibilidade de prever o futuro” e os impostos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Manuel Faustino – Retroactividade, Retrospectividade e alguma sereni-dade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Clotilde Celorico Palma – O Código de Conduta da fi scalidade das empresas e a boa governação fi scal – O futuro do Grupo de trabalho

João Manuel Catarino – Os novos contextos das fi nanças públicas. A administração pública Financeira em ambiente aberto na emergên-cia de um Sistema Fiscal Mundial: Desafi os das Finanças Públicas em Ambiente Aberto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

Vasco Branco Guimarães – Sobre a Tributação das Mais-Valias . . . . .

Sérgio Gonçalves do Cabo – Nota sobre a prescrição de obrigações tributárias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

João Pedro Silva Rodrigues – A inconstitucionalidade do Pagamento Especial por Conta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

JURISPRUDÊNCIA

Rui Laires – Localização para efeitos do IVA de serviços relacionados com a permuta de direitos de férias em empreendimentos turísticos. Comentário ao acórdão do TJUE de 3 de Setembro de 2009, processo C-37/08, caso RCI Europe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Nazaré da Costa Cabral – Comentário ao Acórdão do Tribunal Consti-tucional n.º 188/2009 de 22 de Abril de 2009 (Processo n.º 505/08). . . .

Nuno Oliveira Garcia – Concorrência da diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital em metade do seu valor. Comentário ao acórdão n.º 85/2010 do Tribunal Constitucional (1.ª Secção) de 03/03/2010 – Pro-cesso n.º 653/09 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Nuno Cunha Rodrigues – Centrais de Compras. Comentário ao Acór-dão N.º 171/2009 do Tribunal de Contas sobre centrais de contas . . . . .

Sergio Ribeiro – Manifestações de fortuna e afastamento parcial da pre-sunção de Rendimento. Comentário ao Acórdão do STA de 19 de Maio – Processo n.º 0734/09. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Síntese de acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia do tri-mestre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Síntese de acórdãos do Tribunal Constitucional do trimestre. . . . . . . .

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Índice

Síntese de acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo do trimestre

Síntese de acórdãos do Tribunal de Contas do trimestre. . . . . . . . . . . .

RECENSÕES

IVA – A Localização das Prestações de Serviços após 1 de Janeiro de 2010 de Rui Laires, por Clotilde Celorico Palma . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Tributação Presuntiva do Rendimento – Um Contributo para Ree-quacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Tri-butável de João Sérgio Ribeiro por Rui Morais . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Direito Fiscal – 4.ª edição, Manuel Pires e Rita Calçada Pires por Gus-tavo Courinha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

El Futuro del sistema de pensiones – crisis fi nanciera y Estado de Bienestar, de Robin Blackburn por Nazaré da Costa Cabral . . . . . . . . .

Introduction au droit fi scal général et à la théorie de l’impôt, (10.ª edição) de Michel Bouvier por Nuno Cunha Rodrigues . . . . . . . . . . . . .

Direito Financeiro e Tributário, Kiyoshi Harada por João Catarino . . .

Uma Introdução à Ciência das Finanças, 16.ª edição, Aliomar Baleei-ro, Actualização por Dejalma de Campos, por Nazaré da Costa Cabral

Impostos Federais, Estaduais e Municipais, 5.ª edição, de Leandro Paulsen e José Eduardo Soares de Melo por João Ascenso . . . . . . . . . . .

Publicações Recentes por Marta Caldas e Miguel Brito Bastos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

NA WEB

Visita ao site do Tribunal de Contas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

CRÓNICA DE ACTUALIDADE

Ponto de situação dos trabalhos na União Europeia e na OCDE – Principais iniciativas entre Novembro de 2009 e Janeiro 2010 por Brigas Afonso, Clotilde Palma e Manuel Faustino . . . . . . . . . . . . . . . . .

1. Fiscalidade Directa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2. Imposto sobre o Valor Acrescentado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .3. Impostos especiais de consumo harmonizados, imposto sobre veículos e união aduaneira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Cursos de pós-graduações do IDEFF – Ano lectivo 2010/2011, por Miguel Moura e Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Teresa Gil Subdirectora Geral para a Área da Gestão Tributária – IR e das Relações Internacionais, por Clotilde Celorico Palma . . . . . .

Conferências IDEFF – Ano lectivo 2010/2011, por Nuno Cunha Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

O «Novo» Código dos Impostos Especiais de Consumo, por Carlos Batista da Costa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Editorial

1. Este número da Revista sai a público num momento em que, deixadas para trás as férias e o período de alguma tranquilidade que as rodeou, somos confrontados com um novo ano de trabalho, estudo e intervenção política e social que se advinha particularmente difícil.

Por um lado, as medidas de austeridades tomadas antes do Verão vão, agora, fazer-se sentir de uma forma mais visível e tornar o quoti-diano dos portugueses mais difícil, enquanto que os acordos políticos anteriormente gerados, poderão não sobreviver à difícil preparação do Orçamento para 2011. O consenso sobre a necessidade de austeridade que, entretanto se gerou, parece, de facto, estar longe de refl ectir idêntico consenso quanto à forma de a pôr em prática, bem como quanto à distri-buição dos encargos.

O debate sobre a eventual revisão constitucional veio, por outro lado, abrir de uma forma mais clara do que tem sido usual, a discussão entre dois modelos de sociedade: aquele que, com todas as debilidades e contradições, corresponde ao que inspirou as últimas décadas em Portu-gal e um outro de matriz acentuadamente liberal.

Independentemente de se poder pensar que a revisão constitucional surge num momento inoportuno e que os verdadeiros problemas com que nos defrontamos pouco têm a ver com o texto fundamental, não se pode deixar de assinalar que algumas propostas avançadas têm o mérito de convocar os eleitores para escolhas mais claras e diversifi cadas, o que é seguramente positivo de um ponto de vista democrático.

Nesse contexto surge, também, a proposta, de resto agitada não só em Portugal, de inserção no texto constitucional de regras fi xas que impeçam o défi ce orçamental ou criem limites à carga fi scal.

EDITORIALEduardo Paz Ferreira

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Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

Trata-se de uma opção que encontra as suas raízes no movimento conservador norte-americano e na profunda desconfi ança quanto à virtua-lidade da decisão fi nanceira. Com normas desse tipo visar-se-ia seguir o avisado conselho de Ulisses, quando pede para ser amarrado para resistir ao canto das sereias.

Para além de não partilhar dos pressupostos de base quanto à acção pública e de ser, por isso, imune às sereias das regras fi nanceiras fi xas, afi gura-se-me que a crise económica veio mostrar, claramente, a impos-sibilidade prática de adoptar soluções fortemente pró-ciclicas, apesar de todos os desenvolvimentos inesperados e contraditórios a que temos assistido neste domínio.

Um dos problemas com que a economia portuguesa se irá, de resto, confrontar é com o impacto das medidas de austeridade, designadamente a nível da procura, sendo de temer o agravamento de uma situação já tão difícil que faz com que as boas notícias sejam apenas as que nos dizem que a evolução não foi tão negativa quanto se poderia esperar.

É, por outro lado, preciso reconhecer que os limites psicológicos da carga fi scal estão a ser rapidamente atingidos e que, se o sentido geral de agravamento da carga fi scal nos escalões mais elevados de rendimento é de aplaudir, a sua concretização prática constitui apenas mais um factor de injustiça dada a enorme evasão fi scal, que faz com que apenas um ínfi mo número de contribuintes atinja o escalão mais elevado do IRS, apesar da obscena manifestação de riqueza a que assistimos quotidianamente.

Se Portugal é um dos países com uma das mais desiguais reparti-ções de rendimento, é patente que não será por essa via que se alcançará uma sociedade mais justa. A evasão e elisão fi scal são uma vergonha nacional a que é preciso pôr cobro.

O sucesso dos bancos portugueses nos testes anti-stress constituiu um aspecto positivo dos últimos meses, mas que não permite ignorar as difi -culdades com que o sistema fi nanceiro se continua a confrontar, bem como as difi culdades de crédito com que se debate a actividade empresarial.

O contexto internacional e a perpetuação das incertezas económi-cas, com a multiplicação de indicadores contraditórios que por vezes se sucedem com grande rapidez, estão longe de facilitar a evolução da econo mia portuguesa. A crescente demonstração de incapacidade de concertação internacional e o esboroar das esperanças em torno do G-20 são outros factores negativos.

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Editorial

2. Com o presente número concretizamos um passo, de há muito ambicionado, de estreitamento das relações científi cas com o Brasil. Orgulhamo-nos de apresentar artigos de enorme qualidade e importância de quatro dos maiores vultos das áreas fi scal e fi nanceira do Brasil – os Professores Heleno Torres, Maurício Conti, Mary Elbe Queiroz e Ana Cláudia Utumi -, que nos dão também a honra de passar a integrar o Conselho Científi cos da Revista.

Estou certo de que esta colaboração se irá estreitar nos próximos tempos e que este é um terreno fértil no caminho da internacionalização que traçámos.

O Professor Alberto Xavier, que é o convidado deste número da Revista, é de resto, o Português que mais contribuiu para a aproximação dos universos fi scais português e brasileiro, na medida em que, após uma brilhante carreira universitária em Portugal, se fi xou no Brasil onde se notabilizou na docência e na advocacia.

Autor de uma vasta obra, em que se destaca, desde logo, a modelar dissertação de doutoramento – Conceito e Natureza do Acto Tributá-rio – Alberto Xavier conseguiu atrair para a órbita do fi scal inúmeros alunos seduzidos pelo brilho da sua exposição e profundidade do seu ensino. O seu Manual de Direito Fiscal, publicado em 1974, é ainda hoje um texto de referência obrigatória, tal como o são as suas obras mais recentes com relevo para o Direito Tributário Internacional.

Em Alberto Xavier homenageamos o fi scalista insigne, verdadeiro pai do moderno Direito Fiscal Português e o homem de cultura que encantou os seus leitores, quando se atreveu a ir para além do Direito.

Também o Professor Diogo Leite de Campos, outro fi scalista por-tuguês de grande projecção do Brasil, nos honra com mais uma colabo-ração na Revista, que conta com artigos de outros prestigiados autores portugueses.

3. Vivemos tempos de desânimo, que perpassam neste editorial, mas tanto não signifi ca que nos resignemos. Mais do que nunca há que combater por uma sociedade justa e progressiva, assente numa fi scali-dade equilibrada e em fi nanças públicas sólidas. Este foi sempre o nosso projecto e continua a sê-lo.

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A TRIBUTAÇÃO DOS LUCROS DE CONTROLADAS E COLIGADAS DE EMPRESAS BRASILEIRAS NO EXTERIOR E OS TRATADOS CONTRA A DUPLA TRIBUTAÇÃO

ALBERTO XAVIER

I – O regime de transparência fi scal internacional

A) Do princípio da territorialidade ao princípio da universalidade

Em 27 de julho de 2001, foi editada a Medida Provisória n.º 2.158--341, cujo art. 74 dispõe o seguinte:

“Para fi ns de determinação da base de cálculo do imposto de renda pessoa jurídica e da CSLL, nos termos do art. 25 da Lei n.º 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros auferi-dos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibili-zados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento.

“Parágrafo único. Os lucros apurados por controlada ou coligada no exterior até 31 de dezembro de 2001 serão considerados disponibilizados em 31 de dezembro de 2002, salvo se ocorrida, antes dessa data, qualquer das hipóteses de disponibilização previstas na legislação em vigor.”

A lei n.º 9.249, de 26 de dezembro de 1995, para cujo art. 254

remete a disposição citada, introduziu profunda alteração no sistema brasileiro de tributação da renda externa das pessoas jurídicas, que se

1 Referido preceito foi introduzido na 34ª edição da Medida Provisória n.º 2.158 e reproduzido na sua última versão (35ª) de 24 de agosto de 2001 (atualmente vigente nos termos do art. 2.º da EC n.º 32, de 11 de setembro de 2001) à qual respeita a ADI 2588-1/DF, pelo que, doravante, iremos nos referir apenas a esta última reedição.

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Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

traduziu essencialmente pela abolição do até então tradicional princípio da territorialidade2.

De harmonia com o princípio da territorialidade3, anteriormente vigente no Brasil, nenhuma renda cuja fonte de produção se localize no exterior recai no âmbito de incidência do imposto de renda das pessoas jurí-dicas: nem a renda obtida diretamente através de uma atividade funcional (o exercício do próprio objeto social) ou de uma atividade jurídica (o exercício de direitos a rendimentos, tais como juros, royalties e dividendos), nem a renda obtida indiretamente através de uma organização de pessoas e bens localizada no exterior, quer se trate de fi liais ou sucursais, sem personali-dade jurídica, quer se trate de sociedades controladas ou coligadas, com individualidade jurídica própria.

No polo oposto ao princípio da territorialidade situa-se o princípio da universalidade (ou do world-wide-income), segundo o qual toda a renda da pessoa jurídica deve ser tributada no país de domicílio, incluindo a renda externa, seja esta decorrente de atividade funcional ou jurídica, seja esta obtida através de fi liais ou de subsidiárias. No que respeita às subsidiárias, com personalidade jurídica própria, a lógica do princípio da universalidade conduz à tributação dos dividendos por esta distribuídos, que são renda efe-tiva da sociedade controladora, mas não dos lucros acumulados ou retidos na subsidiária, que são renda própria desta, não tornada disponível para a controladora. Este é o sistema adotado, via de regra, pela generalidade dos países mais desenvolvidos.

Como se disse, inovando radicalmente na matéria e rompendo uma antiga tradição, a Lei n.º 9.249/95 aboliu o princípio de territorialidade no que toca ao imposto de renda das pessoas jurídicas, consagrando em

2 O Art. 74 da Medida Provisória n.º 2.158-34/01, hoje em vigor, restabeleceu a sistemática da lei n.º 9.249/96, após numerosas e intrincadas vicissitudes, cuja descrição não é relevante para o presente texto. Também nele não se examinarão os problemas constitucionais suscitados pela tributação de rendimento indisponível para o sócio e que são objeto da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADIN 2588-1/DF) presente-mente em curso no Supremo Tribunal Federal. Cfr. ALBERTO XAVEIR, Direito Tributário Internacional do Brasil, 6ª Edição, Rio de Janeiro, 2004, 443 e 461 ss.

3 Na sua acepção mais restrita, relacionada com a conexão ao país da fonte, no sentido em que KLAUS VOGEL fala num ursprüngliche Bedeutung des Territorialprinzips: cfr. Der räumliche Anwendungsbereich der Verwaltungsrechtsnorm, Frankfurt/Berlim 1965, 121.

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Convidado de Outono

sua substituição o princípio da universalidade, ao dispor no caput do art. 25 que “os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exte-rior serão computados na determinação do lucro real das pessoas jurí-dicas correspondente ao balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano”. Neste dispositivo, enquanto a expressão “rendimentos e ganhos de capital” se aplica à atividade direta no exterior, o conceito de “lucros” reporta-se à atividade indireta exercida através de fi liais, sucursais, con-troladas ou coligadas no exterior (cfr. Instrução Normativa n.º 213, de 7 de outubro de 2002, art. 1.º, §§ 1.º e 2.º)4.

Ao contrário do que sucedia ao abrigo do princípio de territorialidade, passaram a ser tributáveis os rendimentos e ganhos de capital imputáveis a atividades exercidas diretamente no exterior no âmbito de uma atividade funcional (exploração do próprio objeto social) ou de uma atividade jurí-dica (com a consequente tributação de juros, royalties, lucros, dividendos pagos por sociedades não controladas ou coligadas, imputáveis a fontes localizadas no exterior). É o que resulta do caput do art. 25, atrás citado.

Os lucros das fi liais e sucursais estrangeiras (destituídas de perso-nalidade jurídica) são adicionados integralmente ao lucro líquido, para determinação do lucro real correspondente ao balanço levantado no dia 31 de dezembro de cada ano (art. 25 da Lei n.º 9.249/95). Esta regra viria a ser modifi cada pela Instrução Normativa n.º 38/96 (art. 2.º, § 1.º e § 2.º), no sentido de que a adição apenas deveria ocorrer no ano-calendário em que tivessem sido disponibilizados para a pessoa jurídica domiciliada no Brasil, ou seja, em que tivessem sido creditados ou pagos à matriz.

Certo é, porém, que a Lei n.º 9.532/97 (art. 1.º, § 1.º, a) conside-rou tais lucros disponibilizados na data do balanço no qual tiverem sido apurados, fazendo coincidir necessariamente o momento da “disponibili-zação” com o momento da apuração, já que, não tendo as fi liais persona-lidade jurídica para efeitos de Direito privado, elas não praticam um ato comparável ao da distribuição de dividendos praticado pelas sociedades coligadas ou controladas.

4 Este alargamento do âmbito de incidência do imposto de renda das pessoas jurídicas não atingiu inicialmente a contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL) criada pela Lei n.º 7.689/88, que se manteve exclusivamente territorial. O certo, porém, é que a partir da Medida Provisória n.º 1.838-7, de 29 de julho de 1999, tam-bém esta contribuição passou a reger-se pelo princípio da universalidade.

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Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

A verdade é que os rendimentos auferidos e as despesas incorridas pelas fi liais estrangeiras não são registrados direta e imediatamente na escrituração da matriz brasileira, antes são considerados sinteticamente para efeitos de apuração de um resultado líquido no seu próprio balanço, resultado esse que será adicionado ao da matriz brasileira (art. 1.º, §§ 1.º e 4.º, da Instrução Normativa n.º 213/02), não ocorrendo, porém, o fenô-meno da “distribuição” de lucros, dada a inexistência de personalidade jurídica.

B) A tributação das controladas e coligadas no exterior.

Em matéria de sociedades controladas e coligadas no exterior, o art. 25 da Lei n.º 9.249/95 veio dispor nos seus §§ 2.º e 3.º que os lucros aufe-ridos por controladas e coligadas no exterior, de pessoas jurídicas domi-ciliadas no Brasil, serão computados na apuração do lucro real mediante adição ao respectivo lucro líquido, na proporção da participação da pes-soa jurídica no capital da controlada ou da coligada.

É importante salientar que este sistema de tributação vai mais longe que o princípio da universalidade, na pureza dos seus contornos, pois manda adicionar ao lucro da sociedade domiciliada no Brasil a totalidade do lucro obtido pelas controladas ou coligadas no exterior, na proporção da participação no capital social destas, ainda que tais lucros tenham sido integralmente retidos e não distribuídos. Assim sendo, o imposto brasileiro atingiria renda que não é da própria sociedade brasileira, mas renda de titularidade jurídica de sociedades estrangeiras independentes. Trata-se, portanto, de um sistema de “universalidade ampliada” de tribu-tação extraterritorial ou ultraterriorial de ultraterriorialidade ofensiva, no dizer de ROSEMBUJ5.

O sistema de transparência fi scal internacional consagrado na Lei n.º 9.249/95 (e estabelecido no artigo 74 da MP n.º 2158-35) era, porém, aplicável a todas e quaisquer sociedades estrangeiras controladas ou coligadas, sem as ressalvas e limitações restritivas das leis estrangeiras

5 TULIO ROSEMBUJ, Transparencia fi scal internacional. Aspectos críticos (separata da Revista de la Economia Social y de la Empresa 27/28); ID., Derecho Fiscal Internacional, Barcelona 2001, 174 ss.

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Convidado de Outono

“antiabuso”, notadamente as de tais sociedades se localizarem em países de baixa tributação e de a sua renda ser essencialmente “passiva”, ou seja, não produtiva ou não operacional, pelo que não revestia a natureza de um “regime CFC” propriamente dito, de aplicação excepcional, mas de uma modalidade técnica de tributação de alcance geral.

E daí que JOÃO FRANCISCO BIANCO e LUÍS EDUARDO SCHOUERI afi r-mem que ela ofende o princípio da proporcionalidade, dada a inadequa-ção e a desnecessidade dos meios adequados (legislação contendo regra genérica e não restrita a certos territórios e rendimentos) para atingir os fi ns antielisivos em vista6.

A adição direta ao lucro de sociedade brasileira do lucro das con-troladas e coligadas no exterior, independentemente de este ter sido dis-tribuído ou não (designada na lei inglesa sobre as Controlled Foreign Corporations como apportionment of foreign accumulated income) representa, pois, a concepção das sociedades estrangeiras como “socie-dades fi scalmente transparentes”, cuja personalidade jurídica é descon-siderada ex lege para efeitos fi scais, de tal modo que os seus lucros se consideram automaticamente distribuídos para as sociedades brasileiras, que passarão a ser tributadas numa arising basis e não numa distribution basis7.

6 Cfr. J. F. BIANCO, Transparência fi scal internacional, cit., 80 ss.; L. E. SCHOUERI, Transparência fi scal, proporcionalidade e disponibilidade, RDDT, n.º 142, 2007, 39 ss.

7 Além das três monografi as dedicadas ao tema (TAÍSA OLIVEIRA MACIEL, Tri-butação dos lucros das controladas e coligadas estrangeiras, Rio de Janeiro, 2007; JOÃO FRANCISCO BIANCO, Transparência fi scal internacional, São Paulo, 2007; ANDRÉ MARTINS DE ANDRADE, A tributação universal da renda empresarial, Belo Horizonte, 2008) veja-se ainda: ANTONIO CARLOS RODRIGUES DO AMARAL/DOUGLAS YAMASHITA, Norma antielisão: tributação de lucros no exterior. Disponibilidade de renda e tra-tados internacionais, in LUÍS EDUARDO SCHOUERI (org.), Direito Tributário, home-nagem a ALCIDES JORGE COSTA, vol. II, São Paulo 2003, 893; PEDRO ANAN JUNIOR, Inconstitucionalidade da tributação dos lucros auferidos no exterior – Medida Pro-visória n.º 2.158-35/01 e Instrução Normativa SRF n.º 213/02, RDDT 93 (2003), 69; ELIANA KARSTEN ANCELES, Transparência fi scal internacional (Controlled Foreing Corporations – CFC): uma visão analítica à luz da sistemática jurídico-tributária brasileira, RFDT 8 (mar./abr. 2004), 77; ANDRÉ MARTINS DE ANDRADE, Consequên-cias possíveis da ADI n.º 2.588, RFDT 32 (mar.-abr./2008), 89; ID., Os limites de tributação universal da renda e a ADI n.º 2.588, RFDT, n.º 29, 2007, 9 ss.; HUM-BERTO ÁVILA, O imposto de renda, a contribuição social sobre o lucro e os lucros

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auferidos no exterior, in VALDIR DE OLIVEIRA ROCHA (org.), Grandes questões atuais do Direito Tributário, vol. 7, São Paulo 2003, 215; MÁRCIO ÁVILA, A ADIn 2.588/DF e a tributação dos lucros oriundos do exterior, RTFP 64 (set.-out./2005), 11; MARCO ANTÔNIO BEHRNDT, Análise de norma inaugural da tributação em base uni-versal no Brasil e as decisões do Conselho de Contribuintes, RDTI 7 (dez.-/2007), 223; ELIDIE PALMA BIFANO, Investimentos em sociedades coligadas e controladas, ágio e o imposto sobre a renda, in EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI/FERNANDO AURE-LIO ZILVETI (org.), Direito Tributário: tributação empresarial, São Paulo 2009, 203; FERNANDO NETTO BOITEUX, As sociedades coligadas, controladoras, controladas, e a tributação dos lucros obtidos no exterior, RDDT 105 (2004), 20; SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO, MISABEL DERZI, Tributação pelo IRPJ e pela CSLL de lucros aufe-ridos por empresas controladas ou coligadas no exterior – inconstitucionalidade do art. 74 da Medida Provisória n.º 2.158-35/01, RDDT 130 (2006), 135; PAULO FALEIRO FERREIRA, O instituto das Controlled Foreing Corporations – CFC e o ordenamento jurídico brasileiro, RIDT 3 (jan.-jun./2005), 233; JAYR VIÉGAS GAVALDÃO JR., Con-siderações acerca da transparência fi scal internacional e do descompasso da legis-lação brasileira, in MARCELO MAGALHÃES PEIXOTO (org.), Planejamento tributário, São Paulo 2004, 295; MARCIANO SEABRA DE GODOI, O imposto de renda e os lucros auferidos no exterior, in VALDIR DE OLIVEIRA ROCHA (org.), Grandes questões atuais do Direito Tributário, vol. 6, São Paulo 2002, 275; JOSÉ HENRIQUE LONGO, O lucro de subsidiária no exterior e o tratado internacional, in Tributação e processo – IV Con-gresso Nacional de Estudos Tributários, São Paulo 2007, 291; CIRO CESAR OLIVEIRA, Extensão do princípio da universalidade para fi ns de tributação pelo imposto de renda das pessoas jurídicas (IRPJ), RDTI 5 (2007), 9; RICARDO MARIZ DE OLIVEIRA, Lucros de coligadas e controladas no exterior e aspectos de elisão e evasão fi scal no Direito brasileiro e no internacional, RDDT 102 (2004), 95; CLÓVIS PANZARINI FILHO, RAFFAELE RUSSO, A compatibilidade entre as regras de CFC e os tratados internacio-nais, RDTI 3 (jun.-/2006), 9; HELENILSON CUNHA PONTES, A tributação dos lucros do exterior e os tratados para evitar a dupla tributação da renda, in ADILSON RODRIGUES PIRES/HELENO TAVEIRO TÔRRES (org.), Princípios de Direito Financeiro e Tributá-rio – Estudos em homenagem ao Professor RICARDO LOBO TORRES, Rio de Janeiro 2006, 863; JOÃO DÁCIO ROLIM, GILBERTO AYRES MOREIRA, Tributação de lucros aufe-ridos no exterior e limites relativos de normas antielisivas, RDTI 3 (jun.-/2006), 103; RAPHAEL PALMIERI SALOMÃO, Os lucros das empresas nos tratados internacionais destinados a evitar a dupla tributação da renda e do capital, RDTI 8 (abr.-/2008), 97; LUÍS EDUARDO SCHOUERI, Transparência fi scal internacional, proporcionalidade e disponibilidade: considerações acerca do art. 74 da Medida Provisória n.º 2.158-35, RDDT 142 (2007), 39; HELENO TAVEIRA TÔRRES, Lucros auferidos por meio de con-troladas e coligadas no exterior, in HELENO TAVEIRA TÔRRES (org.), Direito Tributário Internacional Aplicado, vol. III, São Paulo 2005, 105; ERICSON AMARAL, Da cone-

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II – Natureza e fundamentos da transparência fi scal Internacional

As medidas adotadas traduzem-se essencialmente em, por fi cção legal, “desconsiderar” a personalidade jurídica das sociedades cuja constituição ou funcionamento tenha sido ou seja inspirada predomi-nantemente por razões de ordem fi scal, consideradas “transparentes” (pass-through entity) em termos de permitir a tributação dos respectivos sócios, como se tivessem auferido diretamente os lucros, sem aguardar pelo momento da distribuição dos lucros entretanto acumulados.

Foi a reforma Kennedy de 1962 que levou mais longe, em maté-ria tributária, a doutrina do piercing the veil of the corporate entity. As disposições (designadas Subpart F do Internal Revenue Code) visaram, na verdade, a combater a forma de elisão fi scal decorrente da utilização de dois tipos de sociedades: as foreign personal holding companies, ou seja, sociedades constituídas no exterior cuja renda seja integrada, ao menos em 90%, por “renda passiva” – juros, aluguéis, royalties – e em que mais de 50% das ações sejam possuídas, direta ou indiretamente, por cinco pessoas físicas sujeitas ao imposto de renda norte-americano; e as controlled foreign corporations (CFC), sociedades cujas receitas sejam constituídas por lucros de comercialização ou de serviços e em que mais de 50% das ações pertençam a cidadãos norte-americanos, possuindo cada um pelo menos 10% do direito de voto8.

Em ambos os casos a lei determinou o afastamento da regra do dife-rimento do imposto (tax deferral) incidente sobre as rendas obtidas no exterior por subsidiárias de sociedades norte-americanas, corolário da separação das suas personalidades jurídicas, segundo o qual tais rendas só serão tributadas, junto dos acionistas, quando os lucros lhes forem efe-tivamente distribuídos sob a forma de dividendos. Ora, nos casos acima referidos, os acionistas serão tributados independentemente da distribui-ção do lucro, isto é, por lucros que juridicamente ainda se inserem na

xão entre a tributação de lucros de controladas e coligadas no exterior, o CPC 02 e a desconsideração dos planejamentos tributários internacionais, in SERGIO ANDRÉ ROCHA (coord.), Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A, vol. II, São Paulo 2010. 205 ss.

8 E daí as legislações que nela se inspiraram passarem a ser denominadas de “Subpart F” ou do tipo “CFC”.

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titularidade da sociedade, cuja personalidade é assim “desconsiderada” para efeitos fi scais9.

O movimento tem-se alastrado de tal modo que grande parte dos Estados-membros da OCDE adotaram legislações do tipo CFC como ins-trumento de preservação de receitas fi scais ameaçadas pela migração de “atividades geografi camente móveis”10.

O exame do Direito Comparado revela que enquanto umas legis-lações atribuem maior relevância ao fato de a sociedade intermediária estar localizada em território de baixa tributação, independentemente da natureza do rendimento por ela auferido (o chamado jurisdictional approach, na terminologia da OCDE), outras (Canadá, Estados Unidos) atribuem preponderância à natueza do rendimento, pretendendo alcan-çar imediatamente certas classes de renda, especialmente os “rendimen-tos passivos”, independentemente do local de domicílio da sociedade intermediária (transactional approach)11.

O primeiro modelo pressupõe a caracterização dos “territórios--alvo” (target territories), via de regra os paraísos fi scais, seja pelo método das listas (black, white e white/gray lists), seja pela exigência de uma alíquota mínima de tributação efetiva comparável ao do país de domicílio da sociedade controladora.

9 U.S. International TaxationBase Company TaxationInternational Business Taxa-tion111; PHILIP A. STOFFREGEN/STEWART R. LIPELES, United States Antiavoidance Mea-sures affecting Multinational Corporations, in DENNIS CAMPBELL (org.), International Tax Planning, 1995, 251; ALEXANDER, Foreign Personal Holding Companies and Foreign Corporations that are Personal Holding Companies, Yale Law Journal 1958, 1173; A. RADO, United States Taxation of Foreign Investment: the New Approach, Amsterdam 1963, 32; BÜHLER, Principios, 186; SCHAUMBURG, Internationales Steuerrecht, 288; E. SANZ GADEA, Transparencia fi scal internacional, Madrid 1996; TULIO ROSEMBUJ, Derecho Fiscal Internacional, Barcelona 2001, 174 ss.

10 Cfr. OCDE, Controlled Foreign Company Legislation, Paris 1996. Entre eles Estados Unidos, Espanha e Suécia. Não têm legislação do tipo CFC a Áustria, a Bélgica, a Holanda, o Luxemburgo e a Suíça. Muito embora de natureza diferente, a reavaliação obrigatória a valores de mercado previsto na lei holandesa tem consequências similares às de um regime CFC. Veja-se o exame destas legislações em TAÍSA MACIEL, Tributação de lucros das controladas e coligadas estrangeiras, Rio de Janeiro 2007, 38 ss.; JOÃO FRANCISCO BIANCO, Transparência fi scal internacional, São Paulo 2007, 28 ss.

11 Cfr. OCDE, Controlled, Foreign Company Legislation, Paris 1996, passim.

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O segundo modelo, por sua vez, pressupõe a determinação dos ren-dimentos em relação aos quais ocorrerá a imputação automática (os “ren-dimentos contaminados” ou tainted income), os quais são via de regra considerados rendimentos passivos (juros, royalties etc.), por oposição aos rendimentos ativos ou empresariais.

A verdade, porém, é que tanto as legislações que se inspiraram num modelo quanto no outro acabaram por se infl uenciar reciprocamente com vistas a aperfeiçoar os seus mecanismos, de tal modo que hoje é pratica-mente impossível descortinar um caso que obedeça, na sua pureza, a um tipo único. Assim, a tendência predominante é de as legislações “CFC” atingirem os rendimentos passivos auferidos por sociedades controladas instaladas em território de baixa tributação12.

A lei brasileira, em matéria de sociedades controladas e coligadas no exterior, adotou um sistema que se afasta do tipo CFC, de caráter excepcional e fi nalidade antielisiva, pois pretende atingir a totalidade do lucro das sociedades controladas ou coligadas no exterior, independente da natureza dos rendimentos que o integram e do nível de tributação do país ou território de seu domicílio. Falta-lhe, pois, o elemento antielisivo e o caráter de providência excepcional, em relação ao regime geral de tributação de controladas e coligadas, que supõe a distribuição de resul-tados. A total inexistência de um elemento “abusivo” relacionado ou com o território de domicílio ou com a natureza do rendimento leva mesmo a afi rmar que não se trata de uma lei “CFC”.

Nesta sistemática o instituto perde as suas características antie-lisivas para se tornar num instrumento antidiferimento, destinado a assegurar a neutralidade da exportação de capitais até às suas últimas consequências13.

Os regimes de tributação em causa têm sido explicados na doutrina de diversos modos: (i) ou como desconsideração da personalidade jurí-dica das controladas ou coligadas estrangeiras, que permitiria ao Fisco nacional “levantar o véu” da personalidade jurídica destas sociedades para atingir diretamente os seus lucros (piercing the veil approach, teo-ria da desconsideração ou do Durchgriff); (ii) ou como uma presunção

12 Cfr. J. F. BIANCO, op. cit., 25 ss.13 J. M. ALMUDÍ CID, El régimen juridico de transparencia fi scal internacional…,

cit., 117.

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legal de distribuição da totalidade do lucro auferido por aquelas socieda-des (fi ctive ou deemed dividend approach ou teoria do dividendo fi cto); (iii) ou como uma desconsideração do seu próprio domicílio estrangeiro, presumindo-as domiciliadas no país da sociedade controladora ou coli-gada; (iv) ou ainda – como nos parece cientifi camente mais correto – recorrendo à ideia de “transparência fi scal internacional” (pass-through entity) das sociedades controladas e coligadas estrangeiras, segundo a qual o lucro destas não lhes é imputado para efeitos fi scais, devendo ape-nas tributar-se os sócios na proporção em que estes participam naquele lucro14.

Tanto a teoria de desconsideração da personalidade jurídica quanto a da transparência fi scal internacional têm de comum permitir à lei igno-rar o intermediário formal representado pela pessoa jurídica estrangeira “aparente” (disregarding, piercing the veil ou lifting the veil of the cor-porate entity – na terminologia anglo-saxônica – ou penetrando – Dur-chgriff – na personalidade jurídica da sociedade – na expressão alemã), para atingir diretamente os seus sócios. Na verdade, sendo a personali-dade jurídica uma criação do direito, um simples instrumento de pros-secução coletiva dos interesses dos sócios, como agudamente o revelou ASCARELLI, tal criação só deve ser consagrada e respeitada na medida em que ela não se revelar, em si mesma, antijurídica. E sendo a perso-nalidade jurídica realidade meramente instrumental não repugna que ela seja considerada para certos fi ns e desconsiderada para outro ou outros.

A nuança entre uma e outra concepção está em que, enquanto o regime de transparência fi scal é obra da lei, a técnica da desconsideração atua casuisticamente por decisão do juiz15. Certo, porém, é que o supe-ramento da personalidade jurídica (e a consequente ‘‘transparência fi scal internacional’’) como técnica de combate à elisão fi scal internacional só é possível nos ordenamentos que contenham disposições que especifi -

14 Cfr. FALCON Y TELLA, Analisis de la transparencia tributaria, Madrid, 1984, 186 ss.; TULIO ROSEMBUJ, Transparencia fi scal internacional. Aspectos críticos (separata da Revista de la Economia Social y de la Empresa, 27/28); ID., Derecho Fiscal Internacional, Barcelona, 2001, 174 ss.

15 Cfr. neste sentido FALCON Y TELLA, Analisis de la transparencia tributaria, Madrid, 1984, 186 ss.; J. M. ALMUDÍ CID, El régimen juridico de transparencia fi scal internacional, cit., 145; J. F. BIANCO, Transparência fi scal internacional, cit., 23.

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camente o autorizem. Nos demais, a questão deverá ser resolvida à luz das regras do direito interno que eventualmente delimitem a liberdade de utilização dos instrumentos facultados pelo direito com o fi m de minorar o ônus fi scal.

Ao contrário do que frequentemente se afi rma, estes regimes não são corolário do princípio da universalidade, que, exigindo a tributação do rendimento mundial das pessoas físicas ou jurídicas (world-wide-income), apenas conduz à tributação dos lucros efetivamente distribuí-dos pelas sociedades participadas estrangeiras, mas não à tributação dos lucros acumulados destas últimas, que são rendimentos próprios delas e não rendimentos das suas investidoras.

Os regimes em causa consagram, ao contrário, uma verdadeira tribu-tação extraterritorial, pois atingem rendimentos de pessoa jurídica estran-geira, tratando-a como se fosse mero estabelecimento permanente destitu-ído de personalidade jurídica, alargando os poderes tributários do Estado de domicílio de sociedade controladora em termos difi cilmente conciliá-veis com as regras básicas dos tratados contra a dupla tributação16.

III – A incompatibilidade com os tratados contra a dupla tributação

A) A incompatibilidade genérica do regime da Lei brasileira com o Art. 7.º dos Tratados.

O regime de transparência fi scal internacional, criado pela Lei n.º 9.249/95, é, como se verá de seguida, incompatível com os tratados con-tra a dupla tributação celebrados pelo Brasil, com base em considerações igualmente aplicáveis ao art. 74 da Medida Provisória n.º 2.158-35/01.

O art. 7.º dos referidos tratados (que seguem a redação do art. 7.º da Convenção Modelo da OCDE) dispõe, no seu § 1.º, que “os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado Contratante por meio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua atividade deste modo, os seus lucros podem ser

16 Cfr. TULIO ROSEMBUJ, Derecho Fiscal Internacional, Barcelona 2001, 203; ID., Transparência fi scal, 21 refere-se a uma ultraterritorialidade ofensiva.

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tributados no outro Estado, mas unicamente na medida em que forem imputáveis a esse estabelecimento permanente”.

Estabelecimento permanente é, nos termos do art. 5.º, § 1.º, dos tratados (seguindo também o art. 5.º da Convenção Modelo da OCDE) “uma instalação fi xa onde a empresa exerça toda ou parte da sua ati-vidade”, compreendendo notadamente um local de direção, uma sucur-sal, um escritório, uma fábrica, uma ofi cina, uma mina ou uma pedreira.

São, pois, “estabelecimentos permanentes”, para efeito dos trata-dos, as sucursais ou fi liais destituídas de personalidade jurídica própria.

Aplicando este preceito ao caso de uma empresa brasileira (EB) que tenha, por exemplo, em Portugal, uma fi lial (FP) ou controlada (CP), podem extrair-se as seguintes conclusões:

a) O Brasil pode tributar os lucros da FP, por esta constituir um estabelecimento permanente no exterior (1ª frase, 2ª parte, do § 1.º);

b) Portugal pode tributar os lucros da FP unicamente na medida em que forem imputáveis a esse estabelecimento (2ª frase do § 1.º);

c) Só Portugal (“competência exclusiva”) pode tributar os lucros auferidos em Portugal pela CP, pois CP é empresa portuguesa (1ª frase, 1ª parte, do § 1.º);

d) O Brasil não pode tributar os lucros auferidos em Portugal pela CP, pois só pode tributar estabelecimentos permanentes no exte-rior e não entidades com personalidade jurídica própria existen-tes no outro Estado.

A confi rmar esta última afi rmação está o § 6.º do art. 5.º dos trata-dos, segundo o qual “o fato de uma sociedade residente de um Estado Contratante controlar ou ser controlada por uma sociedade residente do outro Estado Contratante ou que exerce a sua atividade nesse outro Estado, quer seja através de um estabelecimento estável, quer de outro modo, não é, por si, bastante para fazer de qualquer dessas sociedades estabelecimento permanente da outra”.

Os conceitos de “empresa de um Estado Contratante” e “empresa do outro Estado Contratante” usados no art. 7.º signifi cam, nos termos do art. 3.º, § 1.º, alínea f, “respectivamente, uma empresa explorada por um residente de um Estado Contratante e uma empresa explorada por um residente do outro Estado Contratante”. Quando as empresas adotam a

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forma jurídica de sociedade ou qualquer outra que as permita qualifi car como “pessoas” e, por consequência, como “pessoa residente”, para efei-tos do art. 4.º, ela é automaticamente considerada “empresa do Estado de residência”17. Assim, por exemplo, a sociedade domiciliada em Portugal, controlada por empresa brasileira, é considerada “empresa portuguesa”, só podendo ser tributada por Portugal.

É isto o que resulta também dos Comentários da OCDE (art. 5.º, parágrafo 7.º, item 40):

“It is generally accepted that the existence of a subsidiary company does not, or itself, constitute that subsidiary company a permanent esta-blishement of its parent company. This follows from the principle that, for the purpose of taxation, such a subsidiary company constitutes an inde-pendent legal entity”.

O art. 7.º § 1.º contém, na sua primeira parte, uma norma de reco-nhecimento de competência exclusiva do país em que se encontra domi-ciliada a sociedade controlada, como resulta claramente da expressão literal “só podem ser tributados”18, ao invés da segunda parte do mesmo parágrafo que contém uma norma de competência cumulativa se se tratar, não de pessoa jurídica independente, mas de estabelecimento permanente.

Como recorda OTTMAR BÜHLER19, referida cláusula teve a sua ori-gem em impedir a aplicação, no âmbito das relações internacionais, da chamada “teoria do órgão” (Organtheorie), consagrada em vários países europeus nas primeiras décadas do século XX por infl uência da juris-prudência e da lei alemã de 1934, que concebiam os grupos de socieda-des, baseados numa relação de controle ou domínio, como uma unidade, operando-se na controladora uma consolidação dos ganhos e perdas do grupo. E daí as sociedades controladas serem consideradas meros “órgãos” do conjunto, sendo desconsiderada ou mesmo recusada a sua personalidade jurídica.

17 Cfr. KLAUS VOGEL, On Double Taxation Conventions, 1997, 184.18 Cfr. sobre as normas de reconhecimento de competência exclusiva ALBERTO

XAVEIR, Direito Tributário Internacional do Brasil, cit., 67319 Cfr. BÜHLER, Princípios de Derecho Internacinal Tributário, trad. esp., Madrid,

1968, 133 ss.;

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Como é natural, a tentativa de aplicação desta doutrina à esfera internacional conduziria a uma deslocalização dos poderes tributários dos Estados onde se situam as empresas controladas para o Estado de sociedade controladora, conduzindo a uma plúrima tributação dos mes-mos lucros.

Assim, sobretudo por infl uência dos países anglo-saxônicos, que sustentavam a individualidade jurídica e a tributação autônoma das sub-sidiárias, surgiu a regra de reconhecimento de competência exclusiva ao Estado de localização destas, constante já do Modelo Bilateral de Convenção Tributária da Liga das Nações (Modelo de Londres de 1946) como uma verdadeira “cláusula antiórgão”20.

O objetivo da cláusula de competência exclusiva está, pois, em afi r-mar a supremacia do princípio da separação (Trennungsprinzip) sobre a teoria do órgão, em matéria de controladas e subsidiárias em geral, e impedir que os Estados de domicílio das controladoras tomem em consi-deração, por qualquer forma ou técnica legislativa, os lucros das contro-ladas ou coligadas estrangeiras como base de cálculo dos seus próprios tributos incidentes sobre as sociedades-mãe.

Não é demais insistir em que a cláusula de competência exclusiva do art. 7.º dos tratados constitui o “coração” dos tratados contra a dupla tributação. Sem ela, qualquer tratado fi ca privado de sentido, pois abre as portas a uma guerra fi scal entre Estados, permitindo que a riqueza tributável em uma delas seja objeto de pretensões fi scais cumulativas de outras, invasivas de soberania estrangeira. É o que ocorreria se os Estados Unidos pudessem tributar naquele país os lucros das subsidiárias brasileiras, o Brasil pudesse tributar os lucros das suas controladas na Dinamarca, e até ad infi nitum em todos os elos de uma cadeia vertical de controle.

A incompatibilidade com os tratados contra a dupla tributação decorre ainda de a sistemática por eles adotada apenas prever um mecanismo de eliminação da dupla tributação dos lucros distribuídos quando a tributação ocorre no momento da distribuição, tendo esta como fato gerador, como

20 Dispunha o artigo VIII que os lucros não distribuídos por uma companhia que tem o seu domicílio fi scal em um Estado Contratante não estarão sujeitos a nenhum imposto no outro Estado Contratante em razão do fato de os lucros não distribuídos representarem, no todo ou em parte, rendimento derivado do território do outro Estado.

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sucede com o art. 10 combinado com o art. 23. Essa sistemática não prevê, porém, que a tributação ocorra em momento anterior ao da distribuição efe-tiva, quando ainda são lucros não distribuídos pela pessoa jurídica estran-geira, pelo que a dupla tributação neste caso não tem no tratado sistema de eliminação, que fi ca exclusivamente ao sabor da vontade das leis internas dos Estados em causa.

Por outro lado ainda a desaplicação da regra de competência tribu-tária exclusiva, atribuindo às subsidiárias o mesmo tratamento fi scal dos estabelecimentos permanentes (fi liais ou sucursais) traduz-se na descon-sideração da sua personalidade jurídica e, com isso, na violação do art. 3.º que defi ne o conceito de “pessoa”, não permitindo que um Estado desconsidere a personalidade jurídica outorgada pelo ordenamento jurí-dico do Estado estrangeiro do território da constituição da subsidiária, desde que conforme com aquela defi nição21.

Infringiria, por isso, frontalmente, os tratados qualquer tentativa de aplicação de preceito legal que determinasse a adição à base de cál-culo do imposto (lucro líquido da sociedade brasileira, contribuinte de um Estado) dos lucros próprios da sociedade controlada domiciliada em outro Estado contratante, pois tal signifi caria o Brasil arrogar-se uma competência tributária cumulativa, quando o tratado é expresso em atri-buir ao Estado de domicílio da controlada ou coligada no exterior uma competência tributária exclusiva22.

Note-se, porém, que os tratados contra a dupla tributação não proí-bem que no Brasil sejam tributados dividendos distribuídos por empresas estrangeiras a sócios domiciliados no Brasil.

Com efeito, nos termos da repartição dos poderes tributários dos diversos Estados operada pelas convenções contra a dupla tributação que seguem o modelo da OCDE, procedeu-se a uma nítida distinção entre os lucros das empresas e os dividendos por elas distribuídos. Enquanto os lucros das empresas estão sujeitos à regra da atribuição de competên-

21 Cfr. LUÍS EDUARDO SCHOUERI, Transparência fi scal internacional, proporciona-lidade e disponibilidade, cit., 45; HELENO TAVEIRA TÔRRES, Lucros auferidos por meio de controladas e coligadas no exterior, Direito Tributário Internacional Aplicado, III, 2005, 137 ss.

22 Cfr. LUÍS EDUARDO SCHOUERI, Acordos de bitributação e lei interna – investimen-tos na Ilha da Madeira – efeitos da Lei n.º 9.249/95, RDDT 17 (1997), 110 ss.

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cia tributária exclusiva ao país de domicílio da empresa que os obteve (art. VII da Convenção Modelo), com a consequente exclusão de com-petência do país de domicílio da sociedade que participa no seu capi-tal, os dividendos estão sujeitos à regra de atribuição de competência tributária cumulativa do país de domicílio da empresa que os distribui (país de fonte) e do país de domicílio da empresa que os aufere (país de residência).

E isto porque o lucro da empresa estrangeira, dotada de personali-dade jurídica própria, é renda dessa mesma empresa e não da sua con-troladora, enquanto o dividendo distribuído, tendo embora a sua fonte na empresa estrangeira, é renda do sócio.

Daí que as convenções contra a dupla tributação permitem que tanto o Estado de fonte quanto o Estado de residência exerçam os seus poderes tributários no que concerne aos dividendos, embora com limitações para ambos: o Estado de fonte não poderá tributar a uma alíquota que exceda o limite convencionado e o Estado da residência deverá eliminar a dupla tributação ou pelo método da isenção ou pelo método da imputação, con-forme dispuser o tratado.

Por isso não pode haver dúvidas de que os tratados contra a dupla tributação autorizam a tributação dos dividendos distribuídos por socie-dades controladas ou coligadas, determinando apenas a obrigação para o Brasil de reconhecer em relação a esses dividendos um crédito de imposto ou a sua isenção23.

B) A questão do dividendo fi cto.

A única especifi cidade que a questão da compatibilidade dos tratados com o art. 74 da Medida Provisória n.º 2.158-35 fez surgir é quanto à ques-tão de saber qual o objeto da tributação em face do novo diploma legal e sua consequente qualifi cação à luz das disposições dos tratados.

A doutrina, na sua esmagadora maioria, continuou a manifestar-se no sentido de que o objeto da tributação do art. 74 era precisamente o

23 Cfr. a este respeito o Ato Declaratório n.º 6 da SRF, de 30 de janeiro de 1997, relativo ao anterior tratado com Portugal (1971), bem como nossos comentários na edi-ção anterior deste livro, na pp. 364 e ss.

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mesmo do art. 25 da Lei n.º 9.249/95, ou seja, os lucros das socieda-des controladas e coligadas estrangeiras que, através da adição ao lucro líquido da sociedade brasileira, passaram a constituir base de cálculo do tributo sobre ela incidente.

Todavia, a teoria concebida em face de certas legislações estrangei-ras de que a tributação teria por objeto um dividendo fi cto (deemed divi-dend) acabou tendo ressonância no Brasil baseada na própria expressão do legislador segundo a qual os lucros das sociedades estrangeiras “serão considerados disponibilizados” para a sociedade brasileira por ocasião da sua apuração no balanço.

Os defensores desta tese argumentam que, se tratando de um lucro fi cticiamente disponibilizado, a sua qualifi cação perante os tratados internacionais seria a de dividendo, submetido ao art. 10 da Convenção Modelo, e não a de lucro, submetido ao art. 7.º24.

Tal qualifi cação arrastaria como consequência a plena competên-cia tributária do Brasil, pois enquanto o art. 7.º contém uma cláusula de reconhecimento de competência tributária excluviva do Estado de origem do lucro o art. 10 consagra uma norma de reconhecimento de competência tributária cumulativa, tanto do país da fonte quanto do país de residência25.

24 Esta interpretação foi adotada no Acórdão n.º 108-08-765, do Conselho de Con-tribuintes de 23.03.2006 por infl uência do voto do Conselheiro JOSÉ HENRIQUE LONGO, e tem sido posteriormente manifestada em votos minoritários. Em artigo científi co publi-cado posteriormente, o mesmo Conselheiro reiterou o seu ponto de vista, sustentando que o art. 74 da Medida Provisória n.º 2.158-35/01 tem por objeto o lucro propriamente dito da controlada ou coligada no exterior, mas logo acrescenta “que, para efeito da incidência do IRPJ e da CSL, e mediante alteração do conteúdo do conceito, devem ser considera-dos como dividendos”. Cfr. JOSÉ HENRIQUE LONGO, O lucro de subsidiária no exterior e o tratado internacional, in Tributação e processo – IV Congresso Nacional de Estudos Tributários, São Paulo, 2007, 291. A tese já tinha sido suscitada, no curso do julgamento, ainda que de forma não conclusiva, no Acórdão n.º 101-95.802, de 19.10.2006.

25 Cfr. O Acórdão n.º 107-07.532, de 18.02.2004, do então Primeiro Conselho de Contribuintes, apreciando a questão da compatibilidade da lei interna com o Tratado Brasil-Portugal, concluiu precisamente no sentido de ser incompatível o regime do art. 25 da Lei n.º 9.249/95 em face da regra de competência exclusiva do art. 7.º do Tratado e compatível o regime do art. 1.º da Lei n.º 9.532/97, em face da regra de competência cumulativa do art. 10 do mesmo diploma.

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Esta construção não merece, porém, acolhimento por várias ordens de razões.

A principal crítica que deve ser dirigida a este entendimento está em que a lei interna que fundamenta a tributação (o art. 25 da Lei 9.249/95, para o qual remete o art. 74 da Medida Provisória n.º 2158-35/01) não permite a referida construção, eis que alude à adição ao lucro da pessoa jurídica brasileira dos próprios lucros auferidos por controladas e coli-gadas no exterior, independentemente de serem pagos ou creditados. A fi cção de disponibilização mais não signifi ca do que a determinação do momento temporal que esse cômputo se deve verifi car, não tendo o con-dão de alterar a natureza do objeto da tributação.

Que a lei interna trata de uma tributação de lucro e não de dividen-dos é confi rmado pelo fato de os lucros serem computados pelos seus valores integrais, sem dedução do imposto pago do país de origem. Ora, não se distribuem dividendos em valor superior ao lucro disponível após a tributação26.

Ainda, porém, que a lei interna consagrasse a tributação de um “dividendo fi cto”, não poderia ela prevalecer em face do conceito de dividendo consagrado nos tratados contra a dupla tributação (art. 10, § 1.º). A letra destes (em conformidade, aliás, com a Convenção Modelo da OCDE) se refere a dividendos “pagos”, expressão que revela ine-quivocamente a vontade de o regime de competência cumulativa nela consagrado apenas se aplicar a rendimentos efetivamente destacados do patrimônio das sociedades e transferidos para o de seus sócios, não per-mitindo uma interpretação ampla que abrangesse lucros não distribuídos imputados por mera fi cção legal27.

Acresce que a teoria geral do direito ensina ser ilegítimo o emprego, por uma fonte de direito, do mecanismo das fi cções ou presunções legais (como o dividendo fi cto) para invadir a esfera de competência de outra fonte, delimitada em razão da hierarquia ou da especialidade (como

26 Cfr. art. 1.º, § 7.º, da Instrução Normativa n.º 213/02. O art. 201 da Lei das S/A afi rma que a companhia pode pagar dividendos à conta de lucro líquido e o art. 191 dispõe que este é o resultado do exercício que remanescer depois de deduzidas as parti-cipações do art. 190 e, antes destas, os prejuízos acumulados e a provisão para o imposto de renda (art. 189).

27 Cfr. neste sentido J. F. BIANCO, Transparência fi scal internacional, cit., 152, 157.

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sucede com os tratados), com vista a evitar, de modo indireto ou oblíquo, a prevalência da sua aplicação. Nada mais fácil para burlar as disposi-ções dos tratados do que criar, por lei interna, fi cções legais que estabele-çam exatamente o contrário do disposto nos preceitos convencionais. E é precisamente a este resultado que conduz a doutrina do dividendo fi cto.

Não é demais recordar que a cláusula de competência tributária exclusiva do país estrangeiro de domicílio da controlada ou coligada (e simetricamente de exclusão de competência do país de sociedade inves-tidora), constante do art. 7.º da Convenção Modelo da OCDE, é o “cora-ção dos tratados”. Sem ela estaria permitida toda a sorte de guerra fi scal unilateral pelo qual os Estados se arrogassem o poder de taxar empresas estrangeiras, invadindo espaços de soberania alheios.

C) A questão das controladas indiretas

Coloca-se ainda a questão de saber qual o alcance da proteção con-ferida pelo art. 7.º dos tratados nos casos em que a sociedade controlada no exterior detém participações em outras controladas ou coligadas em terceiros Estados.

Certos setores da jurisprudência administrativa já sustentaram que, “para fi ns de aplicação do art. 74 da Medida Provisória n.º 2.158-35, os lucros de controladas indiretas consideram-se auferidos diretamente pela investidora brasileira, e sua tributação no Brasil não se submete às regras do tratado internacional fi rmado com o país de residência da controlada direta”28.

De acordo com referido entendimento, a proteção conferida pelo art. 7.º dos tratados contra a dupla tributação limita-se aos lucros direta-mente apurados pela sociedade residente naquele País, não alcançando os lucros das suas próprias controladas e/ou coligadas que, muito embora não distribuídos, eventualmente tenham sido reconhecidos no balanço em razão da aplicação do método da equivalência patrimonial.

O entendimento em questão assenta nas seguintes premissas:

28 Cfr. Acórdão do Conselho de Contribuintes n.º 101-97.070, de 17 de dezembro de 2008.

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(i) o art. 25 da Lei n.º 9.249/95 instituiu a tributação sobre o lucro das controladas no exterior;

(ii) o conceito de sociedade controlada da legislação societária (art. 243, § 2.º, da Lei n.º 6.404/76) abrange qualquer socie-dade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas, exerça o poder de controle;

(iii) o art. 16 da Lei n.º 9.430/96 determina que “os lucros auferidos por fi liais, sucursais, controladas e coligadas no exterior, serão: I – considerados de forma individualizada, por fi lial, sucursal, controlada ou coligada”;

(iv) o art. 7.º dos tratados contra a dupla tributação (no caso con-creto o Tratado com a Espanha) proíbe a tributação pelo Estado de residência (no caso o Brasil) dos lucros de sociedades resi-dentes no Estado da fonte (no caso a Espanha);

(v) como a adição ao lucro real da sociedade controladora no Bra-sil faz-se diretamente sobre os lucros de todas as controladas, ainda que indiretas, referida proteção dar-se-á apenas sobre os lucros obtidos diretamente pela sociedade residente no país que tenha celebrado tratado contra a dupla tributação com o Brasil (no caso a Espanha), não alcançando eventuais lucros das controladas indiretas, cuja suscetibilidade de tributação dependerá da existência ou não de tratado com o respectivo país de domicílio.

As premissas em que este entendimento assenta são, porém, equi-vocadas.

A afi rmação segundo a qual o conceito de sociedade controlada, adotado pela Lei n.º 6.404/76, abrange não só as controladas diretas mas também as indiretas é indiscutivelmente exata, mas daí a permitir a con-clusão de que o art. 74 da Medida Provisória n.º 2.158-35 impõe a adição dos lucros das controladas indiretas ao lucro líquido da controladora bra-sileira, para efeitos do art. 25 da Lei n.º 9.249/95 (para o qual remete o art. 74), vai uma grande distância, constituindo um salto lógico, simplista e sedutor pela sua aparente literalidade, mas que o sistema jurídico não admite.

Antes de mais, a expressão “controlada”, utilizada no art. 74, não pode ser interpretada de modo desgarrado, pois ela se encontra sistema-

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ticamente relacionada na mesma proposição normativa com o conceito de “lucro disponibilizado”.

Ora está bem de ver que lucro disponível é, por defi nição, aquele que a lei permite à controlada disponibilizar à controladora brasileira, caso esta, no exercício do seu poder de controle, delibere pela sua dispo-nibilização. Com efeito, só em relação a estes lucros se aplica a lógica do regime de transparência fi scal internacional, que tributa imediatamente junto dos sócios os lucros que estes poderiam ter determinado a distri-buição, mas por ato de sua exclusiva vontade não o fi zeram. Mas já não poderão ser tributados nas mãos dos sócios lucros que, devido às cir-cunstâncias do caso concreto, poderão ser insuscetíveis de disponibiliza-ção, como sucede com os lucros de controladas indiretas, notadamente na hipótese de serem absorvidos por perdas de sociedades intermédias situa das em degraus ascendentes da cadeia de controle e outras circuns-tâncias, como adiante se verá.

A questão de saber que lucros são disponibilizáveis para uma socie-dade controladora brasileira – se apenas os lucros da controlada indireta estrangeira ou se também, per saltum, os lucros das controladas indire-tas, por esta controladas – deve ser resolvida em face do direito brasi-leiro. É o que determina o § 2.º, inciso I, do art. 25 da Lei n.º 9.249/95 (para o qual remete o art. 74): “As fi liais, sucursais e controladas deverão demonstrar a apuração dos lucros que auferirem em cada um de seus exercícios fi scais, segundo as normas da legislação brasileira”.

Ora, a lei brasileira apenas permite a distribuição de lucros de uma sociedade a quem for sócio (Código Civil, art. 997, VII, e art. 1007), sendo nula qualquer deliberação que tenha como destinatários terceiros, inclusive os sócios de sócios29.

A regra segundo a qual os lucros auferidos por fi liais controladas e coligadas no exterior serão considerados de forma individualizada (art. 16 da Lei n.º 9.430/96) signifi ca apenas que os prejuízos apurados por uma controlada ou coligada, no exterior, somente poderão ser compensados com lucros dessa mesma controlada ou coligada (Instrução Normativa

29 Veja-se o art. 205 da Lei das S/A: “A companhia pagará o dividendo de ações nominativas à pessoa que, na data do ato de declaração do dividendo, estiver inscrita como proprietária ou usufrutuária da ação”.

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n.º 213/02, art. 4.º, § 2.º), não podendo consequentemente ser compensa-dos com lucros de outras controladas e coligadas no exterior, nem com lucros da sociedade investidora domiciliada no Brasil (art. 25, § 5.º, da Lei n.º 9.249/95).

É o que também esclarece o § 5.º do art. 1.º da Instrução Normativa n.º 213/02, segundo o qual, “para efeito de tributação no Brasil, os lucros serão computados na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, de forma individualizada, por fi lial, sucursal, controlada ou coli-gada, vedada a consolidação dos valores, ainda que todas as entidades estejam localizadas em um mesmo país, sendo admitida a compensação de lucros e prejuízos conforme disposto no § 5.º do art. 4.º desta Instru-ção Normativa”.

Vedou-se, pois, a consolidação horizontal.No que concerne à consolidação vertical, os princípios do direito

societário brasileiro foram corretamente interpretados pelo § 6.º do art. 1.º da referida Instrução Normativa n.º 213, que dispõe que “os resulta-dos auferidos por intermédio de outra pessoa jurídica, na qual a fi lial, sucursal, controlada ou coligada no exterior, mantenha qualquer tipo de participação societária, ainda que indiretamente, serão consolidados no balanço da fi lial, sucursal, controlada ou coligada para efeito de deter-minação do lucro real e da base de cálculo da CSLL da benefi ciária no Brasil”.

Signifi ca isto que os lucros das controladas indiretas não podem ser adicionados per saltum ao lucro da sociedade brasileira; antes devem ser consolidados gradativamente, por níveis ou degraus da cadeia ver-tical, em cada um dos quais serão considerados como componentes do lucro de cada controladora intermédia, a ser apurado de “forma indi-vidualizada”. E assim sucessivamente na cadeia ascendente, até que a consolidação opere no nível da primeira controlada direta estrangeira, quando então o lucro (ou prejuízo) próprio desta será adicionado ao da controladora brasileira, como determina o art. 74 da Medida Provisória n.º 2.158-35.

Tal consolidação vertical se faz em reconhecimento, no plano fi s-cal, de que no direito societário brasileiro não há uma participação direta da controladora no Brasil nos resultados de controlada ou coligada indi-reta, mas apenas através da necessária intermediação da pessoa jurídica interposta, pelo que os resultados individuais desta têm de ser necessa-

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riamente considerados para efeitos de determinar a matéria tributável no Brasil30.

Este é o sistema de reconhecimento do lucro numa cadeia vertical de participações consagrado pela lei brasileira e que deve ser obedecido no regime de transparência fi scal internacional.

Neste sistema, os lucros das controladas indiretas não podem ser considerados disponibilizados per saltum para a controladora brasileira e junto a ela tributados, pois tal tributação poderá estar incidindo sobre um resultado que jamais chegará às mãos daquela controladora.

Tal ocorrerá na hipótese de existência de prejuízos ou perdas em sociedades estrangeiras situadas em degraus mais elevados do elo socie-tário, que absorverão referidos lucros, e ainda na hipótese de o controla-dor brasileiro alienar a participação na primeira controlada estrangeira, quando deixa ipso iure de ter qualquer vínculo jurídico com as contro-ladas indiretas legitimador de uma disponibilização, eis que sua relação societária passa necessariamente pela primeira controlada.

Note-se que a lei poderia ter determinado que a consolidação dos lucros das controladas e coligadas estrangeiras operasse diretamente no balanço da controladora no Brasil, mas ao invés disso optou por conso-lidar os resultados ao nível da primeira controlada estrangeira, afastando assim qualquer infl uência que os resultados individuais da controladora brasileira pudessem ter sobre os resultados consolidados da cadeia de participações no exterior.

Ao determinar, porém, a consolidação ao nível da controlada direta estrangeira e não da controladora brasileira, a lei reconheceu que apenas os resultados dessa primeira controlada (no qual se inserem os resultados das demais) é que são passíveis de tributação no Brasil, pois só estes podem ser efetivamente disponibilizados sob a forma de dividendos. Ora, como se disse, é apenas em relação aos lucros disponibilizáveis que se aplica o sistema de tributação automática do art. 74 da Medida Provisória n.º 2.158-35.

Logo, a tributação no Brasil de lucros de uma controlada indireta no exterior per saltum da primeira controlada direta representa verdadeira ofensa ao art. 43 do Código Tributário Nacional, na medida em que se

30 O § 6.º da Instrução Normativa n.º 213 não é, pois, mera “norma técnica de arre-cadação”, mas disposição que contém a única interpretação possível da lei.

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está tributando o patrimônio da controladora, tomando-se por base renda alheia, que no máximo constitui expectativa de renda para a controlada direta, mas jamais para a controladora no Brasil.

A incongruência lógica da interpretação para a qual deve ser feita a adição per saltum dos lucros das controladas indiretas fi ca bem eviden-ciada pela circunstância de que tais lucros seriam protegidos pelo tratado que protege a primeira controlada direta, caso lhes tivessem sido efetiva-mente distribuídos, compondo então o lucro próprio desta.

Assim, de harmonia com a referida interpretação, os mesmos lucros das controladas indiretas fi carão sujeitos a regimes de tributação distin-tos consoante tenham sido distribuídos ou não para a sua controladora direta. Caso tivessem sido distribuídos, passarão a ser considerados pelo Brasil como lucros da própria controlada direta e, em virtude do art. 7.º dos tratados, impedidos de serem tributados pelo Brasil enquanto, por outro lado, se forem retidos na controlada indireta domiciliada num ter-ceiro Estado sem tratado com o Brasil (v.g. Estados Unidos), poderão (sempre na mesma interpretação) ser integral e imediatamente tributados pelo Brasil, independentemente da sua efetiva distribuição.

Imagine-se agora que a controlada direta domiciliada num país com tratado com o Brasil (v.g. Espanha) tenha registrado prejuízos ao longo do exercício e que os lucros da sociedade norte-americana sua controlada são distribuídos para neutralizar as perdas, fazendo com que se registre um resultado nulo.

Nesse caso, o Brasil terá tributado integral e antecipadamente um lucro que nunca lhe pertenceu e que jamais lhe pertencerá. O absurdo fala por si só.

É certo que algumas legislações CFC propriamente ditas permitem que o país da sociedade controladora inclua na sua base tributável rendi-mentos auferidos por controladas indiretas. Deve, porém, ter-se presente que tais legislações têm por objeto apenas certas classes de rendimen-tos, os “rendimentos passivos”, e não, como a lei brasileira, “lucros” em sentido técnico, os quais pela sua própria natureza só podem ascender até à sociedade controladora por meio de distribuições às controladas intermédias.

Pode, pois, concluir-se que o objeto exclusivo da tributação pelo art. 74 da Medida Provisória n.º 2.158-35 é o lucro da primeira contro-lada direta estrangeira, após a consolidação vertical, de tal modo que, se

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esta estiver domiciliada em país signatário de tratado, o art. 7.º abrange a totalidade desse lucro sem qualquer distinção quanto à sua origem.

D) A incompatibilidade com cláusulas especiais de certos tratados

Além da incompatibilidade genérica do regime de tributação auto-mática do art. 25 da Lei n.º 2.949/95 (e do art. 74 da Medida Provisória n.º 2158-35/01) com o art. 7.º dos tratados, existem ainda incompatibili-dades específi cas com outras cláusulas convencionais consagradas ape-nas em tratados celebrados com certos países.

É o que se passa com a cláusula de intributabilidade de lucros não distribuídos, prevista especifi camente nos Tratados com a Dinamarca e com as Repúblicas Tcheca e Eslovaca (art. 23, § 5.º), segundo a qual “os lucros não distribuídos de uma sociedade anônima de um Estado Con-tratante cujo capital pertencer ou for controlado, total ou parcialmente, direta ou indiretamente, por um ou mais residentes de outro Estado Con-tratante não são tributáveis no último Estado”31.

Trata-se de simples corolário implícito do § 1.º do art. 7.º, pois os lucros não distribuídos de uma sociedade controlada domiciliada num Estado são lucros próprios desta e não renda da sua controlada domici-liada no outro Estado. A reafi rmação solene deste princípio na cláusula relativa aos métodos para a eliminação da dupla tributação veio dissipar dúvidas que pudessem existir sobre se a competência tributária exclusiva do país de domicílio de uma sociedade podia ser abalada pela existência de uma relação de controle com sociedade de Estado estrangeiro.

Outro tipo de cláusula com a qual o regime brasileiro de transpa-rência fi scal internacional é incompatível é a cláusula de isenção de divi-dendos distribuídos a sociedades brasileiras por sociedades estrangeiras.

Esta cláusula encontra-se prevista nos Tratados com a Áustria (art. 23, § 2.º), a Argentina (art. XXIII, § 2.º), o Equador (art. XXIII, § 2.º), a Espanha (art. 23, § 4.º) e a Índia (art. 23, § 3.º). O Tratado com a Áus-tria exige que a sociedade brasileira possua no mínimo 25% do capital

31 A disposição do tratado com a então Tchecoslováquia não alude à exigência de tratar-se de “sociedade anônima”, a qual nos parece apenas basear-se numa interpretação restritiva da versão em língua portuguesa.

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da distribuidora; os Tratados com a Argentina e o Equador fi xam esse percentual em 10%; os Tratados com a Espanha e a Índia exigem apenas como condição que os dividendos sejam tributáveis no país da fonte.

Trata-se, na verdade, de incompatibilidade lógica entre a lei interna e o tratado, pois a isenção do dividendo não pode coexistir com a tribu-tação dos lucros que lhe deram origem. Esta incompatibilidade se evi-dencia pelo fato de que os dividendos, cuja isenção é assegurada pelo tratado, já terão sido tributados quando distribuídos, a título de lucros automaticamente adicionados, e o imposto de renda na fonte eventual-mente cobrado pelo país de origem sobre os dividendos não será susce-tível de neutralização por crédito de imposto, conduzindo assim à dupla tributação que o tratado tem precisamente por fi m evitar.

A incompatibilidade atrás referida é reforçada pelas disposições da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, segundo as quais uma parte não pode invocar as disposições do seu direito interno para justifi car o inadimplemento de um tratado (art. 27) e um tratado deve ser interpretado de boa-fé à luz do seu objetivo e fi nalidade (art. 31)32.

E) Cláusulas excepcionais de compatibilização

Tendo em vista a incompatibilidade de princípio do regime de transparência fi scal internacional com os tratados contra a dupla tri-butação, certas convenções introduzem, por vezes, cláusulas de derro-gação a esse princípio, afi rmando que nas relações recíprocas entre os dois Estados o referido regime pode ser aplicado legitimamente.

No que concerne às convenções brasileiras, o único caso é constitu-ído pela Convenção com o México, cujo art. 28, § 3.º, dispõe:

“As disposições da presente Convenção não impedirão que um Estado Contratante aplique as disposições de sua legislação nacional relativa a capitalização insufi ciente ou para combater o diferimento, incluída a legislação de sociedades controladas estrangeiras (legislação CFC) ou outra legislação similar.”

32 Em casos análogos os Comentários da OCDE consideram que disposições deste tipo constituem “obstrução do tratado”. Comentários, art. 10, §§ 5.º e 3.º.

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Tendo em vista a afi rmação, por vezes feita, de que o princípio de não discriminação vedaria a aplicação dos regimes de transparência fi s-cal internacional, outras convenções celebradas pelo Brasil, como as da África do Sul (art. 24, Protocolo, item 6, alínea f), e do Peru (art. 24, Protocolo, item 5, alínea d), esclarecem que as disposições do art. 24, relativo à não discriminação, não impedem um Estado Contratante de aplicar as disposições da sua legislação interna a respeito das sociedades controladas no exterior, do tipo CFC ou similar.

Na verdade, em face dos precisos termos do art. 24 dos tratados que seguem o Modelo OCDE, tanto no § 1.º quanto no § 2.º, não pode afi rmar-se que a legislação brasileira em causa preveja uma tributação diferente ou mais onerosa das sociedades brasileiras controladoras de empresas estrangeiras em função da nacionalidade ou da residência dos titulares do capital da investidora brasileira.

Trata-se, pois, de preceitos meramente declaratórios ou interpreta-tivos que vedam às partes invocar este argumento nas suas relações recí-procas, embora não impeçam de alegar uma eventual incompatibilidade baseada em outros princípios não ressalvados nos protocolos, como a regra da competência exclusiva do art. 7.º.

IV – A incompatibilidade com os tratados na doutrina e na jurispru-dência internacional

A questão da compatibilidade dos regimes de transparência fi scal internacional com os tratados contra a dupla tributação só muito recen-temente chamou a atenção da doutrina e da jurisprudência estrangeira precisamente porque as legislações que os consagram, quase sempre de caráter excepcional e antiabusivo, tinham apenas como alvo controladas domiciliadas em países ou territórios de baixa tributação, que em geral não celebram tratados daquela natureza. Apenas em anos mais próxi-mos passaram a abranger regimes fi scais preferenciais ou privilegiados adotados em países de tributação normal e signatários de ampla rede de tratados.

Tenha-se presente que esta discussão teve por objeto legislações do tipo CFC puro, de natureza antielisiva, e não regimes de tributação automático de caráter geral, como o da lei brasileira, que abstrai tanto da

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natureza do território de domicílio da controlada quanto do rendimento auferido.

No sentido de incompatibilidade da legislação do tipo CFC com os tratados contra a dupla tributação, pronunciaram-se diversos juristas e tribunais.

No Reino Unido PHILIP BAKER33 afi rma:

“The issue also arises with respect to controlled foreign company (“CFC”) legislation which attributes the income of a subsidiary to its parent and taxes the parent on that income. Where the subsidiary is a resi-dent of a treaty state, prima facie this violates Article 7.”

Este é também o ponto de vista suíço, expresso a respeito da legis-lação australiana sobre controlled foreign entities34.

Na França, o Conseil d’Etat confi rmou o julgado da Corte de Ape-lação de Paris, que havia decidido ser o art. 209.º-B do Code Général des Impôts, incompatível com a convenção franco-suíça contra a dupla tributação (caso Schneider), sendo tal entendimento aplicável a todos os tratados contra a dupla tributação assinados pela França que seguem a Convenção Modelo da OCDE35.

A questão foi debatida, de modo amplo, na Espanha, em face do regime de “transparência fi scal internacional” adotado pela Lei n.º 43/1995, de 27 de dezembro, sobre o imposto de sociedades, tendo a generalidade dos doutrinadores opinado pela sua incompatibilidade com os tratados contra a dupla tributação36.

33 Cfr. Double Taxation (2ª ed.), cit., 82.34 Cfr. T. DWYER, The CFC Tax Versus Double Tax Agreements, 1991, Butterworths

Weekly Tax Bulletin (Austrália), par. 813.35 Conseil d’Etat 28 de Junho, SA Schneider Electric.36 Cfr. ESTANISLAO RODRÍGUEZ-PONGA SALAMANCA, Transparencia fi scal internacio-

nal; JOAQUIM DE ARESPACOCHAGA, Planifi cación Fiscal Internacional, Madrid, 1996, 89; LUIS ALBERTO MALVÁREZ PASCUALI, La nueva regulacion del impuesto sobre sociedades – Regimenes speciales, vol. II, Madrid 1996, 255. No mesmo sentido VELASCO PLAZAS, Tributacion internacional en el projecto de ley del impuesto sobre sociedades (comuni-cação ao V Congresso Nacional de Economia); TULIO ROSEMBUJ, Transparência..., 11 ss. e Derecho Fiscal Internacional, cit., 203 ss.; J. M. ALMUDÍ CID, El régimen jurídico de transparencia fi scal internacional, cit., 322 ss.

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No mesmo sentido se pronunciou a esmagadora maioria dos relato-res nacionais da obra coletiva CFC Legislation, Tax treaties and EC Law, coordenada por LANG, EIGNER, SCHEUERLE e STEFANER (2004)37.

Um argumento em favor da compatibilidade das legislações do tipo CFC com os tratados internacionais, invocado nos Comentários da OCDE (art. 7.º, § 13), alega que não se estaria tributando as socieda-des estrangeiras, mas as investidoras nacionais, embora com referência aos lucros das primeiras. E acrescenta-se: “O imposto cobrado por um Estado sobre os seus próprios residentes não reduz os lucros das empre-sas do outro Estado e não se pode, por conseguinte, dizer que foi lançado sobre esses lucros”.

Tal argumento colide, porém, com a letra e o espírito dos tratados, que têm por fi m impedir a dupla tributação do mesmo lucro, ainda que

37 Tem sido também discutida a compatibilidade das regras CFC com os princípios de Direito Comunitário que regem a União Europeia. Está em causa principalmente a questão de saber se o tratamento diferenciado entre residentes e não residentes afeta os princípios da liberdade de estabelecimento, da livre circulação de capitais, do abuso de direito, da não discriminação e da proporcionalidade, tais como formulados na jurispru-dência do Tribunal de Justiça das Comunidades. No tocante à eventual incompatibili-dade das disposições CFC do Reino Unido com as regras e os princípios comunitários, sobretudo com o disposto nos arts. 43.º e 49.º do Tratado, tenha-se presente a decisão do TJCE no Caso Cadbury Schweppes. Neste caso, o TJCE concordou com grande parte das conclusões do Advogado-Geral, concluindo que as legislações nacionais, como a do Reino Unido, relativa às sociedades estrangeiras controladas, estão genericamente em conformidade com o Tratado, na medida em que prossigam o objetivo legítimo de com-bater a fraude ou a evasão fi scal. Todavia, estas regras serão contrárias aos arts. 43.º e 48.º do TCE, quando se apliquem a expedientes que não constituam “expedientes puramente artifi ciais”. Tal como o TJCE salientou, são fatos determinantes para aferir da existência de tais expedientes saber se o contribuinte tem uma intenção subjetiva de obter uma vantagem fi scal estabelecendo-se noutro Estado-membro, se existe um estabelecimento no Estado-membro que prossiga atividades econômicas e se esse estabelecimento dis-põe de uma existência física em termos de instalações, pessoal e equipamento. Contudo, conforme salienta, a questão de determinar se algum expediente em particular é “pura-mente artifi cial” deve ser resolvida nos tribunais domésticos caso a caso. Relativamente à legislação CFC do Reino Unido, são ainda relevantes os seguintes casos: Processo C-201/05, Caso The Test Claimants in the CFC and Dividend Group Litigation e Pro-cesso C-203/05, Caso Vodafone 2. Cfr. SALDANHA SANCHES, Os limites do planeamento, 439 ss. Para maiores esclarecimentos cfr. ALBERTO XAVIER, Direito Tributário Internac-ional (2ª ed.), Coimbra 2007, 427 ss.

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nas mãos de dois sujeitos passivos distintos, reservando a competência tributária exclusiva ao Estado de domicílio das participadas. Acresce que a tributação dos lucros das participadas estrangeiras, consideradas “trans-parentes”, equivale à desconsideração da personalidade jurídica destas últimas, desconsideração esta que os tratados não consentem, tanto mais que eles próprios defi nem o conceito de pessoa como “uma pessoa física, uma sociedade ou qualquer outro agrupamento de pessoas”, não sendo possível a um Estado recusar unilateralmente a personalidade jurídica de uma sociedade regularmente constituída no outro Estado. Enfi m, a argumentação em causa conduziria a que o alcance efetivo da primeira parte do § 1.º e art. 7.º (aliás, o “coração” dos tratados tributários) fi casse esvaziado de conteúdo, pois não se concebe num mundo moderno e civilizado que um Estado se possa arrogar a tributação dos lucros de sociedade estrangeira, que não seja pela adição de seu valor à base de cálculo do imposto incidente sobre a sociedade nele domiciliada, pois de contrário isso signifi caria o exercício extraterritorial de poderes públicos, como o lançamento e a arrecadação, ofensivos da soberania do Estado estrangeiro. Em que casos se poderá verifi car a absurda hipótese, invo-cada pelos Comentários da OCDE, de o imposto de um Estado reduzir os lucros do outro?

Outra linha de argumentação no sentido de que os tratados seriam compatíveis com as legislações CFC consiste em sustentar que essas legislações, na sua essência, consagram uma presunção ou fi cção de distribuição de dividendos, dividendos esses cuja tributação é permitida pelo Modelo OCDE, em termos cumulativos, ao Estado de residência do titular.

Daqui decorreria a pretensa legitimidade da tributação de um “divi-dendo fi ctício”, tal como construído pelos regimes CFC.

E isto porque, como já se disse, enquanto o lucro da empresa estrangeira, dotada de personalidade jurídica própria, é rendimento dessa mesma empresa e não da sua participante (Trennungsprinzip), o divi-dendo, tendo embora a sua fonte na empresa estrangeira, é rendimento próprio da sociedade que participa no seu capital.

O referido argumento parte do princípio – em si mesmo exato – de que nos termos da repartição dos poderes tributários dos Estados operada pelas convenções contra a dupla tributação, que seguem o modelo da OCDE, procedeu-se a uma nítida distinção entre os lucros das empresas e

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os dividendos por elas distribuídos. Enquanto os lucros das empresas estão sujeitos à regra da atribuição de competência tributária exclusiva ao país de domicílio da empresa que os obteve (art. 7.º da Convenção Modelo), com a consequente exclusão de competência do país de domicílio da sociedade que participa no seu capital, os dividendos estão sujeitos à regra de atribui-ção de competência tributária cumulativa do país de domicílio da empresa que os distribui (país de fonte) e do país de domicílio da empresa que os aufere (país de residência) (art. 10 da Convenção Modelo).

A premissa não autoriza, porém, as conclusões, em razão de dois obstáculos decisivos.

O primeiro é de que a letra dos tratados (em conformidade, aliás, com o Modelo OCDE) se refere a dividendos “pagos”, expressão esta que revela a vontade de o regime de competência cumulativa nele consagrado apenas se aplicar a rendimentos efetivamente destacados do patrimônio das sociedades e transferidos para o de seus sócios, não permitindo uma interpretação ampla, sem suporte em nenhum elemento hermenêutico, segundo a qual o conceito convencional de dividendo seria de tal sorte largo que abrangeria lucros imputados abstratamente por presunção ou fi cção legal operada pela lei interna.

O segundo reside em que é ilegítimo o emprego, por uma fonte de direito como a lei interna, do mecanismo das fi cções legais (como acon-teceria no caso presente, em que se alega a existência de um “dividendo fi cto”) para invadir a esfera de competência de outra fonte, o tratado, delimitada em razão da hierarquia ou da especialidade, com vista a evitar de modo indireto ou oblíquo a prevalência da sua aplicação.

Tem-se ainda alegado que o § 5.º do art. 10 do Modelo OCDE seria incompatível com as legislações CFC: “Quando uma sociedade residente de um Estado Contratante obtiver lucros ou rendimentos provenientes de outro Estado Contratante, esse outro Estado não poderá exigir nenhum imposto sobre os dividendos pagos pela sociedade, exceto na medida em que esses dividendos forem pagos a um residente desse outro Estado ou na medida em que a participação geradora dos dividendos estiver efe-tivamente ligada a um estabelecimento permanente situado nesse outro Estado, nem sujeitar os lucros não distribuídos da sociedade a um imposto sobre os lucros não distribuídos, mesmo que os dividendos pagos ou os lucros não distribuídos consistam, total ou parcialmente, em lucros ou rendimentos provenientes desse outro Estado”.

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Quanto a este argumento concordamos com os Comentários da OCDE (art. 10, § 37), segundo os quais o § 5.º do art. 10 trata apenas de tributação na fonte, não tendo qualquer implicação no país de residência, além de que trata apenas de tributação da companhia e não do acionista.

Os Comentários da OCDE ao art. 1.º da Convenção Modelo (art. 1.º, §§ 22 e ss., com remissão ao art. 7.º, § 13, e art. 10, § 7.º) concluem, desde a versão de 1993, pela compatibilidade dos regimes CFC com o Modelo OCDE, e afi rmam que, em consequência, não se torna necessá-rio clarifi car a referida compatibilidade por via de disposição convencio-nal expressa.

E acrescentam – com considerações extrajurídicas de política legis-lativa – que os referidos regimes visam a manter a equidade e a neutra-lidade dessas leis num ambiente internacional caracterizado por muito diversos níveis de tributação. Assim, tais regimes deveriam ser adotados para atingir o referido objetivo, não devendo ser aplicados quando o rendimento por eles tributável estiver sujeito à tributação comparável à do país de residência do contribuinte. Acolhe assim a chamada jurisdic-tional approach.

Seja, porém, como for, o certo é que os Comentários da OCDE, não obstante a sua respeitabilidade, mais não são do que um documento que exprime o entendimento preponderante das Administrações fi scais dos Estados-membros, não sendo vinculante nem para os cidadãos nem para os tribunais.

Acresce que, do ponto de vista jurídico, a argumentação neles expendida, além de sumária38, refl ete ostensivamente o unilateralismo do ponto de vista “pró-governamental”, sendo notória a sua fragilidade científi ca, como atrás se apontou.

Isto levou vários países a exprimirem reservas formais ao referido entendimento, como a Bélgica, afi rmando categoricamente a existência do confl ito. A Irlanda e a Holanda sustentam não ser possível defender a conformidade in abstracto, de tal modo que só em face das circunstân-cias do caso concreto se poderia confi gurar um abuso. Ideia similar foi expressa pela Suíça. Para além do plano puramente jurídico da interpre-

38 “Actually the Commentary expressed the different views of the administrations of the OECD countries without providing many arguments” (destaque nosso). Cfr. LANG e outros, CFC Legislations…, cit., 29.

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tação dos tratados existentes, pode até admitir-se que, mediante cláusula expressa de um tratado, ambos os Estados reconheçam uma derrogação à regra de competência exclusiva do art. 7.º em casos excepcionais e por concretas razões antielisivas, como é o caso das legislações CFC propriamente ditas, que apenas abrangem certos territórios e certos tipos de rendimentos. E talvez seja até neste sentido político que a OCDE tem afi rmado, em termos mais ou menos felizes, se não uma verdadeira compatibilidade, pelo menos a possibilidade de coexistência a título de regime excepcional. Esta compatibilidade é, porém, ininvocável em face de uma legislação, como a brasileira, que contém a disciplina regra de tributação automática de sociedades controladas estrangeiras, sendo destituída de caráter excepcional ou fi nalidade antielisiva. E, em termos gerais, não pode ser pretendida na ausência de cláusula convencional expressa, dada a inexistência de um princípio geral antiabuso implícito nos tratados contra a dupla tributação.

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Heleno Taveira Tôrres

Interpretação das normas tributárias

Heleno Taveira Tôrres

Professor e Livre Docente de Direito Tributárioda Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP.

Doutor em Direito Tributário (PUC-SP). Advogado.

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RESUMO

A interpretação das normas tributárias sofreu profundas mudanças nos últimos anos, quanto às funções, princípios aplicáveis e metodologia. Na comunidade dos intér-pretes tributários, os contribuintes assumiram papel de preponderância e, nesse sentido, a conformação de condutas à legalidade deve ser norteada por uma renovada concepção hermenêutica que não se confi ne à doutrina da “única resposta correta”. A interpretação do sistema tributário no constitucionalismo do Estado Democrático de Direito deve ser baseado na proteção da dignidade da pessoa e no exercício permanente do princípio--garantia da segurança jurídica. Nesse propósito de realização de uma tributação justa, a compreensão da interpretação das leis tributárias deve assumir a argumentação segundo princípios – com destaque para a boa fé – como método de notável dimensão prática, como um instrumento seguro para a aplicação dos tributos. A escolha da melhor decisão deve ser uma opção pela mais adequada aos padrões de conformidade com os valores constitucionais, tudo com a fi nalidade de afastar o arbítrio da relação tributária e instaurar uma tributação pautada pela proteção da cidadania, da igualdade e da segurança jurídica.

Palavras-chave: Direito Tributário, Hermenêutica jurídica, Interpretação das leis tributárias Argumentação, Segurança jurídica, Boa fé, legalidade tributária

ABSTRACT

The interpretation of tax rules has undergone profound changes over the past years in respect to its functions, applicable principles and methodology. Specifi cally in relation to the tax law interpretation community, taxpayers have adopted a predominant role and, in this regard, conduct conformity to legal standards is to be guided by a renewed her-meneutical concept that is not limited to the doctrine of “a single correct answer”. The interpretation of the tax system within the constitutionalism of a Democratic State is to be based on the protection of one’s dignity and on the permanent exercise of the legal certainty principle. In order to achieve an equitable taxation, tax law interpretation is to be conducted in accordance with principles – in particular, the principle of good faith – as a method of remarkable practical magnitude, and as a safe tool for the application of taxes. The choice for the best decision is to be made by opting for the most adequate one in relation to its conformity to constitutional principles, all of which aiming to rule out arbitrariness in tax matters and set up a tax regime grounded on the protection of citizenship, equality and legal certainty.

Keywords: Tax Law, Legal hermeneutics, Interpretation of tax rules Debate, Legal certainty, Good faith, Tax lawfulness

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1. Interpretação do direito tributário como hermenêutica da segu-rança jurídica

A interpretação das normas tributárias tem particularidades que não são destacadas em nenhum outro ramo do direito, sem que isso signifi que qualquer distinção de tratamento sobre os destinatários de suas normas--resultado. A presença do Estado na cobrança dos tributos e o exercício permanente dos direitos fundamentais dos indivíduos, por si só, já exige uma interpretação constitucional, o que se há de somar à interpretação do direito privado ou do direito público de regência dos fatos tributáveis para que, numa composição unitária, possa-se realizar uma interpretação das normas tributárias com coesão sistêmica e concordância prática entre meios e fi ns.

A segurança jurídica é um princípio expresso em nossa Consti-tuição, no seu preâmbulo, no artigo. 5.º caput e em várias disposições autônomas. Trata-se de uma garantia lato sensu que, juntamente com suas garantias específi cas, como as proteções ao devido processo legal, à coisa julgada e outras, permite a efetividade do Estado Democrático de Direito e a concretização dos direitos e liberdades fundamentais. Dentre estes, a dignidade da pessoa humana ganha espaço preponderante, pois o mínimo de dignidade consiste justamente na preservação da confi ança e da boa fé na atuação dos poderes e, em especial, nos que exercem a inter-pretação da legalidade. Se a segurança jurídica na função certeza tem a legalidade como fundamento, a segurança jurídica na função igualdade1 tem a confi ança e a dignidade da pessoa humana como bases fundamen-tais para determinação das suas conseqüências.

E, ao mesmo tempo que a garantia de segurança jurídica deve pro-teger o direito fundamental da dignidade da pessoa humana, o exercício ou efetividade deste pressupõe a segurança jurídica como conteúdo. Por isso, de nada adiantaria o ordenamento constitucional proteger a digni-dade da pessoa humana como princípio fundamental (art. 1.º, da CF) se, a um só tempo, não contemplasse a segurança jurídica como seu conte-údo mínimo (i) e adotasse garantias de segurança jurídica à efetividade daquele princípio preambular (ii).

1 Sobre a igualdade como garantia e como direito fundamental protegido pela segurança jurídica, veja-se: CERRI, Augusto. L’eguaglianza. Itália: Laterza, 2005. 155p.

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Diogo Leite de Campos e Mônica Leite de Campos, com muita pro-priedade, observam que a aplicação das normas tributárias pela Admi-nistração tende permanentemente à “insegurança” jurídica, o que exige controles, porquanto a ausência de univocidade e de determinabilidade dos textos normativos impõe que a intermediação de qualquer intérprete seja controlada, mormente aquela da Administração, de quem se exige imparcialidade, impessoalidade e objetividade.2 Essa percepção é fun-damental para entender o papel da interpretação como instrumento de concretização dos princípios de certeza e de segurança jurídica no direito tributário.

Logicamente, a prática cada vez mais numerosa de procedimentos administrativos transferidos ao contribuinte, para que este interprete a lei e a cumpra do melhor modo possível, estabelece uma condição deste como “intérprete” permanente e necessário das leis tributárias, de tal forma que já não cabe falar de “intérprete autêntico” ou de privilégios da Administração na ação de interpretar e aplicar a lei tributária. Todos – Fisco e contribuintes – são intérpretes qualifi cados da comunidade her-menêutica do Direito Tributário, que se constitui em torno do regime jurídico dos tributos exigidos de determinados sujeitos passivos.

Nessa comunidade interpretativa,3 afastada a limitação dos “intér-pretes” (quem pode interpretar), a ação criativa de signifi cados, que é a

2 CAMPOS, Diogo Leite de; CAMPOS, Mônica Horta Neves Leite de. Direito tri-butário. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 227-228; ver ainda: TRIVELLIN, Mauro. Il principio di buona fede nel rapporto tributario. Milano: Giuffrè, 2009, 405p. Para uma refl exão crítica: AINIS, Michele. La legge oscura – come e perché non funziona. Bari: Laterza, 2000, 223p.; Cf. MELIS, Giuseppe. L’Interpretazione nel diritto tributario. Padova: CEDAM, 2003. 784p.; PIRES, Manuel; DOURADO, Ana Paula. O princípio da legalidade fi scal: tipicidade, conceitos jurídicos indeterminados e margem de livre apre-ciação. Coimbra: Almedina, 2007. p. 425 e ss.; PIRES, Rita Calçada. Direito fi scal. 4ª ed., Lisboa: Almedina, 2010, p. 119. MORSE, Geoffrey; PALMA, Clotilde Celorico. Introdução ao imposto sobre o valor acrescentado. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2008. p. 32. WIL-LIAMS, David. Davies: principles of tax law. 5. ed. London: Sweet & Maxwell, 2004. p. 42. LUPI, Raffaello. La normativa e le sue interpretazioni. In: Diritto tributario: oggetto economico e metodo giuridico nella teoria della tassazione analitico-aziendale. Milano: Giuffré, 2009. p. 139 e ss.

3 “Ciò dimostra la presenza di una comunità interpretativa, in cui l’interdipen-denza dei partecipanti non è fondata soltanto sull’esigenza fattuale di cooperare, ma anche e soprattutto sulla condivisione di valori comuni. Questa comunanza si esercita,

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interpretação, pode ser entendida como “atividade” (método) que recai sobre textos e fatos (os objetos da interpretação), e como “resultado”, na forma de decisão, nas suas distintas possibilidades de elaborações normativas, defesa a contradição com o sistema de princípios e valores constitucionais, os quais servem de critérios de controle sistêmico.

É bem verdade que o próprio ordenamento pode limitar ou delimi-tar essa comunidade interpretativa quanto à efi cácia vinculante das deci-sões, mas nunca no que concerne à capacidade de “interpretar”. Porém, é incontestável que ao tempo que a lei atribui ao contribuinte deveres de aplicação da legislação tributária, integra-os à comunidade dos intér-pretes habilitados e, com isso, à aplicação que estes façam da legislação deve-se atribuir caráter vinculante aos atos praticados (liquidações, com-pensações etc), desde que a interpretação esteja conforme à legalidade, ou coerente com o ordenamento.

Não temos o objetivo de esgotar o tema da interpretação das normas jurídicas nesse curto texto, mas, sim apresentar os pressupostos que nos deve guiar quando falarmos em interpretação de normas tributárias, 4 i.e., no procedimento que os sujeitos devem adotar na criação de senti-dos normativos, a partir dos textos e enunciados lingüísticos expedidos pelos órgãos competentes que tenham como objeto matéria tributária ou de direito privado, no âmbito do círculo hermenêutico da comunidade de intérpretes do Direito Tributário, sob a égide do constitucionalismo de valores do Estado Democrático de Direito.

Nesse paradigma da comunidade de intérpretes das leis tributárias,5 novos valores assumem preponderância com fundamental importância.

poi, secondo attività interpretative, perché si tratta d’inscrivere i casi concreti all’interno di questo orizzonte di senso e, al contempo, di rafforzare e sviluppare quest’ultimo attra-verso le applicazioni concrete.” VIOLA, F. ZACCARIA, G. Diritto e interpretazione: linea-menti di teoria emerneutica del diritto. Bari: Laterza, 2004. P. 72.

4 Cf. AGRON, Laure. Histoire du vocabulaire fi scal. Paris: LGDJ, 2000. p. 381 e ss.; GENY, François. Méthode d’interpétation et sources en droit privé positif, Paris: LGDJ, 1919, T. 1, 446 p.; LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 2.ª ed., Lisboa: C. Gulbenkian, 1989, 620 p.; ZACCARIA, Giuseppe. Ermeneutica e giurisprudenza: saggio sulla metodologia di Josef Esser. Milano: Giuffrè, 1984, 227 p.

5 Nas suas variadas formas. Cf. PELLETIER, Marc. Les normes du droit fi scal. Paris: Dalloz, 2008. 593p.

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Falo do exame necessário da boa fé do contribuinte,6 da proteção da confi ança legítima, da transparência das informações e da proibição de excesso nos controles da Administração.7 A liberdade de interpretar con-vive com as dúvidas, com as imprecisões e a ambiguidade própria dos

6 Como faz notar Diogo Leite de Campos: “A boa fé não é um ‘mais’ a juntar ao procedimento administrativo, mas de algo que está no seu cerne: o procedimento administrativo não é legal se não estiver impregnado de boa fé.” CAMPOS, Diogo Leite de; CAMPOS, Mônica Horta Neves Leite de. Direito tributário. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 236; Cf. RAIMBAULT, Philippe. Recherche sur la sécurité juridique en droit administratif français. Paris: LGDJ, 2009, p. 364 e ss; ARCOS RAMÍREZ, Fede-rico. La seguridad jurídica. Una teoría formal. Madrid: Dykinson, 2000. p. 217; RAI-TIO, Juha. The principle of legal certainty in EC law. Netherlands: Kluwer, 2003. 398p.; XAVIER, Alberto. Do lançamento no direito tributário brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 430-432; GOMES, Nuno Sá. Estudos sobre a segurança jurídica na tributação e as garantias dos contribuintes. Lisboa: Centro de Estudos Fiscais, 1993. KORESSAWA, Wilson. O princípio da segurança jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. 232p.; GOMETZ, Gianmarco. La certezza giuridica come prevedi-bilità. Torino: G. Giappichelli, 2005. 310p.; CALMES, Sylvia. Du principe de protection de la confi ance légitime en droits allemand, communautaire et français. Paris: Dalloz, 2001; PIAZZON, Thomas. La sécurité juridique. Paris: LGDJ – Defrénois, 2009; VALEM-BOIS, Anne-Laure. La constitutionnalisation de l’exigence de sécurité juridique en droit français. Paris: LGDJ, 2005; ARCOS RAMÍREZ, Federico. La seguridad jurídica. Una teoría formal. Madrid: Dykinson, 2000; LAVILLA ALSINA, Landelino. Seguridad jurídica y función del derecho. Madrid: Real Academia de Jurisprudencia y Legislación, 1999; García Novoa, César. El principio de seguridad jurídica en materia tributaria. Madrid: Marcial Pons, 2000; PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La seguridad jurídica. 2. ed. Barce-lona: Ariel, 1994; MEZQUITA DEL CACHO, José Luis. Seguridad jurídica y sistema cautelar. Teoría de la seguridad jurídica en su doble proyección pública y privada. Madrid: Bosch, 1989; Idem, Seguridad jurídica y sistema cautelar. Sistema español de derecho cautelar. Madrid: Bosch, 1989, v. 2; BERMEJO VERA, José. El declive de la seguridad jurídica en el ordenamiento plural. Madrid: Thomson, 2005; BOY, Laurence; RACINE, Jean-Baptiste; SIIRIAINEN, Fabrice (Org.). Sécurité juridique et droit économique. Bruxelles: Larcier, 2008; SCHØNBERG, Søren. Legitimate expectations in administrative law. Oxford: Oxford University Press, 2000.

7 São oportunas as observações de Diogo Leite de Campos sobre os novos rumos da tributação no Estado Democrático de Direito: “Há que defi nir um novo sentido e uma nova actuação dos princípios, sobretudo do princípio de auto tributação. Se quisermos um conteúdo do princípio da auto tributação que respeite os direitos dos cidadãos e da sociedade.” E prossegue: “Os cidadãos não devem ser destinatários/sujeitos dos impos-tos (ainda há muito meros ‘sujeitos passivos’) mas participantes da sua criação e da sua aplicação. Autores ou pelo menos co-autores dos impostos, da aplicação dos impostos

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signos linguísticos. Por isso mesmo, do exame das condutas dos contri-buintes não se pode abstrair o cuidado com esses diversos instrumentos protetivos da segurança jurídica na interpretação.

1.1. A interpretação das normas tributárias pela comunidade de intér-pretes e controle das incertezas jurídicas na superação da “única resposta”

A legalidade tributária classifi cadora e tipifi cante parece impor ao jurista uma espécie de interpretação por paráfrases, numa proposta restritiva que postula, de modo vicioso, o anátema da “única resposta correta”.8 A interpretação (aplicação) do Direito Tributário convive com a indeterminação e a incerteza9 (a dúvida interpretativa) e sua função é aquela de construção de sentidos e signifi cados para os textos nor-mativos. Nessa função, o intérprete deve criar, a partir de princípios e garantias constitucionais interpretados e argumentos interpretativos, o conteúdo das decisões que introduzem normas jurídicas mediante a apli-cação tributária, numa verdadeira seleção de hipóteses decisórias antes às interpretações possíveis.

Quando se examina a produção incessante de normas tributárias, a opacidade dos seus conteúdos e a complexidade dos tributos existen-tes não há como deixar de reconhecer, com Zygmunt Bauman, que, na

às suas pessoas e da resolução dos confl itos que tenham com o Estado”. CAMPOS, Diogo Leite de. O sistema tributário no estado dos cidadãos. Coimbra: Almedina, 2006. p. 124.

8 Deveras, pois, como observa Giuseppe Melis, o emprego de métodos ou argu-mentos interpretativos não tem qualquer função de correção ou exatidão da decisão. MELIS, Giuseppe. L’Interpretazione nel diritto tributario. Padova: CEDAM, 2003, p. 445.

9 Como assinala Paulo Otero: “Se existem zonas interpretativas de certeza positiva e zonas de certeza negativa, a verdade é que a normatividade comporta, em número cada vez maior, zonas intermédias ou cinzentas, sendo controvertido extrair da legalidade um sentido único ou mesmo um sentido não contraditório e, por isso mesmo, a existência de um padrão indiscutível de conduta administrativa: a ideia do que seja a conformidade normativa do agir da Administração Pública toma-se uma realidade nem sempre fácil de determinar, propiciando aos tribunais um acréscimo de protagonismo defi nidor do sentido último da lei.” OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003. p. 961.

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sociedade atual, “l’unico esito assicurato, sembra essere la percezione di una sensazione sempre più universale e condivisa di insecurezza e incertezza”.10 Ainda que essa constatação possa ser válida, e o é, o jurista tem em suas mãos os instrumentos da hermenêutica como meios para surpreender os conteúdos normativos e, a partir dos textos e contextos jurídicos, criar normas no processo de aplicação do direito, condicionado pelo desvelamento de signifi cados – até então ocultos no texto – na dinâ-mica entre a pré-compreensão e a pós-compreensão.11

Afaste-se, pois, a recorrente doutrina do único signifi cado correto, sempre a postos, a perseguir seu espaço na constelação dos meios de afi rmação da certeza jurídica. Ocorre que não se deve confundir a neces-sidade de uma “resposta defi nitiva” ou imutável (com efi cácia de coisa julgada), que é meio de realização da segurança jurídica, com a “única resposta correta”, de todo inadequada à metodologia jurídica – algo que a Administração Tributária geralmente confunde com a vinculação à lega-lidade, para justifi car suas decisões como a única interpretação “correta”.

Como observa Aulis Aarnio, quanto à resposta terminativa do orde-namento, tem-se o exercício do princípio do Estado de Direito na solu-ção dos confl itos; contudo, ela pode não ser a única resposta correta ou mesmo a mais justa12 que se possa adotar no exame de casos semelhan-tes.13 A questão, entretanto, não é simples.

10 BAUMAN, Zygmunt. La società dell’ incertezza. MARCHISIO, Roberto; NEIROTTI, Savina. (Trad). Bologna: Il Mulino, 1999, p. 19.

11 Como completa Souto Borges: “O preceito encerra em si mesmo e antes da sua interpretação, um signifi cado normativo interpretável. (...) toda interpretação do direito cor-responde a uma desolcutação do signifi cado oculto dos preceitos interpretados.” BORGES, José Souto Maior. Curso de direito comunitário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 18. Ver ainda: HRUSCHKA, Joachim. La costituzione del caso giuridico: Il rapporto tra accertamento fattuale e applicazione giuridica. CARLIZZI, Gaetano (Trad). Bologna: Il Mulino, 2009. 117p.

12 Como Alude Michele Taruffo sobre os critérios que permitem aproximação a uma decisão “melhor” ou mais “justa”, a saber: “a) correción de la escogencia y de la interpretación de la regla jurídica aplicable al caso; b) comprobación confi able de los hechos importantes del caso; c) empleo de un procedimiento válido y justo para llegar a la decisión.” TARUFFO, Michele. Sobre las fronteras: escritos sobre la justicia civil. Bogotá: Temis, 2006. p. 203.

13 Nesse sentido: AARNIO, Aulis. ¿Una única respuesta correcta? In: AARNIO, Aulis; ATIENZA, Manuel; LAPORTA, Francisco J. Bases teóricas de la interpretación jurídica. Madrid: Fundación Coloquio Jurídico Eropeo, 2010. p. 10 e ss.

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Em determinado sentido, pode-se falar numa corrente absoluta da unicidade de respostas pelo ordenamento, na sua clausura de normas e princípios, segundo a qual só haveria uma resposta para a solução de cada caso, cabendo ao intérprete a tarefa de buscá-la nos textos expressos ou nas dobras do ordenamento, implicitamente. Tem-se, também, uma corrente relativa, pela qual a resposta persiste no ordenamento, ainda que não possa ser encontrada com facilidade, a exemplo da proposta de Dworkin e seu “Juiz Hércules”. Para Aulis Aarnio, porém, ambas são insufi cientes, e o meio mais adequado, segundo ele, seria buscar atingir “a melhor resposta possível”, na linha do que fazem Perelman e Olbre-chts-Tyteca,14 a partir da teoria da argumentação.

Como observa Klaus Tipke, legalidade tributária, segurança jurí-dica, especialmente na forma da certeza e da uniformidade da tributa-ção “somente serão plenamente desenvolvidas quando o aplicador do Direito se servir de métodos disciplinados, que tornem sua decisão jurídica inteligente e racionalmente compreensível, que não transmita a impressão de que a lei foi aplicada liberalmente segundo o sentimento jurídico subjetivo.”15 Nesse sentido, a decisão valorativa do legislador, na construção das normas tributárias, para atingir seus objetivos, encon-tra na interpretação a condição de etapa intermediária para sua concreta aplicação.

Partamos do entendimento segundo o qual as normas jurídicas são mensagens prescritivas (enunciados), geralmente vertidas em texto, que um determinado sujeito qualifi cado juridicamente como “fonte” (enunciador),16 i.e., órgão de produção de normas reconhecido, envia a

14 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação. A Nova Retórica. Tradução: Maria Ermantina Galvão G. Pereira. SP: Martins Fontes, 1996, p. 119 e ss.

15 TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário. Tradução de Luiz Dória Fur-quim. Porto Alegre: Fabris, 2008. p. 304. Cf. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 475 e ss.

16 “(...) ali onde houver texto, haverá, necessariamente, um contexto. Não há texto sem contexto. E o conteúdo semântico da norma jurídica será construído depois de uma séria e profunda investigação contextual, capaz de apreender os valores que nela inter-vêm, postulando a orientação adequada para as condutas intersubjetivas que disciplina”. CARVALHO, Paulo de Barros. Lançamento por homologação – decadência e pedido de restituição. Repertório de Jurisprudência-IOB, São Paulo: IOB, 1996, ago-set, p. 1.705.

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outrem, destinatário da mensagem deôntica (enunciatário)17 recorrendo normalmente ao uso de uma linguagem natural, e usando de código comunicacional comum. Compete ao enunciatário, pois, interpretar esse ato lingüístico, para construir a norma jurídica à qual se deve adequar, com sentido completo. E como o sentido da norma depende do contexto lingüístico no qual a mensagem é emitida, porque expressões da lingua-gem natural nem sempre são precisas quanto às suas referências objeti-vas, a função pragmática presta-se à redução ou eliminação da vagui-dade e ambigüidade latentes.

A ação de interpretar tem como fi nalidade expressar um sentido recorrendo a signos diferentes dos usados para formulá-lo original-mente. Muitas vezes, o que necessitamos interpretar é um conjunto de signos articulados, cujo sentido depende não só do conhecimento de cada signo, mas do conhecimento das relações existentes entre os sig-nos.18 Como a interpretação processa-se para criação de nova norma,19 enquanto enunciado da signifi cação produzida a partir do conceito de

17 Cf. FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo, SP: Ática, 1996, 318 p.; JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. SP: Cultrix, 1995, 162 p.; Para Raffaello Lupi: “Le valutazioni che ricorrono nell’in-terpretazione non hanno a che fare con le preferenze etico-politiche dell’interprete, ma con il testo normativo di riferimento e con la logicità della soluzione raggiunta e cioè: 1) l’interpretazione deve conciliarsi col testo normativo, poichè altrimenti l’interprete invaderebbe il campo delle scelte politiche riservate al legislatore; 2) l’interpretazione deve essere priva di illogicità e contradizioni, sia in assoluto sia col resto delle scelte legislative desumibili dal sistema’. LUPI, Raffaello. Lezione di diritto tributario – parte generale, 5.ª ed., Milano: Giuffrè, 1998, p. 39-40.

18 Segundo Paulo de Barros Carvalho: “Mantenho presente a concepção pela qual interpretar é atribuir valores aos símbolos, isto é, adjudicar-lhes signifi cações e, por meio dessas, referências a objetos”. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamen-tos jurídicos da incidência. 2.ª ed., SP: Saraiva, 1999, p. 57; ver ainda: AMATUCCI, Andrea. L’interpretazione della legge tributaria. AMATUCCI, Andrea (coord.). Trattato di Diritto Tributario. Padova: CEDAM, 1994, v. III, P. III, cap. XXXV, p. 207-23.

19 GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto. SP: Malheiros, 2009, p. 17; GRAU, Eros Roberto. Direito, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito, SP: Malheiros, 2008, 226 p.; GUASTINI. Riccardo. Le fonti del diritto e l’inter-pretazione. Milano: Giuffré, 1993; ITURRALDE SESMA, Victoria. Lenguage legal y sistema jurídico: cuestiones relativas a la aplicación de la ley, Madrid: Tecnos, 1989, 218 p.; ZAGREBELSKY, Gustav. El derecho dúctil. Valladolid: Trotta,1999, p. 102; ____. Il diritto mite. Torino: Einaudi, 1943, 215 p.

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conduta que o intérprete recria em sua mente, tem-se que verifi car se o ato praticado foi acertado, o que se avalia não só segundo sua correção ou incorreção formal, mas principalmente quanto à sua própria dimensão valorativa e correspondência com outros atos normativos que lhe sejam superiores, nos termos da hierarquia das fontes de produção.20

Essa construção de sentido tem um fi m, que é a garantia de prover certeza jurídica nos atos de aplicação do Direito. Ocupar-se da interpre-tação do Direito Tributário é um modo de concretizar a segurança jurí-dica por meio da controlabilidade dos critérios de aplicação dos textos normativos, pela criação de normas jurídicas certas e justas. Daí não ser um tema de simples projeção teórica, mas que guarda inequívoco peso metodológico de concretização do ordenamento na sua integralidade.

O dever de interpretar e a abertura do Direito Tributário à comuni-dade de intérpretes é, sem dúvidas, a resposta funcional do princípio de prevalência do “império da legalidade” em matéria tributária, da vincu-lação dos atos Administrativos e da efetividade do princípio de separação dos poderes em matéria tributária. Onde não há interpretação prospera o arbítrio e nega-se o princípio do Estado de Direito.

A interpretação administrativa sujeita-se à interpretação judicial e à interpretação da comunidade dos intérpretes que se faça das leis e da Constituição como decorrência necessária do princípio de separação de poderes. Como alude Francisco J. Laporta: “A la ley le está reservado dibujar el círculo de la libertad en torno a los individuos; ninguna obli-gación y ninguna carga puede hacerse gravitar sobre ellos sin la existen-cia previa de una ley que las defi na.”21 A substituição da interpretação privilegiada da Administração (como ato de soberania) pela interpreta-ção aberta a todos, em matéria tributária, exige rigores ainda maiores no trato com a doutrina da hermenêutica exatamente porque em um Estado Democrático de Direito o exercício das liberdades deve efetivar-se con-tinuamente ante todos os atos de Estado.

20 Cf. VERNENGO, Roberto J. Curso de teoría general del derecho, 4.ª ed., Buenos Aires: Depalma, 1995, p. 404; FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2.ª ed., SP: Atlas, 1996, p. 255-308.

21 LAPORTA, Francisco J. Imperio de la ley y seguridad jurídica. In: DÍAZ, Elías; COLOMER, José Luis. Estado, justicia, derechos. Madrid: Alianza, 2002, p. 106.

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Destarte, a garantia de prevalência do império da legalidade,22 a partir do seu círculo hermenêutico, como valor constitucional do Estado Democrático de Direito, na aplicação e exigibilidade dos tributos, impõe que a interpretação jurídica tenha como fi nalidade concretizar os princí-pios de certeza e de segurança jurídica, sem contradições e observados os princípios de boa fé, confi ança legítima e adequação.

A obscuridade ou imprecisão da legislação tributária e sua comple-xidade ou inacessibilidade cognitiva são elementos de resistência à inter-pretação com segurança jurídica nos atos de aplicação tanto para garan-tir o contribuinte contra eventuais confl itos com a Administração, pela correção das suas condutas, quanto pela solução adequada dos confl itos já instaurados. Consta-se, porém, que a insensibilidade da Administra-ção para a boa fé ou a confi ança legítima do contribuinte, ao interpretar legislações excessivas, cambiantes, repleta de conceitos indeterminados ou vagas nas suas formulações, em grande medida, enseja confl itos des-necessários e custosos para os contribuintes, com o acréscimo de pesadas sanções pecuniárias que não se prestam a mais do que alimentar, social-mente, um sentimento de revolta e de resistência ao sistema tributário, dado o elevado custo de transação dessas incertezas. Vive-se, assim, o estado de insegurança jurídica permanente em matéria tributária.

1.2. A interpretação e seus métodos e os argumentos interpretativos – modelo para a hermenêutica da decisão tributária

Tradicionalmente, visando a oferecer uma fórmula lógica ao pro-cedimento de interpretação das leis, a Teoria Geral do Direito esforçou--se para isolar os métodos hermenêuticos destinados a uma “correta”

22 O ordenamento jurídico deve ser um instrumento de realizaçaõ dos seus valores e princípios com máxima efetividade, daí a preeminência das garantias: “II diritto come garanzia non è, quindi, soltanto un insieme di tecniche di protezione di valori fondamen-tali, ma anche necessariamente una ridefi nizione pubblica di questi beni essenziali, che, in ragione del loro carattere vitale, non possono essere lasciati all’interpretazione privata. A quest’impegno diretto nei confronti dei valori il diritto e chiamato in virtù della sua funzione originaria, che è quella della protezione, della custodia e della tutela dei beni umani nella vita sociale.” VIOLA, F. ZACCARIA, G. Diritto e interpretazione: lineamenti di teoria emerneutica del diritto. Bari: Laterza, 2004. P. 59.

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forma de interpretar “normas”, pelos quais o intérprete lograria obter um conhecimento adequado do direito objetivo existente. O direito seria “dado”, não construído; e o papel do intérprete, aquele de identifi car o conteúdo e o alcance das normas. Com isso, os métodos de interpreta-ção eram vistos como técnicas para esclarecer uma mensagem norma-tiva obscura, vaga ou ambígua, até porque in claris cessat interpretatio, segundo afi rmação corrente.

Esse era o ideário que movia os que acreditavam ser possível isolar demiurgicamente o que a lei diz, a voluntas legis, o signifi cado textual da lei, em face de todo o ordenamento. A partir dessa concepção, sur-giram as técnicas de interpretação, para os fi ns de determinar o sentido expresso nas “normas” (textos): i) a interpretação literal, ii) a interpreta-ção histórica e iii) aquela de orientação sistemática.

No passado, e ainda para alguns de hoje, o método literal sempre foi elemento primordial da interpretação, 23 como meio de acesso ao sentido dos enunciados. De fato, supor que a interpretação literal limitava-se a buscar em algum dicionário o que o vocábulo queria dizer, seria algo da mais ingênua suposição. Esperava-se mais da interpretação literal, mas a determinação do sentido de um termo ou enunciado não é tarefa fácil. O sentido é contextual; requer, pelo menos, a substitutibilidade do termo que se interpreta pelo equivalente ou sinônimo que se proponha, em todos os contextos, sem alterar o valor de verdade. Vê-se, a interpretação literal é limitada, restando basicamente como um procedimento desti-nado a determinar o sentido socialmente admitido de certas palavras.

23 Como pondera Ricardo Lobo Torres que: “o problema da interpretação literal sempre esteve muito ligado ao das fontes do Direito e ao dos valores jurídicos. O apego à literalidade era forma de prestigiar o legislador em detrimento do juiz. As proibições de interpretar, desde Justiniano, não tinham outro alcance que o de obrigar o intérprete a se manter vinculado à letra do texto legal, com o que se evitavam as interpretações extensivas, com as suas conotações políticas, bem como as interpretações objetivas ou evolutivas, com esquecimento da vontade do legislador. A defesa exagerada da interpre-tação literal implica também na recusa das valorações jurídicas, com a preponderância da forma sobre o conteúdo e da segurança sobre a Justiça”. TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do Direito Tributário. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 90 e ss.

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No plano dos chamados argumentos de interpretação, que são meios para compor o acesso cognitivo ao conteúdo dos textos normativos,24 tem-se o argumento do signifi cado literal, quando o intérprete confere preferência por evidenciar palavras ou termos dos enunciados no seu sentido de base; deste, decorrem ainda: o argumento da constância ter-minológica, quando se busca atribuir o mesmo sentido a determinado enunciado que aparece no mesmo ou em distintos textos normativos (da mesma ou de diferente área do Direito); o argumento topográfi co ou da sedes materiae, baseado na colocação dos termos ou de uma dada clas-sifi cação de direito positivo, no âmbito de uma mesma lei ou de vários documentos normativos; o argumento de autoridade, fundado no sentido atribuído ao signifi cado de determinado termo segundo a interpretação adotada em decisão anterior. São, estes argumentos, passíveis de serem alegados em atenção ao método dito “literal” de interpretação das leis tributárias, todos encontráveis em diversas passagens da doutrina ou da jurisprudência.

Além da literalidade, a historicidade sempre esteve dentre as pre-ocupações do jurista. Para melhor assimilar esse sentido, alguns insis-tem que o intérprete deveria esforçar-se para buscar a mens legislatoris, visando a recompor a suposta vontade histórica do legislador real, como se deu na escola da exegesis. Para os adeptos dessa corrente, o direito seria um modo de querer, expresso na vontade do legislador e caberia ao intérprete buscar o sentido originário das normas que o tempo tenha obscurecido e confundido, numa recomposição historicista. Foi no bojo dessas preocupações que surgiu o método histórico, reforçando a idéia de que toda norma é resultado de forças e circunstâncias históricas e que a interpretação correta seria a que coincidisse com o sentido que se lhe houvesse atribuído no momento histórico da promulgação.

Sobre a sucessão temporal, os argumentos de interpretação que podem ser adotados são o argumento histórico “stricto sensu”, que se funda no exame da evolução histórica dos textos ou dos sentidos atribu-ídos aos termos. Nesse caso, tem-se como meios colaterais o argumento psicológico, quando o intérprete baseia-se em fundamento vinculado à intenção do legislador ou em conformidade com o sentido empregado

24 Passim, DICIOTTI, Enrico. Interpretazione della legge e discorso razionale. Torino: Giappichelli, 1999, p. 309 e ss.

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pelo legislador (mens legislatoris); e o argumento teleológico-psicoló-gico, quando a fundamentação ampara-se nos fi ns previstos pelo legisla-dor, de tal modo que se opera uma seleção do melhor signifi cado segundo a coerência com esses fi ns, numa espécie de atualização de sentido (mens legis).25

Com o progresso técnico das ciências jurídicas, principalmente a partir da segunda metade do séc. XIX, e a diferenciação cada vez mais evidente das disciplinas jurídicas, a dogmática jurídica passou a admitir o método sistemático ou lógico como sendo o método mais importante da hermenêutica jurídica. Supunha, com isso, uma sistemática implícita, cujo sentido deveria ser dado não somente pelos termos que a expres-sam e sua articulação sintática, mas por sua relação com outras normas (entre ramos do direito ou entre instituições). Seus procedimentos são basicamente analíticos: a defi nição e esclarecimento de conceitos; a determinação de suas relações lógicas; o estabelecimento de uma lin-guagem técnica especial. E quase que concomitante a este, surgia outra corrente segundo a qual o mérito de uma interpretação deveria medir-se pelo alcance das fi nalidades do direito na sociedade, pelo grau de boas conseqüências sociais que pudesse produzir, como propugnava a juris-prudência dos interesses. Eclodia a interpretação fi nalística, teleológica ou axiológica.

No âmbito do método sistemático é que os argumentos de inter-pretação ganham em amplitude de possibilidades. O argumento sis-temático-conceitual, ou dogmático, tem em mira a fundamentação de sentido dos termos em conformidade com uma dada teoria dos regimes jurídicos ou conceitos típicos. Como argumentos secundários, temos o argumento da coerência, com o qual o sentido ou conteúdo semântico de um termo deve ser semelhante na cadeia de signifi cações dos vários tex-tos; o argumento da conformidade aos princípios do direito, sem dúvi-das, é o argumento sistemático por excelência do constitucionalismo do Estado Democrático de Direito, que determina o sentido em plena ade-quação material aos princípios, com ou sem ponderação; o argumento apagógico, ou da proibição da reductio ad impossibile ou ad absurdum, segundo o qual nenhuma interpretação pode ser impossível ou reduzida

25 Passim, DICIOTTI, Enrico. Verità e certezza nell’interpretazione della legge. Torino: Giappichelli, 1999, p. 63-65.

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a um absurdo, por incoerência com o ordenamento jurídico; e, ainda, os argumentos “a contrario” e “ad simile”, com forte conotação integra-tiva, mas que visam a tratar situações equivalentes de modo semelhante e as diversas, segundo suas diferenças específi cas.

O argumento teleológico, por sua vez, visa a atribuir signifi cado segundo a adequação entre sentido normativo e fi ns do ordenamento. O argumento equitativo, que objetiva garantir a isonomia como cânone hermenêutico, determina o sentido dos termos sempre no limite da garan-tia da igualdade, ou seja, desde que o resultado não a prejudique.26 No campo estritamente tributário, o argumento econômico, frequentemente alegado pela Fazenda Pública, tem como base a unidade sistêmica com prevalência da “fi nalidade” ou do destino da arrecadação.

Os métodos interpretativos constituem, como visto, um repertó-rio de recursos sem maior objetividade científi ca, adensados mais por uma índole retórica que propriamente por precisão técnica ou científi ca. Após muitas propostas, como aquelas oriundas da “escola do direito livre”, a “escola da livre investigação científi ca”, ou do “realismo jurí-dico”, propõe-se a combinação destes com a teoria da linguagem apli-cada ao direito e a teoria da argumentação como meios para aprimorar a hermenêutica tributária e criar condições para justifi car a decisão, em coerência com o constitucionalismo do Estado Democrático de Direito, por ser o Direito, essencialmente, linguagem especializada orientada à decidibilidade.27

2. Hermenêutica do Direito Tributário – a crise da especialidade interpretativa

As leis interpretativas são fruto da pretensão de dirigismo herme-nêutico promovido pelos detentores do poder de tributar, o que variou segundo as épocas.

26 Passim, DICIOTTI, Enrico. Verità e certezza nell’interpretazione della legge. Torino: Giappichelli, 1999, p. 63-65.

27 Para um excelente estudo a respeito, veja-se: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário, 22ª ed. SP: Saraiva, 2009, p. 108 e ss.

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A idéia de atribuir à interpretação uma postura favorável a priori ao contribuinte (in dubio contra fi scum), em certo modo, decorre do adá-gio de Modestino, inscrito no Digesto: non puto delinquere eum qui in dubiis quaestionibus contra fi scum facile responderit (Lei 10, D. 49, 14). Porém, a interpretação dada a esta afi rmação não é pacífi ca, como não é tranqüila a compreensão que assim faziam no Império Romano (ut fi sco faveat). Trata-se de refl exão que só pode prosperar guardando vistas ao próprio papel que os tributos exerciam naquela época, compreendendo ademais toda a evolução do sistema tributário romano, nas suas várias fases.

Neste percurso, a regra non puto delinquere quedava-se sensível às vicissitudes governamentais e ao modo como os cidadãos romanos recebiam as cobranças de tributos. Por tudo isso, em amor à precisão, não se pode afi rmar que no Império Romano o brocardo in dubio contra fi scum era uma síntese da noção que os romanos tinham sobre os tribu-tos. É possível admiti-lo para sua fase áurea ou mesmo para as cobranças dos chamados “impostos de guerra”, numa espécie de paralelo com o brocardo in dubio pro reo. E não mais que isso.

Com a revolução francesa, toda a concepção que se tinha sobre os tributos foi repensada, segundo os valores que informavam esse movi-mento libertário. 28 O tributo deixava de ser visto, então, como mero exercício de soberania e passava a ser entendido como um dos mais altos deveres do cidadão, informado pela igualdade e pela fi nalidade de atingir o bem comum. Fortalecia-se o sentido contratualista da relação tributária, vendo-se o contribuinte como um devedor que participa de uma relação jurídica, aplicando-se idênticos critérios de interpretação de contratos, de tal maneira que qualquer dispositivo ambíguo ou de pouca clareza deve-ria ser interpretado contra quem o estipulou, no caso o Estado-credor. Os valores do individualismo nascente: segurança, liberdade, igualdade; bem como os conceitos de propriedade, negócio jurídico e liberdades

28 ARDANT, Gabriel. Historie de l’impôt: du XVIII au XXI siècle, Paris: Fayard, 1972, 870p; PÉREZ DE AYALA, José Luis. Montesquieu y el derecho tributario moderno. Dykinson, 2001, 155 p.; GRAPPERHAUS, Ferdinand H. M. Tax tales from the second millen-nium. Amsterdam: 1998, p. 51. Cf. PIRES, Manuel; PIRES, Rita Calçada. Direito fi scal. 4ª ed., Lisboa: Almedina, 2010, p. 162.

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contratuais, de acordo com a jurisprudência dos conceitos, fundavam a orientação do “in dubio contra fi scum”.

Quanto à forma intermediária, acima referida, porque uma aplica-ção favorável ao Fisco ou ao contribuinte, a priori, resultaria incom-patível com a legalidade, para alguns, esta seria a mais condizente, afi rmando-se o direito tributário como um ramo autônomo de normas específi cas e, com isso, afastando-se os textos tributários dos métodos comuns de interpretação. Trata-se da chamada “teoria da interpretação rígida”, cujos entusiastas acreditavam que fossem as normas tributárias exclusivamente restritivas e limitativas de direitos, porquanto o Estado, pela cobrança de impostos, limita os direitos patrimoniais dos cidadãos; e pela aplicação das regras de fi scalização e controle, impõe restrições às atividades e à liberdade dos cidadãos. Em vista dessas características, nenhuma integração normativa seria admissível. É certo que esta con-cepção tinha muito do legalismo que no fi nal do século XIX imperava.

A tendência do brocardo in dubio pro fi scum, ao longo dessa evo-lução, sempre esteve considerada, especialmente no patrimonialismo. Os detentores do poder, justifi cando-se com princípios de prevalência do interesse público sobre o privado, repartição dos encargos públicos e similares, nunca a esqueceram. Na atualidade, uma opinião favorável a esta ideologia seria de plano afastada, como diz Vanoni: “a nenhum cidadão pode ser exigido que pague mais do que deve segundo as leis vigentes”.29

Como se pôde avaliar, os brocardos apresentados são tópicos retó-ricos, relativamente formalizados, que os juristas utilizam tradicional-mente como espécie de juízo a priori. 30 Ezio Vanoni bem demonstrou que a norma tributária em nada se distingue das normas de outros ramos jurídicos, apesar de aceitar que se poderiam aplicar critérios de interpre-

29 VANONI, Ezio. Natureza e interpretação das leis tributárias. Tradução de Rubens Gomes de Sousa. RJ: Edições Financeiras, s/d, p. 45.

30 Dino Jarach, analisando-os, assim se pronuncia: “Dichos aforismos no tienen la efi cacia de las normas superiores ni absolutas; a menudo son contradictorios o chocan com principios jurídicos de indudable validez. Por lo tanto, no pueden ser utilizados sino a posteriori; después de haber analizado los hechos y circunstancias que los rodean o los caracterizan, a la luz de los conceptos normativos de la ley, en los que han de enmarcarse los hechos reales”. JARACH, Dino. Estudios de Derecho Tributario. Buenos Aires, 1999, CIMA, p. 26.

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tação específi cos, como ocorreria em todos os ramos do direito. 31 Com-batia o entendimento que negava à interpretação das leis tributárias a utilização dos meios que comumente se aplicariam a outros ramos, pelas particularidades que possuíam. 32

Não obstante, esta evolução está longe de terminar, como lembra Diogo Leite de Campos, tanto na prática, como nas representações dos juristas; e há constantes retrocessos, 33 como o que prosperou na Alema-nha, por todo o século XX, pela consagração da chamada “interpretação econômica”. E Klaus Tipke34 não destoa do tom crítico a qualquer das opções do dirigismo da interpretação, ao considerar, em plena conformi-dade com o que pensamos, como iníqua ao desenvolvimento do Direito Tributário qualquer indagação se a decisão resultante da interpretação favorece mais ou menos o Fisco ou o contribuinte, como condição para sua permanência.

2.1. Normas sobre interpretação no CTN e o dirigismo hermenêutico

Em todos os códigos mais atuais, consta sempre do capítulo da “interpretação” uma regra básica, segundo a qual a norma tributária deverá ser interpretada com o emprego de todos os critérios admitidos no Direito. Não há qualquer razão na proposta que vê as leis tributárias com diferença específi ca sufi ciente para justifi car metodologia própria

31 Numa ampla demonstração dessa premissa, vide: GONZALÉZ, Eusebio. Interpre-tación de las normas tributarias. Revista de Direito Tributário. SP: Malheiros, 1999, n.º 76, p. 15-30.

32 Contrariamente ao dirigismo da interpretação, diz Vanoni: “Desde que as carac-terísticas jurídicas das normas tributárias não se distinguem das demais normas de direito, a opinião que pretende negar aplicabilidade, às leis tributárias, dos mesmos métodos de interpretação que se aplicam às leis em geral parece destituída de qualquer fundamento. (...) qualquer orientação apriorística do trabalho interpretativo, a favor do Fisco ou a favor do contribuinte, constitui uma inadmissível limitação do processo lógico represen-tado pela interpretação da lei”. VANONI (s/d, p. 181).

33 CAMPOS, Diogo Leite de. Interpretação das normas fi scais. In: Problemas funda-mentais do direito tributário. Lisboa: 1999, p. 20.

34 TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário. Tradução de Luiz Dória Fur-quim. Porto Alegre: Fabris, 2008. p. 315.

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ou especialidade.35 Supera-se, assim, a pretensão de dirigismo herme-nêutico em matéria tributária, como se vê ainda no Código Tributário Nacional – CTN, a Lei Geral Tributária brasileira, cujo artigo 107 assim dispõe: “a legislação tributária será interpretada conforme o disposto neste Capítulo”.

Nas legislações contemporâneas de diversos países, afastados os rigores de tais espécies de interpretações autênticas, em códigos de dis-tintas matérias, comparecem regras com essa feição dirigista da atitude do intérprete. 36 Poderíamos citar tantas e distintas experiências, mas seria despiciendo, quando o que queremos é só demonstrar a persistência deste tipo de regra jurídica no direito tributário, com a função de estabe-lecer critérios de interpretação.37 E na base de todas, a infl uência teórica da concepção de existir qualidades inerentes às normas tributárias, o sufi -ciente para justifi car uma interpretação com critérios e métodos diversos daqueles aplicados a outros domínios jurídicos.

Exemplos dessas regras dirigistas podem ser vistos ainda nos artigo. 106, I, 108 a 112, e artigo. 118, postas com a fi nalidade de restringir a capacidade hermenêutica dos intérpretes. Como é de todo evidente, na atualidade, nada justifi ca essa pretensão, em particular, porque o direito tributário não dispõe de especifi cidade que autorize alguma espécie de privilégio hermenêutico38 em relação aos outros ramos do direito. Supe-

35 NABAIS, José Casalta. Direito fi scal. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 216.36 Para maiores considerações: MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do

direito, 16.ª ed., Forense, 1996, 426 p.; MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. Inter-pretação e integração dos negócios jurídicos, SP: Ed. RT, 1989, 234 p.; SANTOS, J. M. de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado: principalmente do ponto de vista prático: parte geral (arts. 114-179). 8.ª ed., SP: Freitas Bastos, 1961, v. III, 440 p.

37 TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tribu-tário. Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2000, 439 p.

38 Seguindo idêntico raciocínio: FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de derecho fi nanciero español. 18.ª ed., Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 76; É digna dos maiores encômios a afi rmação de Ricardo Lobo Torres: “A interpretação do Direito Tributário se subordina ao pluralismo metodológico. Inexiste a prevalência de um único método”. TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do Direito Tributário. Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2000, p. 205; Da mesma forma, Alfredo Augusto Becker, com uma recomendação assaz importante: “Ao enviar o leitor àquelas obras dos especialistas em interpretação jurídica, lembra-se que, para consultá-las com proveito, é indispensável que, antes de tudo, o estudioso tenha reeducado a sua atitude mental jurídica tributária”.

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rada a discutível tese da autonomia do direito tributário, bem como os brocardos in dubio pro fi scum ou in dubio contra fi scum, confi rma-se que a interpretação das normas tributárias há de ser igual à que se adote para qualquer outro ramo, guardadas as diferenças principiológicas e os vetores axiológicos que lhe sejam próprios. 39

2.2. Do dirigismo hermenêutico à interpretação “econômica” do Direi-to Tributário

Falar de “interpretação econômica do direito tributário”, ao fi m e ao cabo, é o mesmo que tratar sobre a “causa” dos tributos, i.e., sobre fi nalidade das normas tributárias, projetadas funcionalmente (Griziotti) para constituir patrimônio público e atendendo a um primado de preva-lência dos interesses do Fisco, segundo o brocardo in dubio pro fi scum.

Assim, fi rmava-se a concepção de que uma justiça na repartição da carga tributária exigiria o atendimento ao princípio da capacidade econômica, devendo as obrigações tributárias terem como fato jurídico tributário unicamente fatos de caráter econômico, i.e., reveladores de capacidade contributiva objetiva, sendo irrelevantes as formas jurídicas que adota-rem, para os fi ns de interpretação, que se deveria ocupar da substância negocial.40 A realidade econômica deveria prevalecer sempre.

Vendo-a, hoje, à distância (a interpretação econômica), e obser-vando sua relativa força normativa, concluí-se quão reduzidas foram

BECKER, A. Augusto. Teoria geral do Direito Tributário, 2.ª ed., SP: Lejus, 1999, p. 113; ver ainda: MICHELLI, G. A. Corso di diritto tributario, 8.ª ed., Torino: UTET, 1989, p. 73; GODOY, Norberto J. Teoria general del derecho tributario: aspectos esenciales, Buenos Aires: Abeledo Perrot, s/d, p. 131-55; FALCÃO, Amílcar. Introdução ao direito tributário, 6.ª ed., RJ: Forense, 1999, p. 61-94.

39 Como diz Ricardo Lobo Torres: “os princípios (gerais do direito) não se conver-tem em normas sobre a interpretação. Servem apenas como orientação para o intérprete, já que a interpretação jurídica é processo de atualização dos valores e dos princípios deles decorrentes.” TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do Direito Tributário. Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p. 56.

40 Nas palavras de Carlos Palao Taboada: “la obligación tributaria surgirá siempre que se halle presente dicho fenómeno económico – el que constituye el substrato de los actos o negocios civiles – aunque revista una forma jurídica distinta de la designada por la ley como presupuesto objetivo del tributo”. PALAO TABOADA, Carlos. El fraude a la ley en Derecho Tributario. RDFHP. Madrid: Editoriales de Derecho, 1966, n.º 63, p. 687.

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suas contribuições para o desenvolvimento das instituições do direito tri-butário. A interpretação econômica do direito tributário não correspon-dia a uma simples pretensão teleológica de aplicação das normas tributá-rias; foi mais além e evidenciou-se como um mecanismo de intervenção estatal na interpretação das leis tributárias, num dirigismo hermenêutico segundo os interesses arrecadatórios do estado.

Numa seara tão ciosa das garantias de segurança jurídica e certeza do direito aplicável, a interpretação econômica do direito tributário serviu unicamente para enfraquecer a legalidade material (princípio da tipicidade), e restituir à Administração os típicos instrumentos de uma relação de poder, os quais lhe foram subtraídos quando se instaurou nas sociedades o liberalismo e o conceito de Estado Democrático de Direito, por meio de constituições democráticas e republicanas. Flexibilizava-se a legalidade em direção aos interesses do Estado, tal como propugnado pelos defensores do primado da “causa impositionis”41.

É verdade que o método de interpretação econômica foi considerado como algo genuíno e somente aplicável ao campo do direito tributário, haja vista o alcance de suas normas sobre fatos de expressão econômica, numa espécie de superposição em relação às normas de direito privado que regulam as opções negociais. Serviu de método efi caz durante certo tempo para o controle dos atos elusivos, mas degenerou-se no correr dos tempos da sua aplicação, pelo desvirtuamento de idéias.

Sobre isto Alfredo Augusto Becker foi incisivo: “Modernamente, para tranqüilidade de todos, chegou-se à conclusão, tão verdadeira quanto simples, que as leis tributárias são regras jurídicas com estru-tura lógica e atuação dinâmica idêntica às das demais regras jurídicas, e, portanto, interpretam-se como qualquer outra lei, admitem todos os métodos de interpretação jurídica e não existe qualquer peculiar princí-pio de interpretação das leis tributárias”.42 Hoje, consolidado este enten-dimento, vemos que, quando muitos autores referem-se ao conceito de

41 Cf. BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. RJ: Forense, 11ª ed., 1999, p. 711-41; BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do Direito Tributário, 3. ed., SP:, 1998, p. 104-9.

42 Ibidem, p. 113. Acompanha essa crítica: BORGES, José Souto Maior. Elisão fi scal (CTN, art. 116, parágrafo único – 104/01). Fórum de Direito Tributário. Belo Horizonte: Fórum, 2003, n.º 1, jan.-fev., p. 124-36.

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“interpretação econômica” do direito tributário, nos dias que seguem, querem, em efetivo, fazer menção a um dos métodos de interpretação, seja a favorecer a uma interpretação teleológica, a uma aplicação da ana-logia43 no direito tributário, a uma busca da verdade material na apuração dos fatos jurídicos tributários, ou mesmo ao emprego de presunções e fi cções para os fi ns de qualifi cação de fatos jurídicos tributários.

A interpretação econômica, na sua forma original, já foi, de há muito, superada44. Na Alemanha, ou fora desta, 45 não lhe cabe qualquer espaço, por todos os pressupostos que lhe garantiam fundamentação teó-rica. Foi, sem dúvidas, um dos maiores equívocos46 que prosperaram na história jurídica dos povos ocidentais. De fato, este princípio da inter-pretação econômica, na forma como se tem disseminado, é merecedor

43 Como afi rma Tipke, “el derecho tributario tiene en todo el mundo una específi ca tradición positivista. En todo caso, siempre que se trata de normas de gravamen (normas de intervención) se ha mantenido persistentemente la regla de una interpretación estricta-mente orientada al tenor literal y a una prohibición de la analogía y de la integración jurí-dica”. TIPKE, Klaus. Limites de la integración en el derecho tributario. Civitas – Revista Española de Derecho Financiero. Madrid: Civitas, 1982, n.º 34, p. 181-4.

44 Por isso, sempre que se queira analisar o direito alemão, vale lembrar a adver-tência percuciente de César Garcia Novoa, em estudo ainda inédito: “una cosa es que se hable de “interpretación económica”, cuando en realidad, se está postulando una inter-pretación teleológica, como ocurre en Alemania hoy en día, y otra muy distinta, que la interpretación teleológica tradicional se utilice como una vía indirecta para conseguir los efectos de una interpretación económica”. Tem razão o Catedrático de Santiago de Com-postela. GARCÍA NOVOA, Cesar. El fraude de ley en derecho tributario. Madrid: Marcial Pons, 2003, p. 56.

45 Um modelo mitigado de interpretação econômica ainda se encontra na Argen-tina. Cf. TARSITANO, Alberto. Interpretación de la ley tributaria. Buenos Aires: AAEF, 2003, 171 p.; OSVALDO CASÁS, José. Seguridad jurídica, legalidad y legitimidad en la imposición tributaria. In: IBET. Justiça Tributária. SP: Max Limonad, 1998. VILLE-GAS, Héctor. Curso de fi nanzas, derecho fi nanciero y tributario. 7.ª ed., Buenos Aires: Depalma, 1998.

46 Outra não é a opinião de Alfredo Augusto Becker: “A doutrina do Direito Tri-butário, segundo a realidade econômica, é fi lha do maior equívoco que tem impedido o Direito Tributário evoluir como ciência jurídica. Esta doutrina, inconscientemente, nega a utilidade do direito, porquanto destrói precisamente o que há de jurídico dentro do Direito Tributário”. E mais adiante: “Em nome da defesa do Direito Tributário, eles matam o “direito” e fi cam apenas com o “tributário”. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário, 3.ª ed. São Paulo: Lejus, 1998. p. 130. Contrario sensu: FAL-CÃO, Amílcar. Fato gerador da obrigação tributária, 6ª ed., RJ: Forense, 1997, p. 36.

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das maiores críticas, pelas distorções que o acompanham, especialmente pelas lesões que causa aos princípios mais caros do ordenamento, como é o da legalidade, da tipicidade e da certeza do direito, sem falar nos prejuízos sobre os princípios e categorias de direito privado que restam afetados.47 A interpretação econômica instaura o arbítrio hermenêutico; promove a Administração a uma espécie de intérprete privilegiado, de modo a conduzir o ato de aplicação do direito segundo seus interesses, abrindo espaços na tipicidade e desconsiderando as reais demonstrações de capacidade contributiva. Toda a conquista republicana do princípio da tributação consentida48 esfumaça-se, numa névoa de incertezas quanto ao destino da legalidade tributária, que não admite qualquer espécie de fl exibilização de interesses estatais, por ser exatamente meio de limita-ção ao exercício dos seus poderes.

3. Integração da legislação tributária

Quanto aos métodos de integração, prescreve o artigo 108 que, “na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I – a

47 Como conclui Falcón y Tella: “Hoy, según acaba de exponerse, puede conside-rarse defi nitivamente superada la tesis de la interpretación económica, al menos enten-dida en el sentido tradicional de que aquellos supuestos de los que derivan los mismos resultados económicos exigen un idéntico trato desde el prisma fi scal.” FALCÓN Y TELLA, Ramón. Interpretación económica y seguridad jurídica. Crónica tributaria. Madrid: IEF, 1993, n.º 68, p. 26; Para uma crítica ao uso da interpretação econômica: SAINZ DE BUJANDA, Fernando. Hacienda y Derecho. Madrid: Instituto de Estúdios Políticos,1963, t. IV, 635 p.; Como adscreve François Gény: “É verdade que, para justifi car ‘a auto-nomia do direito fi scal, na própria ordem de interpretação, costuma-se fazer apelo às teorias mais sutis, mais fi nas, mais sedutoras, do direito público contemporâneo.” GÉNY, François. O Particularismo do direito fi scal. Revista de Direito Administrativo. RJ: FGV, 1950, n.º 20, abr.-jun., p. 27.

48 “Se é exato que o fi sco tem direito de exigir os tributos, entretanto ele somente pode exigi-los dentro dos limites legais traçados. A lei tributária, mesmo quando entra em relação com as leis do Direito Privado, não vai ao ponto de dispor ou interferir no direito substantivo privado, nas relações entre particulares, posto que a lei tributária disciplina outro tipo de relação, a relação entre fi sco e contribuinte”. NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da interpretação e da aplicação das leis tributárias. 2.ª ed., SP: RT, 1965, p. 65.

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analogia; II – os princípios gerais de direito tributário; III – os princípios gerais de direito público; IV – a eqüidade”. Com as seguintes ressalvas:

“§ 1.º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei. § 2.º O emprego da eqüidade não poderá resultar na dispensa do paga-mento de tributo devido”.

Dentre todos os aspectos referidos, merece destaque a vedação à analogia, sufi ciente para abarcar quase todo o dispositivo, como também entende Ricardo Lobo Torres, sobre o que passamos a nos debruçar.

3.1. Analogia e eqüidade. A correção do direito tributário. Lacunas ju-rídicas. Normas sobre a integração no CTN e a crítica da doutrina

As defi nições sobre “analogia” são muito cambiantes, 49 pois acompanham os vários sentidos dos termos “analogia” ou “analógico”. Mesmo que se faça um corte metodológico para estudá-la nos limites estritos da sua aplicação ao Direito, esta ainda pode signifi car50 “con-ceito”, “juízo” ou “argumento”: i) conceito de classe, que denota um gênero ou uma classe. Assim, o conceito será analógico se não for pos-sível defi nir seu campo de aplicação de maneira precisa, já que consta de objetos ou entidades de natureza distinta, mesmo que guardem entre si certas semelhanças, por terem algum elemento em comum. Esse sen-tido está superado por outros mais objetivos, como conceitos “abertos”, “indefi nidos”, “vagos”. Quer dizer, aplicam-se, prima facie, a um caso central e, de forma derivada (analógica) aos constantes de uma “zona

49 “La noción de analogía es de difícil o imposible defi nición, en cuanto que no existe un concepto de analogía, sino una pluralidad de conceptos o más exactamente, una “familia de conceptos”. E mais adiante complementa: “Pero todos ellos tienen algo en común y este algo no es otra cosa que la Idea de semejanza o similitud. (...) El término ‘analogía signifi co originariamente proporción y, más exactamente, proporción matemá-tica”. ATIENZA RODRÍGUEZ, Manuel. Sobre la analogía en el Derecho. Madrid: Civitas, 1986, p. 15 e 28.

50 Cf. ibidem, p. 33-34.

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cinzenta”; ii) juízos ou proposições que incluem conceitos de relações, i.e., de semelhança de relações; 51 e, por fi m, iii) o argumento ou racio-cínio analógico, 52 que é uma inferência, provável, a partir de uma das premissas adotadas segundo as acepções anteriores, i.e., de conceitos de classes ou de relações.

Para os fi ns de aplicação da analogia aos domínios jurídicos, faz-se necessária a demonstração da presença da “lacuna”53 alegada. Este é o seu requisito principal, 54 e ainda, que esta seja “provável”, dependente de atividade probatória, porquanto o raciocínio da semelhança não se poderá aplicar sem que antes se demonstre que, para um dado fato, não há qualquer regulação.

Mas o termo “lacuna” precisa ser bem compreendido. Lacuna não é indeterminação, mas uma espécie de conceito negativo, porque indica um “vazio”, uma “falta”, uma “insufi ciência”. 55 Como diz Larenz: “O

51 Para um estudo profundo da analogia no campo da lógica deôntica, especial-mente quanto ao cálculo de relações, cf: KLUG, Ulrich. Lógica jurídica, Caracas: Univer-sidad Central, 1961, v. XXV, p. 148-187.

52 FALCON Y TELLA, Maria José. El argumento analógico en el Derecho. Madrid: Civitas, 1991, p. 15 e ss. XAVIER, Cecília. A proibição da aplicação analógica da lei fi scal no âmbito do estado social de direito. Coimbra: Almedina, 2006. 293p.

53 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 6.ª ed., Coimbra: Armênio Amado, 1984, p. 338 e ss.

54 Para Guastini: “(...) si può defi nire ‘lacuna’ nell’uno o nell’altro dei modo seguenti: (a) in un sistema giuridico vi è una lacuna allorché un dato comportamento non è deonticamente qualifi cato in alcun modo da alcuna norma giuridica di quel sistema; oppure (b) in un sistema giurifi co vi è una lacuna allorché per una data fattispecie non è prevista alcuna conseguenza giuridica da alcuna norma appartenente al sistema”. GUA-STINI. Riccardo. Dalle fonti alle norme. Torino: Giappichelli, 1992, p. 136. Cf.: AARNIO, Aulis. Lo racional como razonable: un tratado sobre la justifi cación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, 313 p.; ALCHOURRON, Carlos; BULYGIN, Euge-nio. Normative systems, New York: Springer-Verlag, 1971, 208 p.; ____. Analysis logico y derecho, Madrid: CEC, 1991, 485-98; ESSER, Josef. Principio y norma en la elab-oración jurisprudencial del derecho privado, Barcelona: Bosch, 1961, 498 p.; CERRI, Augusto. L’analogia nel sistema del diritto positivo. In: CASSESSE, Sabino et alli (Coord.). L’unità del diritto – Massimo Severo Giannini e la teoria giuridica. Torino: Il Mulino, 1994, p. 273-314; SANTIAGO NIÑO, Carlos. La interpretación de las normas jurídicas. In: Introducción al análisis del derecho. Buenos Aires, 1980, p. 245-73.

55 Cf. LUZZATI, Claudio. La vaguezza delle norme. Milano: Giuffrè, 1990, p. 410 e ss.

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termo ‘lacuna’ faz referência a um caráter incompleto. Só se pode falar de ‘lacunas’ de uma lei quando esta aspira a uma regulação completa em certa medida, para um determinado sector”. 56 Eis, portanto, o traço cru-cial para a correta identifi cação desse termo: a presença de um “espaço livre de direito”, enquanto setor que a ordem jurídica não lhe tenha dado regulação específi ca.

A analogia, nos domínios da ciência do direito, tem sido estudada sob aquelas duas modalidades já referidas: i) analogia legis, na qual a premissa é um conceito normativo, presente numa dada proposição jurí-dica do tipo, ao que seria mais apropriada, segundo Larenz, a expressão “analogia particular”, 57 porque a lei particular é aplicada “analogica-mente” a uma situação de fato não regulada por ela; e ii) analogia iuris (ou analogia geral), porque se parte de várias disposições jurídicas e, mediante indução, chega-se a um princípio geral aplicável à espécie.

Nas palavras de Karl Larenz: “Aqui, de várias disposições legais que ligam idêntica conseqüência jurídica a hipóteses legais diferentes, infere-se um ‘princípio jurídico geral’ que se ajusta tanto à hipótese não regulada na lei como às hipóteses reguladas”. 58 Assim temos a “analogia legal”, por meio da qual o intérprete, tentando atribuir regime jurídico a uma dada situação de fato desprovida de previsão legal, promove uma subsunção entre esta e uma norma jurídica que tenha como hipótese de incidência descrição de fato semelhante; e a “analogia iuris”, quando o intérprete tenta construir, por indução, um princípio geral do direito para uma norma aplicável à espécie factual.

Refl etindo sobre seus propósitos, vemos que o discurso da analogia traz, na atualidade, um texto desgastado e já não consegue realizar obje-tivo para o qual foi criado. Inicialmente, porque a analogia sempre foi entendida como forma de integrar “textos” e “leis”, no sentido técnico e porque, na origem, a idéia de interpretação não era a de construção de normas, mas de revelação do conteúdo, sentido e alcance das “normas” dadas, na sua função especifi cadora. O que fi cava de fora era lacuna,

56 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 2.ª ed., Lisboa: C. Gulbenkian, 1989, p. 448-9; Cf. ainda: ITURRALDE SESMA, Victoria. Lenguage legal y sistema jurídico: cuestiones relativas a la aplicación de la ley, Madrid: Tecnos, 1989, p. 147-218.

57 Ibidem, p. 464.58 Ibidem.

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que se poderia preencher mediante emprego da analogia. Desse modo, justifi cava-se seu emprego na interpretação jurídica como instrumento imprescindível, enquanto como técnica racional de adequar o direito positivo à sua evolução histórica e à realidade material à qual se pro-jetava como modelo de ordenação de condutas humanas na sociedade. Dois argumentos fundamentavam o emprego da analogia no Direito: i) a vontade presumida do legislador; e ii) a racionalidade e coerência do sistema quanto à sua completude, mas ambos são muito relativos e superfi ciais. O primeiro, porque remonta à modalidade de interpretação voluntas legislatoris, de tal sorte que se, à época da regulação, o legis-lador conhecesse do fato, teria dado idêntico tratamento ao que aplicara a outros que lhe são semelhantes; e o segundo, por não justifi car ade-quadamente os vários casos, segundo a matéria (direito penal, direito tributário, direito civil, etc) e as fontes do direito.

No direito tributário, dentre os mecanismos adotados para o com-bate à elusão tributária, está o uso dos métodos de integração do direito, em especial, a analogia. Lembra Tipke que nem na Alemanha, nem em muitos outros países, existe uma proibição explícita à analogia, como ocorre no Brasil (artigo 108, § 1.º, do CTN), na Espanha (artigo 23, 3, da Ley General Tributaria) e no México (Código Fiscal de la Federación). Como diz Ferreiro Lapatza, “la obligación tributaria es una obligación ex lege. El tributo no se puede exigir a un sujeto en base a la analogía”.59

Por isso, sequer nos países onde não existe tal limitação, prevista expres-samente em texto normativo, pode-se aceitar sua prática como algo regu-lar em matéria tributária.

Na Alemanha, Kruse, apesar de ser voz isolada, sustentou essa tese, entendendo que as normas tributárias que prescrevem deveres típicos

59 FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de derecho fi nanciero español. 18.ª ed., Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 80; Para os fi ns do direito tributário brasileiro, não é outra a opinião da melhor doutrina. Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário, 22.ª ed. SP: Saraiva, 2009, p. 101; COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 9.ª ed., RJ: Forense, 2006, p. 570-1; TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito fi nanceiro e tributário. 14.ª ed., RJ: Renovar, 2007, p. 141; mesmo que este último autor admita sua aplicação dentro de certas reservas. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 546.

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de obrigação principal não são suscetíveis de analogia.60 Tem-se, por conseguinte, que, a título de aplicar uma determinada norma tributária, defi nidora de regra-matriz de incidência, o intérprete não poderá exercer analogia (analogia legis) quando, ao identifi car um fato com relevância econômica alheio ao campo de incidência material da norma ou de um regime mais benéfi co, resolva transportá-lo para o âmbito de incidência da norma impositiva ou para os limites daquela mais gravosa, alegando eventual relação de semelhança. Como é clarividente, o princípio da tipicidade tributária não autoriza qualquer recurso a esta prática cria-dora de direito, agindo onde o legislador não houve regular. É o Estado--Administração avocando, por usurpação, os poderes que a Constituição reservara exclusivamente ao Parlamento. 61

Defi nitivamente, não parece cabível falar na existência de “lacu-nas” no âmbito de incidência dos tipos tributários impositivos. Ou as normas tributárias alcançam o fato, por seu conceito encontrar-se no campo semântico do conceito da norma (subsunção) – plano de incidên-cia –, ou não o alcançam, quando suas propriedades não permitam ade-quação ao campo de abrangência semântica da norma tributária, fi cando no domínio da não-incidência. A opção pela seleção dos fatos que podem ser tributados é decisão exclusivamente legislativa; da mesma sorte que

60 Nas suas palavras: “Todos estos métodos clásicos del perfeccionamiento jurí-dico también están permitidos en el derecho impositivo. Solamente existe una limitación fundamental para la analogía: mediante la analogía no pueden ser creados nuevos hechos imponibles”. Em seguida, reforça este entendimento em nota de rodapé: “Esta prohibi-ción de la analogía está fundamentada la mayoría de las veces sobre la puntualización del principio de tipicidad de la imposición, puntualización que no da de lleno en el núcleo del problema. En verdad, el derecho impositivo reposa en la resolución primaria del legisla-dor sobre la valoración impositiva de determinados supuestos de hecho. Esta dependen-cia del legislador descansa en la carencia de legitimidades materiales relevantes. Precisa-mente estas legitimidades materiales presuponen la exclusión de la analogía”. KRUSE, H. W. Derecho tributario – parte general. 3.ª ed., Madrid: Editorial de Derecho Financiero, 1978, p. 187; Cf. KRUSE, Heinrich Wilhelm. Il risparmio d’imposta, l’elusione fi scale e l’evasione. AMATUCCI, Andrea (coord.). Trattato di Diritto Tributario. Padova: CEDAM, 1994, v. III, P. III, cap. XXXV, p. 214.

61 Desnatura o próprio conceito de Estado, como afi rma Victor Nunes Leal: “O regime de legalidade é uma conquista política e jurídica da consciência universal, tradu-zida no chamado Estado de Direito”. LEAL, Victor Nunes. Problemas de direito público e outros problemas. Brasília: Imprensa Nacional, 1999, v. I, p. 61.

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é decisão tipicamente legislativa deixar de fora os fatos aos quais não pretenda atribuir a incidência de normas tributárias, 62 numa espécie de declaração do não-tributável, por omissão na tipifi cação – o que alguns denominam de “vazios legais desejados” 63 (Tipke e Lang).

A limitação à analogia compreende apenas as normas impositivas, defi nidoras da regra-matriz de incidência de cada tributo. Para os outros âmbitos do direito tributário, nenhuma vedação se poderia alegar ao uso da analogia como recurso hermenêutico, no sentido de analogia legis (108, I – analogia) ou analogia juris (108, II, III e IV – princípios gerais de direito tributário, princípios gerais de direito público e equidade), nos limites de quanto ainda se possa atribuir a tal distinção.64

O primado do consentimento legislativo, como forma de autoriza-ção à cobrança de qualquer tributo, é que estabelece a referida limitação, que alcança a norma tributária em todos os critérios da regra-matriz de incidência, desde sua hipótese (critérios material, temporal e espacial) até o conseqüente (sujeito passivo, no critério pessoal, e base de cálculo e alíquota, no critério quantitativo). A reserva absoluta de lei, combi-nada com o princípio de tipicidade 65 e com o da capacidade contributiva

62 Como diz Eusebio González García, respondendo à pergunta sobre a existência de lacunas no Direito: “Nuestra opinión personal al respecto es que no las hay, dado que – afortunadamente – el Derecho no tiene por qué regularlo todo, sino que regula lo que quiere regular y lo no regulado, no son lagunas, sino ámbitos que el Derecho no ha que-rido regular”. GONZÁLEZ GARCÍA, Eusebio. La interpretación de las normas tributarias. Pamplona: Aranzadi, 1997, p. 51; Cf. AMATUCCI, Andrea. L’interpretazione della norma di Diritto Finanziario. Napoli: Jovene, 1965, p. 58-59.

63 VILLAR EZCURRA, Marta. La analogía en la aplicación de las normas tributarias. In: Boletín del Ilustre Colegio de Abogados de Madrid – los negocios anómalos ante el derecho tributario español. Madrid: Colegio de Abogados de Madrid, 2000, n.º 16, sept., p. 124.

64 Para uma ampla descrição dos métodos de integração, mesmo se não comparti-lhe do entendimento conclusivo desse capítulo, salvo no que tange às críticas, cf.: TOR-RES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do Direito Tributário. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 113-144.

65 Seguindo o mesmo rigor de Alberto Xavier: “Ora, os próprios conceitos de taxa-tividade e de ‘numerus clausus’, inerentes à idéia de tipicidade, são incompatíveis com a existência de lacunas e sua integração analógica, pois foram adotados como regras constitucionais precisamente para vedar a possibilidade da analogia”. XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. SP: Dialética, 2001, p. 146.

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(objetiva), impede qualquer espaço para a analogia como instrumento integrativo visando à cobrança de tributos, sem disposição expressa de lei. irmes nesse entendimento estão muitos, como Paulo de Barros Car-valho, no Brasil, Sainz de Bujanda e Ferreiro Lapatza, na Espanha, além de A. D. Giannini e Antonio Berliri, 66 na Itália, dentre outros.

Outros autores, infl uenciados por Tipke,67 insistem em afi rmar a possibilidade de adoção da analogia em matéria tributária. Ocorre que estes se olvidam de algo muito basilar. Tipke justifi ca seu fundamento na ausência (literalista) de um princípio de tipicidade em matéria tribu-tária, a exemplo daquele previsto para o direito penal (nullum crimem

66 Como este afi rma: “A noi sembra al contrario, che debba concludersi che, almeno per le norme impositive, l’interpretazione analógica è esclusa e che possa ammettersi solo nel caso in cui il legislatore l’abbia espressamente consentita per una determinata imposta: e ciò in quanto in tal caso non si può parlare di vera e propria analogia intesa come integrazione della legge.” BERLIRI, Antonio. Principi di Diritto Tributario, Milano: Giuffrè, 1967, p. 155.

67 Veja-se o caso das defesas que este autor faz sobre o uso da analogia no direito tributário. A esse respeito, vale citar passagem de recente obra de Cesar García Novoa: “Incluso esta rehabilitación de la “analogía” – fundamentalmente en Alemania, de la mano de TIPKE – se propone salvar un último escollo, que viene constituido por el respeto a las reglas de la tipicidad en materia fi scal, a partir de un argumento que no nos parece aceptable, como es el de la diferencia radical entre las normas tributarias y las normas penales. Y no nos parece aceptable en la medida en que esta diferenciación se trae a cola-ción para relativizar o minimizar la aplicación de la tipicidad en el Derecho Tributario. Así, en un primer momento se recuerda por parte de TIPKE, que la Ley Fundamental de Bonn, en su art. 103, II, proclama la regla de tipicidad sólo en el ámbito penal, cuando dispone que “un acto sólo podrá ser penado si su punibilidad estaba establecida por ley anterior a la comisión del acto” (Eine Tat kann nur bestraft werden, wenn die Strafberkeit gesetzlich bestimmt war, bevor die Tat begangen wurde). Para añadir que, aunque en materia tributaria debe regir la legalidad, como garantía de la seguridad jurídica existen argumentos que propenden a postular un cierto margen de protagonismo a la analogía; no sólo las exigencias del “principio democrático” que, según TIPKE, permitirían integrar las llamadas “lagunas inconscientes”. Sino, sobre todo, la existencia de fenómenos de “fraude” –Steuerumgehung (TIPKE, K., Steuergerechtigkeit in Theorie und Praxis, Verlag Dr. Otto Schmidt KG, Köln, 1981, pag. 126). Se juega así con una argumentación clara-mente apodíctica, según la cual la analogía es necesaria, precisamente por la existencia de fenómenos de fraude y elusión fi scal. Esta circunstancia, en principio, no se da en el Derecho Penal, por lo que no valdría el modelo de las normas penales para rechazar en el ámbito tributario, la extensión analógica”. GARCÍA NOVOA, Cesar. El fraude de ley en derecho tributario. Madrid: Marcial Pons, 2003, p. 194.

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nulla poena sine leggem scripta). Sendo assim, o recurso à analogia seria aceitável tendo em vista as exigências de justiça de tratamento e isonomia entre todos os cidadãos pertinentes ao princípio democrático, como modelo de combate às condutas elisivas. Precisamente nessa linha, Carlos Palao Taboada, 68 insiste em considerar que “la admisión excep-cional de la analogía se justifi ca por la necesidad de evitar el fraude de ley”, porquanto a insegurança e incertezas geradas pela sua aplicação não representa mais do que “un precio que hay que pagar para impedir que la norma jurídica sea burlada”, mesmo que admita limitações, pois “el sacrifi cio de la seguridad jurídica ha de ser razonable”. Este autor utiliza-se da noção de “analogia iuris”, como recurso para justifi car sua premissa que o sistema dispõe dos princípios gerais necessários à elimi-nação de qualquer lacuna não desejada pelo sistema. Aplica, portanto, a tese, absolutamente superada, do sistema completo e sem lacunas. 69 Porém, mesmo reconhecendo a elevada autoridade intelectual deste importante catedrático espanhol, com ele não guardamos concordância. Trata-se de idéia circunscrita ao mesmo raciocínio fi nalista da doutrina alemã, à qual fi lia-se abertamente, baseada na concepção causalista das normas tributárias, as quais deveriam ser interpretadas sempre de acordo com o fi m que tais normas pretendem atingir; e como analogia não é mais do que uma modalidade de interpretação, ao menos no entender de Bobbio, tais lacunas “inconscientes” seriam perfeitamente suprimíveis.

No Brasil, outro deve ser o enfoque. A Constituição prescreve, no seu artigo 150, ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Reforça-o ainda mais ao eleger, previamente, todas as materialidades que defi nem as competências impositivas das pessoas de direito público interno da federação, concretizando a capacidade contributiva objetiva

68 PALAO TABOADA, Carlos. ¿Existe el fraude a la ley tributaria? Revista Crónica Tributaria. Madrid: IEF, 1998, n.º 182, p. 15. Em uma versão mais atual: ___. Las nue-vas medidas frente al fraude de ley tributaria. Seminário Fernando Sainz de Bujanda. Madrid: IEF, 2001, 19 p.; ____. Algunos problemas que plante a la aplicación de la norma española sobre el fraude a la ley tributaria. Revista Crónica Tributaria. Madrid: IEF, 2001, n.º 98, p. 127-39.

69 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 5.ª ed., Brasília: UnB, 1994, p. 113-160.

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desde o texto constitucional; e, para conferir-lhe efetividade na aplica-ção, no trato da capacidade contributiva subjetiva70, atribuiu, mediante o § 1.º do artigo 145, poderes à Administração Tributária para, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, identifi car, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, numa confi rma-ção dos propósitos de garantia ao direito de propriedade, bem como aos valores de segurança e previsibilidade de condutas.

Além disso, agrega o artigo 146, III, “a”, da CF que cabe à lei com-plementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre a defi nição de tributos e de suas espécies, em rela-ção aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes. Tudo em favor de certeza na defi nição dos principais critérios da regra-matriz de incidência dos tri-butos, mormente o critério material da hipótese. Tendo em vista que não se pode deixar de considerar os efeitos das normas gerais entabuladas pelo Código Tributário Nacional, faz-se mister compreender a função dos artigos 142, 141, 113, § 1.º e 3.º, todos do CTN, a exigirem prévia qualifi cação do fato jurídico tributário, para os fi ns de se constituir a obrigação tributária e, com ela, o crédito tributário – formalizado em ato de lançamento próprio.

Por tudo isso, para aperfeiçoar ainda mais essa exigência, o artigo 108, § 1.º, do CTN, prescreve taxativamente: “O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei”, que só confi rma o que já se disse acima: nesta República, nenhum tributo será cobrado sem lei específi ca (legalidade), e nos limites dos conceitos classifi catórios que adotar (tipicidade), segundo uma efetiva revelação de capacidade contributiva. Esse é o fundamento imponderável da nega-ção plena de qualquer tentativa espúria de se querer cobrar tributo por ato administrativo desprovido de base legal no direito brasileiro. Aqui,

70 “O princípio da capacidade contributiva fornece ao legislador o quadro geral das situações tipifi cáveis, ao estabelecer que só as situações da vida reveladoras de capaci-dade econômica são suscetíveis de tributação. Cumpre, de seguida ao legislador recortar, dentro do quadro assim defi nido, aquelas manifestações de capacidade contributiva que repute deverem fi car sujeitas a imposto”. XAVIER, Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. RT, 1978, SP, p. 83. Ver ainda: GIARDINA, Emilio. Le basi teoriche del principio della capacità contributiva. Milano: Giuffrè, 1961, 475 p.

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a teoria da causa dos impostos, fundada na capacidade contributiva, não tem, como se demonstra, qualquer cabimento. Conclui-se, portanto, que o conceito de legalidade, no âmbito do sistema constitucional, aplicado aos domínios da tipifi cação dos fatos jurídicos tributários, não admite “fl exibilidades”, como já quis sustentar certa doutrina episódica.

Por tudo o que foi dito, não encontramos qualquer possibilidade para o emprego de analogia no direito tributário brasileiro (o que vale também para as tentativas de interpretações extensivas e fi nalísticas) com o objetivo de cobrança de tributos. Fecha-se, assim, o círculo demo-crático do princípio republicano do consentimento dos tributos, pois, insistir numa permissão para tais métodos equivaleria a transferir para a Administração uma função constitucional que lhe é indisponível: de legislar sobre as matérias de sua competência.

3.2. Interpretação das normas direito tributário em face de conceitos, institutos e formas de outros ramos do direito, em especial do direito privado

É mister de qualquer doutrina em matéria tributária que se elabore a atribuição de separar, com demiúrgico corte, a experiência jurídica que se desenvolve no Brasil de quaisquer outras existentes no mundo, em vista do particularismo da nossa Constituição, por tratar amiúde do Sis-tema Tributário Nacional, analiticamente. Nesse contexto, as constru-ções reinantes em outros continentes a respeito da autonomia do direito tributário ou da relação entre direito civil e direito tributário perdem em conteúdo, tendo em vista o primado da Constituição, que há de prevale-cer sobre qualquer outro dogma ou pressuposto.

As normas tributárias usam sempre de hipóteses de incidência sele-tivas de propriedades, 71 reguladas tanto pelo direito administrativo –

71 Nas palavras de Vanoni: “A lei faz depender o nascimento da obrigação tributá-ria da verifi cação de determinadas circunstâncias da vida social, que por sua vez podem ser representadas por relações reguladas por outros ramos do direito, ou por fatos que já constituam objeto de outras normas jurídicas”. VANONI, Ezio. Natureza e interpretação das leis tributárias. Tradução de Rubens Gomes de Sousa. RJ: Edições Financeiras, s/d, p. 158.

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como é o caso das taxas e contribuições de melhoria, que têm como pres-suposto a prestação de serviços públicos, exercício de poder de polícia ou construção de obras públicas que geram valorizações imobiliárias, respectivamente – como pelo direito privado, no caso dos impostos e contribuições, quanto aos contratos de serviços, de venda e compra, de seguros etc. É dizer, espécies contratuais de negócios jurídicos, emana-dos a partir do exercício de autonomia privada, vão, assim, sendo sele-cionadas pelas hipóteses normativas de leis tributárias para justifi car a formação de obrigações tributárias típicas de impostos ou contribuições (renda, patrimônio, consumo, faturamento, receita, etc).

É lugar-comum dizer-se que o direito tributário é um direito de “segundo grau”,72 ou de superposição, em vista de outros setores dog-máticos, como o direito privado, por exemplo. Fosse assim, todo o orde-namento teria essa qualidade, pois o reenvio a outras matérias é inerente às normas de vários ramos, como Direito Internacional Privado, Direito Penal, Direito Administrativo, Direito Processual Civil etc. Tal contin-gência não colabora em nada para a diferenciação sistêmica do direito tributário, e muito menos para sua aplicação. O fato é que o legislador volta-se sempre para conceitos já elaborados no direito civil, no comer-cial ou no administrativo, ao delimitar os critérios das regras-matrizes de incidência dos tributos.

Nesses domínios, as fi guras são colhidas no seu modo estático, segundo uma confi guração formal, e não no modo dinâmico que lhe seja próprio no campo de origem, quer no âmbito da autonomia negocial, no direito de propriedade ou no direito administrativo. 73 Ou seja, para o direito tributário, os “atos de direito privado” ou os “atos administrati-vos” não transportam seus efeitos e contingências que ali operam ou pos-suem; valem como “fatos juridicamente qualifi cados”, por serem objeto da materialidade descrita na hipótese normativa de uma norma tributária. Por isso, quando a lei tributária não dispuser de modo diverso, os institu-

72 Cf. PAPARELLA, Franco. Possesso di redditi ed interposizione fi ttizia. Milano: Giuffrè, 2000, p. 245.

73 Cf. GIANNINI, Massimo Severo. L’interpretazione dell’atto amministrativo e la teoria giuridica generale dell’interpretazione. Milano: Giuffrè, 1939, 381 p.; Cf.: COR-REIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administra-tivos. Coimbra: Almedina, 1987, p. 128 e ss.

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tos, conceitos e formas de outros ramos do direito serão preservados nas suas características originais. Isso não impede que o legislador promova alguma mutação no conceito, na forma ou no instituto, mediante indica-ção de outras propriedades, 74 selecionadas criteriosamente a partir do fato social complexo, e guardados os limites constitucionais.

O legislador pode reelaborar conceitos já defi nidos em enunciados de direito privado, tendo por objeto o mesmo fato material, caso em que seria mais exato falar de elaboração de conceitos de direito tributário, facilitada pela prévia juridicização promovida pelo direito privado. É que mediante tal transformação, o instituto perde suas feições originais, de natureza de direito privado, para adquirir funcionalidade no direito tributário. Desse modo, já não se prestaria a tutelar as situações jurídicas entre particulares, mas passaria a servir como “causa” para a constituição de situações tributárias ou se prestaria como elemento de defi nição dos respectivos efeitos ou qualifi cações dos elementos da obrigação tributá-ria. É como se o direito tributário criasse um conceito “ex novo”.

O legislador pode ainda, por incorporação, conservar os valores e as propriedades originárias do conceito, tal como formulado no âmbito privado. Neste caso, o direito tributário “usaria” o instituto, sem que lhe conferisse novo conteúdo ou efeito. Limitar-se-ia, destarte, a tomar em consideração, entre os elementos da relação, aqueles que demonstrassem relevância para efeitos tributários. Como diz Diogo Leite de Campos: “Não há uma defi nição fi scal. Está errado, em princípio, afi rmar que o Direito Fiscal é um direito que pode ter a sua própria defi nição das insti-tuições civis e comerciais”. 75 Por isso é que, praticado um dado negócio jurídico tipifi cado em lei tributária, mesmo que mais tarde se venha a

74 Sobre este tema: ALCHOURRÓN, Carlos E.; BULYGIN, Eugenio. Defi niciones y nor-mas. BULYGIN, Eugenio; RICKERT, Heinrich. Teoría de la defi nición. México: UAM, 1960, 85 p.; FARREL, Martin D.; RABOSSI, Eduardo A. (Coord.). El lenguaje del derecho: home-naje a Genaro Carrió. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, s.d., p. 11-42. BELVEDERE, Andrea. Il problema delle defi nizioni nel codice civile. Milano: Giuffrè, 1977, 191 p.; SCARPELLI, Uberto. La defi nizione nel diritto. In: Diritto e analisi del linguaggio. Milano: Edizioni di Comunità, 1976, 560 p.; SEMANA, Paolo. Linguaggio e potere. Milano: Giuffrè, 1974, 369 p.

75 CAMPOS, Diogo Leite de. Interpretação das normas fi scais. In: Problemas fun-damentais do direito tributário. Lisboa: 1999, p. 29; Cf. ainda: NAVAS VÁZQUEZ, Rafael. Interpretación y califi cación en derecho tributario. In: Boletín del Ilustre Colegio de Abo-

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alegar sua invalidade ou inefi cácia, isso não será sufi ciente a priori para afastar a incidência tributária, na forma como o negócio foi constituído. Como não poderia deixar de ser, recepcionar todos os conceitos, insti-tutos ou formas de direito privado aos quais não lhes tenha feito refe-rência, de forma expressa ou tácita, tendo em vista sua funcionalidade no sistema, pois qualquer enunciado vale para todo o sistema76, salvo derrogação legal. É assim quanto à contagem de prazos, conceitos como personalidade, capacidade dos sujeitos, dentre outros. Por fi m, pode o legislativo criar uma categoria jurídica própria, distinta de tudo quanto esteja previsto no direito privado, 77 para informar o conteúdo das nor-mas de direito tributário.

Destarte, pela ausência de qualquer espécie de autonomia do direito tributário em face de outros ramos, no âmbito de direito positivo, hoje está claro, para todos, não existir um problema de coordenação entre direito tributário e direito civil, como que a prevalecer um ou outro, como se fos-sem “ordens jurídicas” distintas ou alguma espécie de subordinação. O legislador tributário somente se vai limitar por uma espécie de principio conservativo dos tipos e formas dos atos e negócios jurídicos de direito privado, quando estes se encontrem relacionados com aqueles adotados pela Constituição Federal para a distribuição de competências tributá-rias, 78 sem que isto implique reconhecer qualquer prevalência do direito privado sobre o tributário, porquanto a prevalência seja exclusivamente

gados de Madrid – los negocios anómalos ante el derecho tributario español. Madrid: Colegio de Abogados de Madrid, 2000, n.º 16, sept., p. 9-24.

76 Alfredo Augusto Becker fez observação precisa a respeito: “Uma defi nição, qualquer que seja a lê que a tenha enunciado, deve valer para todo o direito; salvo se o legislador expressamente limitou, estendeu ou alterou aquela defi nição ou excluiu sua aplicação num determinado setor do direito; mas para que tal alteração ou limitação ou exclusão aconteça é indispensável a existência de regra jurídica que tenha disciplinado tal limitação, extensão, alteração ou exclusão”. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do Direito Tributário, 3.ª ed., SP: Lejus, 1998, p. 123.

77 Cf. BOSELLO, Furio. La formulazione della norma tributaria e le categorie giu-ridiche civilistiche. Diritto e pratica tributaria.Padova: CEDAM, 1981, v. LII, P. I, p. 507-36; COSTA, Alcides Jorge. Direito tributário e direito privado. MACHADO, Brandão (Coord.), Direito Tributário – estudos em homenagem ao prof. Ruy Barbosa Nogueira, SP: Saraiva, 1984, p. 219-37.

78 Contrario sensu, v. CIPOLLINA, Silvia. La legge civile e la legge fi scale, Padova: CEDAM, 1992, p. 77.

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do direito constitucional. Por conseguinte, este caráter conservativo das competências materiais para os domínios da administração tributária, 79 para os efeitos dos atos de aplicação, pela submissão à legalidade e pela impossibilidade de exercer alguma espécie de função criativa de novos tipos ou conceitos normativos relativamente aos que foram construídos pelo legislador, nos termos constitucionais.

3.3. Relações entre direito tributário e direito privado

Eventuais limitações à relação entre direito tributário e direito pri-vado, no Brasil, devem ser buscadas na Constituição. O Código Tributá-rio Nacional contempla duas regras exclusivamente voltadas para dirigir a interpretação das normas tributárias nessa matéria, que são os artigo 109 e o artigo 110.

O artigo 109, do CTN, segundo o qual, os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da defi nição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para defi nição dos respectivos efeitos tributários, historicamente, foi um modo de afas-tar qualquer submissão do direito tributário ao primado do direito civil, ou da sujeição das normas tributárias aos princípios gerais de direito pri-vado, com prevalência dos conceitos, formas e institutos que o legislador tributário queira eleger. Sobre o artigo 109, do CTN, Aliomar Baleeiro atesta a pretensão do legislador em garantir o “primado do direito pri-vado”, mas limitadamente ao universo das relações entre particulares, naquilo que o direito tributário não dispuser de modo diverso. Ou seja, quando o direito tributário regular uma determinada seara que tenha implicações com institutos, conceitos ou formas do direito privado, pre-valeceriam suas características naquilo que a lei tributária não a houvesse excetuado80. Nas suas palavras: “o Direito Tributário, reconhecendo tais

79 Cf. DE MITA, Enrico. Diritto tributario e diritto civile: profi li costituzionali. Rivi-sta di diritto tributario, Milano: Giuffrè, 1995, a. 5, v. I, feb., p. 152.

80 Este artigo 109 encontra sua origem no artigo 76 do Anteprojeto, de autoria de Rubens Gomes de Sousa, que serviu de base aos trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional. E a respeito desse dispositivo, tece os seguintes comentá-rios: “O artigo 76 (...) visa afastar o recurso aos princípios gerais de direito privado como

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conceitos e formas, pode atribuir-lhes expressamente efeitos diversos do ponto de vista tributário. (...) O conteúdo genérico do artigo 109 está desdobrado no artigo 110”. 81 Estas opiniões são corroboradas por vários autores, com aceitação de uma livre escolha que o ordenamento atribui-ria ao legislador tributário para modifi car formas, conceitos e institutos de direito privado.

Somente a “lei tributária” (e não a autoridade administrativa) poderá alterar a defi nição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e for-mas de direito privado quando estes não forem tipos constitucionalmente considerados como critérios para repartição de competências em matéria tributária. Isso nada tem que ver com alguma espécie de autorização ao método da interpretação econômica em matéria tributária,82 posto que se

método supletório na interpretação da lei fi scal. (...) Admite o artigo 76 o emprego dos princípios gerais de direito privado apenas em sua esfera própria, que é a interpretação dos institutos, conceitos e formas daquele direito, a que faça referência a legislação tribu-tária. Mas ressalva, no § único, a possibilidade da lei tributária atribuir, àqueles institutos, conceitos e formas, uma defi nição própria aos efeitos fi scais. Trata-se de uma conseqüên-cia da autonomia do direito tributário em relação ao direito privado, fundada na diver-sidade dos objetos visados por um e por outro: o direito privado regula a validade jurí-dica dos atos, o direito tributário investiga o seu conteúdo econômico. A norma encontra acolhida na jurisprudência (Revista Forense 145/313, Revista dos Tribunais 195/290, Revista de Direito Administrativo 23/70), mas tem o seu limite natural na referência ao direito privado na Constituição para defi nir a competência tributária, como ponderaram as sugestões 147 e 912”. MINISTÉRIO DA FAZENDA. Trabalhos da Comissão Espe-cial do Código Tributário Nacional. RJ: Imprensa Ofi cial, 1954, p. 183.

81 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário brasileiro (Anotado por Misabel de Abreu Machado Derzi). RJ: Forense, 11.ª ed., 1999, p. 685; Assim também Paulo de Barros Carvalho, quando afi rma: “(...) não havendo tratamento jurídico explicitamente previsto, é evidente que prevalecerão os institutos, categorias e formas do direito privado.” CAR-VALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário, 22.ª ed. SP: Saraiva, 2009, p. 103; FALCÃO, Amílcar. Fato gerador da obrigação tributária, 6.ª ed., RJ: Forense, 1997, p. 32. VANONI, Ezio. Natura ed interpretazione delle legge tributarie. Padova: CEDAM, 1932, p. 145-79.

82 Como afi rma Brandão Machado, no seu prefácio à tradução da obra de Wilhelm Hartz: “(...) a doutrina brasileira se tem referido aos dois critérios de interpretação como se tratasse de critérios aplicáveis a todo sistema jurídico, com as mesmas conseqüências que produzem no direito alemão. Na verdade, fala-se abertamente, entre nós, em abuso de forma, como se o direito positivo brasileiro houvesse criado, como fez o direito ale-mão, a fi gura da fraude ao imposto, calcada no conceito de fraude à lei. Mas ocorre que o direito brasileiro não criou a fi gura e por isso, admite como válidos e insuscetíveis de

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trata de autorização e reconhecimento de qualifi cação legislativa e não administrativa, em fase de aplicação de tributos.

Corolário do quanto se afi rmou acima,83 o CTN reservou disposi-tivo exclusivo para esse fi m. Trata-se do artigo 110, pelo qual: “A lei tri-butária não pode alterar a defi nição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicita-mente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para defi nir ou limitar competências tributárias”.

Comparando o teor desse artigo 110 com o artigo 109, do CTN, temos que “A lei tributária” (não a autoridade administrativa, mediante ato de lançamento) somente poderá alterar a defi nição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado quando estes não forem tipos constitucionalmente previstos para repartição de com-petências. O artigo 146, I, da CF, impõe na atualidade esta coerência. Pudessem a União, Distrito Federal, Estados ou municípios manipular os conceitos que servem à repartição de competências, mediante leis suas, modifi cando os tipos prescritos, restaria prejudicada a hierarquia norma-tiva (da Constituição em face das leis) e os princípios garantísticos de certeza e segurança jurídica. Trata-se de reforço ao quanto já se dessome da própria Constituição, mas que é sempre importante. É a mais lídima afi rmação das funções de norma geral em matéria de legislação tributá-ria, prescrita pelo art. 146, I, da CF, em favor da eliminação de eventuais confl itos de competência, em matéria tributária.

qualquer censura os negócios jurídicos indiretos”. HARTZ, Wilhelm. Interpretação da lei tributária: conteúdo e limites do critério econômico. SP: Resenha Tributária, 1993, p. 24-25.

83 JÈZE, Gaston. O fato gerador do imposto (contribuição à teoria do crédito de imposto). Revista de direito administrativo. RJ: FGV, 1945, v. II, fasc. 1, jul., p. 50-63; ____. Natureza e regime jurídico do crédito fi scal. Revista de direito administrativo. RJ: FGV, 1946, v. III, fasc. 1, jan., p. 59-68.

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4. Resultados da interpretação do Direito Tributário – interpreta-ção especifi cadora, restritiva e extensiva

No grupo de regras de dirigismo hermenêutico também vamos encontrar normas voltadas aos resultados da interpretação. Assim, empregando os métodos disponíveis, o intérprete poderia chegar a um resultado específi co, como: i) interpretação especifi cadora, ideal da interpretação literal ou gramatical; ii) interpretação restritiva, nos casos em que os resultados da interpretação especifi cadora pudesse ser desfa-vorável aos interesses do Estado; ou iii) interpretação extensiva, mani-festada na intenção do intérprete de ampliar o sentido da norma para além de uma interpretação especifi cadora, com a fi nalidade de alcançar situações ou propriedades que aparentemente não estariam contidas no enunciado interpretado.

Mas, em vista do princípio da legalidade em matéria tributária, além de outros tantos, como o da indisponibilidade do patrimônio público, o que se pode esperar de uma “interpretação extensiva” em matéria tributá-ria, para os fi ns de exigência de tributos? Os que a defendem o fazem em prol dos direitos de liberdade, para privilegiar o espírito constitucional e os valores ali albergados (favorabilia amplianda, odiosa restringenda), 84 ao que seria cabível até mesmo a analogia (ubi eadem ratio ibi eadem dispositio o ídem ius). Assim, em face da preferibilidade dos valores, os limites para tal interpretação extensiva seriam os limites do quanto fosse imaginado pelo intérprete, conforme as convicções e interesses pessoais.

Para demonstrar o quanto podem ser polêmicas quaisquer formas de dirigismo no processo de interpretação, 85 a respeito de normas consti-tucionais protetoras de liberdades, diz Carlos Maximiliano, um dos mais argutos hermeneutas brasileiros, comentando a Constituição Federal de

84 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 200.

85 Quanto à importância dessas regras no sistema, acolhemos a conclusão de Ricardo Lobo Torres, para quem estas são regras ambíguas, insufi cientes e redundantes, o que compromete sua efetividade, i.e., a efi cácia social, haja vista o caráter ideológico que possuem e pelo desequilíbrio que introduzem no sistema de valores jurídicos e dos poderes do Estado. TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2000, p. 275.

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1946:86 “Interpretam-se estritamente as limitações gerais do direito de tributar, bem como as isenções particulares. Em regra, a prerrogativa governamental de exigir contribuições para as despesas públicas é exer-cida de modo geral e absoluto, estende-se ao conjunto das pessoas e bens, dentro da jurisdição do poder que decreta o ônus; todas as presunções militam a favor do uso efetivo da faculdade ilimitada de tributar”. Sabe--se que esta era a orientação da doutrina alemã da época, e como Carlos Maximiliano a acompanhava (sem qualquer atribuição de vínculos ide-ológicos), não causa espécie assim entender. Hoje, no entanto, apesar de o Código propugnar por uma interpretação literal também para as isen-ções, ninguém, nem mesmo o próprio Fisco, admite tal entendimento.

No âmbito dessas considerações, a título de uma interpretação restritiva, conforme o artigo 111, do CTN, “interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:

I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; II – outorga de isenção; III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.

O método restritivo87 é técnica muito empregada em direito tributá-rio. Para muitos, as leis tributárias, ordinariamente, são orientadas a uma interpretação pelo “método literal”. 88 Como exemplo, nos países anglo-

86 MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à constituição brasileira. 4.ª ed., RJ: Freitas Bastos, 1948, p. 274.

87 Como lembra Eusebio González: “La Idea proveniente de la Revolución Fran-cesa y debatida en la época del código de Napoleón, postulaba que las normas no se interpretan, sino que se aplican literalmente. Esta posición tiene sentido como reacción a un sistema anterior, donde prevalecían las interpretaciones arbitrarias y alejadas de la letra de la ley. Consiguientemente, donde la interpretación era arbitraria, desconectada del texto de la ley, la reacción fue la pura literalidad”. GONZÁLEZ GARCÍA, Eusebio. La interpretación de las normas tributarias. Pamplona: Aranzadi, 1997, p. 47.

88 Para um amplo estudo da interpretação das normas de direito tributário, veja-se: VANONI, Ezio. Natura ed interpretazione delle legge tributarie. Padova: CEDAM, 1932, p. 145-79; BERLIRI, Antonio. Principii di Diritto Tributario, Milano: Giuffrè, 1967, v. I, p. 109-55;TRIMELONI, Mario. l’interpretazione nel diritto tributario, Padova: CEDAM, 1979, p.168; Para uma crítica à “interpretação literal”, dizendo: “(...) óbvio está que impede a ida ao contexto. E, como não há texto sem contexto, o processo de edifi cação do sentido fi ca truncado, frustrando-se a interpretação”. CARVALHO, Paulo de Barros.

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-saxônicos, de um modo geral, e por incrível que possa parecer, o prin-cípio vigente é o de que a tributação só pode se basear numa legislação sufi cientemente precisa e de alcance claramente defi nido, devendo-se interpretar literalmente suas disposições. Na Grã-Bretanha, os juízes, e, sobretudo, a Administração, têm que usar de uma interpretação exclu-sivamente restritiva.89 Quando o recurso ao método teleológico é recla-mado, numa pretensão de aperfeiçoamento da lei, considera-se tal atitude como uma espécie de “invasão” nos direitos do legislador. O mesmo ocorre com os EUA, Canadá e Nova Zelândia, que procuram restrin-gir ao máximo a chamada interpretação criativa no Direito Tributário, mesmo que, em contrapartida, busquem um constante aprimoramento das formulações normativas. Na Bélgica, existe a obrigação imperiosa de interpretar restritivamente as regras do direito tributário, cabendo, em caso de dúvida, benefício ao contribuinte. No Japão, o artigo 84 da respectiva Constituição, no capítulo que trata das limitações ao poder de tributar, afi rma a necessidade de uma interpretação a mais restritiva possível das normas impositivas.

Como bem afi rmou Rubens Gomes de Sousa:90 “o artigo 111 é regra apriorística, e daí o seu defeito, que manda aplicar a interpretação literal às hipóteses que descreve. A justifi cativa ou, se quiserem, apenas explicação do dispositivo, é de que as hipóteses nele enumeradas são exceções às regras gerais de direito tributário. Por esta razão, o Código Tributário Nacional entendeu necessário fi xar, aprioristicamente, para elas, a interpretação literal, a fi m de que a exceção não pudesse ser esten-dida por via interpretativa além do alcance que o legislador lhe quis dar, em sua natureza de exceção a uma regra geral”.

Sem dúvidas, este “método” constitui o ponto de partida para uma atividade de interpretação das normas tributárias, i.e., em modo restri-

Lançamento por homologação – decadência e pedido de restituição. Repertório de Juris-prudência-IOB, São Paulo: IOB, 1996, ago-set, p. 1.705.

89 Interpretação restrita, nas palavras de Dino Jarach, “(...) quiere decir prohibición de una interpretación ampliatoria, extensiva, que no llega a la analogía, pero que extiende los términos más alla de su signifi cado literal, por entender que el legislador ha dicho más de lo que en realidad queria expresar”. JARACH, Dino. Curso superior de derecho tributario, Buenos Aires: Cima, 1957, p. 254.

90 SOUSA, Rubens Gomes de. Interpretação das leis tributárias. In: ATALIBA, Geraldo. Interpretação no Direito Tributário, São Paulo: Saraiva, 1975, p. 379.

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tivo, o mais limitado possível, pela intratextualidade à qual se reduz, evi-tando-se a contextualidade e a intertextualidade. Mas é deveras ambígua sua proposta, pois, a depender da posição na qual o sujeito se encontre, o que se considera como interpretação restritiva pode passar a ser exten-siva, como é o caso das regras de isenção, cuja redução à literalidade pode enquadrar-se não apenas numa interpretação especifi cadora, mas alargar-se para uma interpretação extensiva do Fisco, quanto às condi-ções ou hipóteses de não cabimento do benefício que poderia conceder a um determinado contribuinte.

Ao lado desta, o artigo 112, do CTN, surge como exemplo de regra típica de interpretação extensiva, prevê que “lei tributária que defi ne infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:

I – à capitulação legal do fato; II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos; III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade; IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.

Não obstante essas apertadas referências sobre resultados de inter-pretação, extensiva e restritiva, preferimos enfatizar a debilidade destas propostas, adotadas mais como recursos retóricos do que propriamente com uma fi nalidade de efi ciência hermenêutica. Como bem demons-trou Vanoni,91 já em 1932, de forma peremptória: É pura ilusão falar de interpretação extensiva ou restritiva: na realidade a lei, como vontade imanente do Estado, não é nem ampliada nem restringida pelo traba-lho da interpretação, mas identifi cada em sua substância, decorrente da sua expressão exterior, através da qual a determinação legislativa se manifesta para compreensão da vontade efetiva da entidade pública que a afi rma.E complementa adiante: É, portanto, reduzida a importância do método tradicional de classifi cação dos resultados de interpretação: e nem teríamos referido o assunto, se não fosse oportuno considerar,

91 VANONI, Ezio. Natureza e interpretação das leis tributárias. Tradução de Rubens Gomes de Sousa. RJ: Edições Financeiras, s/d, p. 320.

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ainda uma vez, o preconceito consagrado pelo uso, segundo o qual a interpretação extensiva não seria admissível em direito tributário.

De fato, não encontramos qualquer utilidade em normas desse jaez. A opção interpretativa quanto ao resultado depende dos signos lingüísti-cos e do contexto em que se põe o enunciado jurídico.

Vê-se, assim, completamente superada, portanto, a fi xação legis-lativa dos limites à escolha do resultado dos atos de interpretação em detrimento de outros, não só porque hoje se vê plenamente reconhecido o direito à utilização livre de métodos, mas também porque, como textos que são, estas mesmas regras carecem de interpretação, deixando mar-gem a incertezas, ambigüidades e insegurança jurídica, como lembra Ricardo Lobo Torres.92

5. Considerações fi nais – a boa fé objetiva na interpretação tributária

Diante do exposto, deve-se concluir que a autoridade administra-tiva, na aplicação dos tributos ou na solução de confl itos, i.e., quando decide e argumenta, deve atuar com observância da boa fé nos seus atos, mas também tem o dever de avaliar a boa fé na conduta dos contribuin-tes, em cumprimento a princípios fundamentais, como proporcionali-dade, segurança jurídica e efi ciência. Negar o exame da boa fé nos atos dos contribuintes, e tanto mais nos casos que a lei atribui a estes o dever de aplicação (interpretação) da legislação tributária, equivaleria a supri-mir destes idêntico direito de decidibilidade em padrões semelhantes de seleção de possibilidades na aplicação da legislação tributária, provado o manifesto interesse em dar cumprimento à legalidade.

Como metodologia adequada, a argumentação interpretativa com-parece com evidente contribuição para o aprimoramento da interpretação das leis tributárias. A teoria da argumentação é uma lógica da decisão, que tem cabimento a partir da refutação da tese da única resposta cor-reta, em virtude da inesgotabilidade de sentidos das proposições nor-mativas vertidas em signos lingüísticos. Para Robert Alexy, a teoria da argumentação jurídica requer sejam sempre considerados três aspectos

92 TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do Direito Tribu-tário. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 137 e ss..

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na aplicação do Direito: “onde e em que medida são necessárias valora-ções”, “como atuam essas valorações nos argumentos qualifi cados como especifi camente jurídicos” e “se tais valorações são passíveis de funda-mentação racional.”93 Ora, se interpretar consiste numa escolha de senti-dos, estes requerem uma atividade valorativa do intérprete.

Por mais vinculada que seja a atividade administrativa, da seleção de sentidos nenhum intérprete escapa. Em vista disso, é perfeitamente aceitável que isso possa levar o contribuinte a incorrer numa desconfor-midade de conduta em relação àquela projetada ou esperada pela Admi-nistração, mas em lídima boa fé, sem qualquer intuito fraudulento ou de ilegalidade (o que deve ser provado). Por isso mesmo, demonstrada a boa fé, cabe às autoridades administrativas a aceitação do contribuinte como intérprete qualifi cado das normas tributárias e o ajuste de conduta sem quaisquer sanções.94

Abandonada a pretensa controlabilidade das interpretações segundo métodos racionais, tem-se que, segundo argumentos sistemáticos, os princípios do ordenamento são os únicos critérios de controle da inter-

93 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso Racio-nal como Teria da Justifi cação Jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2005, p. 38-39. TOULMIN, Stephen Edelston. The uses of Argument. New York: Cambridge University Press, 2003. MACCORMICK, Neil. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. Trad. Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. Trad. Maria Cristina Gumarães Cupertino. 3. ed. São Paulo: Landy, 2006. PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: A nova retórica. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 211-398.

94 Como bem assinala Mauro Trivellin: “la buona fede assolve la sua funzione nella dimensione interpretativa”. TRIVELLIN, Mauro. Il principio di buona fede nel rapporto tri-butario. Milano: Giuffrè, 2009, p. 346; Com isso exige o esforço do argumento segundo o princípio de boa fé, à Administração é defeso deixar de examinar o comportamento do contribuinte em conformidade com esse cânone hermenêutico, ou nas palavras de Robert Alexy: “quem fundamenta algo pretende, ao menos no que se refere a um processo de fundamentação, aceitar o outro como parte na fundamentação, com os mesmos direitos, e não exercer coerção nem se apoiar na coerção exercida por outros. Também pretende assegurar sua asserção não só perante seu interlocutor, mas perante qualquer um. Os jogos de linguagem que não pretendam cumprir pelo menos esta exigência, não podem considerar-se fundamentação”. ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: A Teo-ria do Discurso Racional como Teria da Justifi cação Jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2005, p. 149.

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pretação, ou os valores possíveis admitidos pelo sistema, segundo a com-posição entre estes, pela ponderação ou mesmo pela aplicação prima facie do conteúdo. Mediante rigoroso emprego dos princípios (interpre-tados), é que o intérprete decide e cria normas jurídicas. Neste percurso gerativo de sentido, os cânones hermenêuticos da boa fé e da confi ança surgem com força expressiva e oferecem caminhos seguros para a função corretiva da atividade administrativa quanto à conformidade da atuação do contribuinte.

A boa fé, no direito tributário, é uma pauta hermenêutica que se deve adotar a partir de um prudente exame das interpretações possíveis, tanto na ação administrativa atuação, como estabelece o artigo. 2.º da Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, “segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”; como do contribuinte que demonstra o intuito de agir secundum legem no cumprimento das suas obrigações e deveres formais.

O emprego da boa fé objetiva é a maior evidência de efetividade dos princípios da moralidade (Administração Pública) e da dignidade da pessoa humana como conteúdo de segurança jurídica (contribuinte) no Direito Tributário, de modo a assegurar práticas responsáveis e legíti-mas quer no agir administrativo em conformidade com a boa fé, quer no exame da conduta dos sujeitos passivos, na interpretação das leis tributá-rias, mormente quando constatada a efetiva ignorância da lei tributária95 aplicável ou naqueles casos não bem de “colaboração”, mas de aplicabi-lidade obrigatória da lei tributária diretamente pelo sujeito passivo (casos de autotributação), nos quais a conformidade à legalidade não passa por prévio controle das autoridades fi scais.

Cumpre lembrar que a boa fé objetiva não se confunde com a con-fi ança (lato sensu), que defl ui da confi ança que todo cidadão tem na autovinculação do Estado aos seus próprios atos (leis ou decisões judi-ciais ou administrativas), ou com a proteção da expectativa de confi ança legítima, que é expressão subjetiva de vinculação administrativa a um estado de aceitação expressa ou implícita sobre determinadas situações que reputa em conformidade com a lei e com a prática que adota, de forma duradoura e contínua. De qualquer modo, são valores que se inte-

95 Cf. LOGOZZO, Maurizio. L’Ignoranza della legge tributaria. Milano: Giuffré, 2002.

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gram e promovem notáveis mudanças de conduta na atuação da Admi-nistração Tributária.

Muitas das condutas dos contribuintes consideradas como incorre-tas ou vedadas são adotadas numa fi rme pretensão de conformidade com exigências confusas, confl itantes, complexas ou até de práticas reitera-das da própria Administração Tributária que induzem o contribuinte a erros ou incertezas.96 Nessas situações, quando a Administração conhece da desconformidade, a consequência é sempre a exclusão de benefícios, aplicação de multas e juros ou restrição a opções do contribuinte, em pre-juízo da confi ança na atuação administrativa. A vinculação administra-tiva à legalidade, nas hipóteses de dúvidas interpretativas caracterizadas nos procedimentos atribuídos legalmente ao contribuinte, porém, não se impõe como um padrão de conformidade à legalidade para a atuação dos contribuintes com controle a posteriori, quando este não se tenha antecipado pela própria Administração Tributária.

A conformidade ou a desconformidade de uma conduta em face da legislação tributária, no Estado Democrático de Direito, em atenção aos princípios da segurança jurídica e da confi abilidade, deve ser examinada à luz do princípio hermenêutico da boa fé do contribuinte. Se o ato admi-nistrativo vinculado tem a “função de concretizar e de estabilizar as rela-ções jurídicas entre o Estado e o cidadão particular”, como bem resume Hartmut Maurer,97 essa qualidade estabilizadora da relação jurídica entre Administração e contribuinte propicia as bases de confi ança na sua per-

96 “Numa sociedade aberta aos intérpretes da normatividade e num mundo com-posto por uma legalidade ‘principialista’ e envolta numa densa fl oresta de normas regu-ladoras da actividade administrativa, a descoberta de qual seja o exacto padrão regula-dor da conduta administrativa pode bem tomar-se um milagre. Um milagre, aliás, que tem a particularidade de se encontrar nas mãos da própria Administração Pública. Ou seja, por outras palavras, é aquele que está vinculado que, sem prejuízo de uma possível intervenção judicial a posteriori, defi ne o sentido e os termos da própria vinculação: a Administração Pública diz-se vinculada a um complexo normativo do qual ela própria é, em primeira linha, titular de relevantes poderes decisórios na fi xação do alcance dessa mesma vinculação.” OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003. p. 961.

97 MAURER, Hartmut. Contributos para o direito do estado. HECK, Luís Afonso (Trad.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 108. Cf. MELIS, Giuseppe. L’Inter-pretazione nel diritto tributario. Padova: CEDAM, 2003. p. 514.

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manência quando adotado dentro de condições de legitimidade e certeza jurídica, excetuado o caso do controle hierárquico. Essa certeza na con-duta futura das autoridades, quanto à preservação dos seus próprios atos, oferece-se ao cidadão como expectativa de confi ança no próprio Estado Democrático de Direito.

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José Mauricio Conti

Considerações sobre o Federalismo Fiscal Brasileiro em uma perspectiva comparada

José Mauricio Conti

Professor Livre-docente de Direito Financeiroda Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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RESUMO

A organização dos Estados na forma federativa, tanto no Brasil como em outros Estados, gera várias questões interessantes acerca do fi nanciamento dos serviços públi-cos. Os serviços de saúde e educação, em função de suas peculiaridades, apresentam maior difi culdade em estabelecer um sistema organizado de fi nanciamento que envolva uma adequada distribuição de encargos e receitas. No Brasil, existem complexos meca-nismos de transferências intergovernamentais e fundos fi nanceiros que procuram orga-nizar adequadamente a prestação desses serviços públicos de extrema relevância e inte-resse público.

Palavras-chave:Estado Federal Federalismo fi scal Autonomia fi nanceira Transferências intergovernamentais Fundos fi nanceiros Financiamento de saúde e educação

ABSTRACT

The organization of Federal States, both in Brazil and in other States, generates several interesting questions about the fi nancing of public services. The services of health and education, because of its peculiarities, have greater diffi culty in establishing an orga-nized system of fi nancing involving an appropriate distribution of charges and income. In Brazil, there are complex intergovernmental fi scal transfer mechanisms and fi nancial funds that seek to organize adequately the provision of these public services of extreme importance and of public interest.

Keywords:Federal State Fiscal federalism Financial autonomy Intergovernmental fi scal Transfers – funds Financing of health and education

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1. Introdução

O objetivo deste breve estudo é apresentar noções básicas sobre o funcionamento federalismo brasileiro, no que tange aos seus aspectos fi nanceiros, trazendo elementos que permitam compreendê-lo, identifi -cando algumas das difi culdades enfrentadas e os instrumentos que vêm sendo utilizados para aperfeiçoar o sistema.

Nessa análise, procurar-se-á, sempre que se mostrar útil à exposi-ção do tema, verifi car como os problemas de federalismo fi scal são tra-tados em outros países, quer sejam eles reconhecidamente organizados na forma federativa, quer tenham outro tipo de organização. Ressalte-se desde já que se constatará a difi culdade de identifi car com clareza essas categorias.

Mesmo assim, é bom ressaltar, a questão fundamental, que é identi-fi car a melhor forma de distribuição dos recursos públicos em um Estado, tanto se faz presente em Estados Federais quanto naqueles que adotam outras formas de organização.

2. Considerações introdutórias sobre o federalismo

Os Estados, tradicionalmente, têm sido classifi cados pelos estudio-sos do tema em Unitários e Federais. Unitários seriam os que “têm o poder central que é a cúpula e o núcleo do poder político” e federais os que “conjugam vários centros de poder político autônomo” (DALLARI, p. 254). Mas já admitem a existência de situações intermediárias, que justifi cariam o reconhecimento de outras categorias, como os chamados Estados Regionais, “menos centralizado do que o unitário, mas sem che-gar aos extremos de descentralização do federalismo”, exemplifi cando com Itália e Espanha (DALLARI, p. 254).

A realidade mostra que a situação é bem mais complexa, na medida em que, além das possíveis categorias acima mencionadas, há que se reconhecer a existência de Confederações, que compreenderiam um conjunto de Estados, ou mesmo de Estados teoricamente soberanos que celebram tratados internacionais com perda de signifi cativa de poder, de modo a deixar dúvidas sobre sua efetiva situação de Estado dotado de soberania. Ou ainda outros que, não obstante considerados unitários,

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apresentam formas de descentralização com unidades dotadas de signifi -cativa autonomia, que pouco diferem daquelas que compõem os Estados federais.

A inexistência de critérios rígidos para diferenciar as várias pos-sibilidades de unidades autônomas de caráter subnacional permite con-ceber a existência de uma multiplicidade de classifi cações dos Estados, havendo referência inclusive às fi guras do federalismo tetradimensional e pentadimensional (SOUZA, p. 135-137).

Esta complexidade é levada ao extremo quando se analisam as características de cada um dos Estados modernos existentes, e, ao fazê--lo, o que se constata é não existirem Estados idênticos. Todos apresen-tam particularidades na sua formação e organização que o tornam único, e as diferenças entre eles são de tal forma diversifi cadas que difi cultam em muito a criação de categorias com critérios sufi cientemente claros de modo a permitir agrupá-los.

Na Itália, embora não se reconheça formalmente a forma federativa, identifi cam-se quatro esferas de governo: central, regional (Regioni), provincial (Province) e municipal (Comuni) (EMILIANI et. all, 1997, p. 249), além da região metrolplitana (Città metropolitane), todos com algum grau de autonomia (Constituição, art. 114). A Espanha, também um Estado não reconhecidamente federal, prevê a existência de municí-pios, províncias e comunidades autônomas, também dotadas também de autonomia (Constituição, art. 137)

O Brasil, formalmente, prevê em seu Texto Constitucional um modelo de Estado Federal com três esferas de governo: O governo cen-tral, representado pela União, o regional, composto pelos Estados-mem-bros e Distrito Federal, e o local, com os Municípios, entes que integram a federação (Constituição, art. 1.º) e são autônomos (Constituição, art. 18).

O denominado Estado Federal tem sua origem na Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, que surgiu a partir da união de treze colônias britânicas, até então independentes. O próprio termo federação é oriundo do latim foedus, cujo signifi cado é pacto ou aliança.

Pouca uniformidade existe na doutrina no que tange às característi-cas que devem ter em comum um Estado que permita considerá-lo como sendo uma Federação, distinguindo-o de um Estado dito unitário.

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Reconheço como fundamentais, como já me manifestei em outra oportunidade (CONTI, 2001, p. 10), as seguintes características do Estado Federal:

a) existência de ao menos duas esferas de governo;b) autonomia das entidades descentralizadas, compreendendo a

autonomia política, administrativa e a fi nanceira;c) organização do Estado expressa em uma Constituição;d) repartição de competências entre as unidades descentralizadas;e) participação das entidades descentralizadas na formação da von-

tade nacional; e f) indissolubilidade.

A análise da presença desses requisitos permite identifi car com maior clareza se um Estado pode ou não integrar a categoria dos Estados Federais. Mesmo assim, tendo em vista a já mencionada falta de unifor-midade na doutrina, e considerando nem sempre ser simples a identifi ca-ção de cada uma dessas características nos casos concretos, mantém-se a difi culdade em reconhecer um Estado como sendo Federal ou Unitário, observadas as ressalvas já feitas com relação a essa classifi cação.

De qualquer forma, o conceito de Federação, além de estar ple-namente consagrado na doutrina jurídica, a despeito das difi culdades em defi ni-lo com precisão (à semelhança de inúmeros outros conceitos jurídicos), está positivado em ordenamentos jurídicos, como no caso do Brasil (Constituição, art. 1.º). No caso brasileiro, a forma federativa do Estado constitui-se em item inalterável, sendo inadmissível sua modifi -cação ainda que por emenda constitucional, confi gurando-se a chamada “cláusula pétrea” (Constituição, art. 60, § 4.º, I).

Trata-se, por conseguinte, de conceito jurídico que deve ser inter-pretado pelos juristas de modo a permitir extrair dele seu conteúdo da forma mais precisa possível.

A compreensão do federalismo envolve a investigação não somente no âmbito jurídico, mas também em outras áreas do conhecimento, espe-cialmente a Economia, até porque é conceito largamente estudado por esta área do conhecimento.

A organização de um Estado na forma federativa decorre de um contexto de fatos econômicos, sociais, culturais, políticos, históricos, geográfi cos, religiosos e muitos outros que conduzem a esta formação,

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tornando-a a mais adequada a determinado grupo social. Fatos estes que se coordenam de forma diferente para cada grupo, levando ao surgimento das várias e diferenciadas Federações.

Alguns desses fatos merecem destaque, pois infl uenciarão a for-mação dos Estados Federais em aspectos que serão relevantes para a abordagem que se pretende dar nesse texto.

É o caso da limitação espacial da incidência dos benefícios pro-porcionados pelo fornecimento de bens e serviços pelo Poder Público. “Certos bens e serviços”, como já ressaltei, “têm a capacidade de atingir uma ampla extensão territorial, de modo que devem ser prestados por uma estrutura cuja organização abranja referido território”, como ocorre com a defesa nacional e as pesquisas científi cas; outros, no entanto, estão sujeitos a uma limitação territorial, atingindo por vezes áreas restritas, como é o caso da coleta de lixo e da iluminação pública (CONTI, 2001, p. 25).

Nestas hipóteses, fi ca clara a infl uência da função alocativa como determinante da efi cácia gerada por uma organização do Estado na forma federativa, em que haverá uma unidade governamental mais adequada a atender determinadas necessidades públicas.

Mas não se limitam a estas as vantagens de uma organização na forma federativa. As diversas esferas governamentais presentes em uma Federação permitem melhor captar as preferências dos residentes no res-pectivo território, além de evitar a ocorrência de diversos tipos de exter-nalidades causadas pelo fornecimento de um bem ou serviço por uma esfera de governo que não reúne as condições adequadas para fazê-lo.

Diversidade sócio-cultural é outra razão que fundamenta a necessi-dade do Estado Federal. Difi culdades em reunir em um mesmo território grupos sociais com características culturais e sociais diferentes só podem ser superadas com a criação de um Estado que preserve um grau de auto-nomia a parcelas do respectivo território, o que se pode alcançar com uma organização na forma federativa.

Elucidativas são as palavras de Rogério Leite Lobo ao se referir ao tema:

“Sob um enfoque estritamente principiológico, o Federalismo vem consagrar o postulado fundamental da ‘diversidade na unidade’. Nesse diapasão, ao reconhecimento de que na base territorial do Estado encon-

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tram-se em estreito e diuturno convívio as mais variadas ‘personas’ locais e regionais resultantes de diferentes infl uxos socioeconômicos, culturais e históricos, agrega-se a vontade ou a necessidade de aliança, de união (‘foedus’) entre elas – exsurgindo desse amálgama o Federalismo como um instrumento propulsor capaz de viabilizar as composições imprescin-díveis ao inter-relacionamento ajustado daquelas ‘personas’ sem que reste violentada a integridade de cada qual, ao mesmo tempo em que permite uma unívoca e unidirecionada expressão externa” (LOBO, 2006, p. 28)

Inúmeros são os estudos que justifi cam e demonstram a efetiva necessidade da existência de Estados Federais em decorrência das razões já apontadas, sem prejuízo de muitas outras.

Feitas estas considerações, pode-se passar a analisar as formas e características presentes nos Estados Federais e as difi culdades em encontrar um modelo ideal de Federação.

3. Aspectos relevantes da organização dos Estados na forma federativa

Dentre as características já mencionadas no item anterior acerca dos aspectos fundamentais dos Estados Federais, destacarei algumas que apresentam maior relevância para o escopo do presente trabalho.

Admitindo-se a existência de pelo menos duas esferas de governo, pressuposto da existência de um Estado Federal, há que se estabelecer um sistema de repartição de competências. Havendo governos diversos sobre um mesmo território, imprescindível delinear o âmbito de atuação de cada um.

Esta defi nição deve ter suas linhas fundamentais expressas na Cons-tituição, uma vez ser esta a lei fundamental do Estado, e que tem por fun-ção organizar seus elementos essenciais, estabelecendo “um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fun-damentais do homem e as respectivas garantias” (SILVA, 2007, p. 37-38. Destaquei).

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Ainda que não o faça de forma absolutamente precisa, o que se pode vislumbrar desde logo inviável, as linhas gerais de uma delimitação do âmbito de atuação das unidades que compõem a Federação devem estar presentes no texto constitucional, fi cando as especifi cidades para a legislação infraconstitucional.

Outro aspecto de suma importância, verdadeira viga mestra de um Estado Federal, é a garantia de autonomia dos entes federados.

A autonomia dos entes federados engloba aspectos que podem ser sistematizados em três categorias: a autonomia política, a administrativa e a fi nanceira.

A autonomia política, essencialmente, exige que os entes federados tenham competência para legislar, participar das decisões do Poder Cen-tral, e competências delimitadas para fornecimento de bens e serviços públicos. E a autonomia fi nanceira, que eles disponham de recursos sufi -cientes para se manter, e que tenham fontes de arrecadação que indepen-dam da interferência do poder central (CONTI, 2001, p. 13).

Sendo assim, o Estado Federal tem, na repartição das competências, suas principais características identifi cadoras. Diferenciam-se as várias Federações pelas formas adotadas de atribuição aos entes federados de competências legislativas, competências para fornecimentos de bens e serviços públicos e competências para arrecadar e distribuir os recursos públicos.

Repartição de competências que, convém ressaltar, não existe ape-nas nos Estados Federais, mas em todos os que apresentam alguma forma de descentralização. É o que se pode verifi car na Constituição Italiana, com vários dispositivos, como o art. 117, que delimita a competência legislativa privativa do governo central (Stato) e as matérias sujeita a legislação concorrente.

O mesmo ocorre na Espanha, como se pode constatar do artigo 148, que enumera competências legislativas se funcionais das Comunidades Autônomas, e 149, que elenca competências do Estado; no artigo 157 prevêem-se competências arrecadatórias tributárias e não tributárias para as Comunidades Autônomas. Interessante observar que essas competên-cias podem ser ampliadas, conforme previsto no art. 148.2, mediante reforma dos estatutos das referidas Comunidades.

Releva observar também que, no caso brasileiro, a autonomia e as competências dos entes federados têm grande uniformidade, fi xando a

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Constituição regras que são de aplicação a todos os entes da federação da mesma esfera de governo. As desigualdades tendem a ser superadas por mecanismos essencialmente fi nanceiros, com transferências assimé-tricas de recursos de forma a benefi ciar os entes menos favorecidos. Não é o que ocorre em alguns Estados. Na Itália a própria Constituição prevê condições especiais de autonomia para algumas regiões (Constituição, art. 116).

São aspectos que merecem melhor estudo, e é o que se pretende fazer a seguir.

4. Competência legislativa no federalismo brasileiro

O Brasil adota um sistema federativo com basicamente três esferas de governo: o central, representado pela União, o regional, composto pelos Estados-membros e Distrito Federal, e o local, que abrange os Municípios.

A Federação caracteriza-se pela perda de poder dos entes subnacio-nais em favor do governo central, mantida a autonomia destes últimos. Entre os desdobramentos da autonomia, está o poder de legislar. Cada um deles é dotado, por conseguinte, de Poder Legislativo e competência legislativa próprios. Sendo assim, cada esfera federativa possui, em certa medida, o poder para editar suas próprias leis, o que faz com que exis-tam diversas categorias delas: leis nacionais, leis federais, leis estaduais, leis municipais. Não é difícil que se antevejam, neste sistema, confl itos e contradições geradas por esta existência concomitante de várias espé-cies de normas em planos diversos, tanto mais porque a delimitação das competências legislativas que as Constituições fazem não costuma ser exaustiva e imune a ambigüidades.

A delimitação da competência legislativa encontra suas linhas mes-tras na Constituição Federal, artigos 22 (competência legislativa pri-vativa da União), 24 (competência legislativa concorrente) e 30, I e II (competência legislativa municipal).

Sendo assim, os assuntos elencados no art. 22 são de atribuição exclusiva da União, cabendo ao Poder Legislativo Federal expedir nor-mas para regulá-los, o que torna inconstitucionais normas oriundas de outros entes da Federação acerca dos tópicos enumerados.

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Há assuntos, todavia, em que vários entes da Federação podem exercer a competência legislativa, como é o caso daqueles enumerados no art. 24, o que exige criação de mecanismos que permitam delimitar a competência específi ca de cada ente, evitando o confl ito federativo neste aspecto.

A Constituição brasileira, nos parágrafos do citado art. 24, estabe-lece, em apertada síntese, que, no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais (§ 1.º). Portanto, em se tratando de assunto cuja competência legislativa se insere naquelas especifi cadas pelo art. 24, como é o caso do direito fi nanceiro e tributário, a competência legislativa da União restringe-se a estabelecer as chamadas normas gerais, fi cando os Estados-membros e o Distrito Federal com a competência para legislar sobre o mesmo assunto, no que não confl itar com as normas gerais federais, e os Municípios, quando o assunto for de interesse local. Assemelha-se ao sistema italiano, que, no âmbito da legislação concorrente, atribui o governo central a função de legislar sobre princípios fundamentais (Constituição italiana, art. 117).

Procura-se, assim, fazer com que haja um parâmetro nacional dado pela União aos outros entes, sem que, entretanto, a União possa se imis-cuir indesejadamente em sua autonomia para legislar sobre os próprios interesses. Esta competência para a edição de normas gerais não exclui, porém, a competência suplementar dos Estados (art. 24, §2.º) e, caso a União não a exerça, os Estados têm competência legislativa plena (art. 24, §3.º).

O alcance das normas gerais, todavia, é um tema extremamente controvertido, tendo-se em vista seu conteúdo indeterminado. De qual-quer forma, não se nega que uma das funções das normas gerais é manter a uniformidade da legislação federal – o que permite dizer o que não são normas gerais. Não se permite reconhecer como sendo normas gerais as que tenham por objeto uma ou outra pessoa de direito público, que visem particularizadamente determinadas situações ou institutos, com exclusão de outros da mesma espécie, ou as que se afastem de aspectos fundamen-tais básicos.

Essa delimitação de competências legislativas é questão de grande relevância, não somente porque, no caso brasileiro, atinge diretamente o poder de legislar em matéria fi nanceira e tributária, objeto de análise específi ca nesse estudo, como também e principalmente ser um dos pro-

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blemas cruciais de Estados que adotam a forma federativa plena, assegu-rando a efetiva autonomia política dos entes federados, com competência legislativa própria.

A verdadeira Federação somente se pode considerar presente quando estes aspectos de autonomia política se fazem efetivamente pre-sentes, e a constatação de uma efetiva competência legislativa é determi-nante na caracterização de um Estado Federal.

Mais do que isso, a divisão de competências entre o governo cen-tral e os locais é algo que se tornou verdadeira tendência – e os confl itos de legislação não são exclusivos de federações propriamente ditas, mas também de Estados que adotam formas descentralizadas de organização, entre os quais se incluem Itália e Espanha.

5. Distribuição de encargos no federalismo brasileiro

Extremamente complexa é, não somente no Brasil, mas também eu outros Estados Federais, a partilha de competências no que se refere aos encargos.

As características de cada atividade de fornecimento de bens e ser-viços públicos permitem identifi car, com maior ou menor precisão, o ente da Federação que apresenta condições de fazê-lo da maneira mais efi ciente e que melhor atenda o interesse público. Mesmo assim, trata-se de tarefa difícil, que não é possível cumprir com perfeição.

Trata-se de questão há muito objeto de discussão entre os estudio-sos de fi nanças públicas, sobre a qual não há consenso, dada a multipli-cidade de fatores envolvidos, que impedem concluir com segurança, em cada caso, qual seja a melhor solução.

Há que se ter em mente estarem os serviços públicos sujeitos à alte-rações nas situações de fato, em decorrência, por exemplo, de moderni-zação tecnológica, variações na demanda, razão pela qual a distribuição dos encargos é e sempre será objeto de constantes aperfeiçoamentos.

A Constituição brasileira prevê algumas defi nições de competên-cias funcionais, como as que atribuem à União as tarefas relacionadas no art. 21, e aos demais entes da Federação, em regime de competên-cia comum, as tarefas enumeradas no art. 23. Ao longo do texto, outras referências são encontradas acerca da atribuição de competências para

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a realização de tarefas atribuídas ao Poder Público, como se vê no art. 25, § 2.º (exploração dos serviços de gás canalizado pelos Estados) e 30, V (organização e prestação de serviços de transporte coletivo pelos Municípios).

No entanto, pode-se constatar facilmente existirem lacunas e impre-cisões, fazendo com que muitas das atividades de fornecimento de bens e serviços a cargo do Poder Público tenham sua competência defi nida de forma pouco nítida.

Algumas delas merecem destaque, e serão objeto de análise espe-cífi ca.

6. Competência arrecadatória no federalismo brasileiro

Muitas são as fontes de recursos de que se pode valer o Poder Público.

Os entes da Federação têm como principal fonte de arrecadação a tributação, não obstante lhes sejam asseguradas possibilidades de obten-ção de recursos oriundos de inúmeras outras fontes não tributárias.

Cumpre destacar os aspectos mais relevantes do sistema tributário, não somente por confi gurar em regra a principal fonte de recursos, mas também por ser o sistema que apresenta maior difi culdade na busca de um desenho adequado, capaz de produzir os efeitos esperados de justiça fi scal sob a ótica da relação fi sco-contribuinte e, ao mesmo tempo, aten-der os interesses do Estado como um todo e de cada uma das unidades federadas em particular.

O sistema tributário brasileiro prevê mecanismos de competências privativas, atribuindo a cada ente da Federação fontes de arrecadação tri-butária com exclusividade. É o que ocorre claramente com os impostos, em que a Constituição confere à União poderes para instituir os impostos elencados nos artigos 153 e 154, aos Estados e Distrito Federal os impos-tos previstos no art. 155 e aos Municípios os impostos enumerados no art. 156.

Prevê também competências comuns, como os poderes que são conferidos a todos os entes da Federação instituírem e cobrarem taxas e contribuições de melhoria (Constituição, art. 145).

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Esta partilha de competências tributárias é outra questão federativa de grande complexidade, pois exige a criação de um sistema que asse-gure a cada ente federado tributos cujas características favoreçam que seja cobrado de forma efi ciente, não permitindo distorções de diversas naturezas, como as que fomentem guerra fi scal e desarmonia entre eles.

7. O federalismo e as relações fi scais intergovernamentais no Brasil

A competência tributária é importante instrumento do federalismo, uma vez que confere ao ente federado uma fonte independente de recur-sos, indispensável para garantir sua autonomia fi nanceira.

Mas não assegura a sufi ciência dos recursos, outro pilar no qual se sustenta a autonomia fi nanceira.

Isto porque a partilha de competências tributárias é essencialmente vinculada a critérios de efi ciência alocativa, em que ser atribui a com-petência para tributar ao ente da Federação capaz de fazê-lo com maior efi ciência.

Não se leva em consideração, por conseguinte, a quantidade de recursos gerados pelo respectivo exercício da competência tributária, até porque isto nem seria possível, uma vez que um mesmo tributo apresenta variações no montante arrecadado conforme o ente que o arrecada. Um mesmo tributo, como o imposto sobre a propriedade territorial urbana (IPTU), cobrado pela esfera de governo local – Município, no Brasil – gera quantidades de recursos absolutamente díspares, tendo em vista as peculiaridades de cada Município, decorrentes de um sem-número de fatores que afetam economicamente os elementos que integram este imposto. Variável também é o comportamento da arrecadação ao longo do tempo: impostos sobre o consumo de bens, apenas para exemplifi car, são diretamente afetados pela oscilação no comportamento da atividade econômica.

A atribuição de competências tributárias, isoladamente, é instru-mento incapaz de assegurar a sufi ciência de recursos aos entes federados.

Complementa-se com o que pode ser considerado o principal ins-trumento de federalismo fi scal: a repartição do produto da arrecadação e o sistema de transferências intergovernamentais.

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Neste ponto fi ca clara adoção, no Brasil, de um modelo de federa-lismo cooperativo, em que, respeitadas a autonomia dos entes federa-dos, criam-se sistemas de interpenetração entre eles, que se manifesta de forma mais evidente no campo das fi nanças públicas, por mecanismos de partilhas de receitas e transferências intergovernamentais.

Os artigos 157 a 159 da Constituição brasileira prevêem as princi-pais formas de partilha de receitas tributárias, abrangendo desde o que se pode chamar de participação direta, quando a unidade arrecadadora, seguindo regra pré-estabelecida, transfere parcela do valor do tributo para a unidade benefi ciária, bem como mecanismos de participação indi-reta, em que essa transferência ocorre em duas ou mais etapas, com a intermediação, principalmente, de fundos.

São partilhados, basicamente, os recursos dos impostos federais sobre a renda, propriedade territorial rural, operações fi nanceiras, e impostos estaduais sobre a circulação de mercadorias e serviços e pro-priedade de veículos automotores.

As partilhas de receitas tributárias permitem promover ajustes na distribuição de recursos entre os entes da federação por meio da criação de regras que aperfeiçoam o sistema de arrecadação, viabilizando que um tributo tenha sua competência atribuída ao ente da federação mais competente para cobrá-lo, sem contudo conferir-lhe direito a todo o pro-duto da arrecadação, que é distribuído aos entes da federação que dele mais necessitam.

Veja-se, no caso brasileiro, o que ocorre com o Fundo de Participa-ção de Estados e Distrito Federal (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

O Fundo de Participação de Estados e Distrito Federal, composto por 21,5% da arrecadação da União com o imposto sobre a renda (IR) e imposto sobre produtos industrializados (IPI) (Constituição, art. 159, I, a), tem seus recursos distribuídos entre os Estados e Distrito Federal por critérios que levam em consideração a região a que pertencem, a superfície territorial da entidade participante, a população e a renda per capita.

Sistema semelhante ocorre com o Fundo de Participação dos Muni-cípios. Composto por 22,5% da arrecadação do imposto sobre a renda (IR) e sobre produtos industrializados (IPI) (acrescido de mais 1% a ser entregue no mês de dezembro), nos termos do art. 159, I, b e d, seus

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recursos são distribuídos por meio de fórmula que leva em consideração, essencialmente, a população e a renda per capita.

Dessa forma, vê-se que recursos são alocados nas unidades que integram regiões historicamente mais pobres, com maior extensão terri-torial, maior população e renda per capita inferior.

Trata-se, como se pode notar, de um sistema de cooperação verti-cal, em que as transferências ocorrem da União para os entes federados regionais (FPE) e da União central para os entes federados locais (FPM). A redução das desigualdades regionais dá-se pela assimetria dessas transferências, tendo em vista o critério de rateio, que privilegia aspectos relevantes para atingir esse objetivo, como a região em que se localiza o ente, bem como a renda per capita da população.

Outros Estados, federais ou não, adotam instrumentos de equaliza-ção fi scal por meio de cooperação horizontal, usualmente criando fun-dos ou programas específi cos com essa fi nalidade, por meio dos quais opera-se a redistribuição de recursos entre entes federados da mesma esfera governamental. É o caso por exemplo da Federação Canadense, onde há o fi scal equalization program, que promove uma redistribuição de recursos entre as Províncias, conforme fórmula que aumenta automa-ticamente as transferências para a Província com declínio relativo em sua capacidade fi scal. Na Alemanha utilizam-se mecanismos de equalização horizontal por meio, dentre outros, de prestações fi nanceiras compensa-tórias, em que se avaliam as capacidades e necessidades fi nanceiras dos entes para efetivar a redistribuição, conforme estabelecer a legislação. A Espanha tem o fondo de compensación interterritorial, que visa corri-gir desequilíbrios econômicos entre os entes subnacionais, que, embora não integrantes de uma Federação, têm signifi cativo grau de autonomia fi nanceira. Na Itália também podem ser encontrados vários fundos, entre os quais o fondo perequativo, previsto no art. 119 da Constituição, com fi nalidade redistributiva para os territórios com menor capacidade fi scal por habitante.

Além dos mencionados Fundos de Participação, o Brasil tem um intrincado sistema de transferências intergovernamentais, que abrangem não somente os mecanismos de participação direta e indireta exempli-fi cados anteriormente, mas também outros, muitas vezes vinculados a fornecimento de bens e serviços públicos específi cos, como é o caso da saúde e educação, que contam com fundos próprios utilizados para ope-

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racionalizar esse sistema de transferências, o que será objeto de referên-cia específi ca em item posterior.

8. As transferências intergovernamentais

As transferências intergovernamentais são instrumentos essenciais para o sucesso de um Estado Federado que tenha como objetivo atender as necessidades públicas, promovendo o bem de todos e reduzindo as desigualdades sociais e regionais, como expressamente consta da Cons-tituição brasileira (art. 3.º).

Constituem-se em “repasses de recursos fi nanceiros entre entes des-centralizados de um Estado, ou entre estes e o Poder Central, com base em determinações constitucionais, legais ou, ainda, em decisões discri-cionárias do órgão ou entidade concedente, com vistas ao atendimento de determinado objetivo genérico (tais como, a manutenção do entre encar-gos e rendas ou do equilíbrio inter-regional) ou específi co (tais como, a realização de um determinado investimento ou a manutenção de padrões mínimos de qualidade em um determinado serviço público prestado)” (GOMES, 2007, p. 70).

Uma sistematização simples permite identifi car algumas categorias de transferências intergovernamentais importantes para compreendê-las.

Levando-se em consideração a discricionariedade na distribuição dos recursos por essa via, as transferências podem ser automáticas (ou obrigatórias), quando a distribuição dos recursos do ente que os detém é encaminhada ao ente benefi ciário em decorrência de dispositivo legal que é cumprido sem interferência de decisões submetidas ao crivo discri-cionário de uma autoridade, como ocorre com os citados Fundos de Par-ticipação. São conhecidas entre os estudiosos por revenue sharing arran-gements. Podem também ser discricionárias (ou voluntárias), usual mente conhecidas por grants, hipótese em que essa distribuição fi ca sujeita a regras não rígidas, operacionalizadas com a intermediação de autoridade que exerce poderes discricionários.

Outra classifi cação relevante para a compreensão das transferên-cias intergovernamentais é a que considera a vinculação dos recursos destinados à unidade benefi ciária. Nessa hipótese, temos transferências não vinculadas (ou incondicionadas), quando o recurso transferido não

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tem fi nalidade específi ca, podendo ser livremente utilizado pelo ente da Federação que o recebe. Ou transferências vinculadas (ou condiciona-das), caso em que há um vínculo, exigindo-se a aplicação do recurso transferido em fi nalidade previamente estabelecida.

A análise das formas e características das transferências intergo-vernamentais permite identifi car como cada Estado tenta solucionar os problemas de distribuição interna dos recursos públicos.

No Brasil, as transferências intergovernamentais são largamente utilizadas, em suas diversas categorias.

Existem transferências automáticas decorrentes da participação direta na arrecadação, como a partilha de recursos do imposto sobre a propriedade de veículos – IPVA, de competência dos Estados-membros, que têm a obrigação de remeter 50% do valor obtido aos Municípios nos quais os respectivos veículos foram licenciados. Há também transferên-cias automáticas na participação indireta na arrecadação, sendo o melhor exemplo o dos já citados Fundos de Participação, que as utilizam em ambas as etapas de distribuição: tanto na remessa de recursos da União para os Fundos quanto destes para as unidades federadas que deles se benefi ciam.

Diversamente do que ocorre em outros Estados, essas transferências têm extrema relevância para os entes subnacionais no Brasil, represen-tando, para uma expressiva maioria, especialmente os Municípios peque-nos, a principal fonte de recursos. E representam, na Espanha, a segunda mais importante fonte de recursos para as Comunidades Autônomas, como registra GRIJALBA (2003, p. 513). Já Federações como a Americana utilizam-se predominantemente de transferências voluntárias.

Incontáveis são as possibilidades de transferências voluntárias no sistema do federalismo fi scal brasileiro. Geralmente vinculadas a progra-mas governamentais, seus objetivos relacionam-se ao atendimento das necessidades públicas mais prementes, à linha de atuação do governo que comanda o ente da federação e outros fatores.

As transferências voluntárias assumiram maior relevância no Brasil na última década, com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 2000), que, ao estabelecer regras rígidas para a gestão fi scal dos entes subnacionais, inseriu, como forma de compeli--los ao cumprimento das referidas normas, vedações ao recebimento des-tas transferências. É o caso do art. 11, que veda as transferências voluntá-

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rias aos entes da Federação que não instituírem, preverem e efetivamente arrecadarem todos os impostos que o Texto Constitucional lhes confere, exigindo assim o exercício da competência tributária plena. Veda tam-bém as transferências àqueles que não estiverem em dia com prestações de contas e pagamento de tributos, empréstimos e fi nanciamentos devi-dos ao ente transferidor, bem como aos que não cumprirem os limites constitucionais relativos à educação e saúde (art. 25, § 1.º, a e b), apenas para citar alguns exemplos.

As transferências intergovernamentais incondicionadas, presentes no Brasil em casos como o dos Fundos de Participação e do IPVA, já mencionados anteriormente, têm grande relevância na medida em que os entes subnacionais no Brasil têm uma competência tributária que não lhes permite obter recursos sufi cientes sequer para suas despesas corren-tes básicas, tornando necessário um aporte fi nanceiro extra que possa ser livremente utilizado, a fi m de fazer frente a esses encargos.

As transferências condicionadas, por seu turno, permitem um dire-cionamento dos recursos que evitam a excessiva discricionariedade por parte dos governantes, nem sempre, especialmente na esfera local, habi-litados a fazer o melhor uso do dinheiro. Sobretudo, há que se destacar terem as transferências intergovernamentais condicionadas uma capaci-dade maior de instrumentalizar a condução de políticas públicas nacio-nalmente defi nidas, permitindo ao governo central transferir recursos aos entes subnacionais, descentralizando o gerenciamento da atividade cujo resultado o Poder Público pretende alcançar. Alguns dos fundos de des-tinação (OLIVEIRA, 2008, p. 286) brasileiros têm, ainda que apenas na segunda etapa, qual seja, aquela em que há a transferência do recurso do fundo para o benefi ciário, exemplos de transferências condicionadas. É o caso dos fundos para a área da educação (FUNDEB – Fundo de Manu-tenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Pro-fi ssionais da Educação) e da saúde. Os recursos desses fundos, quando transferidos, somente podem ser aplicados nas fi nalidades previamente estabelecidas pela legislação, relacionadas às atividades específi cas para as quais foram criados.

As transferências intergovernamentais encontram-se nos vários Estados, Federais ou não. São, por conseguinte, como instrumento de partilha de recursos, ainda que entre entes não necessariamente autôno-mos nos termos que permitam caracterizá-los como entes federados. A

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Alemanha, que adota um claro sistema de federalismo fi scal coopera-tivo, com uma marcante interpenetração de recursos entre os entes, prevê várias formas de compensação e redistribuição de recursos entre os entes da federação, consoante se pode verifi car dos artigos 104 e seguintes da Lei Fundamental Alemã. O art. 157.1.c da Constituição Espanhola inclui entre os recursos das Comunidades Autônomas as transferências do fondo de compensación interterritorial, havendo possibilidade e par-ticipação em outros tributos, conforme prevê a Ley Orgânica de Finan-ciación de las Comunidades Autônomas. E na Constituição Italiana o artigo 119, ao assegurar a autonomia fi nanceira dos entes subnacionais, acolhe o princípio da coordenação das fi nanças públicas, com compar-tilhamento de tributos, além de prever o fondo perequativo e transfe-rências fi nanceiras do governo central em favor dos entes subnacionais. Há ainda outras participações que podem ser encontradas em legislação infraconstitucional que regula o assunto, como o Decreto Legislativo 56, de 18.2.2000.

9. O federalismo fi scal aplicado a políticas públicas específi cas: os casos da educação e da saúde

A educação e saúde estão entre as prioridades de qualquer Estado moderno, federal ou não.

Em qualquer deles, mas especialmente nos que se constituem na forma federativa, há grande difi culdade em organizá-los, por diversas razões.

Sob o aspecto das fi nanças públicas, ambos não se mostram clara-mente direcionados a um determinado ente da federação. A atribuição de competência legislativa, ou mesmo para gerenciar a prestação desses serviços, não será perfeita quer esteja no âmbito de um ente nacional, regional ou local.

Daí constatar-se, em vários Estados, a multiplicidade de formas de organização na forma de prestação desses serviços, tanto no aspecto legislativo, quanto no organizacional e no fi nanceiro.

A educação, no Brasil, tem suas diretrizes fi xadas por lei de com-petência privativa da União (Constituição, art. 22), sendo porém con-corrente a competência para legislar sobre educação (Constituição, art.

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24, IX), o que confere à União a atribuição de estabelecer normas gerais nessa questão (Constituição, art. 24, § 1.º).

No que se refere à partilha dos encargos, o art. 211 da Consti-tuição dá as linhas mestras, estabelecendo que os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil, devendo manter programas nesse sentido, com a cooperação técnica e fi nanceira da União (Constituição, art. 30, VI), e os Estados e Distrito Federal no ensino fundamental e médio. A União “organizará o sistema federal de ensino (...), fi nanciará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir a equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e fi nanceira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios” (Constituição, art. 211, § 1.º). Registre-se que o caput do referido artigo prevê ser comum a todos os entes federados organizar em regime de colaboração seus sistemas de ensino.

Financeiramente, há a exigência constitucional de aplicação mínima de recursos na manutenção e desenvolvimento do ensino. A proporção é de 18% da receita de impostos e transferências no caso da União e de 25% no caso dos Estados, Distrito Federal e Municípios.

Mas a principal forma de fi nanciamento da educação pública no Brasil dá-se por meio do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profi ssionais da Educação (FUN-DEB), fundo constitucional com destinação de recursos para o setor, de natureza contábil, criado no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, conforme prevê o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Tran-sitórias (com redação dada pela Emenda Constitucional 53, de 2006). São compostos por parcela da arrecadação dos impostos de competên-cia estadual (ITCMD, ICMS e IPVA), parte das transferências cabentes aos Municípios dos impostos sobre a propriedade territorial rural (ITR), do IPVA e do ICMS e parte das transferências do FPE e do FPM. A distribuição dos recursos é basicamente vinculada ao número de alunos matriculados, mas há regras constitucionais que especifi cam essa parti-lha, que são complementadas pela legislação infraconstitucional, criando um complexo mecanismo de transferências intergovernamentais.

A análise dessa noção superfi cial acerca da forma pela qual o ser-viço de educação é prestado no Brasil evidencia a complexidade exis-

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tente, que abrange todos os aspectos a ele relacionados, quais sejam, a fi xação da competência legislativa de cada ente da federação (que não é absolutamente nítida), a distribuição dos encargos (que são, em boa medida, possíveis de serem assumidos por todos os entes), bem como a forma de fi nanciamento, vinculada a uma complexa fórmula de transfe-rências intergovernamentais intermediada por um fundo constitucional.

No caso da saúde, a situação não é diferente, constatando-se haver uma interpenetração ainda maior entre as várias funções a serem exerci-das pelos entes federados.

No aspecto constitucional, a saúde integra o capítulo que trata da Seguridade Social, que abrange, além da saúde, a previdência social e a assistência social.

Considerando-se tão somente a prestação do serviço de saúde, stricto sensu, que, em face do que dispõe o texto constitucional, envolve um conjunto de políticas públicas que visam a redução do risco de doen-ças e o acesso universal às ações e serviços relacionados à promoção, proteção, e recuperação da saúde (Constituição, art. 196), podemos ana-lisar os aspectos federativos a ele relacionados.

A competência legislativa é concorrente da União, Estados e Dis-trito Federal no que se refere à proteção e defesa da saúde (Constituição, art. 24, XII), o que, à semelhança do direito fi nanceiro, tributário e da educação, confere à União competência, nesta área, para editar normas gerais.

No que tange à distribuição dos encargos, a Constituição prevê um “sistema único” de saúde, em que as ações e serviços públicos integram uma rede regionalizada e hierarquizada (Constituição, art. 198), regula-das por lei federal.

No aspecto fi nanceiro, a Constituição prevê que o sistema único de saúde seja fi nanciado por recursos orçamentários de todas as esferas de governo.

Determina ainda um valor mínimo a ser aplicado pelas esferas de governo, calculado com base na arrecadação de impostos e transferên-cias, fi xado por lei complementar federal e reavaliado a cada cinco anos.

Para operacionalizar essa aplicação de recursos mínimos obrigató-rios em saúde, foi criado um mecanismo de fundos no âmbito dos entes federados, transferindo-se recursos de um fundo para o outro, criando o mecanismo de transferências intergovernamentais fundo a fundo, de

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modo a assegurar que os recursos sejam efetivamente destinados à apli-cação na fi nalidade para o qual foram criados.

Tendo em vista o quadro exposto, vislumbra-se na área da saúde um sistema federativo bastante complexo e mais fl exível, uma vez serem tênues os parâmetros constitucionais que regulam o setor no Brasil.

A variabilidade na forma de repartição dos encargos para prestação de serviços na saúde entre os diversos níveis de governo é uma constante nos países, como registram com precisão BERNARDI e GANDULLA (2005, p. 212), mostrando, pela participação na riqueza nacional, as diferenças encontradas, evidenciando que a distribuição vertical da competência funcional nesta área é muito difusa.

E a existência de fundos específi cos para despesas com saúde é bas-tante disseminada entre os vários Estados, sejam eles federais ou não. Na Itália há o Fundo Nacional de Saúde, composto por recursos que são transferidos para as unidades locais de saúde, a fi m de que promovam a prestação do serviço (EMILIANI et all, p. 270). O Canadá adota o Canada Health and Social Transfer, que prevê transferências em dinheiro e tam-bém um mecanismo de “transferências tributárias, por meio do qual o governo federal diminui seus tributos permitindo que os entes regionais aumentem os delas, o que mantém a carga tributária total do cidadão, mas aumenta os recursos disponíveis para as Províncias.

10. Síntese conclusiva

O federalismo fi scal é um tema complexo, de grande relevância, multidisciplinar, que difi cilmente permitirá conclusões fechadas acerca das questões que integram seu objeto de estudo.

Vê-se, como se alertou ao longo do texto, haver uma multiplici-dade de fatores que interagem na formação e organização dos Estados, tornando-os únicos, e impedindo que se estabeleçam categorias preci-sas nas quais o pesquisador possa classifi cá-los adequadamente, como ocorre com os conceitos de Estados Unitários e Federais.

A busca de um modelo de Federação ideal passa pela análise de cada caso concreto, em que todas as circunstâncias devem ser levadas em consideração por ocasião da construção de um sistema de divisão de competências legislativas, funcionais e de recursos em cada Estado.

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Necessário o estudo minucioso e profundo das experiências pró-prias e dos demais Estados, para que se possa caminhar no sentido deste modelo ideal de Federação, tentando assim se aproximar daquele que se mostre o melhor para distribuir com Justiça os sempre escassos recursos públicos, e com isso atender as sempre crescentes necessidades públicas.

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Ana Cláudia Akie Utumi

O uso de empréstimos intercompanies no Brasil. Normas de subcapitalização e temas conexos.

Breves refl exões

Ana Cláudia Akie Utumi

Advogada em São Paulo. Doutora em Direito Econômico-Financeiro

pela Universidade de São Paulo.

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RESUMO

O artigo trata das normas brasileiras aplicáveis à dedução dos juros nos emprésti-mos internacionais tomados pelas empresas brasileiras, analisando os regimes de juros sobre o capital próprio, preços de transferência fi nanceira e subcapitalização, incluindo a análise de paraísos fi scais e regimes fi scais privilegiados.

Palavras-chave:SubcapitalizaçãoJurosDedutilidade

ABSTRACT

This article refers to Brazilian rules applicable to deduction of interest in interna-tional debt transactions carried out by Brazilian companies, analyzing interest on net equity, fi nancial transfer pricing and thin capitalization, including analysis of tax havens and favorable tax regimes.

Keywords:Under capitalizationInterestDedutability

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1. Introdução

O objetivo do presente artigo é discorrer sobre as normas para controle da dedução de juros nos empréstimos internacionais entre uma empresa brasileira, na qualidade de devedora, e uma empresa localizada fora do Brasil, mas ligada à primeira, residente em paraíso fi scal ou bene-fi ciária de regime fi scal privilegiado.

2. Breve histórico

Até o fi nal de 2009, o Brasil não dispunha de nenhuma regra que vedasse a dedução de despesas de juros gerados por empréstimos toma-dos por empresas brasileiras a partir de empresas ligadas localizadas fora do Brasil.

Como regra geral, para que despesas de juros fossem dedutíveis para fi ns de imposto sobre a renda da pessoa jurídica (“IRPJ”)1, bastava que os recursos captados fossem utilizados nas atividades operacionais da empresa brasileira. Na medida em que se demonstrasse a utilidade dos recursos emprestados, também estava justifi cada a necessidade das despesas de juros e, conseqüentemente, sua dedutibilidade.

Em 1996, por meio da Lei n.º 9.249/1995, foi introduzido no direito brasileiro um estímulo para que os sócios e acionistas aumentassem a capitalização de suas empresas – ou seja, estímulo para que fosse utili-zado o aumento de capital, ao invés do empréstimo. Esse estímulo era justamente a introdução dos chamados juros sobre o capital próprio, que permite à empresa brasileira pagar aos seus sócios ou acionistas e deduzir, de seus lucros tributáveis, um valor calculado sobre o valor do patrimônio líquido da empresa com base na taxa de juros de longo-prazo (“TJLP”), divulgada pelo Banco Central do Brasil.

No ano seguinte, em 1997 entraram em vigor as normas de preços de transferência, introduzidas pela Lei n.º 9.430/1996. Dentre as diversas previsões da legislação de preços de transferência, o artigo 22 da referida

1 IRPJ é o imposto que incide sobre os lucros das empresas brasileiras, à alíquota básica de 15%, mais alíquota adicional de 10% sobre a parcela dos lucros que exceda a R$ 20 mil por mês, R$ 60 mil por trimestre ou R$ 240 mil por ano.

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lei estabelece o limite de LIBOR, mais 3% ao ano, como limite de juros a serem deduzidos no caso de empréstimos internacionais provenientes de pessoas ligadas.

Em dezembro de 2009, por meio da Medida Provisória n.º 472/2010, posteriormente convertida na Lei n.º 12.249/2011, foram introduzidas na legislação brasileira normas contra a subcapitalização, que passaram a vigorar a partir de 1.º de janeiro de 2010. Essa legislação trouxe trata-mentos diferentes no caso de pessoas ligadas não residentes em paraísos fi scais, e pessoas ligadas ou não residentes em paraísos fi scais, ou bene-fi ciários no exterior a regimes de tributação privilegiada.

Ainda, essa mesma legislação trouxe medidas restritivas à dedução de despesas pagas a paraísos fi scais ou benefi ciários de regimes de tribu-tação privilegiada.

Vejamos mais.

3. Juros sobre o capital próprio

Os juros sobre capital próprio surgiram com a Lei n.º 9.249, de dezembro de 1995, como uma forma alternativa de remunerar os sócios ou acionistas das empresas brasileiras, com a vantagem de tal remune-ração, diferentemente dos dividendos, poder ser dedutível para fi ns de Imposto de Renda Pessoa Jurídica (“IRPJ”). Mais tarde, por meio da Lei n.º 9.430, de dezembro de 1996, essa remuneração passou a ser dedutí-vel, também, da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (“CSLL”)2.

Tais juros são calculados sobre o valor do patrimônio líquido cons-tante do início do exercício, com base na chamada “TJLP” – Taxa de Juros de Longo-Prazo, estabelecida e divulgada pelo Banco Central do Brasil (“BACEN”). Desta forma, para se estabelecer o montante de juros sobre capital próprio que uma sociedade pode pagar a seus acio-nistas, a lei determina a aplicação da taxa de juros de longo prazo –

2 IRPJ e CSLL são os dois tributos incidentes sobre os lucros auferidos pelas empresas brasileiras, ajustados pelas adições e exclusões estabelecidas pela legislação. As alíquotas aplicáveis são de 25% para o IRPJ, e 9% para a CSLL (15% no caso de ins-tituições fi nanceiras e seguradoras). As apurações dos tributos podem ser feitas de forma trimestral, ou de forma anual com recolhimentos mensais antecipados.

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TJLP – sobre o valor do patrimônio líquido da sociedade no início do período-base. Esse cálculo é o que se costuma chamar de capacidade máxima de pagamento.

Quanto à dedutibilidade da despesa com JCP, por força do disposto no artigo 9.º, parágrafo 1.º, da Lei n.º 9.249, de 26 de dezembro de 1995, alterado pelos artigos 78 e 88 da Lei n.º 9.430, de 27 de dezembro 1996, a mesma fi ca condicionada à existência de lucros, computados antes da dedução dos juros, ou de lucros acumulados e reserva de lucros, em mon-tante igual ou superior ao valor de 2 (duas) vezes os juros a serem pagos ou creditados. Assim, a dedutibilidade dos juros sobre capital próprio é limitada ao maior valor entre (i) 50% do lucro auferido no período, antes de considerada a dedução dos juros sobre capital próprio; (ii) 50% dos lucros acumulados existentes no fi nal do ano calendário anterior.

Com a dedução dos juros sobre o capital próprio, a empresa brasi-leira obtém uma vantagem tributária de 34% (40% no caso de institui-ções fi nanceiras ou seguradoras).

No entanto, os juros sobre o capital próprio sofrem tributação na fonte (“IRFonte”), à alíquota de 15%, que representa uma tributação defi nitiva no caso de sócios ou acionistas pessoas físicas ou não-resi-dentes, e antecipação do IRPJ devido no caso de sócios ou acionistas pessoas jurídicas brasileiras. Se o sócio ou acionista não-residente tiver a sua residência em uma jurisdição considerada paraíso fi scal, o IRFonte aumenta de 15% para 25%.

Assim, no caso de sócios ou acionistas pessoas físicas ou não-resi-dentes, o benefício fi scal líquido – ou seja, a economia para a empresa brasileira (34% ou 40%), menos a tributação sofrida pelo sócio ou acionista (15% ou 25%) – pode variar entre 9% e 25%, dependendo da natureza da empresa brasileira, e da residência fi scal de seus sócios ou acionistas.

EIVANY ANTÔNIO DA SILVA3 opina que Trata-se de inovadora e modernizante norma da legislação fi scal, que objetiva conferir ao capi-tal investido pelos sócios ou acionistas da pessoa jurídica – o chamado capital próprio –, o mesmo tratamento tributário atribuído ao capital

3 SILVA, Eivany Antônio da. Imposto sobre a renda: teoria e prática – Despesas de juros sobre o capital próprio – Tributação de lucros e dividendos auferidos no exterior. In: IBET. Justiça Tributária. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 105.

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obtido junto a terceiros, para o desenvolvimento das atividades empresa-riais. Aliás, foi esta a justifi cativa apresentada na “Exposição de Moti-vos” do projeto de lei que resultou na Lei n.º 9.249/1995, introdutora dos juros sobre capital próprio.

HELENO TÔRRES4 comenta que “Esse sistema visa a desencorajar o recurso à contratação de empréstimos com terceiros, substituindo (ou pelo menos reduzindo) este meio de fi nanciamento por um incentivo aos acionistas para reforçarem o capital de giro com recursos próprios, ou através de autofi nanciamentos”.

Por se tratar de uma remuneração pagável exclusivamente para os sócios ou acionistas, a Comissão de Valores Mobiliários, por meio da Deliberação n.º 207, de dezembro de 1996, manifestou o entendimento de que os juros sobre capital próprio deveriam ser contabilizados nas companhias da mesma forma como os dividendos, deixando claro o seu entendimento de que a natureza jurídica dos juros sobre capital próprio seria de dividendos, e não de remuneração de uma dívida da sociedade. Esta também é a opinião de ALBERTO XAVIER5.

Trata-se, assim, de um instrumento híbrido: sob o ponto de vista da legislação societária, os juros sobre capital próprio têm a mesma natu-reza de dividendos, enquanto que, sob o ponto de vista da legislação tributária (imposto sobre a renda e CSLL), trata-se de receita ou despesa fi nanceira.

3.1. Juros sobre o capital próprio e as Convenções para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Imposto sobre a renda

Em conformidade com os tratados para evitar a dupla tributação assinados pelo Brasil e atualmente em vigor, que, destaque-se mais uma vez, seguem o Modelo OCDE, a defi nição de juros é sempre relacionada à remuneração de operações de crédito. A defi nição de juros, normalmente

4 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Tributário Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 546 e 547.

5 XAVIER, Alberto. Natureza jurídico-tributária dos ´juros sobre o capital próprio´ face à lei interna e aos tratados internacionais. In: Revista Dialética de Direito Tributá-rio, n.º 21. São Paulo: Dialética, 1997, p. 8.

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encontrada no artigo 11 dos tratados, assim prevê: “O termo “juros”, usado no presente artigo, compreende rendimentos da dívida públicas, de títulos ou debêntures, acompanhados ou não de garantia hipotecária ou de cláusula de participação nos lucros e de créditos de qualquer natureza, bem como qualquer outro rendimento que pela legislação tributária do estado contratante de que provenham sejam assemelhadas aos rendimen-tos de importâncias emprestadas.”

De acordo com a legislação tributária brasileira, os juros sobre capital próprio teriam o tratamento tributário similar ao de rendimen-tos de importâncias emprestadas, já que permitem à sociedade que as paga deduzir o valor correspondente da base de cálculo do IRPJ e CSLL, como se fossem juros pagos para qualquer credor.

A defi nição de dividendos, por outro lado, como vimos há pouco, engloba os rendimentos provenientes de ações ou direitos de fruição, ações de empresas mineradoras, partes de fundador ou outros direitos de participação em lucros, com exceção de créditos, bem como rendi-mento de outras participações de capital assemelhados aos rendimentos de ações pela legislação tributária do estado contratante em que seja resi-dente a sociedade que os distribuir.

Mais uma vez, do ponto de vista da legislação tributária brasileira, os efeitos dos juros sobre o capital próprio não são assemelhados aos dos rendimentos de ações, mas sim, assemelhados aos rendimentos de dívidas.

A redação dos tratados é um tanto confusa quando atribui a quali-fi cação de juros ou de dividendos a remunerações que, pela legislação interna, sejam equivalentes a tais. No entanto, uma distinção é clara-mente notada: o artigo 10 qualifi ca os dividendos como rendimentos de participação societária, enquanto que, o artigo 11 qualifi ca os juros como rendimentos de títulos ou debêntures, sempre em que o “devedor” seja um residente em um dos Estados Contratantes.

No caso dos juros sobre capital próprio, a empresa brasileira não é “devedora” da empresa residente no outro país. Ou seja, não é uma dívida da primeira com a segunda que justifi ca o pagamento dos referi-dos juros, mas sim, o fato de a segunda ser acionista da primeira.

Os tratados em vigor para evitar a dupla tributação mais recente-mente assinados pelo Brasil – quais sejam, com Portugal, com Chile e com Israel – trazem, em seu protocolo, a estipulação de que os juros

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sobre o capital próprio, para fi ns desses tratados, serão considerados no artigo referente aos juros, e não no artigo referente aos dividendos.

Curiosamente, a Secretaria da Receita Federal, ao ser demandada em consultas para analisar o tratamento tributário aplicável aos juros sobre o capital próprio no caso da Convenção para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre a Renda, fi rmada entre o Brasil e o Japão, manifestou reiteradas vezes de que não se trata de uma remuneração enquadrável sob o conceito de “juros” encontrado na referida Convenção.

Tendo em vista que o texto dos tratados traz, expressamente, a remissão à lei tributária brasileira para estipular o tratamento a ser consi-derado sob cada tratado, e também tomando-se por base que a legislação tributária brasileira atribui aos juros sobre o capital próprio o tratamento de receita ou despesa fi nanceira, entendemos que, para fi ns de aplicação dos tratados para evitar a dupla tributação, deve prevalecer a aplicação do artigo convencional referente aos juros, em detrimento do artigo refe-rente a dividendos.

4. Preços de Transferência Financeira

Estabelece a Lei no. 9.430/1996, em seu artigo 22, que os juros pagos ou creditados a pessoas vinculadas são dedutíveis apenas até o valor que não exceda ao montante calculado com base na taxa LIBOR para depósito em dólares americanos pelo prazo de 6 meses, acrescida de 3% anuais a título de spread. Ainda, a legislação estabelece que, no caso de contratos de empréstimo registrados junto ao Banco Central do Brasil, esse limite não se aplica, sendo aceitos, para fi ns de preços de transferência, os juros pactuados pelas partes.

Caso os juros cobrados pelas credoras vinculadas no exterior exce-dam aos limites de preços de transferência fi nanceira, o excesso será não--dedutível para fi ns de IRPJ e CSLL.

O conceito de pessoa vinculada, estabelecida para fi ns de aplicação de preços de transferência, excede em muito o conceito de pessoa ligada, na medida em que não se restringe apenas à vinculação societária, mas também vinculações pessoais e contratuais.

Ainda, com relação a contratos registrados junto ao Banco Central do Brasil, à época em que a Lei no. 9.430/1996 foi editada, todos os

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contratos de empréstimos internacionais, nos quais uma pessoa física ou jurídica residente no Brasil fosse devedora, eram submetidos para pré-via aprovação desse órgão, de tal maneira que, o Banco Central fazia o controle das taxas de juros pactuadas entre as partes, em comparação às taxas de mercado.

No entanto, hoje em dia, o registro de empréstimos internacionais tomados por empresas brasileiras é automático, de tal maneira que não é mais necessária qualquer prévia autorização do Banco Central. Ainda assim, mantém-se a dispensa de aplicação das normas de preços de trans-ferência fi nanceira no caso de contratos de empréstimos registrados junto a esse órgão. Cabe também destacar que, ao valor em moeda estran-geira registrado junto ao Banco Central como principal do empréstimo é garantida a plena remissibilidade do valor integral ingressado no Brasil.

Ainda no tocante às normas de preços de transferência fi nanceira, destaque-se que, de acordo com o mesmo artigo 22 da Lei no. 9.430/1996, no caso de empréstimos feitos por empresas brasileiras para pessoas vin-culadas no exterior, a remuneração mínima que deve ser exigida pelas credoras brasileiras corresponderá à mesma taxa LIBOR, acrescida de 3% por ano. Se as credoras brasileiras decidirem cobrar menos que o limite mínimo de preços de transferência, a diferença deverá ser adicio-nada às bases de cálculo do IRPJ e CSLL.

Destaque-se que, além de se aplicar as normas de preços de trans-ferência fi nanceira nas operações de empréstimos internacionais com pessoas vinculadas, essas normas também devem ser aplicadas quando a parte credora ou devedora, residente no exterior, for residente em paraíso fi scal, ou benefi ciária de regime fi scal privilegiado.

Vejamos agora os conceitos de pessoa vinculada, paraíso fi scal e regime fi scal privilegiado.

4.1. Conceito de pessoa vinculada

O conceito de pessoa vinculada foi trazido pelo artigo 23 da Lei n.º 9.430/96, e diz respeito à vinculação dessa à pessoa jurídica brasileira, com a qual o negócio de importação ou exportação é efetuado.

A defi nição de pessoa vinculada foi uma inovação do legislador da Lei n.º 9.430/96 e é muito mais abrangente que a simples caracterização

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de “pessoa ligada”, envolvendo, também, situações nas quais não exis-tem vínculos societários.

Em primeiro lugar, a pessoa vinculada somente pode ser aquela que seja residente ou domiciliada no exterior, ao passo que o critério até então para estabelecer se uma pessoa seria “ligada” em relação à outra era meramente o vínculo societário e não um critério de local de residên-cia, apesar de o critério do vínculo societário também ter sido incorpo-rado no conceito de pessoa vinculada.

Em segundo lugar, a pessoa vinculada no exterior pode não ter qual-quer vínculo societário com a empresa brasileira, como é o caso de:

pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que seja sua associada, na forma de consórcio ou condomínio em qual-quer empreendimento, somente durante o período de duração do consórcio ou condomínio no qual ocorrer a associação;

pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que goze de exclusividade, como seu agente, distribuidor ou concessio-nário, para a compra e venda de bens, serviços ou direitos, sendo que a vinculação somente se aplica em relação às operações com os bens, serviços ou direitos para o quais se constatar a exclusividade; e,

pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, em relação à qual a pessoa jurídica domiciliada no Brasil goze de exclu-sividade, como agente, distribuidora ou concessionária, para a com-pra e venda de bens, serviços ou direitos, sendo que a vinculação somente se aplica em relação às operações com os bens, serviços ou direitos para o quais se constatar a exclusividade.

Vejamos, mais detidamente, cada uma dessas situações.A primeira situação de vinculação diz respeito à matriz da pessoa

jurídica brasileira. Neste caso, a pessoa jurídica brasileira, sob o ponto de vista societário, não será uma pessoa jurídica autônoma, mas uma extensão da personalidade jurídica de sua matriz. Inobstante, para fi ns de tributação pelo IRPJ, a fi lial de uma empresa estrangeira, que esteja devi-damente constituída no Brasil, é equiparada à pessoa jurídica brasileira,

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conforme disposto na Lei n.º 3.470/58, artigo 76, Lei n.º 4.131/62, artigo 42, e Lei n.º 6.264/75, artigo 1.º, consolidadas no artigo 1476 do Regula-mento do Imposto de Renda (Decreto n.º 3.000, de 27 de março de 1999).

Outra situação de vinculação é a fi lial ou sucursal, domiciliada no exterior, da empresa brasileira. Ne ste caso, a fi lial ou a sucursal é uma mera extensão da empresa brasileira, não tendo, em relação a esta, auto-nomia societária. Quando se trata de tributação de fi lial ou sucursal, os lucros auferidos pela fi lial são tributáveis no Brasil, no encerramento de cada exercício. Isto é, ainda que haja uma transferência de lucros do Bra-sil para o exterior, em função dos preços de exportação ou importação praticados, tais lucros transferidos serão tributados no fi nal do ano. Em função disso, em uma dada operação de comércio exterior entre matriz brasileira e fi lial no exterior, se houver, de acordo com as normas de preços de transferência, ajuste no preço efetivamente praticado para fi ns de calcular o IRPJ e CSLL, a matriz brasileira será duplamente penali-zada: terá que oferecer à tributação referido ajuste, bem como os lucros auferidos pela fi lial no exterior, nos quais estarão incluídos as vantagens obtidas na referida operação de comércio exterior.

Ainda na esteira do vínculo societário, a defi nição de pessoa vin-culada abrange também a a pessoa física ou jurídica, residente ou domi-ciliada no exterior, cuja participação societária no seu capital social a caracterize como sua controladora ou coligada, na forma defi nida nos §§ 1.º e 2.º do art. 243 da Lei n.º 6.404, de 15 de dezembro de 1976. “Controladora” é a pessoa jurídica ou física que, isolada ou em con-junto com outras pessoas, direta ou indiretamente, seja titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores. No tocante à coligação, ainda conforme defi nição legal, são coligadas as

6 Art. 147 – Consideram-se pessoas jurídicas, para efeito do disposto no inciso I do artigo anterior:

I – as pessoas jurídicas de direito privado domiciliadas no País, sejam quais forem seus fi ns, nacionalidade ou participantes no capital (Decreto-Lei n.º 5.844/43, Art. 27, e Leis n.ºs 4.131/62, Art. 42, e 6.264/75, Art. 1.º);

II – as fi liais, sucursais, agências ou representações no País das pessoas jurídicas com sede no exterior (Leis n.ºs 3.470/58, Art. 76, 4.131/62, Art. 42, e 6.264/75, Art. 1.º);

III – os comitentes domiciliados no exterior, quanto aos resultados das operações realizadas por seus mandatários ou comissários no País (Lei n.º 3.470/58, Art. 76).

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sociedades quando uma participa, com 10% (dez por cento) ou mais, do capital da outra, sem controlá-la.

Em havendo controle societário ou administrativo comum entre a empresa brasileira e o importador ou exportador no exterior, ou quando pelo menos dez por cento do capital de cada uma das empresas pertencer a uma mesma pessoa física ou pessoa jurídica, também há a confi guração de vinculação. Ou, ainda, quando ambas as partes – empresa brasileira e exportador ou importador no exterior – tenham participação no capital social de uma terceira pessoa jurídica, cuja soma as caracterizem como controladas ou coligadas.

Não mais na esfera da vinculação por relação societária, há situa-ções nas quais a vinculação é contratual. O primeiro caso é a associação, na forma de consórcio ou condomínio, em qualquer empreendimento. Em ambas as formas de associação, não há a criação de uma nova per-sonalidade jurídica – no primeiro caso, há a associação de duas ou mais sociedades, para execução de um determinado empreendimento, sem presunção de solidariedade entre elas; no segundo, há um bem, ou um conjunto de bens, com mais de um proprietário, em que cada um tem direito a uma fração ideal, e não a uma parte determinada, daquele bem.

Neste tipo de vinculação, somente faz sentido a caracterização do vínculo enquanto perdurar a associação. Isto porque, não havendo mais a associação entre as empresas e, desde que não seja caracterizada qual-quer situação de vínculo societário, os negócios de comércio exterior envolverão duas partes independentes, nos quais os preços praticados tenderão a ser os de mercado. Ademais, há de se interpretar com muito cuidado o vínculo no caso de condomínio. “Condomínio” deve ser em relação a um empreendimento empresarial comum. Não se pode supor que, se a empresa brasileira e o exportador no exterior tiverem investi-mento em um mesmo fundo de investimento em um banco brasileiro, por exemplo, – fundo este constituído sob a forma de condomínio – automa-ticamente tais empresas tenderão a não praticar os preços de mercado e, portanto, tais empresas seriam vinculadas. Entendo que o foco da vincu-lação é a associação, independentemente da mesma se dar sob a forma de consórcio ou condomínio.

Outra situação em que o vínculo contratual se encontra presente é a pessoa jurídica ou física residente no exterior que goze de exclusividade, como agente, distribuidor ou concessionário para a compra e venda de

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bens, serviços ou direitos da empresa brasileira. Ou, na situação inversa, na qual a empresa brasileira seja agente, distribuidora ou concessionária exclusiva para a compra e venda dos bens, serviços ou direitos da pessoa no exterior, também se verifi ca a vinculação.

Por fi m, a vinculação abrange também relações pessoais, ao deter-minar, como pessoa vinculada à empresa brasileira a pessoa física resi-dente no exterior que for parente ou afi m até o terceiro grau, cônjuge ou companheiro de qualquer de seus diretores ou de seu sócio ou acionista controlador em participação direta ou indireta. Vale destacar, neste caso, que a vinculação não se dá entre a empresa na qual a pessoa física resi-dente no exterior trabalhe ou faça parte e a empresa brasileira, mas sim, entre a própria pessoa física residente no exterior e a pessoa jurídica brasileira.

Portanto, deve-se entender como pessoa vinculada, domiciliada no exterior, à empresa brasileira: sua matriz, fi lial, sucursal, a contro-ladora direta ou indireta, a coligada, as associadas por condomínio ou consórcio, a pessoa física parente ou afi m até terceiro grau, o cônjuge ou companheiro de qualquer dos diretores ou de seu sócio ou acionista controlador em participação direta ou indireta e o agente, distribuidor ou concessionário exclusivos.

Posteriormente, a Medida Provisória n.º 2.158-35, de 2001, trouxe em seu artigo 87 a presunção de vinculação entre as partes na transa-ção comercial quando, em razão de legislação do país do vendedor ou da prática de artifício tendente a ocultar informações, não for possí-vel: I – conhecer ou confi rmar a composição societária do vendedor, de seus responsáveis ou dirigentes; ou II – verifi car a existência de fato do vendedor. Não se trata de uma restrição específi ca para os países ou jurisdições de tributação favorecida, mas cabe observar que, em grande parte dessas jurisdições, é comum encontrar, além de reduzida tributação sobre a renda, a possibilidade de efetuar transações sem identifi cação, especialmente por meio de empresas cujas ações são ao portador.

4.2. Legislação brasileira e paraísos fi scais

Benefícios fi scais, assim entendidos os regimes que reduzem ou eliminam a tributação, existem em vários países do mundo, inclusive

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no Brasil, como ocorre no caso da tributação das pessoas jurídicas que se instalam nas regiões Norte e Nordeste do país, ou como é o caso da desoneração das exportações.

No entanto, alguns países – muitas vezes, apenas em algumas dependências de países – estabelecem regimes tributários nos quais a regra geral é sujeitar-se à tributação reduzida ou nenhuma tributação, ou seja, a tributação sobre a renda é exceção. Tais países ou dependências agregam ainda aos benefícios fi scais outras vantagens, tais como liber-dade de moeda, possibilidade de efetuar transações sem identifi cação, por meio de empresas ou fundos ao portador, garantia de sigilos bancá-rio e de dados, facilidade para efetuar transações internacionais, dentre outros. São os denominados “paraísos fi scais”7, ou tax haven jurisdic-tions que, conforme ressalta HELENO TÔRRES, representam formas típicas de concorrência fi scal prejudicial8.

Essas jurisdições são centros de prestação de serviços, os quais compreendem, dentre outros, os serviços fi nanceiros e os serviços fi duci-ários, com a administração de empresas, fundações, trusts e outras fi gu-ras jurídicas que existam sob cada um dos sistemas legais.

As legislações dos diversos países que não se caracterizem como “de tributação favorecida” vêm criando diversas barreiras para inibir o uso dessas jurisdições, barreiras estas, em sua grande maioria, de natu-reza tributária. Dentre tais barreiras, podemos destacar (a) o regime da transparência fi scal internacional, segundo o qual a empresa situada em uma jurisdição de tributação favorecida que seja controlada por uma empresa constituída em um país de alta pressão fi scal é considerada como “extensão” da sua controladora, desconsiderando-se sua personali-

7 Não usaremos a denominação “paraíso fi scal”, denominação esta frontalmente combatida pelo Prof. Heleno Tôrres, ao expressar: Encontra-se arraigado na terminolo-gia coloquial do Direito Tributário o jargão “paraíso fi scal”, tão ao gosto popular, para identifi car as manifestações de concorrência fi scal prejudicial, cuja imprecisão é latente. Eis uma praga lingüística mal importada dos imprecisos termos usados na doutrina do common law, disseminada em várias línguas, só não desagradável aos novidadeiros, que consideram manifestações de progresso a introdução de pragas léxicas, sem qualquer compromisso com o conteúdo de signifi cação que o termo possa representar. TÔRRES, Heleno. Direito Tributário Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pp. 75 e 76.

8 Op. Cit, p. 71.

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dade jurídica autônoma; (b) a aplicação das normas de preços de transfe-rências a transações nas quais uma das partes contratantes seja residente em uma jurisdição de tributação favorecida; (c) aplicação de alíquotas mais gravosas para a tributação das rendas auferidas pela empresa resi-dente em jurisdição de tributação favorecida; (d) valoração aduaneira; dentre outras.

No Brasil, o controle aos países com tributação favorecida iniciou--se em 1997, com o advento da Lei n.º 9.430, de 1996. Com base no artigo 24 da referida lei, as transações de importação e exportação, bem como os empréstimos internacionais, passaram a sujeitar-se ao controle de preços de transferência toda vez que a parte contratante no exterior fosse residente em um país com tributação favorecida. Ainda segundo esse artigo, para a verifi cação da tributação favorecida, será considerada a legislação tributária do referido país, aplicável às pessoas físicas ou às pessoas jurídicas, conforme a natureza do ente com o qual houver sido praticada a operação.

A Medida Provisória n.º 22, de 08 de janeiro de 2002, convertida na Lei n.º 10.451, de 10 de maio de 2002, acrescentou o parágrafo 3.º a esse artigo, estabelecendo que, para fi ns de constatação da tributação favo-recida, considerar-se-á separadamente a tributação do trabalho e do capital, bem como as dependências do país de residência ou domicílio.

Mais recentemente, a Lei n.º 11.727/2008 expandiu o conceito de paraísos fi scais, estabelecendo como tais também as jurisdições cuja legislação não permita o acesso a informações relativas à composição societária de pessoas jurídicas, à sua titularidade ou à identifi cação do benefi ciário efetivo de rendimentos atribuídos a não residentes.

4.2.1. Conceito de País com Tributação Favorecida

Conforme já mencionado, no Brasil, a primeira restrição ao uso dos países com tributação favorecida surgiu com o advento da Lei n.º 9.430, de 1996, em seu artigo 24, que determinou a aplicação das normas de preços de transferência àquelas operações de importação, exportação ou empréstimos efetuados entre uma parte brasileira e um residente em um país que não tribute a renda, ou a tribute em alíquota máxima inferior a vinte por cento . Desta feita, defi niu-se o “país com tributação favore-

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cida” como todo aquele no qual em que não houvesse tributação sobre a renda igual ou superior a vinte por cento.

Ora, mas qual a tributação a ser considerada? Pois as diversas legis-lações dos vários países trazem várias disciplinas de tributação sobre a renda – rendas auferidas por pessoas físicas, rendas auferidas por pessoas jurídicas, rendimentos do trabalho, rendimentos de aplicações fi nancei-ras, ganhos de capital, etc. Se verifi cássemos apenas a defi nição legal – país que não tribute a renda ou a tribute em alíquota máxima inferior a vinte por cento – diriam alguns que bastaria existir em um determi-nado país a tributação de qualquer renda em alíquota superior a vinte por cento para se excluir do conceito de país com tributação favorecida aquele determinado Estado Soberano.

Não foi esta a intenção do legislador, claramente expressa ainda nos parágrafos do referido artigo 24, ao estabelecer que a carga tributária deverá ser analisada em relação à natureza do ente com o qual se contrata – pessoa física ou pessoa jurídica. Assim, não basta verifi car se existe tributação ou não sobre a renda em um determinado país, mas também se deve levar em conta a tributação à qual o sujeito com o qual se contrata está efetivamente submetido.

Com base na modifi cação trazida pela Lei n.º 10.451/2002, passou--se a considerar separadamente a tributação do trabalho e do capital, bem como as dependências do país de residência ou domicílio. Esta modifi cação veio acomodar a necessidade da Secretaria da Receita Fede-ral em incluir dependências de países como jurisdições de tributação favorecida, enquanto que as normas em vigor possibilitavam apenas a caracterização de países considerados como Estados soberanos.

Por defi nição legal, todo aquele país ou jurisdição que não tribute a renda, ou a tribute em alíquota máxima inferior a vinte por cento, será tido como país com tributação favorecida. E, as empresas brasileiras, que negociarem bens, serviços ou direitos com empresas ou pessoas físi-cas domiciliadas nesse país, estarão sujeitas ao controle dos preços de transferência.

Muito se discute se deve ser verifi cada a carga tributária efetiva, ou a alíquota nominal do imposto de renda no outro país, quando a lei menciona, a defi nição de país com tributação favorecida, a alíquota de 20%. Isto porque, é sabido que, em certos países, a alíquota do imposto de renda é superior a 20%, todavia, tendo como base de cálculo somente

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um percentual sobre a renda. Ou seja, a carga tributária efetiva para o benefi ciário é inferior a 20%, em função da redução da base de cálculo.

Sobre o assunto, HELENO TÔRRES9 tem o entendimento de que a legis-lação brasileira, ao falar em alíquota máxima inferior a 20% refere-se à alíquota efetiva, assim entendida aquela que, além da proporção legal da alíquota, são somados em conta outros aspectos do critério quanti-tativo da norma, como a determinação da base de cálculo, sendo defi -nida como o resultado decorrente do somatório do imposto pago sobre o lucro da pessoa jurídica, antes da sua distribuição, com o imposto devido na distribuição de lucros, dividido pelo lucro antes da incidência do Imposto sobre a Renda devido pela empresa.

Nosso entendimento coaduna-se com o de HELENO TÔRRES. Isto por-que, a alíquota máxima inferior a vinte por cento será verifi cada em razão da renda, ou seja, deve ser verifi cada se, sobre a renda, recairá uma carga tributária mais gravosa ou menos gravosa do que o patamar de vinte por cento. Ademais, se a motivação do legislador, ao determinar a alíquota máxima inferior a vinte por cento, foi a de que as operações efetuadas com empresas localizadas em países cuja tributação seja assim inferior tendem a ser vantajosas para tais empresas, em detrimento das brasileiras com as quais se negocia, deve-se aplicar a restrição a todo e qualquer país cuja renda esteja sujeita à carga tributária efetiva inferior a 20%.

A Lei n.º 9.430/96 dispõe, ainda, que, para a verifi cação da tribu-tação de um determinado país, será considerada a legislação tributária do referido país, aplicável às pessoas físicas ou às pessoas jurídicas, conforme a natureza do ente com o qual houver sido praticada a opera-ção. Ou seja, a análise da tributação sobre a renda – superior ou inferior a vinte por cento – levará em conta o fato de a pessoa com a qual a empresa brasileira negocia ser uma pessoa jurídica ou física.

Em certos casos, o país impõe tributação sobre a renda superior a 20%, todavia, certos tipos de sociedade, ou certos tipos de atividades, ou apenas certas regiões do País, são benefi ciados com redução da tributa-ção. É como explica ALBERTO XAVIER10:

9 TÔRRES, Heleno. Ob. cit, pp. 94 e 95.10 XAVIER, Alberto. Direto Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro:

Forense, 5a Edição, 1998, p. 282.

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Mas, como alguém já afi rmou, todos os Estados são, de certo modo, paraísos fi scais, no que tange a setores ou vantagens específi -cas que oferecem: recorre-se ao Panamá e à Libéria para o desenvolvi-mento da marinha mercante; ao Luxemburgo e à Holanda, em razão o regime especialmente favorável das sociedades holding e da colocação de empréstimos externos; (...). Mas é certo que os Estados Unidos, país de elevado nível de tributação, oferecem também a vantagem específi ca de não tributar os juros pagos aos residentes no exterior, que detêm depósitos bancários, encorajando assim a permanência desses fundos na sua economia.

Nestes casos, a questão é: perante a Lei n.º 9.430/96, para identifi -cação de “país com tributação favorecida”, considera-se a regra geral de tributação aplicável às pessoas físicas ou jurídicas de um determinado país, ou considera-se a tributação que será aplicada àquela pessoa em particular?

Nesta questão, ALBERTO XAVIER assim esclarece:

“A lei afi rma que o nível de tributação do país em causa seja deter-minado conforme a legislação aplicável à ‘natureza do ente’ com o qual tiver sido praticada a operação. Entendemos que esta consideração apenas se aplica se o regime tributário mais favorável do país estrangeiro for defi nido em função de características subjetivas da entidade em causa (por exemplo, uma isenção que atinja todos os rendimentos de uma certa pessoa, em função do seu objeto), mas não em função de características objetivas, dependendo da natureza dos rendimentos auferidos, como é o caso das “holdings” (como as brasileiras), isentas ou menos tributadas em relação aos dividendos, ou o caso das sociedades tributadas em relação à generalidade dos rendimentos, mas não assim em relação aos rendimentos de origem externa (como sucederia no Brasil antes da abolição do princí-pio da territorialidade).”

Segue na mesma esteira o entendimento de HELENO TÔRRES, ao afi r-mar que A Lei 9.430/96 foi além disso, referindo-se à natureza do ente, de sorte que o critério subjetivo ingressa na análise e deve ser levado em conta para a atribuição dos efeitos típicos de identifi cação dos países com tributação favorecida e sucessivo controle das operações. Com isto,

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passa a alcançar não somente os países que não tributem a renda ou que tributem com alíquota máxima inferior a 20% mas também os que man-tenham uma alíquota efetiva acima desse patamar, abrigando, porém, formas societárias ou de investimentos que, pela natureza jurídica do ente, recebam um tratamento fi scal privilegiado e sejam tributadas com alíquotas inferiores a 20%.

Nossa opinião é concordante ao entendimento dos autores supra-citados. A nosso ver, na medida em que haja, em um determinado país, benefícios de imposto sobre a renda para determinados tipos de socieda-des ou pessoas, em função de suas características subjetivas, se o contri-buinte brasileiro efetuar operações de comércio exterior com sociedades ou pessoas benefi ciadas, fi cará confi gurado aquele país como de tributa-ção favorecida.

4.2.2. Listas de Jurisdições de Tributação Favorecida Emanadas da Secretaria da Receita Federal

No tocante à caracterização dos países ou jurisdições que possam ser consideradas de tributação favorecida, cabe destacar a já mencionada prática da Secretaria da Receita Federal de publicar as listas daqueles locais que esta entende como de tributação favorecida.

A lista atualmente em vigor consta da Instrução Normativa n.º 1.037, de 2010, a qual congrega as seguintes jurisdições: Andorra; Anguilla; Antígua e Barbuda; Antilhas Holandesas; Aruba; Ilhas Ascen-são; Comunidade das Bahamas; Bahrein; Barbados; Belize; Ilhas Ber-mudas; Brunei; Campione D’Italia; Ilhas do Canal (Alderney, Guernsey, Jersey e Sark); Ilhas Cayman; Chipre; Cingapura; Ilhas Cook; República da Costa Rica; Djibouti; Dominica; Emirados Árabes Unidos; Gibraltar; Granada; Hong Kong; Kiribati; Lebuan; Líbano; Libéria; Liechtenstein; Macau; Ilha da Madeira; Maldivas; Ilha de Man; Ilhas Marshall; Ilhas Maurício; Mônaco; Ilhas Montserrat; Nauru; Ilha Niue; Ilha Norfolk; Panamá; Ilha Pitcairn; Polinésia Francesa; Ilha Queshm; Samoa Ame-ricana; Samoa Ocidental; San Marino; Ilhas de Santa Helena; Santa Lúcia; Federação de São Cristóvão e Nevis; Ilha de São Pedro e Migue-lão; São Vicente e Granadinas;V Seychelles; Ilhas Solomon; St. Kitts e

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Nevis; Suazilândia; Suíça11; Sultanato de Omã; Tonga; Tristão da Cunha; Ilhas Turks e Caicos; Vanuatu; Ilhas Virgens Americanas; Ilhas Virgens Britânicas.

Há uma discussão em relação à natureza dessa lista – taxativa ou meramente exemplifi cativa. A razão de existir a lista é, a nosso ver, lou-vável – a segurança jurídica, pois não se pode presumir que o responsá-vel pelo cumprimento das obrigações tributárias no Brasil sempre tenha acesso à legislação tributária dos países com os quais se negocia ou nos quais residam os benefi ciários de rendimentos de fonte brasileira.

Porém, não se pode, de maneira nenhuma, considerar a lista taxa-tiva, eis que é veiculada por meio de Instrução Normativa, que nada mais é do que uma norma secundária, ou seja, uma regulamentação adminis-trativa, emanada pelo Secretário da Receita Federal do Brasil, e não por meio de lei.

No entanto, é fato que, na prática, as autoridades não têm exigido a aplicação retroativa das novas instruções normativas.

4.2.3. Regime de Tributação Favorecida

A Lei no. 11.727/2008 introduziu na legislação brasileira o con-ceito de regime de tributação favorecida, estabelecendo que, todas as vezes que uma empresa brasileira negociar com uma empresa residente no exterior que goze, no seu país, de um tratamento tributário favorecido, essa empresa brasileira será obrigada a aplicar as normas brasileiras de preços de transferência.

Essa lei introduziu o artigo 24-A na Lei no. 9.430/1996, estabele-cendo que, caracteriza-se como “regime fi scal privilegiado” aquele que:

a) não tribute a renda ou a tribute à alíquota máxima inferior a 20% (vinte por cento);

b) conceda vantagem de natureza fi scal a pessoa física ou jurídica não residente:

11 Os efeitos da inclusão da Suíça na lista negra foi temporariamente suspensa, de acordo com a Instrução Normativa no. 1.046/2010, por conta de negociações entre autoridades suíças e brasileiras.

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• sem exigência de realização de atividade econômica substan-tiva no país ou dependência;

• condicionada ao não exercício de atividade econômica subs-tantiva no país ou dependência;

c) não tribute, ou o faça em alíquota máxima inferior a 20% (vinte por cento), os rendimentos auferidos fora de seu território;

d) não permita o acesso a informações relativas à composição societária, titularidade de bens ou direitos ou às operações eco-nômicas realizadas.

Em junho de 2010, por meio da Instrução Normativa no. 1.037 – a mesma instrução que trouxe a lista negra de paraísos fi scais –, a Receita Federal publicou a lista de jurisdições consideradas como regimes fi scais privilegiados. De acordo com o artigo 2.º dessa Instrução, são regimes fi scais privilegiados:

a) com referência à legislação de Luxemburgo, o regime aplicá-vel às pessoas jurídicas constituídas sob a forma de holding company;

b) com referência à legislação do Uruguai, o regime aplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a forma de “Sociedades Finan-ceiras de Inversão (Safi s)” até 31 de dezembro de 2010;

c) com referência à legislação da Dinamarca, o regime aplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a forma de holding company que não exerçam atividade econômica substantiva;

d) com referência à legislação do Reino dos Países Baixos, o regime aplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a forma de holding company que não exerçam atividade econômica substantiva12;

e) com referência à legislação da Islândia, o regime aplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a forma de International Tra-ding Company (ITC);

f) com referência à legislação da Hungria, o regime aplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a forma de offshore KFT;

12 Os efeitos da inclusão da Holanda foi temporariamente suspensa, de acordo com a Instrução Normativa no. 1.046/2010, por conta de negociações entre autoridades holandesas e brasileiras.

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g) com referência à legislação dos Estados Unidos da América, o regime aplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a forma de Limited Liability Company (LLC) estaduais, cuja participa-ção seja composta de não residentes, não sujeitas ao imposto de renda federal; ou

h) com referência à legislação da Espanha, o regime aplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a forma de Entidad de Tenen-cia de Valores Extranjeros (E.T.V.Es.);

i) com referência à legislação de Malta, o regime aplicável às pes-soas jurídicas constituídas sob a forma de International Tra-ding Company (ITC) e de International Holding Company (IHC).

Há de se destacar alguns pontos dessa lista:

a) vários países que constam dessa lista têm com o Brasil tratados para evitar a dupla tributação – Espanha, Holanda, Luxemburgo, Hungria e Dinamarca. Na medida em que essa lista representa uma discriminação entre os residentes de um país que tem tra-tado com o Brasil, a inclusão na lista poderia ser entendida como uma violação ao tratado. Ainda, a inclusão dessas jurisdições na lista de regimes fi scais privilegiados não foi previamente nego-ciada com cada um dos países – tanto é assim que, por conta de oposições apresentadas pelo governo holandês, houve a suspen-são dos efeitos da inclusão da Holanda;

b) em várias das jurisdições incluídas na lista, não há um tipo de sociedade denominada “holding company”, sendo essa denomi-nação utilizada para indicar empresas comuns que tenham como único objeto social a participação societária em outras empresas. Ainda, nessas mesmas jurisdições, como é o caso da Holanda, Espanha e Dinamarca, não há um “regime fi scal” específi co aplicável às “sociedades constituídas sob forma de holding com-pany”, mas sim o regime geral de “participation exemption” aplicado por todos os países da União Européia;

c) Se uma determinada sociedade estabelecida em uma dessas juris-dições tiver, além da participação em outras empresas, outras atividades operacionais, deve-se considerar dita sociedade como sujeita a “regime fi scal privilegiado”? Entendemos que não. Se

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a sociedade tiver outras atividades operacionais, ainda que se utilize do regime de “participation exemption”, entendemos que essa sociedade não deverá ser considerada como sujeita a regime fi scal privilegiado.

5. Normas brasileira contra a subcapitalização

Como comentamos anteriormente, até o ano de 2009, o Brasil não aplicava qualquer controle contra a chamada subcapitalização, que cor-responde ao uso de empréstimos por acionistas ou por pessoas ligadas, ao invés de capital.

No ano de 2009, uma importante disputa entre o fi sco e um contri-buinte veio a público, por meio do jornal Valor Econômico, revelando uma controvérsia quanto à dedução de despesas de juros, oriundas da captação de recursos pela empresa brasileira do Grupo Colgate-Palmo-live junto à sua controladora, localizada nos Estados Unidos, feita para a aquisição das atividades desenvolvidas pelo Grupo American Home sob a marca Kolynos.

Naquela disputa, muito embora a Corte Administrativa, em sua segunda instância, havia dado decisão favorável à Colgate-Palmolive, reconhecendo que não havia no Brasil normas contra a subcapitalização, o Fisco insistia em afi rmar que as despesas fi nanceiras não eram neces-sárias, pois a despeito de terem sido utilizadas nas atividades operacio-nais da empresa, foram geradas por recursos que supostamente poderiam ter sido fornecidos como capital, no entender das autoridades tributá-rias. Essa disputa ainda não está encerrada, de tal maneira que ainda não temos um posicionamento defi nitivo das cortes a respeito do assunto.

Fato é que, esse caso chamou a atenção das autoridades tributárias para a ausência de normas contra a subcapitalização no direito brasileiro, o que motivou o Presidente a inserir, no pacote de medidas tributárias do fi nal de 2009, válidas a partir de 1.º de janeiro de 2010, tais normas.

As normas brasileiras de subcapitalização, introduzidas pela Medida Provisória no. 472/ 2010, posteriormente convertida na Lei no. 12.249/2010, se dividem entre aquelas aplicáveis aos empréstimos inter-nacionais obtidos junto a pessoas vinculadas não residentes em paraí-sos fi scais, nem benefi ciárias de regimes fi scais privilegiados, e aque-

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las aplicáveis aos empréstimos obtidos de quaisquer pessoas, físicas ou jurídicas, residentes em paraísos fi scais ou benefi ciários de regime fi scal privilegiado. Vejamos com mais detalhes.

5.1. Empréstimos concedidos por pessoa vinculada no exterior, não residente em paraísos fi scais e não benefi ciária de regimes fi scais privilegiados

De acordo com o artigo 24 da Lei no. 12.429/2010, sem prejuízo da aplicação das normas de preços de transferência fi nanceira, nos emprés-timos internacionais nos quais a credora, residente no exterior em jurisdi-ção que não seja paraíso fi scal, nem benefi ciária de regime fi scal privile-giado, for uma pessoa vinculada à empresa brasileira, a dedução de juros deverá observar os seguintes requisitos:

a) os juros devem constituir despesa necessária à atividade da empresa, de tal maneira que os recursos captados devem ser uti-lizados nas atividades operacionais da empresa brasileira;

b) se a credora tiver participação societária no capital da empresa brasileira, o valor da dívida não pode exceder a 2 vezes o valor da sua participação no patrimônio líquido dessa empresa brasileira;

c) se a credora não tiver participação societária no capit al da empresa brasileira, o endividamento não poderá exceder a 2 vezes o valor do patrimônio líquido dessa empresa;

d) em qualquer dos casos mencionados nos itens “b” e “c” , o soma-tório das dívidas com pessoas vinculadas não residentes em paraísos fi scais, nem benefi ciárias de regime fi scal privilegiado, não pode ultrapassar 2 vezes o patrimônio líquido da empresa brasileira, exceto se esta tiver contraído empréstimos apenas e tão-somente com pessoas vinculadas sem participação societária em seu capital.

O cálculo do total de endividamento levará em conta todas as for-mas e prazos de fi nanciamento, com ou sem registro junto ao Banco Central do Brasil. Em havendo excesso de endividamento em relação aos limites acima referidos, os juros calculados sobre o endividamento excedente não serão dedutíveis para fi ns de IRPJ e CSLL.

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Esse artigo 24, em seu parágrafo segundo, ainda estabelece que, aplica-se o controle de subcapitalização no caso de empréstimos con-cedidos por terceiros, se uma pessoa vinculada residente no exterior for o avalista, fi ador, procurador ou qualquer interveniente nos referidos empréstimos.

Quando o tomador no Brasil for uma instituição fi nanceira, caso os recursos tomados no exterior de pessoas vinculadas sejam utilizados para operações de repasse a seus clientes no Brasil, os valores dos emprésti-mos externos correspondentes aos repasses fi cam dispensados do con-trole da subcapitalização.

Muito embora diversos países tenham normas contra a subcapitali-zação, há que se destacar algumas peculiaridades das normas brasileiras, quais sejam:

a) a sua abrangência pessoal – na medida em que as normas contra a subcapitalização são aplicáveis para todo e qualquer emprés-timo feito por pessoa vinculada, e o conceito de pessoa vincu-lada vem justamente da legislação de preços de transferência, não se trata de controlar apenas os juros de empréstimos pro-venientes de sócios ou acionistas, mas sim, de qualquer pessoa – física ou jurídica – residente no exterior que possam ter algum vínculo societário, pessoal ou contratual que a caracterize como “pessoa vinculada” à empresa brasileira;

b) ao limite de endividamento – diferentemente das orientações da OCDE, que recomendam que esse limite de endividamento seja de, no máximo, 3 vezes o valor do patrimônio líquido de deter-minada empresa, o limite estabelecido pela legislação tributária brasileira é de apenas 2 vezes o valor do patrimônio líquido;

c) à abrangência material – as normas contra a subcapitaliza-ção aplicam-se também a empréstimos de terceiros, se nesses empréstimos uma pessoa vinculada no exterior for avalista, fi a-dora (ou seja, garantidora), procuradora (independentemente de a vinculada assumir qualquer ônus fi nanceiro) ou “interve-niente”. Interveniente é um termo que, no direito brasileiro, é deveras abrangente, e inclui qualquer um que, por escrito, tome conhecimento de um determinado contrato, ainda que não tenha qualquer direito ou obrigação sobre ele.

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Grande parte dos países exige a aplicação das normas de sub-capitalização nos casos das operações em que a controladora provê uma garantia fi nanceira (“cash collateral”) para a ope-ração, para evitar as chamadas operações “back-to-back”, mas não aquelas operações em que, legitimamente, a subsidiária toma o empréstimo, mas por questões negociais, a controla-dora aparece para garantir ou autorizar a operação. Há que se considerar que, do ponto de vista econômico, é normal os credores entenderem que um determinado grupo de empre-sas tem o risco menor do que cada uma das empresas do grupo, analisadas isoladamente, e para aceitar reduzir as taxas de juros, exigem que a controladora fi gure no contrato como garantidora, sem que haja, no momento da contratação do empréstimo, o desembolso de um centavo qualquer por essa garantidora.

Portanto, quando se fala de subcapitalização no Brasil, não se deve levar em conta apenas os empréstimos entre a controladora e a sua con-trolada, mas sim, os empréstimos que a empresa brasileira toma de quais-quer de suas pessoas vinculadas no exterior.

5.2. Empréstimos concedidos por pessoa residentes em paraísos fi s-cais ou benefi ciária de regimes fi scais privilegiados

Quando o empréstimo for proveniente de credora – vinculada ou não – residente em paraíso fi scal, ou benefi ciária no exterior de regime fi scal privilegiado, as normas comentadas no item 5.1., acima, não se aplicam, eis que esse empréstimo está regulado pelo artigo 25 da Lei n.º 12.249/2011.

A diferença entre as disposições do artigo 24 e do artigo 25 se resume, basicamente, ao limite de endividamento. No caso do artigo 25, o somatório das dívidas com pessoas residentes em paraísos fi scais ou benefi ciárias de regime fi scal privilegiado não pode ultrapassar 30% do patrimônio líquido da empresa brasileira.

As outras determinações – considerar todas as formas de endivida-mento; inclusão das operações em que o avalista, fi ador, procurador ou interveniente for residente em paraíso fi scal ou benefi ciário de regime

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fi scal privilegiado; exclusão dos valores utilizados pelas instituições fi nanceiras como repasse – também foram incluídas no artigo 25.

Assim, em qualquer empréstimo proveniente de paraíso fi scal, além de ter o controle de subcapitalização com o limite de endividamento reduzido – 30% do patrimônio líquido, ao invés de 2 vezes o seu valor – há que lembrar ainda que é aplicável o imposto de renda retido na fonte majorado de 15% para 25%.

O mesmo não acontece com benefi ciário de regime fi scal privile-giado. Muito embora aos empréstimos com esse benefi ciário se aplique o limite de endividamento reduzido de 30%, não se aplica, por enquanto, a majoração de alíquota do imposto de renda na fonte, eis que dita majo-ração apenas é aplicável para as jurisdições consideradas paraísos fi scais.

6. Conclusões

Com base em todo o aqui exposto:

a) Do ponto de vista da carga tributária brasileira, para uma empresa aqui residente é vantajoso tomar empréstimo no exterior, eis que, os juros geram uma dedução fi scal para fi ns de IRPJ e CSLL (cuja carga tributária combinada corresponde a 34% ou 40% no caso das instituições fi nanceiras e seguradoras) maior que o imposto de renda na fonte incidente sobre esses mesmos juros (15% ou 25%, se benefi ciário for residente em paraíso fi scal);

b) Para aumentar a atratividade do uso de capital, em 1996 entra-ram em vigor as normas dos juros sobre o capital próprio, que é uma forma de remuneração ao acionista dedutível para fi ns de IRPJ e CSLL como se juros fossem, e também tributável na fonte às mesmas alíquotas de 15% ou 25%;

c) Muito embora a natureza jurídica dos juros sobre o capital pró-prio seja de remuneração de acionista – e, portanto, como já manifestou a Comissão de Valores Mobiliários, de dividendos – o tratamento tributário aplicável é o de juros, de tal maneira que, nos tratados para evitar a dupla tributação que o Brasil é parte, prevalece a aplicação do artigo 11 (Juros), e não do artigo 10 (dividendos);

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d) O Brasil também aplica o controle de preços de transferência fi nanceira sobre os empréstimos internacionais quando o credor no exterior for pessoa vinculada à empresa brasileira, quando residir em paraíso fi scal, ou quando for benefi ciário de regime fi scal privilegiado;

e) O conceito de pessoa vinculada é muito mais abrangente do que o simples conceito de pessoa ligada, incluindo vínculos mais diversos societários, contratuais e pessoais no seu escopo;

f) Muito embora o conceito de paraíso fi scal esteja defi nido em lei, o Brasil tem adotado a política de publicar normas adminis-trativas que trazem a lista das jurisdições entendidas pelo Fisco como paraísos fi scais. Essa lista, apesar de não ser, do ponto de vista jurídico, taxativa, eis que veiculada por normas editadas pelo Secretário da Receita Federal do Brasil e não por lei, tem sido tratada pela fi scalização como taxativa, para o bem da segu-rança jurídica do contribuinte;

g) O conceito de regime fi scal privilegiado abrange situações em que a jurisdição per se não pode ser considerada paraíso fi scal, porém essa jurisdição concede certos tratamentos fi scais favore-cidos a determinados contribuintes, ou categorias de contribuin-tes. O Fisco brasileiro, a partir de 2010, optou também por esta-belecer lista de regimes fi scais privilegiados, lista essa que vem sendo objeto de discussões com os governos dos países afetados;

h) O regime da subcapitalização vem em adição às normas de pre-ços de transferência fi nanceira, e traz o limite de endividamento de 2 vezes o patrimônio líquido da empresa brasileira, no caso de pessoa vinculada não residente em paraíso fi scal ou não bene-fi ciária de regime fi scal privilegiado, ou de 30%, se a pessoa, vinculada ou não, for ali residente, ou seja benefi ciária de tal regime;

i) O que tornam as normas de subcapitalização brasileiras muito mais abrangentes do que as normas encontradas em outros paí-ses são:• A amplitude do conceito de pessoa vinculada; e,• O fato de tais normas se aplicarem no caso de uma pessoa

vinculada, ou residente em paraíso fi scal ou benefi ciária de regime fi scal privilegiado ser, de alguma forma, garantidora,

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procuradora ou interveniente no contrato de empréstimo, independentemente de haver, no momento da contratação do empréstimo, qualquer desembolso por parte dessa pessoa;

j) Portanto, não se pode considerar a aplicação das normas de sub-capitalização apenas naquelas situações em que há um emprés-timo da acionista no exterior para a empresa investida no Brasil, mas sim, deve-se considerar sua aplicação em quaisquer ope-rações de empréstimo que envolva as chamadas pessoas vin-culadas, ou paraísos fi scais, ou benefi ciários de regimes fi scais privilegiados.

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Mary Elbe Queiroz

A Proporcionalidade no âmbito administrativo-tributário

Mary Elbe Queiroz

Doutora em Direito Tributário (PUC/SP). Presidente do Instituto Pernambucano de Estudos Tributários – IPET.Advogada.

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RESUMO

A administração Tributária, por entender que exerce atividade vinculada à lei, resiste em aplicar o princípio da proporcionalidade no seu atuar, seja na elaboração de atos normativos seja no curso do procedimento fi scal ou, até, mesmo, no julgamento de processos administrativo-tributários. Na atualidade, contudo, não há mais como se negar a aplicação da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) no âmbito administrativo-tributário. Este princípio é o que melhor atende à legalidade e a todos os demais direitos fundamentais assegurados aos cidadãos--contribuintes, como forma de harmonizar e equilibrar os interesses e direitos em colisão, por meio da ponderação dos valores envolvidos. Para que seja encontrada a solução mais justa na cobrança de tributos, por conseguinte, é mister considerar a relação meio-fi m para que seja realizado o interesse público que é o bem jurídico protegido. O verdadeiro interesse público, contudo, não se confunde com a idéia imediatista da arrecadação, pois ele somente será alcançado se a ordem jurídica for preservada, mediante a observância da lei e do Direito, em nome da segurança jurídica.

Palavras-chave: Direito Tributário, Principio da proporcionalidade Administração tributária, Legalidade, Segurança jurídica

ABSTRACT

Tax Authorities, due to the understanding that it´s activity is bounded to law, resists to apply the proportion rule in it´s acts, either in the normative rulling, or along the fi scal procedure, or even when judging the administrative proceedings. Nowadays, neverthe-less, there is no possible way to deny application of proportion rule (conformity, neces-sity and proportion rule in strict sense) in what concerns to fi scal administration. This is the principle that better attends to the lawfulness and to all other fundamental rights assured to citizens/taxpayers, as a way to harmonize and balance the confronting inte-rests and rights through the balance of the values that are involved. In order to fi nd the fairest solution in taxes charging it is so necessary to consider the mean/end relationship so that the public interest, which is the good protected by law, can be implemented. The real public interest, however, cannot be thought as the immediate idea of improving tax revenues, because it can only be reached if the juridical order remains preserved, through compliance to law in behalf of legal certainty.

Keywords: Tax Law, Proportion rule, Tax Authorities, Lawfulness, Legal certainty

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1. Considerações gerais. 2. O princípio da proporcionalidade. 3. A proporcionalidade no

âmbito administrativo-tributário. 4.Conclusão

1. Considerações gerais

A partir da estruturação do Estado e da necessidade de harmoniza-ção dos interesses individuais e coletivos, as liberdades passaram a ser mitigadas em prol da convivência social, dando-se poderes ao Estado para que ele pudesse atingir os seus fi ns e objetivos. O Estado, para aten-der ao interesse público, atua por meio dos seus órgãos e agentes que são limitados pelo Direito. Essa limitação do poder é imprescindível para prevenir possíveis abusos e excessos.

Aqui se coloca o interesse público na sua real dimensão de interesse do todo social, isto é, a dimensão pública dos interesses indivi duais, que não se confunde com o interesse das pessoas de direito público que repre-sentam o Estado. Como no dizer de Celso Antônio Bandeira de Melo, “os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais.”1 Para que seja respeitada a ordem jurídica, portanto, o inte-resse público tem que estar em equilíbrio frente à tutela dos interesses das pessoas. Daí porque no campo tributário não se pode dizer que sem-pre haja estrita coincidência entre o interesse público e o interesse da Fazenda Pública na arrecadação.

O verdadeiro interesse público a ser atingido é a proteção dos bens jurídicos de interesse coletivo sobre os quais atua o Estado e decorre da necessidade de que os direitos fundamentais e a ordem jurídica sejam respeitados, o exercício do poder obedeça aos seus limites e haja segu-rança jurídica. A segurança jurídica traduzida na proteção da confi ança, da boa fé, na estabilidade e na previsibilidade. Como no dizer de Heleno Taveira Torres, a segurança jurídica é um direito fundamental e coinci-dirá sempre com a função certeza do ordenamento.2

1 BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malhei-ros. 2005, pp 48-55.

2 TÔRRES, Heleno Taveira. Confl itos de Fontes e de Normas no Direito Tributário – O Princípio da Segurança Jurídica na Formação da Obrigação Tributária. In Teoria

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É para atender a esse objetivo que a proporcionalidade deve ser apli-cada, seja quando da elaboração das leis seja na atuação administrativa ou judicial. A opção pelo Estado Democrático de Direito traz consigo a exigência do cumprimento das pretensões constitucionais, que somente serão efi cazes se a proporcionalidade for a diretriz utilizada na busca da realização do interesse público. Tal ilação pode ser inferida da visualiza-ção conjunta das disposições dos artigos 1.º; 3.º; 5.º e seu parágrafo 2.º; 37; 60, § 4.º; 145; 150; 170 e 194 da Magna Carta.

Entre o Estado e o cidadão se estabelece uma relação jurídica não opcional, pois não decorre da vontade do indivíduo submeter-se ou não às regras previamente estabelecidas. Porém, essa relação deve ser norte-ada pela ética tributária da qual decorrem direitos e deveres para ambos que nem sempre são cumpridos por eles daí se originando os confl itos.

Para Tipke, a ética tributária está ligada à moralidade que deve ser desenvolvida por todos os poderes públicos – legislativo, executivo e judiciário – e também pelo cidadão contribuinte. Segundo ele, em um Estado de Direito deve-se atuar com justiça na medida do possível: “Al positivismo y nihilismo fi scales – aún no superados por completo – debe oponerse uma ética fi scal del Estado y de los contribuyentes; entre otros motivos, en atención a los derechos fundamentales, que fi jan um limite mínimo indisponible a la sociedad pluralista”.3

A relação Estado/cidadão torna-se mais confl ituosa no campo tri-butário quando se defrontam o poder do Estado e o direito à liberdade do cidadão (pessoal, patrimonial), uma vez que cada um tenta se sobre-por ao outro em busca dos seus interesses, muita da vez, dando lugar a abusos. O Estado, com todo seu poder e força, age sob a justifi cativa de proteção ao interesse público; e o cidadão, ao abrigo dos direitos fun-damentais, age sob o argumento do respeito à liberdade e de que é a ele quem cabe prover os meios para que o Estado possa atuar.

Para a harmonia e o equilíbrio dessa relação é dado poder ao Estado, porém, paralelamente, esse poder é controlado pelas amarras dos direi-

Geral da Obrigação Tributária. TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Teoria Geral da Obri-gação Tributária: Estudos em Homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros, 2005, pp.111-160, p. 113.

3 TIPKE. Klaus. Moral Tributaria del Estado y de los Contribuyentes. Trad. Pedro M. Herrera Molina. Madrid: Marcial Pons. 2002, pp. 21 e 28.

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tos fundamentais assegurados aos cidadãos, consagrados em princípios expressos ou decorrentes da visão conjunta de Estado de Direito, que se sobrepõem e formam o arcabouço em que se assentam a ordem jurídica, a dignidade humana e a cidadania.

Para Moschetti, no centro de todos os direitos e interesses que devem ser tutelados encontra-se a pessoa cuja dignidade é um valor a ser tutelado com prioridade. Deste modo, segundo ele, é obrigação de todos os poderes públicos proteger a pessoa, inclusive em sua dimensão contribuinte; para tanto, deverão ser adotadas medidas que melhor per-mitam assegurar o equilíbrio entre interesses e direitos, pois os direitos existem antes mesmo da lei. Moschetti ainda defende que é necessário que a lei, ao limitar os direitos subjetivos, adote um critério de “justa medida” entre o fi m perseguido e a medida adotada.4

Os órgãos do Estado somente têm competência para agir dentro dos limites e quando a Constituição lhes permita, porém, além da legalidade exige-se um plus nesse atuar, isto é, para a legitimidade da ação deve-se obedecer à lei e ao Direito, como no entender de García de Enterría.5

Qualquer restrição que a liberdade venha a sofrer, deste modo, tem que ser limitada, mesmo que em prol da proteção de outro bem jurídico ou de outro interesse aparentemente de maior peso. Daí para justifi car a intervenção na esfera individual deve haver moderação do Estado na escolha dos seus meios de atuação, bem assim deve existir estrita vincu-lação entre os fi ns desejados e o resultado a ser alcançado.

O poder de polícia, o poder de administrar a coisa pública, o poder de legislar e o poder de julgar, para que estejam conforme a ordem jurí-dica precisam ser exercidos mediante a ponderação dos valores envol-vidos. Todos devem ajustar a sua atuação aos limites da necessidade e devendo graduar a utilização dos meios em relação ao fi m que se deseja alcançar de modo a guardar o maior equilíbrio possível na adoção de qualquer medida que coloque barreiras à liberdade.

4 MOSCHETTI, Giovanni. Principio de Proporcionalidad em las Relaciones Fisco--Contribuintes. In Revista Tributária e de Finanças Públicas. Coord. Dejalma de Cam-pos. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ano 15-76 – setembro-outubro 2007, pp. 277-310.

5 GARCÍA DE ENTERRÍA. Eduardo. Democracia,Jjueces y Control de la Adminisra-cion. Madrid: Civitas, p. 126.

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Ao regulamentar os princípios que devem nortear o agir da Admi-nistração Pública, inclusive a tributária, como colocados no artigo 37 da Constituição Federal, a Lei n.º 9.784/1999, no seu artigo 2.º, impôs a todos os Poderes a obediência, dentre outros à legalidade, à fi nalidade, à motivação, à razoabilidade, à proporcionalidade, à moralidade, à ampla defesa, ao contraditório, à segurança jurídica, ao interesse público e à efi ciência.

A partir de tal premissa, independentemente da ótica em que os princípios sejam visualizados (positivista, jusnaturalista etc.) ou mesmo para quem pensa como Karl Larentz, que os princípios jurídicos se mos-tram, apenas, como os pensamentos diretores de uma regulação jurídica existente ou possível,6 na atualidade, não há mais como se questionar a força dos princípios como normas jurídicas vigentes e efi cazes que vinculam, obrigam e limitam tanto os que elaboram as normas jurídicas como os que aplicam o direito seja em sede administrativa seja em sede judicial.

2. O princípio da proporcionalidade

Dentre os direitos fundamentais assegurados ao cidadão, destaca--se o princípio da proporcionalidade como uma ferramenta efi caz para o controle do exercício do poder estatal. O Estado Democrático de Direito assenta-se no princípio geral da liberdade, porém, essa liberdade não pode ser absoluta. Somente se admite haver limitação dentro de critérios, isto é, qualquer restrição à liberdade precisa ser adequada, necessária e proporcional.

A atuação do Estado por meio dos seus agentes deve se dar em cada caso concreto mediante o cotejo da norma aplicável para que se alcance o maior equilíbrio entre o interesse público a ser atendido e os direitos fundamentais a serem protegidos. O interesse público a ser considerado, por quem exerce o poder em nome do povo, é a máxima satisfação dos interesses individuais e coletivos que a sociedade deseja atender com a mínima intervenção possível.

6 LARENZ, karl. Derecho Justo – Fundamentos de Ética Jurídica. Madrid. 1993, p. 32.

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Para tanto, mister se faz identifi car a norma compatível com a reali-dade factual (circunstâncias fáticas e jurídicas), procurando ponderar as necessidades vigentes em determinado período e a específi ca realidade, para adequar a satisfação dos interesses (público e privados) que são protegidos pela ordem jurídica e os fi ns que se deseja alcançar.

É exatamente na busca de realizar esse objetivo que a proporciona-lidade se coloca como um instrumento a ser utilizado com o fi m de ajus-tar e ponderar os princípios que podem estar em aparente colisão, para a escolha do princípio que deve ser prestigiado com vista à solução de con-fl itos.7 Com esse desiderato, tem-se que buscar o ponto mais próximo do equilíbrio entre a Soberania do Estado e o interesse público, em relação aos direitos irrenunciáveis da pessoa humana e os interesses individuais.

Como ensina Menezes Cordeiro, a idéia de desequilíbrio no exercí-cio jurídico traduz um tipo de atuação inadmissível de direito que poderá abrigar abusos, revelados pelo despropósito entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados.8

É a proporcionalidade que funciona como limite, inibindo a atuação do poder desprovido do respeito à Constituição, para dar o norte a ser seguido pela Administração Pública e legitimar o seu agir, com vista à efetivação do interesse público.

O termo proporcionalidade é vago e impreciso, o que leva à apa-rente difi culdade na sua aplicação. A dimensão do que é proporcional tem que ser vista em relação a duas grandezas, em um juízo relacional, chegando-se a maior aproximação possível da efetivação da proporcio-nalidade mais pelo aspecto inverso do seu conceito, por ser mais fácil identifi car o que é desproporcional, isto é, o que não é ou não guarda proporcionalidade.

7 Sobre a ponderação de valores e o equilíbrio da relação estado-indivíduo ver: ALEXY, Robert. Sistema Jurídico. Princípios Jurídicos y Razon Pratica, in Doxa. Ali-cante e Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucio-nales. 1993. DWORKIN, Ronal. Los derechos em serio. Barcelona: Planeta – de Agostín. Trad. Marta Guastavino, 1993. BUJANDA, Fernando Sainz. Hacienda y derecho. Madrid: Institutos de Estúdios Políticos. 1955.

8 CORDEIRO, António Menezes. Da Boa Fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina. 2007, p. 853.

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O que é proporcional, porém, não pode ser fruto de simples valora-ção subjetiva ou decorrente de ideologias pessoais. O que é proporcio-nal pode ser identifi cado pelo sentir em relação aos valores do homem médio (o pater bonus no Direito Civil), pois não se tem como estabelecer um critério objetivo que permita aferir a exata medida da proporcionali-dade para os casos em geral, ligando-se à idéia de o que for proporcio-nal será justo e aceitável e o que estiver em desproporção será injusto e desmedido.

Não é de hoje que existe a procura da justa medida do exercício do poder, aparecendo a proporcionalidade como um instrumento para o alcance de tal objetivo.9 A concepção clássica da proporcionalidade foi delineada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão no caso “Aphothekenurteil”10 onde foram colocados os critérios que até hoje norteiam a aplicação da proporcionalidade: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido restrito, consagrando-se que nenhum direito fundamental poderia ser violado na sua essência.

Nesse paradigmático julgamento, foram defi nidos, assim, os crité-rios de que: i) qualquer medida estatal restritiva deveria ser adequada às

9 Sobre a evolução histórica do princípio da proporcionalidade ver: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros. 2005. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina. 2003. 7ª edição, p. 266. OLI-VEIRA, José Roberto Pimenta. Os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros. 2006, pp. 42-50. PONTES, Helenilson Cunha. O Princípio da Proporcionalidade e o Direito Tributário. São Paulo: Dialética. 2000, p.45.

10 No caso“Aphothekenurteil” discutia-se os limites que a Lei Fundamental Alemã impunha ao legislador para disciplinar o direito fundamental à liberdade de profi ssão. Tratava-se da discussão acerca da possibilidade de o Estado da Bavária poder criar res-trições à concessão de licenças para instalação de novas farmácias, no tocante à neces-sidade de se provar a viabilidade comercial e também evitar danos concorrências. Com esse fundamento foi negada licença para um emigrante que era farmacêutico licenciado o qual, considerando-se lesado, propôs reclamação constitucional contra o governo da Bavária. A Corte decidiu que razões de índole objetiva colocadas de forma vaga e con-dicional não justifi cariam limitações a direito fundamental, pois a intervenção estatal em direito fundamental deve ser absolutamente necessária para que se alcance o interesse público protegido e de forma que produza a menor lesão possível ao direito fundamental assegurado constitucionalmente. Conforme: PONTES, Helenilson Cunha. O Princípio da Proporcionalidade e o Direito Tributário. São Paulo: Dialética. 2000.

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limitações impostas ao direito fundamental; ii) a atuação estatal deveria ser absolutamente necessária e na medida indispensável à menor limi-tação possível dos direitos fundamentais protegidos; e iii) a limitação deveria ser considerada indispensável na relação meio-fi m, isto é, deve-ria ser assegurada a proporção entre a atuação estatal, a restrição colo-cada e o fi m que se desejava obter com essa medida.

Para a concretização da proporcionalidade deverá ser desenvolvido um juízo acerca da realização dos critérios que identifi cam a efetividade do princípio em relação aos interesses públicos e privados que se quer proteger, no tocante a: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.11 São três comandos que compõe um único dever a ser cumprido e que exige a sua observância conjunta com vista à realização do princípio da proporcionalidade.

O controle administrativo ou judicial da proporcionalidade no ato administrativo passa pela neutralidade, imparcialidade e racionalidade no exame das alternativas e consideração dos interesses afetados e os interesses que serão protegidos, devendo ainda a decisão estar devida-mente motivada. Nesse sentido, a decisão deverá conter uma justifi cação aceitável da tomada de posição que permita o conhecimento da funda-mentação da escolha de um meio considerado mais adequado entre as alternativas existentes. Para Hart, existe sempre uma atividade de ´pesar´ ou ´equilibrar´, como característica do esforço para fazer justiça entre interesses confl itantes.12

No Brasil, a Constituição não faz menção expressa ao princípio, porém ele pode ser visualizado como uma diretriz constitucional ínsita não só à opção do Estado Democrático de Direito, à proteção dos direitos fundamentais, como à própria segurança jurídica. A proporcionalidade é

11 Acerca dos três critérios a serem observados ver: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina. 2003. 7ª edição, p. 266. OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade no Direito Adminis-trativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros. 2006, pp. 42-50. PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da Proporcionalidade e o Direito Tributário. São Paulo: Dialética. 2000, p. 66-72. MOSCHETTI, Giovanni. Principio de Proporcionalidad em las Relaciones Fisco--Contribuintes. In Revista Tributária e de Finanças Públicas. Coord. Dejalma de Cam-pos. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ano 15-76 – setembro-outubro 2007, pp. 277-310.

12 HART, Herbert. L. A. O Conceito de Direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1994, p. 221.

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corolário da ordem jurídica, para que possam ser realizados os demais princípios cuja obediência obriga a Administração Pública de todos os poderes e que se encontram sintetizados no artigo 37 do Texto cons-titucional como: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efi ciência.

A Lei n.º 9.784/1999, no parágrafo único do artigo 2.º, inciso VI, expressamente, determina que: “Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I – atuação conforme a lei e o Direito; (...) VI – adequação entre meios e fi ns, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estrita-mente necessárias ao atendimento do interesse público.”13

A proporcionalidade é uma diretriz em busca da justiça que há muito fundamenta a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como no pensamento de Bilac Pinto: “O poder de taxar somente pode ser exer-cido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria e com o direito de propriedade.” Tal idéia foi consagrada na célebre decisão do Min. Orosimbo Nonato, que, aplicando o pensamento de Marshall (The power to tax is the power to keep alive) no RE 18.331/SP – 09/1951, entendeu que: “Majoração excessiva de imposto. Nullun census sine legis. O exercício do poder de taxar (imposto proibitivo) não pode chegar à desmedida do poder de destruir.”

A observância da proporcionalidade pode ser visualizada tanto como a limitação ou desvantagem que o indivíduo tem que suportar em prol dos interesses gerais e do interesse público; como a vedação ao arbí-trio; a proibição de excesso de poder ou à garantia do respeito aos direi-tos fundamentais e a necessidade de buscar o equilíbrio entre os valores protegidos e os fi ns que se deseja alcançar. A aplicação da proporcionali-dade está visceralmente ligada à idéia de justiça.

As obrigações tributárias de dar, fazer, não-fazer e suportar (por exemplo: artigo 113 do CTN), por si sós já impõem deveres e limites aos particulares com relação à liberdade, ao patrimônio e à propriedade. Daí

13 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efi ciência e, também, ao seguinte (...).

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exsurge a proporcionalidade como o instrumento efi caz para controlar e também coibir excessos quando da intervenção do Estado na esfera par-ticular, por meio da cobrança de tributos ou imposição de sanções. Tais exigências somente serão suportadas se acontecerem no mínimo possível a atender ao interesse público, sob pena de se tornarem desproporcio-nais e afetarem o indispensável equilíbrio imprescindível à convivência social que justifi cou o próprio Estado.

Todo agir do Estado precisa ser justifi cado (motivado), pois se até mesmo as legítimas exigências de tributos precisam estar lastreadas em motivos justos, inclusive prestigiando a capacidade contributiva, que possibilitem ao particular identifi car a sua correspondente compensa-ção (destinação dos tributos, serviços prestados pelo Estado etc.), que se dirá quando essa cobrança se tornar desproporcional em relação ao ônus imposto ao particular na situação concreta.

O interesse público protegido constitucionalmente, todavia, não pode ser alcançado por meios que resultem em aniquilar, obstar ou des-truir outros bens que igualmente estão sob o abrigo constitucional. Qual-quer intromissão estatal na esfera particular em busca da realização do bem estar social, todavia, deverá ser no mínimo necessário e causar os menores prejuízos.

No momento da criação das hipóteses de incidências, o legislador deve observar a realidade factual para que a lei possa atender às neces-sidades, anseios e atingir o seu objetivo, inclusive para buscar ajustar a incidência tributária à capacidade contributiva e à isonomia, bem assim estabelecer as sanções adequadas às infrações de modo que nem sejam excessivas nem insufi cientes. Um dos mais tormentosos temas, segundo Gilmar Ferreira Mendes, é o controle do excesso do poder de legislar.14

Já na fase de execução, aplicação e julgamento, administrativo ou judicial, a proporcionalidade se apresenta no processo de compreensão e interpretação do direito, na construção do sentido, do conteúdo e do alcance da regra jurídica que irá conferir a materialização do fenômeno normativo e resultará na edição de norma individual e concreta.15

14 MENDES. Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionali-dade. São Paulo: Saraiva: 2007, pp. 46-50.

15 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo, pp. 95-96.

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A proporcionalidade é um dever que obriga a todos aqueles que exercem o poder seja por meio de atividades típicas ou atípicas, como uma ferramenta de ajuste dos comandos gerais ao caso específi co e solução dos confl itos: tanto para o Executivo, quando ele edita atos nor-mativos, pratica atos executórios ou aprecia os atos de seus agentes em sede de controle ou contencioso; como para o Legislativo, quando esse faz leis e edita atos regimentais ou quando realiza julgamentos dos seus membros (Comissões Parlamentares de Inquérito – CPI); e, para o Judi-ciário, quando esse faz seus regulamentos e também quando exerce o seu poder jurisdicional na busca de fazer justiça.

A adequação se relaciona ao exame objetivo dos meios utilizados para alcançar determinado fi m (interesse público protegido). O cumpri-mento do dever de adequação obriga a que o meio utilizado na busca do fi m desejado seja apropriado, isto é, deve haver uma conexão racional do meio-fi m, entre a medida utilizada e o fi m desejado. O meio escolhido não precisa ser o melhor ou mais apropriado, basta que seja sufi ciente para obter o fi m. Isto é, o meio deve simplesmente estar apto a atingir o fi m.

A proporcionalidade estará violada se o meio empregado não for idôneo, apropriado ou suscetível de realizar o fi m perseguido. Para reco-nhecimento dessa violação basta ser constatado que a medida adotada, por si só, é incompatível ou não é sufi ciente ou é inadequada para realizar o fi m.

Já a necessidade diz respeito ao exame do ônus que recai sobre o particular como resultado dos meios aplicados para se alcançar os fi ns desejados (a satisfação do interesse público). Diz respeito à moderação, à intensidade, à indispensabilidade do peso a ser suportado pelo indivíduo para que o Estado atenda aos seus fi ns. O dever de cumprir a necessidade obriga que sejam utilizados os meios mais moderados e suaves possíveis para a limitação dos direitos dos particulares e que tais meios sejam os estritamente necessários ao alcance dos objetivos.

Para a realização da necessidade, deverão ser examinados todos os meios disponíveis de serem utilizados para alcançar o objetivo pre-tendido e a escolha deverá recair sobre aquele que produza o resultado desejado, mas que cause a menor restrição e ônus ao particular. Deve ser apurado, inclusive, se somente por aquele meio poderia ser alcançado o fi m pretendido.

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A proporcionalidade estará violada se, no caso concreto, o fi m per-seguido pelo Estado puder ser atendido por outros meios igualmente efi cazes que não limitem ou resultem na mínima restrição dos direitos fundamentas. Este critério é o que bem traduz a proibição de excesso.

No tocante à proporcionalidade em sentido estrito, ela se refere ao exame e à avaliação do equilíbrio e a conformidade entre os meios uti-lizados em relação aos fi ns desejados (interesse público a ser obtido). Diz respeito à análise concreta dos interesses público e particular em confl ito, mediante a comparação e o sopesamento, no caso concreto, do ônus imposto ao particular em relação ao benefício a ser obtido na busca da realização do interesse público.

O benefício que se deseja alcançar deve justifi car a adoção das medidas que resultarão em limitação dos direitos do particular, que tam-bém são protegidos e cuja intervenção estatal poderá causar prejuízos ao interesse individual. Porém, a busca do fi m desejado, por exemplo, a capacidade contributiva, não pode ela própria ser aniquilada inteira-mente na sua busca como um fi m. Para tanto, é que a extensão, a quan-tidade, a qualidade e a intensidade dessa limitação terão que se dar no mínimo necessário e com a menor carga possível, para não produzir o efeito contrário de aniquilar a liberdade ou exterminar o patrimônio do particular que também se encontra sob proteção.

Estará violada a proporcionalidade em sentido estrito se for cons-tatado que as medidas adotadas são intoleráveis para o indivíduo, bem assim as vantagens obtidas são de tão pequena monta que não compen-sem o sacrifício suportado pelo particular.

No iter do exame da proporcionalidade, primeira se verifi ca se o meio utilizado é adequado para atingir o fi m; depois se as medidas ado-tadas são necessárias e representam as menos onerosas e opressoras, se comparadas com as várias alternativas existentes como possíveis de serem aplicadas; e, por último, se essas medidas eram toleráveis e se estão em uma relação razoável entre os meios escolhidos e os fi ns dese-jados, isto é se eles efetivamente eram proporcionais.

A decisão de agir ou não agir não é da autoridade, a previsão da ação tem que estar na lei. Porém, nessa atuação a proporcionalidade tam-bém terá que estar presente sob os seus aspectos essenciais – adequação (aptidão), necessidade (intensidade e indispensabilidade) e a proporção em sentido restrito (conformidade), o que expõe o ato à verifi cação, à

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avaliação e ao controle ainda dentro do âmbito da própria Administração. É neste momento que ela exerce a atividade atípica de apreciar e contro-lar a perfectibilidade dos atos de seus agentes.

A proporcionalidade tem refl exos diretos na seara tributária quando ela se relaciona diretamente, entre outros, com os princípios do devido processo legal, da igualdade, da confi ança, da boa fé, da solidariedade e da capacidade contributiva na busca da justiça tributária. Tais princí-pios têm por substrato que aqueles que têm mais devem contribuir mais com a repartição da carga tributária e a graduação das incidências deverá obedecer às necessidades tipicamente diferenciadas, devendo qualquer expropriação de bem se dar por meio do devido processo legal.

A capacidade contributiva é um dos pilares em que se assenta e a exigência tributária, para justifi car a necessidade de se sacrifi car os inte-resses individuais em nome da solidariedade, da isonomia e do interesse público. Esse princípio, porém, tem que ser visualizado na sua ampli-tude, não só para exigir que os que tenham mais contribuam mais, mas para determinar que os que tenham menos também contribuam menos ou sejam dispensados de contribuir.

É aqui que surge a proporcionalidade como um das vigas mestras em que deve assentar a incidência tributária. A criação e a cobrança de tributos somente atenderão ao interesse público quando se encontrar o necessário equilíbrio, por meio do ajuste entre os princípios da capaci-dade contributiva e os da proteção ao patrimônio e da livre iniciativa. Nesse campo, o interesse público a ser protegido é a realização da justiça fi scal e o respeito à liberdade, que só poderá sofrer restrições dentro dos critérios estabelecidos no ordenamento jurídico.

É inegável que existe o dever de pagar tributos, como ensina Casalta Nabais, e o interesse público da arrecadação, porém as exações não podem violar a proporcionalidade, pois é ela que afi ança que nesse mister tanto o legislador como o aplicador e o julgador buscarão aplicar o meio mais adequado, necessário e menos gravoso capaz de assegurar a arrecadação ao Estado e, paralelamente, garantir os direitos fundamentais.

Qualquer intervenção estatal, portanto, mesmo na busca da capa-cidade contributiva e da justiça fi scal, somente poderá restringir a liber-dade ou reduzir o patrimônio do particular na medida mínima necessária à realização desse fi m.

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3. A proporcionalidade no âmbito administrativo-tributário

Se a aplicação objetiva da proporcionalidade encontra difi culda-des no âmbito dos tribunais judiciais, maiores dúvidas, resistências e questionamentos surgem quando se trata da sua efetivação no âmbito administrativo: seja na elaboração de atos normativos infralegais; seja no exercício típico de execução dos atos normativos; seja no limitado campo em que é permitida a discricionariedade; ou no momento em que a administração atua em procedimentos fi scais e, também, quando ela age no exercício da competência de solucionar as lides tributárias em sede do contencioso administrativo.16

No momento de elaboração das leis tributárias o legislador deve acolher a proporcionalidade por meio de critérios de graduação das inci-dências tributárias e da fi xação das sanções, de modo a prover o Estado de recursos e, paralelamente, permitir que o aplicador possa confrontar o evento do mundo com a previsão normativa e fazer o necessário ajuste, o mais próximo possível, para equilibrar as condições materiais do fato, do sujeito, do dano sofrido e do prejuízo imposto.

Ao agente público somente é permitido agir de acordo com as pre-visões e limites legais que expressamente dizem quando, como, onde e a forma de sua atuação, sendo ele obrigado, também, a motivar todos os seus atos mediante a justifi cação da sua atuação.

O princípio da legalidade, segundo Hely Lopes Meireles, traduz-se exatamente na máxima de que “Na Administração Pública não há liber-dade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular signifi ca ´pode fazer assim´; para o administrador público signifi ca ´deve fazer assim´.”17

Cumpre observar que a legalidade em matéria tributária deve ser visualizada sob os aspectos formal e material, como sempre defende-

16 Sobre a aplicação da proporcionalidade no processo administrativo tributário ver: NEDER, Marcos Vinicius e LÓPEZ, Maria Teresa Martinez. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado. São Paulo: Dialética. 2004, pp. 64-65.

17 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malhei-ros. 1994, p. 82-83.

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mos.18 Contudo, passamos agora a acrescentar uma terceira exigência: a legalidade visualizada, também, sob a ótica de que o seu conteúdo mate-rial e a sua aplicação deverão atender à proporcionalidade.

O terceiro aspecto que aqui se apresenta é que a observância da legalidade pressupõe a consonância do ato com o princípio da proporcio-nalidade, isto é, a legalidade relacionada com o meio-fi m. A legalidade somente estará atendida se os meios, os motivos e o conteúdo do ato guardarem conformidade com os fi ns visados pela lei, isto é, se os meios utilizados na edição do ato forem adequados, necessários e proporcionais ao fi m que se deseja alcançar: a realização do interesse público, traduzida na segurança e na manutenção da ordem jurídica.

Qualquer ato editado com excesso ou abuso de poder, de forma des-medida, irrazoável ou desproporcional estará em desconformidade com a lei e os comandos constitucionais, sendo nulo de pleno direito por violar a legalidade. Quando a autoridade apesar de competente para agir ultra-passa ou excede os limites das suas atribuições, desvia-se das fi nalida-des do seu atuar ou executa ato irrazoável ou desproporcional à medida necessária para atingir o interesse público, inexoravelmente pratica nulo.

O processo administrativo constitui uma ferramenta indispensável para que a própria Administração proceda ao controle dos atos de seus agentes, mediante a verifi cação do ato administrativo (normativo, execu-tivo ou decisório) na sua inteireza e amplitude, alcançando, inclusive, o cumprimento e o confronto do ato com os desígnios constitucionais. Um ato só estará em harmonia e ao abrigo da ordem jurídica se ele vestir a roupagem constitucional.

Para o controle do ato administrativo, Seabra Fagundes defende que a Administração deverá investigar o mérito do ato no tocante ao acerto à justiça, utilidade, eqüidade, razoabilidade, moralidade etc.19

A amplitude do alcance do exame e controle do ato administra-tivo no âmbito da própria Administração foi reconhecida expressamente pelo próprio Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula n.º 473: “A

18 QUEIROZ. Mary Elbe. Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza. São Paulo: Manole. 2004, pp. 12-13. QUEIROZ MAIA. Mary Elbe. Do Lançamento Tribu-tário – Execução e Controle. São Paulo: Dialética. 2009, pp. 104-107.

19 FAGUNDES, Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Forense. 1957, pp. 167-168.

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administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá--los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos a apreciação judicial.”

Nesse mesmo sentido, chegando até a ampliar a verifi cação do res-peito aos ditames constitucionais, foi a decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp n.º 23121/GO: “Lei inconstitucional – Poder Executivo – Negativa de efi cácia. O Poder Executivo deve negar execução a ato normativo que lhe pareça inconstitucional.”

Se um ato administrativo desrespeitou ou ultrapassou as balizas constitucionais pode-se concluir que ele foi praticado de forma contrá-ria à ordem jurídica e não atende à fi nalidade última da realização do interesse público, exigindo, por decorrência, o reconhecimento do seu desajuste e a declaração da sua invalidade, ilegalidade ou inconstitucio-nalidade. Esse é o bem jurídico a ser protegido e o verdadeiro interesse público a ser atingido.

A Administração, em sede do contencioso administrativo, não pode omitir-se, se recusar ou recear proceder à revisão dos atos dos seus agen-tes para lhes aferir a perfectibilidade, isto é, a respectiva constitucio-nalidade, legalidade e proporcionalidade. Entendimento em contrário implicaria mitigar os poderes que lhe são ínsitos, justifi cam a sua exis-tência e que decorrem não só do devido processos legal, como do amplo direito de defesa, da moralidade, da efi ciência, da proporcionalidade, da razoabilidade e da própria legalidade, que, igualmente, são aplicáveis ao processo administrativo, cujo cumprimento se exige também em nome do interesse público.

Na atualidade, a Administração não pode mais se furtar a aplicar a proporcionalidade, pois tal posição signifi caria violar a própria legali-dade, uma vez que, apesar desse princípio derivar do Estado de Direito e do dever de respeitar os direitos fundamentais, hoje ele consta também em texto expresso na Lei n.º 9.784/1999.

É injustifi cado o temor de que a adoção da proporcionalidade resulte em subjetividade, haja vista que para se evitar abusos ou arbitra-riedades no seu manejo, o próprio ordenamento prevê formas de controle e a necessidade de motivação do ato administrativo a fi m de justifi car a sua edição: tanto no momento da constituição de direito para a admi-nistração (por exemplo, no lançamento tributário de tributo ou impo-

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sição de penalidade) como no tocante aos atos decisórios (julgamentos administrativos).

Com esse fi m, os critérios objetivos que devem nortear a aplica-ção da proporcionalidade dizem respeito aos aspectos de: i) adequação dos meios para a perfeita identifi cação do enquadramento do evento do mundo às prescrições legais que estabelecem as hipóteses de incidência, a respectiva transmudação em fatos-jurídicos tributários e a correspon-dente penalidade; ii) necessidade de que os meios utilizados sejam os menos onerosos, no sentido de somente ser admitida qualquer restrição da liberdade ou que seja atingido o patrimônio ou a propriedade do parti-cular, na medida mínima indispensável à satisfação do interesse público; iii) proporcionalidade em sentido estrito ou a conformação e o equilíbrio entre o meio utilizado e o fi m a ser atingido, a lesão causada e o prejuízo imposto.

A exigência de tributos e a imposição de penalidades deverão guar-dar proporção razoável entre os meios utilizados e os fi ns a serem alcan-çados por meio do uso do bom-senso e de moderação. A observância desses aspectos será apurada por meio do sopesamento dos interesses em confl ito, para que a relação tributária se estabeleça de forma racional e haja equilíbrio entre os meios empregados pela Administração e o fi m visado pela lei e pelo interesse público.

No procedimento e no processo administrativo, o dever de observar a proporcionalidade não se restringe, apenas, à aplicação das sanções, esse princípio também tem que ser atendido no tocante à pesquisa do surgimento de obrigações tributárias ditas principais ou cumprimento de deveres instrumentais ou obrigações acessórias. Deve ser verifi cado o perfeito enquadramento e subsunção do evento do mundo à hipótese abstrata da lei, sufi ciente para transmudá-lo em fato gerador tributário e fazer a nascer a obrigação de pagar tributo ou dever instrumental, cujo descumprimento implicará em infração à lei.

O procedimento fi scal é realizado com respaldo no dever-poder legal (a lei impõe o dever e dá poderes) conferido à Administração para investigar a ocorrência ou não do fato gerador e da obrigação tributária, o respectivo cumprimento ou descumprimento das disposições legais e a ocorrência de infração à lei. Esse dever-poder tem que se exteriorizar e se realizar na forma e na medida prevista na lei.

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Contudo, a aplicação dos dispositivos legais pressupõe a interpreta-ção dos mesmos, bem assim não se pode deixar de reconhecer, apesar de a autoridade administrativa estar estritamente vinculada à lei, que existe no seu agir um certo grau de discricionariedade que exige atuar com pro-porcionalidade: na eleição das pessoas a serem fi scalizadas; na escolha dos meios e procedimentos de fi scalização lícitos; na colheita de provas; no uso das presunções legais e na liberdade de investigação em decor-rência da multiplicidade e complexidade das situações fáticas que deve-rão ser examinadas, para identifi car e quantifi car a ocorrência dos fatos jurídicos dos quais nascem as obrigações tributárias ou para identifi car possíveis infrações à lei.

Os atos administrativos de lançar tributo e impor sanção devem ser praticados de modo que prestigiem a proporcionalidade. Igualmente, no exercício do controle desses atos pela própria Administração, a propor-cionalidade é a ferramenta efi caz a ser utilizada, uma vez que o direito positivado não oferece apenas uma interpretação a ser seguida, pois, como no pensamento de Kelsen, ele dá somente a moldura que direciona o intérprete a quem cumpre aplicar a norma.

No agir da autoridade fi scal é imprescindível que haja adequação entre o fato e a descrição da hipótese legal, bem assim que o ato expedido esteja apto a realizar a fi nalidade por ele perseguida que é a proteção do bem tutelado. Na execução de atos pela fi scalização, deve-se ado-tar a intervenção mínima na esfera particular, tentando dimensionar e identifi car o grau de lesão sofrida pelo bem tutelado que vai justifi car a intensidade da sanção e do prejuízo a ser imposto ao infrator, pois nem toda transgressão repercute com a mesma gravidade sobre o interesse protegido.

A adoção de medidas impositivas ou restritivas requer cuidados especiais, mesmo quando previstas em lei, seja para cobrar tributo seja para apurar a respectiva base de cálculo, quantifi car o montante devido, no exercício das atividades previstas no artigo 142 do CTN ou no exercí-cio do poder de fi scalizar previsto no artigo 195 do CTN, tudo com res-paldo no artigo 146, § 1.º, da Constituição Federal. Do mesmo modo, a aplicação de sanções, uma vez que no ato de penalizar podem ser violadas outras normas que compõem o todo do sistema em que estão inseridas.

No tocante à imposição de sanções, maiores cautelas devem cercar a atuação da autoridade competente para impor penalidades por meio da

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constatação e prova da prática de infração, bem assim na identifi cação da sanção mais adequada, necessária e proporcional na relação meio-fi m. Para tanto, devem ser consideradas as circunstâncias atenuantes e agra-vantes, a intensidade e a qualidade do dano ou da lesão do bem jurídico protegido – o interesse público e o dano ao erário – e o prejuízo a ser imposto ao particular.

Na aplicação das sanções, é preciso sopesar os interesses protegidos e em confl ito, inclusive, mesmo quando a conduta se enquadre formal-mente como infração, deve-se buscar ponderar a adoção dos princípios da insignifi cância e da irrelevância fi scal e penal do fato, no sentido de que a intensidade da sanção seja proporcional à ofensa do bem que se quer resguardar.20

De modo contrário, deve ser a atuação quando constatada a infra-ção mediante a prática comprovada de fraude, por exemplo, ou de atos lesivos de tal monta que exigem maior rigor e sanções mais gravosas, como forma de prevenir, reprimir e proteger o interesse público não só com relação à arrecadação, mas no tocante à isonomia e à capacidade contributiva.

Com esse objetivo, há que se distinguir meros descumprimentos de deveres instrumentais ou obrigações acessórias, dos quais não resultou falta de pagamento de tributo ou óbice à legítima atividade de fi scalizar, para verifi car o atendimento de obrigações tributárias, daquelas infrações que revelem dolo e intuito de fraudar.

A própria Lei n.º 9.430/1966, no seu artigo 44, distingue as hipóte-ses de meras infrações, daquelas que revelam evidente intuito de fraude fi xando penalidade mais gravosa nas hipóteses em que o sujeito pas-sivo tenha agido com manobras, manipulações e artifícios, bem assim ao estabelecer a multa moratória pelo simples atraso no pagamento. Nesse

20 Exemplo nesse sentido foi o julgamento pelo STF do HC-77.003/PE. Rel. Min. Marco Aurélio.: “JUSTA CAUSA – INSIGNIFICÂNCIA DO ATO APONTADO COMO DELITUOSO. Uma vez verifi cada a insignifi cância jurídica do ato apontado como deli-tuoso, impõe-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa. A isto direcionam os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Consubstancia ato insignifi cante a contratação isolada de mão-de-obra, visando à atividade de gari, por município, consi-derado período diminuto, vindo o pedido formulado em reclamação trabalhista a ser jul-gado improcedente, ante a nulidade da relação jurídica por ausência do concurso público.

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sentido, tendo em vista o alto valor dos juros moratórios (juros Selic, hoje em torno de 10% ao ano) cobrados também pelo não pagamento, deve-se pensar se a multa moratória de 20% cumulativa com esses juros, não seria ela mesma desproporcional.

Maior relevância adquire a proporcionalidade quando a Adminis-tração tributária exerce o seu poder de controle (auto-controle), tanto na busca da perfectibilidade dos atos de seus agentes como para solucionar os confl itos ainda na sua esfera. Esse exame amplo e irrestrito dentro do contencioso administrativo deve se dar sob duas perspectivas: tanto para exigir que a proporcionalidade seja o guia e o instrumento que dirigirá a ação de controle das autoridades que detêm tal competência, como tam-bém ele se destina a investigar se os atos praticados na fase de procedi-mento fi scal, no ato lançamento e no ato de imposição de penalidade, igualmente, atenderam à proporcionalidade e aos desígnios da lei e do Direito.

No exercício da autotutela, com vista a conferir a legalidade dos atos de seus agentes, já em sede do contencioso administrativo, quando surge o processo administrativo-tributário com a defesa do cidadão-con-tribuinte contra o ato de lançamento ou de imposição, deve também ser examinada a relação meio-fi m, isto é: se o ato editado pelo agente (lan-çamento de tributo ou imposição de penalidade) obedeceu à adequação, à necessidade e à proporcionalidade em sentido estrito e à conformação do respectivo ato ao verdadeiro interesse público.

A Administração age na busca do cumprimento da lei e do Direito, para tanto ela tem o dever de controlar a perfectibilidade dos atos de seus agentes por meio do poder de reexame total da aplicação da lei, na busca da justiça fi scal. Esse controle, portanto, alcança não só a aplica-ção da proporcionalidade pelos próprios órgãos a quem a lei incumbe o poder de controlar, como também alcança a aferição do atendimento da proporcionalidade na edição dos atos administrativos individuais e concretos.

A Administração quando busca harmonizar interesses e atua no papel de solucionar confl itos, em sede do contencioso administrativo, exerce atividade judicante (atividade atípica) cujos princípios diferem do agir da Administração ativa (atividade típica). Enquanto a atividade típica (lançar e impor penalidade) é regida pela inquisitoriedade, ofi ciali-dade e o interesse público na arrecadação; na atividade atípica de julgar

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sobressaem o devido processo legal, o contraditório, ampla defesa e o interesse que prevalece é o resguardo e proteção da ordem jurídica.21

A atividade de controle também é realizada em nome do interesse público, pois não se admite que o interesse da arrecadação seja maior do que o interesse público de preservação dos pilares da ordem jurídica.

É importante ressaltar que o ônus da prova no âmbito tributário é da autoridade fi scal.22 É ela quem acusa o sujeito passivo da relação tribu-tária do não pagamento do tributo, da prática de infração ou de conduta delituosa que revele evidente intuito de fraude. A própria lei impõe o dever de provar à autoridade fi scal só admitindo a inversão do ônus da prova nas hipóteses expressamente previstas em lei, o eu também dever ser examinado sob a ótica da proporcionalidade.

4. Conclusão

Na atualidade não há mais como se negar a aplicação da propor-cionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) no âmbito administrativo-tributário seja no procedimento fi scal seja no curso do processo administrativo-tributário. Esse princípio é o que melhor atende à legalidade e a todos os demais direitos fundamentais assegurados aos indivíduos-contribuintes, como forma de harmonizar e equilibrar os interesses e direitos em colisão, por meio da ponderação dos valores envolvidos. Assim, deverá ser considerada a relação meio--fi m com o objetivo de solucionar os confl itos e buscar realizar o inte-resse público que é o bem jurídico protegido.

O verdadeiro interesse público, contudo, não se confunde com a idéia imediatista da arrecadação, pois ele somente será alcançado se a ordem jurídica for preservada, mediante a observância da lei e do Direito, em nome da segurança jurídica.

21 XAVIER, Albert. Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário. Rio de janeiro: Forense. 2005, pp. 52-53.

22 De acordo com os princípios consagrados na Constituição Federal, ninguém será acusado sem provas e sem que lhe seja assegurado o direito de conhecer e apresentar provas em contrário – art. 5.º, LIV e LV), bem assim tal ônus encontra-se expressamente previsto em Lei, consoante o artigo 9.º, §§ 2.º e 3.º, do Decreto-lei n.º 1.598/1977 (artigos 924 e 925 do Regulamento do Imposto sobre a Renda/1999).

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Diogo Leite de Campos

A “total impossibilidade de prever o futuro” e os impostos

Diogo Leite de Campos

Advogado. Professor Catedrático da FD UC.

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RESUMO

A “total impossibilidade de prever o futuro”, dado essencial das ciências quânti-cas, não pode ser agravada em matéria de impostos. Pelo contrário, deve ser mitigada, tomando-se medidas no sentido de assegurar a previsibilidade dos impostos e a segurança do comércio jurídico. De entre elas destacarei: a tipicidade fechada dos impostos; a não--retroactividade; a estabilidade do sistema fi scal; o rigor técnico na elaboração das leis.

Palavras-chave:ImpostosPrevisibilidadeRetroactividade

ABSTRACT

The “total impossibility to forecast the future”, essential rule of quanta sciences, shall not be increased in tax matters. Adversely it shall be mitigated, measures being taken to assure the previsibility of taxes and the security of commerce. Among those measures shall be accentuated: the “closed” tipicity of taxes; the non-retroactivity; the stability of tax system;the preciseness on the elaboration of laws.

Keywords:TaxesPrevisibilityRetroactivity

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1. A total impossibilidade de prever o futuro

Tem sido difícil acabar com a convicção que vem do século XVII, de que tudo é previsível através de um uso adequado da matemática. Estando o “cosmos” sujeito a leis universais, defi níveis e envolvendo equações matemáticas, para Laplace – como para muitos outros – bastava ter-se a informação sufi ciente sobre o estado do cosmos num certo momento, para defi nir com rigor matemático a sua evolução. Compreendida aqui a huma-nidade, composta de pessoas/partículas sujeitas às leis da física matemática.

Esta ideia, presente expressa ou implicitamente em todo o ilumi-nismo, pelo menos no europeu continental, veio a infl uenciar fi lósofos (o próprio Hegel), cultores das ciências sociais (Comte, Durkheim e muitos outros) e sistemas políticos (marxismo, fascismo, nazismo, etc.).

A “descoberta” desde o século XIX da “liberdade” do muito pequeno, e a redescoberta da liberdade do ser humano, afi rmadas pela ciência quântica, pouco efeito tiveram nas ideologias que submetiam o ser humano à “engenharia social” como qualquer elemento inerte do mundo físico. Até acabarem por ser derrotadas pelo bater de asas de uma borboleta em Cracóvia que desencadeou furacões em Berlim e em Moscovo. Alterando uma “estabilidade” que prometia perpetuar-se por assentar em “leis naturais”.

Mas se a imprevisibilidade é dado incontornável, sobretudo na sociedade humana, como assegurar a necessária previsibilidade do futuro, imprescindível para o planeamento da vida social e individual, das empresas, do Estado e das famílias? Será que não estamos na socie-dade do “ risco total”?

Parece-me que a total imprevisibilidade – que leva os crentes a entregar com confi ança o seu futuro a Deus – tem levado à criação de formas de solidariedade social que mitigam o risco. Desde a ajuda familiar, à segurança social, aos seguros, à utilização criativa da natural fl exibilidade e indeterminação dos contratos, etc. Actuando a sociedade como um organismo vivo, em que cada um exerce a sua função har-monicamente com o todo, numa “inteligência colectiva” que preserva a liberdade de cada um e dela depende.

Como se pode conciliar, em matéria de impostos, a total imprevi-sibilidade do futuro, com a necessária previsibilidade da evolução dos impostos, a bem da família e das empresas?

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Pode conciliar-se acentuando o valor da previsibilidade dos impos-tos, para não se agravar a imprevisibilidade da vida.

Vou, pois, acentuar alguns princípios em que o valor previsibilidade se condensa em Direito Fiscal.

2. O princípio da legalidade e da tipicidade fechada

O princípio da legalidade e o seu corolário impondo a tipicidade fechada visam directamente a certeza e segurança do Direito. Promo-vendo através do processo legislativo da lei em sentido formal a cer-teza do Direito e a sua estabilidade. Valores que são consolidados pela tipicidade fechada que assegura que o destinatário das normas venha a conhecer as obrigações e direitos tributários só através da lei. Devendo considerar-se o princípio da legalidade (e os que dele decorrem em maté-ria de segurança e certeza) como direito à liberdade1

3. Não retroactividade das leis

A lei, por natureza, rege só para o futuro. Trata-se de consagrar os valores da certeza e segurança do Direito tão importantes como o valor justiça, por esta estar largamente dependente daqueles. Não é preciso estarem consagrados expressamente na letra da Constituição formal para se de um valor constitucional (material) de primeiro plano.

Em matéria de impostos, a Constituição da República Portuguesa estatui a não retroactividade dos impostos (artigo 103.º). Assim, e muito sucintamente, a lei que trate dos elementos essenciais dos impostos, tal como vêm defi nidos na CRP (artigo102.º), não se aplicará a factos tribu-tários nascidos à sombra da lei anterior, nem aos efeitos ainda em curso de factos tributários anteriores. Nos factos tributários de formação con-

1 Diogo Leite de Campos, El estatuto jurídico de la persona y los impuestos, Estu-dios de Derecho Tributario constitucional y internacional, Homenaje latino-americano a Victor Uckmar, coord. Pasquale Pistone y Heleno Taveira Torres, Ed. Ábaco, Buenos Aires, 2005, pág. 239.

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tinuada (por exemplo, IRC e IRS) a lei só se aplicará no ano seguinte ao da sua publicação.2

Mas a segurança jurídica tem um esteio importante não retroactivi-dade não termina aqui.

4. O “sistema” fi scal e a sua estabilidade

As leis de impostos não podem ser – e são-no hoje – um aglome-rado informe de normas, sem uma aparente base científi ca, económica e social comum, meros produtos da conjuntura e dos apetites imoderados e variáveis dos políticos. Sendo o que são hoje, perdem a sustentabilidade social, são rejeitadas, aumenta a evasão fi scal, através não só da sua rejei-ção social como das múltiplas incertezas que acarretam.

Tem de haver um sistema fi scal, dotado de uma outra ideia de jus-tiça (assente no bem mais adequado para sustentar a tributação) e de uma lógica sistemática.

Depois, é necessário que as normas não sejam alteradas todos os anos, muitas vezes ao sabor de “técnicos” pouco capazes, da vontade de combater (“ex post”) um caso de evasão fi scal. A alteração constante das normas descredibiliza-as e torna particularmente difícil o planeamento das empresas, das famílias e do próprio Estado.

Quando houver uma alteração, esta deve ser prevista e discutida com antecedência e entrar em vigor num prazo que permita que as famí-lias e as empresas adeqúem a sua gestão.

Diria que nenhuma norma deve entrar em vigor no ano em que é publicada.3 E, de preferência, devem decorrer diversos meses, quando não anos, entre a sua publicação e a sua entrada em vigor.

2 Vd. Diogo Leite de Campos e Mônica Horta Neves Leite de Campos, Direito Tributário, Belo Horizonte, Del Rey,2001,págs. 112 e segs.

3 Vd. art. 150.º, III, b, da Constituição Federal do Brasil.Cfr. Ives Gandra da Silva Martins, A defesa do Contribuinte no Direito Brasileiro, IOB, S. Paulo, coords. Ives Gan-dra da Silva Martins e Rogério Gandra Martins, pág. 7.

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5. Os benefícios fi scais

Os benefícios fi scais são particularmente característicos do carácter contratual dos impostos. Em geral, o Estado contrata com os cidadãos certas prestações destes em troca de certos serviços públicos. Nos benefí-cios fi scais, o Estado faz uma oferta pública de certas vantagens àqueles que preencherem os pressupostos fi xados, levando a cabo o comporta-mento pretendido.

Revela-se aqui a “nova”feição do Estado. Já não aquele que dá ordens e estabelece sanções, mas o organizador e promotor que assume os valores sociais e os promove através da forma organizativa adequada.

Ora bem: o Estado, ao conceder um benefício fi scal, não o pode revogar antes de os cidadãos obterem os resultados esperados do seu comportamento. Assim, se o Estado concede benefícios às empresas para se instalarem numa certa região, só os pode retirar depois de as empresas que aceitaram a oferta se instalarem e obterem os resultados previstos. É nesta ordem de ideias que a Lei Geral Tributária Portuguesa estabelece um prazo (mínimo) de cinco anos de vigência para os benefícios fi scais (artigo 14.º).4

6. A certeza do Direito e a técnica legislativa

Uma das bases fundamentais da certeza jurídica é a seguinte: “as leis tributárias devem estruturar-se de maneira a que apresentem técnica e juridicamente o máximo possível de inteligibilidade e as suas defi ni-ções serem tão claras e precisas que excluam qualquer dúvida sobre os direitos e os deveres dos contribuintes”5 . “Antes de tomar uma decisão o contribuinte deveria poder determinar rapidamente, com toda a certeza e poucos gastos, as consequências fi scais dos seus projectos” 6.

4 Vd. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária anotada e comentada, Vislis,3ª ed.,Lisboa, 2003, com. ao artigo 14.º.

5 F. Neumark, “Princípios de la imposición”, Madrid, IDEF, 1974, págs. 408 e 409.6 Informe de la Real Comisión de Investigación sobre la Fiscalidad” (Relatório

Carter), IDEF, Madrid, 1975, p. 14.

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A complicação e obscuridade da norma tributária deriva fundamen-talmente dos demasiados número e frequência das normas assentes na excessiva diligência regulamentadora da Administração7.

Uma norma obscura; a confusa sucessão no tempo de normas; as contradições difi cilmente sanáveis entre normas; etc., não só violam a necessidade de certeza como contradizem o próprio princípio da lega-lidade. O contribuinte só conhecerá os seus deveres tributáveis se esti-verem plasmados em normas claras. Caso contrário terá de perguntar à Administração ou aos Tribunais o sentido das normas, o que põe em causa o princípio da legalidade. Entendida esta como implicando a pos-sibilidade de o contribuinte conhecer através da “ leitura” da lei (formal) os seus deveres e a sua quantifi cação.

7. As cláusulas gerais e conceitos indeterminados

O Direito Tributário está eivado de institutos que assentam em cláu-sulas gerais ou conceitos (marcadamente) indeterminados.

Não me estou a referir à indeterminação “natural” de cada conceito, só mitigada perante a subsunção do caso concreto no conceito, a dar a este um sentido (para aquele caso).

Estou a pensar nos conceitos mais indeterminados, sobretudo naqueles que recorrem a conceitos de outros ramos da ciência (econo-mia, fi nanças, gestão de empresas, etc.) ou que apelam para estados psi-cológicos do contribuinte.8

O jurista – e, por maioria de razão, o contribuinte – parece despro-vido de meios para preencher estes conceitos com as situações da vida.

Estou a referir-me principalmente aos seguintes institutos: cláusula geral anti- -elisão; preços de transferência; fi xação de matéria colectável por métodos indirectos.

A clausula geral anti-elisão é de tal modo estranha ao princípio da legalidade, com as suas exigências de certeza, que tem sido objecto de

7 J.J. Ferrero Lapatza, Ensayos sobre metodología y técnica jurídica en el Derecho Financiero y tributario, Marcial Pons, Madrid/Barcelona, 1998, p. 29.

8 Vd. António Marcos, O direito do contribuinte à segurança jurídica, Porto, Ed. Universidade Fernando Pessoa, 1997, págs. 381 e segs.

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severas críticas por parte de Autores de maior relevo em todos os ordena-mentos jurídicos. Utiliza conceitos “novos” – abuso de formas jurídicas, por exemplo – de difícil apreensão. E faz apelo ao “intuito” do contri-buinte ao realizar as operações.

Embora se esteja próximo de a delimitar9, a utilização (essa abu-siva) que dela faz a Administração e a difi culdade de os Tribunais a apre-enderem, faz da cláusula geral anti-elisão um corpo estranho no ordena-mento jurídico fi scal.

O regime jurídico dos preços de transferência implica juízos sobre gestão de empresas e de grupos de sociedades, comércio internacional, valorização de intangíveis, preços de mercado, etc., difíceis para o téc-nico mais preparado quanto mais para o jurista.

A fi xação da matéria colectável por métodos indirectos, como o salto vertiginoso do conhecido (alguns dados da contabilidade) para o desconhecido (a efectiva vida do contribuinte, pessoa singular ou colec-tiva) exige juízos sobre a gestão das empresas e daquela empresa, o mer-cado, a gestão fi nanceira e de produção, etc., também muito incertos e subjectivos.

Assim, haverá que afastar o mais possível essas e outras indetermi-nações. E quando tal não parecer possível, dedicar um esforço acrescido ao preenchimento dos conceitos e, com a consciência de que o resultado será sempre muito incerto, remeter a apreciação a apreciação de um lití-gio para tribunais arbitrais integrados por especialistas.

9 Vd. Diogo Leite de Campos e João Costa Andrade, Autonomia Contratual e Direito Tributário, Coimbra, Almedina, 2009.

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Manuel Faustino

Retroactividade, Retrospectividadee alguma serenidade

Manuel Faustino

Licenciado em Direito. Associado do IDEFF.

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RESUMO

A natureza retroactiva das normas fi scais e a sua inconstitucionalidade são tratados neste estudo a propósito das recentes alterações introduzidas, ao nível das taxas e da tri-butação das mais-valias de acções, no Código do IRS. O autor conclui que tais alterações não têm natureza retroactiva autêntica, nem violam o princípio da confi ança.

Palavras-chaves: RetrocatividadePrincípio da Confi ança Inconstitucionalidade

ABSTRACT

The retroactive nature of tax laws and their unconstitutionality are treated in this study in face of the recent changes in Personal Income Tax Code, regarding rates and taxation of capital gains on shares. The author concludes that such changes don’t have authentic retroactive nature nor violate the principle of trust.

Keywords:RetroactivityPrinciple of TrustUnconstitutionality

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1. Quando o Governo anunciou, no quadro das medidas fi scais a integrar no Plano de Estabilidade e Crescimento, a antecipação, para 2010, da tributação de algumas mais-valias mobiliárias ao nível do IRS [1] parece «ter caído o Carmo e a Trindade» no meio fi scal português. Chegou mesmo a assistir-se ao insólito aparecimento de um «Mani-festo» – que fi cou conhecido por «Manifesto dos 66», tantos terão sido os seus assinantes – que agrupou dos mais insignes nomes da fi scalidade nacional e que, em suma, se insurgia, com variados argumentos, contra a aprovação de tal tributação [2], assacando-lhe, em julgamento público antecipado, o que agora um partido político designa por «vírus da retro-actividade». Respondeu o Governo, através do Ministro das Finanças, em conferência de imprensa que fi cou célebre, que, segundo os técnicos, não havia retroactividade, mas apenas retrospectividade. E se a Senhora Jornalista que fi zera a pergunta fi cara tão confusa quanto ele, só tinha que acreditar que o termo juridicamente ou tecnicamente correcto era aquele [3]! Veio mais tarde, no Expresso, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, em texto de antologia, como, aliás, é sua característica, explicar aos interessados o que é a retrospectividade aplicada às normas fi scais.

O ruído aumentou quando começou a desenhar-se o PEC propria-mente dito, com particular incidência nas medidas que se anunciavam com efeitos no IRS. Cauteloso fora o legislador do IRC que, para evitar dúvidas existenciais e em norma absolutamente essencial à economia

1 Afi rmação que, não nos temos cansado de o repetir, não é sequer rigorosa, por-que, deste o início da sua vigência, o IRS tem mais-valias mobiliárias tributadas. Basta que sejam obtidas, actualmente, no âmbito de uma actividade profi ssional ou empresarial e, antes da reforma operada pela Lei n.º 30-G/2000, de 30 de Dezembro, nas categorias C (rendimentos comerciais ou industriais) ou D (rendimentos agrícolas, silvícolas e pecu-ários). Há-de ter-se presente que a impropriamente denominada delimitação negativa da incidência – porque em rigor do que sempre se tratou foi de um benefício fi scal – que abrangia as mais-valias mobiliárias em causa apenas se aplicava às que fossem tributadas no âmbito da categoria G.

2 Não gostaríamos de associar tal «movimento» a situações de que temos conhe-cimento e que consideramos superarem em muito a noção de «planeamento fi scal agres-sivo», para se situarem, em nossa modesta opinião, no plano da pura evasão fi scal. E só lamentamos que as entidades competentes não tenham já desmascarado essas mesmas situações.

3 Conferência de Imprensa de 22 de Abril de 2010, após a Reunião do Conselho de Ministros.

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do Código, dispôs que «o facto gerador do imposto considera-se veri-fi cado no último dia do período de tributação» [4]. O coro de murmú-rios ganhou novo fôlego, agora com sustentação política de franjas, e, de novo, a nódoa da inconstitucionalidade por retroactividade foi abundan-temente esgrimida em públicas discussões.

Mas, em rigor, ao certo, pouco ou nada se clarifi cou, porque tudo se meteu no mesmo saco e nenhuma distinção se fez, como até podia convir. Na generalidade, as vozes ouviram-se antes de existirem medidas legis-lativas concretas e, nalguns casos, mesmo antes de serem publicamente conhecidos os projectos legislativos governamentais. Foram tiros sem alvo e que, por isso, em nada acertaram. Nem mesmo do ponto de vista pedagógico alguma coisa adiantaram. Ao contrário apenas aumentaram a confusão e a perplexidade, criaram no universo tributário dos ingénuos infundadas expectativas e contribuíram, a nosso ver em excesso, para um clima de «crispação fi scal» de todo desnecessário e desaconselhá-vel no período da gravíssima crise económica, fi nanceira e de fi nanças públicas que o País atravessa e que, para além do empenhamento de todos, exige serenidade e bom senso. Além de que, como temos por mais que provável, nenhum dos cenários catastrofi stas, na perspectiva da (in)constitucionalidade das medidas em causa, que foram anunciados se vai concretizar e, mais do que o legislador, foram os arautos da desgraça que, tendo-lhas criado, acabam assim por defraudar infundadas expectativas dos contribuintes.

2. Não foi consensual, por se afi gurar ter tido motivações quase exclusivamente de ordem política, ainda que integrando um discurso

4 Cf. n.º 9 do artigo 8.º do Código. Isto mesmo após ter antes explicitado, em norma de incidência objectiva, que “o IRC incide sobre o lucro das empresas” e que “o lucro consiste na diferença entre os valores do património líquido no fi m e no início de tribu-tação” – cf. artigo 3.º. Mas, à cautela, e não fosse o Diabo tecê-las, sempre era melhor dizer mais alguma coisa. Quod abundat non nocet. Embora, para nós, o n.º 9 do artigo 8.º, mais não seja que uma norma de autorização de cobrança do imposto por parte do Estado, ou seja, a norma que fi xa o momento a partir do qual o imposto se torna exigível. Repare-se, aliás, que a norma não se refere a «facto tributário», mas a «facto gerador». E, como sabemos, não sendo o legislador um escritor literário, quando quer referir-se a um certo conceito, utiliza os termos que traduzem esse conceito. Não se diga, pois, que «facto gerador» (para efeitos desta discussão) é o mesmo que «facto tributário».

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jurídico com ampla distribuição, verbal, de direitos, liberdades e garan-tias, a decisão do legislador constitucional de introduzir, na revisão cons-titucional de 1997, o direito de não pagar impostos que tenham «natu-reza retroactiva», expressão então consagrada no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa, norma que estabelece o ‘direito de resistência’ do contribuinte. Esta modifi cação constitucional, «afas-tou-nos das constituições fi scais dos países em cuja tradição jurídica nos incluímos ou tentamos incluir. Com efeito, utilizando, como parâme-tro para a bondade da solução, o Direito Comparado, verifi camos que a proibição constitucional da retroactividade fi scal se encontra geral-mente em países como o Brasil ou o México, onde, em vez de um Estado de Direito consolidado e razoavelmente operante, temos o que podemos qualifi car como um discurso constitucional sobre o Estado de Direito» [5]. Mas, mais importante do que isso, tal modifi cação interrompeu, ao menos parcialmente, o caminho encetado pelo Tribunal Constitucional para um certo grau de apuro na defi nição de um critério material de limi-tação para a retroactividade das normas fi scais. Não obstante, a altera-ção constitucional não resolveu tudo. «Há que defi nir o que se entende por lei fi scal com natureza retroactiva: trata-se de retroactividade forte ou retroactividade fraca, nos termos formais que referimos supra, ou de qualquer intensidade material da lesão da confi ança? Tudo isto fi ca novamente remetido para a jurisprudência. Estará também abrangida a retroactividade favorável nesta proibição?» [6].

Decorre do exposto que, no plano doutrinário, a consagração consti-tucional do direito [7] de não serem pagos impostos que tenham natureza

5 SALDANHA SANCHES, J. L., Manual de Direito Fiscal, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2007, pp. 191. Mais assertivo, CASALTA NABAIS, J., Direito Fiscal, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2010 (Reimpressão da edição de 2010), Nota 33, pp. 146/147, afi rma: Nós, porém, quanto a esta, como quanto a outras alterações constitucionais, interrogmo-nos sobre se não estamos perante manifestações dos fenómenos de «panconstitucionaliza-ção» e de «novoriquismo» constitucional que não honram uma constituição digna desse nome.

6 SALDANHA SANCHES, J.L., op. e pp. cit.7 Agora de novo publicamente invocado, mas muito cujo exercício foi muito mal

explicado. O Estado de Direito tem regras. E não estando em causa esse direito, devem associar-se-lhe os deveres que o seu exercício implica: impugnação judicial da liqui-dação do imposto considerado de natureza retroactiva, com os custos inerentes, e, em

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retroactiva não esgotou, nesse plano, o tema da retroactividade das nor-mas fi scais. Subsistem, pelo menos, as questões de saber se a expressão natureza retroactiva abrange todo e qualquer grau de retroactividade ou se ainda faz sentido distinguir entre diferentes graus de retroactividade [8] e se normas fi scais favoráveis ao contribuinte estão ou não abrangidas pela proibição de retroactividade.

A verdade é que, continuando afi nal, embora provavelmente de modo mais limitado, a percorrer o caminho para a defi nição de um cri-tério material de limitação para a retroactividade das normas fi scais, o Tribunal Constitucional (TC), nos casos que, após a alteração consti-tucional, lhe foram até agora submetidos, se não limitou a aplicar ex offi cio o n.º 3 do artigo 103.º da CRP. Cumpre aqui reconhecer e saudar o empenho do TC em desbravar as difi culdades que a lei continua a colo-car, procurando delimitar o seu sentido e âmbito e, assim, afi nar o critério material a que nos temos referido. Vejamos, ainda que de modo sucinto, em que tem consistido esse pródigo labor.

3. Servir-nosá de guia pelo breve percurso que vamos fazer pela actividade cognitiva do TC a propósito da retroactividade das normas fi scais, o Acórdão n.º 128/09, de 12 de Março, tirado no Recurso n.º 772/2007, de que foi Relatora a Juíza Conselheira Maria Lúcia Ama-ral. Elegemo-lo na sequência do facto de o mais recente Acórdão do

princípio, prestação de garantia idónea no processo executivo que necessariamente será instaurado na falta de pagamento do imposto. O direito não é, pois, absoluto como quase se deu a entender, e, muito menos, opera ex offi cio.

8 BRÁS CARLOS, A. F., Impostos, Teoria Geral, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 122 e ss., onde sintetiza, com base em ALBERTO XAVIER, a posição doutrinária maioritária sobre os três graus de retroactividade em função do grau de lesão da confi ança do contribuinte. E afi rma, posição com que concordamos, que a denominada retroactividade de 3.º grau, ou seja, aquela que se verifi ca quando o facto tributário que a lei nova pretende regular na sua totalidade não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes se continua formando na vigência da lei nova, não é retroactividade verdadeira. E, ainda FREITAS PEREIRA, M. H., Fiscalidade, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, pp. 207/213, e, em particular, pp. 210. Será, portanto, como a qualifi ca CASALTA NABAIS, retroactividade imprópria, inautêntica ou falsa. E, com BRÁS CARLOS, afastamo-nos, em princípio, da posição de ALBERTO XAVIER, sobre a aplicação pro rata temporis, nestes casos de retroactividade imprópria. Designa-damente num imposto com as características, como por exemplo, a progressividade, do IRS, como, em texto, teremos oportunidade de explicitar.

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TC que abordou a questão da retroactividade de normas fi scais, o Acór-dão 85/2010, de 3 de Março, tirado no Recurso n.º 653/09 e de que foi Relator o Juiz Conselheiro Gil Galvão, ter nele baseado a apreciação do pedido de inconstitucionalidade que vinha formulado relativamente a uma norma do Código do IRC e ao tratamento concedido, em certas circunstâncias a menos-valias derivadas de participações sociais.

No Acórdão 128/09, o TC entendeu colocar a sua pronúncia em duas vertentes: por um lado, se devia ponderar, in casu, se a norma sancionada assumia uma verdadeira natureza retroactiva. E, a ser assim, se devia ainda o Tribunal ponderar se a especial natureza da norma (integrante de uma lei fi scal) a fazia cair no princípio geral de irretroactividade das leis fi scais consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição. Por outro lado – e apenas se se não chegasse, desde logo e por este motivo, a um juízo de inconstitucionalidade – se o Tribunal devia ainda ponderar se a aplicação da norma tinha lesado, efectivamente, a «confi ança legítima» da recorrida, de modo tal que se devesse ter por violado, no caso, o prin-cípio da protecção da confi ança ínsito na ideia de Estado de direito, nos termos do artigo 2.º da Constituição.

Sobre a proibição de retroactividade fi scal, depois de se considerar, com a doutrina, que a alteração feita em 1997 ao n.º 3 do artigo 103.º da CRP mais não teria feito que explicitar algo que já decorria do princípio da protecção de confi ança e da ideia de Estado de direito nos termos do artigo 2.º da CRP [9] afi rma-se categoricamente: decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fi scal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fi scais favoráveis podem, e em que medida, ser retroactivas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroactiva, sendo a expressão «retroactividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fi scal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fi scal revogada (a lei antiga) e mais favorável. E mais se escreveu nesse mesmo Acórdão:

«Uma vez expressa no texto da Constituição a proibição da retro-actividade em matéria fi scal, o Tribunal passou a ler esta proibição já

9 Explicitação que, salvo melhor opinião, não podemos deixar de interpretar como expressão de uma certa desvalorização dessa mesma alteração, feita pelo próprio TC.

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não numa dimensão subjectiva (dependendo, em concreto, do contexto dos sujeitos da relação tributária resultante da aplicação da lei) mas antes numa dimensão objectiva. Diz o Tribunal, a este propósito, que à proi-bição expressa da retroactividade da lei fi scal “não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objectividade e auto-vinculação do Estado pelo Direito” (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/2000, in www.tribunalconstitucional.pt). Quer isto dizer que, actualmente, e con-sagrado que está o princípio geral de irretroactividade da lei fi scal, a mera natureza retroactiva de uma lei fi scal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fi scal ou do particular tri-butado. Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre ape-nas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação jurídico-tributá-ria. […] A retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroactividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a retroacti-vidade que se traduz na aplicação de lei nova a factos (no caso, factos tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da lei nova)”.

Importa, pois, reter que, para o TC, a natureza retroactiva da norma não se traduz em qualquer tipo de retroactividade ou em retroactividade de qualquer grau. Apenas é relevante a retroactividade própria ou autên-tica e não a retroactividade imprópria ou inautêntica. Automaticamente, à luz do preceito constitucional, apenas actua, sem dúvida, a denominada retroactividade de 1.º grau. Já a denominada, retroactividade de 2.º grau há-de ser objecto de outros juízos que não o de mera retroactividade. E, por último, não se subsume, de todo, no n.º 3 do artigo 103.º da CRP a retroactividade de 3.º grau, por se tratar de retroactividade impró-pria, inautêntica ou falsa [10] . E, não menos importante, mantém-se em aberto a questão de saber se a proibição de retroactividade abrange ou não normas favoráveis ao contribuinte, aspecto sobre o qual o Tribunal não toma posição e sobre o qual a doutrina mais consistente também se demite de opinar, mas que, para alguns, parece um dado adquirido: as

10 Ordenação qualifi cadora que, entre nós, parece ter sido feita pela primeira vez por ALBERTO XAVIER, in Manual de Direito Fiscal, Lisboa, 1974, pp. 195/202.

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normas fi scais favoráveis ao contribuinte não são abrangidos pela proi-bição de retroactividade, como se os interesses patrimoniais do sujeito activo da relação jurídico-tributária e dos contribuintes por elas não abrangidos, não fossem eles, também, merecedores de tutela constitu-cional [11].

Nesse contexto, o TC entendeu não dever fi car pela análise da inconstitucionalidade, strictu sensu, mas aprofundar mais o iter cogni-tivo e avançar, nestes casos, para a apreciação de outro fundamento de inconstitucionalidade – a violação do princípio da confi ança, ínsito no princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição – que, sucessivamente, em relação a uma norma fi scal atacada por natureza retroactiva, pode ser invocado, caso esta se venha a ter por inverifi cada.

Ora, como é consensualmente reconhecido, com a formulação actual do nº 3 do artigo 103.º da CRP alterou-se o lugar constitucional que o princípio decorrente do artigo 2.º ocupa em matérias de natureza fi scal: a aprovação, em 1997, de um princípio geral de irretroactividade

11 A alguém repugnaria considerar inconstitucional por retroactiva, uma norma que, após o fecho de um exercício fi scal, fi xasse um benefício fi scal, aparentemente com carácter geral, mas que apenas benefi ciasse certos contribuintes, e determinasse, para esses, a devolução de imposto já pago ou o pagamento de imposto inferior ao que deve-ria ser na ausência do benefício? E por quem seria repartido o encargo resultante dessa «despesa fi scal»? É que, em matéria de receitas tributárias, o que não for pago por uns, será necessariamente pago por outros e nem sempre esta «comunicabilidade» é tida em consideração por quem defende que as normas com natureza retroactiva, favoráveis ao contribuinte, são insusceptíveis de juízo de inconstitucionalidade por essa razão. E não se pense que a posição dubitativa sobre a questão da insusceptibilidade de normas retroacti-vas favoráveis aos contribuintes é nova, mesma entre nós. CARDOSO DA COSTA, J. M. M., no seu Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 1972, escrevia, em nota de pé de página (pp. 239) perante entusiastas de solução diversa, inclusivamente consagrada no então muito celebrado Anteprojecto de Código de Impostos sobre o Rendimento, de que era entusiasta defensor o Prof. Pessoa Jorge, o seguinte: “Isto no caso de a nova lei agravar o encargo. Já não assim, quando o venha a diminuir (através da redução da taxa) ou extinguir: por isso mesmo há quem entenda, pondo mais o acento tónico nesta circunstância do que no princípio da igualdade, que em tais hipóteses a lei nova se deve aplicar mesmo a factos ou situações anteriores (assim, Prof. Pessoa Jorge, Curso , p. 131). É este um ponto de vista que não pode afastar-se liminarmente. E, assim, muito embora nos não inclinemos para a solução nele contida, nem a perfi lhemos no texto, também nisso não pomos, todavia, uma convicção absoluta”.

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da lei fi scal veio modifi car (e não diminuir ou aumentar) a relevância do princípio.

A este propósito escreveu-se o seguinte no Acórdão n.º 128/08:

Quer isto dizer exactamente o seguinte. A proibição expressa da retroactividade da lei fi scal não tornou inútil a eventual aplicação, a matérias de natureza tributária, do parâmetro da protecção da confi ança. Como diz Casalta Nabais, (Cfr. “Direito Fiscal”, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, p. 149) a protecção da confi ança não foi absorvida pelo novo preceito constitucional. Ao textualizar a proibição de normas fi scais retroactivas, a Constituição conferiu uma especial corporização ao princípio, corporização essa que se traduz na necessária ausência de ponderações sempre que ocorram casos [de leis tributárias] que sejam retroactivas em sentido próprio ou autêntico. Nesses casos – nos quais, recorde-se, se não inclui o presente – não há lugar a ponderações: a norma retroactiva é, por força do n.º 3 do artigo 103.º, inconstitucional. Mas tal não signifi ca que, por causa disso, se tenha esgotado ou exaurido a «utilidade» do princípio da confi ança em matéria tributária. Pode haver outras situações – de retroactividade imprópria, ou até de não retroacti-vidade – que convoquem a questão constitucional que é resolvida pela tutela da confi ança.

Sucede, porém, que, ao contrário do que sucede com a aplicação do princípio contido no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, a «mobilização» do princípio da confi ança em matéria tributária obriga a um juízo que não prescinde de ponderações: saber se a norma é ou não inconstitucional (por violação da protecção da confi ança) obriga a que se tenha em conta, e se pondere, tanto o contexto da administração tributária quanto o contexto do particular tributado.

Foi No Acórdão n.º 287/90, de 30 de Outubro, que o TC estabeleceu os limites do princípio da protecção da confi ança na ponderação da even-tual inconstitucionalidade de normas dotadas de «retroactividade inau-têntica, retrospectiva». Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de «retroac-tividade autêntica», numa altura em que o n.º 3 do artigo 103.º não tinha a redacção actual, e o tratamento a conferir aos casos de «retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da

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confi ança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consa-grado no artigo 2.º da Constituição.

Ora, de acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segu-rança jurídica na vertente material da confi ança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam, isto é, se verifi quem cumulativa-mente, dois pressupostos essenciais:

a) A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inad-missível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda

b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direi-tos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

E, completando o seu raciocínio, o TC, nessa Acórdão, fi xou a seguinte jurisprudência que até hoje se mantém inalterada:

Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro dife-rentes requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela jurídico--constitucional da «confi ança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justifi cadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifi quem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.

Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confi ança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confi ança, aqui, não é uma confi ança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima fi ca-ram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.

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Por isso, disse-se ainda no Acórdão n.º 287/90 – e importa ter este dito presente no caso – que, em princípio, e tendo em conta a autorevisi-bilidade das leis, “não há (…) um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoi-ras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados”.

4. Foi longo este enquadramento doutrinário e jurisprudencial, mas ele era indispensável para a análise serena que nos propomos efectuar e que tem por objecto a sucessão legislativa que este ano já se verifi cou em sede de IRS [12] e tecer sobre ela algumas considerações tentativamente clarifi cadoras em relação aos problemas em causa: (i) estaremos perante medidas legislativas retroactivas, susceptíveis de violarem o n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa? (ii) não sendo retroactivas, tais medidas poderão ainda assim ser objecto de um juízo de inconstitucionalidade por violação do princípio da segurança jurídica, na sua dimensão de confi ança, ínsito na ideia de Estado de direito? (iii) se a resposta às questões anteriores for negativa, e considerando alguma supremacia que a jurisprudência reconhece à Lei Geral Tributária [13],

12 Assumimos que o problema fundamental, se não mesmo exclusivo, da legislação em causa, se cinge aos impostos periódicos e, dentro destes, pela já apontada cautela do legislador do IRC, ao IRS. Parece poder colocar-se um problema de sucessão de lei no tempo em relação à alteração feita na Lei n.º 12-A/2010 às taxas aplicáveis na Região Autónoma da Madeira no Imposto sobre o Tabaco, uma vez que ainda é feita no ante-rior Código dos IEC, quando estava em vacatio legis o novo Código do IEC, embora nós entendamos que, por força do disposto no artigo 7.º do Decreto-Lei que o aprova, a alteração introduzida às mencionadas taxas deva igualmente ter-se por feita no novo Código. Algo sobre que não nos pronunciaremos respeita às taxas de tributação autó-noma introduzidas pela Lei do OE/2010 no Código do IRC, matéria onde nos parece existir um grande défi ce de intervenção da Universidade. Ninguém sabe qual a natureza de tais taxas, se são impostos directos ou indirectos, se instantâneos ou periódicos, se sobre rendimento ou sobre a despesa. E, entretanto, o IRC vai arrecadando milhões com tais tributações, estatisticamente tais receitas são contabilizadas como receitas de IRC e, em sede de custos, não são aceites como tal. Ora, a TSU não será também uma tributação autónoma sobre a despesa (salários) da empresa? E não é dedutível como custo?

13 É defi nitivo que a Lei Geral Tributária não é uma lei de valor reforçado e, por-tanto, situada, na hierarquia das leis, entre a CRP e a lei e o decreto-lei. Mas a verdade é que, não raro, a jurisprudência reconhece a supremacia da LGT em relação, nomeada-mente, ao CPPT – v. g., Ac. do STA de 31-10-2007, Recurso n.º 593/07.

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poderão as mesmas medidas legislativas violar o artigo 12.º, nomeada-mente o seu n.º 2? É o que, na sequência, vamos procurar dissecar.

5. Até à data em que escrevemos estas notas, foram publicados, com relevância para o tema que pretendemos abordar [14]:

14 Não cuidaremos aqui da inesperada, e de todo inexplicada, alteração ao artigo 119.º do Código do IRS, feita pelo Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de Junho (decreto--lei de execução orçamental!) e que, para sermos directos, eliminou o sigilo bancário em relação aos rendimentos de capitais obtidos por residentes em território português. E, numa perspectiva eminentemente tributária, aparentemente obriga à comunicação de informação que, qua tale, não tem qualquer utilidade, em situações de normalidade (que são a sua maioria) para a determinação da situação fi scal do contribuinte, pois os rendimentos comunicados foram tributados por taxas liberatórias, que nelas esgotam o poder tributário do Estado, na fonte. Esta alteração, sim, oferece-nos fundadas dúvi-das de constitucionalidade, nomeadamente por violação dos princípios da protecção da privacidade e também do princípio da proporcionalidade, além de que não se encontra de modo algum estabelecido de que forma e com que fi nalidades pode a administra-ção tributária utilizar tal informação. Finalmente, subjacente à informação comunicada, que aparentemente até é inócua, está implícita a informação de titularidade de contas bancárias e a informação de titularidade de capitais mobiliários, cujos montantes até se podem estimar. Foi, com este diploma, que, pela “simplicidade” com que a questão foi politica e publicamente colocada, reduzida a mera «birra» a questão estruturante que em 1989 ditou a ruptura entre o Ministro da Finanças (ao cabo e ao resto o Governo) e o Presidente da Comissão de Reforma Fiscal, Prof. Pitta e Cunha, que rios de tinta fez correr e impediu um IRS muito mais próximo da fórmula unitária, defendida pelo Presidente da CRF, do que aquela que veio a ter (com as taxas liberatórias justifi cadas, em parte, pelo sigilo bancário). Nada disse, entretanto, o Governo sobre o regime dos títulos ao portador, não registados nem depositados, admitindo-se que, no que toca aos respectivos rendimentos, se possa adoptar a solução preconizada por TEIXEIRA RIBEIRO: «identifi quem-se os apresentantes e presumam-se estes os proprietários dos títulos». E falta ainda saber se a comunicação referente a «quaisquer rendimentos sujeitos às taxas previstas no artigo 71.º», engloba, relativamente ao ano de 2009 e parte de 2010 os prémios de jogos sorteios e concursos. A verdade é que, numa omissão contra legis, as instruções da declaração mod. 39, entretanto aprovada para que tal comunicação seja efectuada, não contempla código para tais rendimentos. Falta, assim, também uma justifi cação para esta «discriminação positiva» dos prémios dos jogos, sorteios e con-cursos – que agora deixaram de ser “rendimento” (porque passaram a ser tributados em Imposto do Selo!), mas, à data a que se reporta o cumprimento da obrigação em causa, eram rendimento para todos os efeitos.

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a. A Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que aprovou o Orçamento de Estado para 2010, entrada em vigor em 29 de Abril de 2010 [15];

b. A Lei n.º 11/2010, de 15 de Junho, que entrou em vigo em 16 de Junho e que aprovou uma nova taxa marginal superior, de 45%, para a tabela de taxas gerais previstas no artigo 68.º do Código do IRS [16];

c. A Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, que entrou em vigor em 1 de Julho e que, no tocante ao IRS:1) Aumentou, com carácter de generalidade, a tabela de taxas

gerais do imposto, consagrada no artigo 68.º do Código do IRS;

2) Aumentou as taxas liberatórias em 1,5%;3) Aumentou as taxas de retenção na fonte previstas no artigo

101.º do Código do IRS também em 1,5%;4) Reajustou o mecanismo dos pagamentos por conta, previstos

no artigo 102.º do Código do IRS, fazendo-o aumentar de 75% para 76,5% do montante calculado a partir da fórmula prevista no preceito.

d. A Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, que, nomeadamente, elimina a delimitação negativa formal de incidência consagrada no artigo 10.º, n.º 2, do Código do IRS e, sem qualquer regime transitó-rio, coloca sob a capa da sujeição a tributação as mais-valias decorrentes da alienação onerosa, ou prática de acto de efeito equivalente, de acções e de obrigações e que foi uma daquelas que, como se sabe, mais celeuma provocou.

No que diz respeito à Lei do Orçamento de Estado para 2010, nin-guém colocou em causa o problema da sua retroactividade, muito embora as medidas legislativas nele contidas, incluindo a nova tabela de taxas gerais (por acaso mais favoráveis porque os respectivos escalões revelam

15 Ou seja, no fi m do 1.º quadrimestre do ano fi scal, para efeitos de IRS. De con-formidade com o disposto no artigo 143.º do Código do IRS “Para efeitos de IRS, o ano fi scal coincide com o ano civil”.

16 Cuja fi scalização sucessiva da constitucionalidade foi requerida pelo Presidente da República, segundo foi noticiado, embora se desconheçam os fundamentos das dúvi-das suscitadas e que motivaram tal pedido.

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uma actualização de 1% em relação às vigentes em 2009), se apliquem a todo o ano fi scal de 2010, como, aliás, sem qualquer polémica, sucedeu com outros Orçamentos de Estado aprovados fora do período normal de aprovação, ou seja, no último trimestre de cada ano [17]. E, realmente, não vimos ninguém a «reclamar», coerentemente, que o IRS correspon-dente aos rendimentos «obtidos» ou «auferidos» até 28 de Abril de 2004 fossem tributados com as regras que vigoraram para os rendimentos res-peitantes ao ano de 2009. Mas, em coerência, deviam tê-lo feito.

O mesmo se não diga em relação à Lei 11/2010, de 15 de Junho, a que criou a taxa marginal de 45% para rendimentos colectáveis supe-riores a 150.000,00 € (o que corresponde a rendimentos colectáveis superiores a 300.000,00 € tratando-se de pessoas casadas e não sepa-radas judicialmente de pessoas e bens ou pessoas que vivam em união de facto e reúnam as condições legais para poderem ser tributadas con-juntamente, uma vez que, nestes casos, para efeitos de determinação das taxas, o rendimento colectável é dividido por dois, por aplicação do quociente conjugal). Esta taxa e escalão foram editados reactivamente, num contexto que, de todo, desaconselhava a respectiva criação. Com efeito, julgamos que foi infl uenciada pela polémica discussão em torno dos «salários dos gestores» e até se chegou a falar em taxas na ordem dos 75%, como se o imposto fosse uma sanção e o fi sco fosse o justiceiro que, sem direito a contraditório, resolve «injustiças sociais». A «cru», como diria Ernâni Lopes! Nada de mais errado. Tem de afi rmar-se, em nome da não ‘prostituição’ da noção jurídica de imposto que há muito superou a fase da «pena imposta aos vencidos de guerra», que o imposto não constitui uma sanção. E ainda que o imposto não deve constituir uma modalidade de confi sco encapotada. E, por outro lado, que não com-pete ao fi sco fazer esses «acertos», não compete ao fi sco «sancionar»

17 O que acontece sempre que há eleições legislativas normais e pode acontecer noutras situações (cf. artigo 38.º da Lei n.º 91/2001). Por outro lado, sabemos que o Orçamento do ano anterior vê prorrogada a sua vigência, excepto, no que diz respeito às receitas, quanto à autorização para a cobrança das receitas cujos regimes se destinavam a vigorar apenas até ao fi nal do ano económico a que respeitava a lei (artigo 41.º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto). De onde decorre, ainda que por hipótese meramente académica, que possa existir um ano económico sem orçamento aprovado, «vivendo» com a prorrogação ex lege do Orçamento do ano anterior, com as correspondentes con-sequências fi scais.

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a obtenção de rendimentos, sendo, por último, violadoras do princípio da propriedade privada taxas de «natureza confi scatória» como seriam certamente qualifi cadas taxas da ordem de grandeza que foi anunciada. Ficou-se o legislador pelos 45%. E, mesmo assim, do nosso ponto de vista, a aproximar-se perigosamente daquele limiar da confi scatoriedade que, não tendo sido defi nido por ninguém, podemos, pragmaticamente, colocar nos 50%! Nada pode justifi car, a não ser um confi sco puro e duro, uma taxa de imposto directo que «exturca» ao titular mais do que 50% do rendimento que ele produz. Ora, o facto é que já está anunciado que, em 2011, a taxa marginal do IRS será de 46,5% – ou seja, a 3,5% do limite que preconizámos como máximo. Há 20 anos, a taxa marginal superior do IRS foi fi xada em 40%. Sendo a taxa de IRC (com a derrama) praticamente idêntica. Seria, então, inimaginável que, 20 depois, a taxa marginal de IRS fosse quase o dobro da taxa normal de IRC (conside-rando a taxa nominal resultante da taxa média derivada da consagração das taxas de 12,5% e de 25%). Em qualquer caso, e pelas razões que infra explicitaremos, não consideramos tal lei retroactiva e também a não consideramos violadora do princípio da confi ança.

Vimos já as alterações que a Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, introduziu ao IRS. Foram medidas legislativas com efeitos reportados exclusivamente ao nível das taxas e que, curiosamente, deixaram de fora as denominadas taxas especiais (artigo 72.º do Código do IRS) [18]. Tendo estas medidas sido adoptadas na sequência do Plano de Estabili-

18 Designam-se por vezes estas taxas como «liberatórias». Estas «taxas especiais», ou «taxas de tributação autónoma», não são liberatórias em sentido estrito. As taxas libe-ratórias em sentido estrito têm a natureza de impostos instantâneos, esgotam o poder tributário do Estado na sua aplicação ao facto tributário previsto na norma de incidên-cia, como que «eliminam» o sujeito passivo de facto da correspondente relação jurídica tributária e são aplicadas por terceiros no quadro de uma relação jurídica tributária de natureza complexa que se estabelece entre o denominado substituto tributário e o sujeito activo dessa mesma relação. Nada disto se passa com as denominadas taxas «especiais», designação que apenas tem servido para, ao longo de vinte anos, camufl a dimensão semi--dual, na sua dimensão de proporcionalidade. As taxas especiais constituem a dimensão da proporcionalidade do IRS. Por isso, os rendimentos a elas sujeitos devem ser obriga-toriamente declarados. Apenas não são levados ao englobamento e, consequentemente, não integram a matéria colectável sujeita à tabela de taxas progressivas. São taxas que se aplicam sobre o rendimento líquido objectivo anual em heteroliquidação. E, em nosso entender, deviam (julgamos que não estão a ser consideradas para esse efeito) também

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dade e Crescimento apresentado em Bruxelas, e estando já muito atenua-das em relação às inicialmente anunciadas, em resultado, certamente das negociações políticas que possibilitaram a sua aprovação parlamentar, resta-nos aqui, como fi zemos em relação à Lei 11/2010, remeter para a fundamentação da nossa posição sobre a sua não retroactividade, nem prevalência da violação do princípio da protecção da confi ança.

Determinada pela Lei n.º 15/2010, a derrogação do regime de não tributação, em certas circunstâncias, das mais-valias de acções e de obri-gações foi objecto, como vimos, de posições muito fortes sobre a sua «óbvia» inconstitucionalidade. Mantivemo-nos no «pequeno resto» que sempre conservou a convicção de que a medida não era retroactiva e até expressámos e procurámos fundamentar publicamente a nossa posi-ção [19]. No que diz respeito à «exigência» de um regime transitório, consideramo-la excessiva, porque o artigo 5.º do Decreto-Lei que aprova o Código do IRS já contém um regime transitório que continua em vigor e é susceptível de ser aplicado a acções e obrigações adquiridas antes de 1 de Janeiro de 1989. Haveria violação do princípio da igualdade se a nova lei não respeitasse este regime transitório. Mas tal não se verifi ca. No que respeita à reiterada afi rmação de que, nas mais-valias, a “verda-deira norma de incidência” [20] é aquela que prescreve que «os ganhos se consideram obtidos no momento da prática dos actos» [21], para nelas se sustentar a defesa de uma retroactividade própria quanto às alienações

suportar a subjectivização do imposto, porque nada impõe que um imposto proporcional seja, obrigatoriamente, real e não possa ser subjectivo.

19 MANUEL FAUSTINO, O Período do IRS e a Questão da Retroactividade, Jornal de Negócios, 25 de Maio de 2010.

20 ROGÉRIO MANUEL FERNANDES FERREIRA, Impostos e Constituição, Informação Fis-cal, PLMJ, Junho 2010. Permitimo-nos, aliás, referir que, no texto, certamente por lapso, o autor se refere a «retroactividade de 3.º grau, própria ou autêntica», sem justifi car, não sendo lapso, a sua discordância da restante doutrina sobre a qualifi cação deste grau de retoactividade.

21 Artigo 10.º, n.º 3, do Código do IRS. Aliás, na concepção tradicional, a norma de incidência, permita-se-nos a discordância, é o n.º 1 do artigo 10.º que refere “Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profi ssionais, de capitais ou prediais, resultem de:”, devendo depois o acto subsumir-se nalguma das previsões normativas consagradas nas suas sete alíneas. Na concepção de incidência que adoptamos, este é, porém, para nós, apenas o aspecto material do elemento objectivo da incidência e que responde à questão de saber o que está sujeito a imposto.

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onerosas se acções e obrigações anteriores à entrada em vigor da lei, continuamos a contrapor que tal norma apenas explica um dos aspectos do elemento objecto da incidência: o aspecto temporal. Responde, pois, à questão de saber quando, ou a partir de quando, os rendimentos obtidos fi cam sujeitos a tributação. Mas não explica os aspectos material, espa-cial e quantitativo do elemento objectivo da incidência. E, no caso em análise, o aspecto qualitativo do elemento objectivo da incidência, ou seja a resposta à questão de saber «quanto é eu fi ca sujeito a imposto», não se resolve no momento em que a lei considera os ganhos obtidos. Desde logo, porque a norma que dispõe que “o valor dos rendimentos qualifi -cados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias” não pode deixar de ser qualifi cada como uma norma de desenvolvimento das regras de determinação da matéria colectável, que não tenham natureza meramente procedimental, especi-fi cas para cada tipo de mais-valias que se inscrevem no correspondente capítulo do Código do IRS [22]. E ainda, devendo igualmente merecer a mesma qualifi cação, tem de relevar-se a norma que, excepcionando a estanquicidade do princípio da anualidade do imposto, permite o reporte de perdas verifi cadas em anos anteriores a resultados positivos obtidos no ano e que, no momento da liquidação, podem anular o saldo positivo obtido no ano em causa [23].

22 E não se pense que estamos a inventar o que quer que seja – já que são fracas as nossas credenciais para falarmos ex cathedra. Na actualidade, a doutrina espanhola adopta, na sua generalidade, esta teoria sobre a incidência real. Mas entre nós ela também não deixa de ser sugerida doutrinariamente. E, pelo menos, com raízes já no século pas-sado. Assim, cf. CARDOSO DA COSTA, op. cit., que, a pp. 241/242, apoiando-se no «enten-dimento preconizado pela generalidade da doutrina», escreve, no que respeita às normas relativas à matéria colectável: «há que distinguir, consoante se trate de normas que a defi nem, que defi nem o valor sobre que recai o imposto (p. ex.: de que valor se trata, que verbas entram na sua composição, se é um valor real efectivo, ou presumido, ou um valor normal, ou de normas que se limitam a estabelecer o processo da sua determi-nação (p. ex.: relevo dado à declaração do contribuinte e às averiguações ofi ciosas da Administração; trâmites do processo de lançamento): no primeiro caso, estamos perante normas relativas à incidência real, ou seja, a um elemento essencial dos impostos; já isso não sucede na segunda hipótese, onde se nos deparam normas disciplinadoras tão-só do processo administrativo de lançamento»

23 Artigo 55.º do Código do IRS, nomeadamente os n.ºs 5 e 6, para o reporte de perdas na categoria G.

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6. Elemento, quanto a nós, decisivo para a formulação do juízo de inconformidade constitucional, por violação da proibição de impostos com natureza retroactiva, é a própria natureza do IRS, segundo o critério do tipo de relação jurídica base do imposto, ou seja segundo a confi guração instantânea ou duradoura do elemento temporal do facto tributário. A relação jurídica que é fonte da obrigação de IRS tem na sua base, em regra [24], situações estáveis, situações que se prolongam no tempo, mantendo-se e renovando-se anualmente em todos os seus elementos ano após ano, dando origem, por consequência, a obrigações periódicas, a obrigações que se renovam todos os anos. Com este sentido a distinção entre impostos directos e impostos indirectos vem a coincidir com a distinção entre impostos periódicos (duradouros) e impostos de obrigação única (instantâneos) [25]. Por nós ainda acrescentaríamos que a estabilidade da relação jurídica de IRS é também acentuada pelo facto de um contribuinte deste imposto não deixar de o ser pelo facto de num ano fi scal ter rendimentos de um conjunto de categorias e no ano fi scal seguinte ter deixado de obter rendimentos de alguma ou algumas delas. Ora, tanto a doutrina como a jurisprudência são unânimes em qualifi car o IRS, no sentido já explicitado e que é o que para este efeito tem con-teúdo útil, como um imposto periódico. E é justamente em relação aos impostos periódicos que, com a máxima acuidade, se coloca o problema de saber se se está ou não perante uma norma tributária com natureza retroactiva quando essa norma, destinando-se a vigorar imediatamente, apenas se aplica aos factos tributários «em formação» no período tribu-tário em que inicia a sua vigência.

Não pode, a este propósito, deixar de citar, uma vez mais CARDOSO DA COSTA [26]: Um outro ponto que pode também oferecer dúvidas, e cujo

24 Excepciona-se, na generalidade, a tributação dos não residentes, feita, natural-mente, por um «imposto instantâneo ou de ou obrigação única» a propósito de cada facto tributário (o que, curiosamente, não sucede precisamente com as mais-valias, cuja tribu-tação é feita, ainda que com uma taxa proporcional, anualmente e mediante declaração do sujeito passivo). E, em alguns casos, a tributação de residentes. Mas, em relação a essas tributações, nenhum dos diplomas em causa levantou problemas de constitu-cionalidade porque se não aplicaram, sem excepção, a factos tributários ocorridos, em todos os elementos, antes da sua entrada em vigor.

25 CASALTA NABAIS, op. cit., pp. 47 e 50/53.26 Op. cit., pp. 242/243.

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esclarecimento se torna por isso igualmente indispensável, é o relativo ao funcionamento do critério enunciado no que toca aos impostos perió-dicos. A tal respeito importa atender a que estes rendimentos visam atin-gir os rendimentos de certa proveniência obtidos durante certo período; o seu pressuposto de facto é, por tanto, o exercício das actividades ou o gozo das situações durante o período considerado. Sendo assim, é claro que a lei nova que venha alterar os respectivos elementos essenciais se aplicará, sem retroactividade, nos períodos que se iniciem após a sua entrada em vigor – mesmo às actividades ou situações que os contri-buintes já antes estivessem a exercer ou de que já antes estivessem a gozar; mas, ao contrário, não deverá aplicar-se, salvo disposição nesse sentido, no próprio período em que entra em vigor – muito embora seja certo que a regra da não retroactividade permitiria no rigor dos termos que ela atingisse os rendimentos de tal período obtidos posteriormente ao início da sua vigência: é que, como sucede muitas vezes não ser fácil, ou até possível, conhecer o momento do período (a época do ano) em que os rendimentos são auferidos, e como não parece viável, por conse-guinte, sujeitar a dois regimes diferentes os rendimentos de um mesmo período, a solução apontada é a única que evita a retroactividade e que salvaguarda as expectativas dos particulares. Estamos, assim, perante uma posição matizada, que apontando para a solução maximalista da entrada em vigor da lei aparentemente retroactiva apenas no período de tributação iniciado imediatamente após a sua entrada em vigor 27 , acaba no entanto por admitir, que, no rigor dos termos, poderiam ser tribu-tados, no quadro da nova lei, os rendimentos obtidos posteriormente à sua vigência.

O falso problema que a questão suscita prende-se com a ideia, erró-nea quanto a nós, que a obtenção dos rendimentos sujeitos a IRS tem forçosamente de ser reportada a uma data terminada [28]. Tem-no, de

27 Solução que expressamente ALBERTO XAVIER contesta e de que se afasta. Cf. op. cit., pp. 202.

28 Note-se que os conceitos de «rendimentos obtidos» ou «rendimentos auferi-dos» se podem considerar conceitos indeterminados. A obtenção pode ser fi nanceira ou económica ou, até, meramente jurídica (rendimentos obtidos no vencimento dos juros, mas que não são pagos nem colocados à disposição). Para superar o problema, mas sem fundamento actual na lei do IRS, ALBERO XAVIER exprime-se sobre a natureza do rendi-

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facto, mas apenas para efeitos de retenção na fonte (cf. Artigos 98.º a 101.º do Código do IRS). Porém, a retenção de imposto na fonte traduz--se, apenas, num mecanismo de cobrança antecipada de imposto que, a fi nal, com a liquidação, há-de ser acertada. De modo algum implica a modifi cação do IRS de um imposto periódico para um imposto de obri-gação única. Ora, devendo o rendimento sujeito a IRS transformar-se num rendimento liquido global após aplicação do mecanismo de comu-nicabilidade e reporte de perdas, não se colhe razão válida para distinguir onde o legislador não distinguiu: em regra, os rendimentos fi cam sujeitos a IRS não na sua obtenção, mas a partir da sua obtenção. E só no fi nal do período de tributação se pode com certeza afi rmar o que e quanto está sujeito a tributação. Com que legitimidade se pode dizer que o subsídio de férias foi «obtido» no mês em que é pago ou colocado à disposição e não no ano fi scal em que foi pago ou colocado à disposição? O mesmo se diga de uma gratifi cação paga a um trabalhador em virtude do seu desempenho no ano anterior: em rigor, tal rendimento até deveria (e já assim foi) ser imputado ao ano anterior, por nele ter sido «gerado». E nos rendimentos empresariais ou profi ssionais, onde a realidade sujeita a tributação é, como no IRC, o lucro da actividade exercida, apurada, aliás, nos mesmos termos, por expressa remissão legal? Existe alguma legiti-

mento, como facto continuativo, entendendo como factos verifi cados ao abrigo da lei antiga «os rendimentos gerados desde o inicio do período do imposto até à data da entrada em vigor da lei nova; e, simetricamente, como factos verifi cados ao abrigo da lei nova os rendimentos gerados a partir da sua entrada em vigor» (op. cit., pp. 201). O problema é que há uma distinção jurídica fundamental entre «rendimentos gerados» e «rendimentos obtidos»: Não se obterão rendimentos que não tenham sido gerados; mas podem suceder inúmeras situações em que «rendimentos gerados» jamais cheguem a ser «obtidos». E, em IRS, estão sujeitos a tributação não os «rendimentos gerados», mas os «rendimentos obtidos» – cf. Artigo 1.º do Código. Como exemplo, daremos o mais sim-ples: se um trabalhador tiver trabalhado um ano inteiro e a entidade patronal nunca lhe tiver pago o salário, certamente que, para ele, do ponto de vista económico, se «geraram» rendimentos. Aliás, até na sua esfera jurídica se inscreveu o direito a esses rendimentos. Mas, para efeitos de IRS, não houve, nesse ano, «obtenção de rendimentos», porque o salário nunca lhe foi pago ou posto à disposição (cf. Artigo 2.º, n.º 1, do Código). E o trabalhador nunca será tributado quanto a esses rendimentos se nunca os receber ou lhe forem postos à disposição. Mas será tributado quanto a eles quando e se (não importa quantos anos depois) lhe chegarem a ser pagos ou colocados à disposição, como rendi-mentos «obtidos» nesse ano.

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midade para «diarizar», «semanalizar» ou «mensualizar» tais rendimen-tos? Com base que critérios legais? E outras interrogações semelhantes se poderiam acrescentar.

Acresce que, como já referimos, temos da incidência real uma con-cepção que não se esgota no seu aspecto material, mas que inclui, sendo incindíveis, os aspectos espacial, temporal e quantitativo [29] . E indis-cutivelmente, mesmo sem norma que expressamente o diga, porque de algum modo seria uma norma inútil, o pressuposto temporal do facto tributário em IRS (do imposto em si mesmo, e já não dos rendimentos em cada categoria considerados) também se verifi ca apenas no último dia do período de tributação. Porque até ao último segundo desse dia podem ocorrer factos extintivos, modifi cativos ou constitutivos da relação jurí-dica tributária de IRS que só nesse momento ganha verdadeira e imutável estabilidade nos seus elementos essenciais.

Em conclusão, entendemos que todos os diplomas em causa que antes enumerámos não comportam para o IRS qualquer alteração de natureza retroactiva própria ou autêntica. A haver alguma aparência de retroactividade, ela não é mais do que aparência, traduz-se no que a dou-trina denomina retroactividade de 3.º grau, imprópria ou inautêntica e não releva, consequentemente para sustentar um juízo de inconstituicio-nalidade por retroactividade a formular ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 103.º da CRP. Seja no que respeita às taxas de imposto, seja no que respeita ao caso específi co da revogação da delimitação negativa de incidência relativa às acções e obrigações.

7. Não comportando juízo de inconstitucionalidade por retroactivi-dade, poderão tais alterações legislativas violar o princípio da confi ança ínsito no princípio do Estado de Direito? Para tanto, e de acordo com a Jurisprudência do TC supra citada, é necessário que se reúnam, se verifi -quem cumulativamente, dois pressupostos essenciais:

− A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inad-missível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com

29 Cuja construção parece dever-se ao grande tributarista espanhol SAINZ DE BUJANDA, o que, de resto, ALBERTO XAVIER deixa indiciado na nota (1) a pp. 200 do seu Ma-nual, node remete para a sua obra Notas de Derecho Financiero, I, Madrid, 1967, pp. 425.

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que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda

− Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direi-tos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

A tutela jurídico-constitucional da «confi ança» passa, segundo a jurisprudência do TC, como vimos, pelo crivo de quatro testes. Em pri-meiro lugar, é necessário que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade dos regimes. Ora, quanto às taxas do IRS julga-se não ter havido nenhum comportamento do legislador susceptível de gerar nos contribuintes quaisquer expectativas de continuidade. Pelo contrá-rio, o agravamento da crise fi nanceira e do défi ce orçamental tornaram perceptível a inevitabilidade de um aumento de impostos e que existia uma forte probabilidade de esse aumento vir a incidir no IRS e no IVA. Quanto à tributação das mais-valias das acções e obrigações, e depois dos inúmeros relatórios produzidos por Grupos de Peritos (desde o deno-minado Relatório Silva Lopes – 1996, até ao Relatório do Grupo para o Estudo da Política Fiscal – 2009), era mais que expectável que o legis-lador iria pôr fi m de vez, depois de uma tentativa gorada (2001), mais tarde ou mais cedo, a uma verdadeira aberração que se mantinha, desde o início da sua vigência, no Código do IRS. Aliás, a medida já tinha sido anunciada pelo Governo para 2011, apenas se tendo verifi cado aqui a mera antecipação de um ano na sua adopção.

Em segundo lugar, depois, devem tais expectativas ser legítimas, justifi cadas e fundadas em boas razões. Sendo o rendimento igual e devendo, em princípio ser tratado do mesmo modo, seja qual for a sua origem ou fonte, jamais, em nosso entender, se pode ter como legitima, justifi cada e fundada em boas razões a imutabilidade de uma situação de não tributação de um rendimento que o deveria ser. Por razões, também, de equidade, tanto vertical como horizontal. Aliás, poder-se-ia talvez dizer é que a norma que no Código do IRS consagrava uma falsa delimi-tação negativa de incidência, que em rigor era uma isenção disfarçada,

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não respeitava, sem razão justifi cante, o princípio da universalidade, aplicado aos rendimentos dos contribuintes residentes em território por-tuguês e não respeitava o princípio da imitação temporal da vigência dos benefícios fi scais não estruturais. Este teste não é ultrapassado, como decorrência lógica do que antes fi cou dito e que se nos afi gura incontes-tável do ponto de vista da realidade que se está a analisar.

Em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual. Já se viu que não existiam razões sustentáveis para, numa situação agra-vada de crise fi nanceira, de défi ce público elevado e de nula ou fraca recuperação económica, os contribuintes terem feitos planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual. Pelo contrário, os sinais que foram dados apontavam todos no sentido de uma descontinuidade do comportamento estadual em matéria de agravamento dos impostos, independentemente da modalidade que aquele agravamento viesse a revestir.

Por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifi quem, em ponderação, a não continuidade do com-portamento que gerou a situação de expectativa. Neste domínio, nem é preciso – abdicando, naturalmente, de um juízo de equidade sobre a repartição dos encargos – referir mais razões de interesse público que justifi quem, em ponderação, a não continuidade do comportamento, se se tivesse dado como comprovado, que gerou a situação de expectativa. Entendemos que tal comportamento não se verifi cou. Mas ainda que se tivesse verifi cado, a situação das fi nanças públicas nacionais, nomeada-mente o défi ce orçamente e a imperativa necessidade da sua redução, é de tal modo «insustentável» que bem consubstancia as razões de inte-resse público que justifi cariam plenamente, em ponderação, a não conti-nuidade de tal comportamento.

Por isso, também aqui nos parece ter cabimento e relevar o que se disse no Acórdão n.º 287/90 – e importa ter este dito presente no caso – que, em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das leis, “não há (…) um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manu-tenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativa-mente a factos complexos já parcialmente realizados”.

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8. A última questão sobre que nos propomos opinar é a relativa à disposição do n.º 2 do artigo 12.º da Lei Geral Tributária e a tese aqui defendida. De facto, assumimos, designadamente com FREITAS PEREIRA [30], alguma difi culdade de interpretação de tal norma, no que se refere ao sentido a dar a «período de tributação». Mas admitindo, até porque a tese do «período de tributação seguinte» não teria em conta a «autoreversibilidade das leis» e constituiria um obstáculo inadmissível à livre iniciativa do legislador, que se trata da consagração da teoria do pro rata temporis (aplicação proporcional ao período de vigência de cada lei). Lamentamos ter de afi rmar, categoricamente, que, no que se refere a um imposto periódico progressivo, com progressividade por escalões, como é o IRS, tal norma é impraticável, é insusceptível de aplicação. Fundamentalmente, porque incompleta: nada diz sobre como se distri-buiriam rendimentos e deduções por cada período de tributação e, mais grave, não responde à questão de saber como se garante, e se é que se garante ou há obrigação de garantir, uma tributação que, ainda que feita pro rata temporis, respeite a progressividade anual do imposto.

No caso que estamos a analisar, e considerando apenas as taxas, haveria já que fazer quatro tributações pro rata temporis: a primeira, desde 1 de Janeiro até à entrada em vigor da lei do Orçamento de Estado para 2010 (com as taxas do OE/2009); a segunda, com as taxas do OE/2010, até à entrada em vigor da tabela de taxas aprovada pela Lei n.º 11/2010, de 15 de Junho; a terceira, com as taxas aprovadas pela Lei n.º 11/2010 e as taxas aprovadas pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho; e a quarta com as taxas aprovadas pela lei n.º 12-A/2010. Se se considerar a questão da tributação das mais valias, conjugada com a das taxas, provo-caria a necessidade de uma quinta tributação. Se se considerar a questão da tributação das mais-valias sem a sucessão das taxas, então teremos duas tributações pro rata temporis.

Para além da manifesta impraticabilidade administrativa de, em relação ao mesmo ano, serem efectuadas tantas liquidações (sobretudo se se levar ao limite o «rigor» invocado por alguns quanto ao momento da obtenção dos rendimentos, a que deve juntar-se o mesmo «rigor»

30 Op. cit., pp. 211. Aliás, parece claro que a «fonte» desta norma foi a tese de ALBER-TO XAVIER (Manual, pp. 202), como, de resto, refere LIMA GUERREIRO, António, in Lei Geral Tributária, Anotada, Rei dos Livros, Lisboa, 2000, pp. 90/91.

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para as deduções), o problema material, que a LGT não resolve, é o de saber se a progressividade é determinada liquidação a liquidação (o que consideramos violaria o princípio da progressividade anual do imposto e trataria manifestos efeitos nocivos à economia dos impostos e à própria equidade da tributação) ou se é determinada pela totalidade do rendimento anual e, sendo, com que método ou critério se «redistribui-ria» por cada um dos períodos de tributação.

Não basta, quanto a nós, legislar e invocar normas legisladas. Torna-se, a nosso ver, e de modo integrado, tentar apreender quais os efeitos de tal invocação e reconhecer se estamos ou não perante soluções praticáveis.

Pelo que fi ca exposto, a aplicação das alterações legislativas ao IRS pro rata temporis, eventualmente defensável face ao n.º 2 do artigo 12.º do LGT é, para nós, uma questão que nem sequer se coloca, não apenas por impraticabilidade – o que só por si já seria sufi ciente – mas, substan-cialmente, porque a solução em causa não está completada, legislativa-mente, com a modalidade de salvaguarda do princípio, que consideramos preeminente, da progressividade anual do imposto, como decorrência do disposto no artigo 104.º n.º 1 da CRP.

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Clotilde Celorico Palma

O Código de Conduta da fi scalidade das empresase a boa governança fi scal – O futuro

do Grupo de trabalho

Clotilde Celorico Palma

Professora Universitária. Docente no IDEFF. Advogada.

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RESUMO

Neste artigo procede-se a uma análise da recente Comunicação da Comissão sobre a boa governança fi scal e do futuro do Grupo do Código de Conduta da fi scalidade das empresas, concluindo-se que o Grupo deverá prosseguir os seus trabalhos.

Palavras-chave:Grupo do Código de CondutaBoa governança fi scal

ABSTRACT

This article offers an analysis of the recent Commission Communication on Good Governance in Tax Matters and the future role of the EU Code of Conduct group for business taxation, which leads to the conclusion that this group should develop is work.

Keywords:EU Code of Conduct group for business taxation Good Governance in Tax Matters

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1. Evolução dos trabalhos do Grupo do Código de Conduta

Há muito que não se ouvem notícias sobre os trabalhos do Grupo do Código de Conduta da Fiscalidade das Empresas. Depois de entregue o famoso Relatório Primarolo em 1998, o Grupo dedicou-se ao rollback das medidas “qualifi cadas” como prejudiciais e ao acompanhamento do standstill relativamente a eventuais novas medidas1. Alguns Estados membros procederam à alteração das respectivas medidas qualifi cadas como prejudiciais de forma mais ou menos expedita (o que nos leva a questionar se houve efectivamente um desmantelamento de certos regi-mes). O certo é que houve um reajustamento dos regimes existentes e se conceberam novos regimes supostamente inócuos na perspectiva do Código. Em suma, as regras do jogo alteraram-se e a concorrência fi scal assumiu novas formas. Como em tudo na vida, houve ganhadores e per-dedores e os dados não foram lançados em vão…

Com a adesão de novos Estados membros o exercício de qualifi -cação das medidas foi repetido. Os dados ofi ciais indicam-nos que, nos termos do Código, cujos destinatários são os Estados membros e os seus territórios dependentes ou associados, foram avaliadas mais de 400 medidas relativas à fi scalidade das empresas, tendo 100 delas sido revo-gadas ou alteradas, por terem sido consideradas prejudiciais.

A questão que se suscitou seguidamente foi, naturalmente, a de saber qual o destino do Grupo. Deveria subsistir ou pura e simplesmente o seu escopo ter-se-ia esgotado? As opiniões dividiram-se. Houve quem defendesse convictamente a extinção do Grupo, sendo o mais veemente paladino a delegação belga. Venceu, contudo, uma posição de defesa da respectiva manutenção, dado, nomeadamente, o interesse em manter os trabalhos de controlo da concorrência fi scal prejudicial, nomeadamente o acompanhamento do desmantelamento efectivo das medidas qualifi -cadas enquanto tal e o congelamento de novas medidas. Mas o interesse da manutenção deste Grupo não se esgota nestas questões. Existem uma série de questões relacionadas, directa ou indirectamente, com esta temá-tica. Desde logo, todas as que se encontram relacionadas com os critérios de identifi cação dos regimes prejudiciais, como, por exemplo, a aplica-

1 O Relatório Primarolo veio a ser publicado entre nós pelo Centro de Estudos Fiscais nos Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n.º 185 de 2000.

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ção de cláusulas anti-abuso, nomeadamente as regras sobre preços de transferência e, naturalmente, a questão da transparência e dos acordos sobre trocas de informações. Para além disso, nunca se procedeu a uma revisão do Código, conforme o previsto no respectivo ponto N. Deverá o Código ser revisto e alargado, por exemplo, à tributação das pessoas singulares ou à tributação indirecta?2 Trata-se de questões muito sensí-veis. Também nunca se concretizou o princípio previsto no ponto M do Código, segundo o qual o Conselho considera desejável que os princí-pios do Código se devem adoptar numa base geográfi ca o mais ampla possível, pelo que, para este efeito, os Estados membros se comprome-tem a promover a respectiva adopção em países terceiros e nos territórios aos quais o Tratado não se aplica. Sempre nos questionámos quanto ao âmbito de aplicação do Código e à inércia do Grupo relativamente à adopção do previsto no ponto M, situação que, obviamente, é geradora de distorções de concorrência3.

2 Sobre esta matéria e o Código de Conduta da Fiscalidade das Empresas veja-se, entre nós, António Carlos dos Santos, “A posição portuguesa face à regulação comuni-tária da concorrência fi scal”, Conferência sobre Fiscalidade Internacional, Universidade Nova, Lisboa, 12 e 13 de Março de 2002, publicada no livro Planeamento e concorrência fi scal internacional, Fisco 2002.

3 Sobre esta matéria e o Código de Conduta da Fiscalidade das Empresas veja--se, entre nós, António Carlos dos Santos, L’Union européenne et la régulation de la concurrence fi scale, tese de doutoramento publicada pela Bruylant, 2009, “A posição portuguesa face à regulação comunitária da concorrência fi scal”, op. cit., “Point J of the Code of Conduct or the Primacy of Politics over Administration”, European Taxation, vol. 40, n.º 9, 2000, António Carlos dos Santos e Clotilde Celorico Palma, “A regulação internacional da concorrência fi scal nefasta”, Ciência e Técnica Fiscal n.º 395, Julho--Setembro de 99, Clotilde Celorico Palma, “A OCDE, a concorrência fi scal prejudicial e os paraísos fi scais: Novas formas de discriminação fi scal?”, Ciência e Técnica Fiscal n.º 403, Julho-Setembro de 2001, “O combate à concorrência fi scal prejudicial – Algumas refl exões sobre o Código de Conduta comunitário da Fiscalidade das Empresas”, Fis-cália, Setembro de 99, n.º 21, “A concorrência fi scal sob vigilância: Código de Conduta comunitário da Fiscalidade das Empresas versus Relatório da OCDE sobre as Práticas da Concorrência Fiscal Prejudicial”, Revisores & Empresas, Jan/ Mar/99, “A OCDE, a concorrência fi scal prejudicial e os paraísos fi scais: Novas formas de discriminação fi scal?”, Revista TOC n.º 16, Julho de 2001, “A OCDE e o combate às Práticas da Con-corrência Fiscal Prejudicial: ponto de situação e perspectivas de evolução”, Fiscalidade n.º 16, Outubro de 2003, “Código de Conduta da Fiscalidade das Empresas – O desa-fi o dos novos Estados membros”, in 15 anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Jornadas

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O certo é que o ritmo de trabalhos foi sucessivamente abrandando durante a Presidência da Ministra inglesa Dawn Primarolo que condu-ziu os destinos deste Grupo desde a sua constituição em 1998 até 2007, quando deixou a pasta do Orçamento para assumir a pasta da Saúde. A sua sucessora no cargo, Jane Kennedy, também esteve por pouco tempo e não foi particularmente vigorosa de forma a dar um novo elán a um Grupo que se tornara, sucessivamente, pouco entusiasmante. Longe iam os tempos das reuniões que avançavam sem tradutores para o dia seguinte e em que os jantares se resumiam a umas sandes mal digeridas entre as discussões fervorosas dos diversos regimes que estiveram a ser analisados. Para quem assistiu ao desenvolvimento dos trabalhos deste Grupo, este dir-se-ia quase moribundo, perdido num cínico exercício de interesses entre os grandes e os pequenos Estados membros.

2. O impacto da crise económica nos trabalhos da concorrência fi scal prejudicial

Com a crise económica houve um recrudescimento dos trabalhos do Grupo do Código de Conduta da Fiscalidade das Empresas e do Fórum da OCDE para as Práticas da Concorrência Fiscal Prejudicial. Volta a lan-çar-se com vigor o repto da necessidade efectiva de uma troca de infor-mações e de sanções contra a opacidade. O G20 empenha-se no assunto e assiste-se à assinatura de diversos acordos de troca de informações baseados no modelo OCDE de 2002 e à renegociação de antigas conven-ções para evitar a dupla tributação com acolhimento da nova redacção conferida ao artigo 26.º da Convenção modelo da OCDE4. Assistimos,

de homenagem ao Professor Pitta e Cunha, Almedina, Novembro 2005, “O controlo da concorrência fi scal prejudicial na União Europeia: dois pesos duas medidas?”, Boletim informativo da Sociedade de Desenvolvimento da Madeira, n.º11, Outubro/Novembro 2005, “O controlo da concorrência fi scal prejudicial na União Europeia – ponto de situ-ação dos trabalhos do Grupo do Código de Conduta”, livro de homenagem ao Professor Xavier de Basto, Coimbra Editora, Abril de 2006, e Freitas Pereira, “Concorrência Fiscal Prejudicial – O Código de Conduta da União Europeia”, Ciência e Técnica Fiscal n.º 390, Abril-Junho 98.

4 Sobre o papel da crise económica e acção do G20, veja-se Amaral Tomaz, “A reunião do G20 de 2 de Abril de 2009 e o futuro dos paraísos fi scais”, Revista de Finan-

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quase incrédulos, a uma mudança de atitude por parte de países como a Suíça, o Liechtenstein, Andorra e o Mónaco. De tal forma que a lista dos paraísos fi scais não cooperantes da OCDE está em branco, tendo sido substituída pela famosa lista do G20 em permanente evolução. Boas novas? Aparentemente…Não nos poderemos esquecer que uma coisa é a assunção de um compromisso, outra o seu cumprimento efectivo. Como nos poderemos assegurar que todos os acordos entretanto assinados irão realmente concretizar-se em trocas de informações atempadas e úteis?

Neste contexto, qual será o futuro do Grupo do Código de Conduta?Ultimamente, já sob a presidência do Director Geral dos Impos-

tos austríaco Noltz, o Grupo alargou os seus trabalhos à área das medi-das anti-abuso, tendo sido constituído um subgrupo para o efeito cuja primeira reunião ocorreu em Outubro de 2009. Trata-se, no fundo, de implementar as preocupações suscitadas pela Comissão, em particular, na sua Comunicação de 2007 sobre a matéria5.

ças Públicas e de Direito Fiscal, Ano II, n.º2, Julho de 2009. Como conclui, a p. 41, “Em resumo, não é pacífi co antecipar o que vamos ter pela frente no domínio da utilização dos paraísos fi scais para evitar o pagamento dos impostos devidos. Parece no entanto de concluir que, após o G20, nada será como de antes. A ‘crise’ que tem ‘costas largas’ poderá também contribuir, pela positiva, para que não se repitam os erros do passado e para alterar o paradigma que serve de modelo aos paraísos fi scais: a opacidade e o sigilo bancário”.

5 Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu e ao Comité Económico e Social Europeu – A aplicação de medidas anti-abuso na área da tributa-ção directa – na UE e em relação a países terceiros, COM/2007/0785 fi nal, de 10 de Dezembro de 2007. Sobre esta matéria veja-se, da autora, “A Comunicação da Comissão Europeia sobre a aplicação de medidas anti-abuso”, Revista da Câmara dos Técnicos Ofi ciais de Contas n.º 114, Setembro 2009.

Como se salienta nesta Comunicação, a Comissão está interessada em explorar mais pormenorizadamente a possibilidade de soluções coordenadas específi cas, em estreita cooperação com os Estados membros, com vista a: (i) desenvolver defi nições comuns de “abuso” e de “expedientes puramente artifi ciais”, tendo em vista uma orienta-ção quanto à aplicação desses conceitos no domínio dos impostos directos; (ii) melhorar a cooperação administrativa para detectar e neutralizar mais efi cazmente os abusos e esquemas fi scais fraudulentos; (iii) partilhar as melhores práticas que sejam compatíveis com o direito comunitário, em particular para garantir a proporcionalidade das medi-das anti-abuso; (iv) reduzir potenciais discrepâncias que resultem numa não tributação involuntária; e (v) garantir uma melhor coordenação das regras anti-abuso em relação a países terceiros.

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Por outro lado, procedeu-se à actualização do estudo de 1999 sobre práticas administrativas, em especial, sobre a aplicação de um sistema de rulings por parte dos Estados membros e fi zeram-se trabalhos sobre os critérios da transparência e da troca de informações em matéria de regras sobre preços de transferência. Um outra preocupação recente a assinalar que fi cou acordada no plano de trabalhos aprovado no Ecofi n de 2 de Dezembro de 2008, é a da extensão das regras do Código a países tercei-ros, questão que assume particular melindre e que deverá ser adoptada progressivamente. Desde logo suscita-se a questão de saber como vincu-lar países terceiros a um compromisso comunitário de natureza política. Como reforçar os argumentos que visam convencer as outras jurisdições a estabelecerem uma cooperação administrativa efi caz e efectiva com a UE?

Como é sabido, este exercício relativamente a países terceiros foi já levado a efeito no contexto dos trabalhos da OCDE sobre as práticas da concorrência fi scal prejudicial, prevendo-se um conjunto de sanções (medidas coordenadas e unilaterais) que deverão ser adoptadas pelos paí-ses membros6.

Se o trabalho levado a cabo pela OCDE, por um lado, pretendeu recensear, com vista ao seu desmantelamento, os regimes fi scais prefe-renciais dos seus 30 países membros, com base em critérios similares (embora com um âmbito de aplicação mais limitado) aos previstos pelo Código de Conduta, por outro, alargou o seu trabalho a países não mem-bros, incluindo alguns «paraísos fi scais», tendo obtido o compromisso político de várias destas jurisdições quanto a uma cooperação leal com os países membros no tocante à transparência e ao intercâmbio de infor-mações em questões fi scais. O certo é que, prevendo-se que na reunião do G20 de 2 de Abril de 2009 seria redigida uma lista das jurisdições em que não tivessem sido alcançados progressos sufi cientes na aplicação das normas fi scais internacionais desenvolvidas pela OCDE, diversas jurisdi-ções, nomeadamente a Suíça, a Áustria, a Bélgica, o Luxemburgo, Hong--Kong, Macau, Singapura, Chile, Andorra, Liechtenstein e o Mónaco, comprometeram-se recentemente a também cumprir as referidas normas. Estes compromissos referem-se essencialmente ao respeito das normas

6 A este propósito veja-se, da autora, “A OCDE e o combate às Práticas da Concor-rência Fiscal Prejudicial: ponto de situação e perspectivas de evolução”, op. cit.

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internacionais da OCDE, que requerem o intercâmbio de informações, a pedido, em todos as questões fi scais relacionadas com a administração e com a aplicação da legislação fi scal nacional, independentemente de requisitos de interesse nacional ou de sigilo bancário para fi ns fi scais na jurisdição em causa. As normas da OCDE prevêem igualmente medidas de salvaguarda extensivas para proteger a confi dencialidade do inter-câmbio de informações7.

O Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes (que conta actualmente com 91 países, incluíndo todos os países do G20, da OCDE e todos os centros offshore), tem um mandato de 3 anos para avaliar os regimes dos membros e de outras jurisdições que requeiram particular atenção. A OCDE actualmente está empenhada em associar outros países aos trabalhos, como Argentina, China, Índia, e África do Sul, em implementar programas de assistência técnica aos países e em desenvolver um sistema de avaliação da implementação dos acordos sobre troca de informações de forma a analisar as questões da efectividade da troca de informações (disponibilidade, acesso e troca das informações).

Note-se que actualmente não consta qualquer país da lista dos para-ísos fi scais não cooperantes da OCDE (os 3 paraísos fi scais não coope-rantes que restavam: Andorra, Liechtenstein e Mónaco, assumiram em Março de 2009 os standards de troca de informações), tendo tal lista sido substituída pela lista do G20 elaborada em colaboração com a OCDE.

A lista do G20 tem três níveis: o das jurisdições que implementa-ram substancialmente os standards internacionais de troca de informa-ções (lista branca – caso tenham celebrado pelo menos 12 ADTs com países membros da OCDE)8; o das jurisdições que se comprometeram com os standards internacionais de troca de informações mas que ainda

7 Na sequência da cimeira do G20, a OCDE apresentou um relatório sobre a apli-cação das normas fi scais internacionais pelas jurisdições que são objecto de um acompa-nhamento pelo Fórum Mundial da OCDE.

8 Os standards internacionais de troca de informações estavam inicialmente pre-vistos no artigo 26.º da Convenção Modelo da OCDE e no Acordo Modelo de 2002 da OCDE para a Troca de Informações Fiscais. Os standards foram adoptados em 2004 pelo G20 na sua reunião de Berlim, e pelo UN Committee of Experts on International Cooperation in Tax Matters em Outubro de 2008 e servem de modelo a cerca de 3600 convenções bilaterais celebradas entre países da OCDE e não pertencentes à OCDE.

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não os implementaram substancialmente (lista cinzenta), e o das juris-dições que não se comprometeram com os standards internacionais de troca de informações (lista negra). Actualmente, a lista do G20 de Abril de 2010 (a primeira era de Abril de 2009), não tem na lista negra nenhuma jusrisdição que pertença ao Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes. Com efeito, as jurisdi-ções do Global Forum que constavam da lista negra em Abril de 2009, comprometeram-se a implementar os standards (Costa Rica, Malásia, Filipinas e Uruguai). Por outro lado, 25 jurisdições passaram para a lista branca – Andorra, Anguilla, Antigua and Barbuda, Aruba, Áustria, The Bahamas, Bélgica, Bermuda, British Virgin Islands, Bahrain, Cayman Islands, Chile, Gibraltar, Liechtenstein, Luxemburgo, Malásia, Mónaco, Netherlands Antilles, St. Kitts and Nevis, St. Vincent and the Grenadi-nes, Samoa, San Marino, Singapura, Suíça e as Ilhas Turks and Caicos. Em 2009 os standards foram assumidos pela Áustria, Bélgica, Luxem-burgo e Suíça, que levantaram a sua reserva ao artigo 26.º da Convenção modelo da OCDE. Todos os países não OCDE que tinham uma reserva ao referido artigo da Convenção modelo levantaram-na, incluindo o Bra-sil, o Chile e a Tailândia. Só em 2009 foram assinados 200 TIEAs e 110 ADTs.

3. A Comunicação da Comissão para promover a boa governança em questões fi scais

A 28 de Abril de 2009, a Comissão apresentou uma Comunicação para promover a boa governança em questões fi scais9.

Mas, afi nal, o que é que se pretende com esta Comunicação e qual a sua relação com os trabalhos da concorrência fi scal prejudicial, em par-ticular, com o Código de Conduta? A Comunicação pretende lançar uma refl exão sobre uma série de medidas para promover a boa governança na área fi scal, que implica acções a desenvolver quer ao nível interno quer externo da UE, bem como ao nível de cada Estado membro. Conforme a Comissão salienta, tendo em consideração o pleno respeito pelo princí-

9 COM (2009) 201 fi nal.

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pio da subsidiariedade, deve ser assegurada uma maior coerência entre as posições individuais dos Estados membros nas instâncias internacionais em matéria fi scal e os princípios de boa governança acordados, como os consagrados nas convenções fi scais bilaterais com os países terceiros e nas instâncias internacionais. Ora, este objectivo requer um maior grau de coordenação a nível comunitário. Neste contexto, a Comissão pre-tende manter um diálogo construtivo com todas as partes interessadas sobre os princípios e a aplicação prática das medidas previstas na Comu-nicação e, ainda no decurso deste ano, reapreciará a situação e apresen-tará um relatório.

Tal como se salienta, a ameaça crescente que os orçamentos e os sistemas fi scais nacionais sofrem no actual contexto de crise fi nanceira e económica, fez da necessidade de cooperação fi scal e da adopção de normas comuns ao nível internacional (ou seja, da «boa governança na área fi scal») um assunto recorrente dos debates internacionais.

A globalização apresenta vantagens de desvantagens. Ora, do ponto de vista fi scal, regista-se um aumento preocupante da fraude e evasão fi scais10.

Neste contexto, a preocupação centraliza-se nos «paraísos fi scais» e nos centros fi nanceiros internacionais insufi cientemente regulados que se recusam aceitar os princípios de transparência e de intercâmbio de informações. Em causa está, essencialmente, a opacidade de determi-nados regimes. Segundo uma estimativa da OCDE realizada no fi nal de 2008, os vários paraísos fi scais ao nível mundial atraíram entre 5 e 7 bilhões de dólares de activos, embora o grau de sigilo relativo a estas contas torne difícil determinar com exactidão os montantes localizados em cada uma destas jurisdições.

Face a este cenário, na perspectiva da UE, dever-se-á celebrar acor-dos com países terceiros numa base geográfi ca o mais ampla possível, tendo em vista a adopção de normas comuns e a cooperação, nomeada-mente, em questões fi scais. Fala-se, assim, na promoção de sistemas fi s-cais justos e efi cazes, necessária não apenas para garantir a equidade das

10 Sobre esta questão e em particular no tocante ao Imposto sobre o Valor Acres-centado, veja-se, nomeadamente, Miguel Silva Pinto, “A luta contra a fraude ao IVA na União Europeia, desenvolvimentos”, Revista de Finanças Públicas e de Direito Fiscal, Ano II, n.º 2, Julho de 2009.

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relações económicas, do comércio e do investimento, como para consti-tuírem a base fi nanceira de todas as despesas públicas.

É neste contexto que se fala na boa governança na área fi scal, não apenas como um meio essencial para combater a fraude e a evasão fi s-cais transfronteiras, mas igualmente para reforçar a luta contra o bran-queamento de capitais, a corrupção e o fi nanciamento do terrorismo. Os ministros das Finanças da UE, no Ecofi n de 14 de Maio de 2008, consideraram os princípios da transparência, do intercâmbio de infor-mações e da concorrência fi scal leal como os elementos que defi nem a boa governança na área fi scal. As palavras de ordem passaram a ser três: a transparência, o intercâmbio de informações e a concorrência leal em matéria fi scal.

É neste três aspectos fortemente interligados que os Estados mem-bros se devem concentrar e adoptar medidas coordenadas. Não sendo exactamente o mesmo interrelacionam-se profundamente, sendo a troca de informações o aspecto crucial. Não há transparência nem concorrên-cia leal sem troca de informações11.

Os países do G20, no seu plano de acção de Novembro de 2008, concordaram em trabalhar na aplicação internacional de regras de trans-parência em questões fi nanceiras e de cooperação administrativa na área fi scal. No documento que apresentaram na reunião do Conselho Euro-peu de Dezembro de 2008, os Ministros das Finanças da UE apelaram à continuação da luta contra os riscos fi nanceiros ilícitos decorrentes da falta de cooperação de certas jurisdições e contra os paraísos fi scais. Na contribuição para a reunião dos Ministros e dos Governadores dos Ban-cos Centrais do G20 de 14 de Março de 2009, os Ministros das Finanças da UE sublinharam a necessidade de se proteger o sistema fi nanceiro contra jurisdições pouco transparentes, não cooperantes e dotadas de legislação pouco rigorosa, solicitaram a criação de um «conjunto de san-

11 Neste contexto veja-se o que defendeu a Administração Bush no domínio do Fórum da OCDE para as Práticas da concorrência fi scal prejudicial. Sobre esta questão veja-se, da autora, “O controlo da concorrência fi scal prejudicial na União Europeia: dois pesos duas medidas?”, op. cit., “A OCDE e os paraísos fi scais: uma brecha num equilíbrio desequilibrado”, Semanário Económico, 5 de Novembro de 2003, “A OCDE, a concorrência fi scal prejudicial e os paraísos fi scais: Novas formas de discriminação fi scal?”, op. cit.

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ções» e sublinharam a necessidade de intensifi car as «acções destinadas a alcançar uma boa governança internacional na área fi scal». O Conselho Europeu de 19 e 20 de Março de 2009 confi rmou esta linha de acção. Na cimeira do G20 de Londres de 2 de Abril de 2009, os lideres, decla-rando que «a era do sigilo bancário tinha terminado», comprometeram--se a «tomar medidas contra as jurisdições não cooperantes, incluindo os paraísos fi scais» e manifestaram-se «prontos a aplicar sanções para proteger as (suas) fi nanças públicas e os (seus) sistemas fi nanceiros», É neste contexto que a Comunicação visa recensear a contribuição concreta da UE para a boa governança na área da fi scalidade directa, tendo em atenção como pode ser melhorada a governança na UE e os instrumentos especiais de que a União Europeia e os Estados membros dispõem para promover a boa governança ao nível internacional, e as possibilidades de uma acção dos Estados membros mais coordenada, para apoiar, simplifi -car e complementar as medidas adoptadas por outras instâncias interna-cionais como a OCDE e a ONU.

Neste âmbito, no que se reporta às diversas acções para promo-ver a uma melhor governança em matéria fi scal na UE apontam-se os seguintes domínios: (i) Cooperação administrativa, nomeadamente atra-vés do intercâmbio de informações, onde se indicam a Directiva relativa à assistência mútua12, a Directiva relativa à cobrança de créditos fi scais13 e a Directiva relativa à tributação dos rendimentos da poupança14; (ii) Concorrência fi scal prejudicial, onde ressalta o Código de Conduta da Fiscalidade das Empresas; (iii) Auxílios de Estado15 e (iv) Transparência.

12 Directiva 77/799/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1977, com a redac-ção que lhe foi dada pela

Directiva 2004/56/CE do Conselho, de 21 de Abril de 2004, que prevê o intercâm-bio de informações em matéria de tributação directa entre as autoridades fi scais.

13 Directiva 2008/55/CE do Conselho, de 26 de Maio de 2008, que institui um regime de acordo com o qual um Estado membro pode solicitar a assistência de outro em matéria de cobrança de créditos respeitantes a impostos, direitos e quotizações.

14 Directiva 2003/48/CE do Conselho de 3 de Junho de 2003, que permite a troca automática de informações entre as administrações fi scais e abrange exclusivamente os rendimentos da poupança sob a forma de juros pagos a pessoas singulares.

15 Salientando-se a Comunicação da Comissão 98/C 384/03, Jornal Ofi cial C384 de 10.12.1998, e o «Relatório sobre a implementação da Comunicação da Comissão

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3.1. Debates internacionais relativos à cooperação fi scal

Tal como se salienta, o trabalho da UE para a melhoria da coope-ração fi scal refl ecte muitos dos princípios que implicitamente, desde há vários anos, têm regido a acção da OCDE contra a concorrência fi scal prejudicial.

A «Declaração de Doha para o fi nanciamento do desenvolvimento», adoptada no âmbito da Conferência Internacional de Acompanhamento sobre o Financiamento do Desenvolvimento, organizada pelas Nações Unidas para examinar a aplicação do Consenso de Monterrey, consagra compromissos fi rmes em matéria de reforma fi scal e defende que sejam empregues esforços no sentido de aumentar as receitas fi scais através de sistemas fi scais modernizados, de uma cobrança de impostos mais efi caz, do alargamento da matéria colectável e do combate efi caz contra a evasão fi scal16.

A política da UE no domínio da boa governança na área fi scal evo-luiu ao longo dos anos com base numa série de iniciativas da Comissão, que permitiram a adopção de conclusões nesta matéria pelos Ministros das Finanças da UE.

O Conselho Ecofi n reconheceu a necessidade de promover, numa base geográfi ca tão ampla quanto possível, os princípios de boa gover-nança na área fi scal. Por esta razão, solicitou que fosse incluída uma disposição sobre a boa governança na área fi scal nos acordos pertinentes celebrados pela UE e pelos seus Estados membros com países tercei-ros ou grupos de países terceiros. O objectivo desta medida não é lutar contra paraísos fi scais enquanto tais, mas chegar a acordo com o maior número possível de países terceiros sobre princípios comuns em matéria de cooperação e de transparência.

Por outro lado, na sua contribuição para o Conselho Europeu de Dezembro de 2008, o Conselho Ecofi n deu um impulso adicional a esta medida ao comprometer-se, em conformidade com o trabalho realizado a nível internacional em várias instâncias, a prosseguir a luta contra os riscos fi nanceiros ilícitos com origem em jurisdições não cooperantes e

sobre a aplicação das regras relativas aos auxílios estatais às medidas que respeitam à fi scalidade directa das empresas», C (2004) 434 de 9.2.2004.

16 Declaração de Doha, de 29 de Novembro a 2 de Dezembro, 2008.

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contra os paraísos fi scais. Neste contexto, apela-se para que os Estados membros adoptem o mais rapidamente possível as propostas apresenta-das pela Comissão sobre as directivas relativas à cooperação administra-tiva, à assistência mútua em matéria de cobrança de créditos respeitan-tes a impostos e à tributação dos rendimentos da poupança, bem como para que continuem a dar a prioridade adequada ao desmantelamento dos regimes fi scais prejudiciais no domínio da fi scalidade das empresas17.

3.2. Acções em curso na UE

Quanto a acções em curso, a UE adoptou uma série de acções em diferentes áreas a fi m de garantir a adesão dos países terceiros aos prin-

17 Em Fevereiro de 2009, a Comissão apresentou uma proposta para substituir a directiva actualmente em vigor em matéria de assistência mútua (COM (2009) 29, de 2 de Fevereiro de 2009). Esta proposta, além de prever novos instrumentos práticos para intensifi car a cooperação administrativa (organização, formulários, modelos e canais comuns), introduz dois novos elementos importantes que a Comissão considera indis-pensáveis para reforçar a acção da UE a nível internacional contra a fraude e a evasão fi scais. Em primeiro lugar, estabelece uma cláusula de nação mais favorecida, nos termos da qual os Estados membros seriam obrigados a prestar a outro Estado membro o nível de cooperação que aceitaram em relação a um país terceiro. Em segundo, e de maior importância, a proposta proíbe que os Estados membros invoquem o sigilo bancário para não residentes como fundamento da recusa de fornecerem informações relativas a um contribuinte ao seu Estado membro de residência.

Em simultâneo com a proposta relativa à assistência mútua, a Comissão apresen-tou outra proposta para substituir a directiva em vigor relativa à cobrança de créditos fi scais (COM (2009) 28, de 2 de Fevereiro de 2009). Esta proposta visa aumentar a efi cácia da assistência, reforçando a capacidade de cobrança dos impostos não pagos pelas administrações fi scais, contribuindo, assim, para a luta contra a fraude fi scal. Esta proposta foi aprovada, tendo dado origem à Directiva 2010/24/EU, de 16 de Março de 2010, relativa à assistência mútua em matéria de cobrança de créditos respeitantes a impostos, direitos e outras medidas, publicada no JO n.º L 84/1, de 31.03.2010.

Em 2008, a Comissão apresentou uma proposta que tinha por objectivo alterar a Directiva relativa à tributação da poupança (COM (2008) 727, de 13 de Novembro de 2008), alargando o âmbito de aplicação desta directiva a alguns pagamentos de juros a residentes da UE efectuados através de estruturas intermediárias isentas de imposto esta-belecidas em países que não são membros da UE. Nesta proposta são igualmente feitas outras sugestões para melhorar as medidas sobre tributação da poupança.

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cípios de boa governança ou a outros princípios conexos. Neste con-texto indica-se, nomeadamente, a tributação dos rendimentos da pou-pança18, as relações com os países do Espaço Económico Europeu (EEE) (Islândia, Liechtenstein e Noruega) e com a Suíça19, a política de alar-gamento20, a aplicação das conclusões do Conselho Ecofi n de Maio de 2008, e a política de cooperação para o desenvolvimento, tendo em vista a prestação de apoio aos países em vias de desenvolvimento dispostos a aderir aos princípios da boa governança, nomeadamente na área fi scal21.

18 Em alguns países terceiros e em territórios dependentes ou associados dos Esta-dos membros, alguns dos quais foram já identifi cados pela OCDE como paraísos fi scais, são aplicadas medidas fi scais similares ou equivalentes às consagradas na Directiva rela-tiva à tributação dos rendimentos da poupança. Além disso, tendo em vista a aplicação de disposições equivalentes às previstas na Directiva relativa à tributação dos rendimentos da poupança, a Comissão, com base num mandato do Conselho Ecofi n, conduziu nego-ciações exploratórias com Hong-Kong, Macau e Singapura.

19 A legislação da UE relativa ao mercado interno aplica-se directamente aos países do EEE, ao passo que as normas equivalentes às normas comunitárias em matéria de auxílios estatais são consagradas pelo Acordo EEE e aplicadas pelo Órgão de Fiscaliza-ção da EFTA. Normas similares são aplicáveis à Suíça nos termos do acordo de comércio livre celebrado entre a UE e a Suíça em 1972. Deste modo, limitam-se os regimes fi scais geradores de distorções nestes países, tendo a Comissão, aliás, denunciado recentemente alguns regimes suíços de tributação de empresas que prevêem a concessão de benefícios que a Comissão considera auxílios estatais.

20 A política de alargamento exige que os países candidatos e potenciais candida-tos procedam à transposição gradual da legislação comunitária nas suas ordens jurídicas nacionais, designadamente no âmbito da fi scalidade. Aquando da sua adesão à UE, os países candidatos são instados a aplicar plenamente a totalidade do seu acervo legisla-tivo. A este respeito, a boa governança é uma das áreas a que a estratégia de alargamento está particularmente atenta desde uma fase inicial do processo de pré-adesão.

21 O mecanismo de governança da Política Europeia de Vizinhança e de Parceria, baseado nos artigos 2.°, n.º 1, e 7.° do Instrumento Europeu de Vizinhança e Parceria (IEVP), prevê um fi nanciamento suplementar, para além das dotações nacionais, para os países parceiros que se considere terem alcançado maiores progressos na consecu-ção dos objectivos relativos à governança estabelecidos nos seus programas de reforma, conforme defi nidos nos seus planos de acção PEV (que consagram compromissos, tanto de carácter geral como específi co, em matéria de reformas no âmbito da governança). O 10.º Fundo Europeu de Desenvolvimento (FED), que abrange o período de 2008 a 2013, prevê igualmente uma medida de incentivo no âmbito da iniciativa de governança, atra-vés da qual a UE oferece fi nanciamento suplementar para apoiar o diálogo e as reformas em matéria de governança, nomeadamente na área fi scal. Os países elegíveis para a ajuda

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É neste elenco de medidas que se salienta o papel desempenhado pelo Código de Conduta da Fiscalidade das Empresas e da promoção dos seus princípios junto dos países terceiros. Neste contexto, salienta-se que deveria prosseguir-se o trabalho de congelamento e de desmantelamento das medidas fi scais prejudiciais nos Estados membros da UE.

3.3. A boa governança e os países terceiros

É prestada especial atenção à questão da implementação da boa governança em matéria fi scal nos países terceiros. Tal como referimos, para o efeito faz-se apelo à adopção de uma estratégia coordenada dos Estados membros que passa, nomeadamente, pela celebração e imple-mentação de acordos da UE com países terceiros e pela questão dos incentivos à cooperação para o desenvolvimento, isto é, da ajuda da UE aos respectivos sistemas fi scais.

Quanto aos acordos, recomenda-se, designadamente, que a boa governança na área fi scal deve ser referida o mais cedo possível no pro-cesso de negociações, por exemplo nas directrizes de negociação do Conselho à Comissão e que tais acordos prevejam, se necessário, dispo-sições semelhantes às aplicáveis na UE em matéria de auxílios estatais. Equaciona-se ainda o facto de deverem ser considerados acordos anti-fraude específi cos na área fi scal, que previssem, se necessário, disposi-ções em matéria de transparência e de intercâmbio de informações para fi ns fi scais a nível comunitário para acelerar o processo de aplicação dos compromissos assumidos por certas jurisdições com vista a uma maior transparência e ao intercâmbio de informações22.

ao desenvolvimento que, após avaliação baseada na elaboração de um perfi l de gover-nança, assumem compromissos (circunstanciados no plano de acção de governança) podem receber uma dotação suplementar em função do teor do seu compromisso. Alguns países das Caraíbas e do Pacífi co já assumiram compromissos desse tipo, ao passo que outros recusaram esta via ou ainda não decidiram optar por ela. Alguns países e territórios ultramarinos (PTU), em relação aos quais os Estados membros têm responsabilidades assumiram compromissos com a OCDE em matéria de transparência e de intercâmbio de informações.

22 Como é sabido, a Directiva relativa à tributação dos rendimentos da poupança consagra um mecanismo especial que permitia à Bélgica, à Áustria e ao Luxemburgo tri-

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Relativamente ao Código de Conduta da Fiscalidade das Empresas, a Comissão considera que o Grupo deveria, prioritariamente, desenvol-ver uma política coerente de acção coordenada relativamente à aplicação de medidas anti-abuso no que se refere a países terceiros que exercem práticas prejudiciais.

No contexto dos incentivos relativos à cooperação para o desen-volvimento, a Comissão considera que importa, nomeadamente, avaliar a execução dos compromissos assumidos por alguns países em favor da boa governança na área fi scal e, eventualmente, reafectar fundos em benefício dos países que cumpram os seus compromissos de forma satisfatória e cancelar os fundos afectados a países que não os tenham cumprido. Neste contexto, salienta a relevância do fornecimento da assistência técnica necessária para ajudar os países a cumprir os seus compromissos em matéria de boa governança na área fi scal, o que pode passar pela concepção de um sistema fi scal, para os países que o soli-citarem, que lhes permita utilizar mais efi cazmente os seus recursos disponíveis.

A Comissão pretende igualmente considerar a viabilidade de intro-duzir um critério adicional para avaliar a elegibilidade para a concessão de fundos no âmbito dos instrumentos comunitários de ajuda externa actualmente em vigor, critério esse que estaria dependente da aplica-ção dos princípios de boa governança na área fi scal por países terceiros.

butar os titulares de contas estrangeiras residentes na União Europeia através de retenção na fonte, em vez de proceder ao intercâmbio de informações com outros países. Desde 1 de Janeiro de 2010 que a Bélgica passou a trocar informações ao abrigo da Directiva. O Liechtenstein, a Suíça, o Mónaco, Andorra e São Marinho celebraram com a UE acordos em matéria de tributação da poupança que prevêem igualmente a retenção de um imposto na fonte, em vez do intercâmbio de informações. A Directiva prevê que, a longo prazo, todos os Estados membros procederão ao intercâmbio de automático de informações segundo modalidades que dependem da adopção, pelos países terceiros supramencio-nados, das normas estabelecidas em 2002 pela OCDE em matéria de intercâmbio de informações.

Neste contexto, é necessário prosseguir as discussões com outros países terceiros, nomeadamente Singapura, Hong Kong e Macau, à luz do novo consenso que se desenha em matéria de transparência e de intercâmbio de informações, a fi m de estudar com estas jurisdições a aplicação de medidas adequadas equivalentes às consagradas na Directiva relativa à tributação da poupança.

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Além disso, poderia refl ectir-se sobre a eventual concessão de uma dota-ção adicional às jurisdições cooperantes no âmbito das próximas Pers-pectivas Financeiras, destinada, por exemplo, a assistência técnica ou ao destacamento de peritos.

Para a Comissão, é essencial garantir a coerência política em rela-ção aos países terceiros para o desenvolvimento dos princípios de boa governança na área fi scal, pelo que os Estados membros devem adoptar medidas semelhantes às expostas supra no âmbito dos respectivos pro-gramas de ajudas bilaterais.

Na Comunicação sobre a boa governança a Comissão vem ainda apelar à conveniência em apurar também qual o grau de coerência entre os princípios de boa governança na área fi scal e as políticas fi scais dos próprios Estados membros, incluindo os tratados fi scais bilaterais cele-brados com países terceiros. Tal como nota, seria importante garantir que, através destes tratados fi scais bilaterais, os Estados membros não criam novas oportunidades para elidir a receita fi scal de outros Estados membros ou para contornar o disposto nas directivas da UE. Paralela-mente, a consagração de obrigações em matéria de boa governança em acordos celebrados entre a UE e os países terceiros reforça o poder de negociação dos Estados membros nas suas negociações bilaterais com esses países.

Como salienta a Comissão, os Estados membros deveriam igual-mente estabelecer uma estratégia mais harmonizada em relação aos paí-ses terceiros em função da eventual adesão destes aos princípios de boa governança na área fi scal. Por exemplo, um país terceiro que aplicasse os referidos princípios poderia ser retirado das respectivas «listas negras nacionais», deixando as suas práticas fi scais de estar sujeitas a medidas anti-abuso. Distintamente, as jurisdições que não aplicam de maneira satisfatória os aspectos essenciais em matéria de boa governança na área fi scal aplicados pelos Estados membros da UE poderiam ser objecto de contra medidas coordenadas. A Comissão considera que uma melhor coordenação das posições dos Estados membros da UE nos debates da OCDE, no G20 e na ONU, no que diz respeito à boa governança interna-cional na área fi scal, é imprescindível para assegurar uma maior pressão nas negociações com países não cooperantes.

Numa linha coerente de preocupações, tenha-se em consideração a posterior apresentação pela Comissão da Comunicação sobre Fiscali-

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dade e Desenvolvimento23, que vem fazer apelo à adopção dos mesmos princípios de cooperação com os países em desenvolvimento para imple-mentar a boa governança em matéria fi scal, bem como as conclusões do Conselho Desenvolvimento sobre “Boa Governança e Desenvolvi-mento”, de dia 14 de Junho 2010, relativas à aludida Comunicação.

4. Conclusões

A decisão de manutenção do Grupo do Código de Conduta afi gura--se-nos adequada, particularmente tendo em consideração a realidade actual em que a crise agudizou as preocupações sobre a sustentabilidade dos sistemas fi scais em ambiente de globalização, Neste contexto, a pro-moção da boa governança na área fi scal numa base geográfi ca tão ampla quanto possível tem um relevante papel a cumprir.

Independentemente do contexto actual, sempre achamos que con-fi nar os princípios decorrentes do Código ao espaço comunitário e aos territórios dependentes seria uma visão reduccionista que contribuiria para o aparecimento de novas distorções fi scais. Trata-se, contudo, de uma tarefa melindrosa e os trabalhos da OCDE neste domínio são um bom exemplo desse facto. Neste âmbito, os trabalhos sobre as práticas administrativas e sobre a aplicação das regras anti-abuso parecem-no extremamente importantes.

Para além disso, a monitorização do congelamento e do stanstill são necessários (embora se reconheça que este papel pudesse ser cometido à Comissão).

A UE e os seus parceiros têm actualmente o maior interesse em fomentar a cooperação fi scal e a adopção de normas comuns numa base geográfi ca tão ampla quanto possível. Uma maior coerência e coorde-nação das políticas ao nível comunitário contribuirá para promover a boa governança na área fi scal numa base geográfi ca tão ampla quanto possível.

23 Communication de la Comission au Parlement Européen, au Conseil et au Comité Éonomique et Social Européen, Fiscalité et développement afi n d’encourager la bonne gouvernance dans le domaine fi scal, SEC (2010) 426, 21 de Abril de 2010.

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Resta saber se todo este trabalho será levado a cabo de uma forma equilibrada, não servindo, uma vez mais, para alterar as regras do level playing fi eld a favor de interesses de alguns países em detrimento de outros, precisamente o que supostamente se pretende evitar com todo este exercício…

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João Ricardo Catarino

Os novos contextos das fi nanças públicas. A administração pública Financeira em ambiente

aberto na emergência de um Sistema Fiscal Mundial: Desafi os das Finanças Públicas em Ambiente Aberto

João Ricardo Catarino

Professor universitário da ISCSP – UTL.

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RESUMO

As fi nanças públicas desenvolvem-se hoje segundo novos contextos, inimaginá-veis há apenas uns poucos anos atrás. Estes, tanto representam novos desafi os como constituem perigos ao seu desenvolvimento harmonioso e à sua função ou aptidão para a prossecução do interesse público.

Este artigo salienta alguns dos mais relevantes desafi os que se colocam às fi nanças públicas dos nossos dias. Procura também apontar pistas para que os actuais contextos, feitos de rupturas e tendências, nem sempre saudáveis, se desenvolvam de modo a asse-gurar uma evolução tranquila. Mas também chama a atenção para as tendências mais pre-ocupantes sobre o lugar e o papel do Estado, o controlo das contas públicas, o problema da justiça geral e fi scal, a emergência de um direito fi scal europeu e, sem esgotar, uma refl exão sobre o sentido de rumo dos nossos sistemas de fi nanciamento público.

Nesta parte I fazemos incidir o nosso estudo sobre os desafi os do poder fi nanceiro. Numa parte II, a publicar posteriormente, analisaremos os novos desafi os da tributação na emergência de um sistema fi scal mundial, focando a necessidade de profunda refl exão sobre a questão de saber para onde vão os sistemas fi scais.

Palavras-chave:Finanças públicas, Sobrepeso do Estado, RedistribuiçãoControlo das contas públicas, Sistemas fi scais

ABSTRACT

Public fi nances are developing within new contexts, unthinkable only a few years ago. These contexts represent new challenges. But they also provide hazards to their harmonious development and its role in pursuit of public interest.

This article highlights some of the most important challenges facing the public fi nances of our times. It also seeks clues pointing to the current problems, made of breaks and trends, not always healthy. It defends the need to ensure a peaceful evolution. The article also draws attention to the most worrying trends about the place and the role of the state, the control of public accounts, the general problem of justice and taxation, the emergence of a European tax law and, without exhausting, the refl ection on the meaning of course of our systems of public funding.

In this Part I we focused our study on the challenges of fi nancial power. In Part II, to be published later, we will analyze the new challenges of taxation in the emergence of a global tax system, focusing on the need for profound refl ection on the question of where the tax systems will go.

Keywords:Public fi nance, Overweight of State, Tax redistributionControl of public accounts, Tax systems

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Sumário: Parte I – Desafi os do poder fi nanceiro em ambiente aberto; 1. Considerandos gerais; 2. Os novos contextos das fi nanças públicas; 2.1 O lugar e o papel do Estado numa sociedade plural em ambiente aberto; 22. Novos contextos, idênticas opções: mais Estado ou sobrepeso do Estado? 3. Novos modelos de gestão do interesse público; 4. Alguns problemas do fi nanciamento público; 5. Problemas de controlo e avaliação das contas públicas;

1. Considerandos gerais

As alterações profundas verifi cadas nos últimos decénios em todos os campos da vida social têm tido um impacto da maior monta na estru-turação e nas tendências das fi nanças públicas modernas.

Não é possível, num texto desta dimensão, dar conta em termos gerais e abrangentes, das questões mais signifi cativas e do impacto que tais desafi os vêm tendo nas nossas vidas colectivas. Por isso, não se trata aqui de esgotar cada eixo ou tema mais relevante, mas de apresentar os aspectos mais críticos ou essenciais dessa evolução, quais as ques-tões que ganharão relevo e quais as que mais impacto terão nas fi nanças públicas dos dias à frente, em ordem a suscitar o debate e a interrogação.

2. Os novos contextos das fi nanças públicas

2.1. O lugar e o papel do Estado numa sociedade plural em ambiente aberto

Um dos contextos mais importantes das fi nanças públicas dos nos-sos dias passa pela (re)defi nição do papel do Estado na sociedade global. Persiste a forte dicotomia entre os que defendem mais Estado, no sentido de maiores níveis de intervenção pública e, de outro, os que tendem a eleger a melhoria da regulação pública, abrindo todavia mais espaço para à actividade privada.

De um lado, temos os que defendem uma evolução na continuidade com melhoria dos procedimentos e controlos sobre a actividade pública e, de outro, os que apostam em defender uma revisão mais profunda do

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papel do Estado na sociedade global, com devolução à sociedade de todos os bens e serviços cuja natureza não imponha a intervenção pública.

Entre uns e outros vai fl orescendo um clima propício ao cliente-lismo e ao enviesamento ideológico que condiciona a maneira como os problemas públicos são formulados e resolvidos, contribuindo para per-petuar o controlo das agendas políticas e mediáticas.

A arrastada crise de fundo, intercalada por períodos de crescimento em certas zonas do mundo, não esconde um mal-estar geral e uma ins-tabilidade de fundo que nos assola. Sobretudo na economia portuguesa deparamo-nos com a estagnação e o empobrecimento real.

De modo que, muito objectivamente, para alguns existem duas opções de fundo em matéria fi nanceira: ou se corta nos gastos públi-cos e se aumentam os índices de poupança de modo a gerar os funda-mentos para um crescimento económico sustentado, ou então insistimos nas receitas keynesianas habituais de elevar a despesa pública na mira de uma boa reprodutividade fi nal, desenvolvendo políticas anti-cíclicas visando alcançar um grande efeito multiplicador a partir desses investi-mentos públicos.1

Na verdade, importa reconhecê-lo, a opção mais comum – e até, paradoxalmente, a única que os cidadãos parecem compreender – é a do aumento dos gastos públicos como forma de compensar a retracção do consumo e do investimento privado. Aceitam-no sem aparentemente compreender que, ao reclamar mais políticas públicas, aqui e ali, estão na verdade reclamando mais impostos.

A carga fi scal está entre nós extraordinariamente mal distribuída. Ela incide, no caso do imposto sobre o rendimento, em larga medida sobre os trabalhadores por conta de outrem, tais aumentos refl ectem--se em agravamentos que são tendencialmente suportados pelo mesmo grupo de contribuinte. Este conformismo de soluções é comum a todas as sensibilidades, ainda que com fundamentos diferentes.

A solução que nos é apresentada é a mesma há quase um século. Em face das crises defendem-se as políticas que muitas vezes são res-ponsáveis por essa mesma crise: aumento do peso do Estado e promoção

1 Veja-se, a propósito, a lúcida refl exão de ANTÓNIO SOUSA LARA, O interesse nacio-nal, a política externa portuguesa e as ideologias, Dislivro, 2009, sobretudo a págs. 77 e segs.

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de um quadro legal em que o este desconsidera a sua função reguladora e entra abertamente no condicionamento e no jogo económico como medida de política geral.

A questão é muitas vezes colocada num plano onde se confrontam as ideias de neoliberalismo com o modelo e o papel das fi nanças públi-cas neste quadro evolutivo. Todavia, a nosso ver, não deixamos de reco-nhecer a importância de discorrer sobre dois termos frequentemente mal densifi cados: democracia e liberalismo. Efectivamente, eles são coisas diferentes.

A democracia responde essencialmente à questão de saber quem deve exercer o poder político, isto é, que sujeito deve ser considerado legítimo para o efeito. Já porém o liberalismo responde a coisa diferente: saber quais são os limites do sujeito ou do poder político legitimado pelo voto popular. O facto é que nenhum dos conceitos exclui o outro.

A regra de ouro da democracia é o voto, responsável e soberano do povo. Todavia, o sistema de maioria, se funciona bem na escolha de quem governa, não deve alargar-se a aspectos da vida colectiva onde essa rea-lidade seja estranha, para além “da substituição pacífi ca de um Governo por outro”, como o lembra oportunamente José Manuel Moreira.2

Daí, a maioria reduz a ideia de liberalismo ao campo económico ou ao neoliberalismo, visto este como a doutrina segundo a qual o Estado não deve intervir na economia. Esta é, porém, uma perspectiva redutora.

A nosso ver o neoliberalismo é mais do que isso, situando-se no campo das garantias contra as arbitrariedades do Governo. Daí, falar das tendências de evolução das fi nanças públicas é equacionar o papel dos governos, das elites e das ideias que os nossos modelos sociais vêm pondo em prática há quase um século, sem questionar.

E na verdade, uma análise honesta não pode deixar de se confrontar com questões como estas: será que o intervencionismo dos governos tem realmente produzido elevados níveis de bem-estar para todos, incluindo os mais desfavorecidos? Têm diminuído as desigualdades económicas e sociais, ou simplesmente operado uma redistribuição do poder do indiví-duo para o Estado? Aumentaram as possibilidades de acesso às estruturas

2 JOSÉ MANUEL MOREIRA, Leais, Imparciais e Liberais, Bnomics, Lisboa, 2009, sob a entrada Liberalismo e democracia, Lisboa, 2009.

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do poder? O voto perdeu ou ganhou real signifi cado? As estruturas políti-cas representativas dos cidadãos, realizam-na de modo efectivo?

O que dizer, também, do papel dos grupos de pressão organizados e em que medida eles realmente infl uenciam as decisões políticas na apli-cação dos imensos recursos públicos em favor dos seus associados? E quais, já agora, são as reais motivações das elites políticas e dos burocra-tas na adopção de políticas distributivas, amplamente divulgadas como coisa adequada ao fi m anunciado, mas cujo efeito é inegavelmente mar-ginal sobre a condição económica e social de quem realmente precisa?3 Não será tal política fi scal redistributiva, afi nal, uma forma de legitimar interesses de políticos e burocratas?

São perguntas que devem induzir à refl exão, centradas na preocu-pação essencial de que necessitamos de desenvolver sistemas políticos e sociais que realizem uma muito melhor distribuição dos níveis de bem--estar. Os elevados níveis de carga fi scal e de taxa de esforço fi scal, de par com a permanente insatisfação com os níveis de provisão pública (nem sempre realistas, diga-se em abono do Estado), assim como a proli-feração de políticas públicas, nem sempre harmoniosas entre si, o gigan-tismo do aparelho de poder público, o crescimento da predisposição para deixar de cumprir, aderir ou de todo o modo, anuir às políticas públicas que o requeiram, elevam os níveis de informalidade e de desinteresse do cidadão pela “coisa pública” levando à alienação dos verdadeiros proble-mas e desafi os nacionais, com evidente prejuízo para todos.

Há uma profunda modifi cação das sensibilidades sobre quais devam ser as concepções económicas dominantes, num contexto de crise que teima em prolongar-se e onde os Estados privatizaram serviços e empre-sas mas o seu peso não diminuiu. Todavia, modifi caram-se já as tradi-cionais formas de prestação de serviços públicos, nem sempre acompa-nhadas por profundas reformas do sector público e onde, pese embora o ambiente de crise, por um lado, e a nova realidade económica, por outro, reclamam sobretudo prudência sobre como evoluir.

3 Vejam-se os insuspeitos estudos da OCDE sobre os efeitos das políticas tributá-rias redistributivas através dos actuais modelos de tributação do rendimento em L’impôt Négatif sur le Revenue, Paris, 1974; Fundamental Reform of Personal Income Tax, OECD Tax Policy Studies, n.º 13, Paris, 2006.

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Há ainda uma confl uência de sensibilidades perante a omnipresença do Estado, o gigantismo da despesa, a acção de grupos estruturados que reclamam para si medidas peculiares, de excepção ou, então, decisões de investimento público que os benefi ciem.

No extremo oposto, há os que não compreendem que os recursos dos Estados são fi nitos, que a abertura dos espaços económicos lhes reti-rou uma centralidade que os impede de evitar a deslocalização das acti-vidades das empresas e que um modelo de capitalismo sem limites pre-judica todos. Que, afi nal, o problema não está totalmente nem numa nem outra dessas posturas mas, muito provavelmente, nas derivações práticas que resultam da sua aplicação.

Uns procuram resolver os problemas insistindo com maiores níveis de intervenção pública, e, consequentemente, maiores níveis de tribu-tação, ao passo que outros reclamam menos Estado, com a devolução à actividade privada de algumas esferas de acção pública, em suma de maior liberdade individual.

Mais do que efectuar escolhas radicais é necessário procurar con-sensos, buscar novos equilíbrios tendo sobretudo em mente que a tarefa de despertar para tais questões é, já de si, muito relevante.

2.2. Novos contextos, idênticas opções: mais Estado ou sobrepeso do Estado?

Os problemas e desafi os das fi nanças públicas poderão agregar--se em duas áreas distintas, a saber: de um lado as relativas às questões fi nanceiras mais genéricas e, de outro, as questões mais directamente ligadas à (sub) área fi scal, cujo relevo autónomo é manifesto.

Quanto às primeiras, há um conjunto de temas estruturantes alinha-dos segundo um contexto valorativo que tem vindo a ser equacionado nos seguintes termos: qual o papel do Estado e, consequentemente, qual o papel das fi nanças públicas?

Não há consensos absolutos nem ideias inequívocas sobre qual deva ser o papel do Estado, sobretudo deste modelo de Estado de bem-estar, sobre o qual se lançam, injustamente, inúmeras invectivas. Nem há con-sensos sobre qual espécie de Estado de bem-estar devemos desenvolver.

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Tais posicionamentos distintos fazem variar a medida de apoio ao modelo, pois que, segundo um deles, o problema não está no modelo em si mesmo, mas na forma como se tem conseguido efectiva-lo na prática. O outro defende uma modifi cação conceptual, de fundo, mais centrada num primeira linha de responsabilidade individual para, só depois, fazer accionar a responsabilidade colectiva.

Uma e outra procuram o mesmo bem essencial, qual seja o da maximização do bem-estar colectivo, impedindo que sobretudo os mais carenciados sejam deixados em patamares de infra cidadania, nas mar-gens do desenvolvimento social.

Diversos autores têm abordado a questão, seja num contexto dito “mais liberal”, seja num mais assente na diluição dessa realidade numa responsabilidade geral pelo semelhante, num contexto de um maior com-prometimento colectivo. No primeiro alinham nomes como Ludwig Von Mises, Friedrich Hayek, Leonel Robins, Bertand de Jouvenel, Gordon Tullock, A. Niskanen, Arthur Seldon ou James Buchanan, ente outros.

No segundo, a perspectiva mais tradicional teorizada por Rousseau e depois desenvolvida por vários outros, incluindo Keynes no campo da economia, perante a inevitabilidade dos ciclos económicos, justifi cando o alargamento da intervenção do Estado às mais variadas políticas.4

Ambos buscam nos mesmos referenciais a sua base comum, extraindo embora deles ângulos diversos, como é o caso de Tomas Hob-bes, Samuel Pufendorf, John Locke, David Hume, Adam Smith, Ema-nuel Kant, Thomas Paine e Stuart Mill, entre outros.

Mais recentemente, cada uma das linhas conheceu quer desenvolvi-mentos específi cos com contributos transversais como o de John Rawls e a substanciada busca de uma teoria de justiça adequada a modelos sociais muito diversos e plurais, tendencialmente participados pelos cidadãos. Mas também de Amartya Sen, descartando a necessidade de uma teoria de justiça assente nas justifi cações de posses e mais centrada nas valên-

4 Para mais desenvolvimentos veja-se HUGO CONSCIÊNCIA SILVESTRE, Gestão Pública: modelos de prestação de serviço público, escolar editora, Lisboa, 2010 e JOSÉ TAVARES, Alguns aspectos estruturantes das fi nanças públicas da actualidade, Almedina, Coimbra, 2008.

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cias, nas qualifi cações pessoais e no mercado como forma de alcançar a justiça social e a realização pessoal.5

O aumento da despesa pública global verifi cado a partir dos anos setenta, com a primeira crise petrolífera elevou-a para níveis incompor-táveis. Esta levou alguns (poucos) países a infl ectirem fortemente na trajectória da despesa do Estado, como é o caso da Nova Zelândia, do Canadá ou da Holanda onde, pela via da efi ciência da despesa pública, foi possível descer tais níveis globais em percentagem do produto interno bruto, enquadrada por reformas efi cazes e silenciosas, como o testemu-nham os relatórios da OCDE.

Por outro lado, a estrutura da despesa pública na generalidade dos países europeus, incluindo Portugal, viram crescer as rubricas com as despesas sociais, impactando directamente sobre o futuro e a sustentabi-lidade deste modelo social.

Naturalmente, não se questiona a necessidade de desenvolver – a aprofundar até – esses regimes de apoio, mas num contexto de maior exigência, que seja capaz de aumentar os níveis de segurança dos cida-

5 É interessante ver como AMARTYA SEN descarta a necessidade de uma teoria da justiça que estabeleça critérios sobre como distribuir bens no meio social. Para Sen, sobretudo em Desigualdade Reexaminda, o problema está mal formulado pois nada nos diz que todas as pessoas entendam que a posse de bens seja a chave para a felicidade pessoal. Para muitos, defende, o problema deve ser posto em temos diferentes: os de dar primazia ao ensino, qualifi cação, cultura e desenvolvimento pessoal como forma de alcançar uma elevado padrão de bem-estar colectivo e de desenvolvimento humano, capaz de tornar as pessoas mais felizes não porque possuem muitos bens, mas porque são sobretudo indivíduos completos que, tendo diferentes medidas de bens, têm em comum elevados índices de satisfação pessoal. O relatório da Comissão Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi vem exactamente nesta direcção. Ao apresentar 10 principais reco-mendações para melhorar a medição da qualidade de vida, e para Desenvolvimento Sus-tentável e Ambiente, dá mais ênfase às rendas e ao consumo do que à produção. Com isso, visa alcançar uma avaliação mais adequada do bem-estar material, e conferir um papel mais importante à distribuição da renda disponível. Para medir o nível de vida, o Relatório propõe levar em conta actividades ou critérios que defi niriam a qualidade de vida dos habitantes de um país, tais como, saúde; educação; condições de trabalho e vida (entre elas, lazer, deslocamento, actividades domésticas e condições de moradia); infl uência política e governança; conexões sociais; condições ambientais; insegurança pessoal (criminalidade, acidentes, desastres naturais) e insegurança económica (desem-prego, seguro de saúde, pensões).

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dãos e, ao mesmo tempo, fazer crescer a responsabilidade individual em ordem à limitação dos fenómenos de rent seeking e à desresponsabiliza-ção pessoal. Um estudo de caso interessante é o da fl exisegurança Dina-marquês, por conseguir altos níveis de solidariedade social com compro-metimento individual.6

3. Novos modelos de gestão do interesse público

As reformas estruturais do sector público estão sendo empreendi-das um pouco por toda a parte. As tendências de evolução notadas e recomendadas pela OCDE recentram o modelo de gestão dos serviços públicos no desenvolvimento de um conceito de prestação de serviços ao invés da postura autoritária tradicional.

As novas práticas gestionárias, requerendo maior proximidade e participação do cidadão na tomada de decisão, estão em linha com as práticas de good governance7 propugnadas pelas instâncias internacio-nais e com o fomento das parcerias público-privadas, que não têm mere-cido o adequado relevo no pensamento académico que as suas potencia-lidades encerram.8

Neste respeito, é notória a tendência para a crescente entrega da gestão de serviços públicos a entes privados, introduzindo modos de

6 Salientaremos, entre outros, o levantamento feito por MEDINA CARREIRA, O dever da verdade, Dom Quixote, Lisboa, 2008, e também o estudo de EDUARDO PAZ FERREIRA, em co-autoria MARTA REBELO, O Novo Regime Jurídico das Parcerias Público-Privadas em Portugal, Revista de Direito Público da Economia, n.º 4, Out./Dez. 2003, Editora Fórum, 2003.

7 Veja-se JOÃO BILHIM, Ciência da administração, Universidade Aberta, Lisboa, 2000; Gestão estratégica de recursos humanos, ISCSP, Lisboa, 2004; Teoria orga-nizacional: estruturas e pessoas, 4ª ed. revista, Lisboa, ISCSP, 2005.

8 Veja-se, todavia, a investigação realizada por MARIA EDUARDA AZEVEDO, As Par-cerias Público-Privadas: Instrumento de uma Nova Governação Pública, Almedina, Coimbra, 2009; JOSÉ TAVARES, Ponderação de interesses na gestão pública vs. gestão privada, estudos jurídicos em homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Facul-dade de Direito de Lisboa, Coimbra editora, separata, Coimbra, 2006; JOSÉ TAVARES, Pon-deração de interesses na gestão pública vs. gestão privada, estudos jurídicos em home-nagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra editora, separata, Coimbra, 2006.

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actuação típicos de uma motivação lucrativa em fi ns em estruturas públi-cas, visando extrair o melhor das duas realidades. Trata-se afi nal, de um certo triunfalismo do contratualismo próprio do Direito privado numa lógica pública, com sujeitos tradicionalmente colocados numa posição assimétrica, mas aqui dispostos a se ajustarem segundo os parâmetros próprios da igualdade, da liberdade de contratar, tal como emerge, em especial, do artigo 406.º do Código Civil.

No âmbito das medidas preconizadas pelo PRACE – Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado, do modelo de evo-lução da administração pública e das tendências dominantes aplicadas à realidade portuguesa9 sobressai precisamente a da crescente sujeição dos serviços públicos a diferentes regras, sobretudo os denominados serviços públicos por opção, tais como os regimes de pessoal, patrimonial e de gestão fi nanceira.10

9 Os Relatórios fi nais, de 20 de Fevereiro de 2008, assim como o relatório da Comissão Técnica, podem ser consultados em http://www.min-fi nancas.pt/inf_geral/default_PRACE.asp

10 Ver Decreto-Lei n.º 86/2003, de 26 de Abril, que veio permitir o estabelecimento de um relacionamento de longo prazo entre os parceiros públicos e privados, envolvendo a repartição de encargos e riscos entre as partes e o estabelecimento de compromis-sos de médio ou longo prazo que, quando implicam encargos a satisfazer pelos entes públicos envolvidos, afectam e condicionam imperativamente a totalidade ou parte dos respectivos orçamentos futuros, compreendidos no período de duração dos contratos celebrados, o qual defi ne parceria público-privada o contrato ou a união de contratos, por via dos quais entidades privadas, designadas por parceiros privados, se obrigam, de forma duradoura, perante um parceiro público, a assegurar o desenvolvimento de uma actividade tendente à satisfação de uma necessidade colectiva, e em que o fi nan-ciamento e a responsabilidade pelo investimento e pela exploração incumbem, no todo ou em parte, ao parceiro privado. Pode ver-se também o Livro verde sobre as parcerias público-privadas, da União Europeia, em www.europa.eu.int e ainda TEODORA CARDOSO, MARTA REBELO E EDUARDO PAZ FERREIRA, PEDRO SIZA VIEIRA, JORGE ABREU SIMÕES, JOÃO PONTES AMARO, ANTÓNIO GARCIA, CARLOS MORENO, ANDRÉ RISCADO, Manual Prático das Parcerias Público Privadas, NPF, Pesquisa e Formação, Publicações, 2004 (www.npf.pt); CARLOS SOARES ALVES, Os Municípios e as Parcerias Público-Privadas: Concessões e Empresas Municipais, edição da Associação dos Técnicos Administrativos Municipais (www.atam.pt); ABBY GHOBADIAN, DAVID GALLEAR, NICHOLAS O’REGAN, HOWARD VINEY, Public-Private Partnerships – Policy and experience, Palgrave, 2004 (www.palgrave.com); GABRIELA FIGUEIREDO DIAS, Project Finance (Primeiras Notas), Miscelâneas, n.º 3, Almedina, 2004; JOÃO CANTO E CASTRO, O Decreto-Lei n.º 86/2003: uma perspec-

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O modelo gestionário como alternativa para a execução do serviço público tem sido fundamento para a reforma dos sectores públicos na procura da efi ciência, descentralização e da qualidade. Esta última, de resto, levou à criação de um conceito e de um modelo europeu de quali-dade baseado em critérios precisos e focados na obtenção de um resul-tado de excelência.11

De resto, bem se vê, no nosso caso, uma aplicação mais imperfeita destas ideias, materializada no surgimento de Institutos Públicos e de Autoridades de Regulação mas que corresponde já, em vários sentidos, a esta nova forma de gestão dos interesses tradicionalmente desenvolvidos pelo Estado através da sua administração central, que não foi atenuada pela postura algo conservadora da Lei-quadro dos Institutos Públicos, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 105/2007, D.R. n.º 66, Série I de 3 de Abril de 2007.

Forte tendência esta pela qual se criaram nos últimos 25 anos mais institutos públicos e autoridades reguladoras, com autonomia adminis-trativa, fi nanceira e patrimonial do que nos anteriores cem.

tiva jurídico política (Revista de Ciências Empresarias e Jurídicas, n.º 5, 2005); VITAL MOREIRA, A tentação da “Private Finance Iniciative (PFI)” A Mão Visível – Mercado e Regulação, Almedina, 2003; TIAGO DUARTE, As mil e uma comissões das Parcerias Público-Privadas (www.plmj.com); RUI MACHETE, O âmbito de aplicação das Parcerias Público-Privadas (www.plmj.com); ALEXANDRA PESSANHA e FERNANDO XAREPE SILVEIRO, Estudo do Decreto-Lei n.º 86/2003, de 26 de Abril, regime jurídico procedimental das PPP, Revista do Tribunal de Contas, n.º 40; PEDRO SIZA VIEIRA, Regime das Conces-sões de Obras Públicas e Serviços Públicos, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 64, Julho-Agosto 2007; SÍTIO DO TRIBUNAL DE CONTAS – www.tcontas.pt onde se podem encontrar relatórios sobre diversas parcerias público-privadas e sobre alguns casos de empresas municipais, de que são exemplos os seguintes: Relatório de consulta pública sobre o livro verde Comunicação interpretativa da Comissão sobre as concessões em Direito Comunitário; SÍTIO DA PARPÚBLICA – www.parpublica.pt e o Link: par-cerias público-privadas (alguns artigos e apresentações sobre o tema; links para sites de outros Estados).

11 ANA ANDRADE, Programa de qualidade do Ministério da Segurança social e do Trabalho: um modelo integrado de aplicação da CAF. Secretaria-Geral do Ministério da Segurança Social e do Trabalho, Lisboa, 2004; JOAQUIM FILIPE ARAÚJO, Hierarquia e mercado: A experiência recente da administração gestionária, Comunicação apresen-tada no Forum 2000, Reforma do Estado e Administração Gestionária, Lisboa, 2000 e Reform and Institutional persistence in Portuguese Central Administration, Universidade de Exter, Reino Unido, 1999.

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Por outro lado, assiste-se à empresarialização de certos serviços públicos, nomeada e especifi camente os hospitais, a gestão de certas infra-estruturas, correspondendo ao desejo confesso de compatibilizar uma lógica pública de prestação de serviços adequados à população em geral, mas aproveitando os ganhos em termos de efi ciência, produtivi-dade e menor custo que a lógica de mercado parece poder alcançar.

4. Alguns problemas do fi nanciamento público

Uma outra tendência notória está no crescente pagamento indivi-dual pela prestação de serviços públicos até aqui normalmente cobertos com a receita dos impostos, em obediência a uma lógica de utilizador--pagador, não desconhecida dos denominados impostos ecológicos, de poluidor-pagador, sobretudo quando estejam em causa serviços que pres-tam utilidades indivisíveis.

É nesse sentido que se inscreve o novo regime geral de taxas locais, de 2007. Depois de uma vazio legislativo de quase trinta anos em que o imperativo constitucional deixou de ser observado, a sua aprovação representa um avanço notório, embora levante as perplexidades de redacção, sobretudo quanto aos princípios do benefício ou do sacrifício patrimonial.

De facto, a proliferação das taxas públicas representa o afastamento da tradicional gratuitidade genérica dos serviços públicos e a sua cober-tura essencial por impostos. Assume-se agora o seu pagamento, pelo menos parcial, pelo utente ou benefi ciário efectivo, o que não é um dis-parate em si mesmo.

Importa todavia salientar que esta evolução, a nosso ver, se bem que acobertada por um regime geral novo, não é tanto ditada pela dogmática própria das fi nanças públicas sobre o fi nanciamento do Estado, mas por atrozes pressões fi nanceiras dos organismos públicos, obrigando-os a fi nanciar os seus orçamentos correntes através da receita das taxas.

Essa é, também, a razão pela qual, do nosso ponto de vista, se tem exagerado no seu lançamento em termos dos valores individualmente exigidos aos cidadãos pela prestação de serviços públicos concretos, muitas vezes acima do que seria o valor normal do mercado em condi-ções de concorrência.

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Pior ainda, tem-se a noção de que a exigência de taxas públicas nem sempre corresponderá à prestação de um serviço público efectivo e materialmente necessário, mas tão só de um serviço emergente de uma exigência formal da lei, ainda que enroupada num interesse público não raro difuso. De facto, a facilidade com que por mero acto normativo se criam taxas públicas tem-se prestado a abusos tão intoleráveis quanto o seria a exigência de imposto sem lei.12

A frequência, a amplitude e o peso das taxas permite hoje questio-nar se não deveríamos lançar mão de mecanismos que melhor proteges-sem o cidadão contra abusos, tanto mais que hoje as taxas deixaram de ser prestações insignifi cantes, excepcionais e pouco frequentes.

Aspectos que, no seu conjunto, nos deveriam levar a refl ectir sobre a medida em que esta realidade nova e pouco estabilizada representa um vector essencial de cidadania e um modo de aprofundar, ao invés de diluir, o estruturante postulado do consentimento dos povos, tão carente de reafi rmação.

Os problemas do fi nanciamento público são problemas de adminis-tração pública. A longo prazo alargam-se ainda ao sistema de segurança social onde a necessidade de reformas visando o seu equilíbrio requereu uma severa limitação dos benefícios no imediato. O fi nanciamento estru-tural, a medida de retorno esperada, a necessidade de estabelecer tec-tos máximos de benefícios, o encurtamento real dos níveis de protecção social e as perspectivas pouco animadoras do seu reequilíbrio futuro, de par com o envelhecimento da população e as baixas taxas de reposição mostram que veio afi nal a ser feito, in extremis, o que poderia muito bem ter sido diluído num espaço temporal muito mais alargado, digamos desde pelo menos meados dos anos oitenta, com responsabilidades para todos.

Sendo inequivocamente um direito social, ele evolucionou con-forme se esperava, dentro do espectro evolutivo de todo o modelo euro-peu, onde, para além das questões de natureza ideológica, o problema da sustentabilidade futura era (é) real e em que a solução passa desde já por um conjunto de medidas que mitigam a amplitude dos direitos. E talvez

12 Uma análise de alguns Acórdãos do Tribunal constitucional (v. g. 92/85), per-mitirá verifi car o sentido dominante da Jurisprudência e do seu impacto na densifi cação desta realidade e do seu impacto sobre a ideia de Estado social ou de bem-estar.

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requeiram a adopção de regimes de diferenciação positiva e o estabele-cimento de patamares mínimos em ordem a assegurar uma protecção na reforma digna para todos. Assim se garante que os mais desfavorecidos sejam benefi ciados e, ao mesmo tempo, permitindo o opting out ou a conjugação do sistema público com regimes públicos ou privados, para os que o desejam ou possam fazer.

Não se trata de abjurar o Estado, mas de fortalecer a sua capacidade de capitalização do sistema, de par com soluções mistas que conciliem práticas privadas com lógicas públicas, em benefício de todos.

Em tese mais geral, o gigantismo do Estado e as crescentes difi cul-dades em obter receita sufi ciente para cobrir todas as demandas públicas, é tratado no ponto seguinte.

5. Problemas de controlo e avaliação das contas públicas

Igualmente estruturantes são as questões que hoje se colocam acerca do controlo e avaliação das contas públicas. Estas devem evoluir no sentido do seu alargamento, de uma lógica direccionada para a obten-ção de resultados através da generalização dos orçamentos-programa e da reestruturação orçamental, com maior ênfase num controlo que vá para além do mero controlo clássico da legalidade da despesa.

A orçamentação por programas implica uma maior a mais profunda informação analítica sobre os custos e uma melhor defi nição das res-ponsabilidades, desde logo da Administração pública. Um outro aspecto relevante reside no aumento da atenção ao controlo das contas públicas ao invés de ao Orçamento do Estado. Este tem recebido uma atenção que tem sido causa de alguma desatenção a outros agregados essenciais à sanidade das contas do Estado.13 São eles a despesa pública, a dívida pública e o défi ce público. Assim, preconizamos uma maior atenção aos aspectos seguintes:

• O reforço das garantias de transparência das fi nanças públicas, realidade que, não sendo exactamente nova, apresenta todavia novos

13 JOSÉ TAVARES, Alguns aspectos estruturantes das fi nanças públicas da actuali-dade, Almedina, Coimbra, 2008; O Federalismo – contributo para o estudo da natureza da União Europeia, Almedina, Coimbra, 2010.

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contornos, como é o caso da fuga para o direito privado nas relações jurídicas em que intervém o Estado.

• Uma melhor defi nição sobre os tipos de controlo que se revelam mais efi cientes para cada instrumento público.

• Uma evolução da estruturação da contabilidade pública e do modo de a realizar por parte dos serviços públicos, pondo de lado a natureza eminentemente “de caixa”, para se tornar mais sofi sticada, abrangendo a contabilidade patrimonial e a adequada valorização destes elementos no orçamento de cada organismo da Administração Pública.

• A melhoria da comunicação com os cidadãos, aperfeiçoando a informação fi nanceira dada a conhecer, incluindo a relativa aos cenários macro económicos. Pese embora a informação disponibilizada aquando da apresentação e discussão da proposta de Orçamento do Estado, os cidadãos não têm uma percepção geral sobre o Estado das contas públi-cas nem conhecem os grandes agregados e tendências. Em parte, isso dá-se porque não existe uma cultura fi nanceira, mas isso dá-se também, paradoxalmente, porque existirá uma excessiva quantidade de informa-ção. A racionalização desta e a sua simplifi cação em grandes agregados permitira uma percepção mais facilitada sobre quais os recursos dispo-níveis e as responsabilidades futuras. Permitira, também, que o cidadão interagisse mais quando se tratasse de decidir investimentos com impacto presente e futuro se lhe fosse dada a a oportunidade de se pronunciar.

• Melhorar a sustentabilidade das fi nanças públicas, tal como vem sendo preconizado pelo FMI, elaborando-se um relatório sobre tal sus-tentabilidade de cinco em cinco anos com informações projectadas para uma década.

• No plano político, parece-nos ser de reforçar a ênfase de um prin-cípio de sinceridade ou realismo orçamental, actualmente condenado os cenários rosados e pouco reais onde cabem tanto cenários de cres-cimento económico e outros índices estruturantes estimados de forma pouco realista.

• É necessário reforçar a atenção aos fenómenos de suborçamenta-ção, prática corrente dos Governos, mas com claro prejuízo do poder de controlo da Assembleia da República e uma evidente descaracterização do dever de audição e direito de consentimento dos povos.

• O reforço em termos qualitativos e quantitativos da capacidade de controlo da execução orçamental por parte da Assembleia da República

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que, por razões várias, efectua hoje um controlo tendencialmente formal e pouco profundo sobre as contas públicas e não realiza uma apreciação crítica das reais necessidades de endividamento nem dos níveis da dívida ou do serviço da mesma.

• O reforço da informação a fornecer à Comissão e Economia e Orçamento em regime concomitante, permitindo-lhe conhecer no momento as alterações à execução orçamental introduzidas pelos Gover-nos dos Estados membros e bem assim do direito de audição, de inves-tigação em tempo real e in situ das suas opções fi nanceiras e orçamen-tais. Em parte, os défi ces excessivos resultam não só de comportamentos pouco responsáveis dos Governos como também de um sistema de con-trolo europeu pouco assertivo e efi caz.

• A implementação de estruturas que permitam à Assembleia da República ser assistida por outros órgãos de Estado que possuam conhe-cimentos e meios técnicos adequados ao controlo orçamental e fi nanceiro, como é o caso do Ministério das Finanças ou do Banco de Portugal. Em muitos países as estruturas de controlo fi nanceiro são auditores gerais, con-troladores gerais ou órgãos que dependem directamente dos parlamentos nacionais, tornando a cooperação mais assídua e, por certo, mais profícua.

De facto, a impreparação teórica e prática dos deputados, em espe-cial quando membros dessa Comissão, impede-os de efectuar uma análise crítica tanto das propostas contidas no Orçamento de Estado como da sua execução geral. Impede-os também de aprofundar o controlo do desenvol-vimento sectorial das diferentes políticas públicas, sobretudo as mais crí-ticas, como a de saúde, educação ou de investimento e obras públicas, em especial para conhecer os motivos das frequentes derrapagens orçamentais.

• Aprofundar os poderes da Assembleia da República de realizar inquéritos e acções de controlo bem como reforçar os poderes de ava-liador das políticas públicas, indo além do papel, mais tradicional, de mero controlador de legalidade, mas do mérito substantivo das decisões tomadas.

• Para o efeito, importa dotar a Assembleia da República de novos poderes de controlo substantivo e recentrar as suas funções no exercício de poderes de impulsionar ou propor políticas públicas.

O conjunto dos factos e medidas enunciadas não esgota a realidade. Constitui, todavia, um ponto de partida alargado para a refl exão ampliada que se impõe sobre o tema.

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Vasco Branco Guimarães

Sobre a Tributação das Mais-Valias

Vasco Branco Guimarães

Doutor em Direito. Professor do ISCAL.

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RESUMO

No presente artigo procura-se refl ectir sobre a tributação das mais-valias valori-zando as várias componentes de obtenção e risco que envolvem. Da análise feita parece resultar que a manutenção das mais – valias no circuito económico deve conduzir a uma tributação minorada por cumprirem função de fi nanciamento e capitalização das empre-sas cotadas em substituição do fi nanciamento bancário.

Analisam-se igualmente as questões da capacidade contributiva e da retroactivi-dade na aplicação das normas que introduzem uma tributação alargada.

Palavras-chave: Mais-valiasRiscoCapacidade contributivaIrretroactividade

ABSTRACT

In the present paper a refl ection on the role of capital gains is made analyzing the various components of risk and nature of revenue.

From the analysis made we can conclude that a favorable tax treatment is justifi ed in the role of fi nancing the economies that capital gains can ensure as an alternative to bank fi nancing.

The principles of non retroactivity and ability to pay are also analyzed in connec-tion with the recent laws that enlarge the taxation of capital gains.

Keywords: Capital gainsRiskAbility to payNon retroactivity

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Sumário: 1. Introdução. 2. As questões estruturantes e de enquadramento. 2.1. As mais--valias face às noções de capacidade contributiva e neutralidade do capital fi nanceiro. 2.2. As mais-valias face às necessidades de fi nanciamento das economias de médio e longo prazo e ao risco. 2.3. As mais-valias realizadas e o reinvestimento das mesmas. 3. A aplicabilidade da norma. 4. Refl exões necessárias.

1. Introdução.

As mais-valias são o tipo de rendimentos que não deveriam susci-tar quaisquer dúvidas na tributação1. Sendo rendimentos não regulares «brought by the wind» visualizados numa perspectiva de sorte ou acaso a sua tributação não levanta qualquer problema aparente de equidade ou justiça sendo a tributação uma contrapartida justa à sorte inesperada que representa a obtenção da mais-valia. O imposto seria o contributo soli-dário para a comunidade da sorte que representa o ganho da mais-valia.

Porquê então a sua tributação limitada na legislação tributária em vigor até 1989? E porquê a manutenção de isenções e regimes especiais de desagravamento para as mais-valias na legislação em vigor até há bem pouco?

O presente ensaio visa analisar algumas das várias questões que se levantam e ajudam a compreender as soluções que foram sendo adop-tadas, bem como ponderar sobre critérios que possam ajudar a defi nir políticas fi scais estruturais sobre esta matéria.

Defi nido o objecto da tarefa a que nos propusemos passemos à sua execução.

2. As questões estruturantes e de enquadramento.

Em estudo realizado no âmbito da Reforma Fiscal de 1989 o Dr. João Coelho escrevia «...a tributação das mais-valias ou ganhos de capi-tal constitui, sem dúvida, uma das questões mais problemáticas e confl i-

1 Para um conceito de mais-valias reportado ao IRC e às entidades com escrita organizada vide o actual artigo 46.º do IRC que teve origem no artigo 42.º da versão original deste código.

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tuais dos modernos sistemas tributários»2. Como conciliar tão rotunda afi rmação com o já por nós enunciado atrás?

A resposta parece ser a de que aquilo que se apresenta como fácil e evidente não o é. Tentando entrar na questão com maior profundidade comecemos por elencar as questões que reputamos como importantes para uma análise consistente da tributação das mais-valias.

São elas:

– A generosidade da mais-valia em si considerada face ao carácter progressivo do rendimento e à medição da capacidade contribu-tiva e à neutralidade desejável do capital fi nanceiro;

– Papel das aplicações que podem gerar mais-valias face às neces-sidades de fi nanciamento das economias de médio e longo prazo e ao risco;

– As mais-valias realizadas e o reinvestimento das mesmas;

2.1. As mais-valias face às noções de capacidade contributiva e neu-tralidade do capital fi nanceiro.

As mais-valias não eram genericamente consideradas como ren-dimento no âmbito da legislação em vigor até 1989 excepto nos casos expressamente considerados como tais e que cobriam, no essencial, situ-ações de especulação relativas a lotes para construção e trespasses de escritórios de profi ssões liberais incluindo os consultórios médicos3.

O facto explica-se em grande parte com a noção de rendimento fonte que era então utilizada como conceito base da tributação e que implicava uma fonte estável que gerava rendimento regular e não se con-fundia com ganhos de capital especulativo ou sem controlo como os que eram, tendencialmente, as mais-valias.

As mais-valias não eram assim, em regra, fonte regular de rendi-mento mas fonte anormal ou excepcional. A tributação de alguns ren-dimentos como mais-valias justifi cava-se como uma resposta da tribu-tação a certas actividades que, sendo controláveis por vontade humana,

2 Cfr. Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, comentado e anotado, Herculano Madeira Curvelo e outros, Reis dos Livros, 1990, pág. 163.

3 Cfr. Decreto-Lei 46373, de 9 de Junho de 1965.

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ou gerando actividade económica regular e consequentes réditos, se visava integrar na tributação mesmo quando eram executadas por priva-dos não inscritos em Contribuição Industrial ou sujeitos a contabilidade organizada.

A distinção entre evidência contabilística ou não subjacente a essa outra de integração no activo fi xo marcava uma fronteira clara entre a normal sujeição das mais-valias realizadas no âmbito de uma actividade comercial e industrial em que a mais-valia integrava o conceito de lucro tributável e essa outra de ganho excepcional e desgarrado que, quase por acidente e sorte passava a integrar a esfera jurídica do cidadão contri-buinte. Na medida em que esse ganho, embora aleatório, integrasse uma actividade económica fazia-se a tributação em imposto de mais-valias. Se resultasse de ganhos excepcionais não directamente resultantes de actividade económica regular em regra estariam não sujeitos. O legisla-dor anterior à Reforma de 1989 resolveu o problema tipifi cando as situa-ções de incidência de forma restritiva e clara.

Como então fazer o confronto do conceito com esse outro de capa-cidade contributiva?

O conceito de capacidade contributiva, muito trabalhado na Dou-trina italiana e depois glosado e desenvolvido pela Doutrina da América Latina não se revela como tendo sofrido evoluções signifi cativas4.

Como já tivemos ocasião de escrever quanto ao princípio da capa-cidade contributiva importa relembrar que já S. Tomás de Aquino ao analisar a legitimidade do imposto enunciava entre as relações de causa, a causa materialis, que determinava que a escolha dos contribuintes e da medida dos impostos tinha de ser justa.

Por medida justa entendia-se a afectação do encargo dos impostos aos que revelavam capacidade de os pagar.

Assim, os impostos deviam ser fi xados sobre situações de riqueza e os pagadores deviam ser os titulares dessa riqueza.

4 Cabe referir a posição original de João Ricardo Catarino na sua tese de Douto-ramento, publicada na Editora Almedina que quebra o paradigma e põe em causa, fun-damentadamente alguns dos aspectos tradicionalmente aceites na discussão desta maté-ria. Cfr. Autor referido, Redistribuição tributária – Estado social e escolha individual, Almedina, 2008. Existe recensão desta obra feita por Nazaré Costa Cabral e Guilherme Waldemar de Oliveira Martins, na Revista do IDEFF, ano II, n.º 1.

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A capacidade contributiva revela-se assim e antes de mais, como uma questão de justiça e bom senso; justiça, porque implica que paguem impostos os que têm o poder económico para o fazer; bom senso, porque sendo o imposto uma forma de amputação da propriedade deverá ser feita com moderação e sobre a manifestações excedentárias de riqueza e não sobre aquilo que é essencial para a sobrevivência ou à manutenção ou reprodução da riqueza.

O princípio tem várias formulações teóricas possíveis5 e consagra-ção constitucional, entre outros, no ordenamento italiano6, espanhol7 e brasileiro8 9.

5 Para consulta sobre várias formulações possíveis do conceito de capacidade contributiva vide: António Sousa Franco, Direito Financeiro e Finanças Públicas, II, pág. 317 e segs.; Alberto Xavier, Manual de direito fi scal, Lisboa, 1974, pags. 107 e segs.; José Luís Saldanha Sanches, A quantifi cação ... cit., pág. 66 e segs.; Esc. Washington Lanziano, Teoria General de la exencion tributaria, Depalma, Buenos Aires, 1979, pág. 51 e segs.; para uma crítica original ao conceito, Alfredo Augusto Becker, Teoria Geral do direito tributário, 2ª edição, S. Paulo, 1972, pág. 437 e segs.; Francesco Moschetti, La capacità contributiva, profi li generali, in Trattato di diritto tributario diretto da Andrea Amatucci, vol. I, tomo I, Cedam, 1994, pág. 223 e segs.; idem Il principio della capacità contributiva, Padova, Cedam, 1973; Roberto Schia-volin, La capacità contributiva, il collegamento soggettivo, in Trattato di diritto tri-butario diretto da Andrea Amatucci, vol. I, tomo I, Cedam, 1994, pág. 272 e segs.; Gianfranco Lorenzon, La capacità contributiva, L`ambito oggetivo di applicazione, in Trattato di diritto tributario diretto da Andrea Amatucci, vol. I, tomo I, Cedam, 1994, pág. 304 e segs.; Loris Tosi, La capacità contributiva, il requisito di effettività, in Trattato di diritto tributario diretto da Andrea Amatucci, vol. I, tomo I, Cedam, 1994, pág. 320 e segs.;

6 Artigo 53 da Constituição italiana.7 Artigo 31.1 da Constituição espanhola. É apresentado por Ernesto Lejeune

Valcàrcel como uma manifestação complementar do princípio da igualdade. Cfr. autor citado, Ernesto Lejeune Valcárcel, L`eguaglianza, in Trattato di diritto tributa-rio diretto da Andrea Amatucci, vol. I, tomo I, Cedam, 1994, pág. 386.

8 Parágrafo 1.º do art. 145 da Constituição brasileira, «Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econô-mica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para con-ferir efetividade a esses objetivos, identifi car, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte».

9 Além das constituições citadas no texto o princípio da capacidade contri-butiva aparece consagrado nos seguintes textos constitucionais: Argentina (1946),

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São, aliás, os autores italianos, os que mais defendem e analisam o princípio da capacidade contributiva. O ponto de partida para a análise doutrinal neste sistema jurídico é o artigo 53.º, parágrafo 1.º da cons-tituição italiana que dispõe, «tutti sono tenuti a concorrere alle spese pubbliche in ragione della loro capacità contributiva».

Esta norma foi, durante largo tempo, considerada como programá-tica não se lhe dando uma importância relevante face ao poder de deter-minar os pressupostos tributários do legislador no exercício do seu poder fi nanceiro.

O artigo 53.º da Constituição italiana, tem como antecedentes o artigo 25 do Estatuto Albertino e o artigo 134 da Constituição de Weimar que relacionavam a tributação respectivamente, com os «haveres» e os «meios económicos» do sujeito passivo.

Do princípio da capacidade contributiva – que só começou a ter relevância doutrinal signifi cativa em Itália a partir de meados dos anos sessenta e anos setenta 10 – extraem-se os seguintes corolários lógicos:

Desde logo, a legitimidade constitucional e legal para a existência de tributação e o carácter de dever da contribuição dos privados para as despesas públicas.

Por outro lado, retira-se da formulação legal a universalidade do tributo que deverá ser articulado com o princípio da igualdade previsto no artigo 3.º da Constituição italiana.

A partir do conceito de capacidade contributiva efectiva, o legisla-dor e a Administração, construíram um conjunto de presunções de rendi-mento que se traduzem na aplicação de métodos indiciários e presunções inilidiveis.

art. 28; Bolívia (1967), art. 8, d); Bulgária (1947), art. 94; Equador (1966-7), art. 182; Grécia (1951), art. 3; Jugoslávia (1946), art. 42; México (1917), art. 31; Suíça (1981), art. 41. Cfr. Victor Uckmar, Principi comuni di diritto costituzionale tributa-rio, 2ª edição, CEDAM, 1999, pág. 80 nota 55.

10 Existem três obras fundamentais sobre a matéria na doutrina italiana: I. Manzoni, Il principio della capacità contributiva nell`ordinamento costituzionale italiano, Torino, 1965; F. Maffezzoni, Il principio de capacità contributiva nel diritto italiano, Torino, 1970; F. Moschetti, Il principio della capacità contributiva, Padova, 1973. Ver também, Gaspare Falsitta, Manuale de diritto tributario, parte generale, 2ª edizione, Padova, Cedam, 1997, pág. 139 e segs.; Nicola d`Amati, Le basi teoriche del diritto tributario e altri saggi, Cacucci Editore, Bari, 1993, pág. 68 e segs.

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A doutrina e a jurisprudência italianas construíram assim duas pos-síveis leituras do princípio da capacidade contributiva. Uma primeira lei-tura é feita a favor do contribuinte entendendo-se o princípio como uma garantia deste e uma impossibilidade do legislador ou da Administração atingir situações que não revelem «capacidade contributiva»; a segunda leitura possível, liga o artigo 53.º ao artigo 2.º da Constituição italiana que defi ne o princípio da solidariedade e faz uma interpretação essencial-mente fi nalista e programática do dever de contribuição, transformando o preceito na fonte da «razão fi scal».

Esta é entendida como a atribuição ao legislador ordinário e à Admi-nistração de todo um conjunto de poderes discricionários e possibilida-des administrativas que quebram uma leitura eventualmente equilibrada entre os intervenientes na relação de imposto11.

Questão interessante é a de saber se o princípio tem consagração na Constituição portuguesa face ao disposto no n.º 1 do actual artigo 104.º da Constituição que dispõe «o imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar»; a expres-são em análise é a fi nal, «tendo em conta... os rendimentos do agregado familiar». Estaremos perante a consagração constitucional do princípio da capacidade contributiva?

Uma resposta passará pela análise da oportunidade da consagração deste princípio e da sua utilidade.

Já Adam Smith, no século dezoito colocava a necessidade da exis-tência de capacidade económica como uma das condições para uma justa e efi caz tributação.

A necessidade da tributação atingir situações de riqueza e mani-festações de capacidade económica é inegável e baseia-se em princípios básicos de justiça elementar e de bom senso.

Aquilo que se verifi ca é que a partir do momento em que o pro-cesso de determinação dos impostos passa a ser assumido pela assem-bleia legislativa com poderes de representação do Povo soberano é a esta que cabe defi nir aquilo que se entende por manifestações de capacidade económica. O conceito deixa de ser entendido como uma limitação ao

11 Neste sentido G. Falsitta, Manuale ... cit., pág. 163 e seg.

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poder ou uma garantia do contribuinte que, devidamente representado no órgão eleito que determinou os limites e justiça da tributação, o fez no integral respeito e defesa dos interesses dos seus representados ou, pelo menos, da maioria deles.

Esta asserção torna aparentemente injustifi cada a consagração do princípio da capacidade contributiva, por evidente, desnecessária ou tautológica.

Convém assinalar no entanto que o conteúdo mínimo do princípio – que é o de que a tributação deve atingir manifestações de capacidade económica – está efectivamente consagrado no n.º1, parte fi nal, do artigo 104.º da Constituição portuguesa referido ao rendimento e necessidades dos agregados familiares o que constitui uma originalidade12.

A originalidade advém de duas ordens de razões; desde logo, por-que se tem em conta as necessidades do agregado familiar o que parece inculcar a possibilidade de imposto negativo, como defendeu nos tra-balhos preparatórios da reforma fi scal de 1989 o Professor Braga de Macedo; por outro lado, o defi nir-se como unidade de tributação o agregado familiar 13 estende o conceito de capacidade económica a um conjunto de cidadãos que podem ser, ou não, contribuintes individuais noutros impostos, revelando, ou não, capacidade contributiva parcelar.

Dos elementos apontados parece ser possível defender que está afl o-rado no ordenamento constitucional português o princípio da capacidade contributiva reportado ao agregado familiar embora a doutrina tenha sido

12 Neste sentido, SANCHES, José Luís Saldanha, A quantifi cação da obrigação tributária – deveres de cooperação, Autoavaliação e avaliação administrativa, CCTF (173), Lisboa, 1995, pág. 66.

13 Sobre a unidade familiar como sujeito fi scal vide: Manuel Pires, relatório nacional de Portugal, IX jornadas luso-hispano-americanas de estudos tributários, CCTF, (123), pág. 6 e segs.; Carlos Pamplona Corte-Real, refl exões críticas sobre recentes alterações legislativas em matéria de tributação da família em Portugal, IX jornadas luso-hispano-americanas de estudos tributários, CCTF, (123), pág. 61 e segs.; Vitor Faveiro, Família, Estado e imposto, IX jornadas...cit. , pág. 115 e segs. José Hermínio Paulo Rato Rainha, Algumas notas relativas à estrutura do imposto sobre o rendimento, IX jornadas...cit. , pág. 199 e segs.; vide igualmente, em Por-tugal, Ac. TC 57/95, DR, II, 12.04.95; em Itália, sentença 179, de 1976 in , Giu-risprudenza Costituzionale, ano 20.º(1976), vol.II,pág. 2159 e segs.; na Alemanha, Heinrich E. Horster, comentário à sentença do Tribunal Constitucional Alemão, in, Revista de Direito e Economia, ano III, n.º 2 (Julho-Dezembro 1977), pág. 493 e segs.

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até agora bastante restrita na análise da sua existência e consequências, talvez consciente das difi culdades de entendimento e aplicação que esse mesmo princípio criou noutros ordenamentos jurídicos14.

É, no entanto, a doutrina portuguesa, no caso representada por Car-los Pamplona Corte-Real 15 que, em estudo colectivo, vem defender de forma indirecta a existência do princípio no ordenamento jurídico por-tuguês em vigor antes da LGT ao apresentar uma nova perspectiva na utilidade do conceito.

Geralmente o conceito de capacidade contributiva está ligado à capacidade económica para pagar impostos.

Enquanto revelação de capacidade económica para pagar impostos tem como vimos já, um recorte positivo e um negativo. O recorte posi-tivo é o efectivo poder económico revelado pelo contribuinte; o negativo é revelado pela limitação que o princípio determina na aplicação da lei e na actuação da Administração na criação e cobrança dos impostos.

Os dois recortes citados têm leituras diversas, consoante são pers-pectivados pelo contribuinte ou pela Administração.

É assim que o recorte positivo pode ser entendido pelo contribuinte como uma limitação ao pagamento de impostos e o recorte negativo entendido pela Administração, como uma necessidade de introduzir métodos indiciários – entendidos como justos e igualitários – na deter-minação do rendimento.

O citado Professor Corte-Real vem introduzir uma outra função para o conceito de capacidade contributiva. A capacidade contributiva enquanto manifestação de intimidade privada, na sua vertente económica seria do foro restrito da relação específi ca, particularizada e única, entre o contribuinte e a Administração; neste contexto funcionaria como uma limitação da Administração Fiscal que não poderia revelar aquilo de que se apercebeu no que à capacidade contributiva do contribuinte diz res-peito, nem poderia em regra fornecer a terceiros, mesmo entidades públi-cas, esses elementos. A isto obrigaria a confi dencialidade fi scal.

14 A excepção em estudo anterior à LGT parece ser NABAIS, José Casalta, Con-tratos Fiscais, Coimbra, 1994.

15 Autor citado e outros, Breves refl exões em matéria de confi dencialidade fi scal, CTF n.º 368, 1992, pág. 7 e segs.

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A capacidade contributiva seria assim o elemento de natureza pes-soal que defi niria a fronteira de intimidade do contribuinte a que a Admi-nistração Fiscal teria acesso, mas que não poderia revelar.

Dos elementos apresentados não parece resultar a necessidade de um elemento de regularidade para que o conceito de capacidade contri-butiva seja aplicável. Podemos assim concluir que o conceito de capaci-dade contributiva está presente quando se está perante um ganho excep-cional do tipo da mais-valia.

Mas a questão que se coloca de imediato é a de saber se este ganho excepcional, pelo seu montante não coloca questões de equidade e igual-dade face às taxas progressivas do rendimento.

O princípio da igualdade é entendido na doutrina como tendo um sentido jurídico que corresponde a uma paridade de posição e tem o alcance acima referido e um sentido económico que consubstancia uma obrigação de contribuir em igual medida para os encargos públicos e que se relaciona com a capacidade contributiva16.

Como a essência e a função do sistema fi scal é discriminar – ampu-tando manifestações de riqueza e redistribuindo-a através das despesas públicas – é fácil compreender que o princípio da igualdade tem de ter uma expressão e entendimento específi cos em direito fi scal.

A questão é geralmente equacionada pela doutrina como uma opção entre a adopção de taxas proporcionais ou progressivas; ou seja, o prin-cípio da igualdade em direito fi scal pressuporia uma opção de base entre a adopção de uma visão de igualdade formal – a que corresponderia um sistema fi scal com taxas proporcionais – ou uma igualdade material – a que corresponderiam taxas progressivas.

O sistema português utiliza ambas as taxas embora preconize as progressivas no rendimento pessoal17.

16 Neste sentido, Victor Uckmar, Principi comuni di diritto costituzionale tri-butario, 2ª edição, CEDAM, 1999, pág. 64 e segs.

17 Para exemplos de constituições que consagram igualmente o princípio da progressividade dos impostos vide Victor Uckmar, Principi comuni di diritto costi-tuzionale tributario, 2ª edição, CEDAM, 1999, pág. 80, nota 56. Aí pode ver-se que para além da portuguesa consagraram a progressividade as seguintes constituições: Brasil (1946), art. 202; Chile (1925), art. 10; Alemanha Oriental (1949), art. 29; Jordânia (1952), art. 111; Itália (1947), art. 53; Síria (1950), art. 25; Espanha (1977), art. 31.1.; Venezuela (1947), art. 232;

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A questão inculca essa outra de saber se existe um conceito material de igualdade por oposição a um conceito formal de igualdade. Em direito fi scal, a questão da igualdade aparece intimamente ligada à questão da redistribuição do rendimento e às doutrinas económicas da utilidade marginal18. Tentemos responder à questão colocada.

A igualdade material pressupõe que o nível de rendimento das pessoas é idêntico? Pensamos que não. Igualdade material pode, tão só, signifi car em direito fi scal que o sistema fi scal redistribui o rendi-mento de forma a que todos possam ter um mínimo de sobrevivência com dignidade.

Esta redistribuição é feita amputando os rendimentos mais elevados de forma mais gravosa e os rendimentos menores de forma mais ligeira. Esta fórmula, permite uma concentração média de rendimento numa faixa ampla da população o que, por si só, pode representar a existência de um bem estar médio compatível com a noção de Estado social de direito.

Esta fórmula progressiva de tributação encontraria justifi cação na noção de utilidade marginal teorizada pelas diversas escolas margina-listas. Aqueles que mais auferem têm uma desnecessidade crescente do rendimento à medida que este aumenta.

A progressividade da tributação representaria tão só um ajusta-mento a essa desnecessidade colhendo para a redistribuição o que a mais tinha sido auferido.

A esta construção opõem-se os que vêm na tributação progressiva uma forma de amputação desnecessária e nociva do rendimento e desin-centivante do progresso económico e profi ssional. Desde logo, porque aqueles que mais ganham são – em regra – os que mais valor profi ssional têm, ou, pelo menos, uma maior procura de mercado.

A amputação do rendimento é uma forma de desincentivar o tra-balho e consequentemente uma forma de prejudicar aqueles que dele poderiam benefi ciar.

Por outro lado, a acumulação, que é condição de sanidade na for-mação do capital enquanto factor de produção, só surge com o ganho.

18 Para um resumo enquadrado da utilização do conceito de utilidade margi-nal aplicado aos impostos, implicações e contradições com remissão bibliográfi ca vide, Victor Uckmar, Principi comuni di diritto costituzionale tributario, 2ª edição, CEDAM, 1999, pág. 93 e segs.

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A tributação progressiva seria uma forma de impedir a acumulação de capital e consequentemente o desenvolvimento económico.

Se ligarmos a esta noção essa outra de que uma unidade de rendi-mento pública é menos efi caz que uma unidade de rendimento privado, então, isto implicaria a adopção de um sistema proporcional, privile-giando os melhores no sentido da acumulação e fazendo deles o motor da acumulação de capital e consequentemente do progresso económico.

Mas o princípio da igualdade não se esgota nesta dicotomia suma-riamente enunciada.

A doutrina francesa, por exemplo, reportando-se ao artigo 6 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que é parte integrante da Constituição francesa, entendeu o princípio, não somente como uma igualdade do contribuinte perante a lei, mas também como uma obriga-ção de criar soluções legislativas que respeitem a igualdade dos destina-tários na lei.

Neste sentido, o princípio da igualdade transforma-se numa limita-ção ao legislador na formulação de opções e comandos legislativos.

O tribunal constitucional francês, por exemplo, numa decisão de 27 de Dezembro de 1973 sobre um artigo da lei fi nanceira que tornava mais elástico o regime de taxação administrativa ou presumida dos pequenos contribuintes, não o aplicando aos grandes contribuintes, declarou vio-lado o princípio da igualdade.

A deliberação constitucional determinou que esta opção violava o princípio da igualdade19.

Nova sentença de 1989, a propósito da possibilidade legal que se procurava dar à Administração de, a todo o tempo, poder solicitar ao juiz fi scal a possibilidade de corrigir erros não substanciais, foi declarada inconstitucional por violação do princípio da igualdade ao não respei-tar a possibilidade de invocação de prescrição por parte do contribuinte colocando este numa situação de desigualdade perante a Administração.

O princípio da igualdade torna-se assim não numa mera opção de política fi scal quanto à forma das taxas a aplicar, mas um verdadeiro con-

19 Sobre esta matéria, vide, Loic Philip, Le procedure ed i metodi dell`accer-tamento tributario alla luce dei principi costituzionali, in L`accertamento tributario nella comunità europea. L`esperienza francese, separata Riv. di dir. fi n. sc. delle fi n. n. 1 – 1994 pág. 114 e segs. em especial pág. 122.

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dicionamento legislativo a que o legislador tem de atender na formulação legal que adoptar.

O princípio da igualdade é igualmente relevante ao nível da con-cessão de isenções, embora aqui haja que entender que as diferenças se estabelecem no mercado e são a maioria das vezes determinadas face a particularidades em concreto que são difi cilmente invocáveis pelos não benefi ciados pela isenção como uma violação do princípio da igualdade20.

Uma outra vertente importante do princípio da igualdade é o da repartição dos encargos públicos entendido na base de que quem suporta os encargos inerentes à tributação deverá ser tratado em condições de igualdade na aplicação das regras que impliquem penosidade e tem direito nas mesmas condições aos benefícios distribuídos.

Do afi rmado resulta que, desde que do ganho das mais-valias não resultem obrigações desproporcionadas atentatórias da igualdade não haveria limitação constitucional à sua tributação englobada e progressiva.

Mas o critério que põe em causa a tributação integrada das mais--valias e parece recomendar a sua tributação liberatória ou isenção é o conceito de neutralidade do capital.

O conceito de neutralidade é um conceito económico e é concebido como uma das expressões da mobilidade do factor de produção capital que é dos mais escassos e que justifi ca tantas soluções fi scais internacio-nais como as CDT os APPT e outras situações fi scais de excepção.

A neutralidade do capital visa garantir a sua livre circulação sem restrições signifi cativas que ponham em causa a sua utilização ou condu-zam o operador económico a fazer opções que resultem na impossibili-dade da sua obtenção.

Uma tributação integrada das mais-valias pode, por comparação, levar o agente económico a não investir nos activos que possam conduzir

20 Cabe recordar a afi rmação de Jorge Miranda de que «...todos (ou, em certas épocas ou situações, só alguns) têm os mesmos direitos e deveres -...». Cfr. Jorge Miranda, Direitos Fundamentais – Introdução Geral, Apontamentos das aulas, Lis-boa, 1999, pág. 118. Vide também Victor Uckmar, Principi comuni di diritto cos-tituzionale tributario, 2ª edição, CEDAM, 1999, pág. 69 e segs.; para um estudo dogmático das isenções e sua relação com a incidência vide, Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária, 3ª edição, Del Rey, Belo Horizonte, 2000.

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à sua obtenção, nomeadamente o mercado de capitais, vulgo a Bolsa de valores.

Isto introduz o nosso próximo foco de análise.

2.2. As mais-valias face às necessidades de fi nanciamento das econo-mias de médio e longo prazo e ao risco

É possível visualizar uma economia de mercado sem que os priva-dos individuais invistam na Bolsa de valores?

A resposta é, sem dúvida, positiva ou seja, é possível visualizar uma situação em que os privados representativos da pequena e média poupança não estariam no mercado de capitais nomeadamente não com-prando nem vendendo acções.

Isso seria bom para as empresas? Temos dúvidas de que assim fosse. A opção pelo investimento em acções ou outros títulos tem inerente

uma noção de risco em que a perda (menos-valia) está presente. Se o mercado de capitais fi car integralmente na mão das entidades bancárias e outros grandes veículos de investimento como os Fundos de Pensões isso será bom para o mercado de capitais e a sua função de captação da poupança? Achamos que não. A redução dos intervenientes no mercado conduz à sua cartelização e a médio prazo ao controlo o mercado per-dendo este a sua função reguladora.

A noção de capitalismo popular e o acesso à representação socie-tária nas empresas que se desenvolvem fazendo emissões de acções e obrigações como forma de captação do capital no mercado pode estar em causa se não existir uma relação de prémio entre a detenção de acções e o risco do mercado por um lado e a função de fi nanciamento e poupança de risco por outro.

É que, na subscrição de capital de uma sociedade que faz subscrição pública via mercado de capitais haverá sempre que admitir que esta tem função de captação de recursos do mercado que, a ser tratada como qual-quer outro capital como, por exemplo a poupança remunerada, vulgo os depósitos a prazo, não compensa comparativamente pelo risco de menos valia associado.

Teria assim de ser encontrado um estímulo para o risco associado às subscrições originárias de mercado que têm como função captar recursos fi nanceiros para os colocar no sector produtivo.

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O prémio à abstenção do consumo e ao risco de investir em acções não resulta claro, em termos absolutos e comparativos de um regime uniforme de tributação das mais-valias equiparável à tributação da pou-pança remunerada onde o risco é praticamente inexistente.

Haveria assim que distinguir entre subscrição originária e derivada privilegiando as emissões de capital das empresas cotadas em Bolsa e distinguindo-as das outras compras e vendas posteriores que já vêem as acções como uma mercadoria em mercado com função económica derivada (aparentemente mais apta a especulações e manipulações) por-que sem função económica directa de captar recursos para as empresas embora se deva assinalar que o mercado derivado é o garante de liquidez do activo que se detém e, nesse sentido, desempenha papel importante para a credibilidade do mesmo.

Uma política que visasse privilegiar a subscrição e detenção a médio e longo prazo de acções emitidas para fi nanciar investimentos produtivos parece aconselhar tratamento fi scal mais favorável que as outras formas de aplicação de recursos remuneradas que não têm risco signifi cativo associado.

O estabelecimento de taxas minoradas ou isenções ligadas à deten-ção por um período de tempo pelas pessoas singulares parecem-nos solu-ções equitativas e efi cazes na perspectiva do mercado de capitais e dos interesses da tributação e justifi cam a solução tomada pelo legislador de 1989 que teve a intenção clara de permitir a capitalização do mercado bolsista e de encontrar alternativas à poupança remunerada e ao fi nancia-mento bancário das empresas.

2.3. As mais-valias realizadas e o reinvestimento das mesmas

O carácter escasso do capital defi ne as traves fundamentais da tri-butação das mais-valias do ponto de vista da técnica tributária: a) só são tributáveis as mais-valias realizadas21; b) o valor reinvestido tem, em regra, tratamento favorável.

21 As excepções que representam os artigos 83.º e 84.º do CIRC na sua redacção actual de 2010 foram objecto de artigo por mim escrito e publicado na revista on line da

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Quanto às mais-valias realizadas o princípio afi gura-se de elemen-tar justiça e pragmatismo. Se as mais-valias latentes dessem origem a tributação onde iriam as empresas e outros agentes económicos ir buscar a liquidez necessária para o seu pagamento e como reembolsariam as menos-valias latentes ou realizadas?

A tributação do ganho realizado justifi ca-se, em consequência, numa razão de bom senso e boa economia.

O tratamento favorável do reinvestimento justifi ca-se por uma razão de pragmatismo fi scal. O reinvestimento da mais-valia mantém a disponibilidade fi nanceira afastada do consumo e, em regra, contri-bui para uma maior mais-valia tributável no futuro. O capital mantém-se produtivo ou alocado ao sector produtivo mas a aumentar a tributação potencial da mais-valia realizada e não reinvestida.

3. A aplicabilidade da norma

Uma norma contém em si, um comando para o futuro: Desde agora deve....

Pretender que uma norma pode dar efeito jurídico diferente do em vigor ao tempo da verifi cação dos factos é aceitar que a norma pode ser retroactiva.

O princípio da irretroactividade da lei fi scal22 pode ser compre-endido através da regra de que a lei fi scal não se aplica para o passado,

SEAST da Universidade de Bolonha e estão sob escrutínio pelo Tribunal de Justiça no processo C-38/10.

22 Sobre esta matéria vide: Klaus Tipke, La retroattività nel diritto tributario, in Trattato di diritto tributario diretto da Andrea Amatucci, vol. I, tomo I, Cedam, 1994, pág. 436 e segs.; Vasco Branco Guimarães, Retroactividade da lei fi scal – admissi-bilidade e limites, AAFDL, Lisboa, 1993; Jorge Bacelar Gouveia, Irretroactividade da norma fi scal na Constituição portuguesa, CTF n.º 387, pág. 49 e segs. (esta obra tem uma boa recensão da doutrina portuguesa sobre a matéria); idem, A proibição da retroactividade da norma fi scal na Constituição portuguesa, in Problemas fundamen-tais do direito tributário, Vislis Editores, 1999, pág. 33 e segs., obra esta que refl ecte uma maior profundidade e amadurecimento do autor quanto ao tema da retroactivi-dade; José Luis Saldanha Sanches, A segurança jurídica no Estado social de direito

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mas tão só para o futuro. A lei nova não se aplica, em princípio, aos fac-tos pretéritos e efeitos já decorridos de uma lei em vigor.

Este respeito pelos efeitos e factos relevados pela lei em vigor não deve ser confundido com a aplicação imediata, para o futuro, de uma lei, concepção teorizada por Paul Roubier nos anos vinte23.

A questão da irretroactividade da lei tem sido controversa ao longo dos tempos, no essencial, por duas ordens de razões.

A primeira é a da defi nição daquilo que se entende por retroactivi-dade ou aplicação retroactiva da lei. A segunda é a defi nição da fonte da proibição da aplicação retroactiva da lei fi scal, saber se esta representa uma limitação ao poder legislativo.

São poucos os exemplos de constituições que consagram expressa-mente o princípio da irretroactividade da lei de forma genérica. A maio-ria dos sistemas limitam-se a consagrar a irretroactividade da lei penal e das que afectam direitos fundamentais.

A ausência de proibição expressa da possibilidade de lei fi scal retroactiva permitiu no passado a consagração de leis com conteúdo retroactivo, tendo os órgãos judiciais competentes para a apreciação da eventual inconstitucionalidade declarado esta como não existente24 com base no argumento formal de que a Constituição não proibia expressa-mente a irretroactividade da lei fi scal e que esta era admissível, desde que moderada.

Já tivemos oportunidade de nos manifestar contra esta tese25 e defender a existência de consagração implícita do principio da irretro-actividade da lei fi scal no então n. .º 3 do artigo 106.º da Constituição 26 actual n.º 3 do artigo 103.º. A este preceito foi aditada, na revisão cons-titucional de 1997, a expressão «que tenham natureza retroactiva», con-sagrando assim a impossibilidade da existência de impostos retroactivos.

– conceitos indeterminados, analogia e retroactividade no direito tributário, CCTF (140), CEF, Lisboa, 1985.

23 Cfr. Paul Roubier, Les confl its de lois dans le temps (theorie dite de la non retroactivité des lois ), Paris, 1929.

24 Cfr. pareceres n.º 25/81 e n.º 14/82 da Comissão constitucional e Acordãos 11/83, 66/84, 141/85, 409/89, 216/90 e 410/95 do Tribunal constitucional.

25 Cfr. Vasco Branco Guimarães, retroactividade da lei fi scal – admissibilidade e limites, AAFDL, Lisboa, 1993.

26 Cfr. ibidem, pág. 85.

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Perante a inexistência de regra expressa que consagrasse o prin-cípio da irretroactividade os autores dividiam-se entre aqueles que iam buscar a legitimidade do princípio da irretroactividade ao princípio da legalidade27 ou ao princípio da igualdade28, havendo outros que se fun-damentam em princípios compósitos como o de Estado de direito29 ou em vários dos princípios citados30.

Original para a doutrina europeia parece ser a posição que faz deri-var o princípio da irretroactividade da capacidade contributiva como fazem alguns autores brasileiros31.

Na ausência de preceito expresso que proíba a retroactividade a noção do que possa ser retroactividade moderada que não viole os direi-tos fundamentais dos contribuintes é trabalho casuístico que só pode ser feito pelos tribunais devendo estes decidir, caso a caso, a admissibili-dade, ou não, do preceito com teor retroactivo32.

O problema é particularmente difícil quando a própria lei se atribui carácter retroactivo, sendo difícil (numa leitura positivista) a invocação

27 Cfr. Oliveira Salazar, Da retroactividade das leis em matéria tributária, in BFDUC, 1926, pág. 55; Fernando Pessoa Jorge, Curso de direito fi scal, Lisboa, 1964; Alberto Xavier, Manual de direito fi scal, I, 1974; Carlos Pamplona Corte--Real, Curso de direito fi scal, I, Lisboa, 1981; Domingos Pereira de Sousa, As garan-tias dos contribuintes, Lisboa, 1991; Nuno Sá Gomes, Manual de direito fi scal, II, 1996;

28 Cfr. Manuel Cortes Rosa, Aplicação temporal das normas fi scais, CTF n.ºs 25 e 26, 1961.

29 Cfr. José Luis Saldanha Sanches, A segurança jurídica no Estado social de direito – conceitos indeterminados, analogia e retroactividade no direito tributário, Lisboa, 1985; Manuel Pires, Direito Fiscal – apontamentos, Lisboa 1979 /1980; J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra, 1993.

30 Cfr. José Manuel Cardoso da Costa, Curso de direito fi scal, 2ª edição, Coim-bra, 1972.

31 Cfr. Américo Lourenço Masset Lacombe, Princípios constitucionais tributá-rios, Malheiros Editores, São Paulo, 1996, pág. 29.

32 Neste sentido a Jurisprudência do Tribunal Constitucional até à revisão de 1997; Cfr. Pareceres da Comissão Constitucional 25/81, 14/82, Acórdão 444, Acór-dãos n.ºs 11/83, 66/84, 141/85, 409/89, 216/90, 410/95, 275/98, tendo este último a particularidade de ser feito reportado a um facto anterior à alteração constitucional, mas ter sido emitido já depois da entrada em vigor da mesma.

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da legalidade ou da igualdade como justifi cações para a não retroacti-vidade de uma lei, que a si mesma atribui carácter e efeito retroactivo.

A consagração constitucional do princípio da irretroactividade da lei fi scal na Constituição portuguesa veio pacifi car em muito esta questão e acrescentar segurança ao ordenamento jurídico português.

Não queríamos deixar de notar que a criação e aplicação retroactiva de normas fi scais revela sempre e em todo o caso (na falta de circuns-tância grave ou anómala) um menos efi caz planeamento de quem tem a obrigação de gerir a «coisa pública».

E porque a história dos impostos está pejada de situações em que os direitos dos contribuintes foram desrespeitados, com o consequente rol de revoluções e convulsões sociais, é agradável constatar que o legisla-dor fi scal português atingiu e deu a maioridade ao povo português nesta matéria.

Nesta matéria, o legislador de 1989 foi particularmente cuidadoso ao consagrar uma regra de transição de aplicação das mais-valias que salvaguardava no artigo 5.º do Decreto-lei 442-A/88, de 30 de Dezem-bro, a aplicação às situações pendentes e às futuras com respeito pelo contribuinte e pela lógica do sistema.

O raciocínio do resultado do balanço como facto tributário só se aplica ao IRC e não aos rendimentos das pessoas singulares onde o prazo de detenção de uma acção para efeitos de aplicação da isenção se conta na base da regra FIFO e de acordo com a data de realização da mais-valia.

Esperemos que a Constituição possa ser cumprida sem necessidade de intervenção do Tribunal Constitucional.

4. Refl exões necessárias.

Do já escrito parecem resultar como refl exões necessárias as seguintes:

A) As mais-valias são formas complexas de manifestação de ren-dimento que deverá ser integrado no conceito de rendimento acréscimo e lucro tributável das empresas.

B) A noção de risco inerente à detenção de activos sujeitos a mais e menos-valias aconselha um tratamento específi co das subscri-ções originárias de aumento de capital das empresas e da mino-

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ração ou ausência de tributação nos casos de detenção prolon-gada por pessoas singulares.

C) Só devem ser tributadas as mais-valias realizadas.D) O reinvestimento das mais-valias realizadas deve ter tratamento

favorável por ser favorável à manutenção do capital no sector produtivo.

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Sérgio Gonçalves do Cabo

Nota sobre a prescrição de obrigações tributárias

Sérgio Gonçalves do Cabo

Mestre em Direito. Advogado.

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RESUMO

As alterações ao regime da prescrição das obrigações tributárias introduzidas pela Lei do Orçamento do Estado para 2007, motivadas pelos atrasos nas execuções fi scais e pela pendência processual, permitem que se fale de um novo regime da interrupção e suspensão da prescrição dos créditos tributários, mais próximo do regime civil, na medida em que a diligência na cobrança dos créditos fi scais – expressa na revogação do n.º 2 do artigo 49.º da LGT – passa a constituir um valor tão ou mais importante que a certeza e estabilidade das relações jurídico-tributárias. Contudo, apesar dessa aproxi-mação, continuam a existir especialidades na prescrição tributária, na medida em que o controlo da legalidade dos actos tributários justifi ca a interrupção da prescrição por actos imputáveis ao devedor.

A unicidade do facto interruptivo combinada com a diligência da Administração fi scal na cobrança dos seus créditos, permite antecipar uma signifi cativa redução dos casos de prescrição dos créditos tributários mas, em contrapartida, desloca o problema para a responsabilidade pela cobrança indevida de prestações tributárias, sobretudo naqueles casos em que, evitando-se a prescrição, poderá não se conseguir evitar a resti-tuição das quantias cobradas indevidamente, acrescidas de juros indemnizatórios a favor do contribuinte, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso.

Palavras-chave:Prescrição, Obrigações tributárias, Novo regime

ABSTRACT

The amendments to the prescription of tax obligations introduced by the law of the State budget for 2007, motivated by the delays in tax executions and pending litigation, allows us to talk about a new regime for the interruption and suspension of prescriptive periods of tax credits, closest to the civilian rule, insofar as the diligence in collecting tax credits – expressed in the repeal of paragraph 2 of article 49 of the General Tax Law – becomes a value as or more important than certainty and legal stability of tax relations. However, despite such approximation, there still exists a sound specialty in the prescrip-tion of tax obligations, insofar as judicial control of the validity of tax acts still justifi es the interruption of the prescription period by acts attributable to the tax debtor.

The circumstance that the new regime only allows for a single interruption of the prescription period, combined with more diligence in tax collection, allows us to antici-pate a signifi cant reduction of cases of loss of tax credits by prescription, but also shifts the problem from prescription to responsibility for improper tax collection, especially in those cases where, avoidance of prescription may not avoid the refund of amounts col-lected improperly, plus interest, in the event of total or partial success of a tax complaint or judicial appeal.

Keywords:Prescription period, Tax obligations, New regime

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1. Introdução

Apesar de se situar na confl uência do direito civil com o direito tributário, a questão da prescrição das obrigações tributárias foi consi-derada estranha ao direito privado por se entender que os créditos tribu-tários, sendo irrenunciáveis, não se poderiam extinguir por prescrição (artigo 298.º, n.º 1 do Código Civil).1 Por isso, a questão da prescrição das dívidas fi scais foi sempre regulada pelo direito tributário, desde o Código das Execuções Fiscais de 1913 até à Lei Geral Tributária (LGT) de 1998 e ao Código do Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) de 1999. Como nota SOARES MARTINEZ, enquanto no direito privado o instituto da prescrição encontra o seu fundamento «na negligência, no desinteresse, do credor, que seriam interpretados como renúncia tácita ao seu direito», no direito fi scal o instituto da prescrição encontra o seu fundamento «na certeza e estabilidade das relações sociais, que não se compadecem com a cobrança de impostos cujos pressupostos, ou cujo vencimento, se situem em épocas muito remotas».2

Contudo, isso não signifi ca que as normas fi scais regulem todos os aspectos da prescrição, sendo frequente a aplicação das normas de direito civil quando a solução para o caso concreto não resulta de forma directa ou imediata do direito fi scal.3 Ainda recentemente e face à redac-ção actual do artigo 49.º, n.º 3 da LGT,4 o Supremo Tribunal Administra-tivo (STA) considerou aplicáveis à interrupção da prescrição tributária as normas dos artigos 326.º, n.º 1 e 327.º, n.º 1 do Código Civil.5

1 Cf. Soares Martinez, Direito Fiscal, 7.ª edição, Almedina, 1993, p. 274 e Benja-mim Silva Rodrigues, A Prescrição no Direito Tributário, in AAVV, Problemas Funda-mentais do Direito Tributário, Vislis Editores, 1999, pp. 264-265.

2 Cf. Soares Martinez, Direito Fiscal, cit., p. 274. No mesmo sentido se pronuncia BENJAMIM SILVA RODRIGUES, A Prescrição no Direito Tributário, cit., pp. 264-265.

3 Com exclusão, naturalmente, das normas de direito civil que pressuponham o exercício de poderes de disposição por parte do credor ou a natureza renunciável do cré-dito (cf. Benjamim Silva Rodrigues, A Prescrição no Direito Tributário, cit., p. 264-265).

4 Introduzida pelo artigo 89.º da Lei do Orçamento do Estado para 2007 (Lei n.º 53-A/2006, de 29de Dezembro).

5 Acórdão de 12 de Agosto de 2009, proc.º n.º 0748/09, disponível em http://www.dgsi.pt/.

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Nesta conformidade, para se encontrar o regime de prescrição fi s-cal, torna-se necessário trabalhar com as fontes de direito tributário e com as fontes de direito civil, sempre que o primeiro não contenha a solução integral para os problemas suscitados e as normas do segundo não pressuponham o exercício de poderes de disposição por parte do credor, incompatíveis com a indisponibilidade dos créditos tributários.6

Esta conjugação de disciplinas normativas é particularmente rele-vante na sequência da alteração ao regime da prescrição das dívidas tri-butárias introduzida pela Lei do Orçamento do Estado para 2007, uma vez que foi revogada a principal especialidade da prescrição tributária face à prescrição civil, a saber: a norma no n.º 2 do artigo 49.º da LGT, que disciplinava a conversão da interrupção da prescrição em suspensão da prescrição sempre que o processo estivesse parado por período supe-rior a um ano por facto não imputável ao sujeito passivo.7

2. Especialidades da prescrição tributária

A distinção entre suspensão e interrupção da prescrição é clara no direito civil. O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido (artigo 306.º, n.º 1 do Código Civil) e suspende-se nos casos previstos na lei (artigos 300.º e 318.º a 322.º do Código Civil). Esgotado o período de suspensão, o prazo retoma a sua contagem nor-mal, independentemente de se poderem verifi car – ou não – novos factos suspensivos ou interruptivos.

Porém, havendo interrupção da prescrição (v. g., pela citação ou notifi cação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirecta-mente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompet ente) o tempo decor-rido anteriormente é inutilizado, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo (artigos 323.º e 326.º do Código Civil). Se a inter-

6 Cf. Jorge Lopes de Sousa, Sobre a Prescrição da Obrigação Tributária – Notas Práticas, Áreas Editora, 2008, p. 18, considerando que «as obrigações tributárias são uma modalidade de obrigações, pelo que às prestações tributárias devem aplicar-se supletivamente as regras gerais das obrigações, previstas no CC».

7 Cf. artigo 90.º da Lei do Orçamento do Estado para 2007.

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rupção resultar de citação, notifi cação ou acto equiparado, ou de compro-misso arbitral, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não transitar em julgado decisão que ponha termo ao processo e, quando ocorra desistência ou a absolvição da instância, o novo prazo prescricio-nal começa a correr logo após o acto interruptivo (artigo 327.º do Código Civil).

Signifi ca isto que, no direito civil, a interrupção da prescrição tem como consequência a inutilização do tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo, que exprime a intenção de exercer o direito por parte do credor, o compromisso arbi-tral ou o reconhecimento do direito (artigos 323.º, 324.º e 3256.º do Código Civil).

Esta regra vigorava igualmente no direito fi scal, mas com uma especialidade: se o processo estivesse parado durante mais de um ano por facto não imputável ao contribuinte (ou seja, por inércia da Adminis-tração tributária), cessava o efeito interruptivo da prescrição, somando--se o tempo que tivesse decorrido após a cessação do efeito interruptivo ao que tivesse decorrido até à data da autuação do processo.

A compreensão desta especialidade fi scal exige várias explicações:

– Em primeiro lugar, a explicação de que no direito fi scal o facto interruptivo dá sempre origem a um processo, quer quando cor-responde ao exercício coactivo do direito de crédito por parte da Administração Fiscal (processo de execução fi scal), quer quando se traduz na utilização de mecanismos impugnatórios por parte do contribuinte (processo de reclamação, processo de recurso hierárquico, processo de impugnação judicial);

– Em segundo lugar, o facto interruptivo no direito fi scal tanto pode consistir num acto que exprima a intenção de exercer o direito por parte do credor (a execução fi scal), como pode consistir num facto que exprima o exercício das garantias (graciosas e conten-ciosas) do contribuinte;

– Em terceiro lugar, a inutilização do tempo decorrido anterior-mente (típica da interrupção da prescrição) começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo só ocorre se o processo não estiver parado, pois se o processo estiver parado durante mais de um ano por facto não imputável ao contribuinte, então

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volta a correr o prazo antigo – é como se a interrupção tivesse a natureza de uma mera suspensão do prazo;8

– Em quarto lugar, a degradação do facto interruptivo em facto sus-pensivo visa penalizar a inércia da administração, quer na reali-zação coactiva do seu próprio direito nos casos de paragem por mais de um ano do processo de execução fi scal por facto não imputável ao contribuinte, quer na realização da justiça fi scal, apurando, em sede de reclamação, recurso hierárquico ou impug-nação judicial, os direitos do contribuinte;

– Em quinto lugar, a administração fi scal só é penalizada sempre que a paragem do processo lhe seja imputável. Se for imputá-vel ao contribuinte, por exemplo, porque este ofereceu garantia que suspendeu a execução (artigo 169.º do CPPT), a paragem do processo não lhe é imputável (daí que a suspensão da execução devido ao pagamento em prestações ou à constituição de garantia determine, igualmente, a suspensão da prescrição);

– Em sexto lugar, a regra da degradação do facto interruptivo em facto suspensivo torna irrelevante a distinção entre interrupção e suspensão da prescrição. Sempre que esta regra se aplica, não começa a correr novo prazo a partir do acto interruptivo, mas cessa o efeito interruptivo e volta a correr o prazo prescricional. Naturalmente que o tempo da suspensão não se aproveita para a contagem da prescrição, uma vez que nesse período o prazo não correu (esteve suspenso).

As difi culdades de aplicação deste sistema da degradação do facto interruptivo em facto suspensivo conduziram o legislador à sua elimina-ção, de tal forma que, a partir de Lei n.º 53-A/2006, a interrupção inuti-liza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo, o qual se suspende, no entanto, enquanto não houver decisão defi nitiva ou transitada em jul-gado, que ponha termo ao processo, nos casos de reclamação, impugna-ção, recurso ou oposição, quando determinem a suspensão da cobrança

8 Cf. acórdão do STA de 17 de Janeiro de 2007, proc.º 01129/06.

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da dívida exequenda (artigo 49.º, n.º 4 da L GT, na redacção da Lei n.º 53-A/2006).9

A solução agora em vigor é muito mais simples e coerente com as soluções constantes do direito civil (artigos 326.º e 327.º do Código Civil) e aplica-se a todos os prazos de prescrição em curso, objecto de interrupção, desde que ainda não tenha decorrido o período superior a um ano de paragem do processo por facto não imputável ao sujeito pas-sivo (artigo 91.º da Lei n.º 53-A/2006). Ou seja, se o ano de paragem já se tiver consumado em 2006, o facto interruptivo continua a valer como facto suspensivo devido ao sistema da degradação do facto interruptivo vigente até 31 de Dezembro de 2006. Se o ano de paragem já se consu-mar em 2007, o facto interruptivo continua a valer como tal, sendo irre-levantes eventuais paragens do processo, uma vez que começou a correr novo prazo a partir do acto interruptivo, o qual se suspende enquanto não houver decisão defi nitiva ou transitada em julgado, que ponha termo ao processo, quando a reclamação, impugnação, recurso ou oposição deter-minem a suspensão da cobrança da dívida.10

Além disso, a coerência agora atingida com a eliminação do sistema de degradação do facto interruptivo em facto suspensivo, permite estabe-lecer a regra de que a interrupção tem lugar uma única vez, com o facto que se verifi car em primeiro lugar (artigo 49.º, n.º 3 da LGT, na redac-ção da Lei n.º 53-A/2006) e que enquanto não houver decisão defi nitiva ou transitada em julgado, que ponha termo ao processo, o novo prazo de prescrição não corre, encontrando-se suspenso, desde que tenha sido prestada garantia pois, nos termos dos artigo 169.º do CPPT, a reclama-ção, impugnação, recurso ou oposição só suspendem a cobrança coerciva se tiver sido prestada ou constituída garantia ou se a penhora garantir a totalidade da quantia exequenda e do acrescido.

Na hipótese inversa, isto é, se não tiver sido prestada ou constituída garantia ou se a penhora não garantir a totalidade da quantia exequenda e acrescido, o novo prazo de prescrição continua a correr e a Administra-ção poderá proceder à venda dos bens penhorados, reverter a execução

9 Cf. acórdão do STA de 12 de Agosto de 2009, proc.º 0748/09.10 Cf. Jorge Lopes de Sousa, Sobre a Prescrição da Obrigação Tributária – Notas

Práticas, cit., p. 62.

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contra os responsáveis solidários ou subsidiários, e requerer a declaração da falência junto do tribunal competente (artigo 182.º do CPPT).

3. Avaliação do novo sistema da prescrição tributária

A aproximação do regime da prescrição fi scal ao regime da prescri-ção civil resultante das alterações à LGT introduzidas pelos artigos 89.º e 90.º da Lei n.º 53-A/2006, se, por um lado, torna mais simples o sistema, por outro, parece ter privilegiado as razões ligadas ao não exercício do direito ou à chamada negligência do credor, em prejuízo das razões de certeza e segurança jurídica que tradicionalmente conformam o regime da prescrição fi scal.

Com efeito, a inércia da Administração na cobrança do seu cré-dito (execução fi scal) ou a pendência processual (nos casos da utilização de meios graciosos ou contenciosos de revisão ou anulação da liquida-ção) deixaram de poder afectar o decurso da prescrição, muito embora o respectivo prazo continue a ser muito inferior aos que já vigoraram no nosso ordenamento jurídico-tributário (20 anos e 10 anos) e ao prazo de prescrição ordinária do direito civil (20 anos). Dir-se-á, por isso, que as razões de certeza e segurança jurídica que tradicionalmente conformam a prescrição fi scal se encontram agora mais no prazo de prescrição dos créditos fi scais (8 anos para os créditos por impostos e taxas e 5 anos no caso das contribuições para a segurança social) do que no regime de interrupção ou suspensão da prescrição propriamente dito, o qual pro-cura evitar as consequências nefastas para o erário público decorrentes da negligência do credor na cobrança da prestação tributária ou da pen-dência processual.

Não obstante, a eliminação do regime de conversão da interrupção da prescrição em suspensão da prescrição – constante do n.º 2 do artigo 49.º da LGT – teve como contrapartida a previsão de que a «interrupção tem lugar uma única vez, com o facto que se verifi car em primeiro lugar» (artigo 49.º, n.º 3 da LGT, na redacção da Lei n.º 53-A/2006), o que cor-responde à eliminação, pela via legislativa, da jurisprudência que admi-tia a pluralidade de factos interruptivos da prescrição, a qual, embora suportada na letra da lei, comprometia as razões de certeza e segurança jurídica normalmente subjacentes ao regime da prescrição fi scal, que se

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poderia prolongar indefi nidamente, bastando que não houvesse sobrepo-sição de factos interruptivos ou que o processo não estivesse parado por mais de um ano por facto imputável ao contribuinte.

Quer isto dizer que em virtude da nova redacção do artigo 49.º da LGT, a interrupção da prescrição só pode ocorrer uma vez e que o facto interruptivo provoca a inutilização para a prescrição do tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo de prescrição a partir do acto interruptivo. Contudo, salvo no caso de citação para a execução fi s-cal, a generalidade dos actos interruptivos não corresponde à intenção de exercício do direito por parte do credor, mas sim à reclamação, recurso hierárquico, impugnação judicial e pedido de revisão ofi ciosa da liquida-ção; todos actos imputáveis ao contribuinte.

Ou seja, ao contrário do que sucede no direito civil, a interrupção da prescrição não decorre de actos que exprimam, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito por parte do credor, do compromisso arbi-tral ou do reconhecimento do direito, mas sim do exercício, por parte do contribuinte, dos mecanismos de revisão ou anulação judicial do acto tri-butário ao seu dispor. Ou seja, no direito fi scal, regra geral, é o devedor e não o credor que provoca a interrupção da prescrição.

Dir-se-á, à primeira vista, que bastaria a citação para interromper a prescrição, uma vez que a partir do momento em que o contribuinte seja citado para a execução fi scal fi ca interrompida a prescrição, sendo irre-levante a questão de saber se exerceu – ou não – os respectivos direitos impugnatórios. Nesta óptica, não deveria ser a iniciativa do contribuinte a interromper a prescrição, uma vez que só a diligência da Adminis-tração fi scal na cobrança dos seus créditos justifi caria a interrupção da prescrição.

Contudo, se a prescrição no direito fi scal se funda em razões de estabilidade, certeza ou segurança das situações jurídicas, faria pouco sentido não admitir a sua interrupção a partir do momento em que o contribuinte põe em crise os pressupostos subjacentes ao acto tributário. De facto, na prescrição em direito fi scal não se joga apenas a diligência da Administração na cobrança do seu crédito, estão igualmente presen-tes elementos de controlo da legalidade que justifi cam a interrupção da prescrição por actos imputáveis ao devedor.

Esta solução é devidamente temperada pelo mecanismo da suspen-são da prescrição sempre que seja instaurada execução (elemento de dili-

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gência da Administração fi scal) uma vez que a reclamação, impugnação, recurso ou oposição, só determinam a suspensão da cobrança da dívida se for prestada garantia (artigo 49.º, n.º 4 da LGT, na redacção da Lei n.º 53-A/2006).

Signifi ca isto que o novo regime da interrupção e suspensão da prescrição dos créditos tributários (que se aplica igualmente às dividas de taxas e de contribuições para a segurança social), apesar de se aproxi-mar do regime civil em virtude da eliminação do n.º 2 do artigo 49.º da LGT, continua a afastar-se dele na medida em que as especialidades do controlo da legalidade dos actos tributários justifi cam a interrupção da prescrição por actos imputáveis ao devedor.

Por outro lado, se é verdade que foram preocupações com a negli-gência do credor na cobrança da prestação tributária ou com a pendência processual, que justifi caram a revogação do n.º 2 do artigo 49.º da LGT, não é menos verdade que a unicidade do facto interruptivo combinada com a diligência da Administração fi scal na cobrança do seu crédito difi cilmente conduzirá à sua prescrição, uma vez que, se não for pres-tada garantia, a execução fi scal pode chegar à fase da venda dos bens penhorados, à reversão da execução contra os responsáveis solidários ou subsidiários (com a particularidade de a interrupção da prescrição não produzir efeitos quanto ao responsável subsidiário se a sua citação para o processo de execução fi scal não tiver lugar no prazo de cinco anos após a liquidação11), ou mesmo ao requerimento da declaração da falência junto do tribunal competente (artigo 182.º do CPPT).

4. A aplicação no tempo das normas relativa à prescrição das obri-gações tributárias

Seja como for, a verdade é que a sucessão de normas em matéria de interrupção e suspensão da prescrição dos créditos tributários tem susci-tado delicados problemas de aplicação da lei no tempo,12 os quais foram

11 Artigo 48.º, n.º 3 da LGT.12 O artigo 48.º, n.º 1 da LGT foi modifi cado pela Lei n.º 55-B/2004 de 30 de

Dezembro e o artigo 49.º da LGT foi modifi cado por duas vezes. A primeira pela Lei

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sintetizados nos seguintes termos em acórdão recente tirado por unani-midade na 2.ª secção do Supremo Tribunal Administrativo13:

«(…)quando se trata de saber qual a lei aplicável ao prazo de prescrição

em curso à data da entrada em vigor da LGT, há que convocar, não a regra geral sobre a aplicação da lei no tempo prevista no artigo 12.º do C. Civil, mas a regra plasmada no artigo 297.º do mesmo Código.

«Já a sucessão no tempo das demais normas tributárias, designada-mente daquelas que disciplinam os restantes aspectos do instituto da pres-crição das obrigações tributárias, tem de ser resolvida pela aplicação da regra contida no artigo 12.º da LGT e, subsidiariamente, pela regra geral de direito fi rmado no nosso sistema jurídico e constante do artigo 12.º do Código Civil, das quais resulta que a lei nova apresenta, em regra, efi cácia prospectiva.

«(…)Por força daquela regra da aplicação prospectiva da nova lei, as nor-

mas tributárias contidas na LGT não se aplicam a factos e efeitos consu-mados no domínio da lei anterior; mas se essas normas defi nirem o conte-údo (ou efeitos) de relações jurídico-tributárias duradouras, sem referência ao facto que lhes deu origem, elas vão aplicar-se não só às relações e situ-ações jurídicas que se constituírem após a sua entrada em vigor, como, também, a todas aquelas que, constituídas antes, protelem a sua vida para além do momento da entrada em vigor da nova regra.

«As normas da LGT que instituíram causas suspensivas e interrup-tivas do prazo de prescrição sem correspondência com as previstas na lei antiga (n.º 1 e 3 do art.º 49.º), não dispõem sobre as condições de vali-dade formal ou substancial do facto tributário ou da respectiva obrigação, dispondo apenas sobre o conteúdo de situações jurídicas que, com base naqueles factos, se constituíram. Isto é, essas normas conexionam-se com o direito, sem referência aos factos geradores da obrigação e da respectiva prescrição, pelo que nada obsta à aplicação dessas normas da LGT às situ-ações tributárias que subsistam à data da sua entrada em vigor.

100/99, de 26 de Julho, que alterou os n.ºs 1 e 3; a segunda pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que revogou o n.º 2, alterou o n.º 3 e aditou o n.º 4.

13 Acórdão, de 13 de Janeiro de 2010, proc.º n.º 01148/09.

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«Assim sendo, a LGT é competente para determinar e reger os even-tos interruptivos e suspensivos que ocorram na sua vigência, ainda que ati-nentes a prazos prescricionais iniciados na vigência do CPT, sem que isso represente um efeito retroactivo da lei nova ou uma ofensa aos princípios da legalidade e da separação de poderes.

«Ocorrendo sucessivas causas de interrupção da prescrição antes da entrada em vigor da actual redacção do n.º 3 do artigo 49.° da LGT (intro-duzida pelo art.º 89.° da Lei 53-A/2006, de 29/12), devem todas elas ser consideradas, desde que ocorram após a cessação do efeito interruptivo das anteriores».

Neste acórdão distinguem-se dois problemas muito diferentes que frequentemente andam confundidos:

– O problema aplicação no tempo da lei nova quando esta regula o prazo de prescrição, aumentando ou encurtando a sua duração;

– O problema da aplicação no tempo da lei nova quando esta dis-põe sobre as causas interruptivas e suspensivas da prescrição.

5. O problema aplicação no tempo da lei nova quando esta regula o prazo de prescrição, aumentando ou encurtando a sua duração

Começando pela primeira questão ela não é nova no nosso direito fi scal. Colocou-se aquando da entrada em vigor do CPT, que reduziu o prazo de prescrição de 20 anos para 10 anos. Nesse âmbito, a juris-prudência uniforme da 2.ª secção do STA pronunciou-se no sentido da aplicação do n.º 1 do artigo 297.º do Código Civil à contagem do prazo de prescrição da obrigação tributária previsto no artigo 34.º do Código de Processo Tributário (CPT), com referência ao artigo 27.º do Código de Processo das Contribuições e Impostos (CPCI).14

Assim, a solução legislativa inscrita no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto--Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, que aprova a Lei Geral Tributária

14 Cf., entre muitos outros, o acórdão do STA de 17 de Fevereiro de 1993, proc.º n.º 15674, o acórdão do STA de 25 de Maio de 1994, proc.º n.º 16776 e o acórdão do STA de 29 de Março de 1995, proc.º n.º 18266.

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(LGT), correspondia já ao entendimento jurisprudencial no âmbito da sucessão do CPT ao CPCI.15

Nos termos do artigo 297.º, n.º 1 do Código Civil, «a lei que esta-belecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fi xado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar».

Naturalmente que a questão que se coloca face a esta norma do Código Civil consiste em saber quando é que, segundo a lei antiga, falta menos tempo para o prazo se completar, sobretudo quando a lei nova, como foi o caso do CPT face ao CPCI e da LGT face ao CPT, estabelece um prazo mais curto.

Mais concretamente, essa contagem deve fazer-se em abstracto ou em concreto: isto é, deve ter-se em conta eventuais factos interruptivos ou suspensivos para averiguar qual o prazo de que vence primeiro, se o da lei antiga, se o da lei nova?

Segundo a jurisprudência essa aferição deve ser feita em concreto, ou seja, conta-se o prazo segundo a lei antiga e segundo a lei nova com-putando eventuais interrupções ou suspensões, de modo a verifi car qual deles se completa em primeiro lugar.

Assim entendeu-se no acórdão do STA de 1 de Julho de 2009 (proc.º n.º 0307/09) que o IRC de 1995 prescreve segundo a LGT porque «no momento da entrada em vigor da LGT, todo o período de prescri-ção estava inutilizado pelo que, à face do CPT faltavam 10 anos para a prescrição se completar e, consequentemente, faltava menos tempo para a prescrição se completar à face da LGT pois é de oito anos o prazo de prescrição (…)». Também no acórdão do STA de 9 de Setembro de 2009 (proc.º n.º 0571/09) se entendeu que o IRS de 1997 e de 1998 prescreve segundo o prazo mais curto estabelecido na LGT, pois por aplicação do CPPT faltaria mais tempo para o prazo se completar. Já no acórdão do STA de 14 de Outubro de 2009 (proc.º n.º 0657/09) se entendeu ser de aplicar o prazo de prescrição previsto no CPT a uma dívida de IVA de 1993; no acórdão do STA de 11 de Novembro de 2009 (proc.º 0629/09) considerou-se que as dívidas de IVA e Juros Compensatórios dos anos de

15 O artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, dispõe que ao novo prazo de prescrição se aplica o disposto no artigo 297.º do Código Civil.

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1993 e 1994, e uma dívida de IRS de 1994, prescrevem no prazo de dez anos fi xado no CPT; e no acórdão do STA de 2 de Dezembro de 2009 (proc.º n.º 0951/09) o prazo de prescrição de dez anos, estabelecido no artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, no caso de dívidas à segurança social.

Signifi ca isto que não é possível a priori e em abstracto, determinar qual o prazo que se vence primeiro, se o da lei antiga se o da lei nova. Para tanto será sempre necessário analisar o caso concreto para ver qual dos prazos se completa primeiro, pois é esse o critério de decisão esta-belecido no artigo 297.º, n.º 1 do Código Civil, sempre que a lei nova estabelecer um prazo mais curto que o fi xado na lei antiga. Por isso é necessário ter em conta as causas suspensivas e interruptivas do prazo de prescrição ocorridas ao abrigo da lei antiga.16

16 Parecem ir neste sentido as observações de JORGE LOPES DE SOUSA a propósito da aplicação do artigo 297.º do Código Civil à prescrição da obrigação tributária, nome-adamente quando refere que «a determinação do prazo de prescrição a aplicar faz-se no momento da entrada em vigor da nova lei» e que «o que releva para determinação do prazo a aplicar é o tempo que falta, em abstracto, sem ponderar a interferência de causas de suspensão ou interrupção da prescrição que possam a vir a ocorrer na vigência da lei nova, só constatáveis a posteriori» (sublinhado nosso). Segundo LOPES DE SOUSA, a expressão falte constante da parte fi nal do n.º 1 do artigo 297.º do Código Civil «tem o signifi cado evidente de colocar o intérprete, para determinar qual o prazo a aplicar, num momento anterior à consumação da prescrição, quando ainda não pode saber quais os factos interruptivos e suspensivos que virão a ocorrer» – à luz da lei nova, acrescentamos nós (cf. Sobre a Prescrição da Obrigação Tributária – Notas Práticas, Áreas Editora, 2008, p. 86).

Torna-se, por isso, necessário, ver quanto tempo falta para se consumar a prescri-ção à luz da lei antiga, tendo em conta os factos interruptivos e suspensivos ocorridos no seu âmbito temporal de vigência, os quais podem, ou não, continuar a produzir efeitos no âmbito de vigência da lei nova. Assim se compreende que LOPES DE SOUSA afi rme que a contagem do prazo se faz, considerando o momento da entrada em vigor da lei nova, mas «considerando tudo o que consta da lei antiga (início, causas de suspensão e de interrupção)». Para LOPES DE SOUSA, ««segundo a lei antiga» signifi ca calcular o prazo de prescrição que decorreu até à entrada em vigor da lei nova nos termos que a lei antiga prevê a respectiva contagem» (cf. Sobre a Prescrição da Obrigação Tributária – Notas Práticas, Áreas Editora, 2008, p. 87).

No entanto, como as normas sobre factos suspensivos ou interruptivos constantes da lei nova são de aplicação imediata (artigo 12.º, n.º 2 do Código Civil e acórdão do STA, de 13 de Janeiro de 2010, proc.º n.º 01148/09), importará verifi car em que medida

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Vejamos agora o problema da aplicação no tempo da lei nova quando esta dispõe sobre as causas interruptivas e suspensivas da prescrição.

6. O problema da aplicação no tempo da lei nova quando esta dispõe sobre as causas interruptivas e suspensivas da prescrição

O STA tem seguido o entendimento de que as causas suspensivas e interruptivas do prazo de prescrição são de aplicação imediata, isto é, são independentes dos factos geradores da obrigação tributária e respectiva prescrição, pelo que nada obsta à aplicação das normas da LGT às situa-ções tributárias que subsistam à data da sua entrada em vigor.

Assim, segundo o acórdão do STA de 13 de Maio de 2009 (proc.º n.º 0240/09) os factos ocorridos na vigência da lei antiga têm o efeito que ela mesma lhes atribui, mas os factos ocorridos na vigência da lei nova têm os efeitos que esta lhes atribui. Signifi ca isto que um facto pode ter efeito suspensivo ou interruptivo da prescrição no momento em que ocorreu, mas pode já não ter esse efeito se ocorrer na vigência da lei

existem factos suspensivos ou interruptivos cujos efeitos se continuem a produzir no âmbito de aplicação da lei nova e em que medida tais factos ainda produzem esses efeitos face à lei nova.

Assim, segundo o acórdão do STA de 1 de Julho de 2009 (proc.º n.º 0307/09), rela-tado por LOPES DE SOUSA, importa ter em conta o momento da entrada em vigor da LGT. Se, nesse momento, o período de paragem do processo por mais de um ano por causa não imputável ao contribuinte já se tiver consumado, passando o facto interruptivo a revestir natureza suspensiva, pode dar-se o caso de a prescrição ocorrer primeiro por aplicação da lei antiga. Não sendo esse o caso no momento da entrada em vigor da LGT, o acórdão considera que «todo o período de prescrição estava inutilizado pelo que, à face do CPT faltavam 10 anos para a prescrição se completar e, consequentemente, faltava menos tempo para a prescrição se completar à face da LGT». Nesta conformidade, o acórdão considerou aplicável a LGT, contando o prazo de oito anos desde a data da sua entrada em vigor. Porém, como em 22 de Janeiro de 1999 se completou um ano de paragem do processo por facto não imputável ao contribuinte e porque «o efeito interruptivo e sus-pensivo que é reconhecido à impugnação judicial enquanto o processo não parar por mais de um ano é comum ao CPT e a LGT», o acórdão entende que «não se coloca aqui um problema de aplicação das leis no tempo, devendo entender-se que esse efeito suspensivo se manteve até 22-1-1999» e, por isso, «é a partir de 23-1-1999 que se deve contar o prazo de prescrição de oito anos».

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nova. Esta jurisprudência é reiterada no acórdão do STA de 12 de Agosto de 2009 (proc.º n.º 0748/09) em cujo sumário se escreve que «havendo sucessão de leis no tempo, a lei nova é competente para determinar os efeitos que sobre o prazo de prescrição têm os factos que ocorrem na sua vigência, por força do disposto no artigo 12.° do Código Civil».

Para além da aplicação imediata das normas da lei nova aos fac-tos suspensivos ou interruptivos verifi cados no seu âmbito temporal de vigência, o STA, depois de algumas hesitações – em que defendeu que o prazo de prescrição se interrompia uma única vez com a ocorrência do primeiro acto interruptivo e que uma vez cessado o seu efeito não havia que relevar factos posteriores, capazes, em abstracto, de actuar como fac-tor de interrupção da prescrição – após os acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário de 24 de Outubro de 2007 (proc.º n.º 0244/07) e de 28 de Maio de 2008 (proc.º n.º 0840/07), fi xou-se no sentido de que, ocorrendo sucessivas causas de interrupção da prescrição, todas devem elas ser consideradas, desde que ocorram após a cessação do efeito interruptivo das anteriores.

Assim, caso se sucedam no tempo vários factos interruptivos da prescrição, cada um deles produz o seu efeito interruptivo próprio. Porém, estando interrompido o prazo prescricional pela ocorrência de algum facto a que a lei associa esse efeito, a posterior verifi cação eclo-são de outro é inócua pela impossibilidade de interromper o que já está interrompido. Porém, se, após a cessação do efeito interruptivo, ocorrer nova causa de interrupção da prescrição, não pode deixar de se lhe atri-buir esse efeito (cf. acórdão do STA, de 13 de Janeiro de 2010 [proc.º n.º 01148/09]).

Tomando posição nesta matéria, o legislador, ao mesmo tempo que revogou a regra segundo a qual a paragem do processo a que a lei atri-buiu efeito interruptivo, por período superior a um ano, por facto não imputável ao sujeito passivo, faz cessar o efeito interruptivo «somando--se, neste caso, o tempo que decorrer após esse período ao que tiver decorrido até à data da autuação»; veio determinar que a interrupção tem lugar uma única vez, com o facto que se verifi car em primeiro lugar (redacção do n.º 3 do artigo 49.° da LGT introduzida pelo artigo 89.° da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro).

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No entanto, esta alteração legislativa não se aplica à sucessão de factos interruptivos ocorridos antes da data da sua entrada em vigor (que ocorreu em 1 de Janeiro de 2007).17

7. Como se articulam os factos que produzem efeito interruptivo com os factos que produzem efeito suspensivo da contagem prazo prescricional

Como a interrupção da prescrição não se confunde com a sua sus-pensão, importa saber como se articulam os factos que produzem efeito interruptivo com os factos que produzem efeito suspensivo, uma vez que existem factos que, aparentemente, produzem, ao mesmo tempo, efeito interruptivo e efeito suspensivo (a reclamação e a impugnação), factos que apenas produzem efeito interruptivo (a citação, o recurso hierárquico, e o pedido de revisão ofi ciosa da liquidação) e factos que apenas pro-duzem efeito suspensivo (o recurso judicial ou a oposição à execução).

Com efeito, nos termos do n.º 1 artigo 49.º da LGT, na redacção que lhe foi dada pela Lei 53-A/2006, a citação, a reclamação, o recurso hierárquico, a impugnação e o pedido de revisão ofi ciosa da liquida-ção do tributo interrompem a prescrição. Porém, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, havendo processo de execução fi scal em curso, a reclama-ção, a impugnação, o recurso judicial ou a oposição à execução, também suspendem a prescrição se determinarem a «suspensão da cobrança da dívida». Ou seja, existem factos interruptivos a que a lei também atri-bui efeito suspensivo da prescrição quando impliquem «a suspensão da cobrança da dívida» (artigo 49.º, n.º 4 da LGT, na redacção dada pela Lei n.º 53-A/2006). Contudo, a suspensão da cobrança da dívida só ocorre quando tenha sido constituída garantia nos termos do artigo 195.º (hipo-

17 Neste sentido cf. acórdão do STA de 12 de Agosto de 2009 (proc.º n.º 0748/09), onde se decidiu que «ocorrendo várias causas de interrupção da prescrição antes da entrada em vigor da nova redacção do n.º 3 do artigo 49.° da LGT, introduzida pelo artigo 89.° da Lei 53-A/2006, de 29/12, devem todas elas ser consideradas» e que «a redacção actual do n.º 3 do artigo 49.° da LGT, estabelecendo expressamente que a interrupção se opera uma única vez, aplica-se apenas aos factos interruptivos verifi cados após o início da vigência do diploma que introduziu a alteração da norma».

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teca legal ou penhor) ou prestada pelo executado nos termos do artigo 199.º (garantia bancária, caução, seguro-caução ou qualquer meio sus-ceptível de assegurar os créditos do exequente) ou a penhora garanta a totalidade da quantia exequenda e do acrescido (artigo 169.º do CPPT).

Assim, a questão que se coloca consiste no seguinte: tendo a recla-mação e a impugnação efeito interruptivo e, simultaneamente, efeito sus-pensivo da prescrição, quando tenha sido prestada ou constituída garan-tia nos autos do processo de execução, qual dos efeitos deve ser tomado em conta? O interruptivo ou o suspensivo?

Segundo LOPES DE SOUSA «existindo uma causa de suspensão autó-noma em relação ao facto com efeito interruptivo, ela produzirá os seus próprios efeitos independentemente dos produzidos pelo facto interrup-tivo, pelo que poderá obstar ao decurso do prazo de prescrição em situa-ções em que não é produzido esse efeito pelo facto interruptivo. Se tanto este facto como o facto interruptivo eliminarem a relevância do mesmo período de tempo para a prescrição, será irrelevante a existência de causa de suspensão, pois esse período já não será contado para a prescrição por força do acto interruptivo. Mas, se houver algum período do prazo que não é eliminado pelo facto interruptivo e é pelo facto suspensivo, cumular-se-ão os efeitos dos dois factos».18

Não oferece dúvidas a circunstância de o facto interruptivo da pres-crição não ter a mesma natureza que o facto suspensivo, constituindo um facto autónomo em relação ao facto com efeito suspensivo. Efecti-vamente, quando consideradas de per se, a reclamação ou impugnação judicial não têm efeito suspensivo da prescrição. Só a circunstância de a reclamação ou a impugnação judicial se conjugarem com a prestação de garantia que determina a suspensão da execução fi scal (artigo 169.º do CPPT) é que lhes atribui natureza suspensiva da contagem do prazo prescricional.

Por conseguinte, o que causa a suspensão da execução não é a reclamação ou impugnação judicial propriamente ditas, mas sim a reclamação ou impugnação judicial combinadas com a garantia dos créditos fi scais.

18 Cf. Sobre a Prescrição da Obrigação Tributária – Notas Práticas, cit., p. 57.

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Neste sentido, o facto suspensivo é um facto complexo ou combi-nado, ao passo que o facto interruptivo é um facto simples ou singular, pelo que, só aparentemente se pode concluir que a reclamação ou impug-nação têm, simultaneamente, efeito interruptivo e efeito suspensivo da prescrição.

Na verdade, considerada na sua singularidade, a reclamação ou a impugnação limitam-se a interromper a prescrição, sendo o efeito sus-pensivo consequência de se encontrar realizada garantia no processo de execução fi scal.

Assim e seguindo a doutrina de LOPES DE SOUSA, «o efeito interrup-tivo consiste em eliminar o tempo de prazo de prescrição decorrido e iniciar, nesse mesmo momento um novo prazo de prescrição, não tendo, na falta de disposição que assim disponha, efeito suspensivo do mesmo. O art. 49.º, n.º 4, relativamente à reclamação, impugnação ou recurso, terá o alcance útil de estabelecer que, se estiver pendente execução fi scal e ela parar por motivo desse processo impugnatório (…), o novo prazo, iniciado com o facto interruptivo, só decorrerá se e na medida em que o processo de execução fi scal não estiver parado por esse motivo» (ênfase aditada).19

Assim, estando o processo de execução parado por motivo do pro-cesso impugnatório, o novo prazo prescricional iniciado com o facto interruptivo nunca chega a correr se tiver sido constituída garantia no processo de execução fi scal.

Segundo LOPES DE SOUSA20 a suspensão do prazo prescricional em virtude da paragem do processo de execução fi scal está sujeita à regra do n.º 2 do artigo 49.º da LGT – cessação do efeito interruptivo quando o processo de impugnação judicial estiver parado por mais de um ano por facto não imputável ao contribuinte. Contudo, esta afi rmação deixou de fazer sentido a partir de 1 de Janeiro de 2007, com a revogação da norma constante do n.º 2 do artigo 49.º da LGT, sendo certo que qualquer para-

19 Cf. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Volume II, 5.ª edição, Áreas Editora, 2007, p. 201.

20 Ob. cit., loc. cit..

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gem só será relevante se se tiver consumado até 31 de Dezembro de 2006 (artigo 91.º da Lei n.º 53-A/2006).21

De acordo com a jurisprudência segundo a qual o prazo de pres-crição se interrompia uma única vez com a ocorrência do primeiro acto interruptivo e que, uma vez cessado o seu efeito, não havia que relevar factos posteriores, capazes, em abstracto, de actuar como factor de inter-rupção da prescrição, esses factos podiam valer no entanto, como factos suspensivos da prescrição, quando se encontrasse realizada garantia nos autos de execução fi scal.

Essa construção, segundo a qual um facto que não vale como facto interruptivo pode ser considerado como facto suspensivo, não é, a nosso ver, prejudicada pelos acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tri-butário de 24 de Outubro de 2007 (proc.º n.º 0244/07) e de 28 de Maio de 2008 (proc.º n.º 0840/07), segundo os quais, ocorrendo sucessivas causas de interrupção da prescrição, todas elas devem ser consideradas, desde que ocorram após a cessação do efeito interruptivo das anteriores. É certo que esta jurisprudência se encontra hoje ultrapassada pela alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 53-A/2006. No entanto, essa alteração legislativa não se aplica à sucessão de factos interruptivos ocorridos antes da data da sua entrada em vigor (que ocorreu em 1 de Janeiro de 2007).22

21 Recorde-se que a Lei n.º 53-A/2006 revogou a regra segundo a qual a paragem do processo a que a lei atribuiu efeito interruptivo, por período superior a um ano, por facto não imputável ao sujeito passivo, faz cessar o efeito interruptivo (artigo 89.° da Lei n.º 53-A/2006) e veio determinar que «a revogação do n.º 2 do artigo 49.º da LGT aplica-se a todos os prazos de prescrição em curso, objecto de interrupção, em que ainda não tenha decorrido o período superior a um ano de paragem do processo por facto não imputável ao sujeito passivo» (artigo 91º da Lei n.º 53-A/2006). Signifi ca isto que, se o ano de paragem já se tiver consumado em 2006, o facto interruptivo continua a valer como facto suspensivo. Mas se o ano de paragem se consumar em 2007, o facto interruptivo vale como tal, sendo irrelevantes eventuais paragens do processo, uma vez que começou a correr novo prazo de prescrição a partir do facto interruptivo, cuja contagem se suspende enquanto não houver decisão defi nitiva ou transitada em julgado, que ponha termo ao processo, quando a recla-mação, impugnação, recurso ou oposição determinem a suspensão da cobrança da dívida.

22 Neste sentido cf. acórdão do STA de 12 de Agosto de 2009 (proc.º n.º 0748/09), onde se decidiu que «ocorrendo várias causas de interrupção da prescrição antes da entrada em vigor da nova redacção do n.º 3 do artigo 49.° da LGT, introduzida pelo artigo 89.° da Lei 53-A/2006, de 29/12, devem todas elas ser consideradas» e que «a redacção actual do n.º 3 do artigo 49.° da LGT, estabelecendo expressamente que a interrupção se

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Noutros termos, dir-se-á que a regra segundo a qual «a interrupção tem lugar uma única vez, com o facto que se verifi car em primeiro lugar» não é de aplicação retroactiva, pelo que não abrange as interrupções geradas até 31 de Dezembro de 2006, pois está em causa a sucessão de factos interruptivos verifi cada no âmbito de vigência da lei antiga, à qual se aplica a jurisprudência do STA segundo a qual ocorrendo sucessivas causas de interrupção da prescrição, todas devem elas ser consideradas, desde que ocorram após a cessação do efeito interruptivo das anteriores.

Por conseguinte, não pode deixar de se concluir que à pluralidade de factos interruptivos correspondia igualmente a pluralidade de factos suspen-sivos, podendo ambos actuar em cumulação, de tal sorte que, uma vez veri-fi cada a interrupção, o prazo prescricional nem sequer começava a correr se o facto interruptivo pudesse igualmente funcionar como facto suspensivo.

As alterações ao artigo 49.º, n.º 4 da LGT, introduzidas pela Lei n.º 53-A/2006, só muito limitadamente vieram alterar esta situação, na medida em que o recurso judicial e a oposição à execução são factos com efeito suspensivo da prescrição, mas sem efeito interruptivo. Já a reclamação ou a impugnação podem acumular os dois efeitos, mas a cita-ção, o recurso hierárquico e o pedido de revisão ofi ciosa têm unicamente efeito interruptivo.

Sendo a reclamação e a impugnação as situações mais frequentes, dir-se-á que elas interrompem a prescrição e sempre que seja suspensa a cobrança da dívida na sua pendência a contagem da prescrição fi ca igualmente suspensa, o que evitará, na maior parte dos casos, a extinção da obrigação tributária por prescrição.

8. Conclusão

Em síntese, pode concluir-se que o novo regime da interrupção e suspensão da prescrição dos créditos tributários se aproxima do regime civil em virtude da eliminação do n.º 2 do artigo 49.º da LGT, mas conti-nua a afastar-se dele na medida em que as especialidades do controlo da legalidade dos actos tributários justifi cam a interrupção da prescrição por actos imputáveis ao devedor.

opera uma única vez, aplica-se apenas aos factos interruptivos verifi cados após o início da vigência do diploma que introduziu a alteração da norma».

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Por outro lado, a unicidade do facto interruptivo combinada com a diligência da Administração fi scal na cobrança do seu crédito difi cil-mente conduzirá à prescrição dos créditos tributários, uma vez que, se não for prestada garantia, a execução fi scal pode prosseguir até à venda dos bens penhorados, à reversão da execução contra os responsáveis solidários ou subsidiários ou mesmo ao requerimento da declaração da falência junto do tribunal competente, isto mesmo estando pendente pro-cesso judicial de controlo da legalidade do acto tributário.

Naturalmente que, vindo o Tribunal a declarar nulo ou a anular, total ou parcialmente, o acto tributário, a Administração fi scal fi ca constituída na obrigação de reconstituir a «legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão» (artigo 100.º da LGT).

Signifi ca isto que, mesmo que se consiga evitar a prescrição – que será cada vez mais rara na sequência das alterações ao artigo 49.º da LGT introduzidas pela Lei n.º 53-A/2006 – poderá não se conseguir evitar a restituição das quantias cobradas indevidamente, acrescidas de juros indemnizatórios a favor do contribuinte, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso.

Neste sentido, o novo regime da prescrição inaugura, simultanea-mente, um novo regime de responsabilidade pela cobrança indevida de prestações tributárias, sobretudo naqueles casos em que não seja pres-tada garantia no processo de execução fi scal e, mesmo nesses, não está excluída a responsabilidade da Administração pela prestação de garantia indevida (artigo 53.º da LGT).23

23 Nos termos do artigo 53.º da LGT são vários os pressupostos da obrigação de indemnizar por prestação de garantia indevida:

– Em primeiro lugar, mostra-se necessário o vencimento do contribuinte no recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução, que tenham como objecto a dívida garantida;

– Em segundo lugar, só há obrigação de indemnizar caso o contribuinte tenha mantido a garantia por período superior a três anos (salvo no caso de erro impu-tável aos serviços em que esse período superior a três anos não se aplica) e,

– Em terceiro lugar, a obrigação de indemnizar é fi xada em proporção do venci-mento ou ganho de causa que venha a ser atribuído ao contribuinte.

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João Pedro Silva Rodrigues

A inconstitucionalidade do Pagamento Especial por Conta

João Pedro Silva Rodrigues

Assistente da FDUC. Assessor do Gabinete de Juízes do Tribunal Constitucional

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RESUMO

Refl exão sobre a inconstitucionalidade do Pagamento Especial por Conta tendo como mote o Acórdão n.º 173/2008 do Tribunal Constitucional. No presente artigo aborda-se a matéria dos pagamentos antecipados dos impostos, confrontando-a com os princípios constitucionais em matéria fi scal, destacando-se a referência ao princípio da capacidade contributiva, de modo a aferir as condições de legitimidade constitucional de tais institutos tributários. Partindo dessa refl exão, considera-se de forma particular o regime do pagamento especial por conta, concluindo-se pela sua inconstitucionalidade.

Palavras-chave:Pagamentos por contaPagamento especial por contaPrincípio da capacidade contributivaInconstitucionalidade

ABSTRACT

Refl ection on the unconstitutionality of the Special Payment on account having as mote the Sentence n. º 173/2008 of the Constitutional Court. In the present article it is approached substance of the prepayments of the taxes, collating it with the principles constitutional in fi scal substance, being distinguished it reference the beginning of the tax-paying ability, in order to survey the conditions of constitutional legitimacy of such tributaries institutes. Leaving of this refl ection, the regimen of the special payment is considered on account of particular form, concluding itself for its unconstitutionality.

Keywords: Payments on account Special payment on account Principle of the tax-paying ability Unconstitutionality

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1. No Acórdão n.º 173/2008, o Tribunal Constitucional decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto pelo Ministério Público com fundamento na recusa da aplicação, por inconstitucionalidade, da norma constante do artigo 98.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendi-mento das Pessoas Colectivas (CIRC)1.

Não estando em causa a prolação de uma decisão de mérito sobre a matéria, a referência ao aresto do Tribunal Constitucional serve apenas a pretensão de constituir o mote para uma refl exão sobre a constitucio-nalidade do regime do pagamento especial por conta tal como este se encontra hodiernamente previsto.

Ainda assim, a título meramente circunstancial, cumpre referir, ade-rindo à argumentação explanada nas declarações de vencimento apostas à decisão do Tribunal Constitucional, que, no nosso entendimento, se encontravam preenchidos os requisitos determinantes do conhecimento do mérito do recurso que fora interposto pelo Ministério Público ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, por ter existido, no caso existira, uma efectiva recusa de aplicação do regime constante do artigo 98.º do CIRC com fundamento em inconstitucionalidade.

2. Perante essa realidade e mantendo-se, por ventura com maior acuidade, a questão relativa à constitucionalidade do regime legal do pagamento especial por conta, impõe-se refl ectir sobre esse problema tendo em consideração os parâmetros constitucionais pertinentes.

2.1. Como é consabido, a previsão de instrumentos legais – fun-cional e fi nalisticamente – direccionados a antecipar, em termos tem-porais, o momento da cobrança ou do pagamento da dívida de imposto em relação ao apuramento defi nitivo do quantum da obrigação tributária constitui, nos tempos modernos, um fenómeno de particular e crescente importância ao nível da obtenção e correspondente gestão das receitas fi scais, não sendo apenas no nosso ordenamento jurídico que se assiste à “contínua expansão” destes mecanismos, marcada, inter alia, por uma

1 Actual artigo 106.º, após a republicação do Código do IRC, efectuada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, a qual seguiremos doravante, excepto na parte em referida ao acórdão do Tribunal Constitucional.

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“acentuada tendência” de alargamento do âmbito de aplicação das “obri-gações tributárias por conta” no domínio dos impostos de natureza perió-dica, principaliter naqueles que versam sobre o rendimento (cf. AUGUSTO FANTOZZI, Il diritto tributario, Torino, 2003, pp. 509 e ss. e GARCÍA CARA-CUEL, Las prestaciones tributarias a cuenta. Perspectivas de reforma, Granada, 2004, p. 11).

Com essas fi guras pretende aproximar-se o pagamento do imposto do momento em que o rendimento é obtido naturalisticamente (pay as you earn), tendo em conta que a obrigação tributária apenas estará efec-tivamente defi nida e quantifi cada no fi nal do respectivo período de impo-sição, por referência aos factos tributários que fundam a emergência da obrigação de imposto (cf. FRANCESCO TESAURO, Istituzioni di diritto tribu-tario, vol 1.º, Torino, 2003, pp. 243 e ss.; GASPARE FALSITTA, Manuale di diritto tributario - Parte generale, Padova, 2003, p. 513).

Entre nós, essa realidade encontra-se vertida no CIRC que, nas regras disciplinadoras do pagamento da dívida fi scal, faz impender sobre as “entidades residentes que exerçam a título principal uma actividade de natureza comercial industrial ou agrícola e as entidades não residen-tes com estabelecimento estável em território português” a obrigação de “proceder ao pagamento do imposto (…) em três pagamentos por conta, com vencimento nos meses de Julho, Setembro e 15 de Dezembro do próprio ano a que respeita o lucro tributável (…)”, acrescendo a esses pagamentos, nos termos impostos pelo artigo 106.º do CIRC, a obrigação dos mesmos sujeitos passivos – com excepção dos que estejam abrangi-dos pelo regime simplifi cado de tributação – realizarem “um pagamento especial por conta, a efectuar durante o mês de Março, ou em duas pres-tações, durante os meses de Março e Outubro (…)”.

Quando consideradas em paralelo tais formas de pagamento condu-centes à extinção da obrigação tributária devida a fi nal, ressaltam alguns caracteres morfológicos distintivos que são de importância não despi-cienda, justifi cando-se, nesta sede, uma breve referência à sua confi gura-ção legislativa.

No referente aos “pagamentos por conta”, estes são calculados “com base no imposto liquidado (…) relativamente ao exercício ime-diatamente anterior àquele em que se devam efectuar esses pagamentos (…)”, correspondendo a 70% ou 90% desse valor, consoante o volume

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de negócios em causa nesse período [cf. artigos 104.º, n.º 1, alínea a), e 105.º do CIRC].

Nos termos do artigo 104.º, n.º 4, do CIRC, os contribuintes estão dispensados de efectuar os referidos pagamentos por conta quando o imposto do exercício de referência para o respectivo cálculo for inferior a € 199,52.

O legislador prevê, ainda, a possibilidade de existirem limitações aos pagamentos por conta uma vez que “se o contribuinte verifi car, pelos elementos de que disponha, que o montante do pagamento por conta já efectuado é igual ou superior ao imposto que será devido com base na matéria colectável do exercício, pode deixar de efectuar novo pagamento por conta (…)” (artigo 107.º, n.º 1, do CIRC).

Contudo, deve notar-se que, no caso de se verifi car “face à declara-ção periódica de rendimentos do exercício a que respeita o imposto, que, em consequência da suspensão da entrega por conta (…), deixou de ser paga uma importância superior a 20% da que, em condições normais, teria sido entregue, há lugar a juros compensatórios desde o termo do prazo em que cada entrega deveria ter sido efectuada até ao termo do prazo para apresentação da declaração ou até à data do pagamento da autoliquidação, se anterior” (artigo 107.º, n.º 2, do CIRC).

Uma outra nota que importa salientar, a propósito do regime dos “pagamentos por conta”, traduz-se na admissibilidade do reembolso quando “o valor apurado na declaração, líquido das deduções a que se referem os n.ºs 2 e 4 do artigo 90.º, for negativo, pela importância resultante da soma do correspondente valor absoluto com o montante dos pagamentos por conta” (artigo 104.º, n.º 2, alínea a), do CIRC), ou quando esse valor “(…), não sendo negativo, for inferior ao valor dos pagamentos por conta, pela respectiva diferença” (artigo 104.º, n.º 2, alí-nea b), do CIRC).

Já quanto ao regime do “pagamento especial por conta”, previsto no artigo 98.º do CIRC, importa referir que o seu montante corresponde “a 1% do volume de negócios relativo ao exercício anterior, com o limite mínimo de € 1.000,00, e quando superior, será igual a este limite acres-cido de 20% da parte excedente, com o limite máximo de € 70.000,00” (artigo 106.º, n.º 2, do CIRC), fazendo o legislador corresponder esse volume de negócios “ao valor das vendas e dos serviços prestados” (artigo 106.º, n.º 4, do CIRC).

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Nos termos do disposto no artigo 90.º, n.º 2, o valor correspondente ao pagamento especial por conta é deduzido à colecta – segundo a ordem constante desse preceito – do próprio exercício a que respeita ou, se insu-fi ciente, até ao quarto exercício seguinte (artigo 93.º, n.º 1, do CIRC).

Findo esse período, e como resulta do n.º 3 do artigo 93.º, “os sujeitos passivos (…) podem ainda, sem prejuízo do disposto no n.º 1, ser reembol-sados da parte que não foi deduzida ao abrigo do mesmo preceito, desde que preenchidos os seguintes requisitos: a) não se afastem, em relação ao exercício a que diz respeito o pagamento especial por conta a reembolsar, em mais de 10% para menos, da média dos rácios de rentabilidade das empresas do sector de actividade em que se inserem, a publicar em por-taria do Ministério das Finanças”; b) A situação que deu origem ao reem-bolso seja considerada justifi cada por acção de inspecção feita a pedido do sujeito passivo formulado nos 90 dias seguintes ao termo do prazo de apresentação da declaração periódica relativa ao mesmo exercício”.

No caso de cessação de actividade no próprio exercício ou até ao terceiro exercício posterior àquele a que o pagamento especial por conta respeita, o legislador prevê no artigo 93.º, n.º 2, que “a parte que não possa ter sido deduzida nos termos do número anterior, quando existir [seja] reembolsada mediante requerimento do sujeito passivo (…), apre-sentado nos 90 dias seguintes ao da cessação da actividade.

Por fi m, importa ainda notar que nos termos do artigo 33.º da Lei Geral Tributária, “as entregas pecuniárias antecipadas que sejam efectu-adas pelos sujeitos passivos no período de formação do acto tributário constituem pagamento por conta do imposto devido a fi nal”.

2.2. Contextualizadamente expostos os principais traços anatómi-cos do “pagamento especial por conta” decorrente da obrigação origi-nada pela norma do artigo 106.º do CIRC, importa fazer referência aos pertinentes parâmetros constitucionais, sendo certo que, como se verá, esta matéria não é juridicamente asséptica em face dos princípios fun-damentais do direito tributário, como de resto tem sido assaz salientado pela refl exão jurídica comparada que se tem pronunciado, doutrinal e jurisprudencialmente, sobre os limites de validade de diversas projec-ções legislativas relativas à obrigação de realização de pagamentos por conta do imposto devido a fi nal, nomeadamente no que tange com a sua interferência com o princípio da capacidade contributiva.

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2.2.1. Apesar do princípio da capacidade contributiva não se encon-trar previsto expressis verbis no texto constitucional, a sua valência como dimensão estruturante da tributação do rendimento, corresponde a uma “exigência fundamental de justiça tributária”, encontrando expressão no disposto nos artigos 2.º, 13.º, 18.º, 103.º e 104.º do texto constitucional.

De resto, assim tem sido reconhecido pelo Tribunal Constitucional que, em diversos arestos, o mobilizou como parâmetro de sindicância da constitucionalidade.

Aqui se refere, exemplifi cadamente, o Acórdão n.º 104/04, que considerou a questão da constitucionalidade da norma ínsita no n.º 8 do artigo 26º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Sin-gulares, conjugada com a das alíneas a) e e) do n.º 1 do mesmo artigo, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 18/97, de 21 de Janeiro. Nesse aresto o Tribunal Constitucional não só recuperou a pretérita jurisprudência sobre o princípio da capacidade contributiva, como também a aprofun-dou, nos termos que infra se transcrevem:

«[4.] Este Tribunal teve já por mais de uma vez ocasião de afl orar a

problemática da consagração constitucional do referido princípio da capa-cidade contributiva.

Assim, no Acórdão n.º 308/2001 (in DR I Série-A, de 20 de Novem-bro de 2001) declarou-se, com força obrigatória geral, a inconstituciona-lidade da norma da alínea c) do nº 1 do artigo 11º do Código do IRS, na interpretação segundo a qual nela estariam abrangidas as pensões de preço de sangue, “por violação do artigo 13º, combinado com o princípio emer-gente dos artigos 103º, n.º 1, e 104º, n.º 1 da Constituição da República” – isto é, o referido princípio, tendo-se dito neste aresto que “a tributação das pensões em causa – representando verdadeiras indemnizações e não acréscimos patrimoniais – é inconstitucional, por violação dos critérios materiais de justiça fi scal traduzidos, em especial, no princípio da capaci-dade contributiva (decorrente dos artigos 13º e 103º, nº 1, da Constituição – “repartição justa dos rendimentos e da riqueza”).”

Mais recentemente, a propósito do “problema da articulação entre as presunções estabelecidas em matéria tributária e o princípio da capacidade contributiva”, escreveu-se no Acórdão n.º 452/2003:

«(…)o Acórdão nº 84/03 (in D.R. II Série, nº 124, de 29-5-2003, pp. 8338ss) articulou o princípio da capacidade contributiva com a pos-

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sibilidade de o contribuinte dispor de meios para ilidir os resultados de determinadas formas de tributação:

«O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o prin-cípio da igualdade fi scal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preen-chendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação.

Consiste este critério em que a incidência e a repartição dos impostos – dos “impostos fi scais” mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” (na formulação clássica portuguesa, de Teixeira Ribeiro, “A justiça na tributação” in “Boletim de Ciências Económicas”, vol. XXX, Coimbra 1987, n.º 6, autor que também se lhe refere como “capacidade para pagar”) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício).

A actual Constituição da República não consagra expressamente este princípio com longa tradição no direito constitucional português - a Carta Constitucional de 1826 expressa-o na fórmula de tributação “conforme os haveres” dos cidadãos e, na Constituição de 33, o artigo 28º consigna-o na obrigação imposta a todos os cidadãos de contribuir para os encargos públicos “conforme os seus haveres”).

Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generali-zado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um crité-rio básico da nossa “Constituição fi scal” sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fi scal formulados nos artigos 103º e 104º da CRP (cfr. Casalta Nabais “O dever fundamental de pagar impostos”, págs. 445 e segs., onde, no entanto, se defende que, embora o princípio não careça – para ter suporte constitucional – de pre-ceito específi co e directo, não é de todo inútil ou indiferente a sua consa-gração expressa).

Autores há, porém, que contestam a operatividade jurídica prática ao princípio da capacidade contributiva, em razão, nomeadamente, da sua acentuada e indiscutível indeterminabilidade, não se estando aí senão perante uma “fórmula passe-partout” imprestável para um teste jurídico--constitucional dos impostos, quer porque se limitaria a “estabelecer que “deve pagar-se o que se pode pagar” sem defi nir o “poder pagar”, quer porque “não forneceria nenhum critério concreto para a repartição justa dos encargos fi scais por todos os contribuintes”, quer ainda porque “diria

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muito pouco sobre as taxas a considerar correctas dos impostos ou sobre a sua exacta progressão, caso esta, em alguma medida possa resultar de um tal princípio” (cfr. Casalta Nabais ob. cit. págs. 459 e 461).

Diferentemente, outros autores, como é o caso do próprio Casalta Nabais reconhecem ainda “importantes préstimos” ao princípio, o qual “afasta o legislador fi scal do arbítrio, obrigando-o a que, na selecção e arti-culação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade con-tributiva, ou seja erija em objecto ou matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto” e tem “especial densidade no concernente ao(s) imposto(s) sobre o rendimento” exigindo “um conceito de rendimento mais amplo do que o rendimento--produto” e implicando “quer o princípio do rendimento líquido (...) quer o princípio do rendimento disponível (...)” (“Direito Fiscal”, págs. 157/168).

De todo o modo, deve reconhecer-se não ser fácil retirar consequên-cias jurídicas muito líquidas e seguras do princípio da capacidade contri-butiva, traduzidas num juízo de inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fi scal.

[...] certos métodos de tributação, pela sua mesma estrutura, podem, afi nal, acabar por conduzir à imposição de situações ou realidades em que falece, de todo, a capacidade contributiva, ou (e com maior probabilidade) em que a medida do imposto exigido não tem efectiva correspondência com essa capacidade, indo além (e, porventura, bastante além) dela; é o que ainda Casalta Nabais (“O dever fundamental...”, págs. 497/498 e 501/502) consi-dera, quando se refere a “soluções tradicionais do direito dos impostos” com suporte no “interesse fi scal”, em particular as “presunções”, considerando esta técnica legislativa “movida por legítimas preocupações de simplifi ca-ção de praticabilidade das leis fi scais”, mas que “tem de compatibilizar-se com o princípio da capacidade contributiva, o que passa, quer pela ilegi-timidade das presunções absolutas, na medida em que obstam à prova da inexistência da capacidade contributiva visada na respectiva lei, quer pela idoneidade das presunções relativas para traduzirem o correspondente pres-suposto económico do imposto” e, mais adiante, aludindo ao “rendimento normal”, quando sustenta que ele “apenas poderá ser contestado nos casos em que a tributação conduza a situações de intolerável iniquidade”.

Mas, se nos ativermos ao que aquele autor escreve na obra citada [...], não pode deixar de se concluir que a solução em causa se compa-

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tibiliza com o princípio da capacidade contributiva. É que, a admitir-se que na hipótese em apreço se está perante uma “presunção”, ela admite prova em contrário e, a considerar-se que se trata de uma tributação pelo “rendimento normal”, não pode dizer-se que ela necessariamente conduza a “situações de intolerável iniquidade”.

Não se desconhece que, em escrito posterior, o mesmo autor veio sustentar a desconformidade constitucional da norma ínsita na alínea c) do artigo 87º da LGT (“O quadro constitucional da tributação das empre-sas”, in Nos 25 anos da Constituição da República Portuguesa de 1976, ed. AAFDL, 2001).

Simplesmente, aí, o fundamento do juízo de inconstitucionalidade situa-se já num plano diferente do das considerações gerais a que atrás se fez referência; embora tendo a ver com elas, ele assenta na equiparação a uma inadmissível “presunção absoluta de rendimentos” da eventual situação (“situação limite”) em que a tributação do rendimento normal não admita prova em contrário. Mas, no caso, não terá cabimento pôr as coisas nesses termos já que ao contribuinte começa por ser dada a possibilidade de justi-fi car o afastamento da sua matéria tributável dos indicadores-padrão (assim podendo evitar a aplicação destes), o que é afi nal menos do que exigir-lhe a prova de que não obteve o rendimento correspondente a tais indicadores».

Mais recentemente, no Acórdão nº 211/03 (in D.R., II Série, nº 141, de 21-6-2003, pp. 9240ss), o Tribunal decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo 26º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 41 969, de 24 de Novembro de 1958, na redacção que lhe foi dada pelo nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 308/91, de 17 de Agosto, ao estabelecer, nas transmis-sões por morte, não ocorrendo “arrolamento judicial dos [bens] mobiliá-rios”, uma presunção sem admissão de prova em contrário da existência de uma determinada quota de “mobílias, dinheiro, jóias, e mais objectos de uso pessoal ou doméstico”, por se considerar que uma presunção ini-lidível, neste domínio, violava o princípio constitucional da igualdade, conexionado com o da capacidade contributiva, contidos nos artigos 13º, nº 1, e 104º, nº 3, da Constituição da República. Recorde-se a redacção da norma aí julgada inconstitucional: “Nas transmissões por morte, quando não houver arrolamento judicial dos mobiliários, presumir-se-á, sem admissão de prova em contrário, a existência de mobílias, dinheiro, jóias e mais objectos de uso pessoal ou doméstico, necessários para perfazer,

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com os bens da mesma espécie que foram relacionados, um valor mínimo equivalente às seguintes percentagens do activo restante da sucessão [...]” [itálico acrescentado].

Como se referiu neste Acórdão nº 211/93, citando anterior jurispru-dência do Tribunal:

«(...) o princípio da tributação do rendimento real exprime uma exi-gência constitucional mais vasta que se alarga a toda a tributação do rendi-mento que, no entanto, exclui o recurso à técnica das presunções absolutas para a defi nição da incidência ou a determinação da matéria colectável do imposto (cfr. J. M. Cardoso da Costa, “O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: A Jurisprudência do Tribunal Cons-titucional”, in Perspectivas Constitucionais. Nos 20 Anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra, 1997, pág. 425, nota 19).

A entender-se diferentemente, surpreender-se-ia desigualdade de regimes para situações análogas, quanto à questão da tributação em si mesma considerada, sujeitando a critérios não idênticos a articulação entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado pelo legis-lador para objecto do imposto, o que tem a ver com o conceito de capaci-dade contributiva que, não obstante a sua não consagração constitucional, mais não será do que “a expressão (qualifi cada) do princípio da igual-dade, entendido em sentido material, no domínio dos impostos, ou seja, a igualdade no imposto” (José Casalta Nabais, “Jurisprudência do Tribunal Constitucional em Matéria Fiscal”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXIX, 1993, pág. 417. Cfr., igualmente, a anotação do mesmo autor no mencionado Acórdão nº 348/97 na revista Fisco, ano IX, nºs. 84/85, págs. 93 e segs. e Clotilde Celorico Palma, “Da Evolução do Conceito de Capacidade Contributiva”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 402, pág. 134, nota 34)».

[5.] Pode, pois, concluir-se que este Tribunal tem considerado o princípio da capacidade contributiva (taxable capacity, também frequente-mente designada por capacidade de pagar – ability to pay – ou capacidade económica – wirtschaftliche Leistungsfähigkeit) como “critério básico da nossa ‘Constituição fi scal’” – concretizando o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério, a capacidade contributiva é o critério unitário da tributação.

Por outro lado, é claro que o “princípio da capacidade contributiva” tem de ser compatibilizado com outros princípios com dignidade consti-

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tucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das fi nalida-des do sistema fi scal.

Tem igualmente este Tribunal reconhecido que “o princípio da tribu-tação do rendimento real exprime uma exigência constitucional mais vasta que se alarga a toda a tributação do rendimento”, e não apenas à tributação do rendimento das empresas, para o qual está consagrado expressamente no artigo 104º, n.º 2, da Constituição (“A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”). Isto, sendo certo, porém, que tal pode assumir diversa intensidade de sentidos consoante o plano da tributação em que se esteja (das empresas ou pessoas singulares).

O princípio do rendimento líquido – ou “princípio do rendimento líquido objectivo” – nos termos do qual apenas o montante líquido cons-titui (verdadeiro) rendimento para o pagamento dos impostos, constitui, pois decorrência do princípio da capacidade contributiva na modelação do imposto sobre o rendimento. E, em princípio, tal justifi ca que ao rendi-mento total auferido devam ser deduzidas despesas específi cas com a sua obtenção, pois tais gastos constituem uma expressão negativa da capaci-dade contributiva e, como tal, devem ser excluídos desse conceito se se revelarem indispensáveis à produção ou obtenção do rendimento (sobre tudo isto, cfr., entre nós, José Casalta Nabais, Contratos fi scais, Coimbra, 1994, pág. 284, idem, O dever fundamental de pagar impostos, Coimbra, 1998, págs. 469 e segs. e 521 e seg., e também, por exemplo, José Gui-lherme Xavier de Basto, O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária, in Fiscalidade, n.º 5; especifi camente sobre o refl exo dos referidos princípios constitucionais na dedução de custos em matéria fi scal, v. António Moura Portugal, A dedutibilidade de custos na jurispru-dência fi scal portuguesa, Coimbra, 2004, esp. págs. 22 e segs.)».

Mais recentemente, o princípio da capacidade contributiva voltou a ser convocado noutros aresto como parâmetro para aferir da conformi-dade constitucional de normas infraconstitucionais nos casos tratados nos Acórdãos n.ºs 601/2004 (sobre requisitos processuais para a impugnação de liquidação de imposto de mais-valias), 173/2005 e 178/2005 (sobre dedução de pensões) e 278/2006 (sobre a prevalência dos valores das ava-liações de imóveis), disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.

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Do mesmo modo, o Tribunal Constitucional Federal Alemão o pro-jectou, perante disposições de sentido idêntico da Verfassungsgericht, como um pressuposto irredutível da imposição fi scal sobre o rendimento e como constituindo uma autêntica refracção do Estado de direito mate-rial na esfera fi scal – v. Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts – BVerfGE –, 61, p. 319 (cf., sobre a denunciada vertente do princípio da capacidade contributiva, TIPKE/LANG, Steuerrecht, 13.ª ed., Colónia, 1991, p. 57 – que o consideram como um “Fundamentalprinzip gere-chter Besteuerung”; e, ainda, MOSCHETTI, «La capacità contributiva», in Aa. Vv., Trattato di diritto tributario, dir. A. AMATUCCI, Pádova, 1994, p. 229; JOÃO PEDRO SILVA RODRIGUES, «Algumas refl exões em torno da efectiva concretização do princípio da capacidade contributiva», in Aa. Vv., Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, p. 899).

Além de outras valências que resultam do princípio da capaci-dade contributiva, pode assinalar-se, com pertinência para a matéria sub judice, que esse fundamento normativo impõe não só que o legislador fi scal, “na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a reve-lações da capacidade contributiva, ou seja, erija em matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja mani-festação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do imposto” (cf. JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 3.ª ed. Coimbra, 2005, p. 156; e, do mesmo Autor, O dever fundamental…, cit., pp. 496 e 497), como obriga a que a tributação não pode deixar de decorrer da verifi cação desse pressuposto.

Assim, dependendo o nascimento e a quantifi cação da obrigação fi s-cal da efectiva verifi cação do respectivo pressuposto gerador do imposto, deve reconhecer-se que a chamada à colação deste princípio no âmbito da imposição dos pagamentos por conta do imposto que será devido no fi nal prende-se, sobretudo, com o facto do princípio da capacidade con-tributiva, enquanto pressuposto justifi cador da tributação, postergar uma imposição fi scal assente na realização futura, hipotética e tão-só virtual, de factos tributários.

Nessa medida, estando em causa o cumprimento de uma obrigação traduzida num dever de pagamento que se afi gura – pelo menos ab initio – desvinculado da verifi cação real do facto tributário gerador da obriga-ção tributária, indiferente ao seu nascimento e à sua efectiva quantifi ca-

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ção, justifi ca-se refl ectir sobre a admissibilidade da previsão de seme-lhante obrigação em face do presente horizonte axiológico.

E, como se compreende, tal refl exão não pode deixar de ser equa-cionada tendo em conta a particular natureza das obrigações de paga-mento antecipado do imposto, maxime, no que concerne à teia de relações gerada por mor da defi nição da obrigação tributária principal, dado que, mesmo a reconhecer-se o carácter autónomo do pagamento antecipado da dívida tributária enquanto obrigação distinta da que resulta da liqui-dação do imposto, essa autonomia, atendendo ao carácter instrumental e, a fi nal, dependente da obrigação tributária principal, não poderá confi gu-rar-se em termos absolutos, ou seja, de um modo tal que os pagamentos por conta se desvinculem do montante efectivamente devido a título de imposto, assumindo-se como causa sui à margem daquela obrigação e do pressuposto que funda o imposto (cf. GARCÍA CARACUEL, Ob. cit, pp. 169 e ss. esp.te 257 e ss. e FRANCESCO TESAURO, Ob. cit., p. 244).

2.2.2. O pagamento especial por conta insere-se no âmbito do

imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas como uma realidade normativa que se manifesta gen eticamente diferenciada dos critérios delimitantes da incidência da respectiva fattispecie impositiva emer-gente de factos que o legislador considera expressivos ou desveladores de capacidade contributiva e em torno dos quais delimita a obrigação de tal imposto, posto que a obrigação de proceder ao pagamento especial por conta nasce num momento em que não está defi nida, no an e no quantum, qualquer dívida de imposto imputável ao exercício em tributa-ção (cf. artigos 1.º e 8.º do CIRC).

Na verdade, ainda que possa afi rmar-se que o pagamento especial por conta consubstancia uma obrigação de carácter autónomo e inde-pendente da existência dos factos tributários, que nasce e que se extin-gue indiferentemente das vicissitudes do imposto, também não é menos verdade que essa autonomia terá sempre de ser conformada, a montante, pelo pressuposto funcional que o justifi ca e, a jusante, pelos efeitos jurídicos “liberatórios” que estão, in rerum natura, associados ao seu cumprimento.

Com o que se reconhece, em termos infraestruturais, que a obri-gação imposta a título de pagamento especial por conta tem de levar pressuposta uma base ontológica fundamentante e justifi cadora, expressa

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num nexo lógico de instrumentalidade existencial, de dependência e ade-quação causal, em face da obrigação de imposto, que se assume como condição determinante da sua legitimidade substancial, uma vez que só a pressuposição desta obrigação, no mesmo quadro impositivo, é susceptí-vel de justifi car a antecipação do imposto decorrente de factos tributários de realização futura.

Partindo desta relação interferente, torna-se claro que a imposição de um pagamento antecipado “por conta” do imposto não poderá conver-ter-se numa ablação patrimonial defi nitiva, indiferente ao montante do imposto que, a seu tempo, venha a determinar-se como devido.

De facto, estando em causa um pagamento efectuado no período de formação do facto tributário – cuja existência e expressão quantitativa se desconhecem e que, lembre-se, se consubstancia no lucro tributável revelado, simpliciter, pelo saldo entre os proveitos e custos (artigos 1.º e 3º do CIRC) –, a sua imposição não pode deixar de estar dependente da pressuposição e adequação de uma capacidade contributiva presumida com base no il quod plerumque accidit que opera como título legitima-dor do conjunto das prestações por conta, na medida em que autoriza, na perspectiva do presumido nascimento futuro da obrigação de imposto, um juízo de prognose fundado na realização probabilística do facto tributário.

Tal pressuposto não pode, no entanto, ser assumido como refl exo de uma estrutura impositiva própria que possa conduzir, tout court, só por si, ao apuramento do esforço fi scal que impende sobre um contribuinte.

Este dependerá sempre, no seu an e no seu quantum, da consuma-ção do facto tributário e, bem assim, da capacidade contributiva aí efec-tivamente manifestada, com base na qual se determinará, ex post factum e em defi nitivo, a dívida fi scal.

Daí que se deva garantir que os montantes antecipada e proviso-riamente exigidos sejam confrontados com o valor do imposto devido, de modo a resultar, no jogo do dever e do haver, que a capacidade con-tributiva efectiva[mente resultante da ocorrência do facto tributário] se sobreponha à presumida[mente relevada por conta do imposto devido a fi nal], em termos de apenas se exigir do contribuinte uma prestação cor-respondente ao montante devido a título de imposto, e de lhe garantir a recuperação da parte que exceda esse valor e quando prestada por conta dele.

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Por esta razão, a legitimidade substancial do pagamento especial por conta, como, de resto, de qualquer imposição de pagamento ante-cipado do imposto – ou, recte, por conta do imposto a apurar – estará forçosamente dependente da existência de “mecanismos de reequilíbrio” entre a prestação efectivamente devida e a que, com anterioridade, foi paga (FRANCESCO TESAURO, Ob. cit., p. 69; MARIO MISCALI, «Capacità contributiva e disciplina del rimborso della imposta indebita», in Rivista di diritto tributario, vol. X, Fevereiro, 2000, p. 119; e GARCÍA CARACUEL, Ob. cit, p. 347).

E o princípio orientador nesta sede deverá forçosamente passar por apenas exigir ao contribuinte uma prestação correspondente ao mon-tante devido a título de imposto liquidado e o de lhe garantir uma forma de reintegração adequada relativamente à parte que exceda esse valor e que haja sido prestada por conta dele (cf. a Sentenza n.º 77/1967, de 15 de Junho, proferida pela Corte Costituzionale italiana), sendo que, em ordem a cumprir o assinalado escopo, tem-se concluído que “o instituto do reembolso aparece como uma engrenagem essencial (…), devendo assegurar a elisão dos efeitos patrimoniais resultantes da cobrança ante-cipada quando esta resulte excessiva em face do parâmetro de ablação defi nitiva constante do pressuposto do imposto individualizado pela lei”, constituindo, assim, “um corolário lógico da funcionalização do insti-tuto em relação à previsão de formas de cobrança antecipada em relação ao momento em que se realiza ou completa o pressuposto do imposto” (cf. GASPARE FALSITTA, Ob. cit., pp. 155 e ss. e 513 e ss.; cf. também, na doutrina italiana, FRANCESCO TESAURO, Ob. cit., p. 69, para quem “um mecanismo legislativo que impeça o reembolso dos impostos indevida-mente pagos viola o artigo 53.º da Constituição Italiana”, onde se encon-tra previsto o princípio da capacidade contributiva; v., na mesma linha, DE MITA, Fisco e costituzione, vol. I, Milão, 1982, p. 396; e, do mesmo Autor, Interesse Fiscale e tutela del contribuente – Le garanzie costi-tuzionali, Milão, 1995, p. 232 e ss.; MARIO MISCALI, Ob. cit., p. 119 e ss.; na jurisprudência constitucional italiana, para além da decisão supra referida pode também consultar-se, especifi camente sobre o instituto do reembolso e a sua relação com o princípio da capacidade contributiva, a Sentenza n.º 200/1972, de 29 de Dezembro; por fi m, em face do orde-namento jurídico espanhol, em dissertação sobre a matéria, cf. GARCÍA CARACUEL, Ob. cit, p. 223).

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Nessa base ontológica – e axiológica –, ponderando no caso sub judicio a pertinência dos “mecanismos” ou “instrumentos de equilíbrio”, direccionados a garantir uma adequação entre o valor do pagamento antecipado e o que, a fi nal, é exigido a título de imposto, bem se vê que o regime em crise – do qual resulta que os montantes ingressados a título de pagamento especial por conta são dedutíveis à colecta do imposto do ano a que dizem respeito, sem que daí possa resultar um valor negativo, ou até ao quarto exercício seguinte, prevendo-se o reembolso das quan-tias não deduzidas apenas no fi nal esse período, e, mesmo nesse caso, subordinado à verifi cação dos condicionalismos previstos no artigo 93.º do CIRC – acaba por afastar-se dessas exigências naquelas situações em que, após o confronto os montantes antecipadamente entregues ao fi sco com o valor do imposto passível de ser exigido a fi nal ao sujeito passivo – estando determinada, ou sendo determinável, a exacta sua medida –, pode concluir-se que os pagamentos realizados, por serem excederem a colecta do imposto, não correspondem àquele valor.

Nesse juízo não está em causa o facto do legislador confi gurar o pagamento especial por conta em sede de dedução à colecta – ainda que existissem outros modus normativos de os relevar, como sucede, por exemplo, com os pagamentos por conta –, mas sim o facto dessa dedução apenas operar até à sua concorrência, podendo não abranger a totalidade dos valores entregues a título de pagamento especial por conta e, com isso, excluir um direito ao reembolso da diferença, no exercício a que respeita o pagamento, daí resultando que, no referente à parte tida por não dedutível, deixa de existir, no plano da Constituição fi scal, título legitimador bastante que possa justifi car, com relação ao período de tributação a que se refere, a apreensão desses montantes por parte do Estado, dado que, a partir do momento em que se deter-mina o imposto ou que este se torna determinável, o excesso da presta-ção especial por conta, originado com base numa capacidade contribu-tiva presumidamente antecipada, não deixa de confi gurar-se como um plus impositivo à dívida tributária do exercício que emerge totalmente à revelia da capacidade contributiva efectiva e concretamente imputá-vel ao sujeito passivo, porquanto corresponde, a fi nal, a um montante de imposto que, tendo sido pago, não se afi gura devido a esse título, estando assim na base de uma posição creditícia do contribuinte em relação ao Estado.

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Determinada a existência desse crédito, por referência a um dado período impositivo, impõe-se a sua adequada reparação quando se veri-fi que a “inexistência do pressuposto típico do tributo” (cf., GASPARE FAL-SITTA, «Spunti in tema di capacità contributiva e di acollo convenzionale di imposte», in Rassegna Tributaria, I, 1986, pp. 123 e ss, como referido em MOSCHETTI, «La capacità contributiva», cit., p. 233, n. 5).

Ora, isso não sucede no âmbito do regime legal onde se admite, apenas, que a sua reintegração fi que dependente da existência de futuras obrigações fi scais geradoras de colecta, podendo esse crédito ser “retido” até ao quarto exercício subsequente àquele a que respeita o pagamento e a dívida, o que acaba por conduzir a “um [verdadeiro] empréstimo for-çado” (cf. CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, cit., p. 594), sem intervenção de qualquer mecanismo compensatório e passível de culminar com o locupletamento defi nitivo do valor em causa.

Ora, a possibilidade de reportar esse crédito a exercícios futuros, nos quais igualmente se continua a exigir uma antecipada prestação por conta da eventual dívida tributária, acompanhada da eventualidade de existir uma apropriação defi nitiva desse crédito à margem da dívida fi s-cal que é imputada ao contribuinte, traduz um manifesto “enriquecimento sem causa” por parte do Estado (cf. Sentencia do Tribunal Supremo de Espanha, de 12 de Novembro de 1993), de índole manifestamente confi s-catória, em violação do princípio da capacidade contributiva.

Na verdade, defl ui do regime legal que, esgotada a possibilidade de fazer repercutir esse crédito em futuras e eventuais colectas, os contri-buintes apenas serão reembolsados “desde que preenchidos os seguin-tes requisitos: a) não se afastem, em relação ao exercício a que diz res-peito o pagamento especial por conta a reembolsar, em mais de 10% para menos, da média dos rácios de rentabilidade das empresas do sector de actividade em que se inserem, a publicar em portaria do Ministério das Finanças; b) A situação que deu origem ao reembolso seja conside-rada justifi cada por acção de inspecção feita a pedido do sujeito passivo formulado nos 90 dias seguintes ao termo do prazo de apresentação da declaração periódica relativa ao mesmo exercício” (artigo 93.º, n.º 3, do CIRC).

Tais condicionalismos, cuja conformação arranca de uma ideia de suspeição em relação ao contribuinte, introduzem, numa fase em que se encontra quantifi cada a dívida tributária, uma indelével fractura na tribu-

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tação ancorada no princípio da capacidade contributiva e recortada à luz do rendimento real.

Como se extrai do teor do citado preceito, o reembolso fi ca condi-cionado pela verifi cação de um patamar mínimo de rentabilidade, cons-truído radicalmente à margem do valor da dívida tributária apurada e da capacidade contributiva aí manifestada, admitindo o legislador, em termos práticos, que um contribuinte que obtenha um resultado situado aquém do parâmetro normativo não seja reembolsado por quantias que pagou em excesso face à sua dívida tributária.

Com semelhante pressuposto, o legislador está a fazer acrescer à dívida tributária, resultante da actuação dos normas legais conformado-ras da obrigação que lhe está subjacente, um montante que não encontra expressão em qualquer facto tributário, que se afi gura estranho a qualquer critério de incidência, ao rendimento tido por tributável e à dívida por ele determinada, com isso violando o princípio da capacidade contributiva.

Além disso, a operatividade do critério legal é susceptível de gerar situações contrárias ao referido princípio entendido enquanto projecção fi scal do princípio da igualdade, porquanto dois sujeitos com a mesma dívida fi scal poderão ser chamados a contribuir diferenciadamente para a satisfação dos encargos públicos em função de factos estranhos e pos-teriores ao período impositivo circunstancialmente em causa, consoante venham, ou não, a deduzir à colecta dos quatro exercícios posteriores o montante entregue a título de pagamento especial por conta.

Por outro lado, o legislador exige, para restituir os montantes pagos, que a situação que esteve na origem do “reembolso seja considerada justifi cada por acção de inspecção feita a pedido do sujeito passivo”.

Também este requisito não é imune à crítica constitucional, con-quanto se recorde que as acções de inspecção realizadas a pedido do sujeito passivo estão sujeitas ao pagamento de uma taxa que oscila entre o mínimo de € 3.152,40 e o máximo de € 34.915,85 (cf. Decreto-Lei n.º 6/99, de 8 de Janeiro, e a Portaria n.º 923/99, de 20 de Outubro), afi gurando-se desproporcionado que a restituição dos valores pagos em excesso fi que dependente do cumprimento de um ónus a cargo do con-tribuinte o qual implica, ademais, o pagamento de uma taxa, o que se agrava quando a taxa em questão for de montante superior ao reembolso a exigir.

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2.2.3. Por outro lado, importa também notar que o princípio da capacidade contributiva tem sido igualmente convocado no que tange com a base de determinação dos montantes devidos a título de paga-mento antecipado, tendo em linha de conta que “a antecipação do paga-mento não pode ser arbitrária, devendo estar justifi cada por uma relação de probabilidade [adequada] com o pressuposto indicador da capacidade contributiva em que se baseia o tributo” (cf. GARCÍA CARACUEL, Ob. cit, p. 223, e, na mesma linha, FRANCESCO TESAURO, Ob. cit., p. 69).

A concretização desse desiderato passa em larga medida pela razo-abilidade, idoneidade e adequação do parâmetro legislativo que subjaz à quantifi cação do pagamento antecipado e pela admissibilidade de meca-nismos de correcção que permitam, em concreto, garantir a existência de uma correlação entre a prestação exigida antecipadamente e aqueloutra confi gurada como defi nitiva.

Em Espanha, por exemplo, concretizando essa exigência, o Tribu-nal Supremo considerou inadmissível que a determinação dos “pagos fraccionados” se fi zesse por referência aos resultados de exercícios ante-riores, retendo como “ilógico” o recurso a dados “pretéritos” que na maioria dos casos não coincidem com a realidade económica e exigindo uma adequação do pagamento por conta à liquidação do imposto, sem a qual se acaba por afectar o princípio da capacidade contributiva (cf. as Sentencias de 12 de Novembro de 1993, de 10 de Julho de 1999, 19 de Maio de 2000, de 14 de Julho de 2000 e de 22 de Setembro de 2000; na doutrina, cf. GARCÍA CARACUEL, Ob. cit, p. 281 e ss; CALERO GARCÍA, «La cuantia de los pago s fraccionados: comentario a la sentencia del T.S. de 12/11/1993», in Cuadernos de estúdios empresariales,n.º 4, 1994, pp. 15 e ss.).

Já em Itália, aceita-se como critério determinante do versamento in acconto o imposto devido no exercício precedente com base “na pre-sunção de que o rendimento se reproduz ano após ano em medida seme-lhante” (cf. FRANCESCO TESAURO, Ob. cit., p. 244). No entendimento da Corte Costituzionale, “não é arbitrário [com base no quod plerumque accidit], considerar de forma apenas provisória que o rendimento decla-rado pelo contribuinte num período se produza, pelo menos na mesma medida, nos dois períodos sucessivos: permanecendo a fonte produtiva não se afi gura irrazoável prever a formação de uma base tributária pelo menos igual no ano ou nos dois anos seguintes”, alcançando-se tal con-

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clusão relevando a existência de mecanismos de excepção determinados pela ocorrência de situações excepcionais ou anómalas que infi rmem o pressuposto presuntivo e tendo igualmente em conta o direito ao reem-bolso no caso de um versamento in acconto excessivo (cf. a já referida Sentenza n.º 77/1967, de 15 de Junho).

Em todo o caso, pode assumir-se que, independentemente de um possível polimorfi smo constitutivo ao nível da defi nição do critério determinante do quantum da prestação por conta, qualquer juízo sobre a sua validade fundamentante não poderá prescindir de um teste quanto à aptidão funcional-fi nalística e correspondente idoneidade desse cri-tério como modus de antecipação do imposto, impedindo a determina-ção de pagamentos antecipados de carácter desproporcionado ou total-mente indiferentes à probabilística realização e quantifi cação do facto tributário.

Importa, pois, apurar se essa exigência se encontra adequadamente refl ectida no regime legal quanto aos critérios de quantifi cação do valor exigido a título de pagamento especial por conta.

Nos termos do artigo 106.º, n.º 2, do CIRC, “o montante do paga-mento especial por conta é igual a 1% do volume de negócios relativo ao exercício anterior, com o limite mínimo de € 1.000,00, e, quando supe-rior, será igual a este limite acrescido de 20% da parte excedente, com o limite máximo de € 70.000,00”.

Com semelhante critério, o legislador faz assentar a determinação do pagamento especial por conta no “valor das vendas e dos serviços prestados” no exercício anterior (cf. artigo 106.º, n.º 4, do CIRC).

O recurso a dados pretéritos para, a partir deles, se impor um paga-mento referido ao imposto que vier a ser apurado no fi nal do exercício a que aquele respeita, não se afi gura constituir um aspecto decisivo que comprometa inelutavelmente a bondade constitucional do regime em causa.

De facto, a mobilização de elementos do passado, a título mera-mente presuntivo – e em caso algum impositivo –, não deverá consi-derar-se descabida, conquanto, com base no il quod plerumque acci-ddit, os mesmos se revelem idóneos para deixar antever ou antecipar a futura obrigação fi scal e – pode acrescentar-se – estejam previstos mecanismos que façam relevar nessa sede uma alteração anormal das circunstâncias.

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Verdadeiramente decisivo será o teste relativo à aptidão funcional--fi nalística desses elementos para sustentar uma prestação por conta de uma obrigação futura.

Como se disse, o legislador faz depender o valor do pagamento especial por conta apenas do valor das vendas e dos serviços prestados, abstendo-se de considerar, inter alia, os custos comprovadamente indis-pensáveis à realização daqueles proveitos.

Ora, incidindo o tipo de imposto em causa sobre o lucro tributá-vel (artigoºs 1.º e 3.º do CIRC) de determinado período e sendo este forçosamente uma resultante da concorrência do “valor das vendas e dos serviços prestados” com o valor dos custos, fi ca irremediavelmente comprometida a idoneidade desse critério como modo de antecipação do imposto, em face de uma inaptidão estrutural para antecipar presumivel-mente a obrigação tributária por conta da qual se impõe o pagamento, já que o mesmo, pelo total desprezo da outra variável do lucro tributável, acaba por se mostrar totalmente indiferente à probabilística realização e quantifi cação do facto tributário complexo, tal como ele se mostra assu-mido no respectivo tipo de imposto.

Na verdade, a mera ponderação do volume de negócios não pode, em absoluto, considerar-se sintomática da existência, e muito menos da respectiva extensão, de uma futura dívida tributária, dado que, por maior que seja o valor das vendas e dos serviços prestados, as variações intro-duzidas pela relevância decisiva dos custos na defi nição da obrigação tributária são susceptíveis de alterar radicalmente a determinação do imposto devido, e, nessa base, o pressuposto assumido na lei pode deter-minar o cumprimento de uma prestação totalmente à revelia da obriga-ção por conta da qual é imposto.

Impõe-se, por isso, reter que a total irrelevância conferida nesta sede ao rendimento, na estrita medida em que este possa assumir-se como tributável, redunda na imposição de um critério manifestamente desadequado e desproporcionado em face da composição da obrigação fi scal por conta da qual se exige a prestação em causa, sem que o mesmo possa justifi car-se sob a óptica da sua necessidade.

De facto, ao determinar um pagamento antecipado do imposto com base no rendimento ilíquido, a norma em crise acaba por revelar-se manifestamente alheia ao critério substancial de conformação do lucro

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tributável como defi nens da obrigação de imposto, abstraindo do an e do quantum que esta pode expressar.

Por isso, o parâmetro que serve de base ao cálculo do pagamento especial por conta não é só qualitativamente desajustado ao pressuposto do imposto, como também se afi gura quantitativamente indiferente à sua presumível extensão, o que determina, semel pro semper, a existência de uma abstracta desproporcionalidade em relação à capacidade contri-butiva que pode ser imputada ao sujeito passivo e, a fi nal, à efectiva composição da obrigação tributária emergente, violando-se desse modo os princípios da capacidade contributiva, da adequação e da proporcio-nalidade, ínsitos princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição.

Por outro lado, esta conclusão não é afastada pela consideração da baixa percentagem que o legislador faz recair sobre o valor dos serviços ou vendas realizados no exercício anterior.

Na verdade, para além desse facto não desmentir a impertinência do critério de determinação do pagamento especial por conta à luz do que pode ser exigido em face de uma presumível capacidade contributiva, não pode esquecer-se o facto de que o pagamento especial por conta acresce ao valor do pagamento por conta – que pode ascender até 90% do valor do imposto liquidado no exercício anterior –, razão pela qual nem mesmo essa diminuta percentagem pode autorizar a presuntiva conclu-são, extraída de um errado pressuposto, de que a dívida fi scal correspon-derá ao menos a 1% do volume de negócios.

Mutatis mutandis, o mesmo poderá dizer-se da existência de um limite máximo que o pagamento especial por conta não pode ultrapas-sar, porquanto o estabelecimento desse “tecto” apenas pode limitar a distorção dos efeitos decorrentes da isolada consideração do volume de negócios como critério de pagamento, mas não impede a existência de uma prestação alheia e desproporcionada à realidade subjacente à tributação.

Impõe-se, pois, considerar que uma justa repartição dos encargos fi scais, na pluralidade signifi cante que tal critério abarca e enquanto momento de validade presente em toda a vida do imposto, posterga, in casu, a adopção de um critério de pagamento antecipado do imposto que, no seu radical constitutivo, se revela inidóneo, desadequado e despropor-cionado à obrigação que o justifi ca.

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3. Para concluir, importará apenas referir que a inconstitucionali-dade do regime do pagamento especial por conta, aqui advogada, acaba por decorrer da confi guração legislativa que recorta actualmente o insti-tuto, deixando margem para que tal regime, superadas as linhas de corte com os principia que aqui foram expostas, possa manter-se como fonte de antecipação da receita fi scal.

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Comentários de Jurisprudência

LOCALIZAÇÃO PARA EFEITOS DO IVA DE SERVIÇOS RELACIONADOS COM A PERMUTA DE DIREITOS DE FÉRIASEM EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO TJUE DE 3 DE SETEMBRO DE 2009, PROCESSO C-37/08, CASO RCI EUROPE)

Rui Laires

1. Introdução

O London VAT and Duties Tribunal, do Reino Unido da Grã-Bre-tanha e Irlanda do Norte (adiante referido como “Tribunal do Reino Unido”) – relativamente a uma acção em que era recorrente a sociedade RCI Europe (doravante identifi cada por “RCI”) e recorridos os Commis-sioners of HM Revenue and Customs (a seguir indicados como “Admi-nistração Fiscal do Reino Unido”) –, decidiu suspender a instância e sus-citar perante o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a título prejudicial, um conjunto de questões relativas à interpretação da alínea a) do n.º 2 do artigo 9.º da Directiva 77/388/CEE, do Conselho, de 17 de Maio de 1977 (“Sexta Directiva”), em relação ao lugar de tributação das prestações de serviços relacionadas com a intermediação na permuta de direitos periódicos de alojamento em empreendimentos turísticos.1

1 A Sexta Directiva foi objecto de uma reformulação, entrada em vigor a 1 de Janeiro de 2007, tendo em vista, no essencial, proceder a uma diferente sistematização das matérias e a uma nova numeração dos seus artigos. Tal objectivo foi concretizado através da Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado. A regra contida na alínea a) do n.º 2 do artigo 9.º da Sexta Directiva passou a constar do artigo 45.º da Directiva do IVA, na redacção deste artigo que vigorou até 31 de Dezembro de 2009. Dado que, quer os factos tributários objecto de controvérsia no processo principal, quer as questões pre-

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Eram do seguinte teor as questões colocadas ao TJCE:«1. No âmbito dos serviços prestados pela recorrente em contrapar-

tida de:

– uma taxa de inscrição;– uma taxa de subscrição; e– uma taxa de permuta,

pagas pelos membros do programa Weeks da recorrente, quais os factores a tomar em consideração para se determinar se os serviços estão “relacio-nados com imóveis” na acepção do artigo 9.°, n.º 2, alínea a), da Sexta Directiva IVA (actual artigo 45.º da Directiva IVA refundida)?

«2. No caso de algum ou de todos os serviços prestados pela recor-rente estarem “relacionados com” imóveis, na acepção do artigo 9.°, n.° 2, alínea a), da Sexta Directiva IVA (actual artigo 45.º da Directiva IVA refundida), o imóvel com o qual esse serviço ou serviços estão relacio-nados é o imóvel depositado na bolsa ou o imóvel solicitado em troca do imóvel depositado, ou ambos?

«3. No caso de algum dos serviços estar “relacionado com” ambos os imóveis, como deve esse serviço ser classifi cado para efeitos da Sexta Directiva IVA (actual Directiva IVA refundida)?

«4. Atendendo às soluções divergentes encontradas pelos vários Estados-Membros, como qualifi ca a Sexta Directiva IVA (actual Direc-tiva IVA refundida) os montantes da “taxa de permuta” pagos ao sujeito passivo pelas seguintes prestações:

– facilitar a permuta de direitos de utilização para férias pertencen-tes a membros de um programa gerido pelo sujeito passivo por direitos de utilização para férias pertencentes a outros membros desse programa; e/ou

– fornecer direitos de utilização de alojamento adquiridos pelo sujeito passivo a sujeitos passivos terceiros para complemen-tar a bolsa de alojamentos disponíveis para os membros desse programa?»

judiciais suscitadas pelo Tribunal do Reino Unido se reportavam ao articulado da Sexta Directiva, a matéria foi analisada ainda com referência às disposições desta.

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2. Factos e pontos de vista dos intervenientes no processo principal

Em causa no processo principal, que corria termos no Tribunal do Reino Unido, estava a defi nição do enquadramento em IVA de certas operações relacionadas com a permuta de direitos periódicos de habi-tação turística. A permuta era assegurada pela RCI, com sede no Reino Unido, junto de titulares de direitos de habitação turística, através de um programa de permutas denominado «RCI Weeks». Os aderentes ao pro-grama podiam, através da RCI, permutar anualmente o respectivo direito de férias em relação a um dado empreendimento turístico. Nesse caso, o correspondente direito poderia ser gozado em outro empreendimento turístico situado em qualquer país do mundo.

Os aderentes ao programa pagavam à RCI uma “taxa de inscrição”, se pretendessem aderir ao referido programa, e uma “taxa de subscri-ção”, com carácter anual, para manterem a qualidade de membros do programa, bem como uma “taxa de permuta”, caso nesse ano viessem efectivamente a permutar o respectivo direito.

Na sequência de uma acção de inspecção tributária realizada em Espanha, junto de uma sucursal da RCI naquele país, a Administração Fiscal espanhola considerou que a RCI deveria liquidar o IVA espanhol em relação às taxas de inscrição e de subscrição respeitantes a direi-tos turísticos cujos imóveis se situassem em Espanha. Quanto às taxas de permuta, a Administração Fiscal espanhola entendeu que deveria ser liquidado IVA espanhol quando o imóvel que fosse colocado à dispo-sição do cliente se situasse em Espanha. Este entendimento veio a ser impugnado pela RCI junto dos tribunais espanhóis, os quais confi rma-ram o ponto de vista da Administração Fiscal espanhola. Todavia, no momento em que foi proferida a decisão por parte do TJUE, encontrava--se ainda a aguardar a decisão de um último recurso interposto pela RCI perante o Supremo Tribunal daquele Estado membro.

Em consonância com a RCI, a Administração Fiscal do Reino Unido considerava que as taxas de inscrição e as taxas de subscrição se constituíam como operações suje itas a IVA no Reino Unido, em virtude de o respectivo lugar de tributação dever corresponder ao lugar da sede da RCI, na qualidade de prestadora dos referidos serviços. Quanto à taxa de permuta, a RCI e a Administração Fiscal do Reino Unido haviam acordado no sentido da aplicação do regime especial de tributação das

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agências de viagens, considerando que o correspondente montante seria objecto de tributação no Reino Unido quando o imóvel colocado à dispo-sição do cliente se situasse no interior da União Europeia (UE), e que não seria sujeito a tributação quando esse imóvel se situasse fora do território da UE. Do ponto de vista da RCI – o qual era acompanhado no essencial pela Administração Fiscal do Reino Unido – as prestações de serviços em causa no processo não apresentavam uma conexão sufi ciente com um bem imóvel determinado.

No entanto, em função do entendimento da Administração Fis-cal espanhola, a RCI passara a submeter ao IVA espanhol as taxas de inscrição, de subscrição e de permuta relativas a imóveis situados em Espanha. Esse procedimento, adoptado pela RCI a partir de 1 de Janeiro de 2004, levara a que aquele sujeito passivo deixasse de liquidar o IVA em vigor no Reino Unido em relação às operações relacionadas com imóveis sitos em Espanha. Discordando desse procedimento, a Admi-nistração Fiscal do Reino Unido decidiu proceder à liquidação adicional do IVA relativo ao ano de 2004, a qual era objecto de controvérsia no processo principal.

3. Enquadramento das questões colocadas pelo Tribunal do Reino Unido

Através das questões prejudiciais colocadas ao TJUE, o Tribunal do Reino Unido pretendia, no essencial, saber qual era a regra de localiza-ção aplicável aos serviços prestados pela RCI aos aderentes ao programa RCI Weeks.

De harmonia com a regra geral prevista no n.º 1 do artigo 9.º da Sexta Directiva, as prestações de serviços eram de considerar efectuadas no local em que o prestador dispõe da respectiva sede ou de um estabe-lecimento estável a partir do qual os serviços são efectuados. Todavia, tal regra geral comportava várias excepções, entre outras, a aplicável às prestações de serviços relacionadas com um bem imóvel, incluindo as prestações de agentes imobiliários e de peritos, bem como as prestações tendentes a preparar ou coordenar a execução de trabalhos em imóveis, como, por exemplo, as prestações de serviços de arquitectos e de gabi-netes técnicos de fi scalização. Esta excepção à regra geral de localização

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das prestações de serviços determinava a tributação dos serviços conexos com bens imóveis no local onde se situasse o imóvel, conforme previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 9.º da Sexta Directiva.

As prestações de serviços realizadas pela RCI aos aderentes e aos membros do programa RCI Weeks respeitavam, em geral, à possibilidade de estadia, por um dado período de tempo anual, em empreendimentos turísticos situados em diversos países, quer no interior da UE, quer fora dela. Em decisão anterior, tomada por via do acórdão de 7 de Setembro de 2006 (processo C-166/05, caso H. Rudi, Colect. p. I-7749, n.º 23), em que considerou que a cessão de um direito de pesca fl uvial tinha conexão com um bem imóvel, o TJUE sublinhou, para o efeito, que a relação estabelecida entre uma dada prestação de serviços e um imóvel tem de ser uma relação sufi cientemente directa, não sendo de incluir na alínea a) do n.º 2 do artigo 9.º da Sexta Directiva uma prestação de serviços que apresente uma conexão muito ténue com um bem imóvel. No caso agora sob análise, os direitos que eram objecto de permuta, na sequência dos serviços prestados pela RCI, só poderiam ser exercidos em conexão com bens imóveis e estes constituíam um elemento central e indispensável das prestações de serviços em causa, não parecendo que tivessem com os imóveis uma relação apenas ténue.

Geradora de maiores dúvidas era, porém, a questão de saber se o imóvel relevante, para efeitos de determinar a localização das prestações de serviços, seria o imóvel dado em permuta ou o imóvel recebido em permuta. O imóvel recebido em permuta era aquele em que os destina-tários dos serviços da RCI iam, efectivamente, benefi ciar dos serviços de alojamento turístico a prestar nessa unidade hoteleira ou similar. Por seu lado, o imóvel dado em permuta era aquele que os destinatários dos serviços prestados pela RCI inscreviam no programa RCI Weeks, para poderem benefi ciar da permuta promovida pela RCI.

4. Decisão do TJUE

4.1. Na sua decisão, o TJUE considerou que os serviços prestados pela RCI eram de considerar conexos com bens imóveis, e que a conexão relevante era com o imóvel inscrito no programa RCI Weeks para efeitos de ser dado em permuta.

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O TJUE não adoptou a solução preconizada pela advogada-geral Verica Trstenjak, nas suas conclusões apresentadas a 23 de Abril de 2009, muito próxima, aliás, da defendida pela Administração Fiscal do Reino Unido e pela RCI. A advogada-geral sugeria que a decisão fosse no sentido de considerar que os serviços prestados pela RCI, em contra-partida de uma taxa de inscrição e de taxas de subscrição anuais, seriam abrangidos pela regra geral de localização prevista no n.º 1 do artigo 9.º da Sexta Directiva. Quantos aos serviços prestados pela RCI em contra-partida das taxas de permuta, a advogada-geral opinara que poderiam ser objecto de regra de localização congénere, prevista no segundo período do n.º 2 do artigo 26.º da Sexta Directiva, em resultado da aplicação do regime especial do IVA das agências de viagens, só sendo de aplicar um critério de conexão ligado à localização dos bens imóveis se o tri-bunal nacional viesse a considerar inaplicável aquele regime especial. Na eventualidade, porém, de ter seguido as soluções privilegiadas pela advogada-geral, conduzindo à localização das operações em causa no lugar da sede da entidade prestadora dos serviços, preterir-se-ia uma tri-butação tanto quanto possível próxima do local do respectivo consumo, consequência a que o TJUE parece ter sido sensível, como se apreende do afi rmado nos n.ºs 39 e 40 do texto decisório.

4.2. Assim, no que concerne à qualifi cação das prestações de servi-ços efectuadas pela RCI aos membros do programa RCI Weeks, o TJUE enunciou, nos n.ºs 28 a 35 do acórdão, os principais fundamentos que seguem:

a) Se é verdade que o pagamento das taxas de inscrição e das taxas de subscrição anual, por si só, apenas conferia aos clientes da RCI o acesso ao programa de permutas organizado por esta entidade, o facto é que a adesão a esse programa tem como tem como único fi to para os clientes a permuta dos respectivos direitos de utilização periódica em alojamentos turísticos, sem a qual o pagamento daquelas taxas não teria qualquer utilidad e;

b) Não obsta a este entendimento a circunstância de o pagamento das taxas de inscrição e de subscrição poderem, eventualmente, acabar por não dar lugar a uma efectiva operação de permuta quando o cliente da RCI decida não aceitar as propostas de permuta, já que as taxas repre-sentam a contrapartida dos serviços prestados ou a prestar pela RCI que

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lhe dão acesso a poder vir a benefi ciar da permuta do direito de que é titular;

c) Como o TJUE já decidira no acórdão de 21 de Março de 2002 (processo C-174/00, caso Kennemer Golf, Colect. p. I-3293, n.º 42), as quotizações anuais dos membros de uma associação são susceptíveis de constituir a contrapartida pelos serviços que esta presta, ainda que tais membros acabem por não utilizar os serviços disponibilizados pela associação;

d) Por seu turno, no que respeita ao pagamento das taxas de per-muta, este tem por fi to a própria concretização da permuta, surgindo o inerente acesso à bolsa de permutas e às informações a ela relativas como elementos meramente acessórios daquela fi nalidade.

4.3. Seguidamente, nos n.ºs 36 e 37 do acórdão, em relação à aplica-

ção do critério de conexão dos serviços relacionados com bens imóveis, constante, na altura dos factos, da alínea a) do n.º 2 do artigo 9.º da Sexta Directiva, o TJUE assinalou o seguinte:

a) A aplicação da referida disposição, pressupõe a existência de um nexo sufi cientemente directo entre a prestação de serviços e o imóvel em causa;

b) Uma vez que um grande número de prestações de serviços estão ligadas, de uma forma ou de outra, a um bem imóvel, não seria adequado incluir no âmbito de aplicação daquela regra específi ca todas as presta-ções de serviços que apresentassem uma conexão com um bem imóvel, incluindo os casos em que essa ligação fosse muito ténue;

c) Os direitos objecto de permuta constituem direitos sobre bens imóveis, sendo a respectiva permuta operações directamente conexas com bens imóveis.

4.4. Relativamente a questão de defi nir se o imóvel relevante para determinar o elemento de conexão seria o imóvel dado em permuta ou o imóvel obtido em permuta por cada um dos membros do programa, o TJUE decidiu que o lugar de tributação dos serviços prestados pela RCI aos seus membros, em contrapartida da taxa de inscrição, da taxa anual de subscrição e da taxa de permuta, deve ser o lugar onde se situe o imó-vel dado em permuta. Para tanto, o TJUE, nos n.ºs 38 e 41, evidenciou o seguinte:

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a) O titular de um direito de utilização periódica sobre um imóvel, que pretenda permutar o seu direito com um titular de um direito idêntico sobre outro imóvel, não entra em contacto com este, mas com a RCI;

b) O pagamento feito à RCI não é a contrapartida do alojamento num dado empreendimento de férias, mas a contrapartida dos serviços prestados pela RCI que permitem facilitar a permuta do seu direito rela-tivo a um imóvel, pelo que é com esse imóvel que estão relacionados os referidos serviços;

c) Assim, as prestações de serviços efectuadas pela RCI a cada um dos seus membros estão conexas com o imóvel relativamente ao qual esse membro detém os direitos que coloca à disposição do programa RCI Weeks.

4.5. Por último, nos casos em que residualmente a RCI contratava com terceiros a prestação, por estes terceiros, de serviços de alojamento em certos empreendimentos turísticos, no sentido de completar a bolsa de alojamentos disponíveis para os membros do programa RCI Weeks, o TJUE salientou, no n.º 42 do acórdão, que a RCI só cobrava as taxas em apreço aos seus membros, pelo que não havia qualquer serviço ou qual-quer outra operação tributável realizada pela RCI a terceiros.

4.6. Com base na fundamentação exposta, o TJUE, no dispositivo do acórdão, declarou o seguinte:

«O artigo 9.º, n.º 2, alínea a), da Sexta Directiva […] deve ser inter-pretado no sentido de que o lugar das prestações de serviços levadas a cabo por uma associação cuja actividade consiste em organizar a permuta entre os seus membros dos respectivos direitos de utilização periódica de alo-jamentos de férias em contrapartida das quais esta associação recebe dos seus membros taxas de inscrição, subscrições anuais e taxas de permuta é o lugar onde está situado o imóvel relativamente ao qual o membro em causa é titular do direito de utilização periódica.»

5. Conclusão

A alínea a) do n.º 2 do artigo 9.º da Sexta Directiva, objecto de inter-pretação no presente processo, deu lugar, a partir de 1 de Janeiro de 2007,

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Comentários de Jurisprudência

ao artigo 45.º da Directiva do IVA, na redacção deste artigo que vigorou entre aquela data e 31 de Dezembro de 2009. Actualmente, a regra rela-tiva ao lugar de tributação das prestações de serviços conexas com bens imóveis consta, em termos que se afi guram materialmente idênticos, do artigo 47.º da Directiva do IVA, na redacção dada pela Directiva 2008/8/CE, do Conselho, de 12 de Fevereiro de 2008, com efeitos desde 1 de Janeiro de 2010. A decisão tomada no presente processo continua, por-tanto, a ter plena aplicação relativamente a factos tributários ocorridos a partir de 1 de Janeiro de 2010. Aliás, do ponto de vista da clareza da respectiva redacção, o artigo 47.º da Directiva do IVA passou a enunciar expressamente que o lugar da situação do bem imóvel é o critério de conexão relevante para efeitos de localização dos serviços de alojamento no sector hoteleiro e em sectores com funções análogas.

Na actual legislação interna portuguesa, a regra de localização dos serviços relacionados com bens imóveis, prevista no artigo 47.º da Direc-tiva do IVA, decorre da conjugação do disposto na alínea a) do n.º 7 e na alínea a) do n.º 8 do artigo 6.º do Código do IVA, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 186/2009, de 12 de Agosto. Daí resulta que são consi-deradas efectuadas em território nacional as prestações de serviços rela-cionadas com bens imóveis nele situados, ao passo que as relacionadas com bens imóveis localizados fora dele não são consideradas efectua-das em território nacional, independentemente do lugar onde o prestador ou o destinatário dos serviços se encontrem sediados, estabelecidos ou domiciliados.

Entretanto, aguarda-se que a decisão tomada no presente processo possa ser complementada pela que virá a ser tomada, a breve trecho, no processo C-270/09 (caso MRL), também submetido ao TJUE por um tribunal do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. Neste segundo processo, a matéria controvertida já não respeita à localização de serviços relacionados com permutas, mas à defi nição do Estado mem-bro onde devem ser submetidas a tributação as prestações de serviços de alojamento em empreendimentos turísticos, quando o direito ao alo-jamento seja obtido através da adesão a clubes de férias que procedem à emissão e à gestão de cartões de pontos para o efeito.

À semelhança do que acabou por se demonstrar na presente decisão relativa à RCI, também a interpretação da Administração Fiscal do Reino Unido no caso MRL se afi gura inadequada e susceptível de prejudicar a

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receita fi scal dos Estados membros onde predominantemente se situam os empreendimentos turísticos potencialmente abrangidos, como pode suceder com Portugal.

É conveniente, por isso, que os serviços a quem está atribuída a administração do IVA e os incumbidos do controlo do imposto venham estando atentos às consequências da decisão tomada no caso RCI e das que resultarem da decisão no caso MRL, de modo a que, com base nos elementos reunidos a nível nacional ou em informações obtidas através dos mecanismos intracomunitários de cooperação administrativa, pos-sam ser acauteladas as receitas fi scais que, segundo as regras do sistema comum do IVA, devam afl uir ao Estado português.

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Comentários de Jurisprudência

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL N.º 188/2009, DE 22 DE ABRIL DE 2009 (PROCESSO N.º 505/08)Plenário – Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha

Nazaré da Costa Cabral

I – Dos fundamentos do pedido de apreciação da constitucionalidade e sumário do Acórdão

1. Neste Acórdão, o Tribunal Constitucional pronuncia-se sobre um pedido, feito pelo Provedor de Justiça, em fi scalização abstracta suces-siva, de declaração de inconstitucionalidade do artigo 101.º do Decreto--Lei n.º 187/2007, de 10 de Maio. O artigo determina o seguinte:

«1 – Nas pensões calculadas nos termos do artigo 34.º, P1 fi ca limi-tada a 12 vezes o IAS, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

2 – Sempre que P2 seja superior a P1, não é aplicada qualquer limite a esta parcela.

3 – A limitação referida no n.º 1 também não é aplicável se o valor de P1 e de P2 for superior a 12 vezes o valor do IAS e o P1 for superior a P2, situação em que a pensão é calculada nos termos do artigo 32.º».

Estaria em causa a violação dos princípios da protecção da con-fi ança, da proporcionalidade e da igualdade e, bem assim, a violação do princípio da contributividade, constante no artigo 54.º da Lei de Bases da Segurança Social (Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro). O Provedor de Justiça fundamentou o pedido nos seguintes termos:

«– O Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de Maio, veio estabelecer o regime jurídico de protecção nas eventualidades invalidez e velhice do regime geral da segurança social.

– O diploma prevê, no seu artigo 101.º, n.º 1, um limite superior, correspondente a 12 vezes o Indexante dos Apoios Sociais (IAS), para

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uma das parcelas (“P1”) da fórmula de cálculo da pensão a atribuir aos benefi ciários inscritos até 31 de Dezembro de 2001. Essa fórmula de cál-culo consta do artigo 33.º e a parcela que aí se inclui, e que o artigo 101.º limita, é calculada nos termos do artigo 34.º, todos do mesmo Decreto-Lei n.º 187/2007.

– As pessoas mais afectadas por aquele limite imposto, no artigo 101.º, a uma das parcelas da fórmula de cálculo do artigo 33.º, são aque-las que estão mais próximas de receber a pensão, ou seja, as pessoas que iniciem a pensão entre 1 de Julho de 2007 (data de entrada em vigor da lei, nos termos do seu artigo 115.º) e 31 de Dezembro de 2016 (data em que os benefi ciários inscritos até 31 de Dezembro de 2001 passarão a estar sujeitos a uma nova fórmula de cálculo).

– As pessoas visadas pela limitação imposta no artigo 101.º, são, na prática, e no que às pensões por velhice diz respeito, aquelas que terão agora uma idade compreendida entre os 56 e os 64 anos, e estarão portanto já próximas do fi nal da sua carreira contributiva.

– Com o limite imposto pelo artigo 101.º, n.º 1, essas pessoas sofrem uma redução assinalável, em muitos casos drástica, das suas pensões face ao valor expectável antes da aprovação das regras neste momento em vigor.

– De entre os casos que foram apresentados na Provedoria, encontra--se um, por exemplo, em que a pensão seria de € 7318,00 e, por efeito da aplicação do limite imposto pelo artigo 101.º, fi cará reduzida a € 4986, 56, implicando uma perda correspondente a 46,7 % do valor que seria considerado segundo cálculo anteriormente previsto.

– Note-se que estas alterações se aplicam inclusivamente a bene-fi ciários com 64 anos de idade e 40 anos de carreira contributiva que, à data da entrada em vigor da lei, estavam à beira de poderem solicitar a correspondente pensão.

– A situação é particularmente chocante quando se aplique a limita-ção do valor das pensões aos membros dos órgãos estatutários das pessoas colectivas, pois estes foram legalmente autorizados (pelo artigos 11.º e 12.º do DL n.º 327/93 de 25 de Setembro, nas redacções e na interpretação dadas pelos DL n.º 103/94, de 20 de Abril, e 571/99, de 24 de Dezembro) a fazer o pagamento das suas contribuições com base no valor real das remunerações quando estas excedessem o limite máximo da base de inci-dência fi xado naquele diploma.

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– Quando essas pessoas optaram por descontar um valor superior ao limite máximo da base de incidência, fi zeram-no baseadas no pressuposto de que o valor da pensão que iriam futuramente receber teria correspon-dência nesse acréscimo de descontos autorizados pelo legislador.

– A limitação do valor máximo das pensões poderá ter consequên-cias, ainda, na situação dos benefi ciários inscritos até 31 de Dezembro de 2001, mas que apenas iniciem a sua pensão após 31 de Dezembro de 2016, embora seja de reconhecer que, nestes casos, os benefi ciários se encontra-vam, à data da entrada em vigor da solução legal contestada, mais longe da reforma, sendo as respectivas expectativas neste sentido, naturalmente menos exigentes ao nível da tutela jurídica.

– O regime estabelecido no artigo 101.º viola os princípios consti-tucionais da confi ança, da proporcionalidade e da igualdade, o primeiro podendo ser extraído do conceito de Estado de Direito democrático a que alude o artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, o segundo decorrendo explicitamente, a propósito dos direitos liberdades e garantias, do artigo 18.º, n.º 2, do texto constitucional, o último estando estabelecido, de forma genérica, no artigo 13.º da Lei Fundamental.

– Contraria, também, os princípios da contributividade e do respeito pelos direitos adquiridos e em formação consignados na Lei de Bases da Segurança Social.

– Na verdade, decorre do artigo 54.º da Lei de Bases da Segurança Social actualmente em vigor, a Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que o sistema previdencial deve ter por base uma relação sinalagmática directa entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações.

– E o artigo 58.º da mesma lei apenas permite a limitação dos valores das pensões pela limitação prévia dos valores das contribuições.

– A relação sinalagmática entre a pensão e a contribuição é objecti-vamente comprometida pela nova lei, em especial, no caso dos membros dos órgãos de pessoas colectivas que descontaram para além do limite máximo da base de incidência, sem que a lei preveja a devolução dos montantes pagos.

– O regime viola ainda o princípio da tutela da confi ança, tendo em consideração que os benefi ciários que são atingidos pela limitação do valor das suas pensões já não poderão reorientar a sua estratégia de planeamento das respectivas pensões.

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– As excepções previstas no artigo 101.º, n.º 2 e 3, difi cilmente terão repercussão no que respeita aos benefi ciários mais perto da reforma (isto é, aos inscritos até 31 de Dezembro de 2001 que iniciem pensão até 31 de Dezembro de 2016) pois o peso da parcela da fórmula de cálculo que está sujeita ao limite do artigo 101.º é decisivo para o cálculo da pensão podendo mesmo corresponder, para uma carreira contributiva de 40 anos, à proporção de 39/40, no caso das pessoas que se reformem logo em 2008.

– Do preceituado no artigo 101.º, incluindo as suas excepções, con-clui-se que foi objectivo do legislador penalizar as situações dos benefi -ciários que obtiverem remunerações mais elevadas nos últimos anos da carreira contributiva.

– Contudo, na medida em que o regime instituído no artigo 101.º, n.º 1, tenha por objectivo atingir apenas as pessoas que terão manipulado o futuro valor da pensão, viola o princípio da proporcionalidade, pois não atinge apenas essas pessoas mas também todas as outras, incluindo os tra-balhadores por conta de outrem cujos descontos em nada dependem da sua vontade.

– A medida estabelecida pelas normas do artigo 101.º, do Decreto--Lei n.º 187/2007, visa uma “maior moralização do sistema” (cf. preâm-bulo do diploma), mas a verdade é que abrange, de forma arbitrária, pen-sionistas que, benefi ciando de remunerações mais elevadas nos últimos anos da carreira contributiva não tiveram qualquer intervenção na fi xação desses montantes.

– Há, além disso, violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Lei Fundamental, pois o limite do valor das pensões apenas se aplica a uma categoria bem determinada de destinatários (os inscritos até 31 de Dezembro de 2001 e, entre estes, de forma mais gravosa aten-dendo ao nível da expectativas criadas, para os que iniciem a pensão até 31 de Dezembro de 2016).

2. Estes argumentos foram no entanto rejeitados pelo Tribunal Cons-titucional (que decidiu não declarar nem a inconstitucionalidade, nem a ilegalidade do artigo sub judice), em termos que a seguir se reproduzem:

Relativamente ao princípio da confi ança, o Tribunal considerou que: «Não pode dizer-se, em todo este condicionalismo, que a mutação da ordem jurídica tenha afectado de forma inadmissível as expectativas

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das pessoas abrangidas por esse novo regime de transição e que essa tenha sido uma alteração legislativa com que, razoavelmente, os destinatários não poderiam contar. E não pode deixar de reconhecer-se que a limitação do montante da pensão, entendida no quadro mais geral da reforma do sistema de segurança social, se encontra justifi cada pela necessidade de salvaguardar interesses constitucionalmente protegidos que devem con-siderar-se prevalecentes, como o princípio da justiça intergeracional e o princípio da sustentabilidade.»

Quanto à alegada violação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal defendeu que: «Objectivamente o regime precedente propiciava a obtenção de pensões mais elevadas através do aproveitamento, para efeito do cálculo do montante da pensão, do período contributivo mais favorável da fase fi nal da actividade profi ssional. A nova lei intentou uma alteração estruturante do sistema de segurança social, com base em razões de justiça social e de sustentabilidade fi nanceira, visando assegurar que a pensão reproduza com maior fi delidade as remunerações auferidas ao longo da vida profi ssional. O regime legal não foi pois estabelecido em vista de exigências pragmáticas de combate a situações de aproveitamento de defi ciências legais para obtenção de benefícios injustifi cados, mas é antes a decorrência de um critério de cálculo do montante de pensões que se entende socialmente mais justo e que pretende responder, nesse plano, às modifi cações resultantes das alterações demográfi cas e económicas que têm refl exo no sistema de segurança social. Não pode dizer-se, neste con-texto, que a fi xação de um limite superior da pensão, abrangendo indistin-tamente quem tenha ou não manipulado o cálculo da pensão, deixe de con-tribuir para esse desígnio legislativo, nada permitindo concluir no sentido da invocada violação do princípio constitucional da proporcionalidade.»

Já no que diz respeito ao desrespeito pelo princípio da igualdade, entendeu o Tribunal Constitucional que Assente, por outro lado, que o legislador dispõe de liberdade de conformação para modifi car o sistema legal, designadamente em matéria de direitos sociais, e estabelecer aí dife-renciações de regime (fora das situações limite em que se encontre condi-cionado pelo princípio da proibição do retrocesso social), a única questão que pode colocar-se, no estrito plano da igualdade é a possível violação da proibição do arbítrio. É patente, porém, que a delimitação do campo subjectivo de aplicação da fórmula proporcional do cálculo do montante das pensões, bem como do limite superior do valor da pensão, apenas por

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referência aos benefi ciários inscritos até 31 de Dezembro de 2001 não é, de nenhum modo, uma medida arbitrária. Por outro lado, através da seg-mentação dos períodos de transição, aplicando cálculos com diferentes modulações para os que iniciem a pensão até 31 de Dezembro de 2016 ou após essa data, o legislador mais não pretendeu, em ordem ao objectivo traçado, do que assegurar que a parcela da pensão que deverá ser calcu-lada segundo as novas regras (P2) venha a assumir proporcionalmente um maior peso relativo na média ponderada das duas fórmulas de cálculo. Como logo se entrevê, não faz qualquer sentido pretender que a limitação do montante da pensão (que integra o regime transitório aplicável aos ins-critos até 31 de Dezembro de 2001) devesse ser genericamente prevista para todos os benefi ciários. Por um lado, a aplicação de um factor correc-tivo do limite da pensão só tem cabimento em relação àqueles que, por se encontrarem abrangidos pelo regime de transição, benefi ciam ainda da aplicação parcial do regime de cálculo, mais favorável, do Decreto-Lei n.º 329/93, e que propiciava (…), a obtenção de pensões muito elevadas.»

Finalmente, quanto à invocada violação do princípio da contri-butividade, o Tribunal começa por recordar que: «A referência legal a uma relação sinalagmática directa entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações parece pressupor um princípio contratualista de correspectividade entre os direitos e obrigações que integram a relação jurídica de segurança social. Mas diversos outros indicadores apontam no sentido de que o legislador pretendeu apenas referir-se à necessária inter-dependência entre o direito às prestações e a obrigação de contribuir, o que não signifi ca que exista uma directa correlação entre a contribuição paga e o valor da pensão a atribuir.» E acrescenta: «O sinalagma a que se alude no artigo 54º da Lei de Bases não pretende signifi car, por conse-guinte, a existência de um vínculo de correlatividade entre o montante da pensão e o valor das remunerações sobre que incidiram as contribuições; antes revela um nexo de dependência recíproca que se estabelece entre duas obrigações: a obrigação contributiva, que recai sobre os benefi ciá-rios e entidades empregadoras, e a obrigação prestacional, que incumbe ao Estado, através das instituições de segurança social. Nestes termos, o princípio da contributividade, tal como se encontra formulado no artigo 54º da Lei n.º 4/2007, pretende caracterizar essencialmente a ideia de auto-fi nanciamento do sistema previdencial, distinguindo essa modalidade de protecção social, daquelas outras que assentam em regimes não contribu-

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tivos.» Para concluir: «Visando o legislador, como se deixou esclarecido, acelerar a transição para a nova fórmula de cálculo, a desconsideração de parte das contribuições efectuadas sobre as remunerações mais elevadas de um determinado período da actividade profi ssional, por efeito da impo-sição de um valor máximo ao montante da pensão, constitui uma (outra) medida legislativa de concretização do princípio da contributividade tal como é hoje entendido. No ponto em que, em relação a esse universo de benefi ciários, atenua a disparidade do sistema, por via da introdução de um factor correctivo, e possibilita uma aproximação ao regime geral.»

II – Anotação

Os argumentos jurídicos de fundo, ao abrigo dos quais analisaremos a posição do Tribunal Constitucional sobre o disposto no artigo 101.º do Decreto-Lei n.º 187/2007, são, por um lado, o da eventual violação do princípio da confi ança e, por outro, o da eventual violação do princípio da contributividade.

a) O artigo 101.º do Decreto-Lei n.º 187/2007 e a eventual viola-ção do princípio da confi ança

1. O princípio da confi ança mantém, como assinala Frada (2001), uma relação dúplice com o Direito. Assim, se é certo que «cabe a qual-quer ordem jurídica a missão indeclinável de garantir a confi ança dos sujeitos, porque ela constitui um pressuposto fundamental de qualquer coexistência ou cooperação pacífi cas, isto é, da paz jurídica» (p. 13), também não é menos verdade que a crescente juridifi cação nas socieda-des tende a conduzir à «substituição do processo informal de coordena-ção dos comportamentos através da confi ança pela institucionalização de regras jurídicas “formais”» (p. 12).

Assim sucede, por exemplo, no Direito Civil (maxime no Direito das Obrigações), seja no domínio contratual, seja no campo da responsa-bilidade extracontratual. Como refere Araújo (2007), «um dos objectivos da disciplina contratual é incutir em ambas as partes, ou ao menos, numa delas, a parte credora, a confi ança de que o devedor cumprirá – uma

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confi ança que aumenta o valor do cumprimento para o próprio credor, incentivando-o a investir por conta do cumprimento, a fazer a sua parte da colaboração contratual de modo a incrementar os ganhos que advirão para ele, ou para ambas as partes, dessa colaboração» (p. 773). A con-fi ança aparece, por outro lado – menciona o mesmo autor – associada à primazia do extracontratual: «a tutela da “reliance” atrai a responsabili-dade extracontratual para dentro dos domínios do contrato» (p. 781). E aparece a relevar assim no momento pré-contratual, antes da contratu-alização, a partir de uma representação intermédia que as partes fazem do contrato a celebrar, induzida por tomadas de posição de parte a parte (idem, p. 782).

2. Nas relações que o Estado entabula com os cidadãos, a dimen-são da confi ança está presente. A relação de cidadania é, deste ponto de vista, uma relação de confi ança. Mas já lá iremos. O problema coloca-se a montante: acerca da fundamentação e legitimidade em si mesma do Estado. Nos Tratados Clássicos de Filosofi a Política, procura-se, com efeito, desde logo, retirar a existência e a legitimação do Estado, a partir desse topoi da confi ança. Em Hillman (2003, pp. 585-587), por exemplo, são referidas as principais correntes do pensamento que associam a con-fi ança à necessidade do Estado (ou à falta dela). A confi ança surge aqui, então, associada ao confronto entre a perspectiva hobbesiana e lockeana, a saber, o confronto entre a necessidade de uma ordem imposta (o Levia-than) e a sufi ciência do respeito pela liberdade individual. E a questão decisiva – num pano de fundo inicial de anarquia – é a de saber se os indivíduos são capazes de cooperar voluntariamente (e se podem esta-belecer um compromisso credível para cooperar), resolvendo assim os problemas suscitados pela anarquia, existência de bens colectivos, exte-rioridades, justiça social... (nisto acreditava Locke), ou não são capazes de o fazer (era o que pensava Hobbes). Para Hillman, o entendimento lockeano é o que melhor deve servir a estruturação da sociedade: nesta perspectiva liberal, a confi ança e a cooperação substituem o Estado. O autor justifi ca-o, com nos ensinamentos da teoria dos jogos e fundamen-talmente da parábola do dilema do prisioneiro (e do equilíbrio de Nash). Nos seguintes termos. Em primeiro lugar, é possível alcançar a coope-ração voluntária no dilema do prisioneiro, se as pessoas forem capazes de assumir um compromisso credível para cooperar. Nestes termos, uma

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promessa de cooperar pode ser tornada credível, introduzindo um bene-fício adicional ou um custo (por exemplo uma penalidade) que torne a cooperação, inevitavelmente, a melhor escolha pessoal. Em segundo lugar, a existência de incentivos para interacções repetidas. A repetição é a melhor forma de inferir, a partir de acções passadas, comportamen-tos futuros. Finalmente, a defi nição de um comportamento de jogo-tipo baseado na reciprocidade. Ora, num conjunto alargado de populações anónimas, as normas sociais assumem especial importância como base de cooperação e de confi ança entre as pessoas. Na verdade, a coopera-ção tem lugar quando o comportamento de cada um é guiado por nor-mas sociais que refl ictam os valores pessoais de auto-estima – e estes valores são, ao contrário do que sustentava Hobbes, os da benevolência (“benevolence”) e de rejeição de oportunismo (pela velha máxima, “não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti”). A existência de tais normas sociais é sufi ciente para garantir a sustentação da confi ança de cada um relativamente às acções a adoptar pelos outros. Poder-se-á mesmo afi rmar que tais normas substituem a reputação pessoal de cada um, como base fundamental da cooperação entre todos. Pelo que, em suma, uma sociedade baseada numa norma de social de confi ança (aqui referida como “trust”) e de merecimento de confi ança (“trustworthi-ness”) “viverá” melhor do que uma sociedade baseada na desconfi ança e no oportunismo. Uma sociedade de pessoas merecedoras de confi ança benefi ciará dos resultados obtidos com as acções de cooperação volun-tária e benevolente. Diversamente, uma sociedade fundada em normas sociais de desconfi ança e de oportunismo viverá num meio de cinismo e de suspeição mútua, com desvantagens sociais que a todos tocam. Assim sendo, conclui Hillman pela afi rmação de que, se Locke estiver certo, a confi ança substitui o Estado e a necessidade dele.

A perspectiva mais recente, trazidas para Política a parir da Econo-mia, mormente com a Teoria da Escolha Pública, fez desviar o assento tónico herdado do contratualismo constitucional e da fundamentação (“metafísica”) do Estado, para o âmbito das relações de poder quotidia-nas entabuladas entre o Estado (“government”) e os seus cidadãos. Já não se trata da alternativa Estado ou confi ança, antes a ideia da confi ança no Estado. Comparando com as anteriores aplicações, está em causa a relação de confi ança entre os eleitores e um determinado Governo em particular e, no limite, a relação de confi ança entre os cidadãos e o Estado

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(assim, por exemplo, Slemrod, (2003), pp. 51 ss.). Temas como a repu-tação do governo e da credibilidade das políticas foram extensamente analisados, não apenas no quadro da política monetária (com destaque para o modelo de Barro e Gordon em 1983), mas também para interpre-tar as respostas dos diversos actores (maxime os agentes económicos) a todos os tipos de políticas governativas. Nestes casos, é do interesse de cada indivíduo avaliar se os compromissos feitos pelo(s) governos(s) são ou não credível(is). E isto remete, necessariamente, para a segunda dimensão do problema – apurar em que medida a confi ança gerada num determinado governo em particular (ou num conjunto de governos) con-tribui para o comportamento “oportunista” de “free-rider” que – não obstante a crença lockeana – ocorre nas sociedades em geral. Alguns autores, como Levi (1999), têm manifestado a opinião de que o mereci-mento de confi ança, por parte de um certo Governo, acompanhado da percepção de que os outros estão a fazer a sua parte, pode induzir as pessoas a darem o seu “consentimento contingencial” desde logo à tribu-tação, cooperando assim com o Governo e com o Estado, mesmo que o seu interesse monetário de curto prazo fi zesse da atitude “free-riding” a sua melhor opção. Como esclarece ainda a mesma autora (citada por Sle-mrod), «the willingness to pay taxes quasi-voluntaraly or to give one´s contingent consent to conscription often rests on the existence of the state´s capacity and demonstrated readiness to secure the compliance of the otherwise noncompliant» (ibidem, p. 55) (itálico nosso). Nesta linha, o próprio Slemrod vem defi nir o merececimento da confi ança por parte do Governo, como o conjunto das acções que possam induzir as pessoas a pôr de parte o seu comportamento oportunista e a tornarem-se “contingent compliers”. E defi ne, por sua vez, a confi ança como a crença em que o Governo leve a cabo, de facto, um determinado tipo de acções.

3. O campo do exercício das relações de cidadania, a exigir a tutela

da confi ança, é justamente o das relações com o Estado, seja com o Estado-Poder Político, seja com o Estado-Administração, e a essa tutela de confi ança o Direito Público não fi ca imune: acolhe-as e concede-lhes o sentido jurídico. É característica fundamental do Estado de Direito Democrático o respeito e a garantia de efectivação dos direitos e liber-dades fundamentais. A Constituição da República Portuguesa concre-tiza isto mesmo no seu artigo 2º. Como referem Canotilho e Moreira

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Comentários de Jurisprudência

(2007), comentando o artigo, o princípio do Estado de Direito «mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo conglobador e inte-grador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densifi cam a ideia de sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segu-rança». Ele visa sobretudo preservar aquilo que «constitui o cerne do Estado de direito democrático, a saber, a protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça (especialmente por parte do Estado)» (pp. 205 e 206). Ora, uma das suas concretizações – ainda que apenas implícita neste princípio – é justamente a tutela da confi ança, a qual, por sua vez, ainda se desdobra em diversas aplicações e constitui a outra face do princípio da segurança jurídica.

Uma das mais importantes aplicações deste princípio consiste – e porque ela nos importa especialmente – na proibição de leis retroactivas. Isto mesmo apresenta especial relevância em certos ramos do Direito Público, com destaque para o Direito Penal e para o Direito Fiscal. No Direito Fiscal, e até à revisão constitucional de 1997 (altura em que a Constituição proibiu expressamente a retroactividade fi scal – cf. n.º 3 do artigo 103.º), coube sobretudo à jurisprudência do Tribunal Constitucio-nal a tarefa de identifi car os critérios materiais de determinação dos limi-tes da retroactividade, surgindo como principal critério a medida da lesão do princípio da confi ança (tal como referia Sanches, 2002, p. 89). Ora, acrescentava ainda o autor, «a lesão deste princípio que a retroactividade sempre implica e que só outro interesse superior pode justifi car deve ser sempre considerada como um recurso excepcional…» (p. 89)1. Foi com base neste quadro intelectual, que se desenvolveu – com acolhimento na jurisprudência constitucional – a teoria dos “dois graus” de retroactivi-dade, forte e fraca (esta última, por sua vez, identifi cada pelo termo de retrospectividade ou retroactividade inautêntica). Haverá pois retroac-tividade autêntica ou própria, sempre que se aplique a lei nova a factos anteriores à entrada em vigor da lei nova e retroactividade inautêntica quando a norma jurídica, conquanto pretenda ter efeitos para o futuro, incide sobre situações ou relações jurídicas já existentes (neste sentido, Canotilho, 2001, pp. 261-262). E acrescenta este mesmo autor afi rmando

1 Sobre esta questão, veja-se ainda Sá Gomes (1993).

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que, nos casos de retroactividade inautêntica, a segurança jurídica, na sua dimensão subjectiva – a tutela da confi ança – apresenta menor intensi-dade normativa, surgindo sob as “vestes” de mera expectativa. A grande difi culdade está pois em verifi car, caso a caso, se essas expectativas (legítimas?) foram ou não defraudadas e, sendo-o, se o foram de modo aceitável ou inaceitável – o Tribunal Constitucional usou, em diversos momentos, a ideia de “arbitrariedade” ou “excessiva onerosidade” como pedra de toque.

Note-se ainda que o sentido desta distinção (entre retroactividade própria e retrospectividade) tem tanto mais relevância quanto, no Direito Fiscal, existem quer factos tributários de natureza instantânea (o pressu-posto gerador do imposto pode paralisar-se no tempo, facilitando a veri-fi cação da retroactividade), quer factos tributários de formação sucessiva (v.g. IRS), aqueles em que o pressuposto gerador do imposto vai acon-tecendo ao longo de um dado exercício fi scal. Quanto a estes, regula, de forma cautelosa, a Lei Geral Tributária2, determinando no n.º 2 do seu artigo 12.º que «se o factor tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor».

Tendo em conta o que fi cou dito, o Tribunal Constitucional consi-derava, já no Acórdão n.º 287/90, de 30 de Outubro (Proc. n.º 309/88) ocorrer uma situação de arbitrariedade ou excessiva onerosidade, para efeito da tutela do princípio da segurança jurídica na vertente material da confi ança, sempre que se verifi cassem os seguintes pressupostos:

a) A inadmissível afectação de expectativas em sentido desfavo-rável, por virtude de uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela cons tantes não possam contar; e ainda

b) E que tal não fosse ditado pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

2 Aprovada pelo decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, com alterações.

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Comentários de Jurisprudência

Por seu turno, no Acórdão recente n.º 128/2009, de 12 de Março (Proc n.º 772/2007)3, considerou-se que, uma vez expressa no texto da Constituição a proibição da retroactividade em matéria fi scal, esta proi-bição deve ser vista já não numa dimensão subjectiva (dependendo, em concreto, do contexto dos sujeitos da relação tributária resultante da apli-cação da lei), mas antes numa dimensão objectiva. Agora, à proibição expressa da retroactividade da lei fi scal não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objectividade e auto-vinculação do Estado pelo Direito. Quer isto dizer que, actualmente, e consagrado que está o princí-pio geral de irretroactividade da lei fi scal, a mera natureza retroactiva de uma lei fi scal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fi scal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da ave-riguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condi-ção, em concreto, de uma certa relação jurídico -tributária.

Ainda assim, a discussão em torno da admissibilidade da retroacti-vidade, à luz do princípio da confi ança, não deixou de ser útil; bem pelo contrário, acrescenta-se no Acórdão citado (aqui secundando Nabais, 2005, p. 149) que, «ao contrário do que sucede com a aplicação do prin-cípio contido no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, a «mobilização» do princípio da confi ança em matéria tributária obriga a um juízo que não prescinde de ponderações: saber se a norma é ou não inconstitucio-nal (por violação da protecção da confi ança) obriga a que se tenha em conta, e se pondere, tanto o contexto da administração tributária quanto o contexto do particular tributado». Isso implica na óptica do Tribunal sujeitar a norma em preço aos seguintes quatro requisitos ou “testes”. Dito de outro modo, para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da confi ança é necessário que: i) o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; ii) devem tais expectativas ser legítimas, justifi cadas e

3 Cujos argumentos voltaram a ser usados no Acórdão n.º 85/2010, de 3 de Março (Proc. n.º 653/2009). Ainda sobre estas questões, vide também Acórdão n.º 494/2009, de 29 de Setembro (Proc n.º 595/06).

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fundadas em boas razões; iii) devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» esta-dual; iv) é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifi quem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa. Os quatro testes aqui mencionados concretizam a ideia de que o Estado, nas suas relações com os cidadãos, deve usar da boa fé e deve ser pessoa de bem: não deve deliberadamente sugerir de forma muito convincente a adopção futura de comportamentos que depois, ao fi m e ao cabo, vem a defraudar.

4. Se é certo que no campo do Direito Fiscal, a teoria dois graus de retroactividade continua a fornecer auxílio precioso na determinação dos limites da retroactividade (à luz da tutela da confi ança), noutros ramos do Direito Público os limites da retroactividade são testados a partir de outros critérios operativos. Ainda assim, a fronteira da retroactividade admissível e inadmissível descortina-se mal; logo também aqui, ape-nas de forma casuística pode ser verifi cado se a mesma foi transposta (cabendo, de novo, à jurisprudência essa verifi cação). Uma das teorias mais antigas (com relevância no Direito da Segurança Social) é a teo-ria dos direitos adquiridos. E, neste plano, a grande e difícil distinção consiste em separar os direitos adquiridos das “meras” expectativas. A expectativa, relembra Telles (2001), «não é ainda um direito subjec-tivo adquirido. Essa expectativa, em princípio, não goza de protecção jurídica; é uma simples esperança, uma atitude anímica ou psicológica desprovida de tutela legal, consistente apenas (como a palavra diz) em esperar vir a ser titular de certo direito» (p. 280).

Nas sucessivas Leis de Bases da Segurança Social, deu-se a cir-cunstância de se ter empregue o termo “direitos adquiridos e em for-mação” (é o que sucede com a epígrafe do artigo 100.º da actual Lei). Curiosamente, depois, a redacção do preceito não coincide inteiramente com a epígrafe (tal como já sucedia com a Lei de Bases anterior – n.º 1 do artigo 121.º4). O artigo 100.º dispõe apenas «o desenvolvimento e a regulamentação da presente lei não prejudicam os direitos adquiridos,

4 Veja-se, a propósito, o comentário a este número feito por Neves (2003, pp. 279-280).

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os prazos de garantia vencidos aos abrigo de legislação anterior, nem os quantitativos de pensões que resultem de remunerações registadas na vigência daquela legislação». Ou seja, o legislador aparenta querer mais do que aquilo que realmente quer: na verdade, quer salvaguardar direitos adquiridos, prazos vencidos, remunerações registadas…

Seja como for, a expressão “direitos em formação” é equívoca, pois remete para direitos que (ainda) o não são (estamos, também aqui, a falar de meras expectativas). Por outro lado, com tal expressão, o legislador terá sido sensível à ideia – importada inadvertidamente do Direito Fiscal – dos “factos (prestacionais) de formação contínua”.

O artigo cuja constitucionalidade se encontra aqui em apreço – recorde-se o artigo 101.º do Decreto-Lei n.º 187/2007 – traz uma ques-tão que não é inédita. Ela tem sido recorrente nas alterações verifi cadas sobretudo a partir da década de noventa e sempre que estejam em causa prestações diferidas ou seja prestações de formação longa no tempo (particularmente com a aprovação do “pacote” legislativo de 19935)6. A questão já não se coloca (pelo menos nestes termos) no que diz respeito às alterações aos regimes das prestações imediatas (v.g. desemprego,

5 E particularmente do Decreto-Lei n.º 329/93, de 25 de Setembro, o qual introduziu importantes alterações no regime de acesso e cálculo às pensões de velhice, tidas por desfavoráveis do ponto de vista dos benefi ciários: por um lado, o aumento do prazo de garantia de 120 meses para 15 anos; por outro lado, o aumento da idade legal de acesso à pensão (para as mulheres), dos 62 para os 65 anos de idade.

6 Questões similares foram colocadas num outro Acórdão ainda mais recente, o Acórdão 3/2010, de 6 de Janeiro (Proc. n.º 176/2009), desta feita sobre as alterações às regras de cálculo da pensão de aposentação dos funcionários públicos. Sumário: Não declara a inconstitucionalidade das normas constantes dos seguintes preceitos: artigo 53.º, do Estatuto da Aposentação, na redacção dada pelo artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.° 1/2004, de 15 de Janeiro; artigo 1.º, n.º 3, da Lei n.° 1/2004, de 15 de Janeiro; artigo 3.º, da Lei n.º 60/2005, de 29 de Dezembro, na redacção dada pelo artigo 5.º, da Lei n.º 11/2008, de 20 de Fevereiro; artigo 5.º, da Lei n.º 60/2005, de 29 de Dezembro, na redacção dada pelo artigo 1.º, da Lei n.º 52/2007, de 31 de Agosto; artigo 5.º, n.º 1, 2 e 6, da Lei n.º 52/2007, de 31 de Agosto; artigo 6.º, n.º 6 , da Lei n.º 52/2007, de 31 de Agosto; artigo 7.º, n.º 2, da Lei n.º 52/2007, de 31 de Agosto; artigo 37.º-A, do Estatuto da Aposentação, na redacção dada pelo artigo 4.º, da Lei n.º 11/2008, de 20 de Fevereiro; artigo 6.º, da Lei n.º 11/2008, de 20 de Fevereiro; artigo 7.º, da Lei n.º 11/2008, de 20 de Fevereiro.

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doença), justamente por se tratarem de prestações de formação de curto prazo, de formação (praticamente) imediata.

O artigo agora em causa insere-se pois nesta já antiga questão: no quadro de processos de reforma do sistema de pensões, procura-se, tendo presentes um conjunto de constrangimentos e vicissitudes, condicionar e em certos casos limitar, seja o acesso à pensão, seja as regras do cálculo respectivo. Nestes casos, o legislador tem procurado garantir, porque estamos perante factos de formação contínua, que o sentido das altera-ções apenas valha para futuro. Existem duas técnicas fundamentais que a legislação de segurança social tem usado (no plano da legística formal, podem traduzir-se em disposições fi nais e/ou transitórias), a saber:

a) Em primeiro lugar, mecanismos de transição para a adopção plena das novas regras, que poderão ser mais ou menos alonga-dos no tempo, consoante o legislador pretenda tornar menos ou mais rápido o efeito da alteração. Foi isso que sucedeu com a já mencionada alteração à idade de acesso à pensão, pelas mulhe-res, em 1993, prevendo o artigo 103.º do Decreto-Lei n.º 329/93 que a transição da idade dos 62 para os 65 anos de idade, se faria de forma gradual, ou seja, ela seria estabelecida «em 1994 em 62 anos e 6 meses, acrescentando-se posteriormente, por cada ano civil, o período de 6 meses à idade fi xada para o ano anterior» (n.º 2). No caso, como bem se vê, tratou-se de uma transição brusca, algo violenta até, pois se tratava de tornar célere o efeito (fi nanceiro) dessa alteração.

b) Em segundo lugar, através de cláusulas de proporcionalidade no cálculo da prestação: à parcela da remuneração obtida durante a vigência da lei antiga, são aplicáveis as regras antigas de deter-minação da referência e de cálculo da prestação; à parcela da remuneração obtida após a nova lei, serão as suas regras apli-cáveis. Estas cláusulas ou fórmulas de proporcionalidade estão contidas no Decreto-Lei n.º 187/2007, seguindo, aliás, a solução aplicada pelo Decreto-Lei n.º 35/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou as novas regras de determinação da remuneração de referência para acesso à pensão de velhice, contidas no Decreto--Lei n.º 35/2002, de 19 de Fevereiro. Com uma diferença, sig-nifi cativa até: aplicou esta regra de proporcionalidade a todas

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as situações que eram abrangidas pela lei antiga (no caso, o Decreto-Lei n.º 329/93), deixando a cair a possibilidade dada pelo Decreto-Lei n.º 35/2002, de opção pela regra de determi-nação da remuneração de referência que fosse mais favorável ao benefi ciário (que incluía ver a sua pensão calculada apenas segundo as regras antigas).

A situação complica-se quando – por se tratar, note-se, de relações jurídico-prestacionais em curso – o legislador avança para lá dos “trâ-mites” da proporcionalidade: na verdade, aqui, a lei nova “captura” par-cialmente factos passados ainda que não concluídos: de novo (se quiser-mos transpor o conceito fi scal de retrospectividade) o legislador atinge essas situações, considerando que elas não perfazem verdadeiros direitos adquiridos, antes meras expectativas. Valem aqui as considerações atrás expendidas a propósito da lei fi scal, nomeadamente que essas alterações passem pelo crivo dos dois pressupostos supra (cuja utilidade aceita-mos). Recorde-se:

a) A inadmissível afectação de expectativas em sentido desfavo-rável, por virtude de uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela cons tantes não possam contar; e ainda

b) E que tal não fosse ditado pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

O artigo 101.º do Decreto-Lei n.º 187/2007 coloca pois, claramente, questões relevantes no plano da tutela da confi ança. Importa pois subme-ter o signifi cado dessas alterações ao crivo dos dois pressupostos. Quanto ao primeiro, dever-se-á perguntar se o tecto máximo ao valor da par-cela de pensões de montante elevado, que haja sido calculada segundo as regras antigas (e sempre que estas prevaleçam no cálculo), pode ser considerado arbitrário ou desproporcional. Quanto ao segundo, dever-se--á perguntar se não existirão direitos ou interesses constitucionalmente

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prevalecentes que devam justifi car essa limitação. Afi gura-se-nos aliás que a resposta que se der à segunda questão ajuda a clarifi car o sentido da resposta à primeira.

Começando pois pela resposta à segunda questão, diremos antes de mais que as alterações introduzidas no novo regime das pensões se inse-rem claramente no âmbito de uma estratégia de reforma da segurança social que procura, através de alterações aos parâmetros fundamentais do sistema, sem alterar a sua fi sionomia basilar (assente, no princípio do pay-as-you-go), garantir o equilíbrio fi nanceiro futuro do sistema previ-dencial e, bem assim, a própria sustentabilidade de longo prazo das fi nan-ças públicas portuguesas. O impacto das alterações paramétricas levadas a cabo no domínio das pensões7, sendo embora difícil de quantifi car, tem sido considerado positivo, desde logo pelas instituições comunitá-rias e organizações internacionais (maxime a OCDE). Tudo indica que a não adopção destas alterações signifi caria, a breve trecho, uma situação defi citária do sistema previdencial – obrigado, assim, a fi nanciar-se atra-vés, ou de reservas acumuladas no Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, ou por transferências do Orçamento do Estado. A dureza das medidas, contrariando as expectativas quanto à aplicação de certo e determinado tipo de regras de cálculo, parece desculpabilizada pelo argumento da eminência da ruptura fi nanceira do sistema. Se tais medidas, sendo duras, forem efi cazes, permitindo eliminar os riscos de défi ce ou, tão simplesmente, adiar por algum tempo a sua ocorrência, elas serão pois justifi cadas. O interesse público subjacente, que é ade-mais muito amplo, será superior às perdas no valor da pensão que estes limites prestacionais poderão implicar, para uma franja aliás residual da população – os benefi ciários com pensões de valor superior a 12 IAS e nos casos aí previstos. Esse objectivo, de garantir a sustentabilidade da segurança social e das fi nanças públicas em geral, é aliás hoje visto como verdadeiro desígnio nacional, aqui em Portugal como noutros paí-ses desenvolvidos. O legislador concretiza pois esse superior interesse

7 Além das novas regras de determinação da remuneração de referência, assinalamos a introdução também do factor de sustentabilidade no cálculo da pensão estatutária.

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nacional; algo tolhido pelas contingências da economia e das fi nanças, difi cilmente pode ser apodado de arbitrário ou desproporcional.

O campo das expectativas, em suma, e para recordar as palavras de Canotilho tem uma menor intensidade normativa. A consumação destas, no quadro de contextos sociais e económicos mutáveis, confronta-se per-manentemente com os limites do possível e do viável.

A questão é aliás tanto mais perturbadora, quanto se questiona já hoje a garantia de consumação dos direitos (maxime dos direitos sociais). Na verdade, aquele argumento da “sustentabilidade”, associado a outros, como a “situação económica”, a “conjuntura”, a “disciplina orçamental”, aparece como argumento de peso e de força, a sugerir em diversos sec-tores que não apenas a segurança social, a redução dos direitos, a ideia de que nada é já hoje adquirido e a expansão do campo das expectativas, comprimindo o signifi cado do direito. Parametrizam-se os direitos pres-tativos, à luz destas exigências das fi nanças públicas, e o Direito Orça-mental contemporâneo, através dos seus novos instrumentos jurídicos (programação macroeconómica e fi nanceira e, em geral, as new fi scal rules), tende a prevalecer sobre direitos criadores ou potenciadores de despesa. A hierarquia das vinculações jurídicas externas dos Orçamentos altera-se também.

b) O artigo 101.º do Decreto-Lei n.º 187/2007 e a eventual viola-ção do princípio da contributividade

5. O segundo tipo de argumentos dirigido ao artigo 101.º do Decreto-Lei n.º 187/2007 prende-se com a invocada violação do prin-cípio da contributividade, princípio previsto no artigo 54.º da Lei de Bases da Segurança Social, nos termos do qual «o sistema previdencial deve ser fundamentalmente autofi nanciado, tendo por base uma relação sinalagmática directa entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações». Estaria em causa fundamentalmente a segunda parte do preceito. Antes de mais, afi gura-se-nos que este artigo da Lei da Bases constitui simultaneamente uma imprecisão semântica e um anacronismo. A evolução verifi cada no sistema contributivo e no sistema previdencial da segurança social ditou um conjunto muito signifi cativo de quebras a essa perspectiva sinalagmática, bilateral, que o previdencialismo nos dei-

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xou. Não nos compete aqui analisá-las em detalhe (o que faremos noutra sede, noutro momento). Curiosamente, as últimas alterações ao regime de pensões (concretamente com a aprovação do Decreto-Lei n.º 35/2002, cujas regras foram agora enxertadas no Decreto-Lei n.º 187/2007), dita-ram um sério afrouxamento nessa perspectiva sinalagmática pura e dura, designadamente com a concretização do princípio da diferenciação posi-tiva das taxas de substituição a favor dos benefi ciários com mais baixas remunerações (cf. n.º 3 do artigo 63.º da Lei de Bases). Na verdade, por força das novas regras de cálculo das pensões introduzidas em 2002, o valor da pensão corresponde ao produto da remuneração de referência pela taxa de formação, sendo que a taxa de formação é agora variável (entre 2,0% e 2,3% ao ano), não apenas em razão da dimensão da car-reira contributiva (ela será tanto mais elevada quanto maior aquela for), mas também em função do valor da própria remuneração de referência. Assim, potencialmente, um benefi ciário de mais baixos recursos poderá almejar ter uma taxa de formação máxima se tiver uma carreira longa, algo de que um benefi ciário abonado não poderá gozar, ainda que longa seja a sua carreira. Em consequência, a taxa de substituição das pensões de benefi ciários de baixos rendimentos pode atingir 100% do valor da remuneração referência (e até, no limite, ultrapassar tal valor8), ao passo que para as remunerações mais elevadas, a taxa de substituição não ultra-passará os 80%.

Ou seja e em suma, o mecanismo da diferenciação positiva das taxas de substituição das pensões quer, afi nal, signifi car a ideia – com-pletamente anómala no contexto tradicional da contributividade – de que devem fi nanciar mais o sistema previdencial os que mais podem e bene-fi ciar mais dele os que menos podem.

Diversamente e ao contrário do que se alega no pedido, a corrosão ao princípio da contributividade resulta no artigo sub judice bem menos evidente. Aqui, o legislador teve a preocupação de garantir que tal limite superior (fi xado em 12 vezes o valor do IAS) só será aplicável às pensões ou à parcela das pensões que seja calculada segundo as regras antigas de cálculo, maxime segundo a regra de determinação da remuneração de referência, de acordo com a média das dez melhores remunerações

8 Por força da incidência fi scal subsequente.

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dos últimos quinze anos de vida contributiva. Pelo contrário, todas ou pensões ou parcelas destas que sejam calculadas de acordo com as novas regras (remuneração de referência determinada pela média das remune-rações de toda a carreira contributiva), não conhecerão qualquer limite superior. Por que razão discriminar negativamente a parcela antiga (P1), em relação à parcela nova (P2)? Dá-se a circunstância do legislador, implicitamente, assumir que a verdadeira efi cácia contributiva está nas novas regras, não nas antigas. Na verdade, uma das razões históricas fun-damentais que levaram à substituição das antigas regras de determina-ção da remuneração de referência (dos 10 melhores dos últimos 15 anos de carreira), constantes do Decreto-Lei n.º 329/93, esteve justamente na distorção que elas implicavam, precisamente na concretização do prin-cípio da contributividade. Há uns anos atrás quando se perspectivava e aconselhava já a mudança destas regras e aludindo às distorções por elas provocadas, dissemos o seguinte: «Como na verdade e no que toca especialmente ao cálculo das pensões de reforma por velhice, não rele-vam as remunerações auferidas ao longo de toda a carreira contributiva, o Sistema torna-se assim mais facilmente permeável à dita manipula-ção estratégica por parte, designadamente, dos contribuintes mais bem informados (Cabral, 2001, p. 81). Por seu turno, acrescentámos: «… em ordem até à prossecução da justiça social, a consideração de toda a car-reira contributiva permitirá evitar que benefi ciem mais do Sistema os que, durante menos tempo e se calhar com menos, para ele contribuí-ram, já que o valor das pensões espelhará com maior fi delidade, afi nal, o esforço contributivo de toda uma vida» (idem, p. 81).

Sendo assim, invocando a história deste preceito, cujos antece-dentes remontam à Lei de Bases da Segurança Social de 2000 (Lei n.º 17/2000, de 8 de Agosto), encontra-se uma possível justifi cação para a opção legislativa em apreço, de limitar a parcela de prestação calculada ao abrigo das antigas regras, que traduziram uma leitura legítima do prin-cípio da contributividade, contudo enviesada.

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Comentários de Jurisprudência

CONCORRÊNCIA DA DIFERENÇA NEGATIVA ENTRE AS MAIS-VALIAS E AS MENOS-VALIAS REALIZADAS MEDIANTE A TRANSMISSÃO ONEROSA DE PARTES DE CAPITAL EM METADE DO SEU VALOR

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO N.º 85/2010 DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (1.ª SECÇÃO) DE 03/03/2010 – PROCESSO N.º 653/09 (REL: CONSELHEIRO GIL GALVÃO)

Nuno de Oliveira Garcia/Andreia Gabriel Pereira

Sumário

Não julga inconstitucional a norma contida no n.º 3 do artigo 42.º do Código do IRC,1 a qual estabelece que a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital concorre para a formação do lucro tributável em ape-nas metade do seu valor.

ANOTAÇÃO

Como é sabido, determinados princípios jurídico-constitucionais limitam, formal e materialmente, o sistema de tributação nacional, sendo por isso inegável que a Constituição Fiscal Portuguesa enforma o direito dos impostos.

Tais princípios tiveram a sua origem na necessidade de protecção e tutela do contribuinte face ao poder tributário. Numa primeira fase, tra-jando uma veste marcadamente formal, com a consagração do princípio da legalidade; numa fase posterior, trajando uma veste material perante

1 Corresponde actualmente ao artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC.

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a constatação da insufi ciência do referido princípio perante a evolução social, política e económica sofrida ao longo do tempo. Dúvidas não res-tam pois que tais princípios consubstanciam presentemente verdadeiros critérios materiais de justiça, que têm de ser considerados não só pelo criador das normas fi scais, como também pelos seus aplicadores.

Não foram, portanto, raras as vezes em que o Tribunal Constitucio-nal foi chamado a pronunciar-se sobre a compatibilidade para com os princípios constitucionais em matéria fi scal de normas fi scais que con-cretizam o sistema tributário nacional. O acórdão que nos propomos ora comentar constitui um exemplo dessa realidade.

O presente acórdão teve origem em recurso de constitucionalidade, mediante o qual pretendia a entidade recorrente ver declarada a incons-titucionalidade da norma ínsita no artigo 42.º, n.º 3, do Código do IRC, com fundamento na violação (i) do princípio da não aplicação retroactiva da Lei Fiscal, (ii) do princípio da segurança jurídica e (iii) do princí-pio da tributação das pessoas colectivas com base no seu rendimento real. A norma em questão resulta da alteração introduzida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, a qual determinou que a diferença nega-tiva entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a trans-missão onerosa de partes de capital concorreria para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor quando, ao invés, no regime anterior tal diferença concorria, em princípio, na totalidade.

O Tribunal Constitucional veio negar provimento a tal recurso, con-siderando que a norma prevista no artigo 42.º, n.º 3, do Código do IRC não viola, na interpretação apresentada pela recorrente, as disposições e princípios constitucionais por esta invocados.

1. Em primeiro lugar, o Tribunal Constitucional analisa a existência de uma suposta violação do princípio constitucional consagrado expres-samente no actual n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa, que determina a censura de normas fi scais desfavoráveis que assumam natureza retroactiva. Sobre este princípio, o Tribunal Consti-tucional invoca a sua anterior jurisprudência sobre o tema, segundo a qual, após a Revisão Constitucional de 1997, a Constituição da Repú-blica Portuguesa passou a consagrar expressamente o princípio geral da irretroactividade da Lei Fiscal. Tal consagração determina que a mera natureza retroactiva de determinada Lei Fiscal, na medida em que seja

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Comentários de Jurisprudência

desvantajosa para os contribuintes, implica a sua inconstitucionalidade, estando embora aqui em causa apenas a inconstitucionalidade própria ou autêntica, i.e., a aplicação da lei nova a factos tributários anteriores à entrada em vigor da mesma.

Assim, com base na jurisprudência por si subscrita em anteriores arestos, e aplicando-a ao caso concreto, o Tribunal Constitucional vem discordar da recorrente, referindo que no apuramento de menos-valias o facto gerador da obrigação de imposto é a alienação dos bens, a qual ocorreu, in casu, já sob a vigência da nova lei, ou seja, durante o exer-cício de 2003. Consequentemente, torna-se indiferente para o Tribunal Constitucional que a aquisição tenha sucedido ao abrigo da lei anterior, assumindo este aresto que a formação de menos-valias não constitui um verdadeiro facto complexo formado pela compra de certos bens, no caso sub judice, partes de capital, e pela venda dos mesmos.

Embora não possamos deixar de seguir e concordar, em termos gerais, com a posição do Tribunal Constitucional quanto à determinação do facto tributário relevante para a decisão sobre a lei aplicável no caso sub judice, não olvidamos, contudo, que este não tem sido ao longo do tempo um critério absoluto ao qual se tenha automaticamente recorrido, por exemplo no momento da feitura de diplomas fi scais. A este propó-sito, note-se a circunstância do diploma que aprovou o Código do IRC prever,2 a título de regime transitório, que os ganhos ou perdas realiza-dos com a transmissão de acções ou partes sociais cuja aquisição tenha ocorrido antes da entrada em vigor do Código não concorrem para a formação do lucro tributário.3 Sucede que, perante a ausência de regras especiais de direito transitório na Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, o Tribunal Constitucional entendeu in casu não atribuir relevância ao regime em vigor no momento da aquisição das partes sociais.

Naturalmente, da mera existência de regimes transitórios não se permite retirar uma regra geral de relevância do momento da aquisição

2 Cfr. artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de Novembro.3 No âmbito do IRS também se previu um regime transitório semelhante, segundo

o qual as mais-valias que não estivessem sujeitas ao antigo Imposto sobre as Mais-valias só seriam tributadas se a aquisição dos bens que lhes deram origem fosse efectuada depois da entrada em vigor destes códigos Assim, v. artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442--A/88, de 30 de Novembro.

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de bens para efeitos de se eleger o regime aplicável às mais ou menos--valias. Com efeito, é necessário atentar que na Reforma Fiscal de 1988 encontrávamo-nos perante uma mudança radical que determinou a reforma geral do sistema de tributação sobre o rendimento, implicando, por isso, o estabelecimento de um regime transitório especial que visou salvaguardar situações consideradas como merecedoras de tutela jurídica reforçada, situação diversa daquela que se encontra no caso em presença.

Como tal, conquanto nos pareça que, na generalidade das situações de apuramento de mais ou menos-valias, o momento da concretização do facto tributário não deverá ser acriticamente remetido para a data da aquisição dos bens transmitidos, a verdade é que esta questão está ainda longe de ser totalmente pacífi ca.

O mais recente exemplo da relevância da matéria em causa é alte-ração ao regime da tributação das mais-valias mobiliárias no âmbito da tributação das pessoas singulares, introduzida pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, que determina o fi m da isenção das mais-valias apuradas mediante a alienação de acções detidas há mais de 12 meses. Não obs-tante a referida Lei entrar em vigor um dia após ao da sua publicação, o Governo anunciou já que a tributação dessas mais-valias ocorrerá inde-pendentemente do momento da aquisição das partes sociais, com excep-ção do regime transitório previsto no artigo 5.º do Decreto que aprovou o Código do IRS, assim como anunciou também que tal regime deverá ser aplicável ao resultado das mais-valias apuradas ao longo de todo o ano de 2010.4 Isto porque a concepção adoptada pelo Governo é a de que, no que toca à tributação das mais-valias, o momento relevante será o fi nal do período de tributação em que se apura o saldo entre as mais e menos--valias obtidas, dado que é precisamente este saldo que irá ser essencial para a determinação da matéria colectável.

Como se constata, várias são as nuances no que concerne o princí-pio da não retroactividade dos impostos e a determinação do respectivo

4 Solução inversa poderia, aliás, implicar a alteração dos modelos de declaração em vigor – Anexo G à Modelo 3 IRS – posto que estes, actualmente, apesar de preverem a inscrição do mês e do ano referente a cada alienação não prevêem expressamente a possibilidade de se inscrever diferentes regimes de tributação (i.e., isenção e sujeição) consoante o momento da aquisição e da alienação das partes sociais.

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Comentários de Jurisprudência

alcance, as quais vão continuar a suscitar dúvidas e levar à intervenção do Tribunal Constitucional.

2. Em segundo lugar, o Tribunal Constitucional examina a confor-midade da alteração, e aplicação in casu, da norma ínsita no artigo 42.º, n.º 3, do Código do IRC com o princípio da confi ança e da segurança jurídica. O aresto invoca uma vez mais jurisprudência anterior sobre ambos os princípios, desta feita relativamente à necessidade de verifi -cação de dois requisitos; a saber, (i) a afectação de legítimas expectati-vas; e, (ii) que a mesma não seja determinada pela necessidade de salva-guardar direitos ou interesses constitucionais que devam considerar-se prevalecentes.

Ora, se não se pretende negar que, novamente, parece ser este o cor-recto teste a efectuar, e que o mesmo conduz à conclusão de que in casu não existiam efectivamente legítimas expectativas por parte da recor-rente – note-se que no momento do apuramento da mais-valia não pode a recorrente invocar a existência de qualquer expectativa posto que, nessa data, a norma em crise encontrava-se plenamente em vigor – a verdade é que não nos parece ser possível subscrever todas as premissas invocadas pelo Tribunal Constitucional para atingir esta mesma conclusão.

Com efeito, salvo melhor opinião, não nos afi gura ser correcto afi r-mar, como o faz o Tribunal Constitucional, que foi o Estado, através da Administração fi scal, que «permitiu» (cit.) que durante certo período (referindo-se ao regime anterior ao n.º 3 do artigo 42.º, introduzido pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro) as menos-valias fossem releva-das fi scalmente na sua totalidade.

Ao invés, entendemos que o raciocínio deve ser o inverso. Na ver-dade, como é sabido, possibilidade de dedução da totalidade de uma menos-valia tem como fundamento a exigência de que o imposto sobre o rendimento incida sobre a real força económica do contribuinte, fun-cionando tal força como pressuposto e limite da tributação. Exigência esta que decorre de um dos mais importantes princípios que enforma a tributação nacional das pessoas colectivas (maxime, sociedades), i.e., o princípio da tributação pelo rendimento real.5

5 Assim, v. artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

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Nessa medida, e por estarem as duas matérias interligados, analisa-remos conjunta e concomitantemente o exame feito pelo Tribunal Cons-titucional relativamente a eventual violação do princípio da confi ança e segurança jurídica e a suposta violação do princípio da tributação pelo rendimento real também invocada pela recorrente.

O direito que assiste às sociedades de serem tributadas com base no seu lucro real encontra consagração constitucional expressa no artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Este direito implica não só que o conceito de rendimento incluído na base de tributação deva ser o mais abrangente possível (e não restrito, por exemplo, a certo tipo de fontes), mas também que o rendimento tido em conta deva ser o ren-dimento líquido, i.e., subtraídas que sejam, nomeadamente, as despesas necessárias à sua própria obtenção, apurando-se assim o rendimento que se encontra disponível para o pagamento de impostos.

Concretizando, tal direito implica que as empresas devam ser tri-butadas segundo a respectiva contabilidade – ou pelo menos que lhes seja dada essa opção –, a qual melhor refl ectirá a sua real situação eco-nómica. E se assim é, então não é o Estado, através da Administração fi scal, que permite que o contribuinte deduza determinada componente negativa (seja ela custo, encargo, ou, neste caso, menos-valia) na sua totalidade, posto que esta é uma possibilidade que lhe assiste com base no seu direito de ser tributado de acordo com o seu rendimento real.

Com efeito, em princípio, todos os custos, encargos ou perdas sofri-dos ou suportados pelo contribuinte deverão ser essenciais para apurar o rendimento que se encontra disponível para o pagamento de impos-tos. Contudo, naturalmente, pode o legislador fi scal optar por limitar a dedução de alguns destes custos, encargos ou perdas, não sem que tais limitações devam ser validamente justifi cadas.

Assim, a Lei Fiscal introduz, por um lado, alterações na forma de determinação do lucro tributável relativamente às regras comerciais apli-cáveis e, por outro lado, estabelece restrições às decisões contabilísti-cas no âmbito da transformação do balanço comercial em balanço fi scal. Ora, dúvidas não existem que essas restrições são efectivas limitações ao princípio da tributação pelo lucro real, limitações que serão lícitas na exacta medida em que não ofendam o núcleo essencial do princípio constitucional em causa e se encontrem fundamentadas noutro direito ou princípio da mesma ordem.

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Pois bem, ao invés do que resulta do aresto em análise, a alteração do artigo 42.º, n.º 3, do Código do IRC em causa resulta precisamente de uma opção do legislador que entendeu limitar a relevância fi scal de cer-tas menos-valias em 50%, e não da eliminação de um eventual benefício da dedução das menos-valias resultantes da alienação de partes sociais pela totalidade, que, como resulta do que foi acima exposto, nunca foi um benefício mas sim o regime geral.

A outro tempo, ainda que o rendimento real seja um conceito nor-mativo e contabilisticamente modelado, como afi rma o Tribunal Consti-tucional, uma menos-valia é uma menos-valia e não deixa pura e simples-mente de existir em virtude das correcções fi scais introduzidas, podendo tão-somente a sua relevância fi scal ser, na prática, limitada.

Por outras palavras, o regime da dedução de apenas 50% da dife-rença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão de partes sociais constitui, antes do mais, uma restrição do direito constitucional das empresas serem tributadas de acordo com o seu rendimento real, e não uma diminuição do escopo de um benefí-cio atribuído pelo Estado às empresas como parece entender o Tribunal Constitucional.

Perante esta realidade, e ainda que não se defenda a existência in casu de uma legítima expectativa da recorrente carecida de tutela jurí-dica, sempre se dirá que esta, a existir, não implicaria qualquer «proibi-ção de retrocesso» (cit.) em matéria de deduções fi scais, como invoca o Tribunal Constitucional.

Mas, vejamos então, o que conduziu à decisão do legislador fi scal de limitar a dedução das menos-valias. O normativo disposto no n.º 3 do artigo 42.º do Código do IRC insere-se num conjunto de obstáculos legais ao reconhecimento fi scal de menos-valias. Obstáculos esses cria-dos perante a constatação de que a realização de menos-valias constituía uma das áreas em que, com mais facilidade, podiam ser efectuadas ope-rações com o único objectivo de criar custos fi scais, ao que acresceu o facto de a Administração fi scal portuguesa ter difi culdade em diferenciar as operações com propósito económico das que visavam apenas atingir resultados fi scais.

Não cabendo aqui tecer largas considerações sobre a natureza desta norma, ou sobre as consequências e termos da sua aplicação, indesmen-tível é o seu fi to anti-abuso. Ora, se assim é, não parece que estejam sub-

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jacentes à mesma norma razões de interesse público relacionadas com a obtenção de uma mais justa e equilibrada repartição de encargos fi s-cais entre as diversas espécies de contribuintes, como invoca o presente aresto.

Perante esta realidade, é legítimo questionarmo-nos em que medida o disposto no n.º 3 do artigo 42.º do Código de IRC contribui para uma mais justa repartição dos encargos fi scais (?), e porque é que tal objec-tivo implicaria que as pessoas colectivas, sujeitas a IRC, devessem ser penalizadas no que concerne à relevância fi scal das menos-valias por estas apuradas?

3. Por fi m, se, como verifi cámos acima, subjacente à possibilidade de dedução de menos-valias não pode deixar de se encontrar o direito das empresas a serem tributadas com base no seu lucro real, então é este princípio que poderá estar em causa aquando da limitação da relevância fi scal destas menos-valias em 50%.

Sobre este ponto pretende o Tribunal Constitucional encontrar res-posta na letra da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que as empresas têm o direito a ser tributadas fundamentalmente de acordo com o seu lucro real, invocando, assim, tal fundamentalmente como justifi cação para as restrições que a este direito fossem impostas.

Ora, se não é possível negar que a Lei Fiscal estabelece, de facto, restrições ao princípio da tributação pelo lucro real, verdade é também que não podemos negar aquilo que elas representam, ou seja, efectivas limitações a um direito constitucionalmente consagrado, cujos limites e fronteira devem ser controlados. Com efeito, tais restrições, como procu-rámos supra expor, devem ser fundamentadas e legitimadas pela necessi-dade de realização de outros interesses ou direitos. Por isso, a nosso ver, a expressão fundamentalmente não pode constituir justifi cação para tudo, sob pena de, no limite, se restringir integralmente o conteúdo essencial do referido princípio constitucional.

Se, efectivamente, à determinação contabilística do rendimento introduz a Lei Fiscal certas correcções, implicando até, como refere José Xavier de Basto citado pelo acórdão, a inclusão de «alguma ‘normali-zação’ no apuramento da matéria colectável» (cit.) –, fá-lo, todavia, não arbitrariamente, mas visando a concretização de determinados objecti-vos, considerados como essenciais à realização, como afi rmámos acima, de outros interesses ou direitos. Nas palavras da já citada doutrina: «[t]

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Comentários de Jurisprudência

rata-se de normalizações destinadas a uniformizar os procedimentos e a prevenir evasões» (cit.).

Acresce que, as limitações ao direito da tributação pelo lucro real, mesmo que legalmente previstas e devidamente fundamentadas, ainda que por razões de operacionalidade e praticabilidade sempre terão que ser aplicadas e interpretadas no respeito pelo princípio constitucional da proporcionalidade – cfr. artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

Recorrendo, se nos é permitido, às palavras deste ilustre Tribunal para ilustrar o nosso entendimento, diríamos que são as puras restrições ao princípio da tributação pelo lucro real, se impostas ao sabor de deci-sões legislativas infundadas, desadequadas, desnecessárias ou despro-porcionais, que podem conduzir «em linha recta à distorção, na prática do princípio da capacidade contributiva» (cit.).

Caberia, pois, in casu uma análise aprofundada dos reais funda-mentos subjacentes à inegável restrição ao princípio da tributação segundo o rendimento real, imposta pelo n.º 3 do artigo 42.º do Código do IRC, ajuizando da sua bondade, validade e proporcionalidade, não obstante subscrevemos, em termos gerais, mais esta decisão do Tribunal Constitucional.

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Comentários de Jurisprudência

CENTRAIS DE COMPRAS

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO N.º 171/2009 – 1.ª SECÇÃO

Nuno Cunha Rodrigues

1. O presente acórdão tem por objecto a fi scalização prévia, pelo Tribunal de Contas de um “Protocolo de articulação entre centrais de compras” celebrado entre a Administração Central do Sistema de Saúde, IP (ACSS) e o Agrupamento Complementar de Empresas Somos Com-pras, ACE.

Estão em causa os n.ºs 4 e 5 do Despacho n.º 18628/200923 e a cláusula 2ª, n.º 3, do protocolo, nos termos dos quais todos os estabeleci-mentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde, independentemente da sua natureza jurídica, terão obrigatoriamente de efectuar as suas aquisi-ções através do Sistema Comum de Compras, para as categorias de bens e serviços para os quais exista ou venha a existir um contrato público de aprovisionamento celebrado pela ACSS ou pela Somos Compras (SCC).

De acordo com o Tribunal de Contas, a obrigação prevista nos referidos instrumentos carece de fundamento legal, já que extravasa o disposto no artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 200/2008, de 9 de Outu-bro – que estabelece o regime jurídico aplicável à constituição, estrutura orgânica e funcionamento das centrais de compras. Esta disposição prevê que possam ser tornadas obrigatórias para os serviços e estabelecimentos do SNS as aquisições a efectuar ao abrigo dos contratos públicos de aprovisionamento celebrados pela ACSS.

No entendimento do Tribunal de Contas, não pode tornar-se obri-gatório, a pretexto de uma suposta “articulação entre as actividades das centrais de compras” – através da celebração do protocolo - aquilo que o legislador não quis que fosse.

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Considera ainda o Tribunal de Contas que a obrigatoriedade da uti-lização do SCC para todos os estabelecimentos e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, independentemente da sua natureza jurí-dica, estabelecida no n.º 5 do Despacho n.º 18628/2009 e no n.º 3 da cláusula 2ª do protocolo é ilegal por violar a autonomia decisória das entidades inseridas no sector empresarial do Estado tendo, como tal, sido recusado o visto de harmonia com a alínea a) do n.º 3 do artigo 44.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto.

2. O acórdão em análise reveste-se de importância fundamental no contexto da aplicação do Código dos Contratos Públicos.

Efectivamente, após a aprovação do Código e na decorrência das directivas sobre mercados públicos de 2004 (directiva-sectores especiais – 2004/17/CE – e directiva-clássica – 2004/18/CE), as centrais de com-pras ganharam um papel reforçado enquanto instrumento ao serviço do Estado, uma vez que, tendo em conta as economias de escala que propor-cionam, permitem uma signifi cativa poupança na despesa pública.

No entanto, para se maximizar a poupança é necessário garantir a adesão de todos os intervenientes à central de compras por forma a asse-gurar que estas sejam optimizadas.

Daí que tenha sido criado o sistema nacional de compras públicas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 37/2007, de 19 de Fevereiro. Este sistema assenta em dois núcleos orgânicos: a Agência Nacional de Compras Públicas, E.P.E. e as unidades ministeriais de compras.

De harmonia com o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 200/2008, de 9 de Outubro, as centrais de compras do Estado são as defi nidas no Decreto--Lei n.º 37/2007, de 19 de Fevereiro.

No caso específi co das centrais de compras do sistema de saúde, o artigo 10.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 200/2008 determina que estas são constituídas pela ACSS e a Somos Compras.

De acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, as aquisições a efectuar pela ACSS podem ser tornadas obrigatórias, por despacho do membro do Governo responsável pela área da saúde, para todos os serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde.

3. A primeira questão que se coloca é de determinar se as entidades adjudicantes podem constituir centrais de compras.

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Comentários de Jurisprudência

O artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 200/2008 estipula que o acto cons-titutivo das centrais de compras pelas entidades adjudicantes deve res-peitar a forma e a publicidade exigíveis pela lei aplicável e que sejam adequadas à natureza jurídica da respectiva entidade gestora.

Como refere Mário Esteves de Oliveira, citado a propósito neste acórdão, quando se fala no elemento forma do acto administrativo, não se tem em mente apenas o modo por que se manifesta a vontade do seu autor, mas também o modo ou o processo através do qual essa vontade se forma, o que integra as formalidades que preparam uma decisão admi-nistrativa e se inserem no respectivo procedimento prévio.

Sendo assim, a constituição de centrais de compras deve respeitar os requisitos de procedimentação prévia inerentes à natureza jurídica do acto e da entidade gestora.

Daqui resulta que quando se pretenda atribuir a função de central de compras a um operador económico privado, há que aplicar, à sua selecção, as normas que regem a contratação pública.

Por três razões: porque essa atribuição envolve uma aquisição de serviços; porque essa aquisição é feita a uma entidade “gestora” de natu-reza privada; e porque a lei aplicável às aquisições de serviços a enti-dades privadas por organismos de direito público é a lei da contratação pública que impõe procedimentos de selecção dos co-contratantes.

Este procedimento é estabelecido, de forma muito clara, no n.º 4 do artigo 6.ºdo Decreto-Lei n.º 200/2008, para a entrega da gestão de actividades de centrais de compras a “terceiros”, e deve ser aplicado à selecção da própria entidade gestora, salvo quando a natureza dessa entidade não o exigir.

Tal exigência, entende o Tribunal de Contas, é um requisito de forma previsto no referido artigo 5.º e é, além do mais, imposta pelos princípios constitucionais da igualdade, imparcialidade e concorrência, tal como plasmados nos artigos 266.º, n.º 2, e 81.º, alínea f), da Consti-tuição da República Portuguesa (CRP), e nos artigos 4.º, n.º 1, e 12.º do Tratado da Comunidade Europeia (TCE).1

1 O acórdão justifi ca este entendimento porque “existe um universo abs-tracto de entidades aptas a desenvolver a actividade de central de compras, porque os valores e as condições envolvidas constituem um negócio potencial-

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No que respeita ao Estado, o diploma que vimos referindo estabe-lece que, para além das centrais de compras defi nidas no Decreto-Lei n.º 37/2007, de 19 de Fevereiro, (Agência Nacional de Compras Públicas (ANCP) e Unidades Ministeriais de Compras (UMC)) e das referidas no artigo 10.º (ACSS e Somos Compras2), o Estado só pode criar outras cen-trais de compras em casos excepcionais e, nos termos do artigo 7.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 200/2008, de 9 de Outubro, mediante:

– Proposta da Comissão Interministerial de Compras; – Autorização prévia do Membro do Governo responsável pela área

das Finanças e do Membro do Governo responsável pelo respec-tivo Sector;

– Estudo prévio sobre a necessidade, viabilidade económico-fi nan-ceira e vantagens da criação da central de compras e sobre a sua conformidade com o regime legal aplicável.

4. Neste aresto, está em causa o artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 200/2008. Esta disposição suscita, desde logo, problemas quanto à sua conformação com o quadro jurídico-constitucional e jurídico-comunitá-rio acima referido, ao eleger directamente o ACE Somos Compras como central de compras do sistema de saúde.

Na verdade, como se refere no acórdão que vimos acompanhando, estamos face a um Agrupamento Complementar de Empresas, regido pelo Código das Sociedades Comerciais, com uma natureza privada, em

mente interessante tanto para empresas nacionais como para empresas situadas noutro Estado-Membro, porque não se pode favorecer uma dessas entidades em detrimento de todas as outras e porque o respeito por aqueles princípios pressu-põe que se dê oportunidade aos vários operadores económicos de manifestar o seu interesse na contratação, através da publicidade adequada.”

2 Este sistema agrega as duas centrais de compras criadas pelo artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 200/2008, sendo composto pelos meios tecnológicos, huma-nos e logísticos de ambas. No sistema defi nem-se para a ACSS apenas funções de coordenação e supervisão e para o Somos Compras todas as responsabilida-des operacionais, incluindo o desenvolvimento dos procedimentos de aquisição, a adjudicação e a eventual contratação.

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Comentários de Jurisprudência

que a maioria da participação pertence ao SUCH, que é também uma pessoa colectiva de direito privado.3

Para o Tribunal de Contas, a designação pela lei da Somos Com-pras como central de compras sem a realização de um procedimento concursal prévio consubstancia um tratamento diferenciado a seu favor, favorecendo um operador económico relativamente a outras entidades potencialmente interessadas em exercer a função de central de compras e ofende os acima referidos princípios constitucionais e comunitários da igualdade, imparcialidade e concorrência.

Não obstante, pode suceder que tal designação seja perfeitamente legal.

Basta, para tal, demonstrar que estamos dentro do perímetro da chamada contratação in-house para que a designação pela lei da Somos Compras seja perfeitamente legal (cfr. artigo 5.º, n.º 2, alínea b) do CCP), independentemente da natureza jurídica privada ou pública desta.

5. De acordo com o entendimento do Tribunal de Contas o proto-colo é um verdadeiro instrumento de instituição da Central de Compras do SNS.

Ao abrigo de uma habilitação legal que apenas previa a celebração de protocolo para articular as actividades da ACSS e do Somos Compras (o n.º 3 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 200/2008, acima transcrito), pretende verdadeiramente criar-se uma nova central de compras.

De facto, assinala o Tribunal de Contas, o SCC tem como objecti-vos exactamente as actividades que, nos termos dos artigos 10.º, n.º 1, da

3 O acórdão assinala que, na sua confi guração inicial, fazia parte do ACE uma empresa privada, a SGG - Serviços Gerais de Gestão, SA, do universo Deloitte, com direito a um Administrador Executivo.

Não obstante esta empresa ter cedido, entretanto, a sua posição ao SUCH, nada nos estatutos impede que o ACE venha a ser participado por outras empre-sas privadas.

Já não se compreende que o Tribunal de Contas sublinhe que a realização de lucro faz parte do objecto social do ACE para a caracterizar como entidade privada. É que, em nosso entender, o escopo lucrativo é inerente a uma actuação empresarial (de natureza pública ou privada) sendo considerado de harmonia com o interesse público subjacente nos casos em que as empresas são detidas pelo Estado.

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Directiva 2004/18/CE, 261.º, n.º 1, do CCP e 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 200/2008, competem às centrais de compras: desenvolvimento de procedimentos de aquisição, adjudicação de propostas em representação das entidades adjudicantes, compra efectiva de bens e serviços em repre-sentação das entidades adjudicantes e contratação e gestão de contratos públicos de aprovisionamento.

Como conclui o acórdão do Tribunal de Contas, a instituição do Sis-tema Comum de Compras para o Serviço Nacional de Saúde, consubs-tanciando a criação de uma nova central de compras, extravasa o âmbito do disposto no n.º 3 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 200/2008 e carece de fundamento legal, violando o princípio da legalidade consagrado no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo e no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição.4

A obrigatoriedade da utilização do SCC para todos os estabeleci-mentos e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, indepen-dentemente da sua natureza jurídica, estabelecida no n.º 5 do Despacho n.º 18628/2009 e no n.º 3 da cláusula 2ª do protocolo é ainda ilegal por violar frontalmente o disposto no artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 200/2008 bem como a autonomia decisória das entidades inseridas no sector empresarial do Estado (SEE).5

4 Confi gurando-se assim uma nulidade nos termos do artigo 133.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.

5 Este entendimento do Tribunal de Contas decorre de se saber que o Ser-viço Nacional de Saúde integra várias entidades públicas empresariais (EPEs), nomeadamente hospitais, que se inserem no sector empresarial do Estado e às quais se aplica o regime jurídico do sector empresarial do Estado (RJSEE) constante do Decreto-Lei n.º 558/99, na redacção do Decreto-Lei n.º 300/2007, de 23 de Agosto.

Para o Tribunal de Contas, o estabelecimento de uma obrigatoriedade como a que vimos referindo para as entidades públicas empresariais do SNS traduz-se numa decisão de gestão inexistindo norma legal expressa que a auto-rize ou que a integre ou permita no âmbito dos poderes de superintendência do Estado.

Por outro lado, acrescenta o Tribunal, essa decisão não se enquadra, nem formal nem substancialmente, nos poderes de orientação previstos no artigo 11.º do RJSEE (que contemplam orientações e recomendações, mas não ordens nem decisões de gestão) ou nos poderes de tutela defi nidos no artigo 29.º do mesmo diploma.

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Comentários de Jurisprudência

Neste ponto, algumas dúvidas persistem, na medida em que se pode considerar o SEE como um grupo de empresas permitindo, nessa medida, a intervenção do Estado na autonomia decisória das empresas.

Por outro lado, o regime jurídico do SEE faculta a possibilidade de serem emitidas orientações gerais as quais podem determinar a obrigato-riedade de aquisição de bens e serviços a centrais de compras.

6. Compreende-se a posição do Tribunal de Contas à luz do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 200/2008, de 9 de Outubro.

Julgamos, em todo o caso, que seria prudente proceder a uma alte-ração legislativa, permitindo alargar a obrigatoriedade de aquisição de bens e serviços a outras centrais de compras como a Somos Compras sob pena de se perderem as vantagens inerentes à criação de centrais de compras para a efi ciência da despesa pública.

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Comentários de Jurisprudência

MANIFESTAÇÕES DE FORTUNA E AFASTAMENTO PARCIAL DA PRESUNÇÃO DE RENDIMENTO

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO STA DE 19 DE MAIO – PROCESSO N.º 0734/09

João Sérgio Ribeiro

1 – Em termos sintéticos, o acórdão objecto de análise tem os seguintes contornos:

• A recorrente adquiriu um imóvel de valor superior a € 250.000, tendo declarado rendimentos inferiores em 50% relativamente ao rendimento padrão, fi xado pelo legislador em 20% do valor de aquisição, nos termos da tabela constante do n.º 4 do art.º 89.º-A da LGT. Como consequência, foram considerados como verifi ca-dos os pressupostos legais para proceder à avaliação indirecta do seu rendimento tributável.

• Entendeu-se que, no momento da fi xação presuntiva do rendi-mento sujeito a tributação (em sede de IRS) deveria relevar a justifi cação, ainda que parcial, da proveniência desse acréscimo patrimonial, dado o facto de as normas em causa dizerem respeito à incidência objectiva do imposto.

• Na base dessa orientação estiveram essencialmente a proibição constitucional das presunções iure et de iure e a sua sua estreita relação com o princípio da capacidade contributiva, bem como a invocação de normas como o artigo 73.º da Lei Geral Tributá-ria que determina que «as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário». Foram igualmente convocados outros princípios jurídico-constitucio-nais, como o princípio da igualdade, a tributação dos rendimentos reais e o princípio do Estado de Direito Democrático.

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• Sustentou-se, de acordo com o enquadramento avançado, que embora a justifi cação parcial não afastasse a aplicação do método previsto no artigo 89.º-A da LGT, não podia deixar de ser consi-derada na quantifi cação do rendimento tributável a ser determi-nado nos termos desse método. Entendeu-se, assim, que o rendi-mento tributável da recorrente deveria ser igual a 20% do valor de aquisição, deduzido do montante do empréstimo bancário que se demonstrou ter sido efectuado para a aquisição do imóvel.

• Conclui-se que, não tendo a administração tributária feito a dedu-ção relativa ao empréstimo bancário na avaliação do rendimento tributável da recorrente, teria havido um manifesto excesso na quantifi cação.

2. No acórdão confrontam-se duas posições, como pode ser consta-tado através da leitura do voto de vencido. Não obstante considerarmos a decisão tomada pela maioria como correcta, e digna de louvor, julgamos igualmente decorrer do voto subscrito pelos vencidos asserções impor-tantes que é imperativo considerar.

Subscrevemos em grande medida a argumentação avançada pela relatora do acórdão, com destaque para necessidade de afastar as presun-ções absolutas em matéria de incidência, como é claramente a determi-nação da matéria tributável. Com efeito, a determinação desta enquanto expressão quantitativa do facto tributário – através da consideração dos preceitos que defi nem a realidade a medir (rendimento), da unidade de medida (valor monetário), e dos próprios critérios jurídicos a que deve obedecer a medição – concorre indubitavelmente para a delimitação da incidência do imposto.

Entre os argumentos dignos de nota e aplauso, destacamos igual-mente a necessidade de permitir a justifi cação parcial do rendimento inferido das manifestações de fortuna para assim assegurar o respeito pelo princípio da igualdade. A este propósito é contraposta a situação de dois contribuintes, no âmbito da aplicação do mecanismo das manifesta-ções de fortuna, tendo um deles justifi cado parte do rendimento obtido, sem que o outro tenha apresentado qualquer justifi cação. De forma elu-cidativa, exemplifi cou-se que, caso não fosse dada relevância à justifi ca-ção parcial, os sujeitos passivos seriam tratados exactamente da mesma forma, em desrespeito fl agrante pelo princípio da igualdade.

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Para além da válida invocação de princípios importantes, julgamos ser ainda imprescindível demarcar, como nos parece que fi zeram correc-tamente os subscritores do voto de vencido, as manifestações de fortuna da avaliação indirecta propriamente dita.

Sem querer estar a repetir uma discussão que já tivemos a oportuni-dade de desenvolver detalhadamente1, gostaríamos de realçar que apesar dos grandes pontos de contacto entre as manifestações de fortuna e a ava-liação indirecta, e de no nosso direito haver um cruzamento entre eles, são, na verdade, mecanismos distintos, com autonomia e características próprias. As manifestações têm, no nosso entender, uma carácter residual dado que, para se qualifi car um determinado rendimento como acrés-cimo patrimonial não justifi cado, é imperativo desconhecer-se a natureza da fonte desse rendimento. Assim sendo, sempre que a fonte do rendi-mento é identifi cada, deixamos de estar no âmbito das manifestações de fortuna. Podemos ainda estar no domínio da avaliação indirecta propria-mente dita, se estiver em causa um rendimento de determinada categoria do IRS cuja declaração tenha sido defraudada, mas não no domínio das manifestações de fortuna, que, repita-se, pressupõem o desconhecimento da fonte do rendimento.

Ora, esta natureza residual reforça a necessidade de permitir a ili-são, ainda que parcial, da presunção de um determinado rendimento à luz do mecanismo das manifestações de fortuna. Como nos parece claro, se o sujeito passivo demonstra, ainda que parcialmente, a origem do ren-dimento que lhe é imputado, não mais se pode, face ao recorte residual do mecanismo em causa, sustentar a sua aplicação, pelo menos no que respeita a essa parcela, uma vez que a fonte do rendimento passa a ser conhecida.

Entendemos que essa ilisão da presunção em que assenta o meca-nismo das manifestações de fortuna pode decorrer quer da acção do sujeito passivo, demonstrando a origem do rendimento, quer através da acção da própria administração em sede de avaliação indirecta, por oca-sião da aplicação dos elementos constantes do art. 90.º da LGT. Aliás,

1 Cfr. João Sérgio RIBEIRO, Tributação Presuntiva do Rendimento: Um Contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Tributável, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 283 e ss.

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é por isso mesmo que à luz do artigo 89.º A, n.º 4, quando através da avaliação indirecta se determina um rendimento superior ao que decorre da aplicação do mecanismo das manifestações de fortuna, aquele deve prevalecer sobre este. Isso explica-se pelo facto de, por ser possível apli-car a avaliação indirecta e os elementos do artigo 90.º, se conhecer a ori-gem do rendimento, caindo, por consequência, os requisitos de aplicação das manifestações de fortuna que implicam necessariamente, como já, com um certa insistência, se salientou, o desconhecimento da fonte do rendimento.

Este posicionamento pressupõe, como é óbvio, que, sem prejuízo da interligação que existe de facto entre manifestações de fortuna e ava-liação indirecta, se encarem os dois mecanismos como independentes.

Relativamente à interligação desses mecanismos umas breves pala-vras2. Sempre que se verifi quem os requisitos das manifestações de for-tuna, tal como resulta do artigo 87.º, alínea d), da LGT impõe-se a deter-minação da matéria tributável com base nos meios indirectos do artigo 90.º, isto é, recorre-se à avaliação indirecta propriamente dita. Contudo, ao mesmo tempo, suscita-se também a aplicação do mecanismo do artigo 89.º A da LGT. Digamos que a verifi cação dos requisitos das manifesta-ções de fortuna acciona simultaneamente dois mecanismos distintos de determinação da matéria tributável – o da avaliação indirecta propria-mente dita, e o das manifestações de fortuna. A verifi cação deste último mecanismo dá azo simultaneamente à aplicação da avaliação indirecta propriamente dita e das manifestações de fortuna enquanto mecanismo autónomo, sendo por isso mesmo que é possível, nos termos do artigo 89.º A, n.º 4, que através da avaliação indirecta se chegue a um valor dife-rente daquele que resulta do mecanismo das manifestações de fortuna. Isto porque são métodos que correm paralelamente e gozam de relativa autonomia. Se as manifestações de fortuna fossem apenas uma expressão da avaliação indirecta, como por vezes se sugere, não faria sentido que se determinasse a matéria tributável de acordo, simultaneamente, com os elementos do artigo 90.º da LGT (instrumentos por excelência da avalia-ção indirecta) e com a tabela do artigo 89.º -A, n.º 4, da LGT.

2 Para mais desenvolvimentos, ver João Sérgio RIBEIRO, Tributação Presuntiva, op. cit., pp. 311 e ss.

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3. Independentemente de corroborarmos os argumentos da relatora, não deixamos de mostrar sensibilidade face às inquietações que trans-parecem do voto de vencido, pelo que desejamos dar-lhes uma especial atenção.

Antes de nos debruçarmos sobre esses pontos gostaríamos de lou-var a forma assertiva como, muito correctamente, se demarca, no voto de vencido, a avaliação indirecta do mecanismo das manifestações de fortuna, o que espelha, de certa forma, parte do que acabámos de suma-riamente explanar.

Lidando agora com os principais argumentos dos vencidos, veja-mos como são sustentados e as considerações que suscitam.

Advoga-se que, para ilidir a presunção legal de rendimento padrão, uma presunção iuris tantum, e tendo em conta a necessidade de combater a evasão fi scal, a única solução razoável é que o contribuinte prove meios ou rendimento igual, no mínimo, ao valor de aquisição das manifesta-ções de fortuna, tendo em conta que uma solução diversa não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.

A solução propugnada pelos vencidos é de facto a que provavel-mente acautelaria melhor a evasão fi scal, contudo, não foi aquela que foi acolhida pelo nosso sistema. De facto existem ordens jurídicas, como a italiana e a francesa, onde o valor de rendimento presumido coincide com o valor das próprias manifestações de fortuna. No nosso, sistema, porém, independentemente de ser ou não aquele que melhor lida com a evasão fi scal, e de eventualmente o rendimento padrão fi xado a partir das manifestações de fortuna ser demasiado baixo, não foi esse o caminho seguido, correspondendo o rendimento presumido, tão-só, ao rendimento padrão3. Isto é, o rendimento que se imputa ao sujeito passivo, por se pre-sumir que foi por ele obtido, é apenas parte do valor das manifestações de fortuna e não o valor integral daquelas. Sendo assim, no momento em que se ilide a presunção, e se afasta o rendimento que dela resulta, a tónica, deve, segundo nos parece, ser posta no facto presumido e não no facto base da presunção, sob pena de se confundir dentro desta fi gura entre facto base, um dado adquirido, e o que desse facto se infere. Não

3 A solução por nós adoptada justifi ca-se em parte pelo facto de este meca-nismo ser cumulável com outros, como a avaliação indirecta propriamente dita.

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deixaria de ser um pouco bizarro que para ilidir uma presunção se tivesse de provar consideravelmente mais do que é presumido.

Para além da estranheza que suscita a orientação de que divergimos, não podemos deixar salientar que, tendo havido uma opção no sentido de considerar como rendimento presumido unicamente uma parcela do valor das manifestações de fortuna, eventualmente por questões de natu-reza técnica, não se alcança que essas razões não continuem presentes quando está em causa o afastamento da presunção. Especialmente devido ao impacto negativo que tem sobre o princípio da igualdade. Concreti-zando, os 20% do valor do imóvel, que no caso em questão correspon-diam a € 75 000, são o rendimento que no entender do legislador é neces-sário, para, no ano fi scal em causa, permitir a compra do imóvel. Ora se um determinado sujeito passivo declarar rendimentos nesse valor, não lhe será aplicado o mecanismo das manifestações de fortuna, por se enten-der que um rendimento dessa natureza permite sustentar a manifestação de fortuna evidenciada. Contrariamente, quando exactamente a mesma quantia empregue na aquisição do prédio urbano não for rendimento tri-butável, por provir de uma doação ou de qualquer outra fonte não sus-ceptível de ser reconduzida ao rendimento tributável em sede de IRS, só por isso deixa de estar justifi cada a manifestação de fortuna, exigindo-se, nesse caso, em fl agrante violação do princípio da igualdade, a comprova-ção, por parte desse sujeito, da disponibilidade de um montante 5 vezes superior. Não parece que um entendimento que sustente uma situação de tão fl agrante desigualdade entre sujeitos passivos possa ser defensável.

Reconhecemos, tal como resulta do voto de vencido, que a lei, concretamente o artigo 89.º-A, n.º 3 da LGT, não é muito clara a esse respeito e que pode, eventualmente, de acordo com uma interpretação estritamente literal, apontar para a exigência da necessidade de que seja a feita a prova do valor total de aquisição. Defendemos, todavia, que a leitura do preceito tem de ser outra, sob pena de serem postos em causa princípios estruturantes do Direito Fiscal.

Sustentamos, que a referência feita à fonte das manifestações de fortuna se deve entender não como tendo em vista esses indícios de uma forma estrita, mas os rendimentos que com base neles são resumidos. Para além dos méritos apontados a esta leitura em termos de cumpri-mento com os princípios estruturantes do Direito Fiscal, quadra bem com a sistemática da legislação fi scal. Primeiro, porque o artigo 87.º,

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alínea d), da LGT, norma que tem alguma simetria com o artigo a nos referimos, faz corresponder a justifi cação necessária para o afastamento da tributação com base nas manifestações de fortuna aos próprios ren-dimentos padrão e não aos valores das manifestações de fortuna. Além disso, também o artigo 9 do CIRS quando se refere aos acréscimos patri-moniais não justifi cados, como o são as manifestações de fortuna, tem em vista não aqueles, mas, como nos parece óbvio, os rendimentos que deles se inferem. Parece-nos extremamente provável que tenha sido esta a intenção do legislador quando confi gurou o artigo 89.ºA, n.º 3, da LGT.

Afi rma-se, por outro lado, que de acordo com a lei o valor padrão não pode ser baixado, podendo apenas ser fi xado num montante superior. Avança-se a esse propósito a ideia de que só poderia haver o abaixamento de valor do rendimento padrão se a determinação da matéria tributável tivesse sido feita através da avaliação indirecta, dada a natureza distinta dos dois mecanismos.

Relativamente a este argumento, julgamos que o afastamento de um determinado rendimento presumido não obedece a nenhuma orien-tação pré-defi nida, isto é, o rendimento presumido tanto pode ser afas-tado em situações em que é superior ao montante presumido, como em situações em que é inferior. O questionar do nexo de probabilidade entre o facto base e o facto presumido pode, com efeito, ter várias consequên-cias. Consideramos que o argumento no sentido de que o rendimento pode ser fi xado num valor superior é, na verdade, importante para refor-çar a natureza relativa da presunção que está na base do mecanismo das manifestações de fortuna, sendo de louvar. Porém, é igualmente possível inferir daí que, como é natural em presunções dessa natureza, também poderá ser fi xado um valor de natureza inferior àquele que foi inicial-mente presumido. Finalmente, no que toca à afi rmação da ideia de que só na avaliação indirecta é que pode ser fi xado um rendimento inferior ao presumido, esquece-se, na nossa opinião, que a natureza presuntiva não é um exclusivo da avaliação indirecta e que apesar das diferenças claras e especifi cidades de cada um dos mecanismos, a natureza da presunção iuris tantum em que ambas as fi guras assentam permite sempre a prova em contrário, independentemente do sentido em que varie o rendimento que por essa via se venha a substituir ao rendimento presumido.

Independentemente das pontuais discordâncias, com a posição expressa através do voto de vencido, concordamos que na pondera-

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ção dos princípios e valores em causa, a questão da evasão fi scal não pode ser encarada de ânimo leve. Sensíveis a esses argumentos, defen-demos, independentemente de estarmos absolutamente convencidos de que o acórdão foi no melhor sentido, que as prestações pagas ao banco na sequência da obtenção de crédito devem merecer uma atenção espe-cial no âmbito de aplicação das manifestações de fortuna, combatendo, assim, de forma mais efi ciente, comportamentos evasivos. Sugerimos que, na determinação do valor de aquisição das manifestações de fortuna, para além da consideração de outras despesas em que se tenha incorrido, nomeadamente impostos pagos a esse propósito, e outros custos, como despesas com registos de propriedade, escrituras públicas, entre outras4, seja também considerado, no ano fi scal a que se reporta o mecanismo das manifestações de fortuna, o montante pago, durante esse ano, em presta-ções ao banco pelo crédito concedido.

4. Em síntese, o acórdão comentado vem, de forma inovadora, esta-belecer um entendimento diferente das manifestações de fortuna, mais fi el quer à natureza jurídica do próprio mecanismo quer em relação aos princípios jurídico-constitucionais de Direito Fiscal. Congratulamo-nos não só pela argumentação clara e bem sustentada, mas também pelas importantes contribuições trazidas pelo acórdão no seu todo – sem esquecer obviamente o voto de vencido – para o tão necessário debate destas questões.

4 Cfr. João Sérgio RIBEIRO, Tributação Presuntiva, op. cit., pp. 309 e ss.

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SÍNTESE DOS PRINCIPAIS ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA DO TRIMESTRE

IMPOSTO SOBRE O VALOR ACRESCENTANDO

Acórdão de 15 de Julho de 2010, Processo C-368/09, Caso Pan-non Gép Centrum

«Sexta Directiva IVA – Directiva 2006/112/CE– Direito à dedução do imposto pago a montante – Regulamentação nacional que sanciona uma referência incorrecta na factura com a perda do direito à dedução»

Os artigos 167.°, 178.°, alínea a), 220.°, n.° 1, e 226.° da Direc-tiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação ou a uma prática nacional por força da qual as autoridades nacionais recusam a um sujeito passivo o direito de deduzir do montante do IVA de que é devedor o montante do imposto devido ou pago pelos serviços que lhe foram prestados, pelo facto de a factura inicial, na sua posse no momento da dedução, mencionar uma data errada de conclusão da prestação de serviços e de não existir uma numeração contínua da factura rectifi cada ulteriormente e da nota de crédito que anulava a factura inicial, se os pressupostos materiais se encontram preenchidos e, antes da adopção da decisão da autoridade visada, o sujeito passivo lhe tiver fornecido uma factura rectifi cada, que indique a data exacta em que a referida prestação foi concluída, mesmo que não exista uma numeração contínua desta fac-tura e da nota de crédito que anula a factura inicial.

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Acórdão de 15 de Julho de 2010, Processo C-582/08, Caso Comissão/Reino Unido

«Incumprimento de Estado – Imposto sobre o valor acrescentado – Directiva 2006/112/CE – Artigos 169.° a 171.° – Décima Terceira Directiva 86/560/CEE – Artigo 2.° – Reembolso – Sujeito passivo não estabelecido na União – Operações de seguro – Operações fi nanceiras»

Esteve em causa o facto de Comissão entender que o artigo 2.°, n.° 1, da Décima Terceira Directiva não podia ser interpretado no sentido de excluir o reembolso do IVA que incidiu sobre os bens ou os serviços utilizados para efeitos das operações de seguro e das operações fi nancei-ras a que se refere o artigo 17.°, n.° 3, alínea c), da Sexta Directiva, cujo conteúdo foi reproduzido no artigo 169.°, alínea c), da Directiva IVA, tendo o Reino Unido manifestou opinião contrária, sustentando que a sua legislação era conforme com a legislação da União.

O Tribunal concluiu que, dada a redacção clara e precisa de uma disposição como o artigo 2.°, n.° 1, da Décima Terceira Directiva, não é possível fazer uma interpretação destinada a corrigir esta disposição e, ao mesmo tempo, a ampliar as obrigações que por força dela incumbem aos Estados membros, pelo que a acção da Comissão deve ser julgada improcedente.

Acórdão de 17 de Junho de 2010, Processo C-492/08, Caso Comissão/França

«Incumprimento de Estado – Directiva 2006/112/CE – Imposto sobre o valor acrescentado – Taxa reduzida – Artigos 96.ª e 98.ª, n.ª 2 – Anexo III, ponto 15 – Apoio judiciário – Prestações de advogados – Compensação integral ou parcial por parte do Estado»

Ao aplicar uma taxa reduzida de imposto sobre o valor acrescentado às prestações realizadas pelos advogados, os advogados junto do Conseil d’État e da Cour de cassation e os «avoués», pelos quais estes são total ou parcialmente compensados pelo Estado, no âmbito do apoio judiciá-rio, a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 96.o e 98.o, n.o 2, da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006.

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Acórdão de 10 de Junho de 2010, Processo C-262/08, Caso CopyGene

«Sexta Directiva IVA – Isenções – Artigo 13.°, A, n.° 1, alínea b) – Hospitalização e assistência médica – Operações estreitamente cone-xas – Estabelecimentos devidamente reconhecidos da mesma natureza que os estabelecimentos hospitalares e os centros de assistência médica e de diagnóstico – Banco privado de células estaminais – Serviços de colheita, transporte, análise e armazenamento de sangue do cordão umbilical dos recém-nascidos – Eventual aplicação autóloga ou alogé-nica das células estaminais»

O conceito de operações «estreitamente conexas» com «a hospi-talização e [com] a assistência médica» na acepção do artigo 13.°, A, n.° 1, alínea b), da Sexta Directiva, deve ser interpretado no sentido de que não abrange actividades como as que estão em causa no processo principal, que consistem na colheita, transporte, análise de sangue do cordão umbilical e armazenamento das células estaminais contidas nesse sangue, quando a assistência médica prestada em meio hospitalar, com a qual estas actividades só eventualmente são conexas, não existe, não está em curso nem está sequer planifi cada.

Quando as prestações dos bancos de células estaminais como as que estão em causa no processo principal são efectuadas por pessoal de saúde autorizado, sendo certo que esses bancos de células estaminais, apesar de serem autorizados pelas autoridades sanitárias competentes de um Estado membro, no âmbito da Directiva 2004/23/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa ao estabeleci-mento de normas de qualidade e segurança em relação à dádiva, colheita, análise, processamento, preservação, armazenamento e distribuição de tecidos e células de origem humana, a manipular tecidos e células de ori-gem humana, não recebem apoio do regime público de segurança social e que a remuneração que lhes é paga não está coberta por esse regime, o artigo 13.°, A, n.° 1, alínea b), da Sexta Directiva 77/388 não se opõe a que as autoridades nacionais considerem que um sujeito passivo como a CopyGene A/S não é «outro estabelecimento da mesma natureza [que os estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diag-nóstico] devidamente reconhecido» na acepção do artigo 13.°, A, n.° 1,

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alínea b), da Sexta Directiva. Contudo, esta disposição tão-pouco pode ser interpretada no sentido de que exige, enquanto tal, que as autorida-des competentes recusem equiparar um banco privado de células estami-nais a um estabelecimento «devidamente reconhecido» para efeitos da isenção em causa. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, na medida do necessário, verifi car se a recusa do reconhecimento para efeitos da isen-ção prevista no artigo 13.°, A, n.° 1, alínea b), da Sexta Directiva respeita o direito da União e, em especial, o princípio da neutralidade fi scal.

Acórdão de 10 de Junho de 2010, Processo C-86/09, Caso Future Health Technologies

«Imposto sobre o valor acrescentado – Directiva 2006/112/CE – Isenções – Artigo 132.°, n.° 1, alíneas b) e c) – Hospitalização e assistên-cia médica, bem como operações com elas estreitamente conexas – Pres-tações de serviços de assistência efectuadas no âmbito do exercício de profi ssões médicas e paramédicas – Colheita, análise e processamento de sangue do cordão umbilical – Conservação das células estaminais – Eventual utilização terapêutica futura – Operações constituídas por um conjunto de elementos e de actos»

Quando as actividades que consistem no envio de um kit para colheita de sangue do cordão umbilical dos recém-nascidos, na análise e processamento desse sangue e, se for caso disso, na conservação das células estaminais contidas nesse sangue com vista a uma eventual uti-lização terapêutica futura visam unicamente assegurar um recurso que esteja disponível com vista a um tratamento médico na hipótese incerta de este vir a ser necessário, mas não diagnosticar, tratar ou curar doenças ou anomalias de saúde, tais actividades, quer sejam consideradas no seu todo ou isoladamente, não são abrangidas pelo conceito de «hospitaliza-ção e [de] assistência médica» constante do artigo 132.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, nem pelo de «prestações de serviços de assistência» pessoal constante do artigo 132.°, n.° 1, alínea c), desta directiva. Só assim não seria, no que diz respeito à análise do sangue do cordão umbilical, se esta análise tivesse efectivamente por objectivo estabelecer um diagnóstico médico,

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Comentários de Jurisprudência

facto que cabe, se tal for necessário, ao órgão jurisdicional de reenvio verifi car.

O conceito de operações «estreitamente relacionadas» com a «hos-pitalização e [com] a assistência médica» na acepção do artigo 132.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que não abrange actividades como as que estão em causa no processo principal, que consistem no envio de um kit para colheita de sangue do cordão umbilical dos recém-nascidos, na análise e processamento desse sangue e, se for caso disso, na conservação das células estaminais conti-das nesse sangue com vista a uma eventual utilização terapêutica futura à qual essas actividades só eventualmente estão ligadas e que não existe, não está em curso nem está sequer planifi cada.

Acórdão de 10 de Junho de 2010, Processo C-58/09, Caso Leo-Libera

«Pedido de decisão prejudicial – Imposto sobre o valor acrescen-tado – Directiva 2006/112/CE – Artigo 135.°, n.° 1, alínea i) – Isenção das apostas, lotarias e outros jogos de azar ou a dinheiro – Condições e limites – Poder de determinação dos Estados-Membros»

O artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Directiva 2006/112/CE do Con-selho, de 28 de Novembro de 2006, deve ser interpretado no sentido de que o exercício da faculdade de que os Estados membros dispõem de fi xar as condições e os limites da isenção de imposto sobre o valor acres-centado, prevista nessa disposição, lhes permite isentar desse imposto apenas determinados jogos de azar ou a dinheiro.

Acórdão de 3 de Junho de 2010, Processo C-237/09, Caso De Fruytier

“Sexta Directiva IVA – Artigo 13.°, A, n.° 1, alínea d) – Isenções em benefício de actividades de interesse geral – Entregas de órgãos, de san-gue e de leite humanos – Actividade de transporte, a título independente, de órgãos e de produtos biológicos de origem humana destinados a hos-

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pitais e laboratórios – Conceito de ‘entrega de bens’ e de ‘prestação de serviços’ – Critérios de distinção”

O artigo 13.°, A, n.° 1, alínea d), da Sexta Directiva, que isenta de imposto sobre o valor acrescentado “as entregas de órgãos, sangue e leite humanos”, deve ser interpretado no sentido de que não é aplicável a uma actividade de transporte, efectuada a título independente, de órgãos e de produtos biológicos de origem humana, por conta de hospitais e de laboratórios.

Acórdão de 20 de Maio de 2010, Processo C-228/09, Caso Comissão/Polónia

“Incumprimento de Estado – IVA – Directiva 2006/112/CE – Artigos78.º, 79.º, 83.ºe 86.º – Valor tributável – Venda de um veículo – Inclusão no valor tributável de um imposto aplicável aos veículos não registados”

A acção foi julgada improcedente, tendo a Comissão sido conde-nada nas despesas.

Acórdão de 6 de Maio de 2010, Processo C-311/09, Caso Comissão/Polónia

“Incumprimento de Estado – Fiscalidade – IVA – Transporte inter-nacional de passageiros – Aplicação de uma taxa de imposto fi xa às transportadoras estabelecidas fora do território nacional e que não per-mite a dedução da taxa aplicada na fase anterior”

A República da Polónia, ao cobrar o imposto sobre o valor acres-centado de acordo com as modalidades defi nidas no capítulo 13, n.º 35, pontos 1 e 3 a 5 do despacho do Ministro das Finanças, de 27 de Abril de 2004, relativo à execução de certas disposições da lei relativa ao imposto sobre os produtos e serviços, não cumpriu as obrigações que lhe incum-bem por força dos artigos 73.º, 168.º e 273.º da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006.

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Comentários de Jurisprudência

Acórdão de 6 de Maio de 2010, Processo C-94/09, Caso Comis-são/França

“Incumprimento de Estado – Violação dos artigos 96.º a 99.º, n.º 1, da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 – Actividades das agências funerárias – Obrigação de aplicar uma taxa de tributação única à prestação complexa indivisível prestada por essas agências – Proibição de aplicação de taxas reduzidas diferentes de IVA”

A acção foi julgada improcedente, tendo a Comissão sido conde-nada nas despesas.

CLOTILDE CELORICO PALMA

Acórdão de 20 de Maio de 2010, Processo C-56/09, Caso Zanotti

O ordenamento fi scal italiano admite a dedução em 19% do valor das despesas com propinas suportadas em cursos ministrados quer por escolas italianas, quer por escolas estrangeiras. Neste último caso, tais despesas fi carão restritas ao valor a pagar por um curso similar minis-trado por uma instituição de ensino italiana – foi o que sucedeu com as propinas suportadas pelo Senhor Zanotti num curso em Leiden.

O Tribunal declarou o regime italiano compatível com o Direito Europeu, uma vez que não impede a dedução, mas apenas a reduz ao valor que se suportaria numa escola pública italiana próxima da residên-cia do sujeito.

Acórdão de 20 de Maio de 2010, Processo C-352/08, Caso Zwijnenburg

A empresa holandesa Zwijnenburg realizou uma operação de trans-formação societária em regime de neutralidade fi scal, estabelecido em conformidade com a Directiva Fusões-Cisões.

Determinou-se que a estrutura negocial adoptada permitia elidir o imposto sobre transmissão de direitos (belastingen van rechtsverkeer)

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sem acarretar quaisquer efeitos em sede de impostos sobre o rendimento. Em conformidade, a Administração Holandesa pretendia considerar como abusiva a utilização da estrutura, v.g., negando a neutralidade fi s-cal que sustenta a estrutura.

Para o Tribunal, apenas fi cam sujeitos à norma anti-abuso constante do artigo 11.º/n.º 1/alínea a) da Directiva as operações que envolvam direc-tamente a elisão dos impostos contemplados pela própria Directiva e já não quaisquer outros que escapem ao seu escopo. Em conformidade, não podem ser negados os benefícios do regime instituído pela Directiva de modo a compensar as vantagens elisivas obtidas em sede de outros impostos.

Acórdão de 17 de Junho de 2010, Processo C-105/08, Caso Comissão/Portugal

Segundo a lei nacional, a tributação dos juros auferidos por socie-dades não residentes (20%) é nominalmente inferior à suportada pelas sociedades residentes (25%). Todavia, por assentar sobre os rendimentos brutos, e não sobre os rendimentos líquidos, aquela tributação revela-se potencialmente mais onerosa do que a tributação que impende sobre os sujeitos passivos residentes.

O Tribunal considerou que a Comissão não logrou a demonstração cabal, como lhe competia, da desconformidade do regime português com o ordenamento europeu, em particular por não atestar cabalmente o tra-tamento desvantajoso concedido às sociedades não residentes. Por isso, teve ganho de causa a República Portuguesa.

Acórdão de 3 de Junho de 2010, Processo C-487/08, Caso Comissão/Espanha

A legislação espanhola elimina a dupla tributação económica sobre os lucros distribuídos por sociedades residentes em Espanha, exigindo a detenção das participações sociais durante um ano e com um volume não inferior a 5% do capital social para sócios residentes. Este requisito passa a 10% (era superior, antes de 2009) se o sócio for uma sociedade não residente.

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Comentários de Jurisprudência

O Tribunal considerou que a situação de residentes e não residentes é comparável, por se encontrarem ambos sujeitos a tributação pelos divi-dendos auferidos. Em conformidade, declarou a diferença de tratamento discriminatória e contrária à livre circulação de capitais.

GUSTAVO LOPES COURINHA

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Comentários de Jurisprudência

SÍNTESE DE ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONALDO TRIMESTRE

Acórdão n.º 216/2010

Não julga inconstitucional, por violação dos artigos 12.º, n.º 2 , 13.º, 20.º, 32.º, n.º 1 da Constituição, a norma do artigo 7.º n.º 3 da Lei n.º 34/2004 de 29 de Julho, com a redacção dada pela Lei n.º 47/2007 de 28 de Agosto;

Acórdão n.º 251/2010

Não aprecia a constitucionalidade da norma dos artigos 2.º, n.º 2, 11.º, n.º 3 e 13.º-A e 16.º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações (CIMSISD), quando interpretada no sentido da sujeição a imposto de sisa do contrato promessa com tradição conjugado com a sua irrelevância para efeitos de caducidade da isenção de sisa, que considera inconstitucional por violação do disposto nos arti-gos 13.º, 103.º e 104.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.

Acórdão n.º 268/2010

Aprecia a inconstitucionalidade orgânica do § 7.º da Portaria n.º 234/97, de 4 de Abril, e do artigo 3.º, n.º 2, alínea e), do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 566/99, de 22 de Dezembro (na redacção anterior às alterações introduzi-das pelo artigo 69.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, ao artigo 74.º deste Código) na parte em que inclui entre os sujeitos passivos desse imposto as pessoas que, em situação irregular, vendam produtos a ele sujeitos.

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Entretanto, em situação idêntica à dos presentes autos, o Plenário do Tribunal Constitucional através do acórdão n.º 176/2010, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, decidiu julgar organicamente incons-titucionais essas referidas disposições, por violação dos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição.

Acórdão n.º 301/2010

Não julga inconstitucional a norma do artigo 5.º, n.º 5 do Decreto--Lei n.º 124/96 de 10 de Agosto (regime prestacional de regularização das dívidas fi scais).

Acórdão n.º 306/2010

Não julga inconstitucional, por violação do princípio da igualdade tributária, a norma do artigo 74.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), na redacção dada pela Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto (tributação de rendimentos no ano do seu recebimento mas reportados a anos anteriores).

(Nota: Todos os Acórdãos encontram-se disponíveis emhttp://www.tribunalconstitucional.pt)

GUILHERME W. D’OLIVEIRA MARTINS E MAFALDA COELHO MOREIRA

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Comentários de Jurisprudência

SÍNTESE DOS PRINCIPAIS ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DO TRIMESTRE

IMPOSTO /FIGURAS AFINS

Acórdão do STA (2.ª) de 02-06-2010. Processo n.º 033/10

O tributo liquidado pela Câmara Municipal de Lisboa pela emissão de licença para instalação e permanência de lona publicitária em prédio particular não tem a natureza de taxa, devendo ser qualifi cado como um imposto. Porque a criação de impostos é da exclusiva competência legis-lativa da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, são organicamente inconstitucionais as normas do Regulamento de Publici-dade do Município de Lisboa que criaram essa receita fi scal autárquica

IMPOSTO SOBRE O RENDIMENTO

IRSAcórdão do STA (2.ª) de 02-06-2010. Processo n.º 0998/09

À luz do disposto no artigo 5.º do Dec. Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, não são tributados em sede de IRS os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de prédio urbano adquirido como rústico antes da entrada em vigor do Código do IRS e que ainda conservava essa natu-reza no momento da entrada em vigor deste Código, pese embora tenha adquirido, posteriormente, a natureza de urbano (terreno para constru-ção) e sido alienado como tal.

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IRC Acórdão do STA (2.ª) de 09-06-2010. Processo n.º 0618/09

A nulidade de acórdão por excesso de pronúncia acontece sem-pre que o tribunal se pronuncia sobre questões de que não podia tomar conhecimento. É o que acontece quando o tribunal conheceu de um fun-damento que confere validade ao acto de tributação, o qual não chegou a ser colocado à sua apreciação. Uma vez verifi cada a nulidade da sen-tença, por excesso de pronúncia, o STA deverá suprir a nulidade decla-rando em que sentido a decisão se deve considerar modifi cada, conhe-cendo dos outros fundamentos do recurso, de harmonia com o disposto no artigo 731.º do CPC.

Nos termos do disposto nos arts. 75.º, n.ºs 7 e 8, na redacção do Decreto-Lei n.º 366/98 de 23/11 e 14.º, na redacção da Lei n.º 30-G/00 de 29/12, ambos do CIRC, o impugnante não está dispensado da apre-sentação de prova de que ocorrem aos requisitos que consentem uma retenção na fonte de IRC, relativo aos exercícios de 2000 e 2001, a taxas inferiores à taxa regra estabelecida no art. 69.º do mesmo diploma legal, na redacção de então. Quando tal prova não seja efectuada, até ao paga-mento do imposto respectivo, o substituto tributário que não tenha efec-tuado a retenção fi ca desobrigado da entrega do imposto que deveria ter sido deduzido desde que comprove a verifi cação dos pressupostos para a dispensa total ou parcial de retenção. É o que resulta do regime fi xado no n.º 4 do seu art. 48.º da Lei n.º 67-A/2007, de aplicação retroactiva.

E sendo de aplicação retroactiva, o mesmo há-de ser aplicado à retenção na fonte do IRC em causa, uma vez que constitui um reconhe-cimento explícito de que era ilegal a imputação de responsabilidade ao substituto tributário quando se comprova a verifi cação dos pressupostos para a dispensa total ou parcial de retenção (no caso, a prova da residên-cia do benefi ciário dos rendimentos), mesmo que a comprovação viesse a ser feita apenas depois do momento em que a retenção deveria ser efectuada.

Em situações em que foi efectuada uma liquidação em momento que já se sabe que não se verifi ca o facto tributário que lhe está subja-cente, está-se perante um acto ilegal, à face dos princípios da justiça, da proporcionalidade e da igualdade na repartição de encargos públicos, cuja observância é imposta à Administração Tributária pelo art. 55.º da

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Comentários de Jurisprudência

LGT e que são corolário dos princípios da justiça, da necessidade e da igualdade, genericamente enunciados nos arts. 13.º e 18.º, n.º 2 da CRP e ínsitos no princípio do Estado de Direito Democrático. Sendo assim, deverá entender-se que o erro de que enferma a liquidação impugnada é imputável aos serviços, para efeitos no disposto no art. 43.º, n.º 1 da LGT, pelo que são devidos juros indemnizatórios.

Acórdão do STA (2.ª) de 30-06-2010. Processo n.º 059/10

Nos termos das disposições combinadas dos arts. 15.º, n.º1, 17.º e 46.º do CIRC, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 198/2001 de 3 de Julho, na defi nição da matéria colectável do IRC, devem ser deduzidos, ao lucro tributável do exercício, os prejuízos fi scais até à sua concorrên-cia, só então sendo possível deduzir, por força do valor remanescente, se o houver, os benefícios fi scais existentes.

Acórdão do STA (2.ª) de 07-07-2010. Processo n.º 0204/10

Os cheques auto são títulos ou meios de pagamento de combustível ou de outros produtos disponibilizados pelos mesmos fornecedores. Só no momento da aquisição do combustível ou desses outros produtos – seja através da entrega dos cheque auto ou da utilização de outro meio de paga-mento – é que se concretiza o custo ou encargo, o qual deve ser compro-vado com a factura/recibo emitido pela gasolineira/fornecedor. Deixando esses meios de pagamento de estar na posse da Impugnante, devem os cor-respondentes encargos ser considerados como despesas não documentadas e/ou confi denciais, sendo, como tal, tributadas autonomamente nos termos do disposto no art. 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90 de 9 de Junho.

IMPOSTO SOBRE A DESPESAIVA

Acórdão do STA (2.ª) de 02-06-2010. Processo n.º 0256/10

Os sujeitos passivos de IVA têm direito a deduzir o IVA por si supor-tado e incidente sobre as operações tributáveis efectuadas a montante,

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designadamente o imposto pago pelas aquisições de bens ou serviços, nos termos do artigo 19.º, n.º 1, alínea c) do CIVA. Em regra, a dedução deve ser efectuada na declaração do período posterior àquele em que se tiver verifi cado a recepção das facturas ou documentos equivalentes (n.º 2 do artigo 22.º do CIVA).

Todavia, nos casos em que a obrigação de liquidação e pagamento do imposto compete ao adquirente dos bens e serviços e os correspon-dentes montantes não tenham sido incluídos na declaração periódica, originando a respectiva liquidação e dedução ou o tenham sido fora do prazo legalmente estabelecido, a liquidação e a dedução são aceites sem quaisquer consequências desde que o sujeito passivo entregue a decla-ração de substituição, sem prejuízo da penalidade que ao caso couber (n.º 15 do artigo 71.º do CIVA, na redacção em vigor à data dos fac-tos). O sujeito passivo não está impedido de apresentar a declaração de substituição em momento posterior a uma primitiva liquidação, devendo aquela ser considerada para efeitos de determinação do imposto devido, embora sem prejuízo da penalidade que ao caso couber.

Acórdão do STA (2.ª) de 23-06-2010. Processo n.º 0107/10

As decisões do Conselho Técnico Aduaneiro, nos termos do dis-posto nos arts. 6.º e 22.º, al. b) do decreto-lei n.º 281/91 de 9/8, são váli-das até que sejam anuladas por decisão, transitada em julgado, proferida em recurso contencioso (hoje acção administrativa especial). Embora preparatórios do acto fi nal de liquidação, enquanto actos destacáveis, porque lesivos, essas decisões são susceptíveis de impugnação conten-ciosa autónoma e própria, sob pena de, à míngua desta, se fi rmarem na ordem jurídica como caso resolvido ou decidido.

Todavia, a falta de dedução de recurso contencioso dessas deci-sões não preclude o direito de impugnação judicial do acto de liquidação com fundamento em vícios próprios e autónomos, que nada tenham a ver com o conteúdo ou objecto das mesmas, que estiveram na origem desse mesmo acto, como sejam a falta de audiência prévia e a falta de fundamentação. Com efeito, as disposições legais supra referidas, res-peitam apenas à impugnação contenciosa dessas decisões. É o conteúdo ou objecto desses actos e não mais do que isso, cuja impugnabilidade

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Comentários de Jurisprudência

directa a lei autoriza ou impõe, já por ser ele o resultado fi nal do pro-cedimento da liquidação e importar que a questão se esgote no campo administrativo antes de ser colocada nos tribunais.

IECAcórdão do STA (2.ª) de 02-06-2010. Processo n.º 0240/10

Os impostos especiais de consumo, entre os quais se inclui o imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas, são impostos indirectos, nascidos de operações internas, encontrando-se o respectivo regime jurí-dico estabelecido no CIEC, aprovado pelo DL 566/99, de 22 de Dezem-bro. Embora a cobrança e administração destes impostos seja da compe-tência das alfândegas, e o seu regime deva muito ao direito aduaneiro, os impostos especiais de consumo são impostos de natureza não aduaneira, a que não é, pois, aplicável a legislação aduaneira, designada e concre-tamente o DL 281/91, de 9/8, que criou o Conselho Técnico Aduaneiro, órgão especializado do contencioso aduaneiro, e regulou o procedimento de contestação técnica junto daquele órgão.

Todavia, como expressamente dispõe o n.º 2 do artigo 4.º do CIEC, sempre que seja relevante para a determinação da incidência objectiva dos impostos especiais de consumo (que para o caso do imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas se mostra regulada no artigo 48.º do CIEC) são de aplicar os critérios estabelecidos para a classifi cação de mercado-rias na Nomenclatura Combinada estabelecida pelo regulamento (CEE) n.º 2658/87, de 23/7/87, e respectivas actualizações e as regras gerais para a interpretação desta nomenclatura, as notas das secções e capítulos da mesma, as notas explicativas do Sistema Harmonizado de Designação e Codifi cação de Mercadorias do Conselho de Cooperação Aduaneira, os critérios de classifi cação adoptados pelo dito Conselho e as notas expli-cativas da Nomenclatura Europeia.

A determinação da natureza ou defi nição do produto para que se possa aferir se o mesmo está ou não incluído na previsão do artigo 48.º do CIEC não constitui, porém, contestação de carácter técnico relativa a classifi cação pautal que deva ser decidida pelo CTA, podendo e devendo tal questão ser suscitada na impugnação judicial do acto de liquidação.

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IMPOSTOS SOBRE O PATRIMÓNIO

IMIAcórdão do STA (2.ª) de 02-06-2010. Processo n.º 027/10

Adquirindo o concessionário ou subconcessionário o estatuto de proprietário das construções que edifi cou no exercício do direito de uso privativo do terreno do domínio público, as quais são objecto de des-crição autónoma tanto no registo predial como na matriz predial, como prédios urbanos, é ele sujeito passivo de IMI, nos termos do n.º 1 do art. 8.º do Código do IMI.

IMPOSTO DE SELO

Acórdão do STA (2.ª) de 09-06-2010. Processo n.º 0242/10

Não correspondendo à realidade o documentado numa escritura de justifi cação notarial de usucapião, a liquidação efectuada pela Adminis-tração Tributária em face dos termos dessa escritura está ferida de ilega-lidade decorrente de posterior constatação de erro nos seus pressupostos de facto. O acto de usucapião de imóvel usucapido constitui o objecto de incidência de tributação em imposto de selo e não também a aquisição de benfeitorias realizadas pelo usucapiente no mesmo imóvel.

Acórdão do STA (2.ª) de 07-14-2010. Processo n.º 01073/09

Apesar de a aquisição por usucapião não se consubstanciar em qualquer transmissão gratuita ou onerosa, como decorrência do seu carácter originário e não derivado (dado não lhe subjazer qualquer fonte contratual), o legislador entendeu, a partir da entrada em vigor do CIS, que tal aquisição por usucapião passaria a ser tributada, incluindo-a nas respectivas regras de incidência objectiva (n.º 1 do art. 1° conjugado com o segmento fi nal da al. a) do n.º 3 do mesmo preceito, do CIS). Nos termos da al. r) do art. 5° do CIS o momento do nascimento da obrigação de imposto ocorre na data da respectiva escritura de justifi cação.

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Comentários de Jurisprudência

INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS

Acórdão do STA (2.ª) de 07/07/2010. Processo n.º 0356/10

À face do preceituado no art. 63.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrac-ções Tributárias, não constitui nulidade insuprível da decisão administra-tiva de aplicação de coima por contra-ordenação tributária a não conside-ração de elementos invocados na defesa pelo arguido. Designadamente, no que concerne à fundamentação, apenas se exige que a decisão de apli-cação de coima contenha a descrição sumária dos factos e indicação das normas violadas e punitivas e a indicação dos elementos que contribuíram para a fi xação das coimas e sanções acessórias, não se impondo, assim, que sejam indicadas as razões por que se não atendeu aos elementos apre-sentados na defesa. A falta de consideração dos elementos invocados na defesa apenas poderá ter relevância como vício da decisão de aplicação de coima se essa falta afectar a correcção da decisão, designadamente se se verifi car uma situação em que, se esses elementos tivessem sido consi-derados, deveria ter sido aplicada uma coima diferente da que foi aplicada ou deveria ter sido decidida a sua dispensa. No que concerne à possibili-dade de dispensa de coima, ao abrigo do disposto nos arts. 32.º e 33.º do RGIT, a exigência cumulativa de que esteja regularizada a falta cometida e que a prática da infracção não ocasione prejuízo efectivo à receita tribu-tária conduz à conclusão de que, para ocorrer dispensa, não basta a regu-larização da falta, sendo necessário que se esteja perante uma situação em que não chegou a produzir-se prejuízo, antes de ocorrer a regularização. Em processo de contra-ordenação tributária, o Tribunal de recurso pode alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos seus termos e ao seu sentido (art. 75.º do Regime Geral das Contra-ordenações, subsidiariamente aplicável, podendo, inclusivamente, apreciar ofi ciosa-mente se ocorrem nulidades da sentença recorrida.

PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO

Acórdão do STA (2.ª) de 02-06-2010. Processo n.º 0196/10

Cumulando-se na petição inicial de impugnação várias causas de pedir e pedidos a que correspondem diversas formas de processo, e não

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sendo viável a convolação ao abrigo dos arts. 98.º, n.º 4 do CPPT e 97.º, n.º 3 da LGT, a petição deve ser liminarmente indeferida, pois não cabe ao juiz substituir-se ao interessado na escolha de uma das formas proces-suais adequadas, já que é este que deve escolher o meio de defesa que julgue mais conveniente.

Acórdão do STA (2.ª) de 02-06-2010. Processo n.º 0118/10 A acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo em

matéria tributária, prevista no art. 145.º do CPPT, tem carácter de com-plementaridade em relação aos outros meios contenciosos. Não se pode afastar a possibilidade de uso da acção em casos em que para obter algum ou alguns dos efeitos pretendidos pelo interessado, se com a acção for possível obter uma mais efectiva tutela do direito ou interesse em causa, designadamente um efeito jurídico que não possa ser obtido por outros meios ou uma mais rápida ou duradoura satisfação os seus direitos ou interesses.

Designadamente, é possível o uso da acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária quando, apesar de existir um acto da administração tributária impugnável, o interessado pretender uma decisão judicial que vincule a administração tributária não só relativamente a esse determinado acto já praticado, mas também no futuro, relativamente a situações idênticas que se venham a gerar entre o interessado e a administração tributária que tenham subjacentes os mes-mos pressupostos fácticos e jurídicos.

O processo de impugnação judicial não pode ter por objecto a defi -nição futura das relações jurídicas semelhantes que se venham a esta-belecer entre a administração tributária e os contribuintes e, por isso, se o contribuinte se encontra numa situação de facto em que se geram sucessivas relações semelhantes com a administração tributária, o meio adequado não só para defi nir o seu conteúdo quanto ao passado (actos já praticados) mas também quanto ao futuro é a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, pois só esta tem potencialidade para esta defi nição futura.

Esta adequação processual da acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária não implica que os

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Comentários de Jurisprudência

pedidos formulados tenham viabilidade de procedência, nem signifi ca que o interessado possa ganhar direitos de impugnação que já tenham caducado, mas as questões de saber se esses pedidos devem ou não pro-ceder têm a ver com o mérito da acção e não com a forma de processo adequado para os apreciar, que não pode deixar de ser a acção para reco-nhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.

Acórdão do STA (2.ª) de 02-06-2010. Processo n.º 026/10

Se depois da apresentação da contestação num processo de impug-nação judicial foram juntos ao processo documentos e obtidas informa-ções com potencial relevo probatório, que podem ser relevantes a deci-são fi nal, impõe-se que se conceda às partes a possibilidade de alegarem sobre esta matéria, nos termos do art. 120.º do CPPT, não só sobre a relevância factual que podem ter os factos apurados, mas também sobre as ilações jurídicas que daí se podem retirar.

O facto de cada uma das partes ter tido oportunidade de se pronun-ciar sobre os documentos apresentados pela parte contrária, não dispensa as alegações, designadamente porque, enquanto o prazo legal para as partes se pronunciarem sobre documentos apresentados pela parte con-trária é o prazo geral de 10 dias [art. 153.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do disposto no art. 2.º, alínea e), do CPPT], o prazo para alegações é fi xado pelo juiz, podendo estender-se até 30 dias, nos termos daquele art. 120.º. A omissão de notifi cação para alegações constitui irregulari-dade que pode infl uir na decisão da causa, pelo que constitui nulidade, à face do preceituado no art. 201.º, n.º 1, do CPC.

Acórdão do STA (2.ª) de 09-06-2010. Processo n.º 0345/10 A garantia prestada em execução fi scal nos termos do art. 183.º-A

do Código de Procedimento e de Processo Tributário – não caducada à data de 1 de Janeiro de 2007, início de vigência da Lei n.º 53-A/2006 de 29 de Dezembro, revogatória daquele artigo 183.º-A –, só poderá ser levantada ofi ciosamente ou a requerimento de quem a haja prestado, logo que no processo que a determinou tenha transitado em julgado decisão

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favorável ao garantido ou haja pagamento da dívida, nos termos do n.º 2 do artigo 183.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Acórdão do STA (Pleno da Secção do CT) de 16-06-2010. Pro-cesso n.º 046/10

Em vista da concretização do princípio do inquisitório e da desco-berta da verdade material – art. 13, n.º 1 e 113 do CPPT –, incumbe ao juiz a direcção do processo e a realização de todas as diligências que, num critério objectivo, considere úteis ao apuramento da verdade. Controver-tida, na lide impugnatória, a indispensabilidade dos custos, nos termos do art. 23 do CIRC, não se pode considerar dispensável a inquirição das testemunhas arroladas em vista da demonstração do aludido requisito.

Acórdão do STA (2.ª) de 16-06-2010. Processo n.º 0205/10

A obrigação de indemnizar o contribuinte, por força do n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária, implica um «erro» da Administração Fiscal, de que, em termos de causalidade juridicamente adequada, resulte um «pagamento indevido da prestação tributária». Do ponto de vista jurí-dico, só do «erro» respeitante aos pressupostos do acto da respectiva liquidação de imposto é que poderá resultar um «pagamento indevido da prestação tributária». E, assim, só na base de um «erro» tal poderá fundamentar-se o direito de juros indemnizatórios ao abrigo do n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

Acórdão do STA (2.ª) de 23-06-2010. Processo n.º 01032/09

A questão da impugnabilidade do acto tributário que constitui o objecto da impugnação judicial é de conhecimento ofi cioso do tribunal, em qualquer altura da instância. Por força do princípio da impugnação unitária, plasmado no artigo 54.º do CPPT, só é possível, em princípio, impugnar o acto fi nal do procedimento tributário, dado que só esse acto atinge ou lesa, imediatamente, a esfera jurídica do contribuinte, sendo

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Comentários de Jurisprudência

que no contencioso tributário o critério da impugnabilidade dos actos é o da sua lesividade objectiva, imediata, actual e não meramente potencial.

Os actos interlocutórios do procedimento não são, em princípio, imediatamente lesivos, razão por que a sua ilegalidade só pode ser sus-citada aquando da eventual impugnação deduzida contra o acto fi nal lesivo, a menos que se trate de actos interlocutórios cujo escrutínio judi-cial imediato e autónomo se encontre expressamente previsto na lei (são os chamados «actos destacáveis», que na falta de imediata impugnação se fi xam na ordem jurídica, fi cando precludido o direito ou a faculdade processual de posteriormente discutir a sua legalidade) ou de actos que, embora inseridos no procedimento tributário e anteriores à decisão fi nal, sejam imediatamente lesivos, abrindo-se então a possibilidade da sua impugnação imediata, sem prejuízo de a sua ilegalidade poder, ainda, ser suscitada na impugnação que venha a ser deduzida contra o acto fi nal.

O acto praticado pela Direcção Geral de Impostos que determina a correcção da declaração de IRS submetida via internet, substituindo o anexo B pelo anexo C, representa a prática de um acto imediatamente lesivo, por conter, ainda que de forma implícita, a decisão de mudar o regime de tributação declarado e de dar sem efeito, nos termos da Porta-ria n.º 159/2003, de 18.12, a declaração apresentada, e por tal provocar efeitos jurídicos negativos imediatos na esfera jurídica do contribuinte. O período mínimo de permanência no regime simplifi cado de tributação é de três anos, prorrogável por iguais períodos, excepto se o sujeito pas-sivo comunicar a alteração do regime pelo qual se encontra abrangido (n.º 5 do artigo 28.º do CIRS). E em face do n.º 6 do artigo 28.º do CIRS, a aplicação desse regime só cessa se algum dos limites a que se refere o n.º 2 tiver sido ultrapassado em dois períodos de tributação consecutivos ou num único exercício em montante superior a 25% desses limites, caso em que a tributação pelo regime de contabilidade organizada se fará, então, a partir do período de tributação seguinte ao da verifi cação de qualquer desses factos.

Acórdão do STA (2.ª) de 30-06-2010. Processo n.º 0364/10

A redução do prazo de caducidade do direito à liquidação para três anos, prevista no n.º 2 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, sucede,

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designadamente, nos casos em que ocorrer «erro evidenciado na decla-ração do sujeito passivo». É claro que não ocorre «erro evidenciado na declaração do sujeito passivo», quando o contribuinte faz uma declara-ção de reinvestimento de mais-valias, à qual não dá inteiro cumprimento.

Tendo o contribuinte feito constar na sua declaração de rendimen-tos, relativa ao ano de 2003, a venda de um prédio e a intenção de rein-vestir a totalidade da mais-valia obtida – nos termos da alínea a) do n.º 5 do artigo 10.º do CIRS (na redacção, aqui aplicável, anterior ao Decreto--Lei 361/2007, de 2 de Novembro) –, a liquidação adicional de IRS, operada, por falta de reinvestimento, nos dois anos seguintes, não carece de audição prévia do contribuinte declarante, por, nos termos dos n.ºs 1, alínea a), e 2 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária, «a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte».

Acórdão do STA (2.ª) de 07-07-2010. Processo n.º 0342/10

A oposição à execução fi scal tem por fundamentos apenas aqueles susceptíveis de serem integrados em alguma das previsões das várias alíneas do n.º 1 do artigo 204.º do Código de Procedimento e de Pro-cesso Tributário. A falsidade do título executivo constitui fundamento de oposição à execução fi scal apenas quando possa infl uir nos termos da execução – nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 204.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. A falsidade do título execu-tivo traduz-se na falta de correspondência da atestação nele fi rmada em relação ao acto que esse título se destina a certifi car. E, assim, a alegação de que, “violando o título executivo o pacto de jurisdição fi rmado volun-tariamente pelas partes, é falso o título executivo”, manifestamente, não integra o conceito de falsidade do título executivo. A petição inicial de oposição à execução fi scal deve ser alvo de rejeição liminar, no caso de «não ter sido alegado algum dos fundamentos admitidos no n.º 1 do artigo 204.º», e, ou, de «ser manifesta a improcedência» – nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 do citado artigo 209.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

ANA LEAL E NUNO OLIVEIRA GARCIA

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Comentários de Jurisprudência

SÍNTESE DOS PRINCIPAIS ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE CONTAS DO TRIMESTRE

1.ª SECÇÃO (FISCALIZAÇÃO PRÉVIA)

Acórdão n.º 19/2010 – 25.Mai – 1ª S/SSPrestação de serviços de saúde. Inadequação do procedimento

prévio. Recurso a modalidades de emprego público. Recusa de visto.

1. Os contratos devem ser analisados e qualifi cados não apenas com base na sua denominação mas também em função das circunstân-cias em que se enquadram e dos objectivos que visam realizar.

2. Os contratos em análise não se destinam à prestação de serviços médicos aos destinatários, confi gurando-se como contratos de aquisição de serviços de fornecimento de pessoal médico.

3. Conjugando a qualifi cação comunitária com o objecto substan-cial dos contratos em apreciação, verifi ca-se não estar em causa a aqui-sição de serviços de saúde mencionados no Anexo II B da Directiva n.º 2004/18/CE, pelo que não estão os mesmos abrangidos pela excepção consagrada na al. f) do n.º 4 do artigo 5.º do CCP.

4. Por outro lado, atento o seu objecto, os presentes contratos não se enquadram em nenhuma das formas de prestação de serviços admi-tidas às entidades do Serviço Nacional de Saúde, tal como previsto no artigo 35.º da Lei n.º 12-A/2008, 27 de Fevereiro.

5. Além do mais, resulta do regime consagrado nesta mesma Lei que as actividades de natureza permanente, como é o caso, das entida-des da administração directa e indirecta do Estado devem, em regra, ser desenvolvidas por titulares de relações jurídicas de emprego público.

6. Não tendo o contrato sido precedido do procedimento concursal legalmente exigível, resulta do disposto no artigo 20.º, n.º 1, al. b) do CCP que o mesmo não podia ter sido celebrado.

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7. Por determinação expressa do artigo 36.º, n.º 1, da Lei n.º 12-A/2008, os contratos de prestação de serviços celebrados com viola-ção dos requisitos previstos no artigo 35.º, n.º 2, são nulos.

8. A nulidade é fundamento de recusa de visto, como estabelece a alínea a) do n.º 3 do artigo 44.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto.

Acórdão N.º 20/2010 – 01.Jun. – 1ª S/SSContrato de prestação de serviços. Alteração do contrato. A

necessidade de visto prévio. Concurso público. Recusa de visto

1. A modifi cabilidade dos contratos públicos durante a sua vigência não depende apenas da existência de razões de interesse público e do respeito pelo objecto do contrato e pelo equilíbrio fi nanceiro do mesmo.

2. Depende, também, em obediência aos princípios constitucionais e legais da concorrência, igualdade e transparência, da não alteração de outras condições importantes desses contratos e da não alteração dos pressupostos que estiveram na base do procedimento competitivo atra-vés do qual foi feita a escolha da proposta adjudicada.

3. A modifi cação do prazo contratual corresponde, no caso, a uma alteração substancial de um dos termos essenciais do contrato, em resul-tado de uma relevante alteração dos pressupostos técnicos do procedi-mento, que não foi expressamente autorizada nas condições do proce-dimento ou do contrato, e que não é neutra relativamente aos interesses em jogo.

4. Na prática, a modifi cação contratual em apreciação consubstan-cia a adjudicação de um novo contrato, que deveria ter sido precedida da realização de concurso público, com publicitação no JOUE.

5. A ausência de concurso implica a falta de um elemento essencial da adjudicação, o que determina a respectiva nulidade, nos termos do artigo 133.º, n.º 1, do CPA. Esta nulidade transmitiu-se ao instrumento contratual outorgado, por força do disposto no artigo 185.º, n.º 1, do mesmo Código.

6. A nulidade é fundamento de recusa de visto, como estabelece a alínea a) do n.º 3 do artigo 44.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto.

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Comentários de Jurisprudência

Acórdão N.º 21/2010 – 07.Jun. – 1ª S/SSContrato de empreitada. Especifi cações técnicas. Exigibilidade

e verifi cação das habilitações. Incumprimento de recomendações. Recusa de visto

1. Atenta a factualidade descrita, revela-se evidente a violação do disposto no artigo 49.º, nºs 12 e 13, do CPP, porquanto o mapa de quan-tidades patenteado no concurso obriga os potenciais concorrentes a for-necer material de marcas indicadas pelo dono da obra.

2. Por outro lado, ao exigir no programa do concurso e para a execução da empreitada a classifi cação de empreiteiro geral de obras ou construtor geral de edifícios de construção tradicional de 7ª classe e diversas subcategorias correspondentes ao valor dos trabalhos especiali-zados e que a si respeitam, a entidade adjudicante infringiu o disposto no n.º 1 do artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro.

3. As infracções referidas constituem circunstâncias com aptidão para afectar, negativamente, a concorrência e, assim, propiciar a altera-ção do resultado fi nanceiro do contrato.

4. Acresce que a entidade adjudicante em causa foi já objecto de recomendações do Tribunal atinentes ao cumprimento dos preceitos legais aqui violados.

5. O insistente incumprimento das citadas recomendações, aliado à possibilidade da alteração do resultado fi nanceiro do contrato em razão das ilegalidades apontadas, impede o Tribunal de fazer uso da faculdade prevista no artigo 44.º, n.º 4, da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto (visto com recomendações), recusando-se, assim, o visto ao contrato em apreço.

Acórdão N.º 22/2010 – 08.Jun. – 1ª S/SSContrato de empréstimo. Limites qualitativos ao endivida-

mento autárquico. Recusa de visto

1. A contracção de empréstimos de médio e longo prazo pelos municípios tem de observar o disposto no artigo 38.º, n.º 4, da LFL, que só pode ser interpretado no sentido de que tais operações apenas podem ser realizadas para proceder ao pagamento de investimentos concretos, identifi cados no contrato que estejam ou venham a ser realizados.

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2. No caso dos autos, os investimentos a cujo fi nanciamento se des-tina o empréstimo encontram-se integralmente executados e foram pagos desde 20 de Fevereiro de 2009 a 30 de Dezembro de 2009.

3. Não há, portanto, necessidade de fi nanciamento, por parte do Município, para satisfazer os encargos emergentes de contrato relativo ao mencionado empréstimo.

4. A violação de normas fi nanceiras constitui fundamento de recusa de visto nos termos da al. b) do n.º 3 do artigo 44.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto.

3.ª SECÇÃO (JULGAMENTO DE RESPONSABILIDADES FINANCEIRA)

Acórdão N.º 3/2010 – 04.Abr. – 3.ª S/PL (RO n.º 7/2009-SRA)Responsabilidade fi nanceira sancionatória. Autorização de des-

pesas sem cabimento orçamental. Recomendação do Tribunal. Dis-pensa da pena. Redução da pena.

1. A assunção e autorização de despesas sem a necessária cabimen-tação orçamental integra a prática de uma infracção fi nanceira sanciona-tória por violação do disposto no art.º 18.º, n.º 2, da Lei n.º 79/98, de 24 de Novembro, com referência ao art.º 65.º da Lei n.º 98/97.

2. No caso em apreço, os demandados sabiam que a assunção e autorização de despesas sem cabimento orçamental eram proibidas por lei e ainda que tal conduta integrava a prática de informação fi nanceira. Agiram, no entanto, no sentido de suprirem o subfi nanciamento da uni-dade de saúde e norteados pela preocupação de assegurar a normalidade da prestação de cuidados de saúde.

3. O Centro de Saúde da Calheta já havia sido objecto de uma reco-mendação do Tribunal de Contas tendente à não assunção de encargos sem cobertura orçamental.

4. Dos elementos da prova produzida resulta que não se verifi cou, no caso concreto, erro sobre a ilicitude; não se demonstrou que o incum-primento das regras de realização de despesas públicas constituísse o meio adequado para suprir algum perigo actual ou ameaçador de bens juridicamente protegidos; mais resulta que não se verifi cou qualquer

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Comentários de Jurisprudência

situação de direito de necessidade ou de estudo de necessidade; e não fi cou também provado o alegado confl ito de deveres.

5. Além de o facto ser ilícito, é seguro que os demandados agiram com culpa, ou seja, o seu comportamento legitima inquestionável cen-sura, sendo certo também que já anteriormente tinha havido recomenda-ções do Tribunal a alertar para esta situação.

No entanto, tendo os demandados agido estribados na necessidade de suprirem o subfi nanciamento da Unidade de Saúde e norteados pela preocupação de assegurar a normalidade da prestação de cuidados de saúde, é admissível concluir que agiram com negligência consciente (art.º 15.º, al. a), do Código Penal).

6. O instituto da dispensa da pena justifi ca-se em casos de bagatelas infraccionais, sendo que o montante das despesas pagas sem cabimento (€ 1.832.345,78) não pode, em circunstância alguma, ser considerada uma bagatela infraccional (cfr. al. a) do n.º 1 do art.º 74.º do Código Penal).

7. No caso concreto, justifi ca-se, porém, a redução das penas apli-cadas em 1.ª instância, tendo em atenção a ausência de antecedente; que parte substancial da despesa não foi gerada por acção directa dos demandados; que as despesas foram necessárias ao normal e adequado funcionamento do Centro de Saúde; que no ano em causa o valor das verbas orçamentadas foi substancialmente inferior ao proposto pelos Demandados; que a Presidente do então Instituto de Gestão fi nanceira de Saúde divulgou pelas Unidades da Região uma Circular onde, apesar de reconhecer a ilicitude, adianta que os Centros de Saúde assegurarão a prestação dos cuidados de saúde necessários, ainda que sem sufi ciên-cia orçamental; e ainda que os Demandados foram impulsionados pela necessidade de suprirem o subfi nanciamento do Centro de Saúde e nor-teados pela preocupação de assegurar normalidade da prestação dos cui-dados de saúde.

ALEXANDRA PESSANHA E NUNO CUNHA RODRIGUES

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Comentários de Jurisprudência

O Dr. Rui Laires dispensa apresentações, sendo um nome conhe-cido da nossa Fiscalidade, em particular do Imposto sobre o Valor Acres-centado. Neste domínio tem desenvolvido uma obra notável, aliando um saber prático, alicerçado numa vasta experiência na Administração Fiscal, com um aprofundamento teórico das matérias, tendo o mérito de abordar a vertente da jurisprudência europeia, aspecto tão relevante neste imposto.

Em 2008, presenteou-nos com a sua obra A Incidência e os Critérios de Territorialidade do IVA, abordando, sobretudo, as regras vigentes até 31 de Dezembro de 2009, mas desvendando já o véu quanto às alterações nas regras de localização das prestações de serviços que, na sua globali-dade, entraram em vigor em 1 de Janeiro de 2010.

Confesso que, na altura, fi quei a pensar que, infelizmente, a parte da obra relativa à localização das prestações de serviços teria uma vigência curta e que bom seria se pudéssemos contar com o seu saber relativa-mente às novas regras. Foi, pois, com grande satisfação que vi o Centro de Estudos Fiscais publicar a sua nova obra intitulada IVA – A Localiza-ção das Prestações de Serviços após 1 de Janeiro de 2010, publicada sob o n.º 208 dos Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal.

O IVA é um imposto pouco tratado entre nós, revestindo especial complexidade e uma lógica distinta dos demais tributos que compõem

IVA – A Localização das Prestações de Serviços após 1 de Janeiro de 2010

RUI LAIRES

Serviço Editorial Ciência e Técnica Fiscal, 2010

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o nosso sistema fi scal, dada a sua matriz europeia. É um imposto que requer um estudo cuidadoso e aprofundado, sendo extremamente rele-vante atender à jurisprudência europeia. De entre as matérias mais com-plexas neste imposto encontramos, precisamente, as regras relativas à localização das prestações de serviços, normas estas que, com o denomi-nado Pacote IVA, foram objecto de relevantes alterações a partir de 1 de Janeiro de 2010, sendo que ainda serão introduzidas novas alterações em 1 de Janeiro de 2011, de 2013 e de 2015. A complexidade desta matéria anda a par com a sua relevância. Trata-se de uma matéria extraordinaria-mente relevante, com importantes consequências práticas. Desde logo, para sabermos localizar devidamente uma operação para efeitos de IVA é necessário procedermos previamente à sua correcta qualifi cação. Sendo uma prestação de serviços, interessa apurar de que tipo de prestação de serviços se trata face à terminologia, entre nós, empregue no célebre artigo 6.º do Código do IVA. Não é por mero acaso que esta disposição é usualmente indicada como a mais complexa norma do IVA.

Com as alterações introduzidas nas regras de localização das pres-tações de serviços, o artigo 6.º passou, a partir de 1 de Janeiro de 2010, a ser mais simples. Desde logo, porque deixa de ser estruturado numa regra geral, excepções à regra geral e excepções às excepções à regra geral, para passar a ter duas regras gerais e excepções às regras gerais. Este facto refl ectiu-se numa diminuição substancial do artigo, que dei-xou de contar com 23 números para passar a contemplar “apenas” 12 números. Mas, na realidade, embora mais simples, o artigo 6.º do CIVA não deixou de ser labiríntico.

E é para nos orientar neste complexo labirinto que nos surge a obra do Dr. Rui Laires, fazendo a ligação entre as normas do Direito Europeu e as regras internas, referenciando a mais relevante jurisprudência euro-peia e recorrendo a inúmeros exemplos práticos.

No Capítulo I o autor tem o cuidado de nos contextualizar no âmbito do Pacote IVA, para, seguidamente, examinar com especial minúcia cada tipo de serviço contemplado no artigo 6.º do CIVA. Para o efeito, no Capítulo II trata dos serviços prestados a sujeitos passivos, tratando, nomeadamente, dos conceitos relevantes para a aplicação das regras, como o de prestação de serviços, de sujeito passivo, de sede da actividade económica, de estabelecimento estável e de domicílio, tendo o cuidado de nos indicar qual a posição adoptada pelo Comité do IVA e

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de abordar os aspectos práticos fundamentais relacionados com as novas regras, tais como os relativos ao novo modelo de declaração periódica, a declaração recapitulativa.

No Capítulo III cuida dos serviços prestados a não sujeitos passi-vos, adoptando idêntica sistemática. As futuras alterações nas regras de localização das prestações de serviços, a entrar em vigor, a partir de 1 de Janeiro de 2011, de 1 de Janeiro de 2013 e de 1 de Janeiro de 2015, são igualmente tratadas de forma bastante clara no Capítulo IV da obra.

Um dos aspectos relevantes das regras de localização das operações entre nós reside no facto de em Portugal termos taxas de IVA distintas no Continente e nas Ilhas, facto este que suscita muitas dúvidas práticas esclarecidas pelo autor no Capítulo V. Finalmente, a obra é encerrada com chave de ouro, de forma extremamente pedagógica e de grande interesse prático, no Capítulo VI, com recurso a diversos exemplos de aplicação das novas regras.

O Dr. Rui Laires possui o precioso dom de saber conciliar os aspec-tos teóricos dos estudiosos deste complexo mas fascinante tributo do nosso sistema fi scal com os aspectos práticos dos seus aplicadores e, nesta obra, demonstrando-o com especial mister. Mais uma vez, temos a agradecer ao autor o facto de nos ter presenteado com o seu Valor Acrescentado.

Clotilde Celorico Palma

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1. A obra recenseada corresponde à dissertação apresentada por João Sérgio Ribeiro a provas de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Ao longo de três partes, o autor procura refundar o conceito de métodos indirectos de determinação da matéria tributável, não só através da afi rmação da tese de que esses mecanismos têm na sua base a fi gura da presunção enquanto técnica normativa, mas também empreendendo uma nova delimitação e articulação entre eles. Rompe, a esse propósito, com o sincretismo dominante que os recon-duz a todos, sem cuidar de os distinguir convenientemente, à avaliação indirecta. O percurso argumentativo empreendido apoia-se numa ousada e profunda análise crítica que associa a problematização de certos con-ceitos de Direito Fiscal, e da dogmática que se lhes encontra associada, a um testar dessas conclusões num plano mais empírico, fazendo, para isso, a imprescindível ligação à aplicação prática do direito positivo. A esse nível, é digno de destaque não só a preocupação do autor em resol-ver problemas concretos, avançando propostas a nível da construção e aplicação do direito positivo, mas também a incursão detalhada que faz em alguns sistemas jurídicos estrangeiros, o que contribui signifi cativa-mente para o aprofundamento do tratamento do tema.

2. Na primeira parte, ao longo de três capítulos, explanados os con-ceitos considerados fundamentais para o desenvolvimento da obra.

Tributação Presuntiva do Rendimento: Um Contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Tributável

JOÃO SÉRGIO RIBEIRO

Almedina, Coimbra, 2010

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No primeiro capítulo é explicada e justifi cada a fórmula tributação presuntiva que serve de título principal à dissertação. O autor aplica essa designação às situações em que o rendimento é determinado na totalidade ou numa parte substancial (por exemplo uma categoria) com base em presunções. Presunções essas que são encaradas não estritamente como um terminus technicus de natureza processual e probatória, mas como uma técnica normativa dirigida à fi xação do próprio facto tributário na sua dimensão quantitativa, assumindo desse modo um carácter essen-cialmente substantivo. O capítulo primeiro corresponde de certa maneira a uma síntese da obra, uma vez que ao ser justifi cada e delimitada essa expressão, se avançam os temas e o modo como serão desenvolvidos.

O segundo capítulo desenvolve o conceito de rendimento fazendo uma útil resenha acerca da evolução do conceito e identifi cando alguns dos aspectos mais importantes acerca da sua utilização no domínio fi scal. Para além da importância deste capítulo para a dinâmica da obra, é de realçar o facto de trabalhar um conceito que é normalmente dado como adquirido e, consequentemente, insufi cientemente tratado nas obras de referência de Direito Fiscal.

O terceiro capítulo na perspectiva de munir o autor de instrumentos argumentativos para a condução da tese propugnada, resgata, a propósito da delimitação do conceito de facto tributário e matéria tributária, contri-buições clássicas de autores como SAINZ DE BUJANDA e ALBERTO XAVIER, adaptando-as à sua linha de raciocínio e aos problemas concretos em análise, chegando a conclusões e clarifi cações interessantes, sob o ponto de vista do entendimento de algumas das características essenciais do Direito Fiscal. Destacamos a ligação do facto tributário à previsão da norma tributária e ao conceito de incidência; a natureza complexa do facto tributário e consequente natureza fragmentária das suas normas; a identifi cação da matéria tributável com a vertente normativa do facto tributário, e não como algo exterior a esse facto; entre outras asserções relevantes.

3. Na segunda parte, na sequência da delimitação de conceitos essenciais, o autor desenvolve em cinco capítulos, o tema dos métodos indirectos de determinação da matéria tributável, entrando nos detalhes da problematização de cada um desses métodos.

No capítulo primeiro, dá nota da evolução histórica da aplicação

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dos métodos indirectos, recuando até à França pós-revolucionária, para lançar luz sobre as motivações que estiveram na base dessa forma de determinação da matéria tributável.

No capítulo segundo, refere-se àquela que é considerada o principal método indirecto – a avaliação indirecta –, demarcando-o dos demais através da análise das suas características essenciais.

No capítulo terceiro, empreende uma importante clarifi cação do mecanismo das manifestações de fortuna, avançando argumentos sólidos no sentido da demarcação desta fi gura do conceito de avaliação indirecta. Sendo de realçar, a este respeito, o facto de concluir que o mecanismo das manifestações de fortuna tem um carácter residual e que só pode ser utilizado quando se desconhece a fonte dos rendimentos, o que não acontecerá na avaliação indirecta propriamente dita. A demarcação desta fi gura e a articulação que dela é feita com a avaliação indirecta constitui uma abordagem inovadora digna de nota.

No capítulo quarto é analisado o conceito de avaliação objectiva que, a propósito da consideração de uma das suas expressões mais recor-rentes – o regime simplifi cado –, é distinguido, através do estudo da sua natureza jurídica, quer da avaliação directa propriamente dita quer das manifestações de fortuna.

No capítulo quinto abordam-se fi guras que, apesar de parecerem à primeira vista expressões de uma tributação presuntiva, ou seja, como concretizações de métodos indirectos de determinação da matéria tribu-tável, revelam, após uma análise mais detida, estar fora desse âmbito. O autor refere-se nesse contexto: aos preços de transferência; à subca-pitalização; à imputação de lucros de sociedades não residentes sujeitas a um regime privilegiado; aos impostos de saída ou de emigração; ao pagamento especial por conta e às tributações autónomas. O exercício relativo à natureza jurídica dessas fi guras, para além da demarcação face à natureza presuntiva, confi gura igualmente uma introdução válida rela-tivamente ao recorte de cada uma dessas fi guras.

4. Na terceira parte, ao longo de três capítulos, o tema da tributação presuntiva é tratado no contexto internacional, numa perspectiva de lege ferenda.

No primeiro capítulo é circunscrito o plano da análise, sendo feita uma breve referência ao conceito de grupo de sociedade e ao conceito de

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estabelecimento estável, por ser no contexto dessas noções que, interna-cionalmente, se põem os problemas de aplicação de métodos indirectos de determinação da matéria tributável.

No segundo capítulo são abordadas algumas formas de tributação presuntiva no referido plano internacional, sendo feita uma referência concreta a tributação de base consolidada antecipando de certa forma um dos desenvolvimentos mais importantes verifi cados nos últimos tempos a propósito das linhas a seguir pela Comissão Europeia a nível da tribu-tação das sociedades.

No terceiro capítulo é feito um exercício análogo a propósito, no contexto da OCDE, da utilização da Convenção Modelo sobre a Tributa-ção do Rendimento e do Património.

5. A obra que recenseamos representa um contributo importante para o tratamento daquilo a que normalmente se chamam métodos indi-rectos da matéria tributável, vindo a preencher um vazio que existia na doutrina nacional, que salvo algumas pontuais refl exões sobre a matéria, ainda não tinha, até à data, feito uma refl exão de fundo, com um carácter tão completo e abrangente. Antevemos, por conseguinte, um adensar da discussão acerca dos temas aqui explorados e um inevitável impacto nas decisões dos tribunais, como aliás já se começa a verifi car.

Rui Morais

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A 4.ª edição da obra Direito Fiscal de Manuel Pires e Rita Calçada Pires concentra, com actualizações (especialmente úteis em tempos de mudança, como os actuais), os Apontamentos que o primeiro autor dis-ponibilizara em 1978/9, pela primeira vez, aos seus alunos da Faculdade de Direito de Lisboa. Três décadas depois, porém, a obra adquiriu uma dimensão e unidade maiores e distintas da sua versão originária, que agora se impõe realçar.

O Direito Fiscal encontra-se dividido em duas partes, de dimensões essencialmente equivalentes – em ambos os casos, superiores a trezentas páginas – e com uma preocupação pedagógica evidente de transmitir, simultaneamente, os aspectos comuns a todos os impostos que compõem o sistema fi scal nacional e a regulação especial que incide sobre cada um dos principais impostos do sistema.

Na Parte Geral, o leitor encontra três capítulos. O primeiro capítulo introduz o leitor aos impostos, noções gerais,

distinções e modalidades, assim como às particularidades do Direito Fis-cal enquanto ramo autónomo do Direito.

No segundo capítulo é tratada a matéria da norma fi scal. Na estru-tura adoptada pelos autores, tal abrange quer a problemática das fontes e princípios de Direito Fiscal, quer a actividade hermenêutica fi scal, quer mesmo a aplicação no tempo e no espaço da lei fi scal. Encontram-se, neste capítulo, algumas das principais particularidades no pensamento

Direito Fiscal – 4.ª edição

MANUEL PIRES e RITA CALÇADA PIRES

Almedina, 2010

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dos autores, como se pode constatar pela extensa refl exão sobre a maté-ria da evasão fi scal (elisão fi scal, noutras terminologias), as questões da densifi cação do princípio da legalidade ou sobre a aplicação da lei no espaço – matéria esta onde os autores possuem uma reconhecida e vasta experiência.

O terceiro e último capítulo da Parte Geral reporta-se à teoria geral da relação jurídica fi scal (ou das “situações jurídicas”, como os autores parecem preferir). O leitor encontrará, aqui, um tratamento dogmático da matéria dos sujeitos da relação (“situações jurídicas activas e passivas”), do objecto da mesma (a “obrigação de imposto”), dos “deveres auxilia-res” das partes e da “dinâmica do imposto” (incluindo, procedimento, modifi cações da obrigação e garantias do crédito de imposto). É neste capítulo que se podem destacar algumas referências particulares e menos comuns noutros manuais mais recentes, como sejam as teorias da cons-tituição da obrigação fi scal ou a investigação aos conceito e regime da omnipresente substituição em sede fi scal.

Na Parte Especial, a divisão faz-se em cinco partes, sendo o primeiro capítulo de cariz geral e introdutório, correspondendo os três seguintes aos três principais impostos (IRS, IRC e IVA) e fi cando o último reser-vado à tributação do património (IMI, IMT e ISelo).

Nesta parte, é característica dominante o detalhe da análise em cada imposto – com destaque para os três grandes impostos do sistema por-tuguês – em termos não muito frequentes para uma obra de índole geral, como esta. Na verdade, o tratamento de cada um destes impostos ocupa mais de 100 páginas desta obra, o que denota uma nítida pretensão de profundidade analítica e autonomização do estudo dos mesmos.

Aspectos como o da incidência objectiva dos impostos – tão impor-tante no IRS – ou a quantifi cação da matéria colectável – crucial em sede de IRC, mas também de IRS e IVA –, tão frequentemente cheios de minudências técnicas, são extensamente tratados pelos autores, com base no actual regime fi scal. Basta exemplifi car, para ilustrar o que vemos dizendo, com a análise desenvolvida do regime das amortizações e depreciações decorrente do Decreto-Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de Setembro.

É, por fi m, de salientar, porque raro numa obra genérica, o trata-mento dogmático dos impostos do património, nas suas componentes estática e dinâmica, e abrangendo o IMT, o IMI e o Imposto do Selo.

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Em resumo, estamos diante uma obra ampla, actual e útil a qualquer estudante e prático do Direito Fiscal, que permite uma visão compreen-siva quer dos aspectos gerais do sistema, quer das singularidades que se encontram nos vários impostos que o compõem.

Gustavo Lopes Courinha

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Robin Blackburn (n. 1940) é um historiador e sociólogo britânico assumidamente próximo do socialismo marxista, tendo sido editor, entre 1981-99, da New Left Review, periódico de que se mantém colaborador. São especialmente reconhecidos os seus trabalhos de investigação histó-rica em torno do surgimento e desenvolvimento dos principais impérios coloniais e sua associação às novas formas de escravatura. Na sua obra de referência, The Making of New World Slavery: from the Baroque to the Modern, 1492-1800 (1997), o autor defende que as novas trocas comer-ciais, iniciadas no século XV por Portugal, bem como com o desenvol-vimento dos mercados de consumo, foram as forças determinantes do incremento da escravatura de plantação, primeiro em África, depois na América Central e do Sul. Nos últimos anos, tem leccionado na Essex University e foi distinguido como Professor Convidado de Estudos His-tóricos, pela The New School em Nova Iorque.

O texto que agora é editado em castelhano corresponde, com algu-mas adaptações, ao original inglês intitulado Age Shock. How Finance Is Failing Us (2006). Robin Blackburn desenvolve nesta obra um tema ao qual se tem dedicado mais nos últimos anos: a questão da preserva-ção do Estado Social, tal como o conhecemos deste o fi m da II Guerra Mundial, e a identifi cação das medidas de reforma dos sistemas de pro-tecção social que garantam a preservação, não apenas das suas condições de sustentabilidade, como também a sua matriz solidarista. O livro foi

El futuro del sistema de pensiones – Crisis fi nanciera y Estado de bienestar

ROBIN BLACKBURN

Ediciones Akal, 2010

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redigido no rescaldo das crises fi nanceiras de 2002-2003, as quais não só permitiram evidenciar as falhas de governo das sociedades e ausência de controlo da acção dos responsáveis fi nanceiros, como permitiram tam-bém assinalar as lacunas e insufi ciências de regulação e de supervisão relativamente à gestão de fundos de investimento. O modo opaco, não controlado e pouco diligente como estes fundos foram geridos permite falar, na expressão de Blackburn, na existência de um “tenebroso capi-talismo cinzento”. Ora, o “mercado” dos fundos de pensões insere-se justamente nesta zona cinzenta, de existência de activos volumosos, nos quais os direitos de propriedade não se encontram claramente defi ni-dos e que permite que os patrocinadores corporativos ou os gestores de fundos exerçam (ou se abstenham de exercer) o poder de representação dos verdadeiros proprietários (os trabalhadores que para lá descontam). Além disso, acrescenta o autor, trata-se este de processo em virtude do qual o “salário diferido” dos trabalhadores é desviado para as quotiza-ções de pensão e entregue a directores fi nanceiros que, por sua vez, a transferem para novos e exóticos cenários, que em nada se assemelham com a garantia de protecção vital dos trabalhadores: alguns trabalhadores vêem as suas poupanças convertidas em centros comerciais ou projectos imobiliários, outras vêem-nas associadas a hedge funds – trata-se, assim, segundo Blackburn, de uma nova forma de alienação dos trabalhadores, fenómeno que, com Marx, se tornou na essência do capitalismo. De notar ainda que o autor actualiza, no Apêndice que apresenta nesta edição, estas mesmas considerações à luz da mais recente crise das hipotecas subprime (2007-2008).

O livro em causa parte desta ideia fundamental – a dos perigos de se fazer depender a protecção na velhice dos “caprichos” das áreas mais cinzentas do capitalismo actual – para criticar, convictamente, as propostas de reforma da segurança social que se seguiram sobretudo ao famoso Relatório do Banco Mundial (1994), Averting the Old Age Cri-sis – Policies do Protect the Old and Promote Growth, e que apontavam claramente para o desenvolvimento de “mercado” privado dos planos e fundos de pensões, como nova forma de composição do bem-estar. Tal como critica todas as medidas mais subtis de desmantelamento do Estado de bem-estar, de entre elas a via da “privatização implícita” da segurança social – política que, recorda o autor, foi tão habilidosamente seguida pela Senhora Thatcher, a partir de fi nais da década de setenta

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passada. Na verdade, esta privatização implícita pode assumir diversas confi gurações, embora de um modo geral conduza à degradação da pro-tecção social, maxime a uma diminuição acentuada do valor das pensões. Uma das formas, adoptada justamente no Reino Unido, mas também em outros países, consiste em desindexar as pensões dos salários, para efei-tos da sua actualização, indexando-as, por seu turno, aos preços. O autor assume convictamente a defesa do Estado Social ou, melhor dizendo, a defesa do Estado Providência e do seu legado solidário – valoriza as experiências de reforma, seguidas por alguns países, nas quais tem sido possível, sem alteração da sua estrutura e da sua essência, garan-tir condições de sustentabilidade para futuro. De entre as medidas de reequilíbrio fi nanceiro, sugere Blackburn a diversifi cação das fontes de fi nanciamento, pela afectação de novos impostos ao fi nanciamento da protecção social: uma delas, em evidência, consiste na criação de um imposto sobre acções, nos termos do qual, as empresas que empreguem mais de 10 trabalhadores ou cuja facturação ultrapasse os 10 milhões de dólares emitam novas acções para uma rede de fundos, calculando-se a imposição como proporção do benefício societário ou do valor para o accionista. Ainda no quadro das propostas de reforma do sistema, o autor desenvolve a proposta de criação de uma pensão global. Na verdade, quer a globalização, quer o carácter global e abrangente do envelheci-mento demográfi co, quer ainda a necessidade de reforço do combate à pobreza a nível mundial, constituem, segundo o autor, bons argumentos em favor desta pensão, cujo fi nanciamento e gestão se fariam de igual modo à escala mundial, concretizando-se, fi nalmente, a taxa Tobin.

O texto em apreço constitui pois um contributo importante para compreensão dos problemas associados à opção pela privatização da Segurança Social, trazendo à evidência, com toda a oportunidade, as recentes crises fi nanceiras. Ajuda, nesta medida, a refl ectir sobre solu-ções que, num pano de fundo intimidatório e à luz de um certo consenso teórico, nos são apresentadas como as boas soluções. Juntamente com os escritos e as intervenções orais de autores como Jean-Paul Fitoussi, Ricardo Petrella, Paul Pierson, etc., esta obra assinala, sem reservas, essa divisória muito clara entre as águas (doce e salgada) do pensamento.

Nazaré da Costa Cabral

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O manual que recenseamos - Introduction au droit fi scal général et à la théorie de l`impôt – vai na 10.ª edição, o que demonstra um sucesso que assenta, em nosso entender, em duas circunstâncias essenciais.

Primo, o prestígio e notável curriculum do autor – Michel Bouvier –, Professor Catedrático na Universidade de Paris-I, Panthéon-Sorbonne, autor de numerosos estudos e obras de referência, em particular no domí-nio das fi nanças públicas e do direito fi scal do qual, felizmente, a Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal já teve oportunidade de benefi ciar.

Secundo, porque, como o próprio reconhece, trata-se de uma obra introdutória ao direito fi scal geral e à teoria do imposto que, como tal, inicia o leitor relativamente aos principais mecanismos e procedimentos que estruturam o conteúdo deste ramo do direito e, por outro lado, o familiariza com os diversos campos de análise que requerem a compre-ensão do fenómeno fi scal.

O livro começa por uma análise clássica do direito fi scal, expli-cando nomeadamente a natureza do imposto, as suas diferentes classi-fi cações e os grandes princípios do direito fi scal (cfr. pp. 23-70). Passa, depois, à análise dos diferentes tipos de impostos em vigor em França os quais são, em grande parte, semelhantes a impostos vigentes em Portugal sem prejuízo de um ou outro ser particularmente interessante pela novi-dade e discussão que (podem) representar no universo fi scal Português. Referimo-nos, em particular, ao imposto de solidariedade sobre as fortu-

Introduction au droit fi scal général et à la théorie de l’impôt, 10.ª edição

MICHEL BOUVIER

L.G.D.J., Paris, 2010

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nas (“impôt de solidarité sur la fortune”), descrito nas páginas 101 e 102 que já se tentou replicar em Portugal.

Depois de exaustiva descrição dos meios de controle e contencioso fi scal (cfr. pp. 121-164), o livro parte para uma segunda parte menos ortodoxa ou clássica, abordando a chamada dinâmica fi scal e a relação entre a fi scalidade e a sociedade.

É uma análise que se revela, de alguma forma, inovadora nos manu-ais de direito fi scal. Trata, entre outros assuntos, da questão da legiti-midade do poder fi scal (cfr. pp. 167-179), a contestação do poder fi scal – descrevendo, de forma curiosa, algumas revoltas fi scais históricas em França mas também nos EUA (cfr. pp. 193-194); o problema da globali-zação da fi scalidade – e a concomitante perda de soberania fi scal.

A segunda parte termina com os capítulos terceiro e quarto. Versa sobre doutrinas e ideologias fi scais que giram em torno de debates modernos respeitantes à simplifi cação fi scal – que vão desde utopias fi scais relacionadas com a noção de imposto único até à ideia de uma sociedade sem impostos – e termina com um proposta de reforma fi scal assente na justiça e igualdade fi scal em que a globalização poderá dar lugar a um espaço fi scal transnacional homogéneo e estável no seio do qual um mesmo imposto seria aceite e cobrado de acordo com procedi-mentos idênticos (cfr. p. 306).

Esta derradeira ideia poderá parecer utópica mas, se pensarmos na taxa Tobin – como refere Michel Bouvier – provavelmente a sua con-cretização não estaria tão longe se houvesse vontade política para tanto.

Estamos, em síntese, perante um manual de direito fi scal em sen-tido clássico e, por outro lado, face a uma estimulante obra de refl exão sobre o direito fi scal moderno, sendo a leitura de aconselhar porquanto, quando projectada sobre o direito fi scal Português, permitirá concluir pela universalidade do direito fi scal e de grande parte das suas regras e princípios. Por outro lado, dados os temas e debates propostos, rasgará novos horizontes à roda do direito fi scal que podem e devem ser aprovei-tados em Portugal.

Nuno Cunha Rodrigues

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“Onde falha o Direito fi nanceiro, o Direito tributário surge com redobrado vigor”

A vinda a lume da 18.ª edição da obra Direito Financeiro e Tribu-tário do Advogado, especialista em Direito Tributário, em Ciência das Finanças e também Professor de Direito Administrativo, Tributário e Financeiro em diversas instituições de ensino superior no Brasil é um manifesto caso de sucesso. O autor, que editou já cerca de 20 obras jurí-dicas publicadas pelas diferentes Editoras, foi Procurador-Chefe da Con-sultoria Jurídica do Município de São Paulo e é Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas.

A obra, porém, destaca-se ainda pelo facto de abordar num só acervo matérias que são normalmente objecto de tratamento separado embora se compreendam dentro do mesmo saber comum. De facto, como o próprio autor reconhece, apesar de o Direito Financeiro ser bem mais vasto do que o Direito Tributário, a verdade é que do ponto de vista da produção científi ca, a matéria fi nanceira ressente-se de obras e publicações espe-cializadas, ao passo que abundam as obras, monografi as, colectâneas e ensaios de direito tributário.

A mais evidente razão para tanto está em que o fenómeno tribu-tário, por dizer respeito à amputação da riqueza produzida, se torna

Direito Financeiro e Tributário

KIYOSHI HARADA

Atlas, 2008

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mais perceptível para a comunidade em geral, ao passo que o fenómeno fi nanceiro público, por estar, em princípio, mais voltado para os agentes públicos, limita o universo dos directamente afectados. Embora isto não seja realmente assim, a verdade é que os cidadãos em geral obtêm uma percepção menos aguda do fenómeno fi nanceiro público não tributário. O interesse dogmático deste, porém, não é em nada inferior ao daquele, até porque, onde falha o Direito fi nanceiro, o Direito tributário surge com redobrado vigor.

A obra do Professor Harada merece uma referência expressa não apenas pela frequência praticamente anual das sucessivas edições deste livro desde o ano de 1995, em que a primeira delas foi dada à estampa, mas pelo seu conteúdo expresso. De facto, a obra acha-se dividida em duas partes onde, a nosso ver, se concilia de forma harmoniosa o espaço dedicado ao Direito fi nanceiro propriamente dito e ao Direito Tributário. Segundo se pode ver, o autor trata os assuntos com uma densidade ade-quada mas não excessiva e sem omissões relevantes para uma compre-ensão geral do fenómeno fi nanceiro público.

No primeiro deles o autor desenvolve os conceitos basilares da actividade fi nanceira, relativos ao Direito fi nanceiro, às despesas públi-cas, às receitas públicas e ao Orçamento, caracterizando em relação a cada um deles os aspectos mais signifi cativos. No capítulo dedicado ao orçamento, merece destaque a diferenciação entre os elementos jurídico, económico e político deste instrumento fi nanceiro, assim como a clara enunciação das principais regras orçamentais, não esquecendo a da res-ponsabilização pela gestão dos recursos fi nanceiros públicos.

Autónomo é o tratamento dado ao papel, atribuições e competên-cias do Tribunal de Contas da União e aos tipos de controlo orçamental, bem como ao crédito público e suas classifi cações, abordando o autor o tratamento dogmático que lhe é dispensado pela Constituição Fede-ral Brasileira. Pela nossa parte, achamos preferível adoptar a noção de dívida pública, desde logo pelo facto de esta noção se revelar mais clara, evitando a confusão com as situações em que o próprio Estado concede empréstimos públicos e em que ocupa na relação jurídica a posição de credor, a expressão tem maior actualidade e é objecto de mais utilização internacional, evitando difi culdades interpretativas e de compreensão. Todavia, a exposição é, neste respeito, clara e precisa.

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Comentários de Jurisprudência

O tratamento dado ao direito tributário, constante de uma parte II onde o autor aborda, sucessivamente, um conjunto de noções teo-rias básicas, desde as fontes do direito tributário, passando depois em revista o sistema tributário brasileiro e as espécies de tributos, com des-taque, além dos impostos e das taxas, para a contribuição de melhoria, os empréstimos compulsórios e as contribuições sociais. Para além dos princípios gerai e outros mais específi cos da realidade tributária, é dado relevo à obrigação tributária, com natural destaque para o facto gerador, para a responsabilidade tributária e para o crédito tributário.

Uma parte de índole processual e garantística é dedicada pelo Prof. Harada ao procedimento administrativo e ao processo tributário, bem como às infracções tributárias.

Não se trata, como facilmente se antolha da sua consulta, de um manual de estudo extenso e carregado de detalhes excessivos, susceptí-veis de o tornar demasiado denso e de difícil penetração. Antes porém, indo ao encontro das necessidades académicas do nosso tempo, o autor não sobrecarrega de informação cada um dos temas, deixando para pos-teriores ciclos de estudo o seu aprofundamento.

Por outro lado, aspectos há que, desejadamente, mereceriam maior destaque e, quiçá, adicional profundidade, tais como a dimensão funda-cional dos modelos fi nanceiros, a evolução do pensamento fi nanceiro, as fi nanças, doutrinas e sistemas económicos e sociais a até o ambiente e o espaço da decisão fi nanceira.

Porém, o carácter didáctico e escolar da obra obriga a temperar os dois interesses de modo a tornar o conhecimento exposto atractivo e coe-rente. É o que a obra revela em cada uma das suas partes componentes onde o nível de profundeza se evidencia, a nosso ver, homogéneo e ade-quado aos fi ns de largo espectro em vista, adequando-o ao ensino do direito fi nanceiro, no âmbito dos estudos de administração de empresas, ciências contábeis e, até certo ponto, a economia.

João Catarino

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Comentários de Jurisprudência

Foi lançada, no passado ano de 2008, mais uma edição da obra consagrada de Aliomar Baleeiro, Professor Emérito das Universidades do Rio de Janeiro e Federal da Brasília. A primeira edição da obra remonta a 1955; a actualização desta mais recente fi cou a cargo de Dejalma de Campos, Professor Adjunto de Direito Tributário e Processual Tributário da Faculdade de Direito da Universidade Mackensie de São Paulo.

A estrutura da obra mantém as linhas clássicas das monografi as de Direito Financeiro e desdobra-se em quatro partes. Na Parte I – Noções Gerais, além da delimitação conceitual da Ciência das Finanças e do Direito Financeiro perante outras áreas científi cas e perante outros ramos de Direito Público, maxime o Direito Tributário, assumem especial interesse os capítulos relativos à metodologia e leis usadas nos estudos económicos e fi nanceiros, ao papel da política fi nanceira/orçamental nos planos da conjuntura e da estrutura económica, para o que alguns contributos da teoria macroeconómica, ainda que nem sempre de forma exaustiva, são trazidos à colação.

Na Parte II – Despesa pública, depois de uma caracterização breve do conceito de despesa pública e, bem assim, dos factores wagnerianos indutores do seu crescimento ao longo das últimas décadas (de que são apresentados alguns dados estatísticos para a realidade brasileira), o autor trata de classifi car as diferentes formas de despesa pública. Assume evidência, na relação estabelecida entre a despesa e a política conjuntural,

Uma Introdução à Ciência das Finanças, 16.ª edição

ALIOMAR BALEEIRO.

Actualização por Dejalma de Campos

Editora Forense, 2008

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Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

o papel das chamadas “despesas compensatórias de conjuntura”, merecedoras de tratamento autónomo num capítulo desta Parte. Por fi m, é explicada a evolução da técnica da despesa pública, identifi cando-se, abreviadamente, as diferentes técnicas, tendo presente, desde logo, a infl uência das experiências britânica e norte-americana.

A Parte III – Receita Pública, é a parte mais extensa; só ela ocupa mais de metade da obra. Nesta Parte, identifi camos três momentos: i) um primeiro relativo à teorização em torno da receita pública – teorias explicativas, tipos e modalidades de receitas públicas; ii) um segundo momento sobre a tributação (parte geral) – técnica da tributação, sistemas tributários, tipos de tributos (taxas, impostos, tributos parafi scais); iii) um terceiro momento sobre a tributação (parte especial) – caracterização do sistema fi scal brasileiro e identifi cação dos seus principais impostos, federais e outros.

Na Parte IV – O Orçamento, o autor começa por ser referir à evolução da instituição orçamental ao longo da história. Depois, são tratados, em dois capítulos distintos, os aspectos políticos do Orçamento e o aspecto económico, tratando-se, aqui, da relação do orçamento com a conjuntura, enquadrando assim a fi gura “keynesiana” dos orçamentos cíclicos. Neste momento, é também afl orada a relação do orçamento com o plano e as implicações orçamentais deste, mormente através das leis de programa.

Na Parte V – Crédito Público, é tratada antes de mais a evolução da dívida pública no Brasil, seguindo-se a identifi cação dos aspectos económicos e do quadro jurídico regulador do crédito público no Brasil. Pela sua relevância histórica nos países da América Latina, merece especial evidência o capítulo autónomo sobre o crédito externo: aqui são tratados temas tão diversos como o papel de fi nanciador do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, como o regime fi scal da dívida externa, como ainda a questão do repatriamento de capitais.

Em suma, pode dizer-se que a obra em apreço constitui um instrumento útil de consulta e de aprendizagem, mormente por parte dos estudantes universitários nas áreas da Ciência das Finanças, do Direito Financeiro e do Direito Tributário, permitindo o enquadramento teórico de base nesta matéria, mas também acesso a alguma informação estatística. No livro, fi ca muito evidente a preocupação de cruzar a

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Comentários de Jurisprudência

dimensão económica com o quadro jurídico, a propósito de cada um dos temas tratados. Neste aspecto, o texto é revelador e exprime bem o carácter transversal e poliédrico da Ciências das Finanças/Direito Financeiro.

Nazaré da Costa Cabral

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Os autores do livro que recenseamos têm uma formação eminen-temente prática conjugada com uma formação académica de alto nível. Leandro Paulsen é Juiz Federal da 2ª Vara Federal Tributária de Porto Alegre e Doutorando pela Universidade de Salamanca e reúne uma for-mação académica multidisciplinar, na medida em que estudou Filoso-fi a, Economia e Direito. Por outro lado, José Eduardo Soares de Melo é advogado e consultor tributário em São Paulo e Doutor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), onde também dá aulas.

Esta formação/experiência eminentemente empírica transparece, estamos em crer, no presente livro na medida em que este assume uma faceta bastante prática, ideal para qualquer profi ssional e aluno que deseje ou necessite pesquisar uma das temáticas abordadas de modo directo e imediato.

Neste sentido destacamos que a primeira referência feita a propó-sito de cada imposto é à legislação que se encontra em vigor e que os autores abordarão e problematizarão.

Além disto, há uma preocupação constante em delimitar os concei-tos legais indeterminados, através de uma análise hermenêutica – Escola que parece ser seguida pelos autores – que recorre a signifi cações econó-micas, sociais e jurídicas. Os autores procuram, igualmente, explicitar o âmbito de aplicação de um determinado conceito através da exemplifi -cação de situações que podem ou não caber num determinado conceito,

Impostos Federais, Estaduais e Municipais, 5ª edição

LEANDRO PAULSEN e JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO

Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2010

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remetendo, para isso, com frequência, para elementos jurisprudenciais e doutrinais relevantes para o seu objectivo de delimitação e esclareci-mento dos problemas levantados pela lei.

Neste sentido, dado o cariz prático da obra, os autores prescindem de grandes esclarecimentos metodológicos e dogmáticos, que estão pres-supostos, referindo-os, porém, sempre que deles derive uma consequên-cia prática relevante para a interpretação da letra da lei.

Assim sendo, estamos perante um livro que pode assumir um grande relevo para profi ssionais e alunos, na medida em que permite, através de uma consulta directa, compreender o funcionamento básico dos impos-tos que aqui são tratados.

Uma breve referência aos impostos abordados pelos autores.Os autores optaram por estudar e analisar tipos de impostos que

muitas vezes são negligenciados pela literatura jurídica. Esta opção permite ao leitor compreender a verdadeira extensão que cada um dos impostos pode assumir na economia de um país, no caso o Brasil, já que os tributos analisados têm especial relação com as trocas comerciais internas e externas. Concomitantemente, permite-nos compreender os vários níveis de autonomia do Estado brasileiro em matéria tributária, mediante a análise de impostos de âmbito Federal, Estadual e Municipal.

João Miguel Ascenso

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PUBLICAÇÕES RECENTES

• Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias N.º 5 da Colecção Cadernos IDEFF, Oeiras 2010, Almedina

• AAVV, A Economia Sem Muros, José Castro Caldas, Vítor Neves (org.), 2010, Almedina, Colecção CES, Série Conhecimento e Instituições

• José Casalta Nabais, Por um Estado Fiscal Suportável – Estudos de Direito Fiscal III, 2010, Almedina

• Joaquim Fernando Ricardo, Direito Tributário 2010 (10ª Edição), Vida Económica

• Helder Martins Leitão, Meios de Defesa do Contribuinte, 2010, Almeida & Leitão

• Gloria Teixeira, Aos 10 Anos de Investigação do CIJE – Estudos Jurídico-Económicos, 2010, Almedina

• Manuel Pires/Rita Calçada Pires, Direito Fiscal, 2010, Almedina

• Helder Martins Leitão, Lei Geral Tributária – Anotada e Comen-tada, 2010, Almeida & Leitão

• Helder Martins Leitão, Como Reagir à Fixação da Matéria Tributá-vel por Métodos Indirectos, 2010, Almeida & Leitão

• Sofi a Gouveia Pereira, O Reembolso das Prestações Suplementares, 2010, Principia

• Manuel Poirier Braz, Sociedades offshore e paraísos fi scais, Petrony, Lisboa, 2010

• Sanmartín Mariñas, Jesús, Tributación de las operaciones vincula-das y su documentación. Ejemplos prácticos, Madrid 2010, Grupo Editorial Quantor

• AAVV, Derecho comunitario y procedimiento tributario, Barce-lona 2010, Atelier Dir. Fernando Ferández Marín, Coord. Ángel For-nieles Gil

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• Gómez Fernández-Aguado, Pilar e Partal Ureña, Antonio, Gestión y control del riesgo de crédito en la banca, Madrid 2010, Delta Ediciones

• Martínez Álvarez, José Antonio e Calvo González, José Luis, Banca y mercados fi nancieros, Valencia 2010, Librería Tirant lo Blanch

• Martín Delgado, José María, Derecho fi nanciero y Derechos Fun-damentales, Málaga 2010, Universidad de Málaga. Servicio de Publicaciones

• Ferrer Riquelme, Javier Experiencias internacionales sobre micro-fi nanzas manual del microcrédito, Castellón de La Plana 2010, Universitat Jaume I

• Doernberg, Richard L. International taxation in a nutshell, St. Paul (MN) 2009, West Group

• Conrad, Bud, Profi ting from the world’s economic crisis fi nding investment opportunities by tracking global market trends, Chi-chester 2010, John Wiley & Sons

• McCrary, Stuart A., Mastering corporate fi nance essentials the cri-tical quantitative methods and tools in fi nance, Chichester 2010, John Willey & Sons

• Salvatore, Dominick, International economics trade and fi nance, Chichester 2010, Wiley-Blackwell

• Holloway, John, Crack capitalism, London 2010, Pluto Press

• Maass, Alan, The case for socialism, Chicago 2010, Haymarket Books

• Yunus, Muhammad, Building social business the new kind of capita-lism that serves humanity’s most pressing needs, New York 2010, Public Affairs

• Michael D. Scott, Role of Tax Preferences in Financial Infrastruc-ture, 2010, Nova Science Pub Inc

• Mark Bovens, The real world of EU accountability what defi cit?, Oxford 2010, Oxford University Press

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• Curtis J.Milhaupt e Katharina Pistor, Law and Capitalism what cor-porate crises reveal about legal systems and economic develop-ment around the world, Chicago 2010, University of Chicago Press

• John Cassidy, How Markets Fail: The Logic of Economic Calami-ties, 2009, Farrar, Straus and Giroux

• Henry Kaufman e Niall Ferguson, The Road to Financial Reforma-tion: Warnings, Consequences, Reforms, 2009, Wiley

• Henry M. Paulson, On the Brink: Inside the Race to Stop the Collapse of the Global Financial System, 2010, Business Plus

• Picciotto Loredana, Sistemi di pianifi cazione e controllo e dina-miche di apprendimento in una prospettiva di sviluppo integrale delle aziende, Giuffre, Milano, 2010

• Santesso Erasmo, Lezioni di economia aziendal, Giuffre, Milano, 2010

• Pica Federico, Il piccolo dizionario di federalismo fi scale, Giappi-chelli, Torino, 2010

• Bisio Luca/Nicolai Marco, Patto di stabilità e federalismo fi scale. Regole per il 2010 e proposte per il futuro, Maggioli Editore, San-tarcangelo di Romagna, 2010

• F. Amatucci, Il nuovo sistema fi scale degli enti locali, Giappichelli, Torino, 2010

• Ralf Birnbaum, Die Begünstigung unternehmerischen Vermögens durch das Erbschaftsteuerreformgesetz, Nomos, Frankfurt-am--Main, 2010

• Eva Oertel, Die mehrwertsteuerrechtliche Behandlung des Cross--Border-Leasing im EU-Binnenmarkt, Nomos, Frankfurt-am-Main, 2010

• Sandro Urban, Die Einkünfteerzielungsabsicht in der Systematik des Einkommensteuergesetzes, Nomos, Frankfurt-am-Main, 2010

Marta Caldas

Miguel Brito Bastos

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Comentários de Jurisprudência

NA WEB

Por Mónica Velosa Ferreira

SITE DO TRIBUNAL DE CONTAS

http://www.tcontas.pt/

É sob o desígnio Ajudar o Estado e a sociedade a gastar melhor que sugerimos nesta o edição de Outono uma visita ao site do Tribunal de Contas. Órgão supremo de fi scalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas, tal como defi nido pelo artigo 214.º da CRP, esta instituição exerce hoje um controlo fi nanceiro efectivo que compreende a análise da economicidade e efi ciência da utilização dos dinheiros públicos e abrange tanto as entidades do sector público admi-nistrativo e do sector público empresarial como qualquer outra entidade – independentemente da sua natureza – que seja benefi ciária de dinheiros públicos.

Apesar de contar já com 160 anos de existência o Tribunal de Con-tas apenas foi consagrado como um verdadeiro Tribunal, garantindo-se a sua independência, com a Constituição de 1976, tendo as suas compe-tências sido especialmente reforçadas com a aprovação da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto (LOPTC).

Num momento em que especialmente se questiona a utilização dos dinheiros públicos é importante sublinhar o papel fundamental deste como órgão de soberania a quem compete exercer o controlo da activi-dade fi nanceira do Estado.

O Tribunal de Contas dispõe hoje de mecanismos de controlo dos dinheiros públicos mais complexos e exigentes que permitem assegurar a regularidade e legalidade da afectação dos recursos públicos e que con-tribuem para e defesa do Estado de direito Democrático. Em especial, nos termos do disposto no artigo 1.º da LOPTC, compete-lhe fi scalizar a legalidade e regularidade das receitas e das despesas públicas, apreciar a boa gestão fi nanceira e efectivar das responsabilidades fi nanceiras.

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Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

Numa altura em que se fala da inefi ciência do sistema judiciário, o Tribunal de Contas constitui um exemplo do bom funcionamento das instituições da justiça constituindo um exemplo claro de transparência e efi ciência na administração da justiça.

O controlo da utilização dos dinheiros públicos é efectuado através de 3 secções especializadas. À 1.ª secção do Tribunal de Contas cabe o controlo fi nanceiro prévio o qual é exercido mediante a concessão ou recusa de visto aos actos e contratos. A 2.ª secção está encarregue do chamado controlo sucessivo exercido depois de terminado o exercício ou a gerência e elaboradas as contas anuais. Uma das principais moda-lidade do controlo sucessivo consiste na apreciação da execução do Orçamento do Estado. A competência de fi scalização sucessiva exerce--se, ainda, através da realização de auditorias sobre a legalidade e boa gestão fi nanceira, da verifi cação externa de contas das entidades do Sec-tor Público e da verifi cação interna de contas das entidades do Sector Público Administrativo.

À 3.ª secção, compete, por sua vez, a efectivação de responsabi-lidades fi nanceiras – sancionatória ou reintegratória – instauradas com base nos relatórios das acções de controlo do Tribunal realizadas pelas 1.º e 2.ª secções ou dos órgãos de controlo interno e pelas entidades com legitimidade para o requerimento de acções nesta matéria quando eviden-ciem factos constitutivos de responsabilidade fi nanceira. Particularmente relevante nesta matéria é a alteração à LOPTC introduzida pela Lei n.º 48/2006, de 29 de Agosto, que veio permitir às 1.ª e 2.ª Secções (e as Sec-ções Regionais) aplicar multas processuais (artigo 66.º da LOPTC). Por outro lado, e relativamente às infracções previstas no artigo 65.º (res-ponsabilidade fi nanceira sancionatória) passou a ser possível a estas Sec-ções relevar a responsabilidade por infracção fi nanceira apenas passível de multa sempre que a falta só possa ser imputada a título negligente e tiver sido a primeira vez que o Tribunal ou órgão tenha censurado o seu autor pela sua prática.

O site do Tribunal de Contas traduz bem a dimensão e actividade deste órgão de soberania, constituindo uma fonte importante de informa-ção. Em termos gráfi cos está simples e funcional permitindo ao visitante – incluindo àquele menos familiarizado com a terminologia fi nanceira – rapidamente encontrar a informação que procura.

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Na página inicial de entrada do site encontramos, do lado esquerdo do ecrã, o menu principal a partir do qual é possível encontrar um link para a quase totalidade da informação disponibilizada que se encon-tra agrupada nas seguintes secções: A Instituição, Juízes Conselheiros, Ministério Público, Plano Estratégico, Actos do Tribunal, Plano de Pre-venção de Riscos, Manuais e Publicações, Recursos Humanos, Relações Externas, Arquivo e Biblioteca, Exposição Virtual e Concursos.

Cada uma destas secções dispõe de subsecções. Assim, e a título exemplifi cativo, na consulta da secção Instituição é possível consultar a informação institucional e legislação orgânica, na secção Juízes Con-selheiros e Ministério Público encontramos o currículo e fotografi a dos Juízes Conselheiros que compõem o Tribunal de Contas bem como o currículo de fotografi a dos Procuradores-Gerais adjuntos.

A secção Actos do Tribunal é a mais completa e rica em informação compreendendo todos os actos produzidos pelo Tribunal de que falamos anteriormente. A partir desta página podem ser consultados os pareceres sobre a Conta Geral do Estado (desde 1997), os pareceres sobre a Conta da Assembleia da República (desde 1999), os pareceres sobre as Con-tas das Regiões Autónomas (desde 2002), os pareceres sobre as Contas das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas (Madeira desde 2001 e Açores desde 2003), os pareceres sobre a Conta da Segurança Social (2003 e 2004), os relatórios de Auditoria produzidos no âmbito do exercício da fi scalização concomitante (desde 1999), os relatórios de Verifi cação Externa de Contas (desde 2004), os relatórios de acompa-nhamento de execução orçamental (desde 2004), os relatórios de Veri-fi cação Interna de Contas (desde 2003), relatórios de Acompanhamento (sobretudo PIDDAC e Sistema Nacional de Saúde, produzidos pela 2.ª secção), Deliberações variadas produzidas pela 2.ª secção, Acórdãos e Sentenças (desde 2002), relatórios anuais de actividades (desde 1999), Regulamentos internos de funcionamento das secções, Instruções varia-das e Resoluções adoptadas em plenário.

A subsecção Acórdãos e Sentenças assume particular importância na medida em que pode ser consultada toda jurisprudência do Tribu-nal de Contas produzida pela 1.ª e 3.ª secção desde 2002. Esta consulta pode ser efectuada a partir da pesquisa por campos (tipo de documento, número, ano, secção ou enquadramento temático), da pesquisa livre, ou percorrendo as listagens integrais de acórdãos organizadas por tema ou

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ano. A possibilidade de pesquisa na base de dados da jurisprudência é extremamente útil permitindo um acesso rápido à informação pretendida.

Do menu principal cabe ainda destacar a secção Exposição Virtual – Contas com História. Apresentada na forma de fi chas temáticas esta exposição virtual interactiva rica em imagens mostra o percurso das sucessivas instituições de controlo fi nanceiro ao longo da História de Portugal.

Na página de entrada do site mas do lado direito surgem outras duas caixa ou menus: Notícias Institucionais e vários links para os últimos relatórios de auditoria aprovados pela 1.ª Secção e pela 2.ª Secção bem como links para os acórdão da 3.ª Secção do Tribunal de Contas. Em destaque aparecem, ainda, os relatórios de auditoria mais recentes apro-vados pelas Secções Regionais dos Açores e da Madeira.

Por fi m, assinala-se no site, na página de entrada, o relatório de acti-vidades e contas de 2009 do Tribunal de Contas. Deste relatório resulta que foram proferidos pela 1.ª Secção 174 Acórdãos e aprovados 22 relatórios de auditoria de fi scalização concomitante tendo sido aplicadas multas processuais no montante de 13.099 Euros, e sido pagas, em fase anterior à de julgamento, as multas previstas no artigo 65.º no montante de 92.600 Euros. No âmbito da 2.ª Secção foram adoptadas, nomeada-mente, 6 resoluções, 53 relatórios de auditoria, 11 relatórios relativos ao acompanhamento da execução orçamental e 8 relatórios de verifi cação interna de contas. Foram aplicadas multas pela 2.ª Secção nos termos do artigo 65.º da LOPTC, no montante de 22.518 Euros e foram ainda pagas, em fase anterior à de julgamento, multas no montante de 60.432 Euros. A 3.ª Secção, por sua vez, proferiu 10 Acórdãos e 7 Sentenças.

Este elenco ilustra bem a importância e efi ciência do Tribunal de Contas no controlo dos dinheiros públicos e mostra como esta Instituição efectivamente ajuda o Estado e a sociedade a gastar melhor. Vale a pena, por isso, a visita.

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Comentários de Jurisprudência

PONTO DE SITUAÇÃO DOS TRABALHOS NA UNIÃO EUROPEIA E NA OCDE – PRINCIPAIS INICIATIVAS ENTRE ABRIL E JUNHO DE 2010

Manuel Faustino, Clotilde Celorico Palma e A. Brigas Afonso

1. FISCALIDADE DIRECTA

1.1. A Comissão accionou a Bélgica, a Finlândia e a França perante o Tribunal de Justiça e dirigiu um parecer fundamentado à Espanha (IP/10/513, de 05-05-2010).

A Comissão accionou a Bélgica, a Finlândia e a França perante o TJCE, em virtude de estes Estados membros não terem dado sequência aos pedi-dos formais que lhes foram endereçados para que modifi cassem algumas das suas disposições fi scais:a) Relativamente à Bélgica, porque as suas disposições fi scais internas

permitem a não tributação de juros pagos por bancos nacionais, mas não permitem o mesmo tratamento quando os juros são pagos por ban-cos estrangeiros. Assim, os residentes belgas são submetidos a um tra-tamento fi scal diferente, consoante os juros das suas poupanças lhes sejam pagos por um banco nacional ou por um Banco Estrangeiro;

b) No que se refere à Finlândia, está em causa um tratamento considerado discriminatório de que são alvo os fundos de pensões estrangeiros;

c) Quanto à França a questão submetida a juízo diz respeito a IVA e à obrigatoriedade, imposta pela lei francesa, de um vendedor não resi-dente em França, dever aqui identifi car-se e designar um represen-tante, designado por «répondant fi scal», encarregado de declarar e pagar o IVA em seu nome. A Comissão considera que esta norma é incompatível com a Directiva IVA, de acordo com a qual os sujeitos passivos estabelecidos no União Europeia e em alguns países terceiros não podem ser obrigados a designar um representante fi scal para fi ns de IVA noutro Estado membro.

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O parecer fundamentado dirigido à Espanha tem por objecto o trata-mento discriminatório que, na óptica da Comissão, é aplicado aos não residentes em sede de imposto sobre as sucessões e doações e aos seus activos detidos no estrangeiro.

1.2. Ajudas de Estados: a Comissão autoriza as atenuações fi scais em favor das sociedades civis fi nlandesas de investimento imo-biliário (SCPI) (IP/10/559, de 12-05-2010).

A Comissão autorizou, no quadro das regras da EU relativas às ajudas de Estado, a constituição de «sociedades civis de investimento imobiliário» (SCPI) que serão isentas de imposto sobre as sociedades, a fi m de fomen-tar o investimento em habitações para arrendamento a preços razoáveis. Estas sociedades fi cam sujeitas ao regime de transparência fi scal, sendo todos os seus lucros tributados ao nível dos sócios, o que levou a Comis-são a considerar que a isenção de imposto concedida à sociedade se não subsumia no conceito de «ajuda de Estado».

1.3. Fiscalidade directa: a Comissão deduz acções junto do Tribu-nal de Justiça contra a Áustria, Alemanha e Portugal por dis-posições fi scais discriminatórias (IP/10/662, de 03-06-2010)

A Comissão Europeia intentou hoje acções contra a Áustria, a Alemanha e Portugal junto do Tribunal de Justiça Europeu, devido a disposições fi s-cais discriminatórias, por incumprimento dos pareceres fundamentados emitidos pela Comissão: a) A Comissão considera que a exigência da legislação austríaca de que os

fundos de investimento estrangeiros, os fundos de bens imobiliários e as instituições de crédito nomeiem um representante fi scal se traduz num tratamento discriminatório. Do mesmo modo, entende a Comissão que a proibição de nomear instituições de crédito estrangeiras e revisores ofi ciais de contas públicas como representantes fi scais de investidores em fundos de investimento ou fundos de bens imobiliários é discrimi-natória e incompatível com o princípio da livre prestação de serviços;

b) Na Alemanha, os dividendos pagos por empresas nacionais às Pen-sionskassen (Caixas de Pensões) são tributados a uma taxa reduzida de imposto sujeito a retenção na fonte, ou então a Pensionskasse pode

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Comentários de Jurisprudência

benefi ciar de um reembolso parcial da retenção na fonte liquidada. Contudo, instituições similares estabelecidas noutros Estados da UE e no Espaço Económico Europeu não têm direito a benefi ciar dessa taxa reduzida ou de um reembolso parcial.

No caso de outra categoria de instituições de pensões alemãs, os Pen-sionsfonds (fundos de pensões), os dividendos recebidos são tidos em conta no procedimento anual de cálculo do imposto e tributados, numa base líquida, à taxa geral do imposto sobre pessoas colectivas, de 15 %. No entanto, os dividendos pagos a partir da Alemanha a institui-ções estrangeiras similares estão sujeitos a um imposto fi nal sujeito a retenção na fonte de 25% sobre o montante bruto dos dividendos, sem a possibilidade de deduzir quaisquer custos.

Uma distinção semelhante é estabelecida entre os juros pagos às Pen-sionskassen e aos Pensionsfonds, por um lado, e a uma instituição de pensões estrangeira, por outro;

c) A legislação fi scal portuguesa pode, em certos casos, impor uma tribu-tação mais elevada dos dividendos pagos a empresas estrangeiras (divi-dendos saídos) do que dos dividendos pagos a empresas nacionais (divi-dendos nacionais). Enquanto a legislação prevê uma percentagem nula ou muito reduzida para a tributação dos dividendos nacionais, impõe aos dividendos saídos uma retenção na fonte de imposto cuja taxa pode ir até 20%. A Comissão considera que estas disposições restringem os movimentos de capitais e a liberdade de estabelecimento.

1.4. Fiscalidade directa: a Comissão pediu formalmente à Bél-gica para modifi car algumas normas fi scais discriminatórias (IP/10/663, de 03-06-2010)

A Comissão europeia enviou à Bélgica dois pareceres fundamentados relativamente a alguns aspectos discriminatórios do seu regime fi s-cal aplicável aos dividendos à entrada e às sociedades de investimento estrangeiras. O primeiro parecer fundamentado respeita a disposições legislativas belgas relativas a alguns dividendos provenientes do exterior, recebidos por pessoas singulares, uma vez que, em conformidade com a estrutura accionista da entidade que distribui os dividendos, tais divi-dendos podem ser sujeitos a uma taxa de tributação de 15% ou de 25%. O segundo parecer respeita a disposições legislativas discriminatórias

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sobre sociedades de investimentos estrangeiras. As sociedades belgas não pagam imposto sobre juros e dividendos provenientes da Bélgica, recu-perando todo o imposto que lhes tenha sido retido na fonte. Ao contrário, as sociedades de investimento estrangeiras sofrem uma retenção na fonte de 15% ou 25% sobre, respectivamente, juros e dividendos, e não podem pedir o seu reembolso.

1.5. Luta contra a fraude fi scal e as práticas fi scais prejudiciais: o Comissário Šemeta saúda a conclusão de dois acordos impor-tantes no seio do Conselho Ecofi n (IP/10/710, de 08-06-2010)

O Comissário Šemeta felicitou-se pelo acordo conseguido entre os minis-tros das fi nanças da EU relativamente a uma proposta que permitirá lutar com maior efi cácia contra a evasão e a fraude fi scais. A proposta de revi-são de revisão do regulamento relativo à cooperação administrativa em matéria de IVA defi ne um conjunto de medidas tendo em vista o desen-volvimento e o reforço da troca de informação e a cooperação entre as autoridades fi scais. No mesmo Conselho ECOFIN foi adoptado um pro-jecto de conclusões sobre um Relatório elaborado pelo Grupo «Código de Conduta no domínio da fi scalidade das empresas», apelando à Comissão para que, nomeadamente, inicie discussões com a Suíça e o Liechtenstein visando encorajá-los a aplicar os princípios do código de conduta.

1.6. Fiscalidade directa: a Comissão pediu ao Reino Unido para modifi car o seu regime de tributação aplicável aos marinheiros (IP/10/792, de 24-06-2010)

A Comissão pediu formalmente ao Reino Unido para modifi car as dis-posições do seu regime de tributação do rendimento que permitem aos marinheiros residentes no seu território benefi ciarem de uma dedução fi scal específi ca, mas que não se aplica aos marinheiros não residentes. A Comissão considera que estas disposições são discriminatórias e cons-tituem uma restrição à livre circulação de pessoas, o que coloca o Reino Unido numa posição de violação das obrigações que lhe incumbem em virtude da legislação da EU.

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Comentários de Jurisprudência

1.7. Fiscalidade directa: a Comissão pede ao Luxemburgo para modifi car algumas disposições fi scais discriminatórias em matéria de direitos de sucessão (IP/10/794, de 24-06-2010)

A Comissão pediu formalmente ao Luxemburgo para alterar a sua legis-lação referente aos direitos de sucessão. Esta legislação prevê condições suplementares para os herdeiros não residentes e, designadamente, o blo-queamento integral dos seus valores hereditários, até que forneçam uma «garantia suplementar», a qual não é exigida aos herdeiros residentes. A Comissão considera que esta exigência é desproporcionada, mesmo injustifi cada e que é contrária às disposições do Tratado sobre o Fun-cionamento da EU relativamente à liberdade de circulação de capitais (artigo 63.º).

1.8. Consulta pública sobre as convenções preventivas da dupla tri-butação no mercado interno

A Comissão abriu ofi cialmente uma consulta pública sobre as aborda-gens possíveis para eliminar os obstáculos em matérias de direitos de sucessão transfronteiras no seio da EU.

O período de consulta decorre entre 25 de Junho e 22 de Setembro, podendo todos os esclarecimentos ser obtidos em ec.europe.eu/taxation_customs/common/consultations/tax/2010_06_inheritance, ou através do e-mail: [email protected]

1.9. Evolução da Fiscalidade na União Europeia – Taxation Trends in the European Union 2010

A edição de 2010 «Taxation Trends in the European Union», publicada pelo Eurostat e pela Direcção-Geral Fiscalidade e União Europeia, evi-dencia que a carga fi scal, na EU/27, em 2008, baixou para 39,3% do PIB, contra 39,7% em 2007 e 40,6% em 2000. Portugal aparece cotado com uma carga fi scal de 36,7%, maior que em 2000, ano em que foi de 34,3%. Evidencia ainda o Relatório que a taxa de tributação implícita sobre o trabalho mais elevada se verifi ca na Itália, sobre o consumo na Dinamarca e sobre o capital no Reino Unido.

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1.10. Colecção Taxation Papers

A Colecção Taxation Papers da União Europeia foi aumentada com mais um volume. Trata-se do n.º 22, subordinado ao tema Company Car Taxion, Subsidies, Welfare and Environemnt e é da autoria de Copenha-gen Economycs.

1.11. OCDE – A concessão dos benefícios dos tratados aos rendi-mentos dos veículos de investimento colectivo

O Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE adoptou em 23 de Abril o Relatório apresentado sobre a concessão dos benefícios dos tratados aos rendimentos dos veículos de investimento colectivo.

As principais conclusões e recomendações incluídas no relatório são semelhantes às do relatório do ICG (Grupo Informal de Consulta), com algumas modifi cações que refl etem as diferentes perspectivas das auto-ridades fi scais dos países da OCDE. Como o relatório do ICG, o rela-tório inclui uma análise das questões sobre diversos aspectos técnicos, como se um fundo qualifi ca como uma “pessoa”, como “residente de um Estado Contratante” e é “benefi ciário efectivo” do rendimento que recebe no quadro de convenções fi scaisl, que, como o modelo de con-venção fi scal da OCDE, não incluem disposições específi cas sobre OIC (a grande maioria dos tratados em vigor). O relatório também inclui propostas de alterações aos comentários do Modelo de Convenção Fis-cal da OCDE, formulados à luz das conclusões da comissão sobre estas questões.

Mesmo que o tratamento fi scal dos fundos de investimento fi que mais claro na sequência das alterações aos comentários, é evidente que algu-mas formas de OIC existentes em alguns países não satisfazem os requi-sitosque lhes permitam reivindicar os benefícios dos tratados no seu próprio nome. O tratamento fi scal desses fundos no âmbito dos acordos existentes e os que serão concluídos no futuro também é abordado no relatório.

No que diz respeito aos acordos existentes, a conclusão incluída no relatório é que, se um fundo não pode reivindicar os benefícios de uma convenção em seu próprio nome, os investidores desses OIC devem, em princípio, ser capazes de reivindicar esses benefícios. Várias posições

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Comentários de Jurisprudência

são apresentados no relatório quanto à questão de saber se esse direito deve ser restrita a investidores que são residentes no Estado em que o fundo tenha sido constituído, ou, pelo contrário, deve igualmente ser dada aos residentes de países terceiros que têm direito aos benefícios dos acordos celebrados por estes Estados. Seja qual for a resposta a esta questão, vários obstáculos administrativos podem impedir que os investidores façam solicitações individuais. A conclusão é, portanto, que os Estados devem adoptar procedimentos que permitam aos OIC reivin-dicar esses benefícios em nome de seus investidores.

Quanto aos acordos futuros, o relatório apoia a recomendação feita pelo GCI de que os Comentários ao artigo 1 º do Modelo de Convenção Fiscal devem ser alterados para incluir uma série de disposições alter-nativas para que os Estados possam considerar a sua inclusão nas suas futuras convenções. Ao incluir uma ou mais destas disposições nos seus acordos bilaterais, os Estados oferecem maior segurança fi scal aos fun-dos de investimento, investidores e intermediários. A abordagem destas disposições é tratar os OIC como um residente de um Estado Contratante como benefi ciário efectivo dos rendimentos que recebe, pelo menos na medida em que os investidores tenham o direito de reivindicar benefícios concedido pelo Estado de origem, em vez de adoptar uma abordagem de total transparência. Uma vez que diferentes posições foram expressas sobre a questão de saber se os residentes de países terceiros têm direito aos benefícios de acordos celebrados pelos Estados-Membros devem ser tomadas em consideração para determinar em que medida os benefícios de uma convenção deve ser concedidos em relação aos rendimentos de um OIC, as alterações aos Comentários incluem disposições que tratam de formas alternativas os investidores de Estados terceiros que são ele-gíveis para os fruírem os benefícios dos acordos celebrados por estes Estados. Os comentários incluem igualmente uma disposição alterna-tiva baseada numa abordagem de total transparência em que o fundo irá reivindicar os benefícios da Convenção em nome dos investidores, em vez de os reinvindicar seu próprio nome. Tal abordagem, adaptados a casos em que os investidores, como os os dos fundos de pensão, têm direito a uma taxa reduzida ou mesmo zero de imposto retido na fonte, se tivessem investido directamente, ao invés do investimento através do OIC em valores mobiliários subjacentes.

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OCDE – Promover a transparência e a informação para fi ns fi scais

A OCDE divulgou em 23 de Junho mais um Relatório sobre a pro-moção da transparência e a troca e o acesso a informação com fi nalida-des exclusivamente fi scais, como forma de combate à fraude e à evasão fi scais. E cita em abono dos seus esforços o incentivo do G20, recebido em Abril de 2010:

“Nós também acolhemos favoravelmente o relatório do Fórum Glo-bal da transparência e troca de Informação fi scais, o lançamento do pro-cesso de revisão, bem como o desenvolvimento de um mecanismo mul-tilateral para o intercâmbio de informações que serão abertas a todos os países”.

2. IMPOSTO SOBRE O VALOR ACRESCENTADO

2.1. Conselho aprova a Directiva IVA sobre a facturação

Foi aprovada a 13 de Julho a Directiva 2010/45/EU do Conselho, que altera a Directiva 2006/112/CE (Directiva IVA), no que se refere à factu-ração, que, entre outros aspectos vem eliminar os obstáculos existentes quanto à transmissão e arquivamento das facturas electrónicas.

2.2. Comissão apresenta um documento actualizado sobre as taxas do IVA em vigor

A Comissão apresentou um documento actualizado com as taxas do IVA em vigor nos diversos Estados membros em 1 de Julho de 2010 (taxud.c.1 (2010) 477911).

2.3. Comissão inicia processos por infracção contra a Polónia e Portugal (Comunicado de imprensa IP/07/1003 Bruxelas, 3 de Julho de 2007 IVA)

A Comissão Europeia solicitou formalmente à Polónia e a Portugal que alterassem as legislações respectivas no que respeita à inclusão do mon-

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Comentários de Jurisprudência

tante do imposto nacional de matrícula automóvel no valor tributável para efeitos de IVA na transmissão de veículos automóveis.

2.4. Comissão Europeia solicita a Portugal que altere o seu regime forfetário para produtores agrícolas (Comunicado de imprensa IP/09/1015, de 25 de Junho de 2009)

A Comissão Europeia solicitou formalmente a Portugal que altere a sua legislação, dado considerar que não aplica um regime forfetário para produtores agrícolas compatível com os objectivos estabelecidos na Directiva IVA. Assim, os agricultores que optem pelo regime em causa podem sofrer desvantagens fi nanceiras.

2.5. Comissão apresenta proposta de Directiva sobre as taxas nor-mais do IVA

A Comissão apresentou a 24 de Junho de 2010 uma proposta de Directiva sobre as taxas normais do IVA (COM (2010) 331 fi nal), nos termos da qual se permite que a taxa normal do imposto de 1 de Janeiro de 2011 e até 31 de Dezembro de 2015 não possa ser inferior a 15%.

2.6. Comissão leva França a Tribunal por incumprimento das regras relativas à taxa super reduzida do IVA (Comunicado de imprensa IP/10/793, de 24 de Junho de 2010)

A Comissão decidiu levar França a Tribunal por incumprimento das regras relativas à taxa super reduzida do IVA nas primeiras representa-ções de espectáculos.

2.7. Comissão leva sete Estados membros a Tribunal por incumpri-mento das regras relativas aos grupos de IVA (Comunicado de imprensa IP/10/795, de 24 de Junho de 2010)

A Comissão decidiu avançar com processos de infracção contra a Dina-marca, Finlândia, Irlanda, Países Baixos, República Checa, Reino Unido e Suécia, por não respeitarem a legislação europeia no tocante aos gru-pos de IVA.

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2.8. Comissão solicita à Áustria, Irlanda, Países Baixos e Polónia, que alterem as suas regras relativas à aplicação de taxas prefe-renciais de IVA (Comunicado de imprensa IP/10/796, de 24 de Junho de 2010)

A Comissão decidiu solicitar à Áustria, Irlanda, Países Baixos e Polónia, que alterem as suas regras relativas à aplicação de taxas preferenciais de IVA a certos sectores de actividade.

2.9. Comissão solicita à Bélgica que altere as suas regras relativas à aplicação de taxas reduzidas de IVA a operações imobiliárias (Comunicado de imprensa IP/10/661, de 3 de Junho de 2010)

A Comissão decidiu solicitar à Bélgica que altere as suas regras rela-tivas à aplicação de taxas reduzidas de IVA a determinadas operações imobiliárias.

2.10. Comissão leva França a Tribunal por incumprimento das regras de IVA (Comunicado de imprensa IP/10/513, de 5 de Maio de 2010)

A Comissão decidiu levar a França a Tribunal por incumprimento das regras de IVA relativas ao sistema de autoliquidação do imposto no caso do prestador ou vendedor não se encontrarem estabelecidos no interior do país.

3. IMPOSTOS ESPECIAIS DE CONSUMO HARMONIZADOS, IMPOSTO SOBRE VEÍCULOS E UNIÃO ADUANEIRA

3.1. Impostos especiais de consumo (IEC) – Taxas aplicáveis a par-tir de1.7.2010.

A Comissão Europeia divulgou, em 21.7.2010, no sítio http://ec.europa.eu, as taxas aplicáveis, a partir de 1 de Julho de 2010, em todos os Estados--Membros da União Europeia, aos produtos sujeitos a IEC (álcool e bebidas alcoólicas, tabacos manufacturados e produtos petrolíferos e energéticos).

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3.2. Impostos especiais de consumo (IEC) – Estudo sobre as bebidas alcoólicas.

A Comissão Europeia divulgou, em 28.6.2010, no sítio http://ec.europa.eu, um estudo sobre as taxas mínimas do imposto especial sobre as bebi-das alcoólicas. De entre as propostas apresentadas sobressai a subida de 44% de todas as taxas mínimas, em conformidade com a infl ação verifi -cada desde Janeiro 1992, a redefi nição das categorias de bebidas alcoóli-cas em função do teor alcoólico e a introdução de uma taxa mínima para o vinho, idêntica à taxa mínima da cerveja.

3.3. União Aduaneira – UE e Japão assinam acordo.

A Comissão Europeia e as Alfândegas Japonesas assinaram, em 24.6.2010, um acordo que prevê o reconhecimento mútuo dos “Operado-res Económicos Autorizados” (AEO). Este acordo vai facilitar o comércio entre os dois parceiros comerciais, tendo em conta que vai permitir a supressão de diversas formalidades aduaneiras.

3.4. Fiscalidade Automóvel – Tributação dos veículos usados na Grécia.

A Comissão Europeia decidiu, em 5.5.2010, prosseguir o procedimento de infracção contra a Grécia porque, apesar das alterações legislativas efec-tuadas, no seguimento da primeira notifi cação da Comissão, esta consi-dera que continua a verifi car-se uma descriminação dos veículos usados adquiridos noutro Estado-Membro (IP/10/514).

3.5. OCDE – Impostos ambientais

A OCDE publicou, em 26.4.2010, um estudo que analisa o impacto, no Japão, dos impostos ambientais e da regulamentação dos níveis máximos de emissões de óxidos de enxofre na introdução de inovações tecnológi-cas. A versão completa do estudo consta do documento COM/ENV/EOC/CTPA(2009)38/FINAL.

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3.6. União Aduaneira – Acordo Comercial Anti-Contrafacção.

Nos dias 12 a 16 de Abril de 2010, realizou-se em Wellington, Nova Zelân-dia, a 8.ª Ronda das Partes Contratantes do Acordo Comercial Anti-Con-trafacção. Os principais temas em debate centraram-se nas infracções em larga escala contra os direitos de propriedade intelectual, tendo sido reafi rmada a vontade de se concluir o Acordo com a maior brevidade possível (IP/10/437).

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CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÕES DO IDEFFANO LECTIVO 2010-2011

Miguel Moura e Silva

Muito embora a actividade científi ca, editorial e pedagógica do IDEFF se reparta por múltiplas manifestações, entre estas tem assumido posição de especial relevo o ensino ao nível de pós-graduação, tendente à especialização e actualização de conhecimentos nas várias vertentes do Direito Económico, Financeiro e Fiscal.

No ano lectivo 2010-2011, o IDEFF propõe-se ir para lá da simples continuidade nas áreas onde já conquistou um lugar de referência, sendo de destacar o lançamento de uma nova pós-graduação, em associação com outra entidade de referência no seio da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o Instituto Europeu, dando continuidade a uma colaboração que se espera venha a ser intensifi cada com esta e outras iniciativas em preparação.

Seguidamente daremos conta, de forma sintética, dos conteúdos essenciais das várias pós-graduações oferecidas pelo IDEFF no próximo ano lectivo. Como é de lei num dos domínios abrangidos pelas pós-gra-duações do IDEFF, esta breve caracterização é feita sem prejuízo da con-sulta dos respectivos programas, disponíveis na página Web do IDEFF (www.ideff.pt).

Pós-graduação de especialização “O Direito da União Europeia em acção – A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Euro-peia (em associação com o Instituto Europeu)

Sendo o Instituto Europeu uma instituição pioneira no campo da leccionação de cursos pós-graduados em Estudos Europeus, os últimos anos têm vindo a revelar a necessidade de repensar o seu formato. Com efeito, é necessário adequar os conteúdos e métodos lectivos às transfor-mações vividas no ensino do Direito da União Europeia, destacando-se a sua generalização como matéria obrigatória nos cursos de Direito, bem

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como à mutação das antigas Comunidades Europeias para a actual União Europeia. Esta visão concretiza-se agora num novo curso, que tem como mote o papel da jurisprudência do Tribunal de Justiça no desenvolvi-mento do ordenamento jurídico da União Europeia. Não se pretende, todavia, uma mera aprendizagem dos grands arrêts daquela instituição judicial mas sim o desenvolvimento de uma capacidade de análise que permita conhecer o porquê das soluções pretorianas como também per-mitir o acompanhamento da evolução futura, antecipando tendências e identifi cando eventuais rupturas, particularmente face à concentração do regime jurídico primário operada pelo Tratado de Lisboa. A leccionação deste curso, baseado no modelo de Law in Action, é complementada pela possibilidade de os auditores terem uma semana de trabalho no próprio Tribunal de Justiça, no Luxemburgo, assegurando o contacto directo com o funcionamento daquela instituição.

Assim, sob a coordenação do Prof. Doutor Eduardo Paz Ferreira, serão leccionados os seguintes módulos, procurando refl ectir as princi-pais áreas onde assume especial relevo a jurisprudência do Tribunal de Justiça: Princípios fundamentais; Direito Institucional; Harmonização de Legislações; Liberdades de Circulação; Ambiente e Consumidores (1.º Semestre); Política Social, Fiscalidade Directa; Fiscalidade Indirecta; Concorrência; Mercados Públicos; Propriedade Intelectual e Industrial (2.º Semestre).

2.º Curso de Pós-graduação de especialização em Mercados Financeiros

Com o objectivo de preparar especialistas qualifi cados na área fi nan-ceira, realizar-se-á, em 2010-2011, o segundo curso de pós-graduação em mercados fi nanceiros, sob a coordenação do Prof. Doutor Eduardo Paz Ferreira e com os seguintes módulos: Sistema Financeiro Português e Europeu; Produtos e Instrumentos Financeiros; Mercado Financeiro e Basileia II; Supervisão Bancária e Financeira (1.º Semestre); Fisca-lidade dos Mercados e dos Produtos Financeiros; Auditoria e Ilícitos; Compliance (2.º Semestre). No âmbito deste curso, realizar-se-ão ainda Seminários de Temas de Gestão Bancária: Resposta à Crise; Moeda e Crédito; Derivados.

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8.º Curso de Pós-graduação de especialização em Direito da Concorrência e da Regulação

Sob a coordenação do Prof. Doutor Luís Morais, o IDEFF organiza a oitava edição deste curso, que pretende proporcionar uma formação especializada nos domínios tecnicamente complexos do Direito da Con-corrência e da Regulação, estruturada nos seguintes módulos: Direito da Concorrência I; Regulação das Comunicações Electrónicas; Instituições e Instrumentos Jurídicos da Regulação; Intervenção Pública e Concorrên-cia (1.º Semestre); Direito da Concorrência II; Direito da Concorrência e Regulação do Sector Financeiro; Regulação dos Transportes; Regulação do Sector Energético; Direito Contra-ordenacional da Concorrência (2.º Semestre). O curso integra ainda seminários sobre Teoria Económica da Concorrência; Teoria Económica da Regulação; Procedimento e Conten-cioso Administrativo da Concorrência; Direito Processual Comunitário da Concorrência.

8.º Curso de Pós-graduação de especialização em Direito Fiscal

Coordenado pelo Prof. Doutor Carlos Lobo, o curso procura ofere-cer aos interessados uma compreensão horizontal e completa do sistema fi scal português, integrando os seguintes módulos: IRC; IRS; Direito Contabilístico; IVA; Taxas e Tributos Parafi scais (1.º Semestre); Direito Fiscal Internacional; Impostos Especiais de Consumo; Impostos sobre o Património; Procedimento e Processo Tributário; Infracções Tributárias; Benefícios Ficais; Planeamento Fiscal (2.º Semestre).

2.º Curso de Pós-graduação avançada em Direito Fiscal – O Novo Sistema de Organização Contabilístico e o Código de IRC

No seguimento do sucesso da 1.ª edição (ano 2009/2010), o IDEFF apresenta a 2.ª edição deste Curso, coordenado pela Prof. Doutora Ana Paula Dourado, que pretende explicar em termos integrados as normas contabilísticas e de relato fi nanceiro, o regime aplicável às empresas, o regime especial da actividade bancária e da actividade seguradora e, ainda, a adaptação do Código do IRC às normas internacionais de con-

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tabilidade e ao sistema nacional de contabilidade, bem como a mudan-ças profundas que tal implicou. O curso reparte-se por quatro módulos: Normalização contabilística para as empresas em geral; Normalização contabilística da actividade bancária; Normalização contabilística da actividade seguradora; Adaptação do código do IRC às NICs e ao SNC.

Curso de Pós-graduação de aperfeiçoamento em Finanças Públicas: Financiamento da Educação

No âmbito das Finanças Públicas, o IDEFF propõe este ano um Curso de Pós-Graduação de aperfeiçoamento dedicado ao tema Finan-ciamento da Educação, sob a coordenação da Prof. Doutora Nazaré da Costa Cabral. O curso é composto por seis módulos, com os seguintes temas: Financiamento da Educação – Enquadramento Jurídico-Consti-tucional; Aspectos Particulares do Financiamento nos Ensinos Básico e Secundário; Aspectos Particulares do Financiamento do Ensino Supe-rior; A Acção Social Escolar e o Papel das IPSS em Matéria Educativa; A Educação e a Descentralização de Competências e Atribuições; A Educação e a Globalização.

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Comentários de Jurisprudência

TERESA GIL SUBDIRECTORA GERAL PARA A ÁREA DA GESTÃO TRIBUTÁRIA – IR E DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Clotilde Celorico Palma

No passado mês de Março, tomou posse como Subdirectora Geral para a Área da Gestão Tributária – IR e das Relações Internacionais, a Dra. Teresa Maria Pereira Gil, com quem tive o grato prazer de trabalhar. A Dra. Teresa Gil é licenciada em Organização e Gestão de Empresas pelo Instituto de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), tendo uma vasta e diversifi cada experiência no mundo da fi scalidade, quer na Administração Pública quer em consultoras, tendo exercido funções em vários Gabinetes ministeriais.

Na DGCI tem a categoria profi ssional de Técnica economista de 1.ª classe, encontrando-se a exercer funções, à data da sua tomada de posse como Subdirectora, como Directora de Serviços das Relações Internacionais. Foi igualmente Directora de Serviços de Planeamento e Sistemas de Informação da DGCI, Assessora no Gabinete do Director-Geral dos Impostos Dr Paulo Macedo, Assessora do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Dr. Ricardo Sá Fernandes, Assessora do Ministro das Finanças Dr. Pina Moura e Assessora do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Dr. Rogério Manuel Fernandes Ferreira, tendo ainda exercido funções técnicas na Direcção de Serviços do IRC e na Direcção de Serviços de Controlo do Serviço de Administração do IVA da DGCI. Foi também “Senior Manager” do Departamento Fiscal da KPMG.

A Dra. Teresa Gil é conhecida pela sua competência, dinamismo e espírito prático, associados a uma simpatia constante, passando a liderar uma área onde predominam chefi as igualmente jovens, dinâmicas, competentes, pragmáticas e bem dispostas, com as quais tive também o prazer de trabalhar, muito se esperando desta equipa.

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Comentários de Jurisprudência

CONFERÊNCIAS IDEFF – ANO LECTIVO 2010/2011

Nuno Cunha Rodrigues

O IDEFF tem em preparação um conjunto de conferências, a reali-zar durante o ano lectivo de 2010/2011, cujas datas e programas especí-fi cos serão divulgados oportunamente.

Destacamos as seguintes conferências face ao particular signifi cado destas:

1. Conferência sobre as relações Portugal/ União Europeia – Es-tados Unidos da América / Lançamento do livro que reúne as intervenções da conferência organizada pelo IDEFF sobre as relações entre Portugal/União Europeia – Estados Unidos da América em Junho de 2008;

2. Liberdade, igualdade, fraternidade: actualidade da mensagem republicana;

3. O endividamento interno do Estado e o relatório Rocard – Juppé

4. Congresso de Direito Fiscal, em, colaboração com a Almedina 5. Conferência subordinada ao tema “Onde pára o poder orça-

mental?”6. “E depois de 2010?” - Conferência sobre as perspectivas eco-

nómicas e fi nanceiras7. Tributação das actividades ilícitas 8. Conferência sobre Arbitragem e mecanismos alternativos de

resolução de litígios no domínio da concorrência e da defesa dos consumidores – Dos mecanismos de acção colectiva (‘col-lective redress’) no domínio do direito da economia em geral

9. Gestão de dinheiros públicos e prevenção de riscos de corrup-ção

10. A gestão do património imobiliário público: avaliação da refor-ma de 2007

11. GREIT Summer course

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12. Workshop: Perspectivas do private enforcement de direito da concorrência – Massimo Motta (Instituto Universitário Euro-peu)

13. Workshop: Os novos regimes de isenção por categoria no direi-to europeu da concorrência - Alan Riley (The City Law School- City University London)

14. Reforma da regulação das comunicações electrónicas e concor-rência no sector

15. Reforma da regulação fi nanceira na UE e problemas de concor-rência no sector

16. Conferência IDEFF/OTOC

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Comentários de Jurisprudência

O «NOVO» CÓDIGO DOS IMPOSTOS ESPECIAIS DE CONSUMO

Carlos Batista da Costa

O Decreto-Lei n.º 73/2010, de 2010, de 21 de Junho, aprovou o Código dos Impostos Especiais de Consumo, doravante apenas desig-nado por novo CIEC, cuja entrada em vigor ocorreu no dia 21 de Julho de 2010. O novo Código não representa, em si mesmo, a materialização de um corte radical e defi nitivo com a experiência adquirida na constân-cia da aplicação prática do CIEC desde 1 de Fevereiro de 2000 (Decreto--Lei n.º 566/99, de 22/12).

Estamos perante uma alteração normativa de pendor marcadamente evolutivo, acolhendo inúmeros traços inovadores sem romper defi niti-vamente com o paradigma consolidado no passado recente e cuja causa mais próxima residirá na necessidade da promoção da transposição da Directiva n.º 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008 (isto é, revogando a anterior Directiva n.º 92/12/CEE, do Conselho, de 25 de Fevereiro de 1992, relativa ao regime geral, à detenção, à circula-ção e aos controlos dos produtos sujeitos a impostos especiais de con-sumo) que se encontra em vigor desde 15 de Janeiro de 2009, ainda que apenas produzindo efeitos desde 1 de Abril de 2010.

Esta Directiva defi ne claramente nos seus considerandos iniciais o caminho da cada vez maior simplifi cação administrativa, da clarifi cação conceptual de algumas realidades normativas e, de igual modo, a consa-gração do enquadramento jurídico do sistema informatizado de controlo da circulação intracomunitária dos produtos sujeitos a IEC, em regime de suspensão do imposto (comummente designada pela sigla inglesa, EMCS – Excise Movement and Control System) como novo paradigma de relacionamento entre operadores e autoridades aduaneiras. Em Portu-gal, mais concretamente, no dia 1 de Abril de 2010 entrou em funciona-mento o novo sistema de declarações electrónicas para os operadores da área dos impostos especiais sobre o consumo denominado sistema SIC--EU, que não é mais do que a vertente nacional do sistema comunitário EMCS.

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No âmbito da implementação plena do EMCS, o Regulamento (CE) n.º 684/2009 da Comissão, de 24 de Julho de 2009, procedeu à aplicação da Directiva n.º 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, no que respeita aos processos informatizados para a circulação de pro-dutos sujeitos a impostos especiais de consumo em regime de suspensão do imposto, ou seja, traçando uma identifi cação mais pormenorizada das características subjacentes ao sistema informático que deverá servir de suporte aos movimentos e controlos, tais como, a estrutura e o teor das mensagens trocadas através do sistema informatizado a utilizar nessa cir-culação, as regras e os procedimentos a serem seguidos no intercâmbio das mensagens no âmbito do projecto de documento electrónico a apre-sentar pelo expedidor às autoridades competentes do Estado-Membro e à estrutura dos documentos em suporte papel que poderão alternativa-mente serem utilizados pelo expedidor em caso de indisponibilidade do sistema informático no Estado-Membro de expedição.

Este novo sistema de circulação postula uma simplifi cação de pro-cedimentos, maxime, uma desmaterialização da interacção entre a Admi-nistração Aduaneira e os operadores nacionais, possibilitando a fi abili-zação das operações de circulação já que os dados dos operadores são validados antes da partida dos produtos sujeitos a impostos especiais de consumo. Mais ainda, permite assegurar a libertação expedita das garan-tias dos operadores, mercê do facto de que a prova de que os produtos chegaram ao destino é efectuada no sistema de forma célere e segura e, de igual modo, viabilizar a monitorização em tempo real da informação relativa aos movimentos e aos controlos realizados.

Pese embora o facto de perdurar, em certa medida, um evidente paralelismo entre o anterior e o actual CIEC quanto à sua estrutura glo-balmente considerada, cumpre sublinhar que foram consagradas solu-ções substantivas e formais, diria melhor, verdadeiras inovações (e não apenas meros retoques ou aperfeiçoamentos circunstanciais fruto de um labor legislativo que se impunha por força da mera transposição da Directiva horizontal acima mencionada) que individualizam este novo CIEC, como sejam a defi nição de uma nova sistematização (ainda que mantendo a divisão clássica entre uma parte geral dedicada às disposi-ções aplicáveis a todos os impostos especiais de consumo e uma parte especial que versa, em capítulos autonomizados, cada um deles alvo de tratamento individualizado), a introdução de novas fi guras estatutárias, a

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consagração de um novo sistema de circulação e de novas simplifi cações procedimentais, a par de novas metodologias de controlo que são poten-ciadoras de uma co-responsabilização acrescida, quer dos operadores, quer das autoridades aduaneiras competentes.

Para além das características genéricas acima enunciadas, atender--se-á de seguida, ainda que não exaustivamente, às principais alterações e inovações introduzidas no âmbito do novo CIEC:

• A introdução do princípio da equivalência, enquanto princípio legitimador destes impostos;

• A clarifi cação das situações de exigibilidade do imposto, da determinação do sujeito passivo e do momento da introdução no consumo;

• A adopção de novas fi guras estatutárias, nomeadamente, o desti-natário registado (pessoa singular ou colectiva autorizada pela autoridade aduaneira, no exercício da sua profi ssão, a receber, não podendo deter nem expedir, produtos sujeitos a IEC que cir-culem em regime de suspensão de imposto), o destinatário regis-tado temporário (pessoa singular ou colectiva autorizada pela autoridade aduaneira a receber ocasionalmente produtos sujei-tos a IEC em regime de suspensão do imposto, limitando-se essa autorização a um único expedidor, a uma quantidade específi ca de produtos e a um período de tempo determinado) e o expedidor registado (pessoa singular ou colectiva autorizada pela autori-dade aduaneira, no exercício da sua profi ssão, a expedir produ-tos sujeitos a IEC em regime de suspensão do imposto exclusiva-mente do local da sua importação e na sequência da introdução em livre prática).

• A simplifi cação dos procedimentos de introdução no consumo, permitindo que a declaração de introdução no consumo (DIC) seja processada até ao fi nal do dia útil seguinte àquele em que ocorreram as introduções no consumo;

• A aplicação de novas regras de reembolso, prevendo-se regras gerais aplicáveis a todas as situações de reembolso, o reembolso por inutilização e perda irremediável, bem como o alargamento do prazo de reembolso no caso de devolução de produtos por razões de natureza comercial;

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• A fi xação de novas regras para a circulação dos produtos sujeitos a IEC, distinguindo claramente a circulação em regime de suspen-são da circulação com imposto pago, bem como maior precisão nas regras relativas às provas alternativas para o apuramento do regime de circulação;

• A clarifi cação das causas e limites das perdas dos produtos sujei-tos a IEC, nomeadamente por causa inerente à própria natureza dos produtos, devido a caso fortuito ou de força maior, bem como das situações em que as perdas são sujeitas a tributação;

• A introdução de novas regras em matéria de garantias, permitindo maior fl exibilidade e ponderação na fi xação, o seu ajuste e a cor-respondente alteração;

• O aperfeiçoamento do regime das pequenas destilarias, a revi-são das isenções e desnaturações do álcool e o melhoramento do regime da armazenagem de produtos vitivinícolas;

• A simplifi cação das regras de comercialização em concomitância com a clarifi cação das regras de detenção no respeitante ao tabaco manufacturado;

• A maior clareza, actualização da linguagem jurídica e das referên-cias legais na Parte Especial respeitante aos três impostos espe-ciais de consumo harmonizados comunitariamente (mais especifi -camente, o álcool e as bebidas alcoólicas, os produtos petrolíferos e energéticos e o tabaco manufacturado).

Em suma, consumada a transição para o novo CIEC, há que saber aguardar pelo seu necessário amadurecimento apenas possível pelo decurso do tempo da sua aplicação prática, sendo certo que a presente codifi cação representa, desde já, um avanço signifi cativo face ao anterior CIEC.