angie sage - minha casa mal-assombrada
TRANSCRIPT
como foi contado a
ANGIE SAGE
Ilustrações
JIMMY PICKERING
Tradução
RITA SUSSEKIND
SUMÁRIO
~ 1 ~ O CAPACETE DO CAVALEIRO
HORÁCIO
~ 2 ~ ESTA CASA ESTÁ A VENDA
~ 3 ~ HOTÉIS ENORMES
~ 4 ~ CAVALEIRO HORÁCIO
~5 ~ A PASSAGEM SECRETA
~6 ~ EDMUNDO
~7 ~ A VARANDA
~8 ~ CAVALEIRO HORÁCIO
~9 ~ KIT-EMBOSCADA
~10 ~ A TERRÍVEL EMBOSCADA DE
ARAMINTA
~11 ~ VÁO EMBORA!
~12 ~ O PLANO B
~13 ~ VANDA E ARAMINTA
Tudo começou quando eu estava no
meu quarto de quinta-feira realizando meu
ensaio de fantasma. Eu sempre fiz ensaios
de fantasma regularmente, já que tinha a
certeza de que seria mais fácil encontrar
um fantasma se ele pensasse que eu
também era um. Sempre quis encontrar um
fantasma, mas sabe que, apesar de a nossa
casa se chamar Casa Fantasmim, eu nunca,
nunca vi um único fantasma, nem um
pequenininho. Imaginei que a tia Tatá os
tivesse espantado — ela teria me espantado
se eu fosse um fantasma.
Então, eu estava ocupada ensaiando
com o meu lençol de fantasma sobre a
cabeça, por isso tropecei no pé esquerdo do
Cavaleiro Horácio. Coisa estúpida. E, em
seguida, seu pé esquerdo caiu, e o Cavaleiro
Horácio desmoronou em centenas de
pedaços. Estúpido Cavaleiro Horácio. Todas
as partes do estúpido Cavaleiro Horácio
rolaram pelo chão, e eu pisei em sua cabeça
e meu pé ficou preso nela. Não se preocupe,
não era uma cabeça de verdade. O
Cavaleiro Horácio era apenas uma velha
armadura malfeita que estava sempre pelo
caminho, se escondendo em diversos cantos
escuros.
Eu gritava com ela para que saísse e
pulava sacudindo o pé como uma louca, mas
a cabeça estúpida do Cavaleiro Horácio
estava presa. Em seguida, no momento
perfeito, tia Tatá gritou: “Café da manhã!”
naquele tom de se-você-não-descer-agora-
mesmo-eu-vou-dar-seu-café-pa-ra-o-gato —
não que a gente tenha um gato, mas é o que
ela faria se tivéssemos, eu sei que faria.
Então dei a sacudida mais forte do
mundo com o pé — aliás, estou surpresa por
a perna toda não ter se soltado —, e o
capacete do Cavaleiro Horácio voou para
longe, saiu pela porta do quarto e caiu pelas
escadas do sótão. Fez um barulho
fantástico. Poderia ter ouvido lá do porão. O
som se propaga muito bem nesta casa, por
isso eu também pude ouvir o grito da tia
Tatá muito bem.
Achei melhor ir andando, então
escorreguei pelo corrimão e desci no
patamar. Queria ver se o tio Drac já tinha
ido dormir — ele trabalha à noite —, pois, se
já tivesse, eu iria acordá-lo para que ele
descesse comigo, caso tia Tatá desse um
ataque. A porta do seu quarto é a vermelha
pequena, no fim do corredor de cima, o que
leva até a torre.
Fui muito cuidadosa ao abrir a porta,
já que ela dá numa queda quilométrica. Tio
Drac retirou todo o piso da torre para que
seus morcegos pudessem voar para onde
quisessem. Tio Drac adora seus morcegos;
faria qualquer coisa por eles. Eu também
adoro morcegos, eles são tão dóceis.
Empurrei o Morcegão do caminho, e
ele caiu lá para baixo da torre. Mas não tem
importância, já que o chão da torre tem
mais ou menos uns três metros de cocô de
morcego, então é bem macio.
Sem o Morcegão no meio da porta, eu
podia ver o saco de dormir do tio Drac com
facilidade. Estava pendurado numa viga
como um grande morcego em forma de flor
— e estava vazio. Ótimo, pensei, ele ainda
está lá embaixo com a tia Tatá. Então, para
poupar tempo, escorreguei pelo corrimão da
escadaria principal e também pelo corrimão
da escada do porão — o que eu não deveria
fazer, já que ele se solta e cai
constantemente — e, num segundo, já
estava do lado de fora da segunda-cozi- nha-
à-esquerda-logo-depois-da-despensa. Estava
suspeitamente quieto lá. Oops, pensei,
problemas!
Empurrei a porta com muito cuidado, e
fiquei feliz por tê-lo feito, já que tia Tatá
estava sentada na ponta da longa mesa,
passando manteiga numa torrada de uma
maneira que parecia que a torrada tinha
dito alguma coisa muito pessoal e muito
grosseira. Não parecia um café da manhã
divertido, pensei. Os sinais não eram bons.
Primeiro sinal não-bom: no meio da
mesa estava o capacete do Cavaleiro
Horácio. Ele tinha bem mais entalhes do
que quando o vi pela última vez, mas
obviamente não era minha culpa, já que ele
estava direitinho quando saiu do meu pé.
Segundo, terceiro, quarto e quinto
sinais não-bons: tia Tatá estava toda
coberta de fuligem — menos as duas
janelinhas em seus óculos, que ela tinha
limpado bem para que pudesse atacar a
torrada. Tia Tatá coberta de fuligem é o pior
dos sinais. Significa que ela lutou contra o
aquecedor de água, e ele venceu. Sentei na
minha cadeira de maneira atenciosa e
solidária. Tio Drac parecia muito aliviado
em me ver. Veja bem, eu moro com meus
tios, pois meus pais foram caçar vampiros
na Transilvânia quando eu era pequena e
nunca mais voltaram.
Tio Drac estava ocupado comendo o
restinho de seu ovo cozido e tinha fuligem
na boca por causa da torrada cheia de
cinzas que tia Tatá preparou para ele.
— Olá, Pimentinha — disse ele.
— Olá, tio Drac — respondi. Tentei
pensar em algo gentil para dizer à tia Tatá,
mas era difícil pensar em qualquer coisa
com o capacete do Cavaleiro Horácio me
encarando com seus olhinhos redondos e
lustrosos. O capacete não tem olhos de
verdade, é claro, mas eu sempre achava que
estava me olhando, apesar de saber que não
passava de uma lata vazia.
Tia Tatá jogou minha tigela de mingau
de aveia na minha direção, então eu disse:
— Obrigada, tia Tatá. — E depois, já
que tia Tatá gosta de conversas educadas
durante o café, continuei: — Andou tendo
problemas com o aquecedor de água
novamente, tia Tatá?
— Sim, querida, mas não por muito
tempo — disse ela, mal mexendo os lábios.
Antigamente, quando tia Tatá falava assim,
eu achava que ela estava treinando para ser
ventríloqua, mas agora sei que é porque ela
está decidida em relação a alguma coisa e
não se importa se você concorda ou não
com ela.
— Ah, por que, tia Tatá? — perguntei
de forma especialmente gentil enquanto
cobria meu mingau de aveia com açúcar
mascavo e misturava bem depressa,
deixando tudo com uma bela cor de lama.
Tia Tatá rangeu os dentes e disse:
— Não faça isso com o açúcar, querida.
Porque vamos nos mudar, por isso.
Pouca coisa faz com que eu pare de
cavar buracos de lama no meu mingau de
aveia — você sabe, aqueles em que você
abre um canal que se enche de açúcar
mascavo, que eu acho que parece com lama
—, mas isso fez.
Mudar? O que ela estava dizendo? Não
podíamos nos mudar de jeito nenhum, não
antes que eu encontrasse pelo menos um
fantasma. E eu também queria encontrar
um vampiro e um lobisomem. Tinha certeza
de que deveria haver alguns na adega.
— Não fique de boca aberta quando ela
estiver cheia, querida — disse tia Tatá, o
que não me parecia justo, já que o tio Drac
estava com a sua boca aberta também, e
estava cheia de torrada com fuligem, o que
era nojento.
Em seguida, tia Tatá lançou ao tio Drac
seu olhar diabólico (que é quase tão bom
quanto o meu) e disse:
— Drac, esta casa é grande demais
para nós. É empoeirada e é suja, é muito
fria e cheia de aranhas. O aquecedor é uma
ameaça. Nós vamos nos mudar para um
apartamento charmoso, pequeno, limpo e
moderno, que não tenha aquecedor.
— Mas... — tentei interromper, mas
não adiantou nada. Tia Tatá continuou
falando.
— E quando tivermos nos mudado para
um apartamento, capacetes de velhas
armaduras enferrujadas não vão mais cair
nos meus dedos dos pés, porque não
teremos velhas armaduras enferrujadas, O
Cavaleiro Horácio pode ir para a
reciclagem. Você pode levá-lo, Drac.
— O quê? — disse tio Drac, com o rosto
parecido com o de um de meus peixinhos
quando a água do aquário ficava muito
baixa.
Finalmente consegui falar uma
palavra, apesar de ainda estar com a boca
cheia de mingau de aveia —, estava chocada
demais para engolir.
— Mas nós não podemos sair desta
casa — eu disse a tia Tatá. — Lugar nenhum
vai ser igual a esta casa!
—
Exatamente — disse tia Tatá, como se eu
tivesse concordado com ela ou coisa do tipo.
— Lugar nenhum pode ser como esta casa.
Olhei para o tio Drac — eu precisava
de ajuda. Tio Drac entendeu a indireta.
— Calma, calma, Tatá, querida —
murmurou ele, com sua voz de acalme-se-
tia-Tatá —, você não está falando sério.
— Eu estou falando sério, Drac — disse
tia Tatá. Em seguida ela tentou me atrair
para o seu lado. — E, Araminta, querida,
você sempre diz que se sente só aqui. Pense
um pouquinho, você teria muitos amigos
num bom condomínio.
Ela não foi bem-sucedida em sua
tentativa.
— Não me importo — eu disse a ela. —
Prefiro ficar aqui a ter um monte de amigos
idiotas.
— Bem, isso é o que veremos — disse
tia Tatá, com seu olhar de ventríloqua
maluca.
Mais tarde naquela manhã, eu estava
olhando pela janela do meu quarto de
quinta-feira e pensando a respeito do que
tia Tatá dissera. Sempre acho mais fácil
pensar enquanto faço outra coisa, então
estava ocupada arrancando pedacinhos de
tinta preta dos contornos da janela e
arremessando-os nas estátuas monstruosas
do parapeito.
Foi sorte eu ter olhado lá para baixo e
percebido o homem parado na frente da
entrada. Ele vestia um terno azul-brilhante
e estava encarando a casa enquanto fazia
anotações em seu bloco. Soube o que ele
era na hora — um corretor de imóveis. Dava
para perceber que tia Tatá estava falando
sério. Bem, eu também.
Então desci da janela e cantarolei uma
canção alegre para mim mesma: “La-di-da,
la-di-da, hora de limpar o meu aquário.”
Encontrei o velho aquário num canto
escuro, onde o guardei depois que o Brian,
meu último peixinho, fugiu. Não sei para
onde ele foi, mas nunca mais voltou. Por
motivos sentimentais, conservei o aquário
do jeito que o Brian deixou, então estava
cheio de lodo, algas velhas e uma água
verde e fedorenta.
O corretor de imóveis estava de pé
logo abaixo da minha janela. Equilibrei o
aquário no peitoril e o derrubei. Caiu bem
em cima dele. Na mosca!
O corretor de imóveis ficou coberto de
meleca verde na cabeça e em seu terno
azul-brilhante. Ele ficou
parado por alguns
instantes — como se
estivesse muito surpreso
— e cuspiu uns pedaços
de algas escorregadias.
Em seguida olhou para
cima, e direcionei meu
olhar diabólico a ele. Ele
emitiu um barulho
estranho, explosivo, co-
mo um ganido, e saiu
correndo pela trilha.
Bons ventos o levem.
Na hora do almoço
na terceira-cozinha-à-
direi- ta-logo-depois-da-
sala-do-aquece-dor, não
me surpreendi ao ver tia
Tatá com uma cara tão enfezada quanto a
do café da manhã.
— Estes corretores de imóveis não são
nada confiáveis — disse ela, enquanto
espetava uma batata indefesa e a colocava
no meu prato. — Passei a manhã inteira
esperando um, mas ele nem se incomodou
em aparecer.
Eu não disse nada. Tia Tatá olhou para
mim por um instante e, em seguida, disse:
— Vou colocar minha própria placa
esta tarde. Você vai adorar me ajudar a
pintá-la, Araminta.
— Não vou — eu disse a ela.
Tentei evitar tia Tatá durante a tarde,
mas ela me encontrou na adega procurando
por vampiros e me arrastou até o jardim.
— O dia está lindo, Araminta — disse,
animada. — Um pouco de sol lhe fará muito
bem. Você está muito pálida.
Bem, é claro que eu estava pálida. Era
por causa da poeira de giz no meu rosto.
Caçar vampiros é como caçar fantasmas —
você tem que parecer um deles para ter
chance de encontrar algum. Acho que fico
muito bem de vampira e gostaria que meus
dentes crescessem também (mas, quando
eu perguntei á dentista como poderia fazer
isso, ela não ajudou nem um pouco).
Tia Tatá havia limpado um terreno de
urtiga — urtiga é o que melhor cresce em
nosso jardim — e posto uma tábua e umas
tintas em seu lugar. Minha tia pensa que é
artista, mas eu tenho minhas dúvidas.
—Venha, querida — disse ela, dando
tapinhas no chão ao seu lado como se
fôssemos fazer um piquenique ou coisa
parecida —, você sabe que adora pintar.
— Não — eu disse a ela.
Então, sentei nos degraus e os chutei,
o que é bem divertido, já que eles são muito
deformados, e você freqüentemente
consegue arrancar grandes pedaços de
pedra. Observei enquanto tia Tatá se
concentrava na pintura, até que ela estava
tão coberta de tinta quanto a tábua. Quando
a tinta acabou, ela prendeu a tábua num
pequeno poste e o fixou na cerca viva. A
placa dizia:
Tia Tatá parecia satisfeita. Esfregou
suas mãos sujas de tinta na parte da frente
do vestido e disse:
— Nada mal. Não perdi o jeito. O que
você achou, Araminta?
Eu não disse o que se passava pela
minha cabeça, já que não teria sido educado
de minha parte. Além disso, estava ocupada
pensando. Precisava desesperadamente de
um plano — tia Tatá não conseguiria assim
tão facilmente. Então, quando ela entrou em
casa para brigar com o aquecedor, pensei a
respeito do meu plano. Não demorou muito
para que eu elaborasse um. Logo a placa
dizia:
Simples.
Na manhã seguinte, acordei cedo.
Sabia que tia Tatá não desistiria facilmente
e eu queria vigiá-la, então depois do café da
manhã fiquei pelo vestíbulo, fingindo que
estava contando as aranhas. Tudo (inclusive
a tia Tatá) estava suspeitamente quieto —
até que bateram à porta.
Corri para abrir, mas tia Tatá, que
estava de tocaia atrás do relógio, chegou
primeiro. Tirou-me do caminho com o
cotovelo (tia Tatá tem cotovelos muito
afiados) e abriu a porta.
Em pé na entrada havia uma mulher
muito estilosa carregando uma pasta. Não
gostei nem um pouquinho dela, então lancei
meu melhor olhar diabólico. Percebi que
funcionou — ela logo ficou pálida e engoliu
em seco, um pouco como Brian fazia. Abriu
e fechou a boca como se tivesse esquecido
como se falava e, em seguida, disse com a
voz trêmula e aguda:
— Eu... eu vim ver a casa. Em nome da
Corporação Hotéis Enormes.
Tia Tatá parecia felicíssima.
Que droga, pensei. Que falta de sorte
que essa tal sra. Corporação Hotéis
Enormes não soubesse ler. Fui lá fora
verificar a placa, mas agora dizia:
Hummm... Tia Tatá estava se
mostrando mais esperta do que eu
esperava.
Ela estava ocupada mostrando o
vestíbulo para a Hotéis Enormes quando
voltei para dentro da casa.
— Foi muito estranho, querida — disse
tia Tatá, com um sorriso engraçado. —
Alguém alterou a placa ontem à noite.
Percebi quando o tio Drac saiu para
trabalhar. Não me surpreenderia se
descobrisse que foi um desses corretores de
imóveis. Seja como for, já consertei, não
acha?
Não respondi — não havia tempo a
perder. Corri para o andar de cima, para
meu quarto de sexta-feira, e peguei meu kit
de fantasma. Abri a caixa depressa, tirei
meu lençol de fantasma branco e esvaziei
um saco de farinha sobre ele. Logo depois,
enchi um balão enorme e peguei uma
buzina do tipo surpreenda-seus-ami- gos-
com-um-fantasma-sufocado.
Segurei a ponta do balão para que o ar
não escapasse, em seguida pus o lençol
cheio de farinha sobre minha cabeça para
que cobrisse a mim e ao balão. Eu estava
pronta.
Logo ouvi tia Tatá subindo as escadas
com suas enormes botas, seguida pelo som
assustado dos sapatos da Hotéis Enormes.
Estava na hora.
Abri a porta do meu quarto e, no velho
espelho do fim da escada, pude ver o reflexo
de um fantasma empoeirado aparecendo.
Não estava tão assustadora quanto queria,
mas estava bom. Era muito difícil descer
pelas escadas do sótão, mas consegui
chegar lá embaixo.
Então, subi no baú perto da janela e
me escondi atrás da cortina.
Isso! A emboscada estava pronta.
Eu podia ouvir tia Tatá e a Hotéis
Enormes logo no corredor. Tia Tatá falava
sobre como adorava as pias gotejantes do
banheiro, e a Hotéis Enormes falava consigo
mesma:
— Grande potencial... Charme antigo...
Hotel temático...
Isso é o que veremos, pensei. Pulei do
baú e buzinei.
Aiiieeeeeeeeeeeeee!
Foi maravilhoso. A Hotéis Enormes
ficou completamente pálida. Dava para
perceber que ela sabia que tinha cometido
um grave erro. Ela girou e gritou. Gritou
mesmo. Enquanto ela gritava, segurei a
cortina e sacudi bastante meus braços para
que a farinha voasse por todos os lados
criando uma névoa branca. A buzina do
fantasma sufocado foi ótima continuou
tocando e tocando — mas só para garantir
fiz uns barulhos horríveis também.
A Hotéis Enormes não estava
desistindo com facilidade. Seus gritos eram
incríveis — realmente lancinantes —, e ela
não parava nem para respirar. Tia Tatá
agarrou a Hotéis Enormes para tentar
acalmá-la, mas ela não queria se acalmar.
De jeito nenhum.
Foi então que um pouco de farinha
ficou preso na minha garganta e me fez
engasgar um pouco — bem, muito, na
verdade — e foi quando a Hotéis Enormes
parou de gritar e ficou me encarando,
apesar de ainda estar com a boca aberta
como se quisesse gritar.
Devagarzinho ela começou a caminhar
para trás pelo corredor e passou direto por
uma das teias de aranha mais antigas, na
qual a maior e mais peluda aranha morava
— e eu vi a maior e mais peluda aranha de
todas cair na sua frente. A Hotéis Enormes
soltou um grito agudo que fez com que
meus ouvidos apitassem. Ela correu escada
abaixo em dois segundos.
Fiquei impressionada.
— Foi rápido — eu disse, retirando
meu lençol e respirando um pouco de ar
puro sem farinha.
Tia Tatá me olhou furiosa.
— Sério, Araminta, o que você está
fazendo? — perguntou ela. — Não sei o que
deu em você. É a minha melhor farinha que
você está usando?
— É — eu disse. — Mas não funcionou.
Meus pés não saíram do chão nem uma vez.
Tia Tatá reclamou e catou as aranhas
que caíram de suas teias e ficaram cobertas
de farinha. Em seguida carregou-as para
baixo e limpou-as.
Sentei perto das cortinas mofadas em
meio a uma pilha de farinha e desembrulhei
meu lençol de fantasma. As coisas estavam
dando certo, pensei, mas eu sabia que tia
Tatá não desistiria com tanta facilidade.
Naquela noite, depois que tia Tatá me
contou uma história do Livro cor-de-rosa de
histórias para dormir de espíritos e
fantasmas e desceu para encher o
aquecedor de água, me levantei. Desci
sorrateiramente pelas escadas do sótão e
esperei nas sombras do lado de fora da
torre do tio Drac.
Quando a lua se levantou, a porta
vermelha se abriu, e o tio Drac saiu. Eu o
observei andando devagar pelas escadas até
o vestíbulo, onde tia Tatá esperava por ele
com sua garrafa térmica e seus sanduíches.
Ela deu-lhe um beijinho de despedida e um
tchau enquanto ele saía para trabalhar. A
porta da frente se fechou silenciosamente
atrás dele, e tia Tatá desapareceu de volta
para o porão.
Fui escondida lá para fora e alterei a
placa mais uma vez. Agora dizia:
Isso daria certo. Quem compraria uma
casa mal-assombrada?
Amanhã de sábado não foi uma boa
manhã. Tia Tatá estava limpando o
aquecedor — outra vez. Sempre fico longe
quando tia Tatá se aproxima do aquecedor,
mas hoje foi diferente. Queria reabastecer
de farinha a minha caixa de fantasma, já
que achava que, em breve, fosse precisar, e
tia Tatá guarda toda sua farinha na terceira-
dispensa à-esquerda-logo-depois-da-sala-do-
aquecedor.
Já tinha quase passado em segurança
pela sala do aquecedor quando tia Tatá
olhou para cima e me viu. Droga. Dava para
perceber que ia arrumar problemas. Ela
estava com uma escova enorme nas mãos e
tinha acabado de chutar um balde d’água.
Eu tinha razão; ela arrumou
problemas.
— Araminta, querida — disse ela —
Você pode, por favor, remontar o Cavaleiro
Horácio? Ele passou dois dias inteiros aos
pedaços.
Cavaleiro Horácio? Desde quando tia
Tatá se importava com o Cavaleiro Horácio?
— Eu preciso? — perguntei, irritada.
Tinha coisas melhores para fazer do que
remontar um lixo enferrujado. Por que a tia
Tatá sempre aparece quando você menos
quer vê-la?
— Sim, você precisa. — Tia Tatá
chutou a lataria. — Algumas pessoas
interessadas em comprar a casa estão
vindo, e eu acho que uma bela armadura no
vestíbulo causará uma boa impressão. As
pessoas gostam de armaduras. E,
Araminta...
— O quê? — eu disse.
— Quero tudo arrumado e bonito, por
favor! As pessoas vêm esta tarde.
— Esta tarde? — engasguei. — Mas
isso não me deixa tempo para... Oops!
— Para quê? — perguntou tia Tatá,
desconfiada, me olhando através dos óculos
fuliginosos.
— Para... bem... arrumar meu quarto —
eu disse, com minha voz mais gentil.
— Bem, é melhor você se apressar, não
é querida? disse tia Tatá. — E leve este
capacete horroroso com você.
Peguei o capacete do Cavaleiro
Horácio e saí do caminho da tia Tatá. Não
podia haver mais pessoas querendo ver a
casa, pensei. Será que eles não conseguiam
ler a placa lá fora?
Fui para o jardim ver se tia Tatá tinha
mudado mais uma vez, mas não. Ainda
dizia:
Eu não conseguia entender. Por que
alguém compraria uma casa mal-
assombrada? Mas, só para me certificar,
acrescentei um pouco mais à placa:
Joguei o capacete do Cavaleiro Horácio
no chão do meu quarto de sábado — que é o
meu preferido, já que você só consegue
chegar até ele subindo por uma escada de
corda e depois passando espremido por uma
pequena porta, o que mantém tia Tatá
longe. O problema era que o resto do
Cavaleiro Horácio ainda estava pelo chão do
meu quarto de quinta-feira, então demorei
horas para trazer os pedaços pelo corredor
e jogá-los pela porta. Tenho ótima mira, mas
devo admitir que nem todos os pedaços
passaram pela porta de primeira.
Comecei a remontar o Cavaleiro
Horácio e, enquanto descobria qual braço
ficava onde, tentava decidir qual seria o
meu plano para a tarde. Pensei em tentar o
Plano do Melaço na Maçaneta com o Arame
Invisível para Tropeço, apesar de também
precisar do balde de Lodo Surpresa, só para
garantir. Mas, fosse o que fosse que eu
fizesse, tinha que acabar de remontar o
Cavaleiro Horácio depressa, pois tia Tatá
com certeza apareceria para verificar o
trabalho.
Era muito difícil montar o Cavaleiro
Horário. Havia ainda mais pinos nele agora,
e muitos pedaços não se encaixavam onde
deveriam, não importava o quanto eu
forçasse. Era muito irritante.
Já era quase hora do almoço quando
consegui acabar de remontar o Cavaleiro
Horácio — todinho, quer dizer, exceto pelo
seu pé esquerdo. Seu pé esquerdo é o pé
esquerdo mais idiota que já vi.
Eu estava muito irritada, então disse
ao Cavaleiro Horácio exatamente o que
deveria acontecer.
— Está tudo bem para você, Cavaleiro
Horácio, sua velha lata enferrujada — eu
disse —, mas tenho coisas mais importantes
a fazer. Se eu não preparar meus planos,
pessoas muito idiotas que sequer sabem ler
uma placa perfeitamente óbvia vão comprar
esta casa, e nós teremos que nos mudar. E,
quando nos mudarmos, tia Tatá vai te jogar
na lata de lixo reciclável. E, em seguida,
você vai ser amassado como uma panqueca
e derretido, e vai se transformar em
centenas de latas... que provavelmente vão
ser preenchidas por comida de gato. Rá-rá!
Neste momento eu já estava
extremamente irritada com seu pé
esquerdo. Bati com ele de cabeça para
baixo no chão e ouvi um barulho. Sacudi
novamente, e então algo muito legal
aconteceu — uma pequena chave de bronze
caiu.
Dava para perceber que era uma chave
muito velha, já que estava bem gasta, como
se tivesse ficado no bolso de alguém por
centenas de anos. Mas a melhor parte era
que havia uma velha etiqueta marrom presa
a ela, e, na etiqueta, uma inscrição meio
apagada em letras muito antigas. Dava para
ler o que dizia:
Esta é a chave da Varanda
(Abre todas as portas)
“Varanda” era uma palavra engraçada,
e eu imaginei o que poderia significar.
Parecia o nome de uma terra distante ou de
alguma antiga cidade: subterrânea. Talvez,
pensei, esta chave pertencesse a um baú do
tesouro de uma ilha deserta chamada
Varanda — Repeti a palavra em voz dita
para mim mesma, imaginando as palmeiras
balançando e a água batendo nos meus pés,
e então percebi o que Varanda significava.
Era só a velha varanda chata que ficava em
cima do vestíbulo. E quem iria querer ir lá?
Eu! Eu iria querer ir lá. De repente
soube que era o lugar perfeito. Poderia
preparar minha Terrível Emboscada lá. E eu
sempre quis preparar uma Terrível
Emboscada. Nela tem de tudo, e faria o
balde de lodo parecer um piquenique de
domingo. Qualquer um que viesse comprar
a casa não duraria nem cinco segundos.
Dei uma última batida no pé esquerdo
do Cavaleiro Horácio e — isso! — se
encaixou novamente na ponta de sua perna
— E daí que estava virado ao contrário? Não
parecia incomodar o Cavaleiro Horácio, e,
certamente, não incomodava a mim. Eu
tinha coisas mais importantes para pensar.
Como de que forma chegar até a varanda. É
claro, eu sabia que só havia uma resposta
para isso — por uma passagem secreta.
Eu tenho um kit-passagem secreta,
igual ao meu kit-fantasma. Sempre quis
encontrar uma passagem secreta e agora
sabia que finalmente tinha a chave para
uma.
Primeiro, abri a caixa do meu kit-
passagem secreta e retirei uma lanterna,
um rolo de barbante e uns suprimentos
emergenciais de salgadinhos de queijo e
cebola.
Você precisa de uma lanterna, pois
passagens secretas são sempre escuras, e
também de um rolo de barbante para
conseguir achar o caminho de volta — eu
conto como isso funciona daqui a pouco.
Você precisa de suprimentos emergenciais
de comida, já que nunca sabe quanto tempo
vai ficar em uma passagem secreta, sabe?
Quer dizer, pode ser que demore
muito, e você tenha que ficar lá durante
dias. Semanas até.
Eu estava pronta para procurar a porta
secreta.
Achei que o lugar mais provável era no
painel de madeira debaixo da escada. Ele
parece oco quando você chuta. Mas
encontrar a porta não estava sendo tão fácil
quanto eu imaginei que seria, já que tudo
estava coberto pela tinta grossa marrom
preferida de tia Tatá. Quando olhei com
mais atenção, tive certeza de ter visto uma
depressão era forma de fechadura. Raspei a
tinta com a ponta da chave, e, lá estava —
uma pequena fechadura de bronze do
tamanho exato da pequena chave de bronze.
Encaixou perfeitamente. Girei a chave, e a
melhor coisa do mundo aconteceu uma
porta secreta se abriu.
Acendi minha lanterna e iluminei o
espaço através da entrada. Era exatamente
como uma passagem secreta deveria ser —
escura, empoeirada e muito, muito secreta.
Dava para perceber que ninguém tinha
estado lá em anos. Estranho, pensei, porque
agora eu estava entrando. Sozinha. Não
estou dizendo que queria que tia Tatá
estivesse lá comigo agora, já que ela era a
última pessoa que eu gostaria de ver, mas
não me importaria de ter um amigo ou
alguém assim. Não quero que você pense
que eu estava com medo de entrar sozinha,
pois já estou muito acostumada a fazer
coisas sozinha e é ótimo.Não tem problema
nenhum.
Agora me deixe explicar a história do
barbante. Quando você entra em uma
passagem secreta, tem que amarrar a ponta
do rolo em alguma coisa e ir desenrolando
enquanto anda, para que você possa achar o
caminho de volta.
Havia um prego atrás da porta secreta,
então foi nele que amarrei o barbante.
Perfeito.
Depois fechei a porta para que a tia
Tatá não percebesse nada de estranho,
acendi minha lanterna e fui andando pela
passagem, desenrolando o barbante
enquanto andava.
A passagem secreta era muito
estranha. Muito estreita, e cheia de teias de
aranha, e tinha um cheiro esquisito, meio
úmido e mofado. Acho que ficava atrás do
painel de madeira da casa, já que tinha
paredes de madeira bem arranhadas.
Apesar de ser estreita, era bem alta e fácil
de andar, apesar de eu ter que continuar
tirando teias muito grossas do caminho.
Ainda bem que não me incomodo com
aranhas, já que havia dúzias delas. Algumas
bem gordas.
Eu não estava com medo. Não de
verdade. Afinal de contas, ainda estava na
minha casa, não estava? Mas foi um pouco
estranho quando a passagem acabou
repentinamente numa plataforma de
madeira. Eu não tinha certeza se subia ou
não na plataforma. Qualquer um que saiba
sobre passagens secretas já ouviu falar em
armadilhas e coisas do tipo, então parei e
pensei sobre o que deveria fazer. Iluminei o
ambiente com minha lanterna, mas não
ajudou muito. Quando olhei mais de perto,
vi que a plataforma tinha lados, como caixas
de madeira, e havia cordas em ambos os
lados. Parecia com alguma coisa, mas eu
não sabia o quê. E depois me lembrei!
Era um minielevador.
Não, não estou brincando, eles de fato
existem. Sabia disso, pois nós tínhamos um
igualzinho na primeira-cozinha-à-direita-
depois-da-lavanderia, e era assim que tia
Tatá o chamava. Eu me lembro de um dia
chuvoso em que estava tão entediada que
entrei no elevador e fui direto para a sala de
jantar. Foi a coisa mais divertida do mundo,
e passei a tarde inteira subindo e descendo
até que tia Tatá me pegou no flagra. Depois
disso ela pregou várias tábuas na por tinha,
e não pude mais entrar, o que achei muita
maldade.
Então pisei na plataforma e puxei a
corda. A plataforma rangeu um pouquinho,
mas nada aconteceu. Coloquei minha
lanterna no chão e usei as duas mãos para
puxar a corda com muita força — e a
plataforma se moveu! Acho que essa parte
foi um pouco assustadora, já que a
plataforma começou a descer pelo que
parecia uma chaminé escura, e eu não sabia
para onde estava indo. Fiquei muito feliz
quando vi que o topo de uma velha porta
apareceu.
Parei a plataforma do lado de fora da
porta. Dava para perceber que era uma
porta bem velha, já que tinha dobradiças de
ferro e parecia fazer parte de um castelo ou
coisa parecida. Mas eu não vi nenhuma
maçaneta; quando empurrei, ela não se
mexeu. Porta idiota. Dei um empurrão bem
forte, até chutei, mas nada aconteceu.
Ela nem se mexia.
Então me lembrei do que
dizia a etiqueta da chave de
bronze: “Abre todas as portas”.
Eu não acreditava real-
mente que a chave fosse caber,
já que era tão pequena em rela-
ção à porta, mas quando olhei com
cautela vi uma pequena fechadura
de bronze, igual à que havia na porta
que levava á passagem secreta.
A chave girou com muita facilidade, e a
porta abriu.
Iluminei o caminho com minha
lanterna, que clareou uma pequena sali-
nha. Havia uma pequena lareira, alguns
quadros muito escuros e empoeirados e
enormes velas em castiçais de bronze
presos
á parede. No canto estava uma velha cadei-
ra quebrada com alguns livros carcomidos
empilhados sobre ela, e no chão em frente à
lareira havia uma velha colcha. Sim-
plesmente fiquei ali parada por um
momento, quase prendendo a respiração.
Era tão quieto que eu mal ousei entrar.
Mas eu entrei.
Fui na ponta dos pés e passei a
lanterna pelas paredes, procurando por
uma porta que levasse à varanda. E é claro
que não havia janelas, mas você não pode
esperar que uma sala secreta tenha janelas
com vista para o meio da casa, pode? Mas,
como certamente haveria, achei uma porta.
Ótimo, pensei. Só precisei de três passos
para atravessar a sala. Pus a chave na
fechadura da porta, e ela se abriu. Quase
passei direto, já que a essa altura eu estava
louca para chegar à varanda, pois o tempo
estava passando, mas eu sabia que você
sempre tem que olhar para onde está indo
numa passagem secreta. Ainda bem que
olhei, porque a porta abria e levava a nada.
Aliás, a um grande e profundo buraco.
Assustador.
Um sopro de vento morno e mofado
veio do buraco. Tinha um cheiro fuliginoso e
pegajoso ao mesmo tempo. Apontei minha
lanterna e vi que havia uma velha escada de
madeira levando a... onde?
Mas eu não queria descer as escadas;
queria encontrar uma varanda. Então voltei
à sala e fiz tudo o que você deve fazer para
que uma porta secreta apareça. Tentei girar
os castiçais, mas eles não se mexiam. Olhei
atrás de todos os quadros, mas não havia
nada. Até dei um chute na velha lareira,
mas era dura como uma pedra. Não havia
nenhum caminho que levasse á varanda —
isso era certo.
Então decidi descer a escada.
Descê-la foi um pouco assustador, ela
sacudia e fazia muitos barulhos, mas isso é
coisa que devemos esperar numa passagem
secreta. Em seguida a porta bateu, e eu
quase caí. Foi aterrorizante.
Desci pelas escadas, o que foi bastante
difícil, já que eu só podia me segurar com
uma das mãos, pois a outra estava com a
lanterna — o rolo de barbante eu segurei
com os dentes.
Não gosto do sabor de barbante. Outra
coisa de que não estava gostando muito era
que o ar estava ficando cada vez mais
quente. Eu me lembrei de como o calor
aumenta à medida que você se aproxima do
centro da Terra, e quanto mais eu descia as
escadas, mais eu imaginava se estava me
aproximando daquela parte do centro da
Terra em que pedras derretem. Mas,
enquanto imaginava se deveria voltar para
cima ou não, o fim da escada surgiu.
Parecia sólido o suficiente, então concluí
que ainda não tinha chegado às pedras
derretidas.
Estava num verdadeiro túnel agora,
com lados de tijolos e um chão arenoso.
Decidi seguir o túnel um pouco, caso a
varanda estivesse na próxima esquina. O
túnel ziguezagueava em todas as direções, e
o ar ficou ainda mais quente, o que não
fazia o menor sentido para mim, já que não
estava descendo mais.
E então eu ouvi — um barulho metálico
horrível, de fazer ranger os dentes e dar
calafrios nos dedos dos pés. O exato tipo de
barulho que você ouve quando um fantasma
arrasta uma bola com uma corrente. Ouvi
dizer que estes fantasmas que carregam
bolas e correntes não são fantasmas legais
de se encontrar. Imagino que eles sejam
rabugentos por terem que arrastar todas
aquelas coisas para todo lugar que vão.
Parei onde estava e desliguei minha
lanterna para que o fantasma das correntes
não me visse, mas ficar no escuro não me
fez sentir nem um pouco melhor. Aliás, me
fez sentir muito pior, então acendi a
lanterna novamente.
Foi então que a gritaria começou.
Gritos horríveis, de provocar frio na
espinha. Eles preencheram a passagem
secreta e ecoaram através de mim. Foi o
som mais assustador que já ouvi na vida.
E o pior de tudo, eu sabia exatamente
o que significava — que o fantasma das
correntes estava vindo me pegar.
Tia Tatá pode pensar que é muito
engraçado sair por aí assustando pessoas
que estão explorando passagens secretas,
mas eu não acho. Aliás, eu acho que é de
muito mau gosto, como diria o tio Drac.
Não demorei muito para perceber que
fantasmas de correntes não gritam
“PORCARIA DE AQUECEDOR!”. Aliás, não
acho que fantasmas de correntes tenham
qualquer interesse em aquecedores.
PORCARIA DE AQUECEDOR! EU
ODEIO ESTA DROGA! — Eu podia ouvir tia
Tatá gritando através da parede da
passagem secreta com tanta clareza quanto
se estivesse ao lado dela. Ainda bem que
não estava, já que também dava para ouvi-la
chutar o compartimento de carvão e jogar a
pá contra a parede.
Mas o tempo estava se esgotando.
Logo um monte de pessoas que gostava de
lugares mal-assombrados estaria andando
pela minha casa, resolvendo que eles vão
morar nela em vez de mim. E, se eu não
tomasse cuidado, ficaria presa numa
passagem secreta e não poderia fazer nada
a respeito. Decidi que tinha que desistir da
idéia da varanda e voltar para planejar uma
surpresa com o balde de lodo. Era melhor
que nada.
Já que tia Tatá tinha me dado um
tremendo susto, queria dar um nela antes
de ir. Procurei algum buraquinho na parede
por onde apontar minha lanterna para que
ela pensasse que havia um fantasma na sala
do aquecedor — e foi quando o vi.
Eu vi um fantasma.
Ele estava sentado num canto escuro,
um pouco abaixo da passagem secreta.
Primeiro fiquei tão surpresa que pensei que
ele fosse apenas um menino comum; então
eu disse:
— Ei! O que você está fazendo aqui?
Mas, quando ele olhou para mim, havia
algo em seu rosto que me deu calafrios, e
eu soube que ele era um fantasma. Ele tinha
olhos molhados e fantasmagóricos, e seu
rosto era meio transparente e brilhava com
uma luz clara. Imaginei que ele fosse um
fantasma de tempos antigos, já que tinha
um corte de cabelo de cuia e vestia uma
túnica com um grande capuz. Ele também
tinha uma adaga presa em seu cinto, o que
achei muito legal — tia Tatá não me deixa
ter uma adaga, não importa o quanto eu
peça. Aliás, achei que já o tinha visto antes
— ele parecia com as ilustrações medievais
do meu livro de história dos tempos dos
cavaleiros.
Fiquei satisfeita por ele não ser um
fantasma de correntes rabugento. Fui até
ele e perguntei, só para ter certeza:
— Você é um fantasma de verdade?
Ele não respondeu — aliás, parecia um
pouco assustado, como se ele tivesse visto
um fantasma. Era um pouco decepcionante,
na verdade, já que estava tudo às avessas.
Eu é que deveria me assustar com ele.
— Então, qual é o seu nome? —
perguntei.
Ele continuou sem
responder, o que eu achei uma
grosseria. Tia Tatá também teria
dito que era rude da parte dele.
O menino desviou o olhar e ficou
encarando o chão, e dava para
perceber que ele estava torcendo para
que eu fosse embora. Mas eu não ia aban-
donar o primeiro fantasma que encontrei de
jeito
nenhum, principalmente porque já fazia
muito tempo que eu procurava por um.
— Você deve ter um nome — eu disse.
Sempre imaginei que um fantasma fosse ser
mais divertido do que este demonstrava ser.
Mas em seguida ouvi um barulho que fez
com que os cabelos da minha nuca se
arrepiassem. Um sussurro estranho, oco,
preencheu o ar a minha volta.
— Edmundo... — dizia o sussurro. Era
ele, o menino-fantasma, falando. E era
assustador.
Edmundo flutuou do chão e veio em
minha direção. Dei um passo para trás, já
que de repente não tinha mais tanta certeza
de que queria conversar com um fantasma.
E então Edmundo disse algo muito estranho
— ele disse:
— Você é a Tábita?
Ele falou com um sotaque estranho
que lembrava uns franceses que
apareceram em casa uma vez, achando que
era uma pousada. Eles não ficaram muito
tempo.
— Não — eu disse a ele. — Eu sou... Eu
sou Araminta.
— Ótimo — disse Edmundo, e meio que
subiu pelas paredes novamente e começou a
andar de cabeça para baixo no teto. — Eu
não gosto da Tábita — disse ele, com seu
sotaque estranho. — A Tábita é barulhenta.
Ele tinha razão, pensei. Havia
momentos em que eu também não gostava
da Tábita, e Tábita era definitivamente
barulhenta. Aliás, na hora em que Edmundo
disse isso, eu podia ouvir tia Tatá jogando
carvão no aquecedor furiosamente e
batendo a porta com um barulhão. Percebi
que Edmundo devia ter ouvido muitos dos
ataques de raiva de tia Tatá ao longo dos
anos.
Então, quando eu estava começando a
gostar de Edmundo, ele disse:
— Você precisa ir agora.
— O quê? — perguntei a ele.
— Você precisa ir. Não pode se
aproximar mais.
— Por quê?
Ele não respondeu. Simplesmente
flutuou para cima e para baixo na minha
frente, com os braços esticados, como se ele
pudesse me impedir de passar por ele. Ele
nem precisava ter se incomodado, já que eu
não passaria por um fantasma de jeito
nenhum. Brrr. De jeito nenhum.
— Bem, eu não quero me aproximar
mais, mesmo — disse a ele. — Eu só vim
para procurar o caminho para a varanda.
— A varanda não fica aqui embaixo —
disse
Edmundo, que tinha começado a girar
lentamente por alguma razão estranha, não
me pergunte por quê. — Então você deve ir.
Adeus.
Pareceu que Edmundo sabia onde a
varanda ficava, então perguntei se ele me
levaria até lá.
— Se eu te levar até a varanda, você
vai embora? — perguntou ele.
— Não fico onde não me querem.
Tenho coisas melhores para fazer.
— Bem, não quero ficar aqui embaixo
— disse a ele.
— Você não quer? — disse Edmundo.
— Ótimo. Siga-me.
Então o segui.
Edmundo brilhava muito, então
desliguei minha lanterna para economizar
as pilhas. Essa é uma preocupação que você
sempre deve ter numa passagem secreta, já
que nunca se sabe quanto tempo vai ficar
nela, e o pior desastre que pode acontecer é
estar numa passagem secreta sem nenhuma
luz. Seguia Edmundo enquanto ele flutuava
pela passagem, e pensei na tia Tatá do
outro lado da parede e no ataque que ela
daria se soubesse o que eu estava fazendo
naquele momento — mas não seria um
ataque tão forte quanto o que daria quando
eu completasse minha Terrível Emboscada
na varanda.
Logo eu estava subindo novamente a
velha escada, com Edmundo levitando à
minha frente. Pensei no quanto era mais
fácil para um fantasma do que para uma
pessoa subir escadas. De alguma forma não
parecia justo, principalmente porque eu
tinha que carregar minha lanterna e
desenrolar meu rolo de barbante enquanto
ia.
Quando chegamos ao topo, Edmundo
parou do lado de fora da porta.
— Vá em frente — disse a ele. Eu não
sabia por que ele havia parado, já que todo
mundo sabe que fantasmas podem
atravessar portas.
— Esta porta é difícil — disse ele. — Eu
não devo vir aqui. Não é meu quarto.
— Tudo bem — eu disse. — Tenho a
chave.
Edmundo pareceu surpreso.
— Você tem a chave? — ele disse,
numa espécie de murmúrio, e em seguida
começou a perder brilho e estremecer.
Então de repente ele se foi, direto pela
porta. E fiquei ali, no topo da terrível
escada velha no escuro. Ótimo. Depois de
ficar horas procurando a chave, destranquei
a porta e caí dentro da sala. Edmundo
estava flutuando por lá, apenas me olhando
de uma maneira que não ajudava em nada.
— Então, onde exatamente fica a
varanda? — perguntei enquanto me
levantava.
Edmundo apontou para a lareira.
— É por ali.
— Bem, isso é uma burrice — eu lhe
disse. — Como é que eu vou passar por uma
lareira? É tudo muito fácil para você. Você é
um fantasma, mas eu não posso
simplesmente atravessar uma velha lareira
cheia de fuligem...
— Você fala igual à Tábita — disse
Edmundo. — Você faz meus ouvidos
doerem. Onde está a chave?
— Que chave? — perguntei confusa.
— A chave da varanda — respondeu
ele, como se eu fosse muito burra ou coisa
do tipo. — A que você carrega com sua
pessoa.
— Com minha o quê? — eu disse, e em
seguida percebi o que ele queria dizer e
peguei a chave do meu bolso. — Aqui está
— disse e entreguei a ele. É claro que ela
atravessou diretamente sua mão e caiu no
chão. Dããã. Por um momento esqueci que
ele era um fantasma — Edmundo podia ser
tão irritante quanto um menino de verdade.
— Ponha a chave na fechadura — disse
ele, e mostrou uma pequena fechadura no
meio da lareira que eu não tinha notado
antes. — Ela abre o caminho para a
varanda. Adeus. — Então ele partiu como
uma bala através da porta e desapareceu.
Pus a chave na fechadura e girei.
Funcionou! A lareira deslizou de lado e um
brilhante raio de luz cortou a escuridão da
sala. Passei espremida pela abertura e
finalmente cheguei... à varanda.
Era estranho estar a metros do
vestíbulo. Tudo parecia tão pequeno e
distante. Deve ser assim que os pássaros se
sentem o tempo todo quando estão nas
enormes e velhas árvores do jardim. Eu me
sentia tão feliz por finalmente estar na
varanda que quase gritei para que tia Tatá
viesse ver onde eu estava — por sorte, se-
gurei-me a tempo.
Mas a melhor coisa de todas foi
quando olhei para baixo e percebi que a
varanda era bem acima do chão em frente à
porta principal, onde as pessoas que nunca
vieram a casa sempre param e ficam
olhando. Elas também quase sempre ficam
de boca aberta, apesar de não parecerem
falar muito — e eu sei que elas ficam desse
jeito por um bom tempo.
Era perfeito. A Terrível Emboscada de
Araminta ia ser fantástica.
Voltei pelo minielevador e pela
passagem secreta, mas, quando abri a
pequena porta debaixo das escadas, alguém
me esperava.
Adivinha quem era? Não, não era a tia
Tatá. Não, também não era o tio Drac. Era o
Cavaleiro Horácio.
— Bom-dia! — disse ele com uma
estranha voz explosiva, que vinha de algum
lugar dentro da sua armadura. Era tão
fantasmagórica que fiquei toda arrepiada e
meus joelhos ficaram esquisitos.
— B-bom-dia, Cavaleiro Horácio —
engasguei. Pensei em fugir pela passagem
secreta, mas não achei que minhas pernas
fossem funcionar bem.
O Cavaleiro Horácio se aproximou e
pareceu cambaleante. Eu me afastei; não
apostava em suas chances de permanecer
montado por muito tempo — já que eu é que
o tinha remontado — e adoraria que um
pedaço de lata enferrujada não caísse em
cima de mim naquele momento.
Achei que talvez devesse explicar as
coisas. Sei que explicações nem sempre
ajudam, principalmente se a pessoa para
quem você for explicar for a tia Tatá, mas
eu imaginei que o Cavaleiro Horácio
pudesse ser diferente. Então, disse com
minha melhor voz educada:
— E... eu sinto muito, Cavaleiro
Horácio. Mas eu... ãã... pensei que você
fosse apenas... hum...
— Uma lata velha, mofada e
enferrujada. — O Cavaleiro Horácio
completou a frase para mim, o que tia Tatá
diz que é grosseiro.
— Ah... — resmunguei enquanto
tentava me lembrar do que mais eu
chamara o Cavaleiro Horácio enquanto o
remontava. Aliás, para mim, ele era uma
lata velha mofada e enferrujada, mas não
esperava que fosse uma lata enferrujada
falante.
Achei melhor verificar a situação do
fantasma com o Cavaleiro Horácio, então
perguntei:
— Você também é um fantasma?
— Também por quê? — protestou ele.
— Ah, além de ser um Cavaleiro Real, você
quer dizer. Sim, Senhorita Fantasmim, de
fato sou um fantasma. O fantasma do
Cavaleiro Horácio Harbinger de Hérnia
Vestíbulo, a seu dispor. — E fez uma
reverência. Três pinos pularam de seu
pescoço e rolaram pela escada.
Uau. Isso significava que ele era meu
segundo fantasma da manhã — qual a
probabilidade de isso acontecer?
Obviamente, era típico, pensei. Passei anos
procurando por um fantasma e aparecerem
dois de uma vez, e logo quando tia Tatá
estava prestes a tirar a mim e ao tio Drac da
casa.
Mas tudo fazia sentido agora. O
Cavaleiro Horácio nunca ficou muito tempo
no mesmo lugar, e eu sempre pensei que tia
Tatá o movesse durante a noite só por farra.
Era o tipo de brincadeira boba que tia Tatá
gostava. Mas agora eu entendia — o
Cavaleiro Horácio andava sozinho.
— Sinto muito pelo seu capacete...
bem... quero dizer, pela sua cabeça — disse
eu, tentando não lembrar de que a havia
chutado escada abaixo. Esperava que ele
também não se lembrasse.
— Deu-me uma dor de cabeça horrível
— disse o Cavaleiro Horácio.
— Oh! Bem, eu imagino que sim —
respondi em apoio.
— Andar também não tem sido fácil —
disse ele. Nós dois olhamos para o seu pé
esquerdo, que ainda estava ao contrário.
— É... Vejo que não — disse com minha
melhor voz de solidariedade.
— Mas — disse ele, de forma súbita e,
ao mesmo tempo, tagarela — não é ISSO
que me interessa. O que está me
preocupando é essa história de vender a
casa.
— Ah, que bom — disse a ele —,
porque isso também está me deixando
aflita.
O Cavaleiro Horácio balançou um
pouco, e me desviei de uma mola que voou
de seu pescoço e foi parar no chão.
— E esta história de... bicicletagem —
disse ele.
Por um momento fiquei confusa, já que
eu tinha certeza de que jamais havia visto o
Cavaleiro Horácio numa bicicleta. E então
entendi o que ele queria dizer.
— Você quer dizer reciclagem — disse
a ele.
— Quero? — disse ele. — Bem, eu não
gosto nada desse assunto, seja qual for o
nome. Jamais gostei de latas. Impossíveis de
abrir. Não suporto comida de gato.
E então, com um barulho horroroso,
o Cavaleiro Horácio se levantou o mais reto
que podia, o que não era tão reto assim, — e
respirou fundo.
— Algo — disse tão alto que tive medo
de que a
tia Tatá escutasse — algo deve ser feito.
Esta casa não pode ser vendida!
— Exatamente! — concordei. — E eu
tenho uma ótima idéia. Vou preparar minha
Terrível Emboscada da varanda e...
— Da minha varanda? — interrompeu
ele. — No meu quarto?
Opa — então era o quarto do Cavaleiro
Horácio. E, pelo jeito, ele não gostava que
ninguém entrasse lá. Eu entendia como ele
se sentia, já que também não gosto que tia
Tatá entre nos meus quartos. Ela sempre dá
um jeito de bagunçar alguma coisa.
Achei que devesse explicar.
— Perdão, Cavaleiro Horácio, mas eu
encontrei a chave no seu pé, e...
Mas ele interrompeu novamente.
— Eu Sei — disse ele, sacudindo seu pé
esquerdo como se houvesse pinos e agulhas
nele, o que eu sabia que não tinha, pois eu
já tinha esvaziado aquele pé; só encontrara
a chave. — Eu me lembro muito bem. Já
estava com minha cabeça a essa altura.
— Eu sinto muito — eu disse. — Você
quer sua chave de volta?
O Cavaleiro Horácio balançou a cabeça
lentamente e fez um barulho horrível, como
um moedor de pimenta.
— Por favor, fique com a chave, srta.
Fantasmim — disse ele. — Eu ficaria muito
satisfeito se você utilizasse minha varanda
para a sua Terrível Emboscada. Eu mesmo
já realizei terríveis emboscadas lá ao longo
dos anos. Elas podem ser muito eficientes.
Vou pedir que meu fiel escudeiro, Edmundo,
ajude-a.
A-há. Então era isso que Edmundo era,
pensei.
— Muito obrigada, Cavaleiro Horácio
— disse.
— De nada, srta. Fantasmim —
respondeu ele e se curvou.
— Cuidado! — gritei, mas era tarde
demais. A cabeça do Cavaleiro Horácio caiu
e rolou pelo corredor. Consegui pegar logo
que começou a descer pela escada, mas
infelizmente tia Tatá me viu enquanto
atacava algumas teias de aranha logo ao pé
da escada.
— Você ainda não acabou de montar o
Cavaleiro Horácio, Araminta? — gritou ela
ao mesmo tempo em que deixava centenas
de aranhas sem ter onde morar. Tia Tatá
gosta de deixar aranhas e pessoas sem ter
onde morar.
— Estou quase acabando, tia Tatá —
respondi, e me apressei para encontrar o
Cavaleiro Horácio. Ele estava sentado no
degrau debaixo, parecendo surpreso. Bem,
eu acho que era como ele estava parecendo,
apesar de ser difícil dizer. Botei sua cabeça
no lugar. Fui mais cuidadosa desta vez e
deu para saber que tinha encaixado
direitinho quando ouvi um pequeno clique
ao pôr a cabeça sobre seus ombros.
— Ah, assim é melhor — disse ele. —
Meu torcicolo sumiu completamente. — Ele
mexeu a cabeça de um lado para o outro, e
dessa vez não fez nenhum barulho de
moedor de pimenta. Fiquei satisfeita.
Depois ele se apoiou no corrimão, se
levantou, de uma forma quase ereta, e
disse:
— Bem, tudo certo, então, srta.
Fantasmim. Prepare sua emboscada e deixe
o resto comigo.
— Ótimo — respondi.
— Perfeitamente. E diga ao jovem
Edmundo que mandei que lhe desse toda
assistência necessária. Até nos
encontrarmos novamente, Srta. Fantasmim.
— Ele começou a se curvar, mas depois
mudou de ideia. Afastou-se, meio sorra-
teiramente, andando de um lado para outro
até chegar a um canto escuro ao pé da
escada, onde ficou.
Aquele estava se tornando um ótimo
dia, no fim das contas — uma passagem
secreta, dois fantasmas e uma Terrível
Emboscada a caminho. O que poderia ser
melhor?
Uma pessoa precisa de muitas coisas
para uma Terrível Emboscada. E a maioria
das coisas de que eu precisava era —
morcegos. Muitos e muitos morcegos.
Então fui até a torre do tio Drac para
pegar o máximo que conseguisse. Sou muito
boa em capturar morcegos, já que sempre
ajudo tio Drac com eles quando escapam.
Tia Tatá detesta morcegos; acha que eles
vão querer fazer ninhos no seu cabelo, mas
nenhum morcego que se dê ao respeito
jamais iria querer sequer chegar perto do
cabelo da tia Tatá: ele é cheio de grampos.
Eles iam virar espetinhos de morcegos em
cinco segundos.
Enfim, encontrei meu saco de
morcegos e logo estava me arrastando
cuidadosamente por uma viga no alto da
torre. Tio Drac dormia profundamente,
roncando em seu saco de dormir, que ficava
pendurado e balançava a cada ronco. Havia
uma multidão de morcegos em volta dele,
mas eu não acho que os morcegos estavam
roncando. Ou talvez eu apenas não pudesse
escutá-los. Talvez o ronco dos morcegos
seja grave demais para que os humanos
escutem.
Aqui, morcegos sussurrei c botei o má-
ximo possível no saco. Os morcegos não se
importavam; eles gostavam do meu saco de
morcegos. Bom, menos o Morcegão, que
não gosta de nada, já que é um morcego
velho e rabugento. Mas eu queria muito ter
o Morcegão na emboscada — imagino que
ele poderia ser bastante assustador. Peguei-
o quando ele não estava olhando, mas ele
gritou muito alto.
Tio Drac parou de roncar e se mexeu
um pouco em seu saco de dormir; congelei.
Não queria que ele acordasse de jeito
nenhum, pois sabia que ele não deixaria eu
pegar nenhum de seus preciosos morcegos,
ainda que eles fossem salvar a casa de um
bando de pessoas idiotas que queriam tirá-
la de nós. Os morcegos do tio Drac são mais
importantes para ele do que qualquer coisa
no mundo.
Quando havia morcegos o suficiente,
levei todos para o quarto do Cavaleiro
Horácio e os deixei dependurados no
escuro. Eles pareciam muito felizes.
A próxima coisa que precisava para
minha Terrível Emboscada era... gelatina de
morango. Isso era mais difícil, porque teria
que cruzar o território da tia Tatá para
chegar à quarta-cozinha-à-direita-depois-da-
sala-do-aque- cedor. Passei pela sala do
aquecedor a toda velocidade e não vi a tia
Tatá em lugar nenhum — apesar de que
havia um enorme monte de fuligem no
canto, então eu sabia que ela apareceria
logo para varrer.
Em poucos segundos, eu estava na
quarta — cozinha-à-direita-depois-da-sala-
do-aquecedor e encontrei o que estava
procurando: uma caixa enorme de mistura
para gelatina de morango extragrudenta.
Enchi dois baldes e voltava devagarzinho
pelo corredor do porão com eles quando,
obviamente, ouvi tia Tatá.
— É você, querida? — gritou ela.
Detesto quando a tia Tatá diz “querida”
desse jeito, através de dentes cerrados.
Sempre significa problema. Acelerei o
máximo possível, mas era tarde demais. É
impossível escapar da tia Tatá, não importa
o quanto você tente. Enquanto eu patinava
através da porta aberta da sala do
aquecedor, a montanha de fuligem falou
comigo.
— Muito bem, querida — disse o monte
de cinzas. — É muito bonito de sua parte
limpar seus quartos. Faz muita diferença se
as pessoas virem uma casa bonita e limpa.
Só espero que eles também vejam um
aquecedor limpo.
O monte de fuligem se sacudiu e deu
para ver que, na verdade, era tia Tatá com
uma vassoura.
— Sabe, estou sentindo que essas
pessoas serão perfeitas para a casa — disse
ela.
Escapuli com meus baldes.
— Sentindo... — murmurei. — Vou
fazer eles sentirem uma coisa.
Logo, tinha tudo que precisaria para a
Terrível Emboscada. Eu tinha:
uma bolsa grande de aranhas variadas
uma pilha enorme de fronhas
um barril enorme de buzinas de
fantasmas sufocados
uma caixa enorme de balões um saco
gigante de farinha
Levei o material para o quarto do
Cavaleiro Horácio e despejei tudo no chão,
formando uma enorme pilha. Ufa. E em
seguida alguém tossiu. Dei um salto de uns
três metros no ar e quase caí dentro de um
balde de gelatina de morango
extragrudenta.
— Olá — disse Edmundo.
— Não se deve andar por aí assustando
as pessoas desse jeito — eu disse a ele —,
principalmente, se você for um fantasma.
Alguém pode acabar se machucando.
— Mas o Cavaleiro Horácio mandou
que eu a ajudasse — disse Edmundo. — Ele
disse que algumas pessoas estavam vindo, e
que iam colocá-lo em uma lata de lixo com
algumas bicicletas e transformá-lo em
comida de gato. Mas eu não entendo por
que alguém faria isso.
— É por causa da Tábita — eu disse a
ele.
— Ah — disse Edmundo —, entendi.
Depois disso Edmundo ajudou
bastante. Primeiro preparamos os
“fantasmas” — Edmundo encheu os balões,
e eu coloquei as buzinas. Amarrei um nó
corrediço nas pontas para ativá-los mais
depressa. Botei os balões nas fronhas e
joguei farinha em cima deles; em seguida,
abri a lareira, e Edmundo transportou os
“fantasmas” até a varanda. Era perfeito —
eles oscilavam logo acima do
local onde as pessoas sempre
pa-
ravam de boca aberta. Por último,
carreguei
os baldes de gelatina de morango
extragru-
denta e os alinhei no limite da
varanda. Dei-
xamos os morcegos dormindo no
quarto do Cavaleiro Horácio até
que
eles se tornassem necessários. Em
seguida, Ed-
mundo e eu sentamos atrás dos
baldes e espe-
ramos. Estávamos prontos para qualquer
coisa.
Não precisamos esperar muito — logo
alguém estava batendo à porta da frente
com tanta força que fiquei surpresa por a
porta não ter caído, como aconteceu na
semana passada.
Em poucos segundos, tia Tatá já estava
no topo da escada do porão. Ela ainda
estava coberta de fuligem e olhava em volta
para ver se eu ia tentar apostar corrida com
ela até a porta primeiro, como eu sempre
faço. Ela pareceu muito satisfeita quando
percebeu que eu não estava lá; partiu em
disparada pelo vestíbulo como se fosse a
maior aranha que já se viu e abriu a porta
da frente com um golpe violento,
espalhando fuligem por todo lugar.
Esperando na entrada estavam as
pessoas mais estranhas. Edmundo olhou
para elas como se jamais tivesse visto coisa
igual na vida — o que eu imagino que não
tenha visto mesmo, já que a última vez que
ele tinha vivido tinha sido há uns
quinhentos anos.
A primeira pessoa na entrada era uma
mulher baixa e redonda, de óculos escuros e
com um vestido rosa brilhante. Ela segurava
um gato preto extremamente gordo. Quem
leva o gato para ver uma casa? Estranho.
Depois, havia um homem magro e
muito alto. Ele vestia um casaco verde
brilhante e longas botas amarelas e
pontudas. Na cabeça, tinha um chapéu-coco
azul com um pequeno sapo verde em cima.
Achei que fosse um sapo empalhado até que
ele pulou da cabeça do homem e caiu na
menor pessoa na entrada. A menina parecia
muito chata, na verdade. Tinha cabelo
castanho curto e vestia uma camisa azul de
uniforme de escola e uma saia cinza. A
única coisa minimamente interessante a seu
respeito era que, agora, o sapo estava em
cima da sua cabeça. Mas ele também logo
se encheu e pulou de volta para o chapéu
azul.
Tia Tatá olhou para as pessoas
estranhas como se fossem as melhores
coisas que ela tinha visto o dia todo.
— Que bom vê-los! — disse ela, com
sua melhor voz educada. — Entrem.
— Obrigada — disse a mulher de
óculos escuros. — É um prazer conhecê-la,
senhora... ah?
— Fantasmim — disse tia Tatá. —
Tábita Fantasmim.
— Eu sou Brenda Magórica — disse a
mulher de óculos escuros. — Este é o meu
marido, Barry, e minha filha, Vanda. Nós
vimos seu belo sinal e adoraríamos comprar
sua casa.
— Ótimo — disse tia Tatá. — Entrem.
As pessoas estranhas que queriam
roubar minha casa entraram pelo vestíbulo
e pararam bem onde eu esperava que
parassem — logo abaixo da varanda.
Perfeito. E então fizeram exatamente o que
eu esperava que fizessem — olharam em
volta impressionados, com as bocas abertas.
Fantástico!
— Preparado? — pergun-
tei a Edmundo. Ele fez que sim com a
cabeça.
Então soltei os “fantasmas”.
UHEEEEEEEEEEEEEE!
EEEEEEEIIIIIIIIIIIIII!
IOOOOOOOOOEEEEEE!
EEEEEEEEEEE!
Foi perfeito! Um enxame de fronhas
brancas
berrantes voou e rodou. Nuvens espessas de
farinha
caíram em cima das pessoas estranhas,
seguidas pelas
fronhas. Uma delas caiu bem em cima da
pe-
quena chata de um jeito que ela também
ficou
parecendo um fantasma. Só dava para ver
suas perninhas magricelas.
Em seguida, empurrei os baldes de
gelatina de morango extragrudenta.
SPLATTTTTTTT!
Foi perfeito. A gelatina estava no
ponto. Pedaços horríveis e grudentos de
meleca vermelha caíram bem em cima
deles. Deslizaram por seus pescoços e
entraram em suas roupas.
Então veio a melhor parte. Edmundo
acordou os morcegos e os expulsou do
quarto do Cavaleiro Horácio. Eles saíram de
lá como uma enorme nuvem preta e foram
para todo lugar. Todo o vestíbulo virou uma
tempestade de morcegos voando. Foi
fantástico. Tia Tatá gritou quase tão alto
quanto a Hotéis Enormes tinha gritado. E,
enquanto ela gritava, cortei as teias de
aranha.
Choveram aranhas. Aranhas bem
gordas. Centenas delas cobriram as pessoas
estranhas. Elas ficaram presas nos cabelos,
desceram pelos pescoços e ficaram cobertas
de gelatina de morango extragrudenta.
Entraram pelas mangas das blusas e pelas
bainhas das calças, tentando encontrar um
lugar seguro para se esconder. Uma família
de quinze aranhas particularmente peludas
dependurou-se nos óculos da mulher. Acho
que ela não gostava muito de aranhas. Ela
também gritou, e o gato voou do seu colo e
foi parar na cabeça da tia Tatá. Foi a melhor
coisa que vi o dia todo.
Mas as coisas ficaram ainda melhores
porque, veja bem, tia Tatá é alérgica a
gatos. Muito alérgica. Eles a fazem espirrar
os maiores espirros que já ouvi e provocam
coceiras enormes e muito vermelhas. Não é
nada bonito.
Então tia Tatá espirrou — e quando tia
Tatá espirra, ela vai com tudo.
— A-a-a-aaaaaaaaaaaa...
TCHIIIMMMMMM!
Ela perdeu o equilíbrio, escorregou
num montinho de gelatina e se chocou com
a mulher de óculos escuros a toda
velocidade. A mulher de óculos escuros se
inclinou como uma árvore prestes a cair e
grudou na tia Tatá enquanto caía. Em
seguida, as duas deslizaram juntas pelo
vestíbulo e com o gato, que ainda estava na
cabeça da tia Tatá, completando o trio.
Tia Tatá espirrou novamente.
— A-a-a-aaaaaaaaaaaa...
TCHIIIMMMMMM!
O gato soltou uma espécie de uivo e
pulou no ar. Foi incrível; ainda posso ver
agora, em câmera lenta. Aquele gato gordo,
voando pelo ar com seu pelo arrepiado, suas
garras para fora, caindo graciosamente
numa enorme poça de gelatina de morango
extragrudenta. Ele caiu no chão lindamente,
depois passou como um raio pelo vestíbulo,
rodando como um patinador de gelo — e
colidiu com o Cavaleiro Horácio.
Edmundo me contou mais tarde que o
Cavaleiro Horácio havia preparado um
discurso e planejava pronunciá-lo á tia Tatá,
para que ela percebesse o erro que estava
cometendo. Ele vinha tilintando
cautelosamente pelas escadas desde que
havia escutado os estranhos chegarem, mas
ninguém notou sua presença com tantas
coisas acontecendo.
Mas todos o notaram naquele
momento.
O gato bateu como uma bala de canhão
em seu pé esquerdo, que voou e deslizou
pelo chão. Depois, lentamente e provocando
um barulho horroroso, peça por peça —
como uma torre de latinhas de comida de
gato num supermercado — o Cavaleiro
Horácio desmoronou, formando uma pilha
enferrujada.
Dei uma olhadinha da varanda para
ver como as pessoas estranhas estavam
reagindo a isso tudo. Parecia promissor. A
menor ainda estava lutando para se livrar
da fronha. O homem do sapo estava coberto
por morcegos, e a mulher dos óculos
escuros continuava caída de costas como
um besouro encalhado, olhando para o teto.
Tia Tatá parecia muito, muito irritada.
Ela levantou-se, limpou-se um pouco e, em
seguida, olhou direto para a varanda e
disse:
— Sério, Araminta. Você foi longe
demais desta vez.
Não respondi; estava muito ocupada
olhando a mulher de óculos escuros
tentando se levantar. Ela fez exatamente o
que besouros encalhados fazem — sacudiu
as pernas sem direção, rolou e se levantou.
Depois remexeu os restos do Cavaleiro
Horácio e pescou seu gato, que pulou e
grudou nela como um pedaço de velcro.
Cutuquei Edmundo, mas meu cotovelo
passou diretamente através dele e bateu na
mureta da varanda. Ai.
— Espera só — eu disse a ele. — Ela
vai sair pela porta da frente em cinco
segundos.
Mas ela não saiu. Simplesmente ficou
em pé no meio do vestíbulo, olhando em
volta.
— Maravilhoso — disse ela. — Esta é a
casa dos nossos sonhos!
Eu não podia acreditar. Lá estava a
mulher de óculos escuros olhando para o
espaço como se seu maior sonho tivesse
acabado de se realizar.
Depois o homem do sapo se levantou,
espantou alguns dos morcegos e então ele
disse: — Perfeito! É ainda melhor do que
esperávamos, não é, querida?
— É sim — concordou a mulher de
óculos escuros. Ela virou para tia Tatá e
apertou sua mão. — Que recepção
maravilhosa — disse ela. — Muito obrigada.
E então a pequena chata se libertou da
fronha e disse com uma voz esganiçada e
idiota:
— Eu adoraria morar aqui; é tão
empolgante! — Ela puxou a manga
grudenta da mulher e ficou atormentando.
— Podemos morar aqui, mamãe? Por favor,
por favor, por favor, podemos, mamãe?
— É claro, querida — sorriu a mulher
de óculos escuros.
Humpf. Eu não acho que seja bom
ceder a crianças que importunam,
principalmente se elas forem irritantes e
tiverem vozes esganiçadas.
Mas a mulher de óculos escuros foi
logo dizendo para a tia Tatá:
— Esta casa é perfeita. Nós vamos
comprar. Podemos nos mudar amanhã!
O quê? Agora eu realmente não podia
acreditar. Tinha sido a melhor Terrível
Emboscada que eu poderia ter feito. Tudo
tinha funcionado perfeitamente — até o
Cavaleiro Horácio apareceu.
Mas não só as pessoas estra-
nhas gostaram dela como
queriam comprar a casa.
O que mais eu poderia
fazer? Então berrei com eles.
— Vão embora! — gritei o mais alto
que podia. Era ótimo gritar tão alto; minha
voz ecoou pelo vestíbulo, e todo mundo
olhou para cima. Três pessoas pareciam
impressionadas e uma, irritada. — Vocês
não podem morar aqui — gritei a plenos
pulmões. — Esta é a minha casa e eu moro
aqui. VÃO EMBORA!
A irritada abriu a boca para dizer
alguma coisa, mas falei primeiro:
— É tudo culpa sua, tia Tatá! — eu
disse a ela. — Você nunca me perguntou se
eu queria que vendesse a casa, e você
também nunca perguntou ao tio Drac. Você
simplesmente nos avisou o que decidiu. E
não é justo. Todos nós moramos aqui, não é
só você. E eu quero continuar morando aqui
e não vou sair, NÃO vou!
Tia Tatá tirou a fuligem, a farinha, a
gelatina de morango e as aranhas da cara.
— Bem — disse ela —, fazer uma
bagunça nojenta destas não faz exatamente
com que eu queira ficar aqui, Araminta.
Este lugar já é difícil o suficiente de limpar.
Sugiro que nós todos tomemos um chá e
conversemos sobre o assunto. Tenho
certeza de que você se sentirá melhor
depois que conversar com o sr. e a sra.
Magórica.
As pessoas estranhas seguiram tia Tatá
pelas escadas em direção às cozinhas. Logo
antes de desaparecerem, a pequena idiota
olhou para a varanda. Dei a língua para ela
e lancei meu melhor olhar diabólico.
— Que bobalhona — eu disse a
Edmundo.
E você pode adivinhar o que Edmundo
disse? Foi completamente idiota. Ele disse:
— Ela me parece legal.
Ela me parece legal! Eu não podia
acreditar no que estava ouvindo. Lancei
meu olhar diabólico a Edmundo também, e
ele partiu em disparada para o quarto do
Cavaleiro Horácio. Fui atrás dele. Eu tinha
um Plano B e precisava da ajuda de
Edmundo.
— Você tem que vir até a cozinha
comigo — disse a ele, que tinha se
encolhido num canto. — Se eles vissem um
fantasma de verdade, não durariam nem
cinco segundos.
— Foi o que você disse antes — disse
Edmundo, de um jeito irritante —, e eles
continuam aqui. De qualquer jeito, acho que
eles são legais. Eu gostaria que eles
ficassem.
— Edmundo, veja bem — expliquei, já
que obviamente ele não tinha entendido —,
se eles ficarem, eu vou ter que ir. Você não
gostaria que isso acontecesse, gostaria?
Bem, isso o colocou em seu lugar. Ele
não disse nada; apenas flutuou e foi para a
velha escada. Mas eu não ia deixá-lo
escapar de jeito nenhum.
— Edmundo! — gritei.
— O quê? — disse ele, com a voz
zangada.
— Você é escudeiro do Cavaleiro
Horácio, não é? — perguntei.
— Sou... — respondeu ele.
— Então... você deve fazer o que
ele manda, certo?
— S-sim.
— E o Cavaleiro Horácio mandou que
você me ajudasse, não foi?
— Foi... — Ele suspirou exatamente
como a tia Tatá quando o aquecedor faz
alguma coisa muito irritante.
— Bem, preciso que você me ajude a
me livrar dessas pessoas horríveis. Agora.
Quero que você venha comigo e os espante.
— Tudo bem — disse Edmundo, com a
voz irritada.
Mas eu não estava nem aí para a
irritação dele. Este era meu Plano B e tinha
que dar certo.
Tio Drac também faria parte do Plano
B. Dava para perceber que Edmundo pro-
vavelmente não daria conta do recado. Ele
flutuaria na hora errada ou não seria
assustador o suficiente. Então eu também
precisava do tio Drac, pois sabia que ele
estava do meu lado.
Estava prestes a abrir a portinhola
para a torre do morcego quando o tio Drac
caiu no chão.
— Ah, Pimentinha, Pimentinha —
lamentou ele —, algo terrível aconteceu.
Todos os meus morcegos se foram.
— Não, eles não se foram — eu disse a
ele.
— Sim, eles se foram. Eles...
— Tio Drac — eu disse severamente —,
enquanto você estava pendurado, dormindo,
sem fazer nada além de roncar, tia Tatá
vendeu nossa casa!
Tio Drac parecia confuso. Ele não
gosta de ser acordado durante o dia.
— O quê? — resmungou ele.
— Tem três pessoas esquisitas aqui, tio
Drac, e uma delas é muito chata, você não
acreditaria, ela é tão idiota... e a tia Tatá
está vendendo nossa casa para eles!
— Ahn? — Tio Drac é muito lento às
vezes. Apenas o agarrei e o puxei junto
comigo.
— Você pode sair agora! — gritei para
Edmundo, que estava emburrado na
passagem secreta. Ele flutuou para fora.
— Quem é esse, Pimentinha? — tio
Drac perguntou quando viu Edmundo.
— Esse é Edmundo, tio Drac. E se você
não conseguir convencer tia Tatá a mudar
de idéia quanto a vender a nossa casa, ele
vai espantar aquelas pessoas.
Tio Drac continuava olhando para trás
enquanto Edmundo nos seguia pelas
escadas.
— Ele não parece muito bem,
Pimentinha. O que há de errado com ele? —
sussurrou tio Drac.
— Ele está morto, tio Drac.
— Morto? — Tio Drac de repente ficou
tão pálido quanto Edmundo.
— Ele é um fantasma — eu disse a ele
pacientemente. — Agora venha depressa
antes que tia Tatá venda a casa e você
tenha que começar a empacotar todos os
morcegos.
— Meus morcegos. Onde você disse
que meus morcegos estavam, Pimentinha?
— Eu não disse nada, tio Drac. Andem
logo, por favor. Vocês dois.
Como levei o Edmundo e o tio Drac
para a terceira-cozinha-à-direita-logo-após-
a-esquina-depois-da-sa- la-do-aquecedor eu
não sei. Mas levei.
Todos estavam sentados em volta da
mesa, e tia Tatá servia chá.
— Ah, Drac — disse tia Tatá, desviando
o olhar da chaleira. — Que bom que você
está aqui. E Araminta. E, hum... quem é o
seu amigo, Araminta? Ele está muito pálido.
Será que ele gostaria de uma bebida
quente?
— Este é Edmundo — eu disse a ela. —
E ele não gostaria de nada, obrigada. Ele é
um fantasma.
Olhei em volta para ver o efeito que
isso causaria nas pessoas estranhas, mas
elas apenas olharam para Edmundo e
pareceram ainda mais empolgadas.
— Mas que maravilhai — cacarejou a
mulher de óculos escuros. — Um menininho
fantasma. Ele é tão bonitinho. Olá,
Edmundo querido.
— Olá — sussurrou Edmundo.
— Ouça, Edmundo — sussurrei. —
“Olá” não é bom o suficiente. Será que você
pode soltar um uivo de gelar o sangue ou
coisa parecida?
Mas Edmundo não fez nada; apenas
ficou na porta de um jeito chato e nada
assustador, com um sorrisinho tolo no rosto.
Edmundo ser um fantasma era um
verdadeiro desperdício, pensei.
Se eu fosse um fantasma, estaria
uivando pela cozinha, gritando e jogando
tudo para fora da mesa — e isso seria só o
começo.
A pequena pessoa Magórica estava
sorrindo para Edmundo, então fiz minha
cara-de-sapo-com-boca- grande-larga para
ela. Mas ela só deu uma risadinha. E depois
uma coisa muito estranha aconteceu. Ela
pegou o copo de suco de laranja que tia
Tatá servira para ela e de repente o suco
começou a efervescer e ficou azul. Por um
instante tive esperanças de que, de repente,
tia Tatá tivesse mudado de idéia e estivesse
tentando envenená-la, mas o homem
Magórica disse:
— Pare de brincar com sua bebida,
Vanda.
Vanda estalou os dedos, e a bebida
voltou a ser suco de laranja laranja.
Exibicionismo. Depois ela pegou quatro
ratos de estimação do bolso e os colocou em
cima da mesa, à sua frente. Os ratos
plantaram bananeira e deram saltos-mortais
em volta do copo. Duplo exibicionismo.
Tio Drac passou através de Edmundo,
e tia Tatá fez com que ele sentasse ao seu
lado.
— Drac, querido — disse tia Tatá —,
estes são Brenda, Barry e Vanda Magórica,
e eles vão comprar nossa casa. Não é
ótimo?
Tio Drac não disse nada. Ele estava
olhando para mim — aliás, todos estavam
olhando para mim — então minha cara-de-
sapo-com-boca-grande se transformou em
cara-de-sapo-com-boca-grande-larga-
confuso.
Tia Tatá suspirou.
— Mas como você pode perceber,
Drac, Araminta está sendo um pouco...
difícil.
— Espere um instante, Tatá —
resmungou tio Drac, piscando um pouco.
Tio Drac tem dificuldades para enxergar na
claridade, e às vezes acho que ele é um
grande morcego. — Nós realmente
precisamos vender a casa? — disse ele. — A
Pimentinha está muito chateada, e meus
morcegos estão com um comportamento
muito estranho.
— Assim como o aquecedor — tia Tatá
lhe disse. — Como sempre. E eu não vou
mais aturar esse aquecedor, Drac, estou
falando sério.
— Ah, querida — resmungou tio Drac.
Dava para perceber que o tio Drac ia deixar
a tia Tatá ganhar — como sempre — então
eu disse:
— Tio Drac, você tem que fazer alguma
coisa. Por favor.
—Tenho? — disse ele, parecendo
preocupado.
— Sim — eu lhe disse. — Você tem! —
Sentei em frente a ele e o olhei. Eu nem fiz
cara-de-sa- po-com-boca-grande-larga e nem
lancei meu olhar diabólico. Apenas olhei
para ele como se aquilo fosse muito
importante. O que de fato era.
Tio Drac tossiu um pouco e depois
disse:
— Tatá, querida, eu sinto muito pelo
aquecedor. Eu sei que deixei todo o
trabalho para você; sei que não foi justo e
prometo que, de hoje em diante, vou dividir
a tarefa de limpar o aquecedor...
— E cortar gravetos e buscar carvão —
acrescentou tia Tatá.
— Bem, sim, isso também.
— E esvaziar e acender...
— Sim, eu faço isso também.
— Promete?
— Prometo — disse o bom e velho tio
Drac. Tia Tatá sentou-se repentinamente.
— Bem — disse ela —, sofri alguns
choques hoje, Drac, mas ouvir você oferecer
ajuda com o aquecedor foi o maior até
agora.
— Isso significa que você não vai
vender a casa? — perguntei à tia Tatá.
— Sim, tudo bem, Araminta — suspirou
tia Tatá. — Não vou vender a casa.
— Oba! — gritei.
— Puxa — resmungaram os Magórica.
— Sinto muito — tia Tatá disse a eles
—, mas a casa não está mais á venda. Vocês
gostariam de outra xícara de chá?
— Não, obrigada — disse a mulher
Magórica, suspirando. — Acho melhor
irmos.
Já não era sem tempo, também pensei
— mas ela não se levantou. Em vez disso ela
disse:
— Bem, eu não pude deixar de
perceber que você tem um modelo três com
duplas latas de cinza e peneira invertida.
Aliás, este é um dos modelos mais raros da
série.
— O que é sério? — perguntou tia Tatá.
— Seu aquecedor. Será que eu poderia
dar uma olhada nele antes de ir? Eles são
muito incomuns hoje em dia. — Tia Tatá
olhou para a mulher Magórica como se ela
fosse louca, mas a levou para a sala do
aquecedor assim mesmo.
Quando elas saíram, tio Drac levantou-
se da cadeira.
— Preciso encontrar meus morcegos —
disse ele.
— Precisa de ajuda? — perguntou o
homem Magórica. — Pode ser complicado
capturá-los sozinho.
— Obrigado — disse o tio Drac, e ele e
o homem Magórica saíram para procurar os
morcegos.
— Eu também preciso ir — disse
Edmundo, e flutuou através da parede da
cozinha.
— Tchau, Edmundo — disse a garota
Magórica exibida.
— Até logo, Vanda — disse a voz de
Edmundo de algum lugar dentro da parede.
Assim eu e a menina Vanda Magórica
ficamos juntas.
— Posso te mostrar como transformar
seu suco de laranja em azul se você quiser
— ofereceu ela.
Achei uma boa idéia. Afinal de contas,
você nunca sabe quando um truque desses
pode ser útil, sabe?
Então eu disse:
— Tudo bem.
Vanda não era tão ruim quanto
parecia. Ela me ensinou a fazer a
efervescência azul do suco de laranja, e eu
logo transformei o chá e o café do tio Drac
em azul, e eles estavam efervescendo por
todo lugar. Mas depois Vanda disse que
deveria ir. Eu disse que ela podia ficar mais
um pouco e me mostrar seus ratos plantan-
do bananeira se ela quisesse, então ficamos
observando os ratos formarem a Incrível
Pirâmide de Ratos, que era muito boa.
Depois ouvimos um barulhão lá em cima e
corremos para ver o que estava
acontecendo.
Foi muito engraçado. O pai da Vanda,
Barry, balançava na cortina tentando pegar
o Morcegão enquanto o tio Drac segurava
uma rede enorme. O melhor vaso da tia
Tatá estava em cacos pelo chão. Oops!
— Ei, Morcegão! — gritava o tio Drac.
— Venha cá, Morcegão, bom morcego!
Morcegão voou, e Barry caiu na rede.
Vanda e eu rimos tanto que até
desabamos no chão, mas Barry e tio Drac
pareciam muito contrariados, então levei
Vanda lá para cima para ver todos os meus
quartos. Vanda achou todos muito legais, já
que ela só tinha um quarto na sua casa, e
ele era muito, muito pequeno.
Depois disso, já que Barry ainda estava
ajudando o tio Drac a capturar o Morcegão,
e Brenda ainda estava olhando o aquecedor
com a tia Tatá, Vanda me ajudou a remontar
o Cavaleiro Horácio novamente. Limpamos
toda a gelatina e farinha e o polimos com
um pouco do produto de polir o aquecedor
da tia Tatá. E pusemos seu pé esquerdo de
volta no lugar.
Assim que estava completamente
montado, o Cavaleiro Horácio se levantou e
se espreguiçou.
— Nossa, isso foi muito bom para a
minha coluna — disse ele, enquanto partia
barulhentamente e se colocava numa
esquina do vestíbulo.
— Seria bom se a gente passasse um
pouco de óleo nele — disse Vanda. — Tenho
algumas coisas para a minha bicicleta que
funcionariam muito bem.
— Você sabe andar de bicicleta? —
perguntei a ela. Sempre quis ter uma
bicicleta, mas tia Tatá diz que elas são
perigosas.
— Claro que sei — disse Vanda. —
Posso te ensinar se você quiser.
Achei que Vanda estava se revelando
muito interessante, considerando tudo.
Por isso, quando a mãe dela anunciou:
— Vamos, querida, nós realmente
precisamos ir agora.
Eu disse:
— A Vanda pode dormir aqui, tia Tatá?
Pode? Por favor, por favor, por favor, por
favor, por favor?
Então Vanda dormiu lá em casa. Barry
e Brenda também. Brenda queria fazer o
aquecedor funcionar adequadamente, e
Barry ainda estava ajudando o tio Drac a
capturar o Morcegão.
Eles dormiram lá na noite seguinte
também. E na outra, e na outra, e na outra.
E então, hoje de manhã, tia Tatá disse a eles
que seria bobagem se eles voltassem para
casa, a não ser que eles quisessem, e
Brenda, Barry e Vanda disseram que não,
que não queriam ir embora.
Eu não me importo que tia Tatá tenha
decidido vender a casa, porque é muito
mais divertido com a Vanda aqui, e
encontrei dois fantasmas, então agora sei
que realmente moro em uma casa mal-
assombrada, como eu sempre quis.
FIM
Digitalização: LeneRevisão: Yuna